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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Antropologia e Culturas Visuais , realizada sob a orientação científica da Prof. Dra. Maria Cardeira da Silva e coorientação da Prof. Dra. Catarina Alves Costa.

TESE A CASA DA MOSCA - run.unl.ptrun.unl.pt/bitstream/10362/10600/1/APANHADOS NA REDE- TESTE... · clima sim), e não havia ali nenhuma aldeia nativa, tal e como Malinowski as descrevia:

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Dissertaçãoapresentadaparacumprimentodosrequisitosnecessáriosàobtençãodograude

MestreemAntropologiaeCulturasVisuais,

realizadasobaorientaçãocientíficadaProf.Dra.MariaCardeiradaSilva

ecoorientaçãodaProf.Dra.CatarinaAlvesCosta.

À minha filha, Mia.

Agradecimentos

Ao longo desta pesquisa, pude contar com a ajuda de várias pessoas, a quem não

posso deixar de agradecer. À minha orientadora, a Prof. Dra. Maria Cardeira da Silva,

cujas orientações me foram essenciais, e à minha coorientadora, a Prof. Dra. Catarina

Alves Costa que me incentivou e me fez crer na importância de acabar o meu

documentário. Ao Bruno Raposo, pela dedicação com que mantém o blog “A casa da

Mosca”, que tanto enriquecera o meu trabalho. Aos meus pais, pela consistência da

formação que me deram. A Diana Diegues, João da Ponte, Susanne e Ian, Mário Zé e

André Almeida, que em hora de aperto me disponibilizaram apoio técnico e logístico.

Ao meu marido, Eduardo, por ter feito esta viagem comigo, pelo incondicional apoio,

paciência e companheirismo. E sobre tudo, a todas as pessoas que fui conhecendo e

entrevistando neste processo: ao Dídiu, aos pescadores de Porto Formoso, aos

filósofos do miradouro, aos habituais da tasquinha do Viana e ao tio Américo, ao

Liberato Fernandes, ao Daniel de Sá e ao Luís Rodrigues, entre outros. Aos que ainda

cá estão e aos que já partiram, a todos, muito obrigada.

APANHADOS NA REDE

Considerações acerca das noções de progresso e

modernidade na comunidade piscatória de Porto Formoso

Amaya Sumpsi Langreo

Dissertação de Mestrado em Antropologia e Culturas Visuais.

Julho 2012

PALAVRAS CHAVE: modernidade, progresso, pesca, turismo, natureza, património.

RESUMO- Um porto de pesca natural e a ruína de um “castelo”. Uma pequena comunidade de pescadores, na costa norte da ilha de São Miguel, que se quer integrar nos circuitos globais e discute como. Em Porto Formoso ninguém parece duvidar de que o “progresso” não pode ser travado, mas nem todos concordam sobre o modo como esse progresso deve ser concretizado. Se muitos acreditam ser necessário fazer obras em cimento para melhorar o porto e viabilizar assim o futuro da pesca, uma profissão identitária da freguesia, outros preferem desactivar o porto e reconverter o lugar num destino turístico, apostando pelo seu valor natural e histórico e aderindo assim aos discursos do poder que alimentam a ideia de que tornar-se um destino turístico é sinónimo de crescimento, progresso, enriquecimento e emprego. Os habitantes de Porto Formoso movimentam-se assim entre múltiplas opiniões e perspectivas, às vezes contraditórias, que evidenciam diferentes formas de pensamento, de se perceber a modernidade e o progresso, de se sentir no presente e de se projectar no futuro. Questões sociais, culturais, laborais e de identidade complexificam os avanços num ou noutro sentido, e põem em relevo a profundidade dos factores que intervêm na construção identitária de um local e na sua mercadorização. Estão em causa dois modelos de desenvolvimento, dois caminhos possíveis para integrar esta localidade nos circuitos globais através da sua modernização. Mas é a “modernidade” a valorização do passado ou o afastamento do mesmo? Museus ou cais? Turistas ou pescadores? E ainda mais: qual é esse passado de que se fala em Porto Formoso? Pesca ou história? O Homem ou a Natureza? As discussões que se vivem no Porto Formoso reflectem uma discussão que se propaga pelo mundo, e num momento em que as estruturas tradicionais e os sistemas de valores estabelecidos cambaleiam, a ausência de referências firmes, característica da “modernidade”, faz com que os conceitos de futuro, em relação ao presente e ao passado nadem na ambiguidade e na incerteza. Neste sentido, este trabalho pretende reflectir sobre os valores que se põem em causa e os que prevalecem aquando desta discussão.

KEYWORDS: modernity, progress, traditional fishing, tourism, nature, heritage.

ABSTRACT- A natural fishing harbour and the ruins of a “castle” A small fishermen community in the north coast of São Miguel Island that wants to be integrated in world circuits and is discussing how to. In Porto Formoso no one seems to have any doubt on the fact that “progress” cannot be blocked, but there is no agreement how this progress must become a reality. If for many people there is a need to use concrete to improve the harbour so to visualize the future of fishing, a trade that gives identity to the village, many other prefer to defuse the harbour and make of this place a tourism destination, betting on its natural and historical values and embracing the discourse from power that feeds on the idea that becoming a tourism destination is synonymous to development, progress, richness and employment. The inhabitants of Porto Formoso move themselves among multiple opinions and perspectives, sometimes contradictory, showing different ways of thinking, of approaching modernity, of feeling up to date and projecting themselves into the future. Social, cultural, labour and identity issues make advances in any direction more complex and reveal the depth of the factors that take part in building up a place’s identity and its marketing. Two development models are under discussion, two possible ways to integrate this place into global circuits throughout its modernization. But what “modernity” is it about: to value the past or to move from it? Museums or docks? Tourists or fishermen? And even more: What past are they talking about at Porto Formoso? Fishing or History? Man or Nature? Discussions in Porto Formoso reflect a concern that spreads through the world, and in a moment when traditional structures and established value systems are teetering, the absence of firm references that are characteristics of “modernity” make ambiguous and uncertain concepts of future in relation to present and past. In this sense, this study tries to reflect which are the values that are under dispute and which ones prevail in this debate.

ÍNDICE

Introdução ........................................................................................................... 1

Capítulo I. O litoral como espaço limiar: tensões entre turismo e pesca na

ilha de São Miguel ........................................................................................... 17

I. 1. Breve introdução à história económica de São Miguel ................... 18

I. 2. O estado actual da pesca: Considerações da realidade micaelense

relevantes para o estudo .............................................................................. 20

I. 3. A explosão turística em São Miguel. Do papel à prática ............... 25

I. 4. A convivência das práticas turísticas e as práticas haliêuticas em

São Miguel ................................................................................................. 30

Capítulo II. Porto Formoso: passado, presente e futuro .................................. 36

II. 1. Porto Formoso em retrospectiva .................................................... 37

II. 2. Porto Formoso nos dias de hoje. .................................................... 47

II. 3. Potencialidades de Porto Formoso: qual a visão de futuro? .......... 59

Capítulo III: Cada um por si e todos por todos: Mestres e pescadores de

Porto Formoso .................................................................................................. 69

III. 1. Noções Gerais sobre as comunidades piscatórias ......................... 70

III. 2. A comunidade piscatória de Porto Formoso. ................................ 78

III. 3. O Carnaval de 2005: um ponto de inflexão ................................. 82

Capítulo IV: Discursos e práticas de futuro : uma etnografia polifónica ........ 87

IV. 1. Barcos novos na costa! Verão de 2006 ......................................... 88

IV. 2. Revisitação do trabalho de campo. Verão de 2007 ..................... 110

IV. 3. Nada será como dantes: Reacções à primeira apresentação do

projecto de requalificação do porto. Dezembro de 2007 ......................... 114

IV. 4. Eis o projecto! .............................................................................. 118

IV. 5. Novo Postal .................................................................................. 125

Conclusão ....................................................................................................... 129

Epílogo ............................................................................................................ 136

Referências Bibliográficas ........................................................................... 139

Anexo 1: o filme documentário ...................................................................... 144

1

Introdução

“Active social interaction and direct intellectual

engagement that was for me the most rewarding

aspect of field research, both personally and

data-wise.” (Hutchinson,1996: 45).

2

O desembarque na ilha de São Miguel

Imagine o leitor que, de repente, desembarca sozinho numa praia tropical, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a lancha ou pequena baleeira que o trouxe navega até desaparecer de vista. (Malinowski, 1997 [1922]: 19)

Pode parecer exagerado, mas as célebres palavras escritas por Malinowski em

19221, podiam muito bem resumir o que eu senti quando cheguei por primeira vez à

ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, em Setembro de 2002. É necessário,

porém, salvaguardar o contexto temporal e espacial: a praia não era tropical (embora o

clima sim), e não havia ali nenhuma aldeia nativa, tal e como Malinowski as

descrevia: o mundo em que ele viveu, onde ainda era possível achar aldeias e

sociedades “puras e intocadas” , tinha desaparecido. Mas a separação radical entre a

“minha casa” (as ruas centrais de Madrid) e este lugar, onde se viria a desenvolver o

meu trabalho de campo, exaltava o seu exotismo e a sua “pureza”. Como reconhecem

Gupta & Ferguson (1987) na sua crítica ao confinamento local da etnografia, há

lugares mais plausíveis para serem escolhidos para o trabalho de campo que outros :

Although anthropologists no longer think in terms of natural or undisturbed states, it remains evident that what many would deny in theory continues to be true in practice: some places are much more “anthropological” than others according to the degree of Otherness from an archetypical anthropological “home”. (id.: 13)

Por razões que aqui não interessam, tinha partido do centro de Madrid, o meu

“habitat natural”, apenas com uma mala e uns conhecimentos básicos de português,

que mal entendia. Antes de partir, fiz uma breve pesquisa na internet, pois embora

quisesse manter o sentimento de exotismo, precisava de saber as coisas mais básicas:

onde ficava, a que país pertencia, que língua se falava. Pouco tempo depois ali estava

eu, no aeroporto de Lisboa, esperando um daqueles aviões de duas hélices,

característicos do imaginário dos aventureiros como Indiana Jones. Devo reconhecer

que senti alguma desilusão quando vi aparecer o moderno aparelho da companhia

aérea SATA, mas enquanto sobrevoava o Atlântico continuava a sentir a vertigem de

quem voa para o desconhecido.

Quando as portas do avião se abriram, senti o peso do ar, carregado de

humidade. Sem ninguém que me recebesse, apanhei um táxi até à marginal. Estranhei 1 No texto fundador que viria estabelecer o Método Etnográfico de trabalho de campo como característica essencial e definidora da antropologia.

3

não ver o taxímetro, e quis reclamar. Como o homem não percebia nada, e eu não

queria estragar a minha chegada, limitei-me a pagar o que ele indicou com gestos e

caminhei até à esplanada mais próxima. Enquanto bebia uma cerveja, ia-me distraindo

com as conversas das mesas contíguas. Foi assim de repente que senti o pânico da

distância e da solidão: as pessoas que ia ouvindo nem sequer falavam português2.

Deus!- pensei eu - Enganei-me no idioma! Aqui falam francês!. E nesse preciso

instante senti-me como aquele herói malinowskiano, longe e só, rodeado apenas pelo

seu material.

Naquela altura, porém, estava longe de saber quem era Malinowski, e de

Antropologia apenas sabia o nome3. Eu era licenciada em cinema e estava nessa altura

a tirar o curso de Filologia Hispânica na universidade. A ideia era ficar na ilha 6 meses,

num programa de intercâmbio de estudantes, mas os prazos foram passando e eu fui

ficando. No primeiro ano continuei com os meus estudos literários na Universidade

dos Açores (UA), e depois de concluir a minha licenciatura, em Junho de 2003,

arranjei trabalho numa Cooperativa de Economia Solidária com sede em Ponta

Delgada. Foi nesta altura que estabeleci os primeiros contactos com a comunidade

piscatória da aldeia de Porto Formoso, situada na costa norte da ilha de São Miguel e

onde mais tarde desenvolveria o meu trabalho de campo que serve de base para esta

dissertação.

Ser ou não ser antropólogo: Teorização do trabalho de campo

“O Etnógrafo tem que salvaguardar essa distancia de anos laboriosos, entre o momento em que desembarca numa ilha nativa e faz as suas primeiras tentativas para entrar em contacto com os nativos e o período em que escreve a sua versão final dos resultados. Uma ideia geral e breve das atribulações de um Etnógrafo, pode lançar mais luz sobre esta questão do que qualquer longa discussão em abstracto” (Malinowski, 1997 [1922]: 19)

A antropologia actual dá inúmeras contas da complexidade e profundidade do

lugar do antropólogo no trabalho de campo, refutando assim uma das principais

premissas da Antropologia Moderna, que postulava a objectividade do sujeito

investigador como elemento essencial ao correto desenvolvimento do seu trabalho. Na

2 Na ilha de São Miguel fala-se micaelense, uma variante do português que pela sua fonética, pode parecer-se, num primeiro contacto, ao francês. Para saber mais, ver “O falar Micaelense” (Bernardo e Montenegro, 2003) 3 Como referirei mais tarde, é importante salientar que o meu primeiro contacto académico com a Antropologia deu-se em 2009-2010, quando fui aceite no mestrado para o qual apresento esta tese.

4

actualidade, a produção científica neste campo manifesta de maneira cada vez mais

aberta rasgos de parcialidade, que passam a formar parte, e às vezes a constituir, o

próprio objecto de estudo. Desde a escolha do objecto de trabalho até às conclusões

finais, é inevitável a presença de um Eu marcadamente individual, frente ao Eu

abstracto e neutro que durante muitos anos se defendeu.

É de essencial importância notar que o meu trabalho de campo e as reflexões

feitas a partir do mesmo atravessaram nove anos, que podem ser divididos em três

momentos muito diferentes entre si. Cada um destes momentos está marcado pelas

circunstâncias em que eu acompanhei a comunidade, isto é, pelo papel que por

reacção adoptei perante os sujeitos a quem observava: cada um dos momentos

estabelece uma perspectiva, uma metodologia e uns objectivos diferentes que surgem

de um “Eu” particular, mas que desembocam num único trabalho, que é esta

dissertação. Se num primeiro momento, entre 2003 e 2004, eu posicionei-me perante

a comunidade como um “visitante”, num segundo momento, entre 2005 e 2009,

acrescentei a visão de “documentarista”, e só no terceiro momento, entre 2009 e 2012,

é que adoptei a perspectiva da “antropologia”. Cada um destes três momentos

manifesta-se nesta dissertação de uma maneira diferente; o “eu visitante” a um nível

emocional e subjectivo, o “eu documentarista” a um nível narrativo e visual, e o “eu

antropólogo” a um nível científico e objectivo. Enquanto redigia este trabalho quis

que estes três níveis se complementassem antes de se excluírem, contribuindo de

diferentes maneiras para a produção deste texto e do filme que acompanha o mesmo.

O “Eu” visitante

Como já referi anteriormente, no ano 2003 eu estava longe de ser uma

“antropóloga bem – ou mal- treinada”. Na altura estava a desenvolver projectos de

solidariedade social em vários concelhos da ilha, e conheci o Porto Formoso nos

passeios de fim de semana que costumava dar pela ilha. Gostei da aldeia desde a

primeira vez que a visitei. Porto Formoso é uma aldeia pequena e calma, com uma

praia estupenda, um porto natural deslumbrante , uma gastronomia maravilhosa e uns

habitantes abertos e divertidos. Além disso, o facto de estar afastada de Ponta

Delgada4, de ter na altura uns acessos rodoviários deficientes5, e de estar situada na

costa norte (com um clima mais adverso do que a costa sul), condicionava a chegada

4 Capital da ilha e do arquipélago. 5 A Via Rápida para o Nordeste de São Miguel só foi inaugurada em Agosto de 2011.

5

massificada de turismo a esta localidade. Este conjunto de factores dava a esta

comunidade a aura de pureza genuína que o homem contemporâneo, incluindo-me a

mim, procura incessantemente. Por todos estes motivos, era costume eu passar

frequentemente pela aldeia. A minha presença naquela altura era como a de qualquer

estranho: cumprimentava sempre os habitantes com que me cruzava, obtendo deles

um sorriso, mas a relação não passava da barreira natural que separa um turista e um

local.

A frequência, a forma e o interesse com que visitava o Porto Formoso mudou

assim que conheci o Dídiu. Eu na altura vivia num conjunto de moinhos de água na

Ribeira Grande6, que são propriedade de um casal de alemães. O Dídiu, açoriano de

gerações, mora num terreno por cima dos moinhos e junta-se frequentemente aos

serões, contrariando a ideia geral na Ribeira Grande de que os “estrangeiros dos

moinhos” são esquisitos e vivem à parte. Foi assim que comecei a criar uma amizade

com ele, mais baseada na empatia do que na comunicação, que por problemas

linguísticos nessa altura era ainda bastante deficiente. Ainda assim, não precisei de

muito tempo para me aperceber do carácter carismático, solidário e tolerante do Dídiu,

que lhe outorga um estatuto especial dentro da comunidade, na qual é muito

reconhecido. Vindo de uma família notável da Ribeira Grande, foi sempre uma pessoa

modesta, apesar de ter tido experiências marcantes no continente7 e relações com

pessoas importantes no meio insular. Trabalhador da central geotérmica da EDP,

valora mais a companhia dos seus compadres do que a de outras esferas sociais mais

elevadas e tem amigos de todo o tipo, a quem ajuda sempre que possível. Prefere

andar no mar do que na cidade, beber com os pescadores do que com os funcionários e

falar de pesca do que de política. É precisamente pelo seu gosto pela pesca que o Dídiu

passa a maior parte do seu tempo livre na aldeia vizinha de Porto Formoso, onde a sua

boa reputação é ainda mais perceptível . Ali tem um pequeno barco de pesca e uma

pequena casa de aprestos onde dorme muitos fins de semana. Nas férias é raro ele sair

da aldeia. Ele conhece bem os pescadores e mantém com eles uma relação especial: os

pescadores reconhecem no Dídiu um homem sábio e um amigo. O Dídiu tem a

capacidade de ser visto e percebido como igual a eles, sem que a sua pertença a outra

esfera social (pessoal/ familiar/ profissional) interfira negativamente.

6 Segunda maior cidade de São Miguel, encontra-se na costa norte e é a capital do concelho a que pertence a freguesia de Porto Formoso. 7 Forma como é designado nos Açores o território continental de Portugal, em contraste com as ilhas.

6

Da mão do Dídiu, as minhas visitas a Porto Formoso e a convivência com os

pescadores ganharam uma nova dimensão: mudou logo a forma em que muitos dos

pescadores me passaram a tratar e no tipo de acesso que tive à comunidade. Através do

Dídiu pude observar e participar em momentos de maior privacidade, o que fez

aumentar o meu interesse pelos rituais quotidianos desta comunidade. As minhas

visitas eram cada vez mais frequentes e a relação com os pescadores cada vez mais

profunda: o “regresso”, ano após ano, tornou-me numa “velha amiga” já não só do

Dídiu, mas de muitos pescadores e habitantes de Porto Formoso. Entre 2003 e 2004

observei e participei em numerosas actividades desta comunidade: actos oficias, como

as celebrações religiosas8, outros profissionais, como as saídas á pesca ou a venda de

peixe, e ainda muitos de carácter pessoal, como os serões na tasca, as competições de

matraquilhos, as caldeiradas de peixe depois da pesca, os aniversários, etc. Em geral,

consegui movimentar-me com bastante liberdade entre os diferentes círculos sociais da

aldeia, dos privados aos públicos, e julgo, , que a minha condição feminina contribuiu

a uma maior abertura dos homens, pois “as a girl/woman, I was someone to be

protected and cared” (Hutchinson ,1996:46)

É de salientar que o facto de entrar em contacto com esta comunidade

marcadamente local e masculina através do Dídiu foi essencial à hora de retirar peso a

minha condição de estrangeira e de mulher. Por outro lado, se já não era nenhuma

criança, o facto de eu não ter filhos deixava-me naquele limbo entre a adolescência da

rapariga e a maturidade da mulher9. É verdade que no início a minha presença

produzia algum espanto, mas após iniciar-me no ritual masculino da tasca e começar a

fazer parte nas rodadas de cerveja, convidando e bebendo como eles, a abertura foi

ainda maior, passando cada vez mais desapercebida e participando cada vez mais das

conversas rotineiras dos homens. Claro que isto foi à custa de algumas ressacas, e

muitas enxaquecas. A minha postura descontraída e o tom brincalhão com que

acompanhava as suas conversas também foi chave no desenvolvimento da minha

relação com eles. Em sintonia com Hutchinson “I found humour one of the most

effective ways no only of breaking the ice but also of becoming a full-fledged person in

people´s eyes” (1996:47).

8 A festa religiosa mais importante do Porto Formoso celebra-se em Setembro em honra da Nossa Senhora da Graça, padroeira da aldeia. 9 Em 2003, ano em que entrei em contato com a aldeia pela primeira vez, tinha eu 24 anos.

7

Ainda sob influência do Dídiu, criei uma relação ténue com as mulheres da aldeia. Se

por um lado o meu interesse se foi progressivamente centrando nos homens

(nomeadamente, os da pesca), por outro as mulheres da aldeia também não fizeram

nenhuma tentativa para me conhecer. Embora passasse horas com o Américo10 nunca

cheguei a ver a sua mulher. As mulheres de outros pescadores com quem mais tarde

vim ter conversas apenas sabiam o meu nome. Nas vezes que fui convidada para

almoços nas suas casas, elas cozinhavam e juntavam-se à mesa, mas raramente

participavam nas conversas. E no fim, retiravam-se, ficando apenas eu, os pescadores

e às vezes o Dídiu.

Neste primeiro momento a minha motivação era unicamente pessoal, não tendo

outro objectivo se não perceber estas pessoas e partilhar com elas o meu tempo livre.

Sem o conhecimento antropológico de que disponho actualmente, movimentava-me

pela comunidade ao sabor dos meus instintos e apetências, estabelecendo relações por

empatias e observando aquilo que me chamava a atenção. Sem o peso das ideias

preconcebidas e sem objectivos teóricos, eu era apenas eu, reagindo ao

deslumbramento que costuma provocar o conhecimento de uma forma diferente de

estar na vida.

Fazendo uma análise retrospectiva, o Dídiu pode ser considerado em termos

antropológicos um informante-chave. Ao longo destes nove anos, o Dídiu foi

recomendando falar com esta ou aquela pessoa, ir para um ou outro lugar, ou assistir a

determinado acontecimento, sempre em função daquilo que eu precisava, primeiro em

termos de interesse pessoal, depois como procura visual e finalmente como apoio

científico. A figura do informante-chave levanta toda uma problemática quanto a sua

influência no desenvolvimento da recolha de dados etnográficos. A dependência do

antropólogo dos informantes-chave é evidente em inúmeros trabalhos de campo: é sob

a influência do Dídiu que eu escolho estudar os homens e não as mulheres, os

pescadores e não os lavradores, uns mestres do porto e não outros. De alguma maneira,

ele determina a maneira como eu percebo esta comunidade: a sua visão tem influência

na minha. É pertinente ter esta consciência para perceber que, apesar das tentativas

constantes para fugir da subjectividade, as aproximações são inevitáveis.

10 O Américo é o pescador mais velho e mais carismático de Porto Formoso. Foi com ele que saí pela primeira vez para a pesca e com quem estabeleci a relação mais importante e profunda. Ainda hoje o tratamento entre nós é similar ao de avô e neta.

8

O “Eu” documentarista

Numa noite de carnaval de 2005, uma onda, que a população de Porto

Formoso descreve como um “tsunami” 11 , atinge o porto de pescas da aldeia,

destruindo dois barcos. Eu não estava na altura a viver na ilha, pois tínhamo-nos

mudado para Lisboa no outono de 2004. Assim, só soube do acontecimento no verão

seguinte, quando fui lá passar férias e revisitar os amigos. Na aldeia, a conversa desse

verão girava em torno das consequências do desastrado acidente. Quase como num

efeito dominó, este incidente tinha levantado uma série de questões que já não diziam

respeito apenas aos pescadores, mas sim a todos os habitantes da aldeia. O que fazer a

seguir? Como reinventar a aldeia? Como a apostar na pesca ou procurar alternativas no

turismo? Trazer barcos novos? Fazer obras? Não fazer nada?…. Estas e outras eram as

questões que se discutiam, de manhã à noite, no café, no porto, na praia, nas casas, na

Junta de Freguesia, na Ribeira Grande, na internet. Este episódio tinha posto em relevo

tensões que, se antes apenas se percebiam subtilmente, agora estavam à flor de pele.

Não demorei a perceber que algo de importante se estava a passar. Parecia

como se frente aos meus olhos a aldeia se estivesse a repensar e a reconfigurar, e eu

tinha acesso a esse processo de transformação graças à relação que tinha criado com o

lugar nos anos anteriores. Sendo o cinema uma das minhas áreas de formação, o

aparecimento destas questões deu lugar ao desejo de captar os acontecimentos que se

iam desenrolando em vídeo, com o intuito de recolher os processos que estavam a ter

lugar e com eles depois poder contar uma história em imagens.

Quando voltei a Lisboa, depois desse verão de 2005, sabia já que as filmagens

que tinha começado nesse verão teriam de ter continuação, pois o processo de

transformação seguiria o curso natural da história, prolongando-se por anos (como

depois se viria confirmar). A partir deste momento, as visitas a Porto Formoso tinham

um novo objectivo: fazer um documentário que acompanhasse este processo. Voltei a

Porto Formoso em 2006, 2007 e 2008, enquanto a aldeia continuava a pensar-se e a

transformar-se. Esse registo acabou por ser fundamental para este trabalho, pois a

câmara acompanhou-me em todo o momento, captando não só conversas, discussões,

e opiniões, mas também o meu dia-a-dia na aldeia. Seguindo os acontecimentos, filmei

a construção dos novos barcos, as saídas da pesca, as novas dificuldades do porto, as

11 Provavelmente influenciados pelo mortífero tsunami que teve lugar no Oceano Pacífico apenas uns meses antes, em Dezembro de 2004.

9

discussões no miradouro e na tasca. Marquei e filmei entrevistas individuais e

colectivas com os pescadores, mas também com outros habitantes e com agentes

externos e representantes de instituições envolvidos no processo 12 , enquanto a

discussão se ia desenrolando ao longo dos anos. Com o tempo, os habitantes da aldeia

acostumaram-se a minha câmara, e assim fui acumulando horas e horas de material

audiovisual. Mas de cada vez que me sentava na mesa de edição para tentar dar uma

ordem às imagens, sentia-me mais bloqueada: era demasiada informação, demasiadas

reflexões para incluir apenas num filme. Havia ainda outro elemento que bloqueava o

processo de edição audiovisual do material: eu tinha-me proposto contar esta história

sem recurso a uma voz off: queria que a história se contasse por si própria, que fossem

as pessoas a falar e não eu a narrar. Mas, como? Tantas eram as ideias que nem sabia

como começar.

O “Eu” antropólogo

Em 2009, ainda com a edição do filme bloqueada, inscrevi-me no mestrado de

Antropologia e Culturas Visuais coordenado pelo professor João Leal. Como já foi

referido, este seria o meu primeiro contacto com a perspectiva antropológica e foi

através desta nova janela que muito do meu trabalho ganhou um novo sentido: os

seminários que segui, os textos que li e as discussões que acompanhei fizeram-me

olhar para o meu trabalho de uma nova forma.

Em primeiro lugar, percebi que a experiência que tinha vivido em Porto

Formoso até à data podia tornar-se, sem muitas alterações, num trabalho de campo

etnográfico, pois o mais importante estava lá. Em primeiro lugar a sensibilidade

etnográfica. Esta sensibilidade, que Malinowski (1922) define como a capacidade de

saber ouvir, partilhar, simpatizar, apreciar a companhia e respeitá-la, mostrando boas

maneiras, esteve presente ao longo das minhas visitas e estadias na aldeia,

manifestando-se na maneira em que me relacionei com a comunidade. Observei e

participei, tornando-me num indivíduo socialmente activo no seio desta comunidade.

Assim, esta posição privilegiada validava o meu discurso. Como assinalam Gupta &

Ferguson:

12 Como se verá mais a frente, foram entrevistados, entre outros o presidente da Junta de Porto Formoso, o Sr. Emanuel Faria, o dirigente sindical Liberato Fernandes, e o Luís Rodrigues especializado em assuntos do mar na ilha de São Miguel.

10

Unlike tourists and travellers, the fieldworker has experience, obtained by staying a long time, learning the language well, and participating in everyday life, which authorizes his or her discourse. Yet, paradoxically, if that experience is gained outside the institutional framework of a doctoral program in anthropology, it is consistently devalued. (1987: 31)

Além desta sensibilidade, o trabalho prolongado de campo e o conhecimento

da língua foram também apontadas por Malinowski como duas premissas básicas do

Método Etnográfico. Retrospectivamente, o meu trabalho de campo teve início em

2003, tendo-se prolongado até a actualidade, alternando estadias mais curtas e mais

longas. Pode por isso considerar-se um estudo em campo prolongado no tempo. Por

outro lado, o meu conhecimento do português e mais especificamente da variante

micaelense progrediu consideravelmente, e a barreira linguística que se erguia no

início foi ultrapassada. Se no início estava limitada a observar e registar apenas as

formas de cultura que o olho podia ver, ao longo do tempo fui adquirindo maiores

conhecimentos, fui sendo capaz de registar a informação de forma cada vez mais

detalhada. Isto permitiu-me mergulhar em níveis mais profundos desta sociedade,

ultrapassando a superficialidade inicial e recolhendo algumas das suas complexidades.

É claro que mesmo assim ainda tinha algumas limitações, sendo que a conversa era

mais fluida com as pessoas que por hábito já estavam mais acostumadas aos meus

erros e ao meu vocabulário deficiente. Pontualmente, quando não percebia uma

determinada frase, o Dídiu funcionava então como uma espécie de intérprete. Sem o

saber na altura, tinha criado as condições idóneas de trabalho de campo para, mais

tarde, desenvolver a etnografia que venho agora apresentar.

Existe ainda um terceiro ponto essencial no Método Etnográfico de

Malinowski: “o investigador deve guiar-se por objectivos verdadeiramente científicos

e conhecer as normas e critérios da etnografia moderna” (1922: 23). Pelos motivos

que já apontei, não cumpria este requisito: entre 2003 e 2009 não tinha por objectivo

produzir qualquer trabalho científico nem conhecia as bases teóricas da antropologia.

Por um lado, esta ignorância permitiu-me reflectir livremente sobre os processos aos

que assistia, tendo como única ferramenta a minha curiosidade e sensibilidade: não

tendo teorias nem categorias nas que enquadrar os acontecimentos que seguia, criava

as minhas próprias.

11

Existem na história da antropologia numerosos casos de trabalhos de campo

levados a cabo por não antropólogos. Durante o século XIX e as primeiras décadas do

século XX muitos foram os trabalhos de campo encomendados a indivíduos não

especializados, que por alguma razão viviam perto ou mesmo dentro da comunidade a

estudar. Perante este fenómeno, Malinowski reclamou para a antropologia a

necessidade imperante de formar estes trabalhadores, por considerar essencial ao

sucesso do Método Etnográfico a bagagem e o treino teórico do indivíduo observador,

profissionalizando desta forma a disciplina. Esta ideia atravessou toda a produção da

Antropologia Moderna, e ainda da Antropologia Contemporânea , como uma das

premissas mais sagradas do Método Etnográfico: a de que só os observadores

teoricamente treinados podiam ser confiados para a colheita de dados etnográficos.

Porém, na sua revisão do Método Etnográfico, Gupta & Ferguson exemplificam

algumas heterodoxias que defendiam outros pontos de vista. Radin (1970), depois de

se ter visto obrigado a contratar trabalhadores não treinados para levar a cabo o seu

trabalho de campo, devido à grande escala do mesmo, encontrou nesta imposição uma

vantagem, concluindo que a formação académica repercutia negativamente no

estabelecimento de relações com os sujeitos de estudo, pois erguia uma barreira que

dificultava o diálogo. Neste sentido, conclui :

The essential qualification for an observer is that he posses the gift for establishing a direct an immediate contact with his source of information in as unobtrusive as possible manner. (Radin, apud Gupta & Ferguson, 1987:23)

Através do mestrado percebi também que muitas das reflexões que me tinham

surgido ao longo dos primeiros anos de convivência e do período de filmagens em

Porto Formoso tinham sido amplamente estudadas e analisadas da perspectiva

antropológica. Muitos dos fenómenos e conceitos que eu tinha identificando e descrito

instintivamente, afinal tinham nome e história nas ciências sociais. O enquadramento

teórico ajudou-me a organizar os pensamentos, detectar tendências, suprir lacunas, e

adensar reflexões, de forma a situar este trabalho de campo não só no corpus da

antropologia, mas também nos processos de transformação do mundo e de poder. Esta

dissertação surge assim de uma análise retrospectiva sobre um material audiovisual

recolhido previamente e com outros objectivos, mas que tem funcionado na perfeição

como diário etnográfico.

12

Polifonias de Porto Formoso. Para a redacção desta dissertação, tive que completar algumas lacunas que

tinham ficado por resolver e complementar os dados recolhidos no trabalho de campo

com outras fontes que me permitissem contextualizar os depoimentos que fui

recolhendo ao longo de todo o processo e dar uma base mais sólida aos meus

argumentos. Assim foi necessário consultar dados dos censos, arquivos

historiográficos, estatísticas e outros documentos que se apresentam no trabalho e que

foram recolhidos na última viagem que realizei a Porto Formoso, já em 2012 . Houve,

porém, uma descoberta no processo de pesquisa sobre o Porto Formoso que se

revelaria essencial para a elaboração deste texto. Trata-se do blog “A casa da

Mosca”13, que encontrei casualmente na internet por ali se ter publicado um post

sobre o documentário que eu estava a preparar14. O nome do blog refere-se a uma

paragem de autocarros de Porto Formoso onde as pessoas antigamente se juntavam

para passar o tempo: ali se falava de futebol e de política, dos vizinhos e inimigos, de

coisas sérias e brincadeiras, e se discutiam todo o tipo de assuntos que diziam respeito

à aldeia. É com este mesmo objectivo que em 2005, em plena febre dos blogs em

Portugal, nasce da mão de Bruno Raposo, um jovem de 31 anos natural de Porto

Formoso15, a “casa da mosca virtual”. Após a publicação do primeiro post em Julho

desse ano, o blog cresce a uma velocidade estonteante. Desde o seu nascimento em

2005 até hoje, o Bruno Raposo, cujo nickname é “O Regedor”16 publica entre 2 e 5

posts por mês de temas diversos (cultura, política, festas, novidades, etc) , mas sempre

relacionados com o Porto Formoso. Em média, cada post suscita entre 40 a 80

comentários dos bloggers. Se em 2006 cerca de 30 pessoas viam este blog por dia, em

2007 já eram 50. Em Julho desse mesmo ano, A Casa da Mosca atingiu as cem mil

visualizações, e no mês de Julho de 2012 registava um total de 187.953, o que mostra

que o blog não só não tem perdido interesse, mas antes continua a crescer.

Na minha sincera opinião a “Casa da Mosca” está para o Porto Formoso, como o “Prós e Contras” está para o país. JAGPacheco | 3/2/08 16:03

13 http://acasadamosca.blogspot.pt/ 14 http://acasadamosca.blogspot.pt/2008/06/documentrio-porto-formoso.html 15 O Bruno viveu na aldeia até aos 12 anos. Com essa idade mudou-se para Ponta Delgada, onde continuou os seus estudos, e mais tarde mudou-se para Lisboa para tirar o curso de psicologia. Depois de se licenciar voltou para Ponta Delgada, onde actualmente trabalha para a segurança social, numa equipa que dá apoio aos lares que acolhem crianças e jovens sem família. Apesar de viver em Ponta Delgada, o seu contacto e interesse pelo Porto Formoso é permanente. 16 Antiga autoridade administrativa de uma freguesia civil (extinta com o advento do 25 de Abril de 1974).

13

O blog "a casa da mosca" veio divulgar de uma forma pseudo directa a maneira de pensar, de sentir, de exigir, de existir enfim, de ser e de viver da população formorense. Para cada post são vários os comentários que fogem ao tema do mesmo, no entanto, todos vão ao encontro da realidade do Porto Formoso. Os nicks são a forma mais simples eficaz de fugirem ao "mediatismo", numa freguesia aonde todos são conhecidos. Por fim, e para terminar, lembro-me de grandes conversas distribuídas por diversas madrugadas na carismática paragem de autocarros, apelidada por - Casa da Mosca. Acredito que o Regedor fez desse sitio, muitas vezes mal visto, o sitio ideal na internet para o povo formorense valorizar cada canto da sua freguesia. O espaço que ocupamos fisicamente pode depender muito do espaço que damos à nossa imaginação.... A casa da mosca é um exemplo. falange| 12/11/08 13:33

O rápido crescimento e divulgação deste blog deve-se principalmente a três

factores. Em primeiro lugar, para os porto formosenses, o aparecimento de um

“espaço” onde se podiam fazer comentários sobre a sua comunidade livremente e sem

necessariamente dar a cara (graças ao uso de nicknames17) supôs um novo fôlego na

liberdade de expressão, tão difícil em meios pequenos. Foram muitos os que

rapidamente aderiram e começaram a participar nas discussões, incluindo os mais

velhos. Estes, por não estar habituados ao uso desta tecnologia, pediam ajuda a

familiares para participar ou apenas consultar o blog. Em segundo lugar, rapidamente

se viu a importância que o blog estava a ganhar no Porto Formoso como ponto de

referência para os seus habitantes. Não só passou a ser considerado o meio de

divulgação mais importante da freguesia, como começou ainda a ser notada a

influência do blog no desenvolvimento dos acontecimentos em Porto Formoso. Em

mais de uma ocasião as discussões e as críticas publicadas no blog precipitaram

acontecimentos ou marcaram decisões mais ou menos importantes. Assim, o blog

passou a ser tido em conta pelas instituições da freguesia na hora de definir os seus

programas de acção nas mais diversas áreas (culturais, desportivos, políticos, etc).

Com a entrada em cena da Casa da Mosca, ser dirigente no Porto Formoso tornou-se um acto de coragem e determinação. AGUIA | 19/11/05 21:36

O que poucos sabem é que há muitas pessoas “importantes” da freguesia que vêem o blog quase diariamente, lêem todos os seus comentários, questionam-se sobre quem são os comentadores, mas não o comentam. O blog, para essas pessoas, é uma forma de se inteirarem das opiniões dominantes na freguesia. O

17 O Bruno Raposo refere “o descontrolo inicial na publicação de comentários”, uma vez que durante os três primeiros anos era possível fazer comentários anónimos, o que contribuía para a publicação de insultos e ataques verbais violentos entre bloggers. A partir de 2008, passou a ser obrigatório o registo de um nickname antes de fazer qualquer comentário: assim preservava-se o anonimato mas obrigava a associar os comentários a um nickname específico.

14

que essas pessoas se calhar não sabem é que, ao lerem o blog e os seus comentários, estão a ser influenciadas, obrigadas a pensar na freguesia, nem que seja pelo simples facto da linguagem não ser um acto automático. O Regedor | 11/08/05 13:55

Em terceiro lugar, o Porto Formoso, apesar de ser uma comunidade pequena,

conta com um número bastante elevado de emigrantes dentro e fora de Portugal18. Os

emigrantes porto formosenses expressam em geral um forte arraigo e um sentimento

permanente de nostalgia em relação a Porto Formoso. Neste contexto, o blog

funciona como um novo meio de ligação à sua terra, mais eficaz que os jornais ou as

conversas com os familiares que permanecem na aldeia, pois através dos comentários

e das fotografias publicadas lhes é possível acompanhar os processos de

transformação que acompanham o Porto Formoso e matar saudades do seu passado na

aldeia19 através de pessoas e opiniões diferentes. Neste sentido, é ilustrativo o mapa

de visualizações relativo ao blog, onde se assinalam os pontos geográficos a partir dos

quais são feitas as visualizações:

http://clustrmaps.com/counter/maps.php?url=http://www.acasadamosca.blogspot.com (24/07/12)

A Casa da Mosca mudou a vida dos nossos emigrantes. Os emigrantes querem noticias novas todos os dias neste blog, querem saber o que se passa na freguesia! O outro dia vi uma pessoa com mais de 75 anos com uma fotografia na mão tirada da Casa da Mosca e uma senhora que nunca mexeu num computador sabe ir ver a Casa da Mosca. Parabéns ao Regedor e a todos os comentadores. Anónimo | 20/11/05 13:05

O ser imigrante é viver diariamente com o porto formoso no pensamento, nunca esquecendo os nossos amigos de infância. Muitos de nós têm uma vida melhor, mes todos não podem dizer o mesmo, por isto a casa da mosca tem um valor muito grande para nós. Por isso estas fotografias são muito importante para ao menos

18 Ver capítulo 3.1 19 É interessante a tendência apreciada no blog de publicar fotografias “tiradas do baú”.

15

matar saudades da terra que um dia nos vi nascer.. A palavra saudade nunca teve tanto valor para min. Desculpem o meu portugues o emanuel com muito carinho por voces. Anónimo | 28/2/08 21:01

Em Fevereiro de 2012, quando descobri o blog, fiz uma análise de todos os

posts e comentários ali publicados desde a sua criação, seleccionando aqueles que me

pareceram mais pertinentes para análise que estava a desenvolver. Esta nova fonte de

informação ampliou a minha percepção da comunidade significativamente.

Maioritariamente anónimos, os comentários deixados no blog amplificaram e

aprofundaram, como uma espécie de eco, muitos dos depoimentos que eu tinha

recolhido junto dos pescadores, que por não ser anónimos ficavam às vezes pela

metade. A estrutura desta dissertação pensou-se assim como uma melodia polifónica,

como uma recriação de um diálogo imaginário entre as palavras dos pescadores, os

comentários virtuais do blog e o corpus teórico da antropologia.

O filme documentário

Depois de terminar de escrever a dissertação, sentei-me de novo na mesa de

edição. Foi em Junho de 2012, sete anos depois de começar a filmar e depois de

muitas tentativas de edição, que o filme começou a surgir. Como se de uma catarse se

tratasse, subitamente visualizei o filme como um todo. Trabalhei durante 15 dias sem

pausa, não pela pressão dos prazos, mas antes porque não conseguia parar. A selecção

de imagens, depoimentos e momentos de entre as mais de 60 horas de material bruto

que tinha filmado e que até esse momento se tinha tornado num pesadelo, surgia

agora naturalmente. A ordem das sequencias aparecia clara perante mim e a história

fluía quase por si só. Houve dois factores que considero essenciais para explicar este

processo. Em primeiro lugar, o facto de ter tido um lugar, fora do filme, onde incluir

todas as reflexões que me apareceram ao longo destes nove anos. Com a dissertação

escrita e as questões expostas, o filme podia agora voar mais livremente, sem o peso

de ter de apresentar todas as pessoas e de contar todos os acontecimentos que registei.

Em segundo lugar, perdi o medo de assumir a minha presença no filme. Por um lado,

o contacto com as teorias antropológicas, que giram em torno da análise da relação

entre o Eu e o Outro, deram-me uma nova perspectiva. Por outro lado, as orientações

da professora Catarina Alves Costa, e os filmes que no seu seminário de filme

etnográfico foram vistos e analisados, abriram-me o caminho: uma vez feito o

trabalho científico, agora passaria a contar a minha história. Enquanto na dissertação

16

procurei sempre manter a objectividade, no filme mergulhei na minha própria

subjectividade: de não querer usar uma voz off passei a querer incluir a minha própria,

e em primeira pessoa. O filme contaria a forma como Eu vivi os anos de contacto

com esta comunidade, e não as vivências da comunidade. Esta opção resolveu muitos

dos problemas de edição que tinha encontrado até esse momento, mas mais

importante, permitiu-me fazer o filme que sem saber, sempre quis fazer e que agora

apresento.

Últimas Notas

Passaram nove anos desde que comecei este trabalho em Porto Formoso.

Entretanto vi jovens crescerem e tornarem-se homens, vi outros adoecerem, e alguns

morrerem, vi pessoas partirem e outras chegarem, enquanto no pano de fundo, a

paisagem da baía de Porto Formoso se ia transformando. Eu também me transformei:

arranjei novos trabalhos, voltei a estudar, tive uma filha.

Nesta introdução, procurei analisar todos aqueles factores que de uma maneira

ou outra condicionaram o desenvolvimento do meu trabalho: as minhas origens e o

meu carácter (a partir do qual estabeleço a noção do “Outro”), a minha forma de

entrada no campo (e a especificidade do informante-chave), a minha condição de

mulher (num universo marcadamente masculino), e a minha situação académica (na

ausência inicial de noções de antropologia). Igualmente foram descritos os diversos

momentos que este trabalho atravessou e que o foi marcando ao longo do tempo.

Seguindo o princípio de transparência, procuro assim elucidar da forma mais precisa

possível as condições em que este trabalho fora desenvolvido, pois elas em muito o

influenciam e definem. Sirva pois este primeiro capítulo para estabelecer as bases a

partir das quais possa haver uma leitura e uma interpretação apropriadas do texto e do

filme que fazem parte desta dissertação.

17

CAPÍTULO I

O LITORAL COMO ESPAÇO LIMIAR Tensões entre Turismo e Pesca na ilha de São Miguel

“Os pescadores em plena laboração, com o pitoresco das suas

casas de madeira paupérrimas amontoadas nas dunas, os barcos

coloridos e de perfil luniforme, as redes, o exotismo das gentes

e das actividades quotidianas, são parte integrante do cenário

da beira-mar e das actividades que aí se desenrolam aos olhos,

maravilhados, dos veraneantes e dos turistas” (Nunes,

2003:135)

18

1.1 Breve introdução à história económica de São Miguel20.

A Região Autónoma dos Açores é formada por nove ilhas, divididas em três

grupos. São Miguel, no grupo oriental, é a principal ilha do arquipélago, não só pelo

seu tamanho, densidade populacional e posição geográfica, mas também pelo seu

papel como centro económico e político da Região Autónoma e pela sua diversidade

de paisagens e recursos.

Fig. 1-1. Localização da ilha de São Miguel e distribuição

do Arquipélago dos Açores

A descoberta da ilha deu-se por volta de séc. XIV e o seu povoamento teve

início a 1439, depois de D. Henrique ter mandado lançar gado em sete das ilhas do

arquipélago. Aqui chegaram colonos portugueses vindos da Estremadura, Algarve,

Alto Alentejo e estrangeiros oriundos da França (tradição presente no nome da

freguesia da Bretanha). Graças à fertilidade do seu solo e à sua posição geográfica,

desde cedo a ilha de São Miguel desenvolveu-se economicamente. Aqui produziam-

se enormes quantidades de trigo, vinho, lacticínios, batata-doce, milho, inhame, linho

e laranja. Esta última começou a ser exportada para Inglaterra, trazendo para a ilha de

São Miguel, no final do séc. XVIII, uma grande prosperidade e enriquecimento, que

se traduziu na construção de igrejas e de imponentes palácios e solares para as novas

famílias ricas. Em contrapartida, abandonou-se o cultivo do trigo e de outros cereais,

e quem sofria era a população mais desfavorecida: “As crianças – diz o Professor

Daniel de Sá - chegaram a ter uma cor amarela de tanto comer laranjas”. No entanto,

ao longo do século XIX o comércio deste fruto começa a dar os primeiros sinais de

desgaste, em parte pela concorrência da laranja espanhola (valenciana) e italiana

(siciliana) e também pelo aparecimento dos barcos a vapor e comboios, contra os

20 Esta introdução foi escrita com base na entrevista realizada em Fevereiro de 2012 ao escritor e historiador micaelense Daniel de Sá. Natural da freguesia de Maia, na costa Norte de São Miguel, onde nasceu em 1944, formou-se em Teologia e Filosofia e é autor de uma vasta obra, constituída por romances, crónicas, novelas, ensaios e contos. Para mais informação ver “História dos Açores” (Bento, 2003).

19

quais os barcos à vela dos Açores não podiam concorrer. Essa prosperidade é

definitivamente abalada em 1860, quando a praga de gomose extermina por completo

todos os laranjais, que sustentavam a ilha. Porém, graças à força de vontade dos seus

habitantes e a instituições como a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense21,

essa fase acaba com a introdução de novas culturas — criptoméria (em substituição da

árvore do plátano), tabaco, chá, espadana, chicória, beterraba, sacarina e ananás— que

garantem a sobrevivência económica e às quais se juntam, com o passar dos anos,

indústrias dos mais diversos sectores.

No século XX, dá-se um dos fenómenos mais marcantes da história recente de

São Miguel22. Em 1954, em consonância com os fenómenos vividos no continente na

fase mais dura do antigo regime, tem início o maior fluxo migratório de São Miguel

que, tendo como principal destino o Canadá e os Estados Unidos, reduziu para a

metade a população dos Açores. “Para ter uma ideia –declara Daniel de Sá- no

quinquénio de 1969-1974 emigrou um quarto da população açoriana. Neste momento

está a falar com o único homem nascido no 44 que ainda está na Maia, o resto

emigrou tudo. Na actualidade os Açores tem a metade de população que tinha 50

anos atrás”

Nesta segunda metade do século XX, os micaelenses que ficaram dedicaram-

se principalmente à criação de gado, com vista, sobretudo à produção de leite de vaca.

O sector generaliza-se a partir da década dos 60, repetindo-se o fenómeno de

uniformização dos campos micaelenses que tinha acontecido com o cultivo da laranja.

Mas a verdadeira massificação da lavoura tem lugar a partir de 1986, com a entrada

de Portugal na União Europeia. A política europeia de incentivos à agricultura atraiu

um número excessivo de produtores que ao longo da década de noventa transformou a

paisagem micaelense num mar de pastagens. Perante a sobreprodução de leite, a

União Europeia lança medidas contrárias, sobretudo a partir de 2000, diminuindo as

quotas de leite correspondentes. Na actualidade os lavradores tentam reorganizar-se

em torno de novas actividades, mas nem a lavoura nem a agricultura fazem parte das

21 Esta sociedade começou a preparar plantações novas 30 anos antes do desparecimento da laranja, enviando especialistas ao estrangeiro para estudar as plantas que se podiam adaptar às condições de cultivo de São Miguel. É assim que aparecem, por exemplo, o cultivo de chá e o ananás e a introdução da criptoméria. 22 Existiram fluxos migratórios nos séculos XVIII e XIX, mas nenhum deles teve tanta repercussão como este.

20

prioridades atuais do Governo Regional, devido à sua menor incidência no

rendimento económico da ilha.

1.2 O estado actual da pesca: Considerações da realidade micaelense relevantes

para o estudo23.

A pesca constitui um caso aparte, pois a sua prática tem sido constante ao

longo do século XX, e constitui um elemento identitário de São Miguel, como de

resto é habitual nos meios insulares. Porém, quando comparado com a agricultura ou

a lavoura, os pescadores dos Açores sempre tiveram pouco peso político e económico

no conjunto da região: não existe nos Açores nenhum porto (nem Rabo de Peixe) com

uma influência comparável às comunidades piscatórias da parte continental24. Como

afirma Nunes (2008:127) “nas últimas décadas, com períodos de escassez

aparentemente cada vez mais extensos, com a concorrência do peixe espanhol e a

readaptação do sector às condições de modernização impostos pelos modelos

supranacionais de gestão dos recursos, os pescadores continuam, como outrora, a

queixar-se de serem esquecidos e desprezados pelos poderes públicos”. Da

perspectiva de Liberato Fernandes 25 , presidente da cooperativa açoriana de

pescadores “Porto de Abrigo”, as causas deste esquecimento são simples:

“Proporcionalmente a pesca sempre teve menos poder porque ocupa menos gente, e o

poder político relaciona-se também com o peso eleitoral”.

Segundo dados de 2010 do INE, na Região Autónoma dos Açores existem

2697 pescadores matriculados, sendo que mais de 80% dos pescadores que dependem

exclusivamente da pesca são residentes nas ilhas de São Miguel e Terceira. É de

salientar que na maior parte das vezes a actividade extractiva representa a única fonte

de rendimento de famílias normalmente numerosas. Segundo os mesmos dados do

INE, em 2010 existiam 854 embarcações de pesca com motor, isto é, metade das que

existiam há 20 anos atrás. A pesca açoriana pode dividir-se em dois sectores: um,

com artes de salto e vara dirigidas aos tunídeos, constituído por 20 embarcações

costeiras (das quais apenas 5 são açorianas) com autonomia para pescar fora da

subzona Açores da ZEE (mais de 100 milhas) e outro, polivalente, com artes de linha,

23 Para a redação deste texto, foi utilizado o documento “Breve Avaliação da Política de Pescas do Governo- A valorização dos rendimentos da pesca e a sustentabilidade dos recursos marinhos dos Açores”, redigido pela Cooperativa de pescadores “Porto de Abrigo” em Outubro de 2011. 24 Como Matosinhos, Vila do Conde, Peniche, Nazaré, Olhão, Sesimbra e Setúbal. 25 Declarações obtidas em entrevista realizada em Fevereiro de 2012.

21

anzóis e redes e capturas multiespecíficas, que integra mais de 700 embarcações de

pesca local e costeira, predominando neste subsector as embarcações de pesca local

com menos de 12 metros. Tendo estes dados em conta, conclui-se que não existe nos

Açores frota para ocupar o espaço para além das 100 milhas durante todo o ano nem

para explorar a pesca em alto mar da Dorsal Atlântica confinante com o “Mar dos

Açores”, perdendo assim uma oportunidade única de rendimento pesqueiro. Perto de

95% das embarcações dos Açores são tradicionais, e são conhecidas como barcos de

“boca aberta”. Estas embarcações têm uma autonomia reduzida: carecem de porão e

de convés e portanto de condições para armazenar o peixe por tempo prolongado, e

não apresentam segurança para saídas superiores a 24h, uma vez que não têm cabine.

Estas características manifestam a continuidade de uma tradição de pesca secular

limitada à subsistência das populações: a manutenção da pesca, apesar das limitações

técnicas e da cada vez mais preocupante falta de peixe, deve-se em grande medida ao

facto de que os métodos e técnicas tradicionais ainda utilizadas nos Açores respeitam,

pelas suas características, a sustentabilidade do mar como fonte económica. Mais de

90% do pescado descarregado em lota é produto de uma pesca artesanal, que pelas

suas limitações, respeita mais a natureza e a manutenção dos recursos. A actividade é

realizada recorrendo a saberes, a artes e técnicas tradicionais transmitidas no seio

familiar de geração em geração ou obtidas pela prática individual, e perpetuadas no

arquipélago até aos tempos de hoje.

Porém, na actualidade os pescadores debatem-se com condições de trabalho

muito duras e com uma concorrência avassaladora. Nos Açores, das cerca de 42

comunidades piscatórias apenas 15 dispõem de portos de pesca que garantam algum

abrigo; muitas apenas aproveitam a morfologia da costa. E se antigamente a maior

preocupação dos pescadores era não voltar do mar, hoje acrescentam-se novas

problemáticas. O primeiro dos problemas é a evidente falta de peixe, pois se por um

lado o número de embarcações locais e costeiras diminuiu para a metade nos Açores,

o esforço e a capacidade de exploração de cada embarcação aumentou, graças à

incorporação de novos equipamentos de detecção (sondas e GPS) e ao acesso a

motores com maior potência que permitem um maior afastamento da costa. Os

primeiros signos de modernização da frota local começam a sentir-se na segunda

metade da década dos 90, mas esta actualização teve efeitos perversos: foram dados

estímulos para aumentar a capacidade de pesca das pequenas embarcações, sem ter

22

em conta a limitação física do espaço onde esta frota podia operar. À diferença da orla

costeira continental, com um comprimento de 6 milhas, a orla costeira dos Açores é

muito estreita, tendo um comprimento de 3 milhas, a partir das quais existem grandes

fundões, e portanto uma reduzida produtividade de pesca. Os barcos com menos de 12

metros modernizam-se e aumentam a sua capacidade, mas continuam a não ganhar

autonomia para ir mais longe, pelo que se concentram todos nesta estreita zona,

causando um esgotamento significativo dos recursos, que se tem vindo a acentuar

desde 2007, data a partir da qual é verificável uma quebra constante da pesca

polivalente, tanto em volume como em valor.

Fig. 1-2. Tabela apresentada no documento já referido “Breve Avaliação da Política de Pescas do Governo- A

valorização dos rendimentos da pesca e a sustentabilidade dos recursos marinhos dos Açores”.

Em segundo lugar, a pesca açoriana está sujeita à produção legislativa de três

poderes: o da Europa, o do Estado e o da Região. A União Europeia produz as suas

leis à distância, e como tal não tem em conta as particularidades da pesca dos Açores.

No processo de adesão á União Europeia (1986/1992) a pequena pesca polivalente foi

discriminada negativamente: os beneficiários directos foram o grupo Cofaco26 e um

conjunto de mestres com tradição na pesca do atum, não existindo apoios para a

renovação e modernização da pequena frota local e costeira polivalente, base de

sustentação das principais comunidades piscatórias dos Açores. No período após a

adesão (1992-1998), a pesca polivalente continua a ser discriminada nas ajudas para

as regiões ultraperiféricas, sendo que os Açores só passaram a beneficiar de ajudas

europeias após diversas reivindicações dos pescadores e dos sindicatos, quer através

de tomadas de posição públicas quer através de exposições enviadas à comissária das

26 Maior fábrica de conservas de peixe dos Açores. Aquando da sua inauguração, em 1997, era a maior da península ibérica.

23

pescas. Por outro lado, as aplicações das leis do Estado à Região resultam na maior

parte dos casos, de disputas de poder político-partidárias. Pelo seu lado, o poder

regional instrumentaliza as medidas ao seu gosto. Veja-se o exemplo da distribuição

de potências motoras no segmento de menos de 12 metros: são muitos os casos que

indiciam um claro favorecimento aos mestres que, se não são próximos do poder, pelo

menos não o criticam, e isso é uma óbvia desvantagem para os mais críticos

politicamente.

A sobreposição legislativa e de competências entre estas três sedes de decisão

dá lugar ainda a incongruências jurídicas, com a produção de leis que se contradizem

e às vezes, impossibilitam a sua aplicação. Neste sentido, afirma Liberato Fernandes,

“os profissionais hoje estão sujeitos a cerca de uma dúzia de leis diferentes, sendo

que é praticamente impossível exercer a actividade da pesca profissional sem entrar

em transgressão”.

A sobreprodução de leis provoca também o aumento das exigências legais o

que implica naturalmente um acréscimo de custos: desde as exigências de instalação

de equipamento visando favorecer o controlo da actividade até às exigências higieno-

sanitárias, e as taxas pagas pelos serviços prestados aos órgãos da Autoridade

Marítima Nacional. Na actualidade os pescadores estão sujeitos a uma dezena de

procedimentos burocráticos, dos quais cinco têm validade anual, tendo que ser

continuamente renovados e pagos. “Ora, acrescenta Liberato, este excesso de

legislação e de burocracia numa classe onde os níveis de escolaridade são em regra

bastante baixos também são mecanismos de dominação”. Esta situação torna-se

sufocante para a actividade dos armadores e de todos os pescadores, e este sufoco

atinge toda a comunidade dado o carácter familiar da actividade.

Em terceiro lugar, deve-se prestar atenção ao extraordinário desenvolvimento

doutras actividades que disputam o mesmo espaço marítimo e exercem actividade

extractiva, como é o caso da pesca lúdica e da pesca desportivo-turística. Na

actualidade existem 4000 embarcações de “náutica de recreio”. Mesmo considerando

que apenas 25% exerçam a actividade de pesca, isso significaria 1000 embarcações a

pescar, contra as 700 de pesca profissional. Apesar de, em teoria, esta pesca ser para

“autoconsumo”27, é óbvio que esta actividade tem impactos sobre os recursos da

27 Foram denunciados pelos pescadores profissionais inúmeros casos de prática de pesca comercial encapotada como pesca lúdica.

24

pequena plataforma que raramente ultrapassa as 3 milhas a partir da linha de costa,

mais ainda quando se tem em conta que não existe legislação nem fiscalização sobre

estas embarcações: os pescadores desportivos não pagam impostos nem licenças, não

têm limite de potência motora, e a sua actividade está salvaguardada das práticas de

fiscalização e da recolha de dados para efeitos de estatística. A este respeito, diz ainda

Liberato Fernandes, “Há aqui uma discriminação na forma e já não apenas da pesca

mas no conjunto das actividades ligadas ao mar, com uma justiça que tem contornos

de classe, que é relativamente mansa para quem tem dinheiro e de bom forte para os

profissionais”.

Igualmente, devem ser tidos em conta os impactos das actividades realizadas

ao longo das costas das ilhas, como a construção de estradas e marinhas que

representam a destruição de recifes naturais, assim como os impactos das actividades

agrícolas nas alterações da biodiversidade e geodiversidade marinhas junto da costa.

Por último, a pesca regional reflecte algumas situações que resultam da crise

nacional e internacional: as despesas de exploração aumentaram desde 2002, e desde

2007 é evidente o aumento dos custos do combustível e a descida dos preços de

primeira venda de algumas espécies, fruto da diminuição do poder de compra dos

consumidores e da cada vez maior liberalização dos mercados dos produtos da pesca.

Porém, nem tudo o que vêm da crise é mau: o sector primário, que em determinado

momento era sinal de subdesenvolvimento, ganha uma nova relevância que leva a

uma valorização do ofício da pesca, da agricultura e da lavoura, por serem estes os

ofícios que garantem a necessidade primária da alimentação. O discurso de Liberato

Fernandes parece ir neste sentido quando afirma que, “a entrada em crise de outras

profissões contribui para a revitalização da pesca, onde mesmo ganhando-se pouco,

mata-se sempre a fome”. As dificuldades presentes de acesso ao mercado de trabalho

em Portugal e a instabilidade dos empregos existentes podem igualmente ser factores

que influenciem nesta nova revalorização. Ao trabalharem para companhas familiares

(no sentido literal e/ou figurado) a estabilidade laboral e financeira parece estar mais

assegurada. Um dos meus informantes, o jovem pescador e mestre de Porto Formoso

Paulo Jorge28, declarava em Fevereiro de 2012: “Agora gosto de dizer que sou

pescador. Antes não dizia, tinha vergonha. Agora sinto-me orgulhoso e sinto que as

28 Para mais detalhes sobre este informante ver Capítulo 3.2

25

pessoas olham para nós de forma diferente”. Embora ainda não existam dados neste

sentido, parecem sentir-se os primeiros sinais.

A nova atitude que se começa a perceber perante esta e outras profissões

similares não significa, porém, que a pesca, como ocupação laboral, se esteja a

revitalizar. As dificuldades continuam a ser muitas e a curto prazo não se antevê uma

solução para a crise da sobrexploração na pesca, como de resto acontece na

agricultura e na lavoura: o mundo está superpovoado. Para Liberato Fernandes, o que

hoje está demonstrado é que o futuro das pescas não passa por uma pesca industrial

e em quantidade, mas sim por uma pesca tradicional que aposte em gerir a captura

numa perspectiva de sustentabilidade, premiando uma pesca responsável e

eliminando, tanto quanto possível, a cadeia de intermediação, de forma a que o

pescador ganhasse mais com o seu produto .

1.3 A explosão turística em São Miguel. Do papel à prática.

No fim do século XX e início do século XXI uma nova actividade irrompe

com força na ilha, devido ao seu potencial como motor de desenvolvimento

económico que viesse suplantar outras actividades que passaram a ocupar um segundo

plano, como a agricultura e a pecuária, ou actividades insuficientemente rentáveis,

como a pesca. O fenómeno do turismo, como hoje o percebemos, surge por volta dos

anos 50. Factores como o crescimento demográfico, o progresso técnico (sobretudo ao

nível dos transportes), o aumento dos rendimentos, a melhoria do nível de instrução

(linguístico, mas não só) e o êxodo rural, contribuíram de maneira decisiva para a

criação de uma nova cultura da viagem. Embora com alguns períodos de crise (em

correspondência com crises económicas, como a dos anos 70, e a actual), desde o seu

surgimento têm vindo sempre a crescer, entrando definitivamente na agenda política

na década de 90.

No início desta década, e em consonância com os processos globais e

globalizantes de turistificação, São Miguel começa a receber os primeiros grupos

turísticos, percebendo o potencial que esta actividade encerra. Nesta primeira fase, e

devido às estratégias das agências de viagem, os turistas provêm nomeadamente de

países do norte de Europa (Suécia, Dinamarca) em voos charter e férias programadas.

Durante esta década, o investimento direccionado ao turismo é ainda pequeno,

embora se percebam os primeiros signos de um futuro crescimento.

26

A abertura dos Açores ao turismo, como motor de desenvolvimento

económico principal, acontece ao longo da primeira década do século XXI. Como

reconhecem no fim da década dos 90 Rojeck e Urry (1997), as transformações cada

vez mais globais que atravessam as sociedades contemporâneas afectaram o carácter

das práticas turísticas, colocando o turismo num novo patamar de importância social,

enquanto reflexo de um conjunto de novas condições de mobilidade, num contexto de

crescimento de fluxos, de pessoas e objectos. As práticas turísticas erguem-se

definitivamente como um fenómeno estruturante da modernidade ( “pós-modernidade”

para alguns) e nas ciências sociais “now the tendency seems to be to applaud tourism

as a panacea for achieving a wide array of social, economic and environmental goals”

(Stronza, 2001:275).

Nos Açores, a aposta na natureza como especificidade turística do

arquipélago ganha peso no mercado nacional e internacional a partir da primeira

década do século XXI, altura em que o Governo Regional define o turismo como um

dos sectores com maior potencial de crescimento. A virgindade e a exuberância da

natureza vulcânica que caracteriza o arquipélago, garante um aumento progressivo no

fluxo de turistas, cada vez mais consciencializados com as causas ambientais. O

reconhecimento internacional dos Açores como destino turístico também contribuiu

para o seu rápido crescimento. Em 2007, os Açores obtiveram o segundo lugar na

classificação publicada pela “National Geographic” para “destinos de ilhas”, e em

2011 ficaram em oitavo lugar na classificação dos “melhores destinos de verão”.

Fig. 1.3.Fonte: Serviço Regional de Estatística

dos Açores (SREA)

Esta nova direcção tomada pelo Governo Regional, reflecte-se no Plano de

Ordenamento Turístico da Região Autónoma dos Açores (POTRAA), publicado em

2008:

27

O desenvolvimento económico e social em curso na Região, que se reflecte também na construção de infraestruturas e no crescente fluxo de turistas que a visitam, torna imperativa a definição de estratégias de desenvolvimento turístico, que garantam sustentabilidade, tendo em conta a realidade regional e a consolidação qualitativa da sua imagem de destino de fruição da natureza.

Dentro desta estratégia, o Governo Regional concede uma maior visibilidade à

ilha de São Miguel, que surge neste contexto como a ilha mais completa, acessível e

exposta ao turista. O aumento do fluxo turístico na ilha, e no arquipélago em geral,

tem provocado uma multiplicação da oferta turística que deve concorrer no palco

local, regional e global. Como indica Gotham (2002: 1737), “as different tourist

attractions and cities increasingly compete with each other to attract tourists, the

need to present the tourist with ever more spectacular, exotic and titillating

attractions increases.”. Ao mesmo tempo, as motivações dos turistas se alteram e

complexificam. E neste processo desenfreado por atrair o turismo tudo vale: a

directriz inicial, a aposta pela natureza, fica em muitos casos pelo papel. O

“ecoturismo” enfrenta o seu próprio paradoxo: o turismo (ecológico ou de qualquer

outro tipo) provoca, a maior parte das vezes, transformações que não podem respeitar

o delicado equilíbrio que uma política de preservação da natureza requer, e “o que

acaba acontecendo é a destruição do objecto de atracção e/ou preservação” (Lorenzo,

apud Prado, 2003:212). A edificação de grandes torres de hotéis em detrimento de

pequenas hospedagens rurais e hotéis de charme, a construção do complexo “Portas

do Mar” para a atracagem de cruzeiros, a obra – agora abandonada mas ainda

monstruosa- de um enorme casino na antiga calheta de Porto Teve (único local de

vestígios do povoamento primitivo de Ponta Delgada, do séc. XV), a construção do

novo Museu de Arte Contemporânea dos Açores - que pouco tem para mostrar- são

apenas alguns exemplos que evidenciam a falta de coerência do poder regional.

Durante a conferência organizada pelo OTIE29 no Conselho das Regiões da UE, o

professor Carlos Santos, Director do Observatório de Turismo dos Açores30 acusa a

falta de estratégia e visão no plano de desenvolvimento turístico do arquipélago. “O

29 Conferência “New trends of tourism in European Islands”, Bruxelas, 22 e 23 de Março de 2012, “Observatory on Tourism in the European Islands” (OTIE). 30 Associação privada, sem fins lucrativos, cujos sócios fundadores são a Região Autónoma dos Açores, a Associação de Turismo dos Açores e a Universidade dos Açores, tendo por missão promover a análise, divulgação e o acompanhamento da evolução da actividade turística, de forma independente e responsável, garantindo a idoneidade da sua produção técnico-científica, de modo a contribuir para o desenvolvimento de um turismo sustentável na Região Autónoma dos Açores e integrado nas estratégias globais de desenvolvimento regional. Sítio em http://www.observatorioturismoacores.com/

28

governo, declara o professor, defende que quanto mais generalistas sejam os fluxos

turísticos melhor, uma vez que os nichos de mercado concentrados –como o da

natureza- não são suficientemente rentáveis”. É provável que o afã de captar todo o

tipo de turista (natureza, cultural, lazer e jogo, praia, cruzeiro), se deva também à

necessidade de compensar a falta de estabilidade climática, tanto de temperatura como

de chuva, que não confere aos Açores a atractividade de ilhas como a Madeira em

Portugal e as Canárias em Espanha. Neste sentido é relevante referir a análise

realizada por Elsa Peralta sobre o caso de Ílhavo, onde

“o poder político percebeu que o turismo poderia ser uma alternativa viável para compensar o declínio de outras actividades. Mas percebeu também que o produto “sol e mar” teria, pelas condições climatéricas menos favoráveis e pelas tendências de crescimento identificadas para o sector turístico, que ser reconfigurado em torno de um motivo ou elemento diferenciador, que completasse a oferta existente, se se queria posicionar no conjunto da oferta turística da região” (2003:89)

No caso de Ílhavo o elemento diferenciador escolhido foi “o mar”, na sua

expressão histórica e cultural, e mais especificamente a pesca de bacalhau. Porém nos

Açores, onde tudo indicava que o elemento diferenciador seria a especificidade da sua

paisagem natural (com vulcões e crateras, fumarolas, cascatas, jacúzis naturais)

parece não haver uma aposta séria neste sentido. Pelo contrário, o poder regional

parece não seguir nenhum plano estratégico concreto. Copiando em muitos casos o

modelo seguido na Madeira, as políticas de desenvolvimento turístico estão

desenhadas para tentar agradar tanto o turista de cruzeiro e centro comercial, como o

de sol e praia ou o de natureza, apostando em várias frentes ao mesmo tempo. O

turismo, agora massificado, inclui turistas com perfis de todo o tipo, sendo

enormemente complexo adaptar a oferta a tal variedade. Como aponta Silva (2011)

“isso reflecte-se numa oferta que cada vez mais aposta na multiplicação e

segmentação de produtos –com pacotes específicos e dirigidos a tipos sociais

específicos (famílias, grupos, indivíduos, com perfil social, de idade e ou orientação

sexual particular) ou, alternativamente, na composição de produtos com elementos

combinados (praia + cultura, campo + desporto)”. Mas em São Miguel, onde o

elemento de diferenciação principal é essa natureza vulcânica, a falta de um plano de

desenvolvimento sólido tem consequências que são claramente visíveis na

reconfiguração da paisagem da ilha, onde se percebe a falta de rumo. Perante este

cenário, o Professor Carlos Santos defende uma estratégia “diversificada dentro de

29

uma lógica concentrada”, isto é, focar-se no turismo da natureza e desenvolver apenas

actividades complementares, como o turismo de saúde ou o golfe. As grandes torres

de hotéis, assinala o professor, foram um grande erro de planeamento, uma

consequência perversa dos subsídios da União Europeia. Estes subsídios atraíram

sobre tudo investidores madeirenses que, à imagem da Madeira, construíram

numerosos hotéis em Ponta Delgada que não oferecem ao turista nenhum serviço,

além dos quartos, nem contam com espaços verdes. Em contrapartida não existem

alternativas de alojamento suficientes fora da cidade, o que, num destino de natureza

como São Miguel, “não faz sentido nenhum”. A opinião de Liberato Fernandes vai no

mesmo sentido, pois “O que o turista procura aqui é exactamente aquilo que é

diferente e singular, e essa singularidade não está a ser respeitada nem por este

governo nem por o outro”.

Entretanto, os investimentos direccionados para o turismo continuam a

crescem, dando lugar a infraestruturas cada vez mais complexas e variadas que vão

modificando a configuração física da ilha. Como afirma Anthony Giddens (1997) a

globalização enquanto “acção a distância” reestrutura o espaço, onde a “ausência

predomina sobre a presença”. O turismo é também um fenómeno de ausência uma vez

que “os lugares e as pessoas são afectadas pelas práticas turísticas em diferentes

temporalidades, que não são apenas as temporalidades marcadas pela presença dos

turistas” (Guimarães, 2006:62). Em redor da promessa do turismo a ilha de São

Miguel transforma-se a olhos vistos. O programa político regional foca-se no turismo

como fonte de receitas capaz de suplantar outras actividades de uma forma quase

obsessiva. A maior parte dos investimentos regionais tem como objectivo, directo ou

indirecto, promover o turismo: a construção de novas estradas (para dar maior

visibilidade a locais mais isolados), a requalificação de prédios (para ganharem

estatuto turístico), a patrimonialização do passado (para o expor ao turista), a

construção do centro comercial “Parque Atlântico” (para o turista comprar), a

ampliação das rotas e as novas promoções da SATA, companhia aérea detentora do

monopólio na Região (que favorecem quem vem de fora). Todos estes investimentos

parecem estar mais direccionados para o turismo do que para os locais, que reclamam

outro tipo de intervenções em função das suas prioridades.

30

Mas as transformações decorrentes destes novos processos de turistificação

não são apenas físicas. Socialmente, surgem novas paisagens31 onde se encontram,

entre outros, locais, turistas, imigrantes e repatriados, fenómeno característico da nova

configuração do mundo em movimento. As tensões entre os diversos agentes que

configuram o panorama insular seriam de facto uma análise para desenvolver num

outro estudo (cf. Smith & Maryann 2001) Mas se atendermos aos sentimentos locais

perante o turismo (mas não ainda perante o turista), é de salientar um crescente

sentimento de cepticismo. Após as primeiras promessas governamentais, que

anunciavam a chegada do turismo como actividade que iria relançar São Miguel e os

micaelenses, criando enormes expectativas, os locais começam a mostrar os primeiros

signos de desilusão. Passados 10 anos, os habitantes, atentos as melhorias

desenvolvidas para receber os turistas, começam a criticar a falta de serviços e

melhorias dirigidas à comunidade, como creches e lares para idosos, condições nas

escolas, ausência de apoios sociais aos grupos mais vulneráveis, esgotos e

saneamento: aos seus olhos o turista recebe melhor tratamento. Do outro lado, o

local não se está a sentir directamente beneficiado: os postos do trabalho criados pelo

turismo ainda são poucos, e o que o turista gasta na ilha, nomeadamente nas pequenas

aldeias, ainda não é significativo. Embora muitos locais continuem a defender o

turismo como “salvação” da economia local, outros parecem haver desistido desse

“sonho”, mostrando agora indiferença, e ainda há quem se mostre publicamente

contra, pois não concordam com as alterações que se estão a introduzir na ilha32.

1.4 A convivência das práticas turísticas e as práticas haliêuticas em São Miguel

O mar tem sido exaltado até a exaustão no discurso romântico e nostálgico de

Portugal: pátria dos cavaleiros de mar, das epopeias atlânticas, das épicas oceânicas,

Portugal mede-se perante a imensidade da água que o rodeia, atirando-se a ela e dela

fugindo. Portugal país- limite : confim do mundo conhecido, na antiguidade, agora é-

o da nova Europa. Hoje, sob o lema “The West Coast of Europe”33, Portugal vende-se

ao mundo, à procura de novos clientes que apreciem a vertigem que resulta de olhar

para o horizonte infinito do Atlântico.

31 No sentido que Appadurai (2004) dá ao conceito de etno-paisagens.. 32 Sobre as percepções locais perante o turismo, ver próximos capítulos da tese. 33 Slogan da campanha de turismo lançada em dezembro de 2007, coincidindo com a assinatura do Tratado de Lisboa.

31

Já o disse o poeta Afonso Duarte34, e o cantou o músico Luís Cília : há só mar

no meu país. São 848 km de litoral, divididos por duas frentes expostas a ocidente e a

sul. O papel do mar no marco identitário de Portugal tem sido muito discutido35:

embora queiramos fugir do discurso naturalista que associa, sem mais, uma linha de

costa prolongada com uma grande nação marítima (Amorim, 2008:28), é inevitável

assumir que o mar define, quanto menos, uma boa parte do ser do país. Segundo

dados do Instituto da Água (INAG, 2009), cerca de 75% da população portuguesa

concentra-se na zona costeira, sendo responsável pela produção do 85% do PIB. É de

todos sabido que o litoral sempre exerceu uma forte atracção sobre grande parte da

população. Constituindo-se como um polo de dinamização, ali se conjugam tradição e

modernidade e se misturam expressões conservadoras e progressistas.

O litoral36 constitui em si próprio um espaço liminar, uma zona de contacto

entre dois meios físicos diferentes: a terra e o mar. A intensidade deste contraste

ganha ainda mais força tendo em conta a natureza imensa e infinita e o valor

simbólico e mítico deste último: o mar é símbolo de vida mas também de morte, é

beleza e destruição, é próximo e desconhecido. É do encontro da liquidez do mar e da

firmeza da terra que surge o sistema complexo e original que caracteriza as

comunidades à beira-mar, “marcando profundamente a vida social dos grupos que o

habitam, e muito em especial, a das comunidades piscatórias” (Nunes, 2001:34).

Mas não são só estas comunidades que ocupam estas zonas liminares. Da

existência de formas diferentes de utilização das praias decorre a multiplicidade de

olhares sobre o mar. Neste sentido importa pois compreender que

A ocupação humana das frentes marítimas do litoral –central- resulta de um processo de conjugação de interesses afectos a grupos sociais e ocupacionais distintos, nomeadamente: pescadores, lavradores, comerciantes, representantes da administração central e banhistas. (Nunes, 2003:132)

Este conjunto abrangente de agentes, conformam a categoria que Moreira

designa por “populações litorâneas” (1987:14). É claro que a relação de cada um

destes grupos com o mar é completamente diferente, pois se para uns é vital para a

sua subsistência, para outros é complementar, e ainda para outros apenas lúdico. Nos 34 Verso do poema “Epigrama” incluído em “Ossadas” 35 Sobre as questões identitárias do mar na construção de Portugal, ver “O mar como património: considerações acerca da identidade nacional portuguesa (Peralta, 2008) 36 Sobre as questões linguísticas e definições dos termos “litoral” e “zona Costeira” ver “Homens da Terra ou Homens do Mar- um percurso historiográfico” (Amorim, 2008:29-30)

32

últimos 50 anos, tem-se assistido a uma evolução do papel de cada um destes agentes

no desenho das zonas costeiras, em consonância com as dinâmicas globais que têm

vindo a transformar o mundo a um ritmo cada vez mais acelerado. Se o antigo modelo

da cultura marítima tinha como peça central a figura do pescador, a tendência actual é

a de uma predominância do sector turístico como motor de mudança ao redor do qual

a paisagem do litoral se reconfigura. Na costa, esta transferência da pesca para o

turismo enquanto motor económico tem consequências facilmente visíveis.

Tradicionalmente, os pescadores estabeleciam-se em terras que não serviam para

cultivar, ao pé das falésias e junto do mar. Com o turismo, estas terras ganham um

novo valor, e o mercado imobiliário faz o seu papel, retirando os pescadores e

construindo chalés, apartamentos, hotéis. Para Liberato Fernandes, “os pescadores

acabam por ser ensanduichados de duas maneiras: em mar, pela escassez de

recursos, e em terra, pela pressão do turismo”. Em Portugal, este fenómeno é

característico de zonas como a costa sul Algarvia, onde as praias passaram de ser

locais de trabalho a serem locais de lazer37. Em São Miguel, embora em menor

medida, existem cada vez mais exemplos deste fenómeno de enobrecimento (ou

gentrificação) de zonas piscatórias, sobre tudo na costa sul, como São Roque, Caloura

e Vila Franca do Campo.

A prioridade económica e política que é dada ao turismo tem, além desta

pressão imobiliária, outras consequências sobre a pesca. É claro o desequilíbrio de

investimentos quando comparamos estas duas actividades: enquanto no turismo há um

sobreinvestimento, com numerosos projectos a decorrer em simultâneo, na pesca

profissional há um claro subinvestimento, ficando sempre aquém das necessidades

dos pescadores. Além disto, a Porto de Abrigo denuncia casos de uso de dinheiro do

orçamento de pescas para fins que em pouco ou nada ajudam a pesca. “Nós – diz

Liberato Fernandes- temos conhecimento de portos que foram construídos com

dinheiro do orçamento das pescas e cuja valência para a pesca é nenhuma ou

reduzida. Em Santa Maria, por exemplo, foram construídos portos em tempo recorde,

cuja única valia era a náutica de recreio. E isso acontece em todas as ilhas”. Nos

últimos anos os investimentos dedicados à construção de marinas em São Miguel são

no mínimo dezenas de vezes superiores ao que se dedica à pesca profissional. Estas

37 Para mais informação sobre estes processos no Algarve, ver “Agenda Regional do Mar Algarve, Contributos para o Plano de Acção para o Cluster Mar Algarve” (Pires, 2008)

33

marinas, entende diz Liberato, “não passam de garagens para uma classe média alta

que em si não proporcionam o desenvolvimento de actividades económicas nem

gerem receitas” constituindo assim exemplos de investimentos dificilmente

justificáveis.

Mas mesmo nesta nova hierarquia de agentes, o pescador continua a ter

importância para o turismo, pois neste contraste de classes, de trabalho e férias, de

operário e proprietário, o banhista “ complementa o usufruto lúdico e terapêutico da

praia com a fruição de uma mais-valia escópica” (Nunes, 2003:145) , isto é, a

possibilidade de se deliciar, entre banhos, com a paisagem colorida dos barcos, o

murmúrio dos pescadores, o reflexo prateado do peixe. Perante esta visão exótica o

veraneante fica deslumbrado, hipnotizado pelo influxo, para ele nostálgico (pois

pertence ao “passado”), deste postal. Em palavras de Alain Corbin (1989:234) “o

viajante sonha em penetrar no quotidiano dos pequenos pescadores; ele tenta -ou

contenta-se em imaginar- escutá-los na estalagem, em suas cabanas, na praia”.

Associado a outros aspectos desse imaginário, continua Corbin, o pescador converte-

se num discurso de recusa da modernidade , numa espécie de preservação da natureza.

Sob o signo da nostalgia, “o trabalho da pesca faz-se espectáculo” (Nunes, 2003:145)

que o turista adora contemplar, fotografar e gravar. A pesca, ofício de história

ancestral e palco de confronto “primitivo” entre a natureza e o homem, constitui-se

como parte de um passado “autêntico” (Peralta 2003:89) que o turista, em

consonância com o “florescimento de um sentimento de nostalgia” no mercado

turístico, valoriza cada vez mais. Por isso,

Mesmo após a implantação da indústria turística moderna, depois do enorme desenvolvimento dos espaços de lazer e da sua diversificação, a pesca e os pescadores– tornando-se parte integrante da paisagem – continuarão ainda a constituir atracão, satisfazendo as necessidades escópicas de quem vem de férias à praia, servindo de motivo para bilhetes-postais, fotografias, quadros e azulejos exibidos por toda a parte, em estações de caminhos-de-ferro, em cafés e restaurantes, etc. (Nunes, 2003:137)

O governo regional, ciente das tendências do mercado turístico e sabedor do

valor da pesca, tem vindo a criar um marco legal para as actividades da pesca

relacionadas com o turismo. No Decreto Legislativo 23/2007/A, sobre o regulamento

da actividade marítimo-Turística dos Açores, pode-se ler:

O desenvolvimento de actividades de turismo náutico pelos inscritos marítimos, com utilização de embarcações de pesca, pode e deve assumir um importante

34

papel social e económico, complementando os rendimentos deste sector e proporcionando aos turistas vivências culturais genuínas, em condições que assegurem simultaneamente a sua segurança e conforto.

Porém, até agora as actividades marítimas dirigidas ao turista limitam-se

principalmente à observação de cetáceos, sendo poucos (ou nenhuns) os programas

turísticos que incluam o embarque do turista num barco de pesca. Quando isto

acontece, costuma ser clandestinamente, isto é, quando algum pescador combina

uma saída a título pessoal com alguns turistas em troca de um valor –não

declarado- acordado por ambas as partes. Das conversas com diversas

comunidades piscatórias parece que a causa é outra vez a burocracia imposta para

esta actividade: o pescador, normalmente alheio a formulários, candidaturas e

requisitos legais complexos, não consegue reunir as condições para exercer esta

actividade. Por outro lado, existem outros perigos na turistificação da pesca e dos

pescadores. Como adverte ainda Liberato Fernandes, “A actividade turística nos

Açores tem de usar muito o mar, e utilizá-lo com aquilo que existe: a pesca

turismo não pode ser transformar o pescador numa espécie de figura do folclore,

não: o turismo deve envolver os pescadores como eles são. Também porque o

turista que vem, vem para conhecer uma realidade que é a que existe cá, e que

seguramente é diferente daquela da parte continental, como uma pesca muito mais

industrializada e intensiva”

O turismo é uma experiência quotidiana de alteridade (Meneses e Mendes,

1996:62): através da prática turística o homem tenta experimentar ser o outro, nem

que seja por um instante, mas nesta tentativa o outro transforma-se, tornando-se

naquilo que o primeiro imagina. Os processos de turistificação estão sem dúvida a

modificar o mundo e as pessoas, mas nem sempre com o mesmo grau de intensidade:

parece cada vez mais claro que “ estes processos afectam em maior medida as

comunidades menores que se estruturaram em função das actividades económicas

predominantemente primárias” (Guimarães, 2006:63) e, nesse sentido, locais como

Porto Formoso ganham relevância como objectos de investigação.

O turismo é a ponta mais visível de processos socioeconómicos globais bem

mais amplos, por se manifestar na interacção de modos de vida diferenciados que

resulta deles (Crick, 1989). Para este autor, (e de acordo com o resumido em Silva,

2007) o turismo não pode ser visto como um bode expiatório por parte dos cientistas

35

sociais, e isso implica: a) abandonar as visões românticas de preservação cultural

como valor absoluto e imperialista de emocionalismo rousseauniano; b) entender a

mudança provocada pelo turismo no quadro das mudanças sociais, culturais e

económicas mais vastas; c) entender as mudanças e impactos em termos locais e

contextualizados, fazendo interferir outros factores de dependência para além do

turismo; d) atentar na focagem de outras relações potenciais de conflito e dependência

internas, atomizando a dicotomia ocidente / terceiro mundo; e) reconhecer as

participações locais nos processos turísticos; f) atentar as mudanças culturais

decorrentes dos processos turísticos nos dois sentidos; g) inserir as análises relativas

ao turismo internacional no quadro global do turismo (local e regional); h) comparar

diferentes formas de turismo ao longo do tempo e em diferentes contextos; i)

relativizar as críticas à autenticidade encenada porque, em última análise toda a

cultura pode ser encenada; j) relativizar, também as críticas ao carácter predatório e

destruidor do turismo de forma a não negligenciar o seu potencial concomitante na

preservação natural e cultural, nem a sua viabilidade económica nem como motor de

activação social.

Os pressupostos de Crick são muitos e variados e estruturam uma abordagem

antropológica objectiva e multifacetada, mas mesmo sendo extremamente complexo

aprofundar todos eles, considera-se relevante tê-los em mente na elaboração da

análise que se propõe para esta dissertação.

36

CAPÍTULO II

PORTO FORMOSO

Passado, presente e futuro

“Porto Formoso, cantinho lindo à beira mar és colocado,

do mar à serra beleza encerra,

de belas flores és perfumado

Porto Formoso, és maravilha nesta ilha sem igual

Tu louvarás Nossa Senhora de Graça,

sempre serás a mais bela de Portugal.

(Canção popular)

37

A freguesia de Porto Formoso situa-se na costa norte da ilha de São Miguel, a

10 km de Ribeira Grande, a segunda cidade da ilha e a cujo concelho pertence. A

freguesia, com uma área de 11,46 Km2, conta com 1265 habitantes –367 famílias-

(censo de 2011), o que significa que a sua densidade populacional é de 109,5 hab/

km2.

Fig. 2-1. Mapa actual da ilha de São Miguel e situação de

Porto Formoso

2.1 Porto Formoso em retrospectiva

Na época do povoamento, a ilha de São Miguel era coberta de denso arvoredo,

sendo por isso difíceis as deslocações pelo seu interior. O porto de abrigo e a ribeira,

com caudal de água permanente, foram certamente determinantes para o povoamento

do “lugar” de Porto Formoso. Como diz o historiador Daniel de Sá, “o Porto Formoso

é um caso típico da escolha dos povoadores para se assentarem, pois cumpre as três

condições básicas: terrenos bons para a agricultura, água em abundancia (para

beber e para os moinhos) e um porto de pescas”. Curiosamente num mapa datado em

1507, o Porto Formoso aparece como uma das únicas referencias da costa norte da

ilha (Campos:1983).

Fig. 2-2. Mapa da ilha de São Miguel datado em 1507.

38

A fundação desta freguesia terá acontecido nos finais do século XV, uma vez

que, afirma o historiador Daniel de Sá, “em 1508 o escudeiro Pedro Vaz Pacheco doa

o altar lateral para a igreja de Porto Formoso, o que faz supor que esta igreja já existia

bastante tempo antes”. Desde o seu início, as gentes de Porto Formoso eram

multifacetadas, pois tanto lavravam as terras como se aventuravam no mar. A terra e

o mar eram também complementares: o mar, para além da pesca, foi para Porto

Formoso essencial para escoar os produtos agrícolas, que eram transportados por

barco até ao início do século XX, uma vez que os caminhos eram praticamente

intransitáveis, além de perigosos.

Quanto ao trabalho na terra, o Porto Formoso foi desde cedo uma freguesia de

múltiplas produções, onde sempre houve um certo avanço experimentalista e um certo

espírito de iniciativa, em parte pela acção e influencia da Sociedade Promotora

Agrícola Micaelense38, na vizinha freguesia de Maia. Além de cultivos comuns a

outras zonas da ilha, como o trigo e o milho, e depois a laranja, em Porto Formoso

houve plantações de ervilhas e favas, e em 1878 foi introduzida a cultura do chá. Ao

redor deste cultivo, desenvolveu-se toda uma estrutura operacional e social, cujo

centro era a fábrica de chá de Porto Formoso, que foi um dos polos dinamizadores

mais importantes não só da aldeia, como da ilha. Esta fábrica foi, juntamente com a

fábrica de chá Gorreana (situada na vizinha freguesia de Maia), o único exemplo de

plantação de chá para fins industriais da Europa e nela trabalhavam muitas das

mulheres de Porto Formoso. A fábrica, que é actualmente um dos ex-libris turísticos

da aldeia, esteve em funcionamento entre a década de 1920 e a década de 198039.

Quando fechou, muitas das mulheres que ali trabalhavam voltaram para as tarefas do

lar ou passaram a ajudar os maridos na terra ou com os aparelhos da pesca. Foi por

volta desta altura que, em consonância com os processos económicos da ilha de São

Miguel 40 , as plantações e cultivos agrícolas em Porto Formoso começaram a

desaparecer para dar lugar aos pastos necessários para a lavoura, deixando apenas

pequenas terras para o consumo familiar. O Bruno Raposo (conhecido como “o

Regedor” no blog “A Casa da Mosca”41) publicou a seguinte fotografia num dois

38 Ver Nota 21 39 Em 1998 os atuais proprietários iniciaram as obras de recuperação da fábrica de interesse no património industrial da região. 40 Ver Capítulo 1.1 41 Ver Introdução. A partir de agora referenciado como o Regedor.

39

primeiros posts do blog (05/07/2005), fazendo-a acompanhar da seguinte legenda:

“Foto antiga de Porto Formoso, os campos eram cultivados, vacas, nem vê-las”.

Fig. 2-3. Fotografia panorâmica de Porto Formoso, sem

data.

Quanto ao mar, em Porto Formoso sempre houve pescadores. O seu porto de

pescas foi, até há bem pouco tempo42 uma encosta natural, utilizando a areia para

varar os barcos. Não parece arriscado afirmar que esta baía natural, foi emblemática

não só para a aldeia, mas para toda a ilha, dando o seu nome à aldeia. Gaspar

Frutuoso, escritor da obra “Saudades da Terra” (séc. XVI), referia-se-lhe deste modo:

“adiante faz uma ponta, chamada de Auradis da Gama, que ali morava e tinha a sua família da qual ponta até outra adiante, de António Brum, se faz uma formosa enseada de praia de areia, e ao meio dela está o lugar de Porto Formoso, pelo que nele tem, que era limpo e o melhor que havia na banda norte, onde se fizera já vararam alguns barcos e carregaram muito trigo (...)”.

Fig 2-4. Baía de Porto Formoso, antes das obras. (cedida pelo Regedor)

Na mesma obra, o autor refere ainda a abundância de peixe nos mares desta

aldeia, o que prova que a pesca se desenvolveu em Porto Formoso desde os inícios do

povoamento. A pesca nesta aldeia foi sempre de carácter artesanal, usando pequenos

42 Como se verá neste e nos próximos capítulos, foram feitas obras de requalificação no porto, que incluem duas docas em cimento e modificam a configuração natural da baía.

40

barcos de madeira e aparelhos fabricados manualmente. As famílias juntavam-se em

pequenos grupos e os conhecimentos empíricos eram passados de geração em geração.

Até ao século XX, a pesca teve como objectivo principal assegurar a subsistência das

famílias, comercializando apenas os excedentes entre os vizinhos e as aldeias mais

próximas. Factores como a chegada dos barcos a motor (em 1957) e a criação da lota

(e a estrutura de transporte de peixe correspondente), são essenciais para fazer da

comercialização do peixe uma alternativa real, pois passa a ser uma actividade

económica mais eficaz e abrangente. A meados do século XX havia mais de meia

centena de pessoas que viviam directa ou indirectamente da pesca. Nesta altura era

habitual que os pescadores trabalhassem também na terra ( como proprietários de

pequenos lotes ou como assalariados), complementando assim os seus ordenados.

Para o fazer, aproveitavam as temporadas de mau tempo no mar ou as paragens

obrigatórias para manutenção dos barcos. Este fenómeno é ainda hoje perceptível,

embora com menor frequência, em parte devido à profissionalização da pesca e o

desaparecimento quase total da agricultura, tendo ficado apenas pequenos lotes

destinados ao consumo próprio e ao trabalho da lavoura, que pelas suas características

é de difícil compaginação com a pesca. A partir dos anos 60 fenómenos como a

emigração, o crescimento doutros sectores (como a construção) e o decréscimo dos

recursos naturais no mar marcam uma tendência de abandono desta profissão, sendo

que o número de pessoas dedicadas à pesca nos anos 90 rondava os 25.

Fig. 2-5. Pescadores em Porto Formoso, tirada pelo

polícia Marítimo em 1947 (cedida pelo Regedor) .

Relativamente à pesca, é de salientar ainda uma curta mas marcante

experiência na pesca à baleia. Na década de 1880, constituíram-se armações no Grupo

Oriental, a partir da ilha de São Miguel. Nesta ilha existiram quatro companhias

baleeiras, sendo que uma delas, a "Companhia Baleeira Esperança", fundada por

alvará de 20 de Abril de 1886, estava sediada em Porto Formoso. Esta empresa fez

41

com que muitos cabo-verdianos ligados à caça à baleia se fixassem no Porto Formoso.

Apesar desta empresa ter uma existência mais ou menos efémera (foi abandonada nos

anos 30 do século passado), é ainda muito recordada pelos habitantes da aldeia.

Mas se o porto natural desta aldeia proporcionava uma fonte de alimentos e de

receitas inestimável, era também uma porta que urgia defender dos ataques externos.

Por isso, construiu-se em posição dominante sobre este trecho do litoral uma

fortificação destinada à defesa deste ancoradouro contra os ataques de piratas e

corsários portugueses, ingleses e otomanos, outrora frequentes nesta região do oceano

Atlântico. Esta construção, que faz parte de uma vasta rede de fortificações litorais

nos Açores, é um testemunho dos séculos de isolamento a que estas ilhas foram

sujeitas e das preocupações de defesa das suas populações. A primeira referência a

esta construção aparece no contexto da Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714)

"O Reduto do lugar do Porto Formoso" na relação "Fortificações nos Açores

existentes em 1710” (Arquivo dos Açores:179). Pelas sucessivas referências percebe-

se que ao longo do século XVII se foi deteriorando, sendo que em 1817 se encontrava

arruinado e desartilhado. Porém, foi reconstruído e novamente artilhado em 1820, a

tempo da Guerra Civil Portuguesa (1828-1834). Com o nome de Forte de Nossa

Senhora da Graça ou simplesmente Castelo, por ocasião do desembarque das tropas

liberais no Pesqueiro da Achadinha (1 de agosto de 1831), foi abandonado pela

guarnição miguelista, depois de lhe ter encravado a artilharia (Pereira, 1927:98).. Em

1909 encontrava-se uma vez mais em ruínas. Mais tarde, as suas dependências foram

aproveitadas pela "Companhia Baleeira Esperança", para instalação de um traiol43

para derreter a gordura das baleias. A partir daí a degradação foi consumindo as

ruinas do forte: parte das pedras das suas paredes foram utilizadas para construir um

muro de protecção para barcos e outras construções da aldeia. Muitos dos atuais

habitantes da aldeia apenas recordam o castelo como um curral de criação de porcos,

e hoje, não é mais do que um monte de ruínas desfigurado que sobrevive a duras

penas por entre a nova construção do porto.

43 Designação dada a estações de processamento de baleias rudimentares, que permitiam a extracção do óleo pelo meio de panelas de grande dimensão, assentes sobre fogo directo. Estas estações eram frequentemente desprovidas de rampas para varagem dos animais

42

Fig. 2-6.Detalhe actual do Forte ou “Castelo”

(Inventário do património imóvel dos Açores, 2003)

As terras férteis e a proximidade do mar foram com certeza factores essenciais

para perceber o Porto Formoso como destino de eleição para as novas famílias ricas

de São Miguel. Até aos anos sessenta do século passado os grandes terrenos à volta da

aldeia eram propriedade de quatro ou cinco senhorios. Estas famílias tinham feito

fortunas com o negócio da laranja e nestes terrenos construíram solares que habitavam

sazonalmente. Um facto curioso a este respeito é a existência em Porto Formoso de

uma equipa de cricket , modalidade que foi praticada entre os anos 30 e 50 do século

passado provavelmente por influência destas famílias, em contacto com os ingleses

através das actividades comerciais.

Fig. 2-7. Equipa de cricket de Porto Formoso retratada em

194? (cedida pelo Regedor )

Além do mar e a terra, o Porto Formoso tinha ainda uma outra atracção para

estas famílias: as termas da Ladeira Velha. Durante o século XIX e início do século

XX, estas termas foram alvo de vários estudos e artigos publicados devido à fama que

as suas águas tinham no tratamento de reumatismo, lepra, e doenças da pele. Devido

ao seu sucesso, foram construídas casas para albergar os utentes das águas medicinais,

estando em funcionamento até aos anos 40. Tendo em conta a existência, no século

XIX e primeira metade do século XX, destes dois fenómenos (a eleição de Porto

43

Formoso para “segunda residência” e a existência das termas que recebiam açorianos,

portugueses e estrangeiros por motivos de saúde) pode dizer-se que Porto Formoso foi

desde cedo um “destino turístico” (extrapolando um conceito que na altura não

existia), o que se revela importante tendo em conta as presentes pretensões turísticas

da freguesia44. Assim, o turismo em Porto Formoso não parece ter aparecido apenas

de repente, ao sabor dos movimentos de globalização, das modas e tendências, no

início do século XXI: existe por trás uma história de contacto com os forasteiros que

inscreve Porto Formoso nas “práticas incipientes de turismo de praia associadas a

práticas medicinais e higienistas do século XIX” (Silva, 2011). Nesta altura, a

revolução industrial estava a expandir-se pelo mundo, e em contraste com a mesma, o

lazer era percebido como uma necessidade “dentro de uma lógica quase higienista”

(id.). Mas estas práticas de lazer eram apenas acessíveis para quem tinha recursos

financeiros, desde cedo marcando socialmente esta actividade. .

Fig. 2-8. Artigo sobre as termas, datado em 1932 (cedido pelo

Regedor )

Umas décadas depois de fechar as termas, no ano de 1967, a família Faria e

Maria, antiga proprietária da fábrica de chá, resolveu transferir a sua família para a

44 Ver Capítulo 2.3.

44

Praia dos Moinhos. Ali compraram algumas casas e, acompanhando o boom do

turismo de lazer de massas45, publicitaram o local como zona balnear. A aquisição,

pelas massas, de direitos como as férias pagas e outros (cf. Corbin 1995), tiveram

como consequência um progressivo esbatimento social do turismo. Em Porto

Formoso a praia dos Moinhos passou de ser de uso quase exclusivo da classe alta para

um uso público abrangente, onde se misturam pessoas de todas as classes (os que

dormem no campismo e na praia, os que alugam as casas de férias, os funcionários e

os altos cargos ). Actualmente, aquela zona tornou-se um ex-libris do Porto Formoso,

paragem obrigatória para turistas por ser uma das poucas zonas balneares da costa

norte.

Fig. 2-9. Imagem da praia dos Moinhos em época balnear

(Cedida pelo Regedor)

É de salientar que em Porto Formoso a dicotomia entre locais e forasteiros

ganha no uso das praias uma importância especial. A praia dos Moinhos foi e é um

espaço frequentado principalmente pelas pessoas de fora da freguesia (estrangeiros ou

não), mas é raro encontrar nessa praia pessoas da freguesia. A praia dos Moinhos

corresponde aos estereótipos turísticos de “praia”: tem um bom areal e uma bonita

paisagem em volta, está limpa, tem um snack bar ao pé da areia e boas ondas para o

surf, e recentemente, infraestruturas de apoio como balneários e casas de banho46.

Estas e outras modificações projectadas prendem-se com o objectivo de conseguir a

bandeira azul, distinção de qualidade que se relaciona com uma maior procura externa,

e cuja adquisição é promovida pelos poderes regionais. Mas a distância que separa

esta praia da aldeia, bem como a força das ondas, faz com que os porto formosenses

prefiram ficar pela praia dos barcos (na baía natural) e a praia do meio (junto desta),

45 Ver Capítulo 1.3 46 Como ser verá no Capítulo 4 estas intervenções na Praia dos Moinhos não estiveram isentas de polémica.

45

pois apesar de estarem mais sujas, encontram-se no coração da aldeia. Além disso, o

mar aqui é calmo (devido à baía) o que permite aos miúdos brincar à vontade. A

familiaridade com os pescadores que ali trabalham, e a alegria dessa convivência, são

também factores essenciais que fazem com que os locais chamem a esta praia “a

nossa areia” em contraste com a praia dos Moinhos. Esta dicotomia expressa no fundo

uma diferenciação entre as práticas lúdicas “deles” -forasteiros- e as “nossas” -locais-:

se os turistas e visitantes consideram práticas lúdicas actividades como apanhar sol e

ondas, jogar raquetes e comer e beber no snack bar, os porto formosenses preferem

brincar na areia com os barcos e restos de madeira, passar a tarde em alegre conversa

com pescadores e vizinhos, saltar dos barcos ancorados, apanhar caranguejo e

camarão para isca, ou mergulhar à procura de cracas.

Fig. 2-10. Imagem de satélite da freguesia de Porto

Formoso (Google Earth, consultado em 18/04/2012) onde é visível a distância que separa a aldeia da Praia dos

Moinhos, bem como a situação da fábrica de chã e da vizinha freguesia de São Brás.

Mas o fenómeno mais estruturante do século XX prende-se com os fluxos de

emigração. Integrado num país e numa região de emigrantes, o Porto Formoso não

foge à regra47. Basta uma ligeira análise dos dados populacionais para perceber que a

emigração foi a partir dos anos sessenta a responsável por uma diminuição substancial

do numero de habitantes de Porto Formoso: se em 1960 se contavam 317048

residentes, no último censo de 2011 eram 1915 (1265 Porto Formoso e 650 São Brás),

o que significa um decréscimo de 40%. A procura de melhores condições de vida, a

guerra colonial e provavelmente o espírito de aventura, levaram muitos dos porto

47 Ver Capítulo 1.1. 48 Em 1960 a freguesia de São Brás estava anexada à de Porto Formoso. Para assegurar a consistência na comparação de dados, opta-se por mostrar o censo de 2011 com a soma da população de São Brás e Porto Formoso.

46

formosenses a rumar principalmente aos Estados Unidos e Canada49, deixando para

trás uma aldeia cada vez mais despovoada.

Fig. 2-11. Sr. Garupa e filhos em Toronto (197?).

(Fotografia cedida pela família)

No início, o contraste entre o emigrante que voltava a Porto Formoso em férias

e os que lá tinham ficado era muito expressivo, mas a progressiva melhoria de

condições de vida na ilha, e os processos de globalização e homogeneização de

hábitos têm vindo a atenuar as diferenças ao ponto de haver agora habitantes que

afirmam existir um contraste no sentido inverso. Vejam-se alguns testemunhos

deixados no blog “A casa da Mosca”50

Quando perguntamos aos emigrantes que nos visitam o que é que eles acham do Porto Formoso, normalmente as opiniões são unânimes: "Esta terra esta muito melhor", "Vocês já tem tudo ca", "Já estão como na América...", "Já não precisamos de mandar roupa e chinchelarias nas barricas" Cavalete51 | 8/3/06 16:06 Antigamente quando um "calafâo" vinha das Américas notávamos nele uma evolução que ainda faltara em nós cá. Hoje o caso inverte-se, somos nós que apresentamos uma nítida evolução quer na informação, no vestuário, no tipo de conversa etc. A internet e consequente globalização reflecte-se mais em nós de cá do que os de lá que um dia nasceram cá. gnussen52 | 9/3/06 06:54

49 Nas últimas duas décadas, e devido a questões sócio-económicas (como a entrada no euro ou o desenvolvimento de Portugal) e ao endurecimento das regras de imigração nestes países, têm aparecido novos destinos para os emigrantes na Europa e até dentro do próprio país. 50 Nalguns casos, foi possível aceder a informação sobre os usuários do blog, por estes usarem o seu nome como nickname, ou por assumirem publicamente a sua identidade por trás da alcunha. Em qualquer caso, e dado a natureza do blog, nestes casos opta-se por indicar apenas a informação básica e relevante para esta tese, omitindo a identidade. O mesmo não acontece nos testemunhos recolhidos e filmados directamente por mim, pois nestes casos as pessoas não tiveram nenhum problema em assumir a identidade no filme e no trabalho (sendo este um requisito indispensável para serem filmados). 51 Homem de 36 anos natural de Porto Formoso. Viveu lá até se casar, e actualmente reside em Ponta Delgada, onde trabalha como professor universitário. 52 Jovem de 31 anos, natural de Porto Formoso e amigo de infância do Bruno Raposo (Regedor), é aficionado à leitura e escreve poesia desde jovem.

47

Embora os fluxos migratórios tenham abrandado significativamente a partir

dos anos 90, ainda hoje existe uma emigração temporária para lugares como as

Bermudas ou a Califórnia, para onde alguns porto formosenses emigram por períodos

curtos para angariar alguns rendimentos extra em campanhas de trabalho na pesca ou

na construção, de forma a poder “endireitar” a vida, havendo sempre um regresso à

aldeia, onde vive a família. O enraizamento dos porto formosenses à sua terra é sem

dúvida característica desta comunidade. Numerosos testemunhos de emigrantes

expressam a forte afeição pela terra que abandonaram53, mas esta afeição não é só

expressa pelos que deixaram o Porto Formoso atrás. Os que ainda vivem nesta aldeia

expressam o mesmo sentimento. À pergunta de “se pudesse escolher outro sítio para

viver, sairia de Porto Formoso?” as respostas dadas pelos entrevistados foram todas

no mesmo sentido: “Não trocava o Porto Formoso por nada”, “Nem pensar”, “por

nada da vida” “nem que ganhasse o Euromilhões”, ou então “Se houver alguma

proposta para sair um ano para ganhar algum dinheiro eu saio, mas tirar a minha casa

daqui, isso nunca”.

Se uma característica desta comunidade é o apego à sua terra, a outra é a sua

abertura ao exterior e a sua movimentação. A história do Porto Formoso mostra que,

apesar do seu isolamento geográfico, foi (e é) uma aldeia em constante contacto com

o “estranho”: através do transporte de mercadorias do porto, do carácter experimental

da sua agricultura, da empresa baleeira, da sua posição estratégica no âmbito militar,

das termas, das casas senhoriais, do primeiro turismo (regional, nacional e

estrangeiro) e da emigração, Porto Formoso acostumou-se desde cedo, a lidar com

agentes externos, aprendendo a adaptar-se rapidamente às mudanças locais

provocadas pelo movimento do mundo. Parafraseando o escritor maiense Daniel de

Sá, “Em Porto Formoso as novidades não costumam causar estranheza”

2.2 Porto Formoso nos dias de hoje

Nos últimos dez anos (censo 2001-censo 2011) a população de Porto Formoso

tem-se mantido estável, tendo passado de 1267 para 1265 habitantes. Porém, tendo

em atenção as divisões por grupos etários, é perceptível uma tendência de

envelhecimento da população, como de resto tem vindo a acontecer a nível nacional:

53 Na Introdução, podem-se ler alguns dos depoimentos deixados pelos emigrantes no blog.

48

Se em 2001 os habitantes dos 0-24 anos de idade somavam 536, em 2011 passaram a

435. Quanto aos habitantes com mais de 24 anos, se em 2001 eram 696, em 2011

passaram a 830.

Em Porto Formoso nunca existiu uma forte cultura académica. Em muitos

casos, os jovens não continuam os estudos porque os pais não têm dinheiro e precisam

de fazer a colecta, no final do mês, do ordenado dos filhos que trabalham nas pescas,

na terra, na construção civil, etc. Em outros casos, os jovens ficam em casa porque os

pais, sem tradição de estudos, pensam que estudar não serve para nada. Há ainda os

casos, também numerosos, em que o abandono escolar deve-se à pura “malandrice” e

falta de ambição, em parte devido às escassas perspectivas com que alguns jovens

pensam na sua vida, que decorre entre a tasca, o porto e o jardim do miradouro, sem

sair praticamente da freguesia. Um dos factores que está a influenciar este tipo de

abandono prende-se com o consumo de drogas, uma realidade de São Miguel e em

particular de Porto Formoso. A movimentação de drogas leves na freguesia é visível,

e parece estar relacionada com a própria movimentação da aldeia, que recebe turistas

e pessoas de Ponta Delgada frequentemente. Mas também existe um consumo elevado

de drogas mais duras, como a heroína. Se não existe um consenso quanto ao nível de

influência do consumo de drogas leves no comportamento dos jovens, é um ponto

assente que o consumo de drogas pesadas, nomeadamente heroína, provoca mudanças

drásticas no carácter e comportamento da pessoa, que em muitos casos acaba por

abandonar a família, os estudos e/ou o trabalho para se centrar no seu consumo e em

angariar dinheiro para o garantir, dando lugar a um novo fenómeno de roubos e

assaltos em Porto Formoso.

Porém, nos últimos anos a freguesia tem sofrido importantes mudanças na

educação, nos transportes e nos sistemas de comunicação: há mais oferta educativa e é

mais acessível, tanto economicamente quanto em termos de infraestruturas. Agora é

sem dúvida mais fácil ir estudar: na vizinha aldeia da Maia, na cidade de Ribeira

Grande, na capital Ponta Delgada e até no Continente e/ou estrangeiro. As estatísticas

do censo 2011 mostram que, apesar de haver ainda um número elevado de habitantes

sem nenhum tipo de escolaridade (323), os habitantes com o ciclo básico completo

(148) aumentaram em comparação a 2001 (123). Também o número de habitantes

com estudos superiores (técnico-profissionais e universitário) aumentou, passando de

40 em 2001 para 45 em 2011. Porém, muito dos habitantes com cursos universitários

49

optam por não regressar ao Porto Formoso. Perante este cenário, alguns habitantes

expressam no blog “A casa da Mosca” a sua preocupação.

É necessário elevar ainda mais o nível cultural do Porto Formoso, de modo a cimentar a sua identidade e proteger a sua especificidade. Com um nível cultural alto, a n/ freguesia poderá evoluir ainda mais, aumentando progressivamente um conjunto de valores nucleares da sua cultura. Essa cultura tem que ser baseada em valores estáveis, menos materialistas, mas ligados à expressão individual. Fica, pois, lançado o um grande desafio aos jovens do Porto Formoso: ESTUDEM. Só uma sociedade culta é capaz de sobreviver, independentemente das condições socioeconómicas. JASRAPOSO | 1/12/05 14:2954

Em Porto Formoso continuam a existir nichos de trabalho, nomeadamente na

pesca profissional55, na lavoura, na cultura mais recente do inhame e em alguns

serviços (cafetarias, restaurantes, no museu da fábrica do chá, etc) mas não são

empregos suficientes para cobrir a população activa da aldeia. Além disso, a

tendência das ocupações em terra e no mar, historicamente ligadas ao Porto Formoso,

é de empregar cada vez menos pessoas. Apesar das modernizações realizadas na frota

pesqueira de Porto Formoso, estas continuam limitadas à pesca local. A escassez de

recursos marinhos e a crescente pressão fiscalizadora são também factores que

dificultam cada vez mais a profissão da pesca56: em 2005 havia apenas 6 barcos de

boca aberta dedicados e activos na pesca profissional, somando entre eles

aproximadamente 20 pescadores. Por outro lado, a ocupação na lavoura também

vindo a diminuir, tendo o Presidente da Junta inclusivamente ter declarado (em

Agosto de 2005) que esta actividade se encontra numa “fase terminal” pois “há aqui

muitos lavradores que têm poucas cabeças de gado e estão a ser exigidos a eles coisas

que eles não conseguem suportar e futuramente vai acabar por poucos ou nenhuns

lavradores”

Por estes motivos desde o início do século XXI o Porto Formoso tem vindo a

transformar-se no “dormitório” de uma população que maioritariamente trabalha na

Ribeira Grande e Ponta Delgada. Ao longo das sucessivas viagens que realizei a esta

aldeia entre 2005 e 2012, pude acompanhar esta transformação: de ruas vivas e

barulhentas de segunda a domingo, passou-se progressivamente a ruas cada vez mais 54 Nascido em 1956 em Porto Formoso, reside em Ponta Delgada onde trabalha como administrador de uma empresa açoriana. Mantém ainda moradia em Porto Formoso, onde passa fins-de-semana e tempos livres. É pai do Regedor, criador do blog A Casa da Mosca. 55 Porto Formoso é o terceiro porto de pescas mais importante da costa norte, depois de Rabo de Peixe e das Capelas (neste caso, devido à história da caça da baleia). 56 Ver Capítulo 1.2

50

silenciosas e desertas, sendo que o único movimento perceptível provem do porto de

pescas, que agora mais do que nunca, funciona como coração da aldeia, devido à sua

localização central (em contraste com as pastagens, afastadas e de difícil acesso) e ao

carácter alegre e barulhento desta comunidade piscatória, que conta ainda com

bastantes trabalhadores jovens, ao contrário da lavoura. A progressiva transformação

em cidade-dormitório foi especialmente sentida na minha última viagem à aldeia,

realizada em Fevereiro de 2012. É claro que o Porto Formoso, como aldeia costeira,

vive ao ritmo do mar, como em geral acontece nas povoações do litoral. O ritmo

destas comunidades é marcado pelo clima e o estado do mar: se o verão é sinónimo de

agitação, já o inverno é de hibernação. O carácter sazonal do turismo (de estrangeiros

e emigrantes) e da pesca marca um tempo particular. A testemunha do blogger o

Regedor é representativa das mudanças que se sentem na aldeia durante o ano:

A estação do calor traz-nos a praia, os cafés na esplanada da Praia dos Moinhos, os passeios a pé, os churrascos, os estrangeiros e emigrantes, as pescarias.....e as pessoas nas ruas. Do inverno gosto de ouvir o vento Norte com chuva amiúde, do cheiro a maresia que invade a freguesia, de tomar chá com frio, dos dias de sol de inverno..... faltam as pessoas. Uma freguesia sem pessoas não existe. O Porto Formoso parece um fantasma sem alma de Inverno. O Regedor | 17/12/08 16:57

Mas a mudança sentida em Fevereiro de 2012 prende-se essencialmente com a

construção da SCUT entre Ponta Delgada e Porto Formoso, finalizada em Agosto de

2011. Esta nova infraestrutura significou uma mudança qualitativa considerável nas

deslocações entre Porto Formoso e as cidades de Ribeira Grande e Ponta Delgada: se

antes os trajectos, sinuosos, demoravam por volta de 40 minutos entre a aldeia e a

capital, após as obras passaram a demorar 20. Graças a estes novos acessos a aldeia

passou a ter mais visitas não só dos turistas, mas também dos outros habitantes da

ilha. Mas é também devido a esta estrada que muitos porto formosenses optam, cada

vez mais, por trabalhar noutras localidades da ilha, pois agora podem fazê-lo

mantendo ao mesmo tempo a sua residência na aldeia, para onde voltam apenas para

dormir. Porém, esta é apenas uma opção para as pessoas que possuem um meio de

transporte próprio e/ou carta de condução, uma vez que não existe uma rede de

transportes suficientemente eficaz para suprir as necessidades das deslocações. Não

se pode esquecer, ainda, que o aumento gradual nos preços de combustíveis é uma

despesa que cada vez tem mais peso para as pessoas que todos os dias tem de

percorrer os 32 km que separam a aldeia da capital. Se é certo que a emigração é

51

actualmente muito pouco significativa, a verdade é que são muitos os que fazem

grande parte da sua vida fora da aldeia, sem sacrificar, mesmo assim, a sua residência

na aldeia. Este fenómeno aponta mais uma vez para o apego que os porto formosenses

sentem pela sua terra, pois sempre que possível, optam por manter a sua residência na

aldeia.

Por outro lado, acrescenta-se a progressiva incorporação das novas gerações de

mulheres no mundo laboral, nomeadamente em trabalhos relacionados com as tarefas

domésticas e com os serviços. Se não há mais mulheres a trabalhar, é sobretudo

devido à falta de infraestruturas, públicas ou privadas, que garantam o

acompanhamento das crianças enquanto as mães estão no trabalho. Não existe em

Porto Formoso nem nas aldeias vizinhas creches nem ATLs que permitam às mães

deixar os filhos, limitando a possibilidade de trabalhar àquelas mulheres que contam

com o apoio de familiares.

A não existência de outras infraestruturas básicas no Porto Formoso, cria

dependência, para muitas coisas, das povoações vizinhas: é o caso da deficiente

cobertura do serviço de telemóvel, o que faz com que, em muitos casos, seja

necessário deslocar-se a pontos mais altos ou mesmo sair da aldeia para poder fazer

uma chamada, e dificulta frequentemente a conexão à internet. Também não há na

aldeia um lar de idosos nem uma farmácia. Para encontrar a bomba de gasolina mais

próxima tem de se percorrer 15km até à Ribeira Grande, e a primeira caixa

multibanco foi instalada apenas em Julho de 2006. A este respeito, O Regedor

comenta:

Nesta sociedade actual que não consegue manter ou criar uma associação desportiva, uma casa do povo funcional, um centro multiusos, um pequeno posto de cuidados de saúde, um centro de dia para idosos, uma pequena cresce, uma associação cultural, que já nem consegue organizar um jogo de futebol de casados contra solteiros, a esperança de uma verdadeira vivência colectiva esfuma-se e ninguém parece importar-se com isso. O Regedor | 23/10/2007 23:07

Todos estes factores contribuem para haver, sobretudo durante a semana, cada

vez menos gente na rua, o que significa cada vez menos convivência e como diz o

regedor menos “vivências colectivas” através das quais se cimenta a identidade. Mas

o problema deve-se também aos próprios hábitos diários dos locais. Ao post intitulado

“O nosso problema”, o blogger Deus2 reage da seguinte maneira:

52

População do Porto Formoso: 50% só sai de casa ao Domingo para ir à missa fingir que ouvem o senhor padre. 30% nas lojas a beber cerveja e vinho 10% só saem de casa para casamentos batizados e enterros 9% só sabem fazer enredos e enganar o próximo 1% ajudam a freguesia Adeus deus2 | 17/5/06 21:35 (S/I)

Curiosamente, e apesar de cada vez haver menos gente na aldeia de Porto

Formoso, o número de cafés, tascas e restaurantes não para de aumentar. É verdade

que as “lojas” foram sempre os principais centros de convívio para os habitantes da

aldeia, embora limitado aos indivíduos do sexo masculino, uma vez que a entrada

nestes locais era, segundo regras tácitas, reservada apenas a homens57. A referência as

tascas é recorrente nas discussões do blog “A Casa da Mosca” como se pode apreciar

a seguir:

Fig. 2-12. Loja do “Sebastião” (1968?) (Cedida pela

família de Sebastião do Monte).

Mais uma foto tirada do baú das recordações colectivas das nossas gentes. A taberna ou loja fazia parte, para o bem e para o mal, do viver dos homens da terra. Local de encontro, troca de experiências, emoções ao rubro pelos jogos (dominó, damas, bisca dos 6, copas, sueca, truco), negócios, copos cheios e vazios, vitórias e derrotas da nossa equipa escutadas pela rádio e visualizadas pela imaginação…De tudo, o mais importante é, sem dúvida, o convívio que a loja proporcionava. A loja funcionava como um verdadeiro centro de convívio aberto a todos onde se ria, chorava, bebia, havia folia, pancadaria, enfim, vivia-se! O Regedor | 23/01/2007 16:19

O conceito de “loja” nessa altura era muito mais abrangente, pois

proporcionavam à população muitas outras coisas além do habitual numa tasca: nestas

“lojas” vendiam-se produtos de mercearia e drogaria e às vezes funcionavam

57 Durante o meu trabalho de campo, quase sempre era a única mulher que frequentava as tascas e “lojas” da aldeia. Excepto no Cantinho do Cais, conhecido pela sua gastronomia, era muito raro ver outras turistas ou mulheres locais a entrar nestes lugares se não fosse apenas para dar um recado, perguntar algo ou entregar alguma coisa.

53

simultaneamente como barbearias ou como esplanadas com cinema. Existem os casos

em que os proprietários das lojas eram também donos de equipas desportivas (de

vólei, de futebol de sala), funcionando como agentes dinamizadores da comunidade.

Fig 2-13. Café Beira-Mar, espaço de “moda” em meados

dos anos 80. (cedida pelo Regedor)

As tabernas ou lojas foram no Porto Formoso o local de maior convívio e era lá que a modernidade chegava mais depressa!! Foram as tabernas que tiveram rádio e TV primeiro e onde todos se juntavam! Essas lojas se se actualizarem mas sempre com o estilo tradicional açoriano serão sempre respeitadas e terão clientela para toda a vida. No futuro não vai haver tabernas dessas e as pessoas vão querer voltar lá.deus2 | 23/11/05 19:23 (S/I)

Pela importância destes espaços na vida da aldeia considera-se pertinente fazer

um análise actual dos mesmos. Hoje em dia, podem-se destacar três “tascas” pelo seu

carácter emblemático. Em primeiro lugar, destaca-se “O cantinho do Cais”, tasca

situada junto ao porto de pescas, gerida pelo Sr. Jorge, porto formosense muito

ambicioso que com trabalho árduo e boa cozinha conseguiu colocar o seu

estabelecimento no roteiro gastronómico da São Miguel como um dos mais

conceituados lugares para experimentar o peixe à maneira local. A configuração do

pequeno espaço original fazia com que turistas, doutores, advogados e professores

da ilha se misturassem com os pescadores da aldeia, animando o ambiente e fazendo

da experiência não apenas um momento gastronómico, mas também sociológico. O

restaurante transferiu-se para a vizinha aldeia de São Brás em 2010, devido à falta de

espaço em Porto Formoso que permitisse a ampliação que o seu sucesso requeria, o

que foi visto pela população como uma grande perda. O tema foi muito discutido no

blog “ A casa da Mosca”, onde alguns habitantes se lamentaram:

Consta que o Cantinho do Cais irá transferir o seu serviço de refeições para a freguesia de S. Brás, ficando no Porto Formoso apenas o bar. A ser verdade, é mais uma valia que o Porto Formoso perde, AGUIA | 20/2/06 10:16 (S/I)

54

E ainda,

Sou daqueles que acha que o Porto Formoso ficou a perder muito com a ida do Cantinho do Cais para São Brás. Quando ouço alguém falar no magnífico Caldo de Peixe do Jorge e logo a seguir alguém perguntar onde fica, ouço a resposta "São Brás" e não consigo ficar parado. Nunca São Brás foi tão conhecido como agora. Anteriormente, quase ninguém de "fora" ou mesmo turistas iam a São Brás e agora começam a ir. Porquê? Porque há dois restaurantes de qualidade lá. O Regedor | 17/4/11 22:03

Nesta mudança, a tasca, que passou à categoria de restaurante, perdeu parte do

seu público, em grande parte devido à falta de encanto da nova localização e espaço, e

sobretudo, à falta de contacto com os pescadores e outros habitantes de Porto

Formoso, mais abertos aos estranhos dos que os de São Brás. A tasca do “Amaral” é

outro local bem conhecido dentro e fora da aldeia pela sua qualidade gastronómica.

Aqui serve-se tanto peixe como carne e os clientes habituais são lavradores, podendo

quase dizer-se que a dicotomia Cantinho do Cais/Amaral é de cariz profissional. Por

último existem dois importantes locais junto à praia dos moinhos. O snack bar da

praia, bar virado essencialmente para o turista, é o típico bar de praia que serve

bebidas e comidas rápidas (hambúrgueres, sandes, etc). Este local esteve envolto em

muita polémica devido às obras de ampliação e influência do seu proprietário nas

mudanças dos acessos à praia, motivo pelo qual os habitantes da aldeia raramente o

frequentam e muito o criticam. Por outro lado existia, até há bem pouco tempo, uma

das poucas lojas de Porto Formoso que se mantinha fiel a sua história, uma

pequeníssima tasca, a do Sr. Viana, que recebia os habitantes desta parte da aldeia e

os pescadores que habitavam no lado do porto. Além de servir bebidas, esta loja

servia comidas no 1ºandar da casa, apenas a amigos e por encomenda.

Figs. 2-14/15. Loja do Viana, com o Sr. Laudalino, na Praia dos Moinhos (cedida pelo Regedor)

55

Com alvará de 1984, esta é a mais nova das últimas lojas antigas do Porto Formoso. Abriu portas por volta de 1982, tendo sido gerida pelo Sr. José Viana "velho", Sr. Eusébio Viana "novo" e, nos últimos anos, pelo Sr. Laudalino Viana. Foi durante muitos anos o ponto de referência dos habitantes da zona dos Moinhos, que, devido ao seu isolamento, encontravam ali um porto de abrigo. Servia de mercearia de bens essenciais, de taberna e foi durante longos anos o único estabelecimento comercial de porta aberta a servir a zona da Ribeira Seca, Vale Formoso e Moinhos. Se faltavam cargas para o rádio ou sal para temperar a comida, os habitantes destas zona ali se dirigiam em vez de subirem o arrebentão para ir à freguesia. É o único sítio onde se pode jogar um dominó ao balcão à moda antiga. De Inverno parece uma toca abrigada do frio, de Verão as escadas exteriores e a rua transformam-se em esplanada. Devido ao facto de estar perto da praia e do campo e, ao mesmo tempo, longe da freguesia, esta loja sempre teve características diferentes de todas as outras. Esta casa fecha as portas nos próximos tempos. Com esta loja a fechar e com o fecho anunciado da loja do Sr. José "Plora", acabam-se todas as lojas antigas do Porto Formoso. Infelizmente, dentro de pouco tempo, só restarão fotografias e memórias de outros tempos. A visitar... enquanto é tempo! O Regedor | 16/4/11 13:031

A loja acabou por ser vendida no verão de 2011 ao Sr. Carlos, jovem de Porto

Formoso que fez obras de recuperação e ampliação transformando o lugar num

imenso restaurante, onde embora a comida continue a ser muito apreciada, a

descaracterização do espaço é evidente, assemelhando-se agora a muitos outros

existentes na ilha. Muitos habitantes acreditam que este restaurante poderá vir a

suplantar o Cantinho do Cais como ponto de atracção para os visitantes doutras

aldeias e cidades da ilha e para os turistas.

Além destas tascas/lojas emblemáticas existem muitas outras, e desde 2005, o

número de tascas/cafés aumentou de 6 para 12, o que dá uma média de 1 tasca/café

por 100 habitantes, o que faz com que seja difícil a sobrevivência de todas elas. Estes

novos locais, dirigidos mais à população do que ao turista, são muito parecidos uns

com os outros, acrescentando pouca diversidade ao panorama de lazer da aldeia58. A

este respeito, veja-se o testemunho do blogger JASRAPOSO:

Enquanto na nossa freguesia há uma "vocação" para a abertura de lojas, em S. Braz59 abriu um ginásio. Uma questão de mentalidade ou uma visão economicista?? JASRAPOSO | 1/12/05 14:32 (perfil em pág.49- nota 54)60

58 Com exceção do bar “Silêncio das palavras”, que além de ter um nome diferente, disponibiliza noites de música ao vivo e de karaokê. 60 Nos casos em que o perfil de um determinado usuário do blog ou informante já tenha sido descrito com anterioridade, far-se-á uma referência indicando a página e a nota de pé onde se encontra a descrição: (v.pag.X-nX), sendo que neste caso seria (v. pág 49- n53)

56

É de salientar a constante comparação com São Brás que surge nas conversas

com os habitantes de Porto Formoso. Existe com esta povoação vizinha uma forte

rivalidade cuja base é histórica. A freguesia de São Brás foi criada a 18 de Setembro

de 1980 em território da freguesia de Porto Formoso. Há testemunhas que indicam a

existência de distúrbios, pois havia gente que não queria que São Brás fosse

independente. Ainda em Setembro de 2007 houve uma grande polemica devido a

instalação de uma placa que assinalava a chegada à freguesia de São Brás em

território de Porto Formoso, falando-se, inclusivamente de “invasão”; a contestação

popular deu lugar à sua retirada imediata. Apesar da sua proximidade, são

perceptíveis as diferenças entre ambas as comunidades: O Porto Formoso, aldeia de

mar, além de ser maior em número de habitantes e em extensão, é, se calhar pela sua

relação com o mar, uma comunidade mais aberta e ligada ao exterior, enquanto São

Braz, pequena freguesia de interior, caracteriza-se pelo caráter fechado e isolado dos

seus habitantes, que raramente conversam com os forasteiros.

Mas as rivalidades não são só contra a aldeia vizinha. No decorrer do trabalho

de campo, foram recorrentes as reclamações ouvidas sobre o caráter intriguista da

comunidade e é queixa comum o “falar pelas costas”61. Existem intrigas entre

instituições de poder, entre profissões, entre famílias, entre zonas da aldeia, entre

clubes de futebol: as orientações individuais nos diversos campos geram preconceitos

e delimitam a interação social num meio já por si pequeno, e alguns habitantes até

apontam o caráter intriguista dos porto formosenses como principal obstáculo ao

“progresso da aldeia”:

O pessoal da Maia e da Lomba da Maia é um povo unido, todos remam para a mesma maré. No Porto Formoso uns são do Coucinho, dos Calços, do Outeiro e os outros dos Moinhos62 ( uma única freguesia Porto Formoso) dividida nestas partes, agora digam-me lá como é que se pode evoluir? carruncho| 29/3/08 20:40 (S/I)

Há muita intriga no Porto Formoso. Não me venham dizer que é mentira, e a intriga prejudica o funcionamento de qualquer instituição. No Porto Formoso são poucas as organizações/entidades onde não há intrigas que chegam a por tudo em causa. O Regedor | 15/5/06 14:54

61 Como já foi referido na Introdução, estas práticas intriguistas são continuamente manifestas no blog “A Casa da Mosca”, onde através do uso de nicknames se lançam acusações anónimas ao ponto de muitas discussões ficarem, em diversos casos, verbalmente violentas. 62 Referências ao diferentes “bairros” da aldeia

57

Existe ainda um outro fenómeno no Porto Formoso, que é muito peculiar. É o facto de, durante anos e anos, serem sempre os mesmos nas mais diversas instituições da nossa terra. Ora eu conheço muita gente jovem com capacidade, com ideias que podiam fazer a diferença na nossa terra. O problema é que é-lhes vedada a participação. Evaristo_tens_cá_disto63 | 16/5/06 20:17

Quanto ás instituições com poder em Porto Formoso, o Regedor do blog

publica o seguinte diagrama, onde indica a orientação política (de laranja -direita- à

cor-de-rosa –esquerda) de cada instituição de acordo com o comportamento revelado

por essas entidades e pelos seus responsáveis.

Fig. 2-16. Diagrama publicado no blog em Março de 2009

(cedido pelo Regedor)

Entre as instituições incluídas cabe notar que, se por um lado a “Casa do Povo”

é na actualidade uma instituição praticamente inativa, o grupo de folclore e o grupo de

jovens são associações com actividade constante que dinamizam a comunidade

organizando diversos eventos. Perante este diagrama muitos bloguistas reclamam

ainda a ausência do próprio blog como entidade não incluída no espectro.

Acho que no mapa traçado pelo regedor está a fazer falta uma das maiores forças vivas do Porto Formoso: A CASA DA MOSCA. Se intervenção cívica significa, entre outras coisas, contribuir para a resolução dos problemas do Porto Formoso, elevar a memória colectiva, encurtar distâncias entre os nossos emigrantes e homenagear as grandes figuras do Porto Formoso, então a Casa da Mosca está, a par de outras entidades, na linha da frente. Aqui não existe um presidente, vice-presidente, secretário ou tesoureiro. Todos têm a sua opinião, todos contribuem, todos participam democraticamente. Este blog já foi conotado por ser, maioritariamente, de bloggers simpatizantes de políticas de esquerda. Acho que o blog, para além de ser representativo do espectro político do Porto Formoso (ideologicamente o Porto Formoso é maioritariamente PS), tem a vantagem de dar voz a opiniões que não teriam representactividade nos órgãos eleitos do Porto

63 Natural de Porto Formoso, onde reside, estudou em Lisboa e agora é professor de matemática ( ensino secundário) em São Miguel. Foi eleito para a Assembleia da Junta de Freguesia.

58

Formoso. Uma observação final. Embora as pessoas do Porto Formoso sejam, na sua maioria, ideologicamente do PS, estas já demonstraram que dão prioridade a pessoas que sejam capazes de resolver os seus problemas, em detrimento dos partidos. Cavalete | 1/4/07 12:07 (v.pág. 46-n51)

O Porto Formoso foi desde muito cedo uma freguesia associada à esquerda

política. Já em 1908, quando ainda vigorava o regime monárquico em Portugal, o

partido republicano elegeu em Porto Formoso a sua primeira Câmara Municipal

açoriana. Após os 25 de Abril, o Porto Formoso tem optado geralmente pelos

representantes da esquerda tanto nas eleições regionais como nas nacionais: de todas

as eleições para a Assembleia Legislativa Regional entre 1976 e 2008, o PSD ganhou

duas (1980 e 1992) e o PS ganhou as sete restantes. Mesmo nos tempos áureos do

Mota-amaralismo64 (1984-1988), altura em que o PSD obtinha maiorias absolutas nos

Açores, o PS conseguiu obter vitórias na freguesia de Porto Formoso. Nas eleições

presidências de 2006 e 2011, os candidatos do PS (Mário Soares/ Manuel Alegre)

ganharam sobre Cavaco Silva, e nas eleições legislativas de 2011 os eleitores de Porto

Formoso continuaram a dar a maioria (embora menor) ao PS, sendo todos estes

resultados contrários ao resultado nacional.

Fig. 2-17. Celebração, na noite de 16/02/1986, da

vitória de Mário Soares sobre Freitas do Amaral nas eleições presidências, simulando o funeral deste

ultimo (foto cedida pelo Regedor)

Independentemente disto, é um facto que a abstenção no Porto Formoso é alta

quando se elegem representantes regionais e nacionais, mas não quando se trata de

eleger os representantes locais, isto é da Junta e da Assembleia de Freguesia. Nestes

casos, os habitantes não só votam em massa como se envolvem nas campanhas, e se

64 Mota Amaral exerceu as funções de presidente do Governo Regional dos Açores entre 1976 e 1995 pelo PSD/PPD

59

personalizam as tensões partidárias: pessoas que se dão bem no dia a dia, rivalizam

intensamente em época de eleições pela defesa do seu partido.

A junta de freguesia de Porto Formoso é presidida em “part-time” pelo Sr.

Emanuel Janeiro Faria desde 1997, que acumula esta função com a de funcionário da

EDP, mas antes já tinha cumprido um mandato como Secretário da Assembleia da

freguesia (1993) e como Tesoureiro da Junta (1989), perfazendo no total 24 anos na

instituição. O Sr. Faria tem ganho sucessivas eleições com maioria absoluta

representando tanto o PSD (1997-2001) como o PS (2001-2013)65 reforçando assim a

tese expressa pelo blogger Cavalete, que defende que o que mais conta é a pessoa que

se candidata e não o partido que representa, como de resto costuma acontecer em

terras pequenas. Desde que representa o PS, coincide com a cor política da Câmara de

Ribeira Grande, da qual depende, pelo que se suponha uma colaboração maior,

embora até agora não ter, aparentemente, trazido vantagens. A Câmara da Ribeira

Grande cobre 14 freguesias, algumas delas, como Rabo de Peixe ou a Maia, de grande

valor económico e com maior peso eleitoral, o que tem feito com que o Porto

Formoso tenha vindo a ser sucessivamente excluída dos alvos prioritários de

intervenção, isto apesar de reconhecer o seu potencial turístico: O Plano Director

Municipal (PDM) da Ribeira Grande, que entrou em vigor em Abril de 2006,

contempla para Porto Formoso “uma nova zona destinada a investimentos turísticos”

(indicando as condições para ter uma marina de recreio, um resort, um campo de golfe,

etc) embora até à data pouco ou nada tenha sido feito neste sentido.

2.3 Potencialidades de Porto Formoso: qual a visão de futuro?

“Tem aqui potenciais, quando as pessoas descobrirem os potenciais que estão aqui nesta água, quando eles descobrirem, o Porto Formoso leva um boom muito grande, muita grande.” Sr. Adolfo66

Numa freguesia onde as profissões históricas (a pesca, a agricultura e a

lavoura) estão em claro declínio e que parece caminhar para o mesmo destino que

muitas outras freguesias similares, isto é, a sua limitação a aldeia-dormitório, as suas

65 Nas próximas eleições, em Outubro de 2013, O Sr. Emanuel Faria não se poderá recandidatar, por ter cumprido já os três mandados permitidos por lei, sem que até à data haja nenhum possível candidato conhecido. 66 Pescador com 65 anos natural de Porto Formoso que está emigrado na Califórnia, onde tem os filhos e netos. Ali comprou um pequeno barco e dedica-se à pesca do “bodião” espécie que se exporta ao Japão e que se pesca entre Maio e Setembro. Nos meses em que não trabalha volta para o Porto Formoso, sendo comum encontrá-lo no porto em conversa com os pescadores.

60

possibilidades turísticas são encaradas com enorme expectativa pela generalidade da

população. Para estes, o turismo dará um novo fôlego à freguesia, não só criando

postos de trabalho directos e possibilidades de empreender empresas viradas para o

turismo, como revitalizando profissões que doutra maneira parecem estar condenadas

à extinção, como a pesca: enquanto há 25 ou 30 anos atrás as actividades que

pudessem gerar rendimentos do mar estavam circunscritas à pesca ou a actividade

extractiva (retirar areia ou algas) hoje existe a vertente marítimo-turística, prática

considerada de valor essencial nos planos e estratégias de desenvolvimento turístico

regional67. Na actualidade, com a escassez de recursos e os custos de exploração das

embarcações a aumentar, muitos são os que acreditam que a rentabilidade da pesca

artesanal passa por desenvolver actividades económicas que complementem a pesca

profissional, como levar turistas nos barcos para ver a costa ou a forma de pescar.

As expectativas colocadas no turismo não são infundadas, pois a

potencialidade turística da freguesia de Porto Formoso é inegável: as verdes paisagens,

os miradouros e falésias, o mar, com a sua vertente lúdica (praia) e cultural (pesca

artesanal), os trilhos, o exotismo da sua fábrica de chá, a boa disposição e abertura dos

seus habitantes fazem desta aldeia um lugar único na costa norte de São Miguel para

desenvolver práticas turísticas. As condições naturais e humanas do Porto Formoso

fazem deste lugar um óptimo candidato para se alinhar na política de desenvolvimento

turístico desenhado pelo poder central, que tem como pedra basilar o turismo da

natureza e o turismo náutico68. Quando se trata de fazer publicidade turística de São

Miguel, é recorrente aparecerem imagens da Fábrica de chá, da praia dos Moinhos e

da baía natural69, os três pontos de maior interesse turístico e que representam três

categorias de turismo diferente: o turismo industrial, o turismo natural/artesanal e o

turismo de praia e sol. Das fotos que aparecem nos outdoors electrónicos de Ribeira

Grande, a maioria pertencem a Porto Formoso: além das imagens acima referidas,

aparecem outras, como a igreja da Nossa senhora da Graça (sobre a baía) ou a vista do

Miradouro de Santa Iria. Aparecem também iniciativas privadas, algumas delas

grande envergadura, mas de momento só no papel. Veja-se como exemplo o projecto

67 Ver capítulo 1.4 68 Idem 69 Por exemplo, nos stands montados para a Feria Internacional de Turismo de Lisboa -BTL- aparecem desde 2004 as imagens destes lugares em lugar destacado.

61

apresentado para um campo de golfe e aldeamento turístico em Porto Formoso, cuja

memória descritiva começa da seguinte maneira:

Este projecto ambiciona construir no Porto Formoso um complexo turístico centrado no golfe. O Porto Formoso, destino de Verão para muitos residentes na ilha de São Miguel, oferece excelentes condições para o desenvolvimento de um projecto de alta qualidade, cujo conceito básico está, desde já, salvaguardado pelo PDM (Plano Director Municipal) para esta zona. O conceito é centrado na transformação da Ponta Formosa e de algumas zonas do lado esquerdo da estrada que conduz ao centro da freguesia num campo de golfe de alta qualidade70.

Fig. 2-18. Detalhe do projecto turístico (cedida pelo Regedor)

Mas apesar desta especulação, deste “uso” da imagem da freguesia, e da

inclusão das potencialidades turísticas de Porto Formoso no PDM da Câmara de

Ribeira Grande, o processo de turistificação71 é ainda, mais do que nada, um projecto

em discussão que ainda não passou à acção: como se verá mais a frente, questões

identitárias, ambientais, ideológicas, políticas, sociais e económicas têm feito desta

discussão um quebra-cabeças. Longe do consenso que autores como Peralta e Prats

(2006) atribuem aos processos de activação patrimonial, na aldeia de Porto Formoso

verifica-se um confronto de forças e de agentes, que se traduz na oposição entre

apoio/contestação a qualquer intervenção, sem que estas avancem, ou o façam muito

lentamente e sempre criando polémica. Como assinala Illich (apud Bordonaro,

2007:234) “development, long before being a set of economic and social indicators, is

a system of values, and as such, it is true only as far as it is shared, believed and

embodied”. E assim o Porto Formoso encontra-se num impasse, mais complicado

ainda pela situação de crise regional, nacional e internacional que se verifica desde

70 Traduzido do texto original em inglês pelo Regedor, para a sua publicação no blog. 71 Entendido aqui como o processo de implantação, implementação e/ou suplementação da actividade turística em espaços turísticos ou com potencialidade para o turismo.

62

2008, no desenho do seu futuro e na definição das apostas a fazer. É elucidativo este

hipotético roteiro turístico que um blogger publica na “Casa da Mosca”:

Um dia de verão. Encontro-me na R.Grande, e ando á procura do posto de turismo. Eis que encontro, e pergunte a uma das meninas do OTL, os possíveis locais a visitar na costa norte da lha. Muito gentilmente a menina explica, de entre os muitos locais, poderei ver as únicas plantações de chá na Europa, Gorreana e Porto Formoso. Ao sair do posto de turismo, deparo-me com um placar electrónico, junto ao jardim. Explica-me um senhor de certa idade, que a maioria das imagens, do placar são da freguesia do Porto Formoso. Aquilo é a praia dos moinhos, o porto de pescas, a igreja de Nossa Senhora da Graça, o chá, o miradouro de Santa Iria. Todo entusiasmado com a beleza das imagens parto á procura do local. Encontro um dos miradouros mais bonitos da ilha, onde é possível observar a costa norte da ilha. São doze horas. Em direcção à praia encontro um marco (pedra pontiaguda). Curioso, pergunte ao taxista, a que se refere. Diz-me, que foi para assinalar uma batalha, que ficou celebrizada como a batalha da Ladeira da Velha. Lastimável. Está ao abandono! Estou na praia dos moinhos. Após o banho nas águas refrescantes da praia decido tomar duche. Onde? Nos duches improvisados? Satisfeito com a beleza da praia, insatisfeito com as infra-estruturas existentes, parto em direcção à igreja. Decido entrar, porta fechada! Dizem-me que é por causa dos roubos. Desço até ao jardim para tirar uma foto ao porto de pescas. Fico com a impressão de ser um porto”primitivo”. Castelo em ruínas! São catorze horas e a fome aperta. Pergunte a um senhor a onde comer. No Amaral ou no Jorge. Após o almoço (garoupa grelhada com batatas escoadas), parto á procura do chá. Diz o guia que é diurético, ajuda na digestão. Vem mesmo a “calhar”. Encontro um produto típico do local onde me encontro! Como gosto de andar a pé, pergunte ao guia, se tem conhecimento de algum percurso pedestre federado existente. Diz-me que já ouviu falar, mas que por enquanto não existe nenhum. Regresso à R. Grande com a certeza de estar num dos locais mais bonitos do concelho, mas onde falta investimento, que catapulte o Porto Formoso como destino obrigatório. sono1 | 2/2/07 13:0172

Os elementos com valor turístico desta freguesia existem per se, isto é, não

foram criados, pensados ou activados para o turista, existem apenas porque a natureza

ou a história os criou. Não existe em Porto Formoso nenhum local onde pernoitar,

além de umas poucas casas privadas junto à praia dos Moinhos que se alugam durante

o verão. Os locais de interesse estão mal sinalizados, e alguns até pouco visíveis. Não

há promoção dos produtos locais, e à excepção da fábrica de chá, transformada em

património industrial em 1998, locais com potencial para ser patrimonializados,

como o “castelo” ou a própria baía natural não foram ainda activados, isto é,

“seleccionados, expostos, difundidos, interpretados, e, fundamentalmente

consensualizados” (Peralta, 2008:75), embora estejam a ser constantemente

72 Natural de Porto Formoso, onde reside, estou até ao 12º ano e actualmente é Tea-maker da fábrica de chá de Porto Formoso.

63

discutidos no seio da comunidade, nomeadamente desde 200573 . Na entrevista

realizada ao Presidente da Junta nesse ano, dizia:

O Porto Formoso tem tudo e mais alguma coisa para ter todas as condições para receber o turismo derivado as belezas naturais que temos, temos uma antiga estância termal que está desactivada neste momento, temos vários nascentes de água mineral, temos não só a Praia dos Moinhos , mas outras pequenas praias que podem ser exploradas, temos uma fábrica de chá, temos tanta coisa, temos um castelo, mas é preciso informação para que o turismo quando chegue cá encima, tenha onde visitar alguma coisa porque neste momento existe mas não há nada que os informe neste sentido

O presidente da Junta é consciente de que “ to compete for tourists, a location

must become a destination, and heritage is one of the ways locations do this”

(Kirshenblatt-Gimblett, 1995:373). Ele está empenhado em que tal aconteça, pois é

esta a forma que aponta para lutar contra a desertificação da freguesia.

As politicas de desenvolvimento local assumem e promovem a multifuncionalidade dos campos e encaram o turismo como uma instância capaz de dinamizar a economia, gerar emprego e contribuir decisivamente para a fixação das populações rurais. L. Silva (2007a: 853)

Esta aspiração é comum a muitas outras freguesias em similar situação, sendo

que umas, como o Porto Formoso, têm mais possibilidades reais e objectivas para que

isto aconteça do que outras, pelo seu enquadramento e coerência com a política

desenhada regionalmente, pelo valor objectivo das suas potencialidades turísticas,

pela multiplicidade e diversidade das mesmas e pela abertura da população. Mas a

actuação da Junta de Freguesia é limitada pela falta de orçamento próprio, pelo que a

sua margem de acção fica restringida a apresentar as questões à Câmara da Ribeira

Grande e pressionar para que estas sejam ouvidas, sem que, como aponta o

Presidente da Junta, tenham sido obtidos resultados:

(O Porto Formoso) É das freguesias, estou a falar da costa norte, é ainda vou apertar mais o cerco, digamos do Concelho de Ribeira Grande, que é o que nos interessa, que tem mais condições turísticas, e que todas elas estão subaproveitadas. Temos montes de coisas, só que as entidades até este momento, nomeadamente a nível Regional e Câmara Municipal , nunca se interessaram em investir no Porto Formoso. o Concelho de Ribeira Grande acaba na Ribeirinha, todas as freguesias para lá do nascente são esquecidas por todas as entidades, quer a nível Regional quer a Câmara Municipal, portanto a Ribeira Grande acaba na Ribeirinha. Tem-se feito coisas noutras freguesias , no Concelho de Ribeira Grande, para o lado de poente, e tem-se esquecido muito o lado nascente.

73 O Capítulo 4 debruçar-se-á sobre estes processos de valorização.

64

Esta crítica não é apenas da Junta de Freguesia: a voz dos habitantes é cada

vez mais crítica com o ostracismo dos poderes públicos. Os discursos do poder

(globais, nacionais, regionais e locais) alimentam a ideia de que tornar-se um destino

turístico é sinónimo de crescimento, progresso, enriquecimento e emprego, e os

habitantes depositam cada vez mais expectativas neste sector, pois como foi notado

no trabalho de campo, a maioria vislumbra um futuro promissor com estradas

circulares, aldeamentos turísticos, auditórios culturais, etc. Não pôr em prática estes

discursos causa frustração entre a maioria dos habitantes, que reclamam a atenção

que “merecem” como destino de natureza.

Mas apesar da falta de investimentos turísticos em Porto Formoso, o turismo

está a desenvolver-se informalmente, e valores como a hospitalidade e a dádiva são

constantemente observados. Tendo em conta o modelo de desenvolvimento dos

lugares turísticos desenhado por Butler em 1980, e salvaguardando a rigidez da

divisão das fases que apresenta, podemos situar a freguesia de Porto Formoso nesta

primeira década do século XXI na transição entre dois estádios: o estádio de

exploração e o estádio de envolvimento. Segundo Sharpley,

“o estádio de exploração é aquele em que um número reduzido de turistas descobre um lugar fora dos circuitos turísticos, desenvolvendo uma relação estreita, mais de hospedagem do que comercial, com os residentes. O estádio de envolvimento acontece quando os residentes descobrem as potencialidades para o desenvolvimento do turismo, começam a promovê-lo para aumentar a procura e a providenciar acomodação e outros serviços a um crescente número de turistas, com os quais mantêm uma relação um pouco mais comercial, mas ainda harmoniosa” (1999, apud L. Silva, 2007a: 868)

Este primeiro turismo está a contribuir para uma “nova consciência de si

mesmo que se consubstancia numa nova valorização da paisagem e do ambiente

partilhado” (Mendes 2008: 205). O amor dos porto formosenses pela sua terra,

anteriormente apontado como uma das características desta comunidade, tem vindo a

crescer tanto com os comentários que muitos turistas deixam à sua passagem pela

aldeia como pela atenção recebida por parte dos poderes regionais, criando um

sentimento colectivo de orgulho que estimula os seus habitantes a adoptar um papel

mais activo no processo de turistificação.

A nossa freguesia é dotada de um potencial enorme, bastando para tal olharmos o PDM da Câmara da Ribeira Grande e outros relatórios feitos sobre a nossa localidade:

65

- Condições para ter uma marina de recreio; - Um resort; - Um campo de golfe; - Um polidesportivo etc. etc. Este facto é um um pronúncio de que o Porto Formoso, num futuro muito próximo, será a "JÓIA DA COROA" do concelho da Ribeira Grande. Nada se faz sem as pessoas e o Porto Formoso já tem muita gente capaz a residir na freguesia. JASRAPOSO | 11/5/06 21:39 (pág. 49-n54)

A promessa do turismo que está por vir faz crescer entre as gentes de Porto

Formoso o orgulho pelo seu património cultural, gerando à sua volta um sentimento

de coesão e integridade entre os locais e fomentando o potencial social. Neste

contexto, o povo de Porto Formoso começa a perceber a importância do seu papel

nesta “performance turística” como agente representativo da sua terra: ele é o

intermediário entre o turista e a freguesia. Os porto formosenses são historicamente

um povo aberto ao exterior, e esta característica transparece já nos contactos

informais com os turistas, bem-vindos nos serões ao pé das lojas, nas tardes passadas

no jardim do miradouro ou nos afazeres do porto de pescas, o que é muito apreciado

por estes. Mas para alguns esta predisposição não é suficiente: além de conviverem

com os turistas e criarem empatias, devem pôr-se à altura da situação, e comportar-se

“de forma exemplar”, como de resto se costuma pedir aos trabalhadores na relação

com a empresa onde trabalha e com os seus clientes:

Para se desenvolver o turismo é preciso limpeza e boa educação, o que infelizmente não abunda no Porto Formoso. Quem desce pelo caminho da Ladeira da Velha vê um grande depositário de lixo perto da entrada do caminho que dá para os banhos e o porto dos barcos é o depósito do lixo dos pescadores. Quanto à falta de educação é difícil de enumerar por serem tantos os casos e saltarem à vista desarmada principalmente junto do pessoal que frequente o ensino básico. AGUIA | 13/11/06 21:33 (S/I)

Convém ainda referir que o desenvolvimento do turismo é uma responsabilidade de todos e não só da autarquia. Há ainda que mudar muitos comportamentos o mais depressa possível de modo a reduzir a incerteza na aposta que o Governo Regional fez nesta área. JASRAPOSO | 2/2/07 00:50 (pág.49-n54)

O turismo é um comboio que não se pode perder, porque o turismo não é só

dinheiro, trabalho, e reconhecimento. O turismo é a porta simbólica do mundo: é

através dele que o Porto Formoso tem a oportunidade de integrar o mapa do mundo, e

para os seus habitantes constitui a base da sua estratégia de globalização, isto é, “the

66

local aspirations to the ‘global’, how people crave for and dream of it, however they

might locally configure it. In other terms, I am talking about the efforts to be

‘connected’, to become ‘modern’ and ‘cosmopolitan’ “(Bordonaro, 2007:232).

Mas, tornar-se moderno tem o mesmo significado para todos os porto

formosenses? Será que todos aspiram ao global? E aspiram eles da mesma forma? Os

exemplos práticos e a literatura científica mostram tanto os impactos negativos do

turismo (ambientais e sociais) como os positivos: recuperação de identidade,

revitalização do património cultural e da natureza, melhoria da economia, integração

nos fluxos da globalização. Durante o trabalho de campo identificaram-se múltiplas e

diferentes posturas na discussão do fenómeno de turistificação. Dos habitantes

entrevistados, observa-se uma tendência entre as pessoas mais velhas e com menos

contacto com o exterior a defender a aposta no desenvolvimento e melhorias das

condições das ocupações tradicionais da freguesia (a pesca e a lavoura): pensa-se que

esta tendência se deva ao facto destas pessoas mais idosas e isoladas não terem tido

contacto com o fenómeno, suficientemente recente na ilha, do “turismo”. Estando

afastadas dos poderes regionais e das suas estratégias, e dos exemplos que vão

aparecendo na ilha, não percebem o turismo com uma actividade económica capaz de

revitalizar e modernizar a freguesia. Para eles o “turista” é um indivíduo alheio que

pouco ou nada tem a ver com a sua comunidade: passam de vez em quando e gostam

mais ou menos, mas partem logo a seguir, enquanto eles ficam. Esta tendência

também se verifica entre os indivíduos directamente empregados na pesca e na

lavoura. Os lavradores, por se encontrarem a maior parte do tempo isolados nos

campos, centram as discussão nas suas próprias preocupações. Os pescadores têm

mais contacto com o turista pela situação central do porto onde trabalham e pela

atracção visual que a sua actividade causa sobre estes 74, mas embora reconheçam que

não se importavam de levar um turista no barco de vez em quando, não dão ao

turismo mais importância . Entre o resto da população da freguesia, isto é, as pessoas

mais novas, pessoas com contactos com o exterior, e pessoas ligadas aos serviços,

parece haver um consenso quanto ao facto de que o futuro da freguesia passa pelo

“Turismo amigo do ambiente”. O facto de existir este consenso não significa, porem,

que este futuro seja percebido por todos como um facto positivo. Para alguns, apesar

de reconhecerem que é inevitável a transformação de Porto Formoso num destino

74 Ver capítulo 1.4

67

turístico, esta “evolução” trará mais coisas negativas do que positivas. No decorrer do

trabalho de campo, ouviram-se vozes a alertarem para um outro futuro que pode

chegar com o turismo: além de algumas preocupações ambientais75, alguns residentes

questionam “os poucos que irão beneficiar do turismo”, outros apontam para o perigo

do Porto Formoso se tornar “um local de luxo apenas para os ricos”, uns advertem da

tentação de projectar infraestruturas dispendiosas “que vão funcionar apenas um mês

por ano” e outros ainda alertam para o perigo de se desviar a atenção dos assuntos

“verdadeiramente importantes” como o saneamento básico ou a falta de uma creche e

outros serviços sociais.

Apesar destas vozes serem uma minoria, a verdade é que a planificação do

futuro em Porto Formoso está a dar lugar a uma discussão acesa sobre o conceito de

“ambiente” que se torna conflituoso quando posto em discussão pública. De uma

forma mais abrangente, as noções de “modernidade”, “progresso” e “desenvolvimento”

são continuamente postas em causa. O acompanhamento destas discussões no seio da

comunidade permite estabelecer as diferenças na forma de perceber estas noções entre

os agentes envolvidos (pescadores, lavradores, jovens, velhos, emigrantes, poderes

locais e regionais). A percepção deste conceitos exibe os diferentes sistemas de

valores, pois ‘development is much more than just a socioeconomic endeavor; it is a

perception which models reality, a myth which comforts societies, and a fantasy

which unleashes passions […] it is a cast of mind’ (Sachs apud Bordonaro 2007:234).

Porto Formoso é uma comunidade que se está a pensar a si própria, reflectindo-se no

mundo e projectando as suas imagens próprias. Veja-se, como exemplo, a reacção do

blogger Tiago Melo76 à discussão levantado no blog após a publicação do projecto de

um campo de golfe e aldeamentos turísticos para o Porto Formoso (Fig.3-18)

Desenvolvimento/retrocesso, tradição/modernidade, grandes dilemas se vivem neste blogue. Ainda bem! É claro que ninguém pode proibir a marcha do progresso, remetendo as nossas terras ao ostracismo de má memória. É claro que o turismo é uma aposta certa para promover o desenvolvimento dos Açores. Pois a dificuldade está, caros amigos, em conciliar o local com o global, a tradição com a modernidade, sem criar espaços de novo riquismo elitista e pedante. Se a globalização cultural é um facto inegável, então que se promova, com igual entusiasmo, as identidades e singularidades locais (culturais, paisagisticas) em

75 Como se verá mais à frente, estas preocupações surgem mais de movimentos externos do que internos e conceitos como “ambiente” e “natureza” geram um alto nível de ambiguidade entre os diversos sujeitos envolvidos. 76 Chefe da equipa da Segurança Social para a qual trabalha o Bruno Raposo, Regedor do blog. Não tendo relação direta com a freguesia de Porto Formoso, participa no blog apenas pelo seu interesse em fenômenos sociológicos, área em que é licenciado.

68

que o Porto Formoso é rico. Não há incompatibilidades nestas coisas, mas tem que haver bom senso e colocar a democracia a funcionar: projectos destes só referendados e com muita ponderação, pois cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Viva a democracia, no Porto Formoso ou em qualquer recanto do mundo. Tiago Melo | 16/11/07 22:10

Como apontam Gupta & Ferguson (1987:15), o antropólogo “ can use a local

site to study a nonlocal phenomenon”. As discussões que se vivem no Porto Formoso

reflectem uma discussão que se propaga pelo mundo, e num momento em que as

estruturas tradicionais e os sistemas de valores estabelecidos se cambaleiam, a

ausência de referências firmes característica da “modernidade líquida (cf. Bauman,

2000) faz com que os conceitos de futuro, em relação ao presente e ao passado

nadem na ambiguidade e na incerteza. Neste sentido, este trabalho pretende reflectir

sobre os valores que se põem em causa e quais são os que prevalecem aquando desta

discussão. Tendo em conta que o trabalho de campo privilegiou o contacto com a

comunidade piscatória desta aldeia, a base do meu trabalho será o debate surgido em

torno das intervenções propostas, efectuadas ou não, na baía natural que se encontra

no centro da aldeia, emblemática pelo valor simbólico como coração da freguesia, à

qual dá o nome, e por constituir o espaço de uma profissão igualmente emblemática, a

pesca.

69

CAPÍTULO III

CADA UM POR SI E TODOS POR TODOS Mestres e Pescadores de Porto Formoso

Não desistia da pesca por que eu gosto disto, agora o que é que

eu vou fazer, imaginemos agora , vai-me sair a sorte grande e

eu ponho-me assim à espera de quê, à espera da morte, a morte

sei que estou a espera dela. O importante é passar a vida à nossa

maneira, eu gosto da vida do mar, e daquilo nunca vou desistir .

O dinheiro não é tudo na vida. Pelo menos fazer a coisa que a

gente gosta , e o que eu gosto é disso. Mestre Eugénio

70

3.1 Noções Gerais sobre as comunidades piscatórias

“Há três espécies de homens: os vivos, os mortos, e os que andam no mar”

(Platão)

Como já referi no primeiro capítulo desta dissertação, a minha convivência

com a comunidade de Porto Formoso teve início no verão de 2003, através do meu

bom amigo, o “mestre” Dídiu. Ele tinha um pequeno barco de pesca desportiva no

porto da aldeia, e conhecia bem os pescadores de Porto Formoso. Por isso, desde o

início a minha vivência na aldeia deu-se principalmente com a sua comunidade

piscatória, e o meu trabalho desenvolveu-se ao redor da baía natural onde os

pescadores exercem o seu trabalho, constituindo assim a base do meu objecto de

estudo.

Seguindo a definição de Digo Moreira, uma comunidade piscatória é “aquela

cujo modo essencial de vida assenta na exploração dos recursos pesqueiros do mar,

através do exercício duma actividade extractiva, aleatória, de natureza marcadamente

predatória e que possuem formas específicas de relação e organização ambiental e

social” (1987:13). As condições específicas em que se desenvolve o trabalho da pesca

estabelece não só o marco ocupacional, mas também o marco social e cultural das

comunidades piscatórias, podendo falar aqui de “identidade ocupacional”,

terminologia cara à sociologia do trabalho e à psicologia. Embora se reconheça a

heterogeneidade destas comunidades, existe uma especificidade comum a todas elas, e

que vem dada pela natureza do seu trabalho. Trata-se do universo de incerteza em

que se configuram (Oliveira et. al. 1975/1990, Moreira 1987, Nunes 2008, Amorim

2008). Em primeiro lugar porque trabalham sobre um bem comum, o mar, que é ao

mesmo tempo propriedade de todos e propriedade de ninguém. Em segundo lugar,

porque o controlo que o pescador pode exercer sobre os resultados do seu trabalho é

deveras limitado : sendo o peixe um recurso natural, móvel e oscilante, a única

certeza do pescador e o seu saber e o seu equipamento, sem que isto possibilite

garantir, por si só, uma boa captura, e portanto o seu rendimento. Neste sentido, o

padrão sociocultural que surge desta imprevisibilidade é muito diferente dos que se

desenvolvem ao redor de actividades que possam ser controladas, como a agricultura,

a criação de gado ou a industria. Veja-se neste sentido as declarações do velho

pescador Adolfo (pág. 59-n66).:

71

Os vaqueiros se levantam de manhã, e vão apanhar o leite das vacas, eles já sabem o preço do leite. O pescador não é assim. Foi toda a vida assim. O pescador vai para o mar, se apanham muito podem baixar o preço, se apanham pouco ganham o mínimo para sobreviver, nem felizes, nem sossegados, crises terríveis que os pescadores passam.

Em terceiro lugar, o bom e mau tempo, e a sazonalidade das espécies ao longo

do ano, requerem uma contínua adaptação dos pescadores às oscilações da natureza.

Mas resta ainda a pior de todas as incertezas: a da vida e a morte. Embora a melhoria

nas condições dos barcos e a evolução dos aparelhos tecnológicos tenham contribuído

para a diminuição de acidentes, o carácter imprevisível do mar faz de cada viagem

uma jornada da qual pode não haver retorno.

Existe toda uma mitologia associada à pesca, inerente ao perigo da profissão e

à bravura do mar que faz com que as comunidades piscatórias possuam, sem dúvida, o

lugar mais expressivo e característico das povoações litorâneas77. Embora a pesca não

seja a actividade mais rentável nem a única actividade importante da freguesia (a

lavoura é ainda uma fonte de rendimento importante), é a actividade viva mais

reconhecível e simbólica, e a própria Junta de Freguesia promove-a como elemento

representativo da zona, pois é não só um elemento diferenciador, mas também uma

actividade mais vendível e exportável do que a lavoura, devido ao risco comportado e

ao dramatismo das actividades associadas ao mar (cf. Peralta, 2006). A investigadora

Inês Fonseca apresenta um caso similar, no seu estudo sobre as identidades laborais

em Aljustrel (2007), onde apesar de coexistirem actividades rurais e mineiras, estas

últimas são destacadas e tidas como símbolo da região, devido ao seu valor de

diferenciação frente a outras regiões que concorrem pela atracão e valorização da sua

terra no palco regional, nacional e global.

Mas isto não significa que o papel das comunidades piscatórias no âmbito das

sociedades mais abrangentes onde se inserem seja dominante: pelo contrário, os

pescadores costumam constituir pequenas colónias subordinadas à vida social e

económica da colectividade maior a que pertencem. Estas “colónias” mantém uma

forte coesão social e cultural que vem dada não só pela partilha durante o trabalho,

mas também “fora de horas”. O ritmo diferenciado deste grupo ocupacional vem

pautado por um tempo particular: as solicitações ocupacionais de horário dos 77 A este respeito ver Capítulo 1.4

72

pescadores fazem com que a inclusão dos mesmos no calendário social marcado pelo

ritmo de outros modos de vida seja sempre complicado, limitando assim a sua

participação na comunidade mais abrangente à que pertencem e prolongando a

convivência do espaço do barco para a terra. Em Porto Formoso, quando o mar o

permite, os pescadores saem de madrugada, enquanto a aldeia dorme, e voltam um ou

dois dias depois. Chegam quase sempre muito cansados, pois os barcos não têm

condições para pernoitar, e seguem directamente para casa. Mas se ainda houver

forças passam a tarde em tranquilo convívio com os companheiros de faina, no cais

ou no café. No dia seguinte, dedicam-se à preparação de utensílios e equipamento e às

actividades de manutenção e reparação, organizados em companhas, de forma a ter

tudo pronto para mais um dia de pesca. Quando o tempo está bom não há fim de

semana; quando está mau, o dia passa-se no miradouro do porto, na tasca, a apanhar

isco nas pedras ou a arranjar o barco no porto. São também frequentes os casos em

que a actividade profissional dos pescadores se multiplica em ocupações em terra

(construção, agricultura, etc.). O pluriemprego dos pescadores é correlativo a

incerteza do ofício da pesca (cf. Meneses&Mendes,1996): é cada vez mais habitual a

dedicação da pesca não ser exclusiva, procurando fontes de receitas que possam

completar os rendimentos instáveis obtidos no mar. Como assinala Moreira,

(1987:266) bem raras têm sido, de facto, as aglomerações exclusivamente marítimas e

o número daqueles que apenas vivem do mar. Em Porto Formoso, muitos dos

pescadores trabalham na terra quando não saem ao mar, se não de uma maneira

profissional, fazem-no para juntar comida à mesa. Outros ainda trabalham nas obras

quando os barcos se encontram parados à espera de licenciamentos e quando a

temporada não corre bem, há ainda quem emigre temporariamente para endireitar a

vida.

Os trabalhos domésticos, a educação dos filhos e a administração do dinheiro

familiar compete às mulheres, que foram sempre afastadas do trabalho de mar. A

pesca é uma das ocupações mais sexualmente marcadas: factores como o perigo que

o trabalho comporta e a falta de intimidade no interior dos pequenos barcos podem ser

significativos para explicar esta realidade. Esta divisão do trabalho responde à

dicotomia clássica de géneros, segundo a qual os homens tratam dos trabalhos mais

esforçados e mais afastados de “casa”, enquanto a mulher (e filhos) fica protegida no

seio do lar. Em Porto Formoso existe apenas uma mulher pescadora, casada com um

73

mestre de Ribeira Grande com barco na freguesia. De resto, as mulheres destes

pescadores ficam em casa com as crianças e mães, ou juntam-se nos centros de

convívio associados à igreja, ao grupo de folclore ou ao coro, embora existam já

algum casos de mulheres empregadas em serviços fora da freguesia. No contexto

marítimo, porém, é de salientar a importância das mulheres como geradoras de

estabilidade e continuidade, de forma a compensar a incerteza que os pescadores

vivem no seu ofício. Neste sentido, o homem depende da mulher, pois sem ela não

teria o suporte necessário para a realização do seu trabalho, daí que o casamento seja

eixo estruturante nestas comunidades e a família a “célula social por excelência”

(Moreira, 1987:290). É habitual os pescadores casarem cedo, e o casamento parece

ser condição prévia para dar o passo de pescador a dono de barco: o “Mau tempo”, o

pescador mais novo desta comunidade e a quem acompanhei desde os 16 anos, casou

este ano, com 21 anos de idade, e adquiriu um barco logo a seguir, criando assim

esperanças no relevo geracional do porto, que não parece assegurado. A mulher

cumpre assim um papel essencial, embora seja principalmente sentido nos círculos

privados: na vida pública da comunidade, os homens são o motor social. É ao redor

deles que a comunidade se estrutura, organizando as actividades e respondendo às

necessidades deste grupo.

Note-se , ainda quanto à família, que nas comunidades de pescadores esta

limita-se, geralmente, aos seus membros nucleares, enquanto que os parentes mais

afastados perdem rapidamente o seu significado, em parte devido à própria natureza

do trabalho, que obriga a uma mobilidade e adaptação contínua às situações. Como

refere Moreira (1987:288) as visitas mútuas escasseiam e mesmo as grandes festas

não são por regra ocasião de reunião familiar, mas mais propriamente momentos de

convívio comunitário profissional, nos quais é natural criarem-se laços em função da

faixa etária. Assim, os laços familiares diluem-se, priorizando a maior parte das vezes

as amizades e as relações de trabalho. Mas é frequente o ofício de pescador passar de

pais para filhos, ou existir casamentos entre pescadores e filhas ou irmãs de

companheiros de faina, e quando isto acontece membros da mesma família coincidem

no mesmo porto e muitas vezes no mesmo barco. Muitos dos pescadores de Porto

Formoso partilham laços de sangue, nomeadamente como “irmãos” ou “primos”, mas

esta relação é frequentemente omitida, pois parece sobrepor-se o facto de pertencerem

à mesma comunidade profissional. Em muito casos eu só soube destas relações depois

74

de vários anos de trabalho, e muitas vezes por acaso.

Entre as comunidades piscatórias, o tipo de pesca que se realiza define uma

série de subgrupos que importa diferenciar. A primeira subcategorização deve ser

feita entre pescas distantes e pescas litorais. É a esta última subcategoria que

pertencem a maioria dos pescadores registados em Portugal (Moreira, 1987:15).

Ainda neste subgrupo, podem-se diferenciar dois tipos de pesca, e assim dois tipos de

organização: a pescaria costeira e a pescaria local. A primeira caracteriza-se pelo uso

de técnicas mais evoluídas, embarcações maiores, áreas de pesca mais abrangentes.

Em contraste, a segunda representa aqueles pescadores que trabalham com barcos

mais pequenos, técnicas mais tradicionais, menos meios e recursos e zonas de ação

mais próximas à costa. Uma e outra circunscrevem organizações sociais e

profissionais diferentes. A comunidade de Porto Formoso enquadra-se na categoria

de “pesca local”. A sua frota está constituída por 678 embarcações de “boca aberta”79,

construídos em madeira, de pequena dimensão e tonelagem e, com um motor de fora-

de-borda de fraca potência: três proprietários são naturais de Porto Formoso e três são

oriundos de outras freguesias. Com estas características, estes são barcos que atuam

muito próximos da costa e que aplicam artes de pesca variadas, de forma a adaptar-se

à heterogeneidade do litoral. Como acontece frequentemente nas comunidades de

pesca local, (Moreira,1987:20) o porto de pescas é pequeno e sem condições

actualizadas de atracagem, desembarque e protecção.

Na pesca local a organização do trabalho assenta no binómio pescadores -

mestres80. A aquisição do estatuto de mestre produz-se mais do que por transmissão,

por mérito. É o caso dos mestres Américo (73), Eugénio (42), e Eiró (36)81 : os três

são mestres não por transmissão familiar mas sim devido ao seu sucesso na pesca, ao

seu conhecimento da arte da pesca e das costas, e ao seu profissionalismo. O único

caso de transmissão verifica-se entre o Américo o seu filho, o Paulo Jorge (36), que

agora ficou como mestre em lugar do pai, que apesar de reformado continua a pescar

com ele. A relação entre pais e filhos responde aos padrões culturais próprios desta

comunidade: para os segundos vingarem no mar, os primeiros tem de deixar lugar. 78 Este número tem oscilado entre 4 a 6 embarcações ao longo do período 2005-2012. 79 Os barcos de boca aberta, pela sua ausência de cabine, ficam condicionados ao estado do tempo e do mar. 80 Na pesca costeira, porém, a hierarquia é mais marcada e conta com mais estratos, uma vez que o trabalho a realizar é também mais complexo. 81 Mestres de Porto Formoso, dos quais se falará no próximo ponto.

75

Desta necessidade surgem as correspondentes tensões intergeracionais, que ganham a

sua maior expressão quando o filho deixa de o ser para passar a ser companheiro, e

por isso, “rivais em pé de igualdade” (Moreira, 1987: 286). Como pude observar ao

longo do meu trabalho de campo, entre o Américo e o seu filho estes confrontos

ocorrem quase sempre no barco, e têm como motivo a própria forma de realizar o

trabalho. Porém, perante a comunidade mostram apenas distanciamento e em casa,

onde a mãe é intermediária, sente-se um esbatimento das tensões. Sobre a relação

com o seu pai o Paulo Jorge afirma:

A gente vai-se dando, mas temos as nossas discussões, faz parte. Eu agora para ir ao mar em certos sítios eu não preciso dele, mas em muitos sítios eu preciso dele ainda, porque a gente não tem sonda e ele é que faz as marcações de terra. Eu no início quis fazer troll82, mas ele não conhecia essa arte e tudo o trabalho que dava era para mim. Por isso é que eu desisti e fui para a pesca dele.

Estes três mestres figuram como proprietários dos barcos, que adquiriram

através de poupanças angariadas aquando de campanhas frutíferas. Nas pescas

costeiras e locais, onde se utilizam embarcações e técnicas relativamente baratas, este

é um fenómeno comum. O mestre/proprietário detém, pois, o domínio do

recrutamento e da organização do trabalho, gozando assim de um poder “não apenas

económico, más também social, nos aglomerados a que pertence” (Moreira, 1987:

306). Além disso, é dos seus conhecimentos e capacidades que depende o bom

sucesso da pescaria e assim, o rendimento dos pescadores. Por isso, o seu poder será

socialmente tornado em prestígio se se traduzir em pescarias abundantes. Se um

mestre obtiver regularmente boas capturas, a sua tripulação quererá manter-se na

companha, e uma boa tripulação é fundamental para o sucesso de qualquer mestre.

Entre os pescadores o prestígio vem tanto pela sua qualificação técnica, quanto pela

sua popularidade e pela estima que o mestre e o resto da sociedade lhe têm. É de

salientar que, apesar desta diferenciação, os mestres partilham com os pescadores a

dureza do trabalho, o frio, a falta de sono, as euforias e as desilusões da pesca, e “tudo

isto esbate os distanciamentos” (Moreira, 1987:239). A companha no mar constitui

portanto um conjunto uniforme com um objectivo comum, uma unidade

socioeconómica que, junto à família ( e às vezes sobrepondo-se), estrutura estas

82 Palavra inglesa que os pescadores de Porto Formoso usam para se referir à arte de pesca conhecida em Portugal como “palangre de fundo”. Esta arte é de grande extensão: utiliza quilómetros de cordame e de monofilamentos e milhares de anzóis. É considerada uma arte “de mão de obra intensiva”.

76

comunidades. Além disso, os hábitos culturais e de consumo são similares: apesar de

terem um maior rendimento, os mestres não costumam ostentar a riqueza, não

costumam ir a restaurantes, não passam férias fora da comunidade nem fazem turismo,

e ocupam o seu tempo livre de formas similares aos pescadores. A relação Mestres-

pescadores assenta numa base muito pessoal: por regra, convivem nas suas

comunidades, e formam um grupo socialmente coeso dentro da comunidade mais

abrangente à que pertencem. Aliás, os pescadores identificam-se em geral em termos

de arte de pesca que exercem, independentemente do status profissional ou da classe

económica a que pertencem (Moreira, 1987:318). Um mestre juntar-se-á com os

pescadores que trabalhem na mesma arte, antes do que com um mestre duma outra

arte.

A principal remuneração dos pescadores é a receita do barco, não existindo um

vencimento fixo. Isto significa que se o barco não sai, o que acontece frequentemente,

ninguém ganha. Quando entrevistei ao mestre Eugénio, em agosto de 2005, referia a

dificuldade de viver do mar da seguinte maneira: “agora já vão quinze dias sem

ganhar nada, e para mais azar hoje finalmente saímos mas foi muito fraquinho. Isso é

muito chato”. Para calcular o valor a pagar, utiliza-se o “sistema por partes”: após

deduzir da receita bruta do barco despesas com combustível, lota, iscos etc, divide-se

a diário os lucros obtidos pelos pescadores em parte iguais, sem valorar factores como

antiguidade, afinco, experiência e assiduidade (Moreira, 1987:241). Esta distribuição

reforça o carácter de igualdade dentro da companha, sendo que mesmo o mestre

recebe uma parte igual ao resto (recebendo uma parte extra apenas em qualidade de

proprietário). O carácter instantâneo e quotidiano do sistema de remuneração utilizado

exige uma cooperação intensa entre os membros da companha: todos estão

interessados em voltar com uma boa pescaria.

As comunidades piscatórias definem-se em função de uma complexa estrutura

que mistura cooperação e oposição entre os seus indivíduos e grupos e que se

transforma ao sabor destas duas relações antagónicas.

Com recursos limitados e incertos e territórios ambíguos, as populações marítimas têm necessariamente de cooperar. Mas se tais factores aumentam a cooperação, aumentam em especial a competição, a qual garante o sucesso individual. (Moreira, 1987: 35).

77

Observou-se entre os pescadores de Porto Formoso uma sobreposição dos

valores de cooperação aos da competição. Embora no decorrer do trabalho de campo

se tenham observado e presenciado pequenos atritos individuais entre pescadores,

estes foram resolvidos rápida e discretamente ou então esbatidos pela convivência

diária. Em palavras do mestre Paulo Jorge:

O haver boas relações há, a gente sabe que na vida de mar às vezes há pequenas discussões com o peixe. Há certas discussões que começam por causa das condições do porto: chegamos ao barco todos molhados e esgotados e como ficamos mal dispostos, já começam as discussões83. Também a gente se apanhar um dia ali, noutro dia eles vão todos para ali, mas pronto, tudo se fala aqui em baixo, praticamente, nem vês ninguém que não se fale um com o outro.

Por outro lado foram apreciados muitos outros comportamentos solidários e de

compadrio entre os membros desta classe ocupacional. Pensa-se que isto se deva ao

facto de se tratar de uma comunidade pequena, frequentemente ligada por laços de

sangue, cujas embarcações estão especializadas em diferentes tipos de pesca. Mas

ainda mais importante é o facto de todas as companhas partilharem as dificuldades

que resultam de varar os barcos na areia. Nestas condições a entreajuda é essencial.

Como diz o mestre Eugénio “Se aqui não nos ajudássemos uns aos outros, não se

desenrascava nada aqui”. Os pescadores juntam-se por isso sob a mesma

reivindicação: a melhoria do porto de pescas em prol da comunidade. A sua luta é

comum, embora seja travada individualmente84. O mestre Ricardo resume a relação

entre pescadores da seguinte maneira: “Isto aqui é cada um por si e todos por todos”.

Por último, é importante assinalar que o facto de se tratar de uma comunidade

social e culturalmente coesa não significa que seja uma comunidade fechada em si

própria. Se por um lado têm sido capaz de manter a sua identidade perante a ação da

sociedade englobante, por outro observa-se uma grande capacidade em envolver-se

nos movimentos globais. Esta comunidade piscatória é uma comunidade aberta, como

de facto o é toda a comunidade de Porto Formoso85. Através dos movimentos

migratórios e do convívio com os diversos agentes a operar nas zonas costeiras

(turistas, comerciais, lavradores, camponeses) os pescadores recebem e trocam ideias

83 A falta de condições do porto natural de Porto Formoso será, como se verá mais à frente, uma das causas da polêmica que surgirá em torno às obras na baía. 84 Como se verá mais à frente, o associativismo não funciona entre os pescadores de Porto Formoso. 85 Ver Capítulo 2 (pág. 47)

78

no seu dia-a-dia. Como indica Moreira, a tolerância é um valor generalizado nas

comunidades piscatórias (1987: 289), que se expressa não só nas relações que se

criam entre este e outros grupos, como na atracção dos pescadores pelas novidades

técnicas, sociais e culturais. Cruz (1966:128 apud Moreira 1987:289) vai ainda mais

longe ao afirmar que “ o que precisamente encontramos de característico, na pequena

povoação de pescadores, é esse desprezo pelo folclore e pelo típico, essa facilidade de

assimilação do que é estranho e vantajoso”.

Dado o universo de incerteza em que se desenvolvem as comunidades

piscatórias, estas adoptam intrincados mecanismos de contínua adaptabilidade ao

meio. Daí que estas colectividades, nomeadamente as que se dedicam à pesca local,

se definam, pois, pela sua fluidez e pela sua flexibilidade (Nunes, 2008:10), sendo que

estes traços não só afectam o seu trabalho, mas se estendem pela realidade do seu

quotidiano. Como nota este autor, se por um lado a ausência de nexo entre força de

trabalho, produtividade e lucro, dificultou ao longo dos anos a conciliabilidade desta

actividade com o capitalismo clássico, o risco, a instabilidade, e a incerteza são afinal

características que definem o novo capitalismo, que se caracteriza pela ausência de

instituições sólidas: na “modernidade líquida” de Bauman (2000) o indivíduo, na

ausência de referências firmes, deve ser capaz de ser flexível e adaptar-se

continuamente à realidade mutável que o rodeia. A complexidade das comunidades

piscatórias prende-se com o carácter instável do mar, que requer das sociedades que

dele vivem uma capacidade de adaptação, flexibilidade e fluidez fora do habitual.

Neste sentido, o estudo das comunidades piscatórias e das reacções das mesmas

perante processos de “modernização” e “globalização”, podem lançar luz sobre os

processos através dos quais o homem lida com este novo fenómeno de incerteza.

3.2 A comunidade piscatória de Porto Formoso

Apesar de ser uma comunidade piscatória relativamente pequena, Porto

Formoso conta com um porto com história e suficiente continuidade para ser

considerado parte essencial do tecido social da freguesia. A comunidade piscatória de

Porto Formoso contava em 2005 com 6 mestres86, 3 da Ribeira Grande e 3 de Porto

Formoso: o Américo (66), o Eugénio (36) e o Ricardo (29), sendo que o primeiro 86 Este subcapítulo centrar-se-á apenas nos mestres naturais de Porto Formoso, uma vez que estes mantêm uma relação especial com o porto de Porto Formoso, pois além de ser o seu lugar de trabalho é também o lugar onde nasceram e onde vivem.

79

destes três, já reformado, pescava apenas num pequeno barco, sozinho ou com mais

uma pessoa. O número de pescadores, a trabalhar nas diferentes embarcações, ronda

a vintena. Destes pescadores ao redor de 5 alternam o trabalho na pesca com o

trabalho no cultivo das terras, e muitos outros trabalham nas obras quando o mar não

está a dar. Além das embarcações e pescadores de pesca profissional, existe também

um número variável mas significativo de barcos e pescadores de pesca desportiva.

O primeiro mestre com quem tive contacto foi com o mestre Américo. O

Américo, casado e pai de 4 filhas e 1 filho é, hoje com 73 anos, o pescador mais

velho de Porto Formoso. O seu pai, também pescador, teve 9 filhos, dos quais 3,

contando com ele foram pescadores, mas ele é o único que continua nesta vida. O

mestre Américo é um exemplo do carácter multifacetado das gentes desta freguesia.

Até aos 20 anos, o mestre Américo trabalhou na terra, iniciando-se nesta altura na

pesca, mas nunca deixou o trabalho na terra, aproveitando os dias em que não ia ao

mar. Na altura, a pesca era abundante, e o Américo chegou a ter dois barcos ao

mesmo tempo, liderando assim duas companhas. Ele, que vive mesmo acima do porto,

personifica o pescador dos velhos tempos: nunca frequentou a escola, mas com a

prática chegou a conhecer o mar como ninguém. Para se orientar usa as “marcas” da

terra, e não o GPS, e a sua arte de preferência é a linha de mão, e não as gaiolas

(armadilhas) nem a pesca de corrico (palangre)87. Quando estamos com ele, é

inevitável lembrarmo-nos naquele personagem icónico do “O Velho e o Mar” de

Hemingway. Segundo se foi fazendo velho, o Américo foi reduzindo a sua actividade

da pesca, mas nunca deixou de ir ao mar: o seu último barco foi o Carmélia88 , de 8

metros e meio. Mesmo agora, depois de reformado e já sem barco próprio, só não sai

ao mar quando o tempo não permite. O mestre Américo é sem dúvida uma

personagem com aura no Porto Formoso, e há quem proponha o levantamento de uma

estátua na sua homenagem. A sua idade, a sua relação com o mar, a sua calma,

simpatia e abertura fazem deste homem uma pessoa ingenuamente carismática. Foi

também ele que ensinou muitos dos pescadores mais importantes da actualidade de

Porto Formoso.

87 Sobre as diversas artes de pesca nos Açores, ver “Artes de pesca dos Açores: tecnologia de pesca e marinharia” (Rodrigues e Roque 2008). 88 Nos casos em que o barco é comprado em segunda mão, como o caso do Carmélia, os barcos costumam herdar os nomes para evitar assim os custos e burocracias associadas a um novo registo do barco. Mas quando são barcos novos, é costume pôr os nomes de familiares: dos filhos, mulher, mãe ou pai.

80

O mestre Eugénio (43 anos) casado e com 2 filhas, é actualmente o mestre com

mais sucesso da freguesia, e foi um dos que começou a sua vida no mar no barco do

mestre Américo aos 12 anos. Trabalhou com ele 3 anos e os 16 anos tomou conta do

primeiro barco, um barco de 5 metros que o seu pai, que trabalhava na terra e no mar,

lhe comprara com o dinheiro poupado durante o período de emigração em Canadá.

Depois de sair da tropa comprou o seu primeiro barco, de 7 metros, e desde lá não

parou de crescer, passando rapidamente de pescador a mestre e evoluindo com os

anos para barcos cada vez maiores. Ele aprendeu a pescar ainda sem ajuda de sondas

nem GPS, mas aventurou-se desde cedo a utilizar estas novas tecnologias. A este

respeito, o mestre Eugénio afirma: “Eu aprendi com os velhinhos, e quando tive a

primeira sonda já conhecia todos os sítios, mas hoje em dia com o GPS qualquer

pessoa é pescador”. Também foi experimentando novas técnicas, como as armadilhas

de gaiola89, uma arte do continente que aprendeu com um mestre de Lisboa que

praticava esta arte na costa sul da ilha, sendo ele o primeiro mestre que levou esta arte

à costa norte. O mestre Eugénio é o único que vive exclusivamente da pesca, ele

próprio afirmando que “nunca ninguém fez vida do mar como eu fiz aqui no Porto”.

Enquanto a sua família emigrava para o Canadá ou para as Bermudas, ele nunca quis

sair. O Eugénio é um mestre activo na comunidade: costuma representar Porto

Formoso junto dos sindicatos dos pescadores, e é ele que eleva as reivindicações dos

pescadores às instituições políticas, embora se queixe da falta de apoio dos colegas:

“há muita gente aqui no Porto que só fala no café, quando há um café com duas cervejinhas, falam muito com as cervejinhas, de resto quando chega a hora da verdade metem-se todos em casa e eu fico sozinho, portanto não vale a pena chatear muito” .

A companha do Eugénio está formada por 10 pescadores com idades entre os

16 e os 60 anos, e caracteriza-se por ser uma companha muito estável e coesa: um dos

pescadores, o Sr. João Manuel, já trabalha com ele há 28 anos e muitos outros estão

com ele há mais de 10. O seu irmão também faz parte da companha. O

profissionalismo do mestre Eugénio e as suas boas pescarias faz com que o seu barco

89 Por pesca por armadilha de gaiola entende-se aquela em que se recorre a dispositivo de dimensões e forma muito diversas, constituído por estrutura rígida tal que, por si só ou servindo de suporte a pano de rede, delimitam um compartimento cujo acesso é feito através de uma ou mais aberturas fáceis, mas cuja utilização, em sentido contrário, é dificultada às presas. (Portaria n.º 1102-D/2000 de 22 de Novembro, IPIMAR, INRB)

81

seja o mais atractivo para trabalhar: em média, cada pescador ganha no barco do

Eugénio por volta de 200-250 euros semanais de forma estável. Se antigamente era o

mestre Américo quem iniciava os homens na pesca, agora é o mestre Eugénio quem o

faz: os quatro últimos pescadores que se estabeleceram pela sua conta saíram da sua

companha. São eles o mestre Miguel (de Ribeira Grande) o mestre Ricardo, o Paulo

Jorge e, em 2012, o jovem “Mau tempo”.

O mestre Ricardo, actualmente com 35 anos, começou a trabalhar na terra do

seu pai. A este respeito, o mestre Ricardo afirma: “A gente trabalhava de camponês, e

depois do trabalho aproveitava as marés, comia, e depois ia para as algas. Com um

saco as costas pelas rochas fora”. Foi assim que ganhou a vontade de ir para o mar, e

foi por primeira vez com 15 anos. Na sua família, o seu bisavô tinha sido pescador e o

seu irmão também o foi, antes de passar a ser o guarda fiscal do porto de Porto

Formoso. O mestre Ricardo casou com 18 anos, e é agora pai de dois rapazes e uma

rapariga, e a sua mulher, doméstica, desde cedo ajuda o marido a fazer aparelhos em

casa. O primeiro trabalho na pesca foi no barco do seu primo, o mestre Eugénio, com

quem esteve durante 10 anos, e com quem aprendeu muito do que hoje sabe,

nomeadamente sobre a técnica de palangre e armadilhas, que é a que praticou nos

seus barcos. Aos 26 comprou o primeiro, o Ave Maria, e desde então tirou vários

cursos técnicos de uso de sondas e GPS, tornando-se assim um dos pescadores de

Porto Formoso com mais conhecimentos nesta área. No Ave Maria, tinha uma

companha de 5-6 homens, todos eles jovens. Em 2006, o mestre Ricardo afirmava:

“Já não há malta velha. Tem que ser a malta nova. E os rapazes gostam desta vida,

também a vida de terra está-se a acabar, mas quando virem que estão a ganhar

pouco e a ter muito trabalho, vão-se embora, para ganharem o rendimento mínimo”.

Ao longo da sua vida no mar, o mestre Ricardo tem alternado o trabalho de pesca com

outros trabalhos, como o cultivo da terra e a construção, de forma a equilibrar as suas

contas em períodos em que a pesca não dava suficientes rendimentos ou enquanto

ficava à espera de licenças.

Como já foi referido, o agora “mestre” Paulo Jorge, que partilha idade e

amizade com o mestre Ricardo, é filho do mestre Américo. A mulher do Jorge, agora

ex-mulher, é irmã da mulher do mestre Ricardo, mas à diferença desta, ela sempre

trabalhou no sector dos serviços na Ribeira Grande, deixando a filha ao cuidado dos

pais. Desde criança, o mestre Paulo Jorge ia à pesca com o seu pai durante as férias, e

82

a partir dos 14 anos fez da pesca a sua ocupação principal, embora não a única, pois,

alternou, ainda mais que o seu pai, o trabalho na pesca com o trabalho na terra, no

cultivo do inhame, que tem lugar no inverno, ou noutros cultivos quando está mal

tempo. Em Março de 2006, o Paulo Jorge dizia: “Agora tive estes dias parado, por

causa das licenças, mas em certo sentido caiu bem porque eu tinha o inhame para

tirar, para plantar, ia ter de estar a perder dias para ir para ali. Assim deu para

desenrascar lá acima.” O mestre Paulo Jorge trabalhou 8 anos com o mestre Eugénio,

com quem aprendeu as artes do ofício, e onde coincidiu com outro futuro mestre, o

Ricardo.

3.3 O Carnaval de 2005: um ponto de inflexão.

Na madrugada da terça-feira de Carnaval do ano 2005, o mar revoltou-se no

Porto Formoso enquanto a aldeia dormia. Ninguém sabe ao certo o que é que

aconteceu, mas quando o mestre Eugénio chegou ao porto, por volta das três da

manhã, para sair com o seu barco, o panorama que encontrou era constrangedor: o

barco do mestre Ricardo, o “Ave Maria”, e o barco do mestre Américo, o “Carmélia” ,

apareceram destruídos, a alguns metros de distância de onde foram varados no dia

anterior. O barco do mestre Eugénio, o “São Gabriel” também tinha alguns danos,

mas menos avultados. A notícia espalhou-se rapidamente pela aldeia, e as conjecturas

sobre o sucedido multiplicaram-se. Com o recente e mortífero caso do Tsunami no

Oceano Índico90 ainda na memória, falava-se de uma onda gigante que tinha destruído

os barcos. Outros, mais moderados, falavam de uma vaga de ondas e de uma rajada de

vento. O acontecimento foi tão marcante para toda a aldeia que nesse verão, quando

eu retomei o trabalho de campo, ainda se falava no assunto.

Nessa altura, já os novos barcos estavam a ser construídos na oficina do

mestre João, em Rabo de Peixe. No caso do mestre Américo, a indeminização do

seguro não era suficiente para investir num novo barco. Estando ele reformado

também não podia candidatar-se aos apoios da União Europeia, pelo que pediu ao seu

filho Paulo Jorge, que aquando do incidente trabalhava no “São Gabriel”, para

formalizar o pedido em seu nome. Foi por esta razão que pai e filho se associaram

neste novo projecto e investiram num barco um bocado mais pequeno do que o 90 Tsunami com epicentro na costa oeste de Sumatra (Indonésia) que teve lugar no 26 de Dezembro de 2004 (2 meses antes do incidente de Porto Formoso) e que resultou em mais de 230.000 vítimas em 14 países diferentes.

83

anterior (de 8,50 metros para 7 metros) mas mais alto. O novo barco teria o nome da

filha do Paulo Jorge, “Mariana”. A ideia era fazer uma pesca de palangre ou de linha

de mão, para a qual são suficientes 2 ou 3 pescadores. Para a construção do barco o

filho e herdeiro do dono da Fábrica de Chá, o Sr. Galiano, deu toda a madeira

necessária.

Pelo seu lado, o mestre Ricardo tinha recebido uma boa indemnização do

seguro. Querendo ele tornar o infortúnio em oportunidade, acho que era o momento

para apostar num barco de maior envergadura. Quando questionado sobre a decisão

de investir num barco maior, o mestre Ricardo foi claro: Porque tem mais espaço,

mais possibilidades de trabalho. Estás a ver? Este já está a ficar pequeno. O outro

levava quarenta, este leva sessenta e já quero mais. Isto vai tudo evoluindo. O mestre

Ricardo, cuja arte principal era a de palangre, queria um barco com maior capacidade

de carga e maior autonomia. Por isso, pediu também uma ajuda financeira da União

Europeia, que lhe foi concedida. O seu barco, com um comprimento de 9,50 metros,

teria o nome de “Praia de Porto Formoso”91, aludindo assim ao característico porto de

areia da aldeia.

Ambos os barcos demoraram 8 meses a serem construídos. Chegaram juntos,

pelo mar, desde Rabo de Peixe, no dia 1 de Outubro de 2005. Mas ainda precisaram

de mais três meses para passar as vistorias e arranjar as licenças correspondentes, e

durante este tempo permaneceram varados na areia da baía de Porto Formoso, saindo

apenas pontualmente e arriscando uma multa. Foram um total de 11 meses sem

trabalhar. O Ricardo optou por acompanhar de perto e ajudar na construção do barco,

“para ter a embarcação quanto mais cedo melhor, para um gajo poder trabalhar. E

também para mim ver a qualidade do trabalho”. Durante estes meses foi vivendo de

algumas saídas que fazia no barco do seu primo Eugénio, de algum dinheiro do

subsídio e do apoio de amigos e familiares, pois “primos e irmãos, sempre dão

qualquer coisa, ou batata, ou ervilha, legumes, coisas de comer”. Pelo seu lado, o

Américo foi-se entretendo aqui e acolá com um barquinho de pesca desportiva que lhe

emprestavam para ir apanhando um peixinho, mas ia bastante menos vezes ao mar.

91 A primeira intenção do mestre Ricardo era pôr o nome de Maurício (filho), mas por já existir um barco registado com esse nome e outro com o nome da mulher optou por um nome que se referisse ao lugar.

84

Para o seu filho Paulo Jorge, que tinha deixado de trabalhar no “São Gabriel”, foi

mais complicado: (O trabalho no São Gabriel) Acabou de um momento para o outro e eu estava acostumado a receber aquele ordenado. Quando houve o problema eu tive de ir trabalhar de pedreiro, estive três meses, e de pintor, seis meses a trabalhar de pintor. Tive que ir. Não tinha barco, o meu pai não tinha, não tinha dinheiro, eu precisava de dinheiro todos os meses para pagar a prestação da casa . A mulher trabalha, eu também trabalho. Teve de ser assim. Mas todos os dias sonhava, todos os dias passava aí, vinha todos os dias aqui ao jardim , a olhar para o mar, pelo menos.

2005 foi um ano difícil para este homens. Sentiram a falta de dinheiro e a falta

do mar, mas ao mesmo tempo, sentia-se no ar uma qualquer ebulição, um entusiasmo

pelo futuro. As deslocações entre Rabo de Peixe e Porto Formoso eram frequentes, e

nos entretantos, no miradouro ou no jardim sobre o porto os homens da aldeia iam

comentando as novidades sobre os barcos. O mestre Eugénio, que continuava a pescar

no “São Gabriel” decidiu aproveitar este impulso para se lançar, também ele, na

construção de um barco maior, mais do que por necessidade, por evolução. Como ele

reconheceu anos mais tarde, “ O governo estava cheio de dinheiro nessa altura e a

gente aproveitou”. O “Bom barqueiro”, com 10,50 metro, chegou ao Porto Formoso

três meses depois dos outros barcos, em Janeiro de 2006. Para ultrapassar a cada vez

mais alarmante falta de peixe os mestres de Porto Formoso precisavam de ir cada vez

mais longe: um barco maior proporcionava-lhes maior capacidade de armazenamento

e maior autonomia. Também lhes permitia levar mais quantidade de aparelhos, de

forma a ter mais possibilidades de apanhar peixe num mar que de ano para ano fica

mais desgastado. Não há um pescador em Porto Formoso, velho ou jovem, que não

fale dum passado rico em peixe e lamente a falta dele no presente. Isto é uma diferença do dia para noite , é muita diferença, há 20 anos atrás, quando eu comecei a fazer vida disto a gente levava 20 ou 30 gamelas e apanhava 300 ou 400 quilos de peixe e agora hoje em dia levo 100 gamelas e apanho 100 quilos. Mestre Eugénio

(Agora) há muito menos quantidade de peixe. Eu quando era miúdo, quando ia com o meu pai ao Sábado, chegava a apanhar às vezes duas garoupas grandes, um bodião, tudo com um aparelho só, mas é peixe grande. Agora a gente apanha peixe grande, garupa e tudo, mas já não é como antigamente. Antigamente chegava o meu pai, eu vi, entre dois ou três apanhavam 60 -70 quilos de garupa. Tudo garupa grande, de um quilo e mais. E não levava muito para apanhar aquilo, era só de manhã. Até a uma hora ou duas, 60, 70 quilos. Agora já não se vê isso, a gente apanha 30 ou 40 quilos mas a gente tem de ter muita experiência e

85

tem que ter muita paciência para apanhar mais de 30 quilos. Tem de trabalhar 100 % para apanhar isso. Paulo Jorge

(Agora) Há sondas, GPS, há uns anos atrás não havia sondas, não tinha hidráulico92, não tinha alador93, isso é que rebentou connosco, rebentou com o peixe. A gente levantava todo o peixe à mão. Havia muita mais quantidade de peixe. Era menos pescado também . E eram menos embarcações, agora eu penso que tem mais embarcações. Há muita mais quantidade de aparelhos, um leva 50, o outro leva 60, o outro leva 80. Eu vou pescar aí, amanhã vai outro a pescar ao mesmo sítio, está a compreender?. No futuro não vai haver peixe. Embora é verdade que se houver pouco peixe, sempre vai subir o valor. É arranjar a melhor maneira de um gajo se desenrascar. Mestre Ricardo.

Se tivermos em conta que, na actualidade os barcos dedicados à arte das

gaiolas levam em média 70-80 gamelas/barco, e cada gamela leva no máximo 120

anzóis, dá uns 9000 ou 10000 anzóis por barco. Nas costas de Porto Formoso

trabalham nesta arte dois barcos, fora os de Rabo de Peixe, que se concentram na

mesma área. Além disso, muitos desses anzóis ficam presos no fundo. A falta de

peixe leva ao excesso de aparelhos (e de anzóis), o que agudiza ainda mais a crise dos

recursos marinhos, que desta forma se tem acelerado nos últimos anos, criando-se

assim um círculo vicioso do qual ainda não se saiu. Diogo Moreira põe esta questão

da seguinte maneira:

Como já se observou, os pescadores estão cada vez mais dependentes das complexas variáveis da economia de mercado global. Assim, por exemplo, para conseguirem melhores capturas necessitam de melhores embarcações; para financiarem tais barcos necessitam de meios financeiros provenientes de poupança, ou, mais provavelmente, de empréstimos; para garantir um melhor aproveitamento económico do empréstimo, precisam de um equipamento mais sofisticado; e para pagar têm de obter mais capturas, o que é problemático, dada a natureza, o conhecimento e a situação dos recursos. (1987:35-36)

Não se pode esquecer que o decréscimo no peixe pescado fez aumentar

consideravelmente o seu valor. Como corresponde aos mecanismos capitalistas, o

desfasamento entre demanda e procura provocou uma subida extraordinária nos

preços. Ainda em Março de 2006, o mestre Eugénio afirmava o seguinte:

Mas vamos ver duas coisas, há pouco peixe mas o preço está compensando o haver menos peixe. A gente quer queira quer não, aqui há uns anos atrás

92 Sistema hidráulico para puxar as redes 93 Guincho incorporado na embarcação para puxar as redes.

86

apanhava-se 400 quilos de peixe de fundo e hoje apanha-se 200 mas a gente ganha muito mais dinheiro, a pesar de tudo do que há uns anos atrás.

Porém esta tendência quebrou-se a partir de 200794, ano a partir do qual o

decréscimo do peixe nas lotas deixou de ser acompanhado por uma subida nos preços

do mesmo, em grande parte devido a crise internacional e a consequente redução do

poder de compra dos consumidores.

Neste contexto de mercado, em Porto Formoso a frota modernizou-se, mas não

houve uma modernização do ponto de vista estrutural: os barcos continuam a ser de

boca aberta. A modernização deu-se através do aumento da potencia de motor e da

instalação de equipamentos electrónicos (GPS), mas não do ponto de vista da

estrutura da embarcação. Aumentou a dimensão dos barcos mas não deu melhores

condições de trabalho, nem de refrigeração do pescado a bordo. A frota continua a

não ter autonomia para passar da pesca local a pesca costeira, (tinha que ter

capacidade para pescar até às 100 milhas ou mais), mas devido as novas dimensões é

obrigada a aumentar a potência motora (barco mais pesado), fazendo com que os

custos de consumo sejam mais elevados. Porém, a sua actividade continua a incidir

sempre sobre a mesma área de pesca, até 6 milhas da costa. Como resultado desta

política apoiada pela União Europeia, pelo Ministério das pescas, e pela Secretaria

Regional, este tipo de modificações nos barcos de pesca local, contribui segundo

palavras do dirigente sindical Liberato Fernandes para “um aumento do esforço de

pesca numa reduzida cintura a volta das ilhas, com a consequente lapidação dos

recursos”. Mas apesar das condições desfavoráveis, os pescadores continuam a

apostar na sua evolução e a acreditar no seu futuro, tentando sempre procurar novas

estratégias para contornar os problemas que vão surgindo e mostrando assim a sua

capacidade de se adaptar às adversidades.

94 Ver figura 1-2 (pág. 29)

87

CAPÍTULO IV

DISCURSOS E PRÁTICAS DE FUTURO Uma etnografia polifónica

Cada vez que se passa algo dramático ou importante é essencial

instigá-lo no preciso momento em que ocorre, pois os nativos

não conseguem então deixar de falar do assunto e estão

demasiado excitados para se mostrarem reticentes e demasiado

interessados para se tornarem parcimoniosos nos detalhes

(Malinowski, 1997 [1922]: 23).

88

4.1 Barcos novos na costa! Verão de 2006

FIG. 4-1. Os novos barcos enfeitados para as festas de Nossa Senhora da Graça, em Setembro de 2006 (Cedida pelo

Regedor)

Poucos meses depois de os barcos chegarem, os mestres e pescadores de Porto

Formoso confirmaram o que já sabiam. As novas dimensões dos barcos não se

ajustavam as condições naturais do porto: se já antes era difícil arriar e varar os barcos

na areia, agora era uma tarefa quase titânica que ameaçava o futuro desta actividade.

Para pôr o barco na água eram precisas mais pessoas do que as que compunham as

companhas; os pescadores chegavam molhados ao barco, provocando frequentemente

gripes e outras doenças entre a tripulação, e o esgotamento físico era tal que antes

sequer de sair ao mar já se tinham gasto todas as forças disponíveis. No verão de

2006, os mestres expressavam já a sua aflição, ao ponto de pôr em causa o futuro da

actividade na baía:

E como é que eu vou trabalhar com duas pessoas , como é que eu vou trabalhar para pegar no barco. Eu quero sair às cinco não saio às cinco, saio às sete, e isso com a gente. Obriga-me a esperar que as pessoas tomem café, para eu ir para o mar. Não tenho condições. Mestre Paulo Jorge

Assim a gente não consegue ir muita vez para o mar, porque a gente vem super cansados, e a gente não consegue ir no dia seguinte. E a conclusão está a chegar a um certo ponto que, se isto continuar assim, eu desisto desta coisa. Não tenho onde cair morto. Que trabalhe é este, um gajo aqui morre com o trabalho. Eu já fui para o mar todo molhado por levar mais uma molhada até à cintura. Estão três na cama de baixa, todos com gripe. Mestre Ricardo

A semana passada tive duas horas. Saí às três da manha e às cinco da manha tive de pôr o barco de volta aqui porque não consegui pô-lo. E foi três vezes assim,

89

chegar ali, para acima, para lá para cá, para lá para cá, e não consegui. Duas ou três vezes, a companha já não podia mais. Mestre Eugénio

A nova situação ressuscitou uma antiga reivindicação da comunidade

piscatória de Porto Formoso: a construção de infraestruturas que facilitassem a

chegada e saída dos barcos na baía, que até ao momento se mantinha como um porto

natural. Esta questão foi levantada por primeira vez há 20 anos atrás, mas agora

cobrava uma importância diferente: as dificuldades dos pescadores eram muito

visíveis e comentadas, e o seu apelo ficava cada vez mais forte. A ameaça de um fim

da actividade começava a ser vista como uma possibilidade real. Para perceber esta

reivindicação temos de ter em conta “a crescente institucionalização, a nível formal e

burocrático, do lugar como povoação e porto de pescas, com uma maior intervenção

dos poderes local e central” (Meneses& Mendes 1996:62), com as correspondentes

consequências negativas (volume de impostos, burocracia) e positivas (sistema da lota

para escoamento do produto). Como afirmam os autores supra citados, “a existência

formal abre também caminho a que se reclame a necessidade de intervenção estatal ou

camarária em aspectos como o melhoramento do porto”.

Eu fui para a secretaria, para o secretário, para o adjunto, para o presidente da câmara , fui para todos e a resposta foi não. Vocês fizeram barcos maiores porque quiseram fazer, foi por que quiseram fazer, foi a resposta deles. Mestre Eugénio

Há quem diga, isso não é da minha autoria, mas há quem diga que eles –os pescadores - quando adquiriram as embarcações já sabiam que o porto de pescas era esse, pronto....a vida é assim...eu não posso...se tenho uma garagem para um automóvel, se vou comprar um camião, eu já sabia que eu não posso por lá o camião. Sr. Emanuel Faria, Presidente da Junta de Freguesia.

Porém, logo desde o início levantaram-se vozes que atribuíam a culpa aos

pescadores, antevendo-se a polémica que iria nascer na freguesia. Perante este tipo de

críticas, os pescadores relembram as promessas do jovem Emanuel Faria em 1997,

quando foi nomeado Presidente da Junta pela primeira vez. Nesse ano, ainda com os

barcos antigos (O Carmélia, o Ave Maria e o São Gabriel) o presidente prometeu o

porto de pesca, mas até 2006 essa promessa tinha-se traduzido apenas num pedido,

feito à Direcção Regional das Pescas, de um estudo ambiental a fim de se construir

uma rampa de varagem. Na verdade, os pescadores acreditavam que os barcos

maiores constituiriam um novo factor de pressão para acelerar o processo, mostrando

mais uma vez a sua capacidade em adoptar intrincados mecanismos de contínua

90

adaptabilidade ao meio. Assim o reconheceu, ainda no verão de 2006, o mestre

Eugénio:

Uma vez que o caso está em andamento, a gente agora faz os barcos maiores, para ver se se consegue um bocadinho mais rápido. Vamos lá ver. A minha ideia foi esta. Até disse ao Ricardo, faz um barco maior, como eu também fiz maior, para ver se as coisas seguem para frente.

Por outro lado, o facto de os barcos terem sido subsidiados por entidades

regionais constituía, para os pescadores, um sinal garantido de que as intervenções no

porto estariam já projectadas, pois doutra forma as políticas aplicadas não seriam

coerentes:

Como é que a Lotaçor ou a Secretária Regional das pescas, como é que dão os apoios para as embarcações maiores, e depois nega amanhar o porto. Se a gente acha-se com qualidade para trabalhar e para melhorar a vida de uma pessoa, como eu, por que é que não arranjam o porto. Se não tinham um porto em condições, então mal por mal eu não fazia o barco. Ia trabalhar de camponês. Mestre Ricardo.

Como assinala Nunes,

Nas últimas décadas, com períodos de escassez aparentemente cada vez mais extensos, com a concorrência do peixe espanhol e a readaptação do sector às condições de modernização impostos pelos modelos supranacionais de gestão dos recursos, os Pescadores continuam, como outrora, a queixar-se de serem esquecidos e desprezados pelos poderes públicos (2008:127)

Nem o aumento no tamanho dos barcos maiores nem os apoios regionais à

construção dos mesmos aceleraram o processo. A demora na definição de uma

estratégia para esta baía revela a falta de consenso dentro do poder regional, que opta

por não intervir num ou noutro sentido. Pelo seu lado, a Junta de Freguesia,

representada pelo seu presidente, Emanuel Janeiro Faria, tem perante este dilema uma

posição ambígua que manifesta a dificuldade em resolver a questão de forma a ganhar

o apoio eleitoral de todos. Se por um lado defende a importância em dotar os

pescadores de novas infraestruturas, por outro lamenta o facto de que nem o Governo

Regional nem os próprios pescadores tenham tido em conta o tamanho dos novos

barcos em relação ao porto existente, e o seu discurso movimenta-se entre ambas as

posições, como de resto acontece com muitos dos porto formosenses. Ao longo das

entrevistas realizadas, quando questionado sobre a sua posição perante a intervenção

91

na baía desviava, sempre que possível, o discurso, para publicitar os investimentos

que estavam a ser feitos na construção de um parque de campismo que poderia

albergar os turistas. Desta forma a Junta aplicava a estratégia da distracção, pondo em

causa igualmente o avanço numa ou noutra direcção da situação do porto e

justificando a não acção à limitação de competências do organismo , derivando assim

as culpas ao poder central. Vejam-se, a este respeito, os seguintes depoimentos:

O governo é que é um dos grandes culpados; cria as condições todas para os pescadores, dá todas as condições, todos os apoios que é necessário para os pescadores que quiserem ter outras ambições, e esquece-se depois , como é que ele vai varar o barco?. E isto não é a junta, eu falo assim porque a Junta de Freguesia é só uma mais valia para elevar o problema, porque não pertence à Junta de Freguesia. Sr. Emanuel Faria, Presidente da Junta de Freguesia

(O Presidente da Junta) Já teve interesse, como ele disse, ele fez sempre conta. Fez conta e nós conversámos que fazia um porto ali, num lado, no outro. Mas ele prefere o parque de campismo. Por causa de que o parque de campismo, dá-lhe mais lucro a ele, a ele e aos fifis, os senhores, que vem aqui para o norte, para a praia linda que a gente temos. E o nosso porto aqui fica sempre para trás. Mestre Ricardo

O sentimento dos pescadores, expresso pelo mestre Ricardo, e de muitos

outros habitantes da freguesia, é que se beneficia o turista em prejuízo dos interesses

dos porto formosenses95. Como reflecte o comentário acima referido do Mestre

Ricardo em Porto Formoso é ainda comum, sobre tudo entre pescadores e lavradores,

que a distinção entre “hosts” e “guests” seja reduzida a uma questão de classe,: os

turistas são percebidos ainda por muitos como “os fifis”, isto é, os senhores da classe

alta, em contraste com a classe média-baixa de muitos dos locais. Embora se assista

hoje cada vez mais ao esbatimento de diferenças sociais entre turista e local ( as

diferenças são de nacionalidade ou culturais, mas cada vez menos de status social) em

Porto Formoso parece ainda perdurar a diferenciação histórica baseada em questões

de classe. Mas, de facto, as diferenças nesse sentido ainda aqui são observadas : o

turista quase sempre parece pertencer a uma classe mais alta do que o local (embora

possa ser só em aparência). Tendo isto em conta, faz sentido inscrever a análise da

relação entre “hosts” e “guests” em Porto Formoso nas teorias que, como indica Silva

(2011:2), colocam o turismo no eixo de desenvolvimento imperialista ocidental e que

o vêem como resultado das relações coloniais entre as antigas metrópoles e as suas

95 Sobre as relações dos locais com o turismo em São Miguel, ver Capítulo 1.3

92

colónias (internas e externas), depois transformadas em <<pleasure peripheries>>

(Nash 1978; Turner and Ash 1976 apud Silva id.). O seguinte depoimento em

reacção às notícias das obras nos esgotos da Praia dos Moinhos é elucidativo, ao

ponto de usar o termo “preto” inscrito nos discursos coloniais:

Um Jornal diário desta semana anunciava que uma senhora que passa o verão na praia dos Moinhos tinha apresentado queixa sobre um esgoto de desagua naquele local. A Câmara da Ribeira Grande mandou imediatamente um técnico para resolver a situação. Os "pretos" que habitam todo o ano no Porto Formoso têm que se amanhar com os esgotos que vão para a Areia dos Barcos e Areia do Meio, além do mau cheiro junto à Ribeira do Lugar. É esta a Câmara que temos. AGUIA | 31/8/05 00:03 (S/I)

Em qualquer caso, porque é que o avanço das obras no porto se tornariam

numa questão tão complexa? A questão da construção de estruturas de apoio para a

prática da pesca no Porto Formoso resultou ser, no contexto do século XXI da

freguesia, um tema altamente sensível para a opinião pública e para os centros de

decisão. Se por um lado se reconhece a pesca como elemento identitário desta

freguesia e em termos mais amplos de toda a região, não se pode esquecer que Porto

Formoso aspira a um futuro de destaque baseado nas suas potencialidades turísticas, e

que a baía natural de Porto Formoso, pela sua beleza natural e pelo “castelo” que ali

se situa, é um dos pilares em que essa potencialidade se baseia. Como já foi referido

no capítulo 3, estas potencialidades levantam entre grande parte dos habitantes uma

forte expectativa, a esperança de que o turismo se torne no novo impulso necessário

para dar ao Porto Formoso o lugar de destaque que merece. Amorim (2008:37)

questiona no seu trabalho se é possível estar-se hoje “perante uma nova cultura

marítima por oposição a uma antiga, consagrado em torno dos “homens do mar”, de

pescadores e marinheiros”

A baía, qualquer turista que chega ali, fica assim parado frente aquilo e diz isso é lindo, qualquer um chega ali a baía e diz isso é lindo. Sérgio Vieira96

Como já foi referido, a passagem de turistas tem contribuído para relançar

positivamente a percepção do meio ambiente e da paisagem partilhada, mas como

adiante veremos esta percepção não deve ser identificada com a percepção dos

movimentos ambientalistas, uma vez que ambos assentam em pressupostos diferentes.

96 Jovem de 30 anos, natural de Porto Formoso, que trabalha em serviços na cidade de Ponta Delgada mas reside na freguesia.

93

Ao mesmo tempo, a paisagem natural do porto é claramente um elemento

diferenciador de qualquer outro porto da ilha, tornando-o exclusivo e único, e

portanto, mais valorizado em termos de visibilidade e potencial turístico. Como

afirma Mel Ziegler (1987 apud Kirshenblatt-Gimblett, 1995:372) “now that it is

easier to go anywhere, it´s harder to really get away”.

Um dos mais importantes recursos utilizados pela indústria turística para atrair

“visitantes” é o desenvolvimento de “performances da memória” , isto é, de

activações de património. Como aponta Lowenthal (1998: 10-11), “millions now

hunt their roots, protect beloved scenes, cherish mementos, and generally dote on

time past”. A recorrência às actividades de patrimonialização têm-se estendido ao

ponto de se multiplicarem por todo o lado, na sequência dos processos

contemporâneos de alargamento da noção de património de que fala Lowenthal

(1998). Esta é, em palavras de Peralta (2006), uma das tendências que marcam a

actual relação com o passado: se no início dos processos de turistificação apenas as

cidades e os grandes cenários históricos activavam o seu património, na actualidade

todas as localidades, mais e menos importantes, procuram reafirmar a sua história

local, enaltecendo o seu património e colocando nele altas expectativas. Assim, o

turismo impõe-se como um elemento de máxima importância na atribuição de valor

ao património local. Ainda em palavras do jovem Sérgio:

Porque não é com qualquer coisa que a gente vai trazer turistas cá. A gente tem de apresentar coisas bonitas e tudo o que é o nosso património . Aquilo (o castelo) é uma das coisas do nosso património que está degradado. Sérgio Vieira

Neste contexto, qualquer intervenção nesta baía levanta ardentes discussões e o

que para os pescadores parecia óbvio e fácil, tem vindo a revelar-se um “bicho de sete

cabeças”. Desde o verão de 2006, e ao longo de todo o processo relativo à

requalificação do porto, as opiniões multiplicaram-se e as tensões cresceram. A

discussão em Porto Formoso desenvolve-se assim em torno a uma oposição de

valores: de um lado, o chamamento dramático dos pescadores de intervir na baía para

permitir a continuidade da sua actividade, que possui um valor identitário essencial

na freguesia; do outro lado, a defesa de projectar a baía em função dos valores

associados a actividade turística, revalorizando o património histórico e natural. A

questão é ainda mais complexa quando se percebe que, uma vez que ambas as

actividades coincidem no mesmo espaço, para a maioria uma opção invalida a outra:

94

construir em cimento as infraestruturas de varagem que os pescadores reclamam,

acaba com as pretensões de patrimonialização do porto como zona histórica e natural;

elevar o “castelo” a património histórico e a baía a património natural, anularia

qualquer hipótese de incorporar cimento na paisagem, o que, por sua vez, teria como

consequência o fim, a médio-longo prazo, da continuidade da pesca como actividade

viva, afectando assim a vida de um grupo significativo de pessoas e impossibilitando

a continuidade de práticas fundamentais no imaginário colectivo da localidade. A

impossibilidade de reconciliação que para muitos existe entre o cimento da rampa de

varagem e a reconstrução do castelo vem mostrar que em muitos casos prevalecem as

visões de ‘congelamento’ associadas aos processos de patrimonialização. Veja-se o

contraste entre a opinião do jovem Sérgio e o mestre Eugénio:

As obras no porto dos barcos é uma coisa que os pescadores precisam, tudo bem, mas se fizessem um arranjo sobre as coisas que estão a prometer, em termos de turismo, nunca mais se podia fazer ali nada com os pescadores , isso é garantido , por exemplo temos ali o antigo castelo, que se fosse remodelado nunca mais podia haver uma rampa de varagem ali perto do castelo. Ou vem uma coisa ou vem outra, se eles optarem pelo turismo, os pescadores vão ter de se apanhar com aquilo que está lá feito, se eles optarem por melhorar a vida aos pescadores é fazer a rampa de varagem e esquecer tudo. Em termos de turismo o cimento estava posto de parte. Acho que é impossível reconciliar as duas coisas ali. Chegavas ali e vias um castelo todo remodelado ao tempo antigo , tudo como deve ser e logo vias um bocado de cimento grande por ali abaixo que era para porem os barcos, achas que ficava bonito? Sérgio Vieira

É tão fácil como isto, a Vila Franca era uma coisa que tinha mais história do que isto aqui, e fizeram a marinha e tudo e mudaram o porto de vez , e é Vila Franca, a cidade mais velha dos Açores. A primeira capital dos Açores é Vila Franca. E porque nesta freguesia tanto problema por um castelo como aquele, aquilo tem jeito de castelo? Mestre Eugénio

FIG. 4-2. Morfologia do porto de pescas e situação do

“castelo” (fotograma retirado do documentário)

Estas duas posições traduzem a desorientação que se percebe na ilha de São

Miguel onde, como foi referido, as directivas sobre o turismo apontam estratégias

95

baseadas na promoção do arquipélago como destino do turismo da natureza, mas onde

se continuam a perpetrar projectos que contradizem este objectivo, como a

requalificação de Vila Franca, a construção em cimento de marginais, o casino, etc97.

Como foi observado até agora, poderá facilmente tirar-se a conclusão de que

em Porto Formoso não se verifica a força consensual que muitos associam aos

fenómenos de patrimonialização (Prats, 2006). A falta de consenso da comunidade

reflecte-se na falta de consenso dentro do poder regional, bloqueando assim qualquer

tomada de decisão. Tunbridge &Ashworth (1996) afirmam que “dissonance is

universal in that it is a condition, whether active or latent, of all heritage to some

degree” (id.:21). A patrimonialização de um produto, segundo os mesmos autores,

implica a escolha de um passado em detrimento de outro, pois existem muitos

passados disponíveis entre os que escolher. A este fenómeno, no qual só alguns

sujeitos poderão rever-se no “produto-passado” escolhido para patrimonialização,

Tunbridge & Ashworth (id.) chamam “disinheritance”. A “deserdação” causada por

processos de patrimonialização nem sempre provoca conflitos, mas:

However, at a simple level, if such identification inconveniences others by denying them free access to, or use of, structures and places which the identifying group regards as their property or space, the conflict may indeed arise. (1996:31)98

Parece este ser o caso da baía de Porto Formoso. Tanto a actividade da pesca

(praticada desde as origens) como a beleza da baía (que dá nome á aldeia) e o castelo

são símbolos identitários da freguesia. A discussão nasce assim em virtude de qual

deste símbolos é mais importante para os seus habitantes e para o seu futuro, isto é,

qual deles deve ser sacrificado para salvaguardar o outro. Tanto os poderes regionais e

locais envolvidos como os habitantes de Porto Formoso se movimentam assim entre

múltiplas opiniões e perspectivas, as vezes contraditórias, que evidenciam diferentes

formas de pensamento, de se perceber a modernidade e o progresso, de se sentir no

presente e de se projectar no futuro. Questões sociais, culturais, laborais e de

identidade complexificam os avanços num ou noutro sentido, e põem em relevo a

profundidade dos factores que intervêm na construção identitária de um local e na sua

mercadorização.

97 Ver capítulo 1..3 98 Este fenómeno é de facto similar à gentrificação, processo pelo qual os residentes mais pobres de zonas com interesse turístico são despossuídos dos seus bens.

96

Do ponto de vista de um pescador, que faz da pesca o seu dia-a-dia, quanto mais infraestruturas melhor. Eu compreendo o ponto de vista deles, mas aqui trata-se de definir o bem comum e não o bem de uma classe. O Regedor | 11/11/06 14:50

Para os pescadores, a reivindicação é a tal ponto fundamental que o futuro da

pesca em Porto Formoso depende da sua concretização. O universo de incerteza em

que as comunidades piscatórias se desenvolvem, devido à dependência de um meio

não controlado como o mar, está em Porto Formoso ainda mais condicionado pelas

próprias condições do porto. Como se não bastasse a cada vez maior falta de recursos

marinhos, a isto junta-se agora a falta de recursos terrestres, isto é, de infraestruturas

que permitam trabalhar em terra. Se para contornar o primeiro problema se podem pôr

em prática estratégias individuais, para resolver o segundo precisam do apoio e

compreensão da população e da intervenção dos poderes regionais. Neste sentido, a

resolução desta questão ultrapassa a sua classe, pelo que a sua actuação fica limitada a

acções de comunicação e argumentação, lançando apelos que insistem na

necessidade de intervenção na baía como condição para garantir o futuro da sua

actividade:

Se não derem mais condições eu acho que isto vai morrendo por ai além. No meu caso, eu tenho uma menina e não vai para o mar. O filho do Ricardo, o Maurício, não sei. Isto para um gajo viver, bem organizado sempre dá para safar, mas não está dando por que eles vão ao mar e as condições do porto não são muito boas, de repente vão um dia ou dois só, por semana, e depois aquilo é muita despesa, sabes como é, aquilo vai-se um dia ao mar e de repente se ganharem seis aquilo é para toda a semana. Isso é uma coisa que se tivesse mais condições tinha mais pessoal a trabalhar aqui em baixo. É muito trabalho para arriar, qualquer rapaz que viesse aqui e visse isto...já vocês viram...isso é uma razão por que vai morrendo isso. Também as pessoas, agora tudo estuda, tudo tem carro, tudo vai para Ponta Delgada, mas também há rapazes que gostam disto, mas estão a fugir por causa daquilo que eu te disse. Mestre Paulo Jorge

Porém, apesar de todos os pescadores sofrerem pela falta de condições, os

apelos desta classe profissional não são feitos de uma forma coordenada nem conjunta,

mas sim a título individual. Intrigada por este fenómeno, sobretudo tendo em conta a

já referida inexistência de atritos significativos dentro desta comunidade, questionei

os mestres sobre quais as causas de não existir qualquer tipo de associação que lhes

permitisse dar mais força as suas reivindicações. O mestre Eugénio, o mais

politicamente activo deles, refere a falta de disponibilidade dos seus colegas, que

97

preferem fazer as queixas na “tasca” do que nas instituições competentes99. Pelo seu

lado, o mestre Ricardo alega o facto de serem apenas 2 embarcações, a sua e a do

mestre Eugénio, as que mais sofrem as consequências, não constituindo uma base

suficientemente forte para criar uma associação. Por último, o mestre Paulo Jorge

menciona a sua falta de tempo, devido à sua dupla profissão, no mar na pesca e em

terra nos cultivos, como factor que o impede de se dedicar a esta causa. Além disso,

este mestre acredita que só o desenvolvimento da pesca desportiva, e não da

profissional é que poderá constituir um argumento de peso a favor do avanço da

obra100:

De ano para ano vai .....pronto , o do São Gabriel, quanto for vivo, vai ter sempre barco, o Ricardo quanto for vivo vai ter sempre barco101, eu também quanto estiver vivo vou ter sempre barco, mas quando acabar esses eu não sei se vai ter outros. Isso eu não sei. A maioria vão se dedicar a pesca desportiva, e aí é que vão fazer o porto, até uma marina para os barcos virem de Ponta Delgada, aí é capaz de começarem a fazer, mas é quando a gente começar a ficar ultrapassada. Mas fora isso , estes pescadorzitos que têm barcos, quando acabar eu acho que não vão ter mais.

Tanto a falta de uma estratégia comum por parte dos pescadores para defender

as obras reivindicadas como a ampla contestação gerada no seio da comunidade

contribuíram para prolongar a situação de impasse, com o consequente agravamento

da situação dos pescadores e do seu futuro. Mas até que ponto a continuidade da pesca

é importante para o resto da população? Sendo esta uma reivindicação ligada a um

grupo profissional, as opiniões dos que não são pescadores dividem-se e multiplicam-

se em numerosas variantes, em apoio ou oposição a eles.

Para os pescadores o que valia a pena fazer ali é a rampa de varagem e não se importam que as pessoas que vem de fora não vejam....não querem saber, eles querem saber da sua vida, e cada um trata da sua pela melhor maneira. Há pessoas que pouco se interessam que venha turismo ou que não venha , querem é viver a sua vida como deve de ser. Há outros que pensam, epá, se viesse turismo isso vai desenvolver mais. Sérgio Vieira

É o objectivo deste trabalho perceber quais são as motivações que se

encontram por trás destas posições, e doutras que surgiram a partir daqui. Em

primeiro lugar, é importante referir que no decorrer do trabalho observou-se que a

maioria dos pescadores não percebe qual o potencial turístico da baía, e portanto não 99 Sobre a importância das “tascas” ou “lojas” entre a comunidade de Porto Formoso, ver Capítulo 2.2 100 Sobre as tensões entre a pesca desportiva e a pesca profissional, ver Capítulo 1.2 101 Como se verá mais à frente, o mestre Ricardo acabou por vender o seu barco.

98

compreende qual a polémica levantada em torno as obras que pedem. Para eles, a baía

é apenas o seu local de trabalho, e não um local digno de se contemplar e capaz de

atrair turistas. Por estes motivos, a consensualização e solidarização com posturas

contrárias resulta extremamente difícil.

Aqui no porto temos pouco ou nada turismo, só temos a fábrica de chá, o chá do porto formoso é um sítio mais turístico que aqui no porto , de resto não temos muito mais do que isso. Mestre Eugénio

A costa norte tem muito para mostrar, e quem entra num barco e passeia ao longo da costa...a gente já esta acostumada a ver isso e a gente já não da valor porque vê isso todos os dias , para a gente é sempre igual, mas quem vá pela primeira vez fica abismado com aquilo. Sérgio Vieira

Neste sentido, é elucidativo a passagem literária incluída no trabalho de Nunes

(2003: 144) da obra Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Diniz , quando um dos

personagens, contemplando a paisagem campestre e os trabalhadores rurais, comenta:

Faz pena ver que espécie de contempladores tem a natureza para estas maravilhas. A indiferença com que estes selvagens encaram tudo isto! Repara, vê aquele labrego passar lá em baixo na ponte; olha lá se ele desvia a cabeça para algum dos lados, ou se pára um momento para gozar do belo espectáculo que dali observa. Olha para aquilo! Selvagem! Pergunta ao Tomé ou a toda essa gente que lá anda em baixo a trabalhar quantas vezes admiraram as belezas de uma noite de luar, vista do alto do outeiro pequeno, ou se o pôr-do-sol lhes produz alguma sensação na alma, a não ser a lembrança de que vão sendo horas da ceia. (...) Esta pobre gente do campo é uma parte integrante dele; não o contemplam, completam-no (1992: 23-24).

Ou dito em palavras do pescador João Manuel (v. pág.80): “A gente vê isto

todos os dias, eu não sei se isto é bonito ou feio”. A beleza é sempre um conceito

subjectivo. Por outro lado, como já foi referido, os pescadores raramente saem da

comunidade, nem no dia-a-dia nem durante as férias. A sua vida desenvolve-se entre

o porto, o mar, e as lojas e tascas da aldeia. Além disso, os turistas que contemplam

a baía costumam fazê-lo desde o miradouro por cima, e é raro descerem até ao porto.

Por estes motivos, o contacto dos pescadores com este fenómeno é praticamente nulo.

Se juntarmos isto ao facto de não verem na baía mais do que o seu espaço de trabalho,

explica-se o cepticismo que esta classe ocupacional sente perante a potencialidade do

turismo.

Por outro lado, não se pode esquecer que a pesca em Porto Formoso, embora

activa, é praticada por um número reduzido de pessoas. Neste sentido muitos

99

habitantes consideram que, independentemente do valor identitário da pesca, não se

justificam investimentos num porto onde “apenas duas embarcações trabalham a

sério”. Além disso, o método tradicional de pesca praticado na zona não permite

maximizar os recursos, e como consequência, os rendimentos vindos desta actividade

não são, em termos globais, significativos para as contas da região. Segundo

Kirshenblatt-Gimblett,

“while persistence in old life ways may not be economically viable and may well be inconsistent with economic development and with national ideologies, the valorisation of those lifeways as heritage (and the integration of heritage into economies of cultural tourism) is economically viable, consistent with economic development theory, and can be brought into line with national ideologies of cultural uniqueness and modernity” (2004: 4).

Desta perspectiva, as obras no porto iriam beneficiar apenas alguns, e por um

tempo limitado, pois a pesca tradicional está inevitavelmente destinada a desaparecer,

não pela falta de condições no porto, mas sim devido à conjuntura e à realidade

regional. Para uma parte dos habitantes, parece claro que a patrimonialização surge

como uma alternativa eficaz para a revitalização de um modelo de vida que

consideram “ultrapassado”. Veja-se neste sentido o comentário do blogger Cavalete e

a réplica do mestre Ricardo:

O FUTURO DO PORTO FORMOSO PASSA PELO TURISMO AMIGO DO AMBIENTE. Não passa pela pesca profissional, pela lavoura ou agro-pecuária. Daqui a 10/15 anos deixa de ser rentável ser profissional da pesca em embarcações de boca aberta devido à crescente concorrência de embarcações maiores, liberalização da pesca (as 100 milhas de protecção vão acabar) e escassez de recursos marinhos. Poderá mesmo haver regulamentação comunitária proibindo embarcações profissionais de boca aberta. Se actualmente existem 4 barcos profissionais, estimo que daqui a 10/15 anos haverá apenas 1 ou 2. Acham mesmo que os adolescentes de 10/12 anos do Porto Formoso querem ser pescadores no futuro? Claro que não. Portanto, vamos dar tempo ao tempo e manter a areia da nossa baia. Nada de rampas de varagem ou cais de acostagem. Além disso, o Porto de Rabo de Peixe fica apenas a 20 minutos de carro do Porto Formoso. Dependendo da dimensão do negócio, um pescador profissional pode sempre viver no Porto Formoso e ter a embarcação no porto de Rabo de Peixe. Cavalete | 8/11/06 22:16 (v. pág. 46-n 51)

Eles dizem o seguinte, vai para as docas102, mas eu gosto de dormir com a minha mulher na cama. Eu gosto de estar em casa com o meu puto, a minha esposa. Com um pequeno cais, facilitava a vida das pessoas. Já não tem de andar na areia. Como eu tenho esta embarcação assim deste tamanho, podia vir a ter uma pequena traineira, um barco cabinado. Eles querem acabar com estas embarcações, com esta raça de barcos, por causa de quererem aqueles barcos

102 Referência aos portos com braços em cimento, como o de Rabo de Peixe ou o de Ribeira Seca.

100

cabinados103. Como é que nós podemos ter um barco cabinado num porto destes, sem um cais, sem uma rampa de varagem. Ajudem o povo!. Não é por ser duas ou três embarcações aqui no porto...Também têm o mesmo direito! Nós temos o mesmo direito! Mestre Ricardo.

A pesca em Porto Formoso pode não ser economicamente viável, mas o seu

valor como símbolo identitário da aldeia é para a maioria incontornável e dificilmente

substituível. Os mestres do mar de Porto Formoso projectam um áurea de sabedoria e

de status que nenhuma outra classe detém, e são respeitados como homens de grande

importância no tecido social da aldeia. Além dos mestres, os pescadores que

trabalham com eles, muitos deles com idades inferiores aos 30 anos, formam um

grémio muito unido e reconhecido na aldeia. Entre os habitantes de Porto Formos

prevalece a ideia de que a aldeia de Porto Formoso sem a pesca não seria a mesma e é

nesse seu valor identitário que reside a sua força, e que mantém a actividade

piscatória como elemento fundamental da freguesia a pesar do seu escasso rendimento

económico em termos globais. Assim, os pescadores angariam apoios entre aqueles

que não concebem o Porto Formoso sem eles.

Assistimos a chegadas dramáticas destes aventureiros do mar ao nosso porto! Estes episódios enriquecem as memórias de um passado recente. O Porto Formoso ficará mais pobre se algum dia deixarmos de ouvir os motores das suas embarcações! A pesca ainda é das poucas actividades económicas do Porto Formoso. Querem acabar com o pouco que temos? Sabendo nós da localização geográfica do nosso porto, só por si vem justificar que se façam melhoramentos de apoio ao nosso porto de pescas. Com as criações de apoio criadas estou certo que em vez de seis embarcações de pesca profissional iríamos ter muitas mais, oriundas de outros portos. O Porto Formoso deve ser uma freguesia virada para o mar. sono1 | 15/1/07 13:19 (v, pág.62-n72)

A este respeito, Paulo Peixoto escreve: As práticas e os objectos quotidianos, por mais ou menos objectificados que estejam, dando expressão àquilo que nos habituámos a chamar de identidade, raramente adquirem um estatuto de protecção e de exibição (um estatuto patrimonial) enquanto preencherem uma função social utilitária. Nessa perspectiva, uma identidade vivida e partilhada é inimiga da formação de um património. A identidade mata o património. Neste caso, dir-se-ia que o momento de atribuição de um estatuto patrimonial corresponde ao reconhecimento da morte de uma identidade (2006:66)

103 Amorim (2008) refere as consequências da lei que obrigou à destruição das embarcações até 9 metros de comprimento, cujos proprietários optaram por receber os subsídios de cessação de actividade. Ao não ser avaliadas as consequências culturais da sua aplicação, pôs-se em perigo “a preservação da nossa identidade cultural, condição primeira para a possibilidade de um turismo de qualidade vingar entre nós” (id.ibid:41-42)

101

É de salientar os perfis dos bloggers que defendem uma e outra postura: O

blogger Cavalete, natural de Porto Formoso mas a residir em Ponta Delgada, onde dá

aulas na universidade, defende o abandono da pesca a favor de um futuro turismo,

enquanto o blogger Sono1, residente de Porto Formoso e tea-maker da Fábrica de Chá

com o 12º ano de escolaridade, defende a preservação da pesca por cima da aposta

no turismo, apelando ao seu valor identitário. Entre estas duas posturas e outras

derivadas destas o impasse estende-se no tempo, enquanto o debate ganha cada vez

mais intensidade entre os habitantes, que discutem no blog da freguesia e reunidos no

miradouro sobre o porto. Interessa para este trabalho analisar quem e porque defende

cada uma destas posições, tentando perceber as motivações que estão por trás de cada

argumento, pois como afirma Peralta:

O património não existe per se, fora de um discurso de valorização e de apreciação que recai sobre um conjunto de bens e referentes simbólicos que se constituem como património. (...) O que é considerado digno de valorização e de preservação altera-se conforme os contextos e conforme os momentos. Portanto o que muda não são os bens em apreço, mas antes a valorização social que sobre eles recai.(...) o que importa é o processo de valorização, não os bens de património em si. (2008: 75)

Assim, na esteira desta proposta, escolhe-se uma discussão presenciada no

miradouro sobre o porto, no verão de 2006, como metonímia do processo de

discussão sobre a construção do futuro da baía. Como se viu, existem em Porto

Formoso numerosas vozes que definem um conjunto de posições com suficiente

representação crítica. Destas posições, admite-se que a reacção dos pescadores e do

Presidente da Junta, cujas motivações e argumentos foram já analisados, foram

previsíveis tendo em conta os interesses económicos e políticos em jogo. Porém, na

referida discussão do miradouro surgiram reacções imprevisíveis e surpreendentes,

uma vez que foram contra aquilo que se esperava à priori. Esta discussão, que passo a

transcrever, teve lugar entre o João Ribeirinha, homem de 72 anos natural de Porto

Formoso e trabalhador da terra, e o jovem César, de 22 anos, também natural da

freguesia e que faz trabalhos temporários na pesca e na terra:

- César: Vão estragar o castelo é nunca mais tem história. Se eles não podem pôr barcos grandes aqui, vão pô-los para Rabo de Peixe ou para Ribeira Quente.

- João Ribeirinha: O que é que aquilo vale – o “castelo” -? Em tempos que criavam porcos em casa, era uma nojeira. É como aquilo ali, é uma nojeira, aquilo não vale nada. Aquilo é a lixeira de Porto Formoso.

102

- César: Isso aí – o “castelo” - tem muita história. Primeiro em tempos de guerra, depois servia para as baleias. Aquilo foi feito em tempo de guerra. Se fores para ali, também há subterrâneos. Eles arrumavam-se todos aí.

- João Ribeirinha: Aquilo -os subterrâneos - não é nada disso, aquilo são barracas de terra. Tu lembras-te do que era isso aí – o castelo -?. O teu pai lembra-se?

- César: E tu?

- João Ribeirinha: Aquilo foi feito para as baleias.

- César: Não foi. Aquilo serviu para as baleias depois disso.

- João Ribeirinha: Depois disso moraram lá dois casais. Criaram lá os seus filhos. Viviam na miséria, e é uma miséria o que está ali. Hoje já não, hoje está tudo bom, graças a deus. Antes não havia dinheiro para calças, e hoje?

- César: Este é o porto mais bonito dos Açores por ser tudo natural. Se eles põem cimento como querem fazer vão desmanchar tudo. Isso era melhor para os pescadores, mas estraga a beleza da baía. O porto já estava aqui antes dos barcos.

- João Ribeirinha: Eu tenho 4 filhos em casa, mas todos eles estão ganhando. Já está melhor , não está? Eu criei-me no campo e trabalhava a terra para ganhar uma migalha de nada. E hoje? não falta nada. As coisas vão evoluindo

- César: Se eles quisessem fazer alguma coisa já tinham feito. Eles não fazem nada, porquê? Eles não mexem em nada porque quem manda neste porto é o castelo, que é património da freguesia. O castelo está aqui há centenas de anos. O governo chega aqui e diz que isto é uma coisa bonita.

- João Ribeirinha: Quem tem a barriga cheia não se interessa com os outros.

- César: Se fizessem um quebra-mar como querem fazer, a vista ficava logo outra coisa, passava a ser uma coisa feita pelo homem. O homem não fazia esta baía, esta é a baía mais bonita dos Açores.

- João Ribeirinha: Mas tudo é feito pelo homem. O homem faz beleza. Tu és novo e estás falando mas não estás falando bem!.

- César: O único que deviam fazer neste porto era renovar o castelo e manter a baía. Mais nada.

- João Ribeirinha: Se fizessem uma rampa de cimento era uma riqueza para o porto.

- César: Uma riqueza? uma riqueza é renovar o castelo, que depois isso está cheio de pessoal aí. A riqueza é o que já está ali feito. Isso depois no verão fica todos os dias cheio de gente de todo o mundo.

- João Ribeirinha: Mas se tu vieres cá e não tens ninguém, nem os pescadores, o que é que vale isso?

- César: Mas se estiver o quebra-mar, que é que eu vejo?? O que foi feito pelo homem e não pela natureza. O que é que mais bonito? É aquilo feito pela natureza.

- João Ribeirinha: Mas tudo é natureza, a aldeia é natureza. Deus é que fez tudo.

Existe a crença e convenção de serem as pessoas mais velhas as mais ligadas à

memória colectiva de uma comunidade e as mais árduas defensoras da importância da

sua manutenção e valorização, seja através de activações patrimoniais ou de outras

103

actividades que ponham em relevo o passado como elemento chave da sua identidade

cultural e da sua continuidade no tempo. Da mesma maneira, é comum antecipar uma

atitude das camadas mais jovens de indiferença ou de desvalorização em relação à

mesma memória. No estudo de caso levado a cabo por Lima (2006), acerca das

Representações de “passado” e de “património” em Portugal, a investigadora conclui

que “enquanto os jovens outorgam um peso notório à importância do investimento no

futuro, os mais velhos defendem o investimento no passado a qualquer custo” (id: 62).

Esta ideia vai ao encontro dos resultados apresentados num trabalho anterior de

Merriman que constitui uma das primeiras tentativas de medir o uso público e as

atitudes perante o passado numa escala nacional em Inglaterra, analisando o valor do

“passado” em função da idade (1991:3): enquanto o grupo mais jovem e de

rendimentos mais elevados, desvaloriza o passado pela ausência de conforto e de

vantagens materiais, os mais idosos e de mais baixos rendimentos são aqueles que

evocam aspectos mais positivos referindo-se não aos aspectos materiais mas morais.

Não parece ser este o caso no Porto Formoso. Depois de se ter presenciado esta

discussão, recolheram-se mais opiniões entre a população idosa de Porto Formoso,

observando que, excepto aqueles cuja actividade estivesse ligada ao turismo ou

tivessem contacto frequente com o exterior da freguesia, estes habitantes estavam em

geral a favor da construção em cimento de infraestruturas que facilitassem o trabalho

dos pescadores, e não da protecção da baia ou da reconstrução do castelo. Quando

questionados com a possível interferência com a beleza natural da baía e a

revitalização da área do “castelo”, situado ao pé do porto, desvalorizavam o valor

desta ruína e insistiam no facto dos pescadores não terem condições para sair à pesca.

Por outro lado, a julgar pelas entrevistas que fiz, entre os mais novos a tendência era a

de defender a não intervenção na área do porto, de forma a manter os símbolos

históricos e naturais da freguesia. Porém, se analisarmos estes depoimentos sob a luz

da tese de Lima, pode manter-se que os jovens outorgam um peso notório à

importância do investimento no futuro, mas deve-se ter em conta que para eles o

futuro é agora o passado, isto é, os elementos históricos e naturais que “desde sempre”

fizeram parte da sua cultura. Como indica Sahlins (1993) a autoconsciência cultural é

um fenómeno característico do fim do século XX, pois agora “Culture - the word

itself, or some local equivalent- is on everyone´s lips (...): all now discover they have

a culture. For centuries the may have hardly noticed it” (id.:378) - e não o notaram

104

porque o conceito de cultura não existia como tal-. Para estes jovens o passado é o

que já foi futuro, isto é, o cimento, as máquinas, as obras, os barcos grandes, tudo

aquilo que antes era progresso, a novidade: não pedem um futuro de coisas novas,

mas antes um futuro em que as coisas antigas sejam preservadas como existiam no

passado. Esta postura pode encontrar-se, de uma forma mais abrangente, em todos

aqueles porto formosenses que de uma ou outra maneira têm tido um contacto mais

frequente com o exterior, quer fisicamente quer através da internet ou outros meios.

Mas além de defender a importância de patrimonializar o porto como símbolo

identitário da paisagem natural e histórica da aldeia, por não existirem em Porto

Formoso outros elementos de identificação colectiva desta natureza, o César parece

ainda perceber o potencial que esta patrimonialização pode ter em termos de atracão

turística e de reinserção estratégica e económica da aldeia a nível local, regional e

global, e é por isso que lhe dá o valor de futuro: o futuro é o passado pelo seu valor

identitário, mas também e sobretudo porque o passado traz turismo, isto é, riqueza,

evolução, modernidade e integração na globalidade. Na mesma linha, Kirshenblatt-

Gimblett (1995) assinala a inter-relação entre património e turismo: “heritage

converting locations into destinations and tourism making them economically viable

as exhibits of themselves” (id.: 371). Por último, o César e muitos outros jovens da

freguesia parecem ter também a consciência do valor do património como elemento

de status, pois como afirma Kirshenblatt-Gimblett (2004), a posse de património é

uma marca de modernidade, enquanto que a pesca não. Os jovens estão assim a

colocar-se numa certa modernidade e numa certa classe, mais aberta e “cosmopolita”.

Não faz sentido destruir, meter cimento ao lado de um castelo, quando aquilo remodelado como deve ser, a meu ver, chamava mesmo o turismo, e até podia ter um guia turístico lá , com histórias antigas. Sérgio Vieira (v. pág. 92-n96)

Tenhamos em conta que o Sérgio , como a maioria dos habitantes jovens de

Porto Formoso observados que partilham desta opinião, trabalha em Ponta Delgada

e/ou está em contacto directo com o modelo de desenvolvimento proposto pelos

centros de decisão, e que liga o turismo às noções de progresso e modernidade. O

Sérgio vê os aviões a aterrar, os autocarros de turistas a encher, as lojas de souvenirs

a vender. O turismo é percebido assim como uma actividade capaz de tornar os

antigos modos de vida novamente rentáveis economicamente. O património cultural,

como elemento mobilizador de turismo, é tido no mundo desenvolvido como uma

105

metáfora de “modernidade”: que uma determinada comunidade possua património e

que este seja activado é como obter uma espécie de carimbo de “progresso” posto

pelos poderes externos. Isto torna o património cultural especialmente frágil e

susceptível às pressões da globalização, prejudicando o equilibro necessário para

preservar este tipo de locais ou actividades de uma forma sustentável (cf. Robinson &

Picard, 2006).

Se o jovem César utiliza principalmente argumentos identitários na defesa da

baía e do castelo, com o jovem Sérgio é bem mais evidente que a valorização da

paisagem natural da baía e do castelo se baseia no que pode trazer em termos de

desenvolvimento económico e não no que representa como elemento identitário.

Pouco se sabe sobre a história da ruína e pouco importa se a ruína foi um forte militar,

uma vigia de baleias, ou uma simples casa. Importa é a sua antiguidade, e é isso que,

segundo muitos habitantes, lhe dá o estatuto suficiente para se impor na baía. Perante

este argumento, os pescadores reagem:

Certas pessoas do Porto Formoso que estão contra (a intervenção), porque julgam que isso é património. Pode ser património mas aquilo está tudo por amanhar, está tudo destruído. Aquilo vai acabar por si próprio. Mestre Ricardo

Pelo menos 50 ou 60 % vão naquela coisa de não fazer o porto, da freguesia. Por causa do tal património que eles dizem que é o castelo. Vá tirar beleza ao porto, estás a perceber. Aquilo está destruído porque foram deixando destruir. E falam naquilo, aquilo para mim não tem tarelo, está por ali. Está arrumando ratos e mais alguma coisa. Mestre Paulo Jorge

É de salientar que ao longo do trabalho de campo e das entrevistas realizadas

entretanto, sentiu-se um grande desconhecimento geral da origem e o uso real desta

construção, há muitos anos em ruínas, ao longo da história104.

Já tinha ouvido dizer que tinha servido, em tempos de vigia às Baleias? Há muitos anos atrás. No meu tempo só me lembro de ser um curral de criação de porcos supõe ser do Sr. José Miguel. Pois espero, já não existir peças de Artilharia. Se ouve-se uma planta do antigamente não tinha duvidas na sua recuperação. A ver vamos . Um abraço do Silva. Silva | 14/3/09 18:26 (S/I)

Lowenthal (1985) fala da impossibilidade de recuperar o passado tal e como era,

pois o passado chega ao presente através de livros, memórias, e objectos preservados

selectivamente desde o início e alterados ao longo do tempo. Além disso, deve-se ter

104 Para mais detalhes sobre a história da ruina, veja-se o Capitulo 2.1.

106

em conta que “o passado não é recordado como aquilo que realmente aconteceu, mas

antes como aquilo que, à luz dos quadros de significação do presente, imaginamos ter

acontecido” (Pereira, 2008:76). Os depoimentos contradizem-se e as versões

multiplicam-se, sem que haja nenhuma informação que seja tida por todos como

verdadeira, nem sequer quando é proferida pelos homens mais velhos da aldeia, e até

os pescadores, que trabalham junto da ruina, mostram o seu desconhecimento. No

entanto, e apesar da falta de consenso entre os habitantes da aldeia, o fantasma em

ruínas do “castelo” mantém o seu poder de encantamento sobre a aldeia. Como

afirma Torrico,

Estamos a assistir à invenção de novos significados, por vezes muito distantes da realidade que se pretende evocar ou recriar. Trata-se, com demasiada frequência, de uma excessiva mistificação neo-romântica do passado, em consonância com um crescente consumo da tradição, geralmente de âmbito urbano.(2006:31)

Mas os habitantes mais velhos ou isolados de Porto Formoso não percebem

estas novas correntes. Para eles, afastados dos centros urbanos e das últimas

tendências, o passado deve manter-se como passado, e o futuro deve continuar a ser

futuro, evitando assim as interferências entre ambas as categorias. O passado não

deve voltar a fazer parte da vida da aldeia, e o futuro deve ser aquilo que sempre foi:

evolução através de obras, de intervenções, de cimento, de infraestruturas, de

mudança e novidade. O João Ribeirinha, desvaloriza o “passado” como tempo

idealizado em comparação com o presente e não mostra nostalgia: em lugar de

idealizar o passado como um tempo melhor, assinala as penúrias a que eram sujeitos

no passado e alude a aspectos menos idílicos, como a criação de porcos em casa e a

subsequente falta de higiene. Ao mesmo tempo, e perante a fervente defesa que o

jovem César faz do “castelo”, o João Ribeirinha desdramatiza a sua história e banaliza

a sua origem, lembrando ao jovem a sua autoridade como pessoa mais velha, e

portanto mais conhecedora da verdade. Para ele a pesca é uma realidade, enquanto a

patrimonialização da ruina do castelo é “uma fraude”, uma invenção de um passado

que nunca existiu, um engano que está a prejudicar o futuro autêntico da freguesia e

que não faz sentido. E não faz sentido porque não só não percebe a dimensão turística

do fenómeno, como não percebe o fenómeno do turismo em si. Os elementos que

podem gerar riqueza e trazer modernidade são para ele os novos barcos, e não o

turistas. Como já foi referido, dado que o fenómeno do turismo é um fenómeno

suficientemente recente, esta diferença nas prioridades pode ter a ver com uma

107

questão geracional e/ou de contacto com o exterior: enquanto uns cresceram rodeados

do aparelho turístico, outros apenas tiveram contacto com ele de uma maneira tardia e

indirecta: O João Ribeirinha não vive na sociedade do espectáculo.

O facto de inventar um passado para o castelo não parece incomodar o Sérgio ,

o César e outros jovens observados, pois eles são conscientes de que o processo de

patrimonialização é um processo de ressignificação, e acreditam que “o património

que é inventado para satisfazer a procura turística não é menos autêntico do que

aquele que é resgatado de um corpus cultural” (Peralta, 2003:87). Não se trata de

questionar a sua autenticidade, pois a patrimonialização nem recupera nem salva,

antes dá uma nova oportunidade como um objecto diferente, como exibição de si

próprio (cf. Kirshenblatt-Gimblett, 1995). A recuperação do castelo é posta nestes

termos por alguns habitantes:

Porque não recuperar o Castelo e construir lá o nosso museu? Quem não gostaria de ver exposto o tear da sr. Elzira Branca, os apetrechos do mestre António sapateiro e do mestre Estevão, os #mechins# de cortar o cabelo e a barba do tio Leonel e do Manuel Vegas? Quando é que haverá uma descentralização da cultura no nosso Concelho? JASRAPOSO | 15/3/09 11:02 (v.pág.49-n54)

Eu comprei aqueles terrenos (junto ao castelo) e disse que reconstrui-a aquilo de borla, para fazer lá um bar à maneira. Mas eles não quiseram. Mestre Eugénio

Neste sentido, Tanto aqueles cujo trabalho consiste em tornar o passado da nação perceptível para o público, bem como aqueles que visitam estes sítios e que consideram que este passado é significativo, reconhecem frequentemente que o processo de reconstrução e reposição da nossa herança é, na melhor das hipóteses, uma verdade parcial (Karp e outros, 1991; Kurin, 1997, apud Gable, 2006: 111).

Desta reinvenção faz parte o uso, por parte dos habitantes, do termo “castelo”

para designar a ruína que nunca o foi. Neste sentido, todos parecem ser conscientes de

que “um património será tanto mais nobre e genuíno quando derivar de uma

identidade dramatizada ou sublimada” (Peixoto, 2006: 65). A escolha do termo

teatralizado “castelo” em vez dos termos “forte” ou “vigia”, mais próximos da história

documentada da ruína, tem uma finalidade concreta: enaltecer o seu passado. É ainda

de salientar que o jovem César, além de usar este recurso de enobrecimento do

património, parece perceber os mecanismos que estão por trás dos processos de

activação patrimonial. Num dos momentos da discussão, o jovem afirma:

108

Se eles quisessem fazer alguma coisa já tinham feito. Eles não fazem nada, porquê? Eles não mexem em nada porque quem manda neste porto é o castelo, que é património da freguesia. O castelo está aqui há centenas de anos. O governo chega aqui e diz que isto é uma coisa bonita.

Durante a discussão o jovem César refere-se continuamente a “eles” , aludindo

às instituições competentes. Como já se referiu, a Junta de Freguesia apenas tem

competências para elevar os problemas à Câmara Municipal de Ribeira Grande, e às

Direcções Regionais de Pesca e Turismo, uma vez que não dispõe de verbas próprias

para viabilizar projectos desta envergadura. Conhecedor desta limitação, o jovem

César fala de “eles” referindo-se aos elementos políticos externos à Freguesia, que

enviam engenheiros e técnicos à aldeia para avaliar a situação e analisar um eventual

investimento. Nas palavras do César, é o Governo quem decide se um objecto é

valioso o suficiente para merecer um investimento a nível patrimonial. Como diz

Barros:

No essencial, para além da utilização turística do património e dos objectos patrimoniais, são sobretudo as elites, detentoras do poder, que possuem o privilégio e capacidade de atribuir valor aos objectos (2006: 183).

O Governo beneficia com os processos de patrimonialização: o património não

serve só os propósitos de identificação colectiva e de rentabilização económica

através do turismo, é também um instrumento para reforçar o programa político, pois

“difunde versões simplistas e essencialistas do passado como um passado feliz, que

servem o projecto político” (Peralta, 2003:86).

Por último, é de assinalar que para o jovem, “quem manda na baía é o castelo”

e não a natureza. Tendo em conta que do castelo apenas restam umas ruinas

abandonadas, e que a natureza da baía é visualmente bem mais impressionante e

exuberante, porque é que o jovem insiste na construção?. As primeiras atracções

turísticas foram os monumentos históricos, que correspondiam à concepção clássica

de património, ligado ao passado, às origens e/ou à grandeza. De todos os

patrimónios (cultural, imaterial, cultural, etnológico, natural) o património histórico

fez sempre parte dos programas políticos e internacionais de desenvolvimento e

gozou sempre do mais alto status. Porém, como reacção aos processos de globalização,

começaram a aparecer movimentos culturais e sociais que visavam o reconhecimento

da diferença e da particularidade. Neste contexto começam a aparecer na década de 70,

109

movimentos académicos a favor da salvaguarda do património cultural, culminando

no enquadramento legal do Património Imaterial na Convenção da UNESCO de

Outubro de 2003 , artigo 2 (cf. Agudo Torrico e Brito, 2006 ). O reconhecimento

público do património imaterial, que pressupõe, em contraste com o conceito clássico

de património “concepções mais plásticas de cultura” (Silva, 2011:4), permite

repensar os processos de patrimonialização como um instrumento para dar voz a

minorias. No entanto, não se deve pensar que o património histórico perdera

importância. Apesar destas novas tendências os monumentos que vêm do passado,

quer estejam preservados quer em ruínas, continuam a assombrar: em detrimento da

actividade da pesca, o jovem defende o valor histórico do “castelo”, em consonância

com a tendência que sobrevaloriza o património histórico-artístico sobre o património

cultural ou etnológico Do seu depoimento, podemos concluir que quanto mais

“passado” tiver o “castelo” mais importante é a sua patrimonialização, pois como

indica Kirshenblatt-Gimblett, (1995:370) “the attribution of pastness creates distance

that can be travelled”. Neste sentido, Torrico afirma:

Nem em todos os lugares, nem num mesmo tempo cronológico, se consideram como património os mesmo referentes. Todavia, parece existir unanimidade na procura de justificações para a patrimonialização da variável tempo, no seu sentido histórico (passado): é quase impensável aplicar formalmente o conceito de bem cultural a uma obra de presente ou passado imediato (2006: 22).

Perante a insistência do jovem César no valor histórico do “castelo”, e como

polo de atracão turística e gerador de futuras receitas, o João Ribeirinha responde

cristalinamente: “Mas se tu vieres cá e não tens ninguém, nem os pescadores, o que é

que vale isso?”105.

A reflexão esclarecida dos “informantes” dispensa muita da que se tem feito

em literatura antropológica, e que muitas das vezes resulta redundante nestes temas.

Apesar do João Ribeirinha não estar muito familiarizado com o conceito de

património e de indústria turística, parece ter acertado em cheio numa das

controvérsias atuais em torno das questões de patrimonialização. Tem-se verificado

que as activações patrimoniais podem ter como consequência a conversão dos espaços

onde estas são levadas a cabo em “museus vivos”, isto é, em aldeias vazias (através de

105 A este respeito, Torrico refere a condição paradoxal do património etnológico, que é “categorizado com frequência como “património modesto” ou “património menor” face ao grande património histórico-artístico-monumental, quando boa parte dos referentes identificativos do colectivo são tomados precisamente desta categoria” (id. ibid.: 28).

110

processos de gentrificação106), ruas silenciosas, portos sem barcos, cidades sem

padarias, casas sem barulho. No caso de Porto Formoso, manter o património material

significaria retirar os barcos do porto, o que resultaria numa mudança importante da

paisagem histórica da aldeia, pondo em causa o património imaterial107 que este porto

alberga.

A discussão em torno deste tópico intensificou-se quando, devido ao

prolongado impasse em que mergulhava a baía, começaram a aparecer os primeiros

sinais claros de declínio da comunidade piscatória de Porto Formoso.

4.2 Revisitação do trabalho de campo. Verão de 2007

Como aponta Hutchinson (1996), as revisitações permitem-nos mostrar o que

mudou, tanto no observador e nas suas premissas como na comunidade. Por isso o

antropólogo deve voltar: estas revisitações no trabalho longitudinal historizam o

presente e o passado, pois ajudam a perceber o que era conjuntural no primeiro

trabalho.

Quando voltei no verão de 2007 a situação ainda se encontrava num impasse.

Nada tinha sido decidido nem feito no espaço da baía. Aquele ambiente de esperança

que senti entre os pescadores no verão anterior tinha-se dissipado, à força de golpes

de realidade. A falta de intervenção no porto tinha feito os seus estragos entre a

comunidade piscatória de Porto Formoso. O mestre Paulo Jorge estava emigrado nas

Bermudas: o custo das licenças, problemas de fiscalização, e dificuldades em sair ao

mar tinham causado uma situação económica insustentável, e a emigração para as

Bermudas aparecia como a única forma de recompor a balança, enquanto o seu barco

se mantinha varado na areia, O seu pai, o mestre Américo voltou a pescar em

pequenos barcos de pesca desportiva emprestados. Pelo seu lado, o mestre Ricardo, o

mais ambicioso de todos, acabava de vender o seu barco e tinha começado a trabalhar

na construção da SCUT que se inauguraria uns anos mais tarde. Quando o entrevistei,

falar do seu barco era quase um tabu, e o pouco que falou foi com lágrimas nos olhos.

Segundo ele, foi devido à falta de uma boa companha que ele teve de vender o barco:

os jovens não apareciam para varar os barcos. Um ano e meio depois, dos barcos

106 Sobre processos de gentrificação, ver , p.ex, o projecto “Castelos a Bombordo” de M. Cardeira Silva et al., disponível em http://castelos-a-bombordo.tiddlyspot.com 107 Como diz Kirshenblatt-Gimblett (2004: 3) “in contrast with the tangible heritage protected in the museum, intangible heritage consists of cultural manifestations (knowledge, skills, performance) that are inextricably linked to persons”

111

novos o único que se mantinha activo era o do mestre Eugénio. Além de contar com

uma companha estável e “fiel”, o Eugénio teve dinheiro para investir num trator com

o qual conseguia pôr o barco na água. Se para alguns habitantes esta nova situação era

mais um motivo para não investir no porto, para outros era um motivo ainda mais

forte para acelerar a melhoria das condições no porto.

O ovo ou a galinha!

1.Devido às más condições de trabalho alguns marítimos do Porto Formoso, estão a abandonar a sua actividade.

2 Porque alguns pescadores do Porto Formoso estão a abandonar a actividade, o Governo Regional, não deve melhorar as condições de operacionalidade do Porto.

O poder instalado e quem tem responsabilidades na matéria, prefere a segunda hipótese. O investimento é zero e não se mexe uma palha!

Mas o mais preocupante de facto é ser pouco aliciante para um jovem, iniciar-se no mundo do trabalho como pescador, porque não existem no Porto Formoso as condições mínimas, para se exercer a faina da pesca! JAGPacheco108 | 6/12/06 10:04

Mas perante esta nova realidade, entre aqueles que defendiam obstinadamente

a não intervenção e os que proclamam a sua necessidade urgente , surgem cada vez

com mais frequência aqueles que procuram uma solução intermédia que

consensualize ambas as actividades, permitindo a continuidade da pesca e integrando-

a na promoção de Porto Formoso como destino turístico diferenciado numa região

com cada vez mais diversidade de oferta. Neste sentido, Santana (2006) propõe

estratégias alternativas que permitam conciliar ambos os aspectos:

“o crescimento de uma oferta, teoricamente independente dos operadores turísticos, combinando uma ampla variedade de produtos culturais – pequenos e flexíveis - que possibilitam a sua adequação à procura e a sua compatibilização com tarefas produtivas nacionais” (2006:175).

Na sua obra mais conhecida, MacCannell (1976) analisou o turista partindo de

um ponto de vista estruturalista109, afirmando que este encontra a motivação para as

suas deslocações no desejo de recuperação mitológica das estruturas tradicionais que

conferiam à vida um sentido de totalidade. Se se tomar por válida a visão que propõe

108 Licenciado em Engenharia Agrónoma , e natural de Porto Formoso, onde reside, é o actual proprietário da Fábrica de Chá de Porto Formoso, e fundador da Confraria do Chá de Porto Formoso, da qual é Confrade-Feitor. 109 “A argumentação de MacCanell (1976) foi duramente criticada por Cohen (1988) e outros, que defendem que muitos turistas estão apenas interessados no mero divertimento, não pretendendo recriar estruturas através de mitos” (Peralta, 2003:89)

112

para os turistas, , a pesca, como prática ancestral e singular, faz parte destas estruturas

tradicionais que provêm de um tempo e um mundo pré-moderno e às que o turista

deseja aferrar-se na procura de referências simbólicas que lhe foram tiradas pela

modernidade. O turista, perdido na incerteza da actualidade, luta contra a “falsidade”

do presente em que está inserido em busca do “outro autêntico”, procurando encontrar

nesse processo o “eu autêntico” (Selwyn, apud Peralta 2003:89 ). A autenticidade,

como sublinha também Gable (2002), é uma obsessão da modernidade e os turistas,

como um dos exponentes dessa modernidade, privilegiam-na, procurando os lugares

desprovidos dos artefactos que os rodeiam no seu dia-a-dia: a pobreza, a cultura

“primitiva”, a ruralidade são características apreciadas pelo turista, pelo contraste

com a sua realidade que seria urbana, rica, sofisticada e moderna. Assim, perante a

visualização do fim da pesca na baía de Porto Formoso, são cada vez mais as vozes

que se levantam na defesa da pesca como elemento de autenticidade capaz de

outorgar ao local um espírito especial e mágico.

Porto Formoso, ano de 2030. O autocarro parou em frente ao Jardim, o grupo de turistas nórdicos ainda não arranjara ângulo para apanhar a baia numa única foto. E o guia já começara a lengalenga habitual: neste Porto que dá o nome à Freguesia, existiu caça à baleia até aos princípios do século XX. Enquanto que a pesca profissional se prologou até ao princípio deste século XXI. Actualmente a população dedica-se ao sector terciário e ao rendimento m …..Penso eu de que os turistas gostam de ouvir falar de História e Paisagem, mas gostam de conhecer as actividades económicas com destaque para as tradicionais, pesca e a lavoura inclusive. Gostam ainda mais de provar os produtos produzidos na Região. Estas actividades também podem ser amigas e compatíveis com o ambiente, a pesca artesanal mais do que a pesca industrial. JAGPacheco | 10/11/06 10:11 (v. pág. 111-n108)

Mas como compatibilizar estas duas actividades? É possível dar melhores

condições à pesca sem alterar a paisagem da baía?. Quem acredita que é possível,

propõe soluções de tão complexa aplicação que soam irrealistas. O jovem Sérgio

propõe pôr máquinas na baía a retirar areia uma vez por mês, de forma a facilitar a

varagem dos barcos. O presidente da Junta, pelo seu lado, fala da possibilidade de

haver uma marinha amovível que desse para pôr e tirar, segundo a época turística.

Outros como o blogger Cavalete ou o velho Adolfo propõem limitar a pesca à vertente

desportiva e adoptar os barcos de pesca profissional para receber turistas que possam

“serpentear entre pequenos ilhéus, visitar grutas, contornar cabos, descobrir pequenas

enseadas, observar aves marinhas” além, claro, de ter a possibilidade de observar os

peixes:

113

Eles (os peixes) são mais rentáveis vivos. Se os homens pensaram nisso. Além de conservarem, ainda põem a explorar isso. Eu conheço aí empresas que vendem o mesmo tubarão, a dois milhões de turistas por ano. Adolfo (v. pág.59-n66)

Como já se referiu no capítulo 2, a pesca turismo é uma das apostas claras na

estratégia de desenvolvimento turístico de São Miguel desenhada pelo poder regional.

A polémica aqui surge em torno da folclorização da pesca, isto é, a sua transformação

num espectáculo de si próprio, deixando assim de constituir um elemento de

autenticidade e de cumprir a sua função original. A este respeito, Paulo Peixoto

escreve:

As práticas e os objectos quotidianos, por mais ou menos objectificados que estejam, dando expressão àquilo que nos habituámos a chamar de identidade, raramente adquirem um estatuto de protecção e de exibição (um estatuto patrimonial) enquanto preencherem uma função social utilitária. Nessa perspectiva, uma identidade vivida e partilhada é inimiga da formação de um património. A identidade mata o património. Neste caso, dir-se-ia que o momento de atribuição de um estatuto patrimonial corresponde ao reconhecimento da morte de uma identidade (2006:66)

Existem numerosos casos deste fenómeno quando provocado pela chegada do

turismo aos portos. Veja-se o caso de Zambujeira do Mar, assinalado por Mendes

(2008: 193) , onde o porto passou a ser usado, quase exclusivamente “para fornecer os

restaurantes locais”. Sobre este fenómeno, encontra-se no blog o seguinte comentário:

Quem chega á cidade de Aveiro para além dos deliciosos ovos moles, poderá encontrar um excelente enquadramento paisagístico, são os “moliceiros” encostados na ria de Aveiro. Seria no meu ponto de vista mais interessante chegar á ria e ver os moliceiros em plena actividade, do que chegar e ver, encostados para o turista tirar umas fotos. sono1 | 7/12/06 11:38 (v, pág. 62-n72)

Apesar de serem numerosos os casos em que os processos de

patrimonialização transformaram o objecto/sujeito patrimonializado numa exibição

falseada de si próprio (e às vezes até numa sátira exagerada), acredita-se que é

possível harmonizar património e identidade “viva”. Para tal é determinante lembrar

que o património inclui agora também as pessoas (e/ou o que fazem) e por isso as

implicações dos processos de patrimonialização ganham uma outra dimensão. Como

refere Brito (2006), tendo em conta o capital humano que está em causa, as decisões

deverão ser tomadas tendo em conta todos os elementos sociais e económicos

implicados, pois o objecto do olhar é agora sujeito:

114

Com o património imaterial as escolhas deixarão de ser exclusivamente exógenas. Têm de ser conduzidas sob novas formas de colaboração, por aqueles e com aqueles que o produzem e o detêm. (2006:51)

Sobre este tema veja-se por exemplo o apelo lançado pelo presidente da

cooperativa de Pescadores “Porto de Abrigo” Liberato Fernandes:

A pesca turismo não pode ser transformar o pescador numa espécie de figura do folclore: o turismo deve envolver os pescadores como eles são. Também porque o turista que vem, vem para conhecer uma realidade que é a que existe cá, e que seguramente é diferente da parte continental, onde se pratica uma pesca muito mais industrializada e intensiva.

Os pescadores revêem-se nesta declaração, pois se para eles é positivo chamar

o turismo para as suas embarcações, como de resto já fazem pontualmente110, esta é

apenas vista como uma prática informal que visa complementar a sua actividade

principal, que continua a ser e assim querem que seja, a pesca profissional.

Mas em Porto Formoso consensualizar posições não é fácil. Dois anos e meio

depois do incidente que destruiu os barcos, continuava a não existir uma proposta para

a baía que consensualizasse todas as posições. Perante esta situação, o poder regional,

ele próprio com muitas dúvidas sobre o caminho a seguir enquanto ao futuro da ilha111,

decide não decidir: não querendo arriscar inimizades, mantém o silêncio e deixa o

tempo passar. Se os defensores da não intervenção se mantêm tranquilos, embora

atentos, os pescadores, frustrados, vêem-se cada vez mais prejudicados.

4.3 Nada será como dantes112. Reacções à primeira apresentação do projecto de

requalificação do porto. Dezembro de 2007.

Uma coisa é certa, a partir de agora nada será como dantes e esta fotografia nunca mais será igual. O Regedor | 06/12/07 01:14

Em Dezembro de 2007 começam a surgir nos meios de comunicação,

nomeadamente na RTP Açores e no jornal Açoriano Oriental, as primeiras notícias

acerca do projecto na requalificação da baía de Porto Formoso. Segundo as

informações da altura, o projecto envolveria a recuperação do castelo, novos acessos

ao porto, um pequeno porto para barcos de pesca e outro para embarcações de recreio. 110 Foram identificadas e reconhecidas práticas turísticas nos barcos, mas apenas de carácter informal, isto é, para amigos ou conhecidos e sem que sejam declaradas.. 111 Ver capítulo 1.3 112 Título do post colocado pelo Regedor no blog no dia 06/12/2007.

115

Um mês antes, tinha ainda sido publicada no blog A Casa da Mosca uma proposta

privada para a construção de um aldeamento turístico de golfe projectado para a

mesma aldeia (ver imagem 3-18, capítulo 3). Entretanto, outras obras começavam

também a ser feitas na praia dos Moinhos. Depois de um longo impasse, parecia que

as coisas começavam a mexer em Porto Formoso.

Estas novas informações, embora ainda muito vagas, provocaram uma

intensificação da discussão pública, tanto no blog da Casa da Mosca como nos

espaços de convívio da aldeia. Tendo em conta que o último investimento de carácter

público foi a construção da escola primária, na década de 50 do século passado, a

apresentação e/ou projecção de todas estas obras provocaram uma pequena revolução

na aldeia. É importante salientar que tanto o projecto de requalificação da baía como

o da praia dos moinhos foram divulgados através dos meios de comunicação regionais,

pelo que durante vários meses o Porto Formoso fez parte das manchetes jornalísticas e

televisivos dos Açores, ganhando assim uma posição de destaque que nunca tinha tido.

Esta nova atenção já era só por si suficientemente importante para gerar uma nova

vaga de optimismo entre grande parte dos habitantes da freguesia: perante o

imobilismo qualquer sinal de mudança é recebido com esperança e para muitos

habitantes “intervenção”, isto é, obras, é sinónimo de progresso e evolução, de

afastamento do passado e de integração nas redes do mundo global.

O cenário que se avizinha é de optimismo e também sinónimo de que o futuro vai finalmente chegar ao Porto Formoso. Há algo de positivo no ar. Já ninguém conseguirá travar a mudança e deixaremos de ser a freguesia menos privilegiada do nosso concelho. O PROGRESSO TAMBÉM VAI PASSAR NO PORTO FORMOSO. JÁ NÃO ERA SEM TEMPO! JASRAPOSO 7/12/07 21:02 (v, pág.49-n54)

Esta obra do governo é boa e tem a intenção de apoiar o Porto Formoso para o desenvolvimento que vai ser bom para todos. O Porto de Recreio vai ser o único da costa norte, o castelo vai ser o primeiro forte recuperado e os pescadores vão ter melhores condições de trabalho. deus2deus | 8/12/07 16:35 (S/I) Acrescentaria eu que este investimento poderá colocar o Porto Formoso na alta rota do iatismo e da náutica de recreio internacionais. aguia | 8/12/07 17:39 (S/I)

De alguma forma, este projecto significava que os interesses dos pescadores - e

de outros habitantes- tinham-se sobreposto aos interesses do turismo: o Governo

estava a dar um sinal. Mas não se pode esquecer que o Porto Formoso sai de uma

116

letargia de muitos anos de inactividade e falta de atenção. Por esta razão muitos

encaram com cepticismo estes anúncios: depois de tanto tempo, porque haveriam de

acreditar que agora era de verdade?. Além de não acreditar “até ver”, surge ainda um

outro problema. As primeiras notícias apontam para projectos que, como vimos, para

muitos não contemplam nem se adequam à realidade local nem regional. Se por um

lado questionam a viabilidade destes projectos a longo prazo, questionam acima de

tudo, o risco de não se respeitarem as características genuínas e diferenciadoras de

Porto Formoso, perdendo assim a possibilidade de sobressair num mundo cada vez

mais homogeneizado. Porém, não se deve confundir esta postura com uma postura

antiglobalizante: ao contrário do que é habitualmente interpretado, a progressiva

valorização da diferença através da exaltação do património local não é uma reacção

contra a globalização, mas antes faz parte dela e está integrada na própria dinâmica

global. Não se trata aqui de uma mera sobrevivência de resíduos culturais de

sociedades tradicionais no presente, mas sim de um processo de re-tradicionalização

através do qual o local se posiciona no mundo contemporâneo (Peralta, 2006),

fazendo finca-pé nas suas diferenças e esbatendo as suas coincidências. Esta

tendência é motivada pela valorização pública da localidade no palco global, e que

resulta da interpretação, cada vez mais comum, da exposição de património como

símbolo de modernidade e progresso.

CAROS AMIGOS DO PORTO FORMOSO… Sejam realistas… não caiam em ilusões! Vocês acham que alguém vai fazer alguma coisa de "grande" no Porto Formoso!!??? Depois de tantos anos, depois de tantas promessas, como podeis permanecer tão crentes!!! Um campo de golfe!!!!!! Para quê!? Para quem? Uma marina!!!!!! Para quem!? Será que os iatistas vão atracar no Porto Formoso? E depois de atracados vão fazer o quê!? Dormir aonde!? Comer aonde!? Será que o Porto formoso e arredores têm condições para satisfazer "Donos de iates"!? ??? E os iates??? Vão vir só de Verão!???? Ou será que o Vento Norte do nosso longo inverno vai facilitar a estes Senhores a escolha destas paragens!??? ACREDITAREMOS NESTAS OBRAS, SÓ DEPOIS DE ESTAREM FEITAS! JBSerra | 14/1/08 13:12 (S/I)

É a isso que chamam de desenvolvimento?! Eu chamo retrocesso. Um campo de golfe – sabem quantos campo de golfe existem em destinos muito mais baratos do que os Açores? Milhares. Uma marina no Porto Formoso e a freguesia, que tanto prezo teria que mudar de nome, deixaria de ser a baía mais bonita da ilha para ser apenas mais uma das milhares que estão no Atlântico. Aliás se isso acontecesse, espero muito bem que não, os Açores teriam que mudar de nome, tipo Madeira II ou mesmo Algarve III. Jordao Farias113 | 9/11/07 09:22

113 Natural da Ribeira Grande, onde reside, trabalha na indústria do Turismo.

117

Esta é no fundo a discussão que se trava a nível regional e que foi analisada no

capítulo 2 desta tese. A falta de coerência que se têm notado nas acções tomadas pelos

poderes regionais no que toca ao desenvolvimento turístico surge da dificuldade em

conciliar dois objectivos: por um lado, diferenciar os Açores do “mundo” como

destino para o turismo de natureza (com vulcões, falésias, baleias, etc) e mar (na sua

vertente “pesca” antes do que praia); por outro integrar-se nas correntes globais de

turismo, com os cruzeiros, casinos, marinas e marginais. O primeiro objectivo

restringe a capacidade de atracão a um tipo determinado de turistas, limitando o nicho

de mercado para quem está dirigido. Mas ao mesmo tempo mantém as outras

actividades económicas dos Açores em primeira linha de importância. O segundo

objectivo procura ampliar o nicho de mercado potencial, de forma a rentabilizar ainda

mais as capacidades de captação turística da ilha, mas assim os Açores põem-se em

concorrência directa com destinos próximos como a Madeira ou o Algarve, que além

de contar com uma longa tradição turística, são destinos mais baratos114 . O

desenvolvimento de infraestruturas turísticas mais abrangentes através de

investimentos públicos pode ainda delegar para segundo plano actividades

importantes no arquipélago como a lavoura e a pesca.

Em Porto Formoso ninguém parece duvidar de que o “progresso” não pode ser

travado, mas nem todos concordam sobre o modo como esse progresso deve ser

concretizado. Como já foi referido aquando da análise da discussão entre o jovem

César e o velho João, se para uns o futuro assenta no querer fazer apagar o passado

para outros o “verdadeiro” progresso deve ter um profundo respeito pelo passado. No

fundo o que se está a discutir aqui são dois modelos de desenvolvimento, dois

caminhos possíveis para integrar esta localidade nos circuitos globais através da sua

modernização. Mas é a “modernidade” a valorização do passado ou o afastamento do

mesmo? Museus ou cais? E ainda mais: qual é esse passado de que se fala em Porto

Formoso? Pesca ou história? O Homem ou a Natureza?

Tenho medo desta palavra "Progresso" pois ainda é muito utilizada para convencer o povo de que estamos atrasados e temos por isso de avançar e seguir os exemplos de outros povos, outras sociedades. Progresso ou retrocesso? Filipe Tavares 115| 30/11/09 14:52

114 Sobre tudo devido aos custos das viagens de avião, pois como já foi referido esta rota é apenas operada pela companhia SATA. 115 Natural de Ribeira Grande, mas frequentador do Porto Formoso, sobre tudo nas épocas estivais. Hoje com 31 anos, é técnico de som e vive em Lisboa, a partir de onde trabalha em diversos projectos

118

O que seriamos, nós hoje, se não tivesse havido progresso? Se reparamos bem olhando para o céu, o que víamos há dois séculos atrás!....Alguns passarinhos, moscas e outros parasitas!....Hoje vemos os mesmos e mais!... Aviões, foguetões a transportar sabe-se lá o quê?...Veja-se só até já foram a Lua!...Que mais quase a olhos visto se vê satélites e até "Ovnis."? Se olharmos para o mar há muitos séculos atrás o que víamos?... provavelmente o imenso do seu infinito Oceano!....Hoje vemos grandes transatlânticos, uma grande peripécia de submarinos, grandes frotas, vasos de Guerra, sei lá que mais?....Se olhamos à nossa volta, hoje e comparando com um século atrás o que temos?....Vejamos só o conforte, o automóvel, as boas estradas e as nossas bonitas casas e muito mais!....E há muitos muito séculos?.... A parra da figueira, para te cobrires, a barraca para te esconderes e defenderes dos grandes devoradores, que eram os animais!....Desde que o homem descobriu o fogo foi o progresso da humanidade. O progresso tem contribuído para tudo, de bom, e mau, do que temos hoje. Viva ao Progresso. Silva| 30/11/09 21:55 (S/I)

4.4 Eis o projecto!

As múltiplas reacções que estas questões suscitaram no decorrer do trabalho de

campo explicam o porquê da dificuldade em encontrar um projecto que consensualize

pescadores, outros habitantes, e poderes de decisão. Tendo em conta os interesses e as

ideologias envolvidas, a irreconciliabilidade de posturas perante o projecto

apresentado era inevitável. Mas mais do que o projecto em si, o que criou uma nova

onda de indignação foi a falta de consulta pública, que muitos aguardavam, antes da

apresentação em Setembro de 2008 do projecto definitivo e do lançamento da

primeira pedra.

Pior que tudo isso é que nem a população nem a Junta de Freguesia foram ouvidas sobre o projecto aprovado. É o que se chama QUERO, POSSO E MANDO próprio das civilizações não democratas aguia | 24/9/08 22:42 (S/I)

Dada a importância desta obra para o desenvolvimento estrutural da freguesia, dado o orgulho ou mesmo amor que os portoformosenses têm para com a sua baía, não está correcto que não tenha havido uma consulta pública antes da apresentação definitiva do projecto. A política precisa, urgentemente, aproximar-se das pessoas, porque ela existe para servir as pessoas.

Em todo o caso, neste momento importa é que as obras respeitem a beleza natural da baía, sirvam os pescadores e impulsionem o desenvolvimento do Porto Formoso, de uma vez por todas. O Regedor | 24/9/08 13:49

portugueses e internacionais. Como se verá mais a frente, é um dos dinamizadores do movimento ambientalista SOS Porto Formoso.

119

O projecto aprovado acabou por ser bastante simples: incluía dois braços de

cimento, um mais comprido à direita, com uma rampa de varagem (supostamente para

os pescadores profissionais) e outro mais curto, à esquerda (supostamente para a

pesca desportiva). Sobre as ruinas do castelo, o projecto simplesmente omitia

qualquer intervenção:

FIG. 4-3. Detalhe do projecto aprovado e apresentado em

Setembro de 2008 (cedida pelo Regedor)

Para os pescadores a falta de consulta pública não era um problema, pois

independentemente do que fizessem sempre seria melhor do que não fazer nada. O

mesmo aconteceu com aqueles que apoiavam incondicionalmente os pescadores,

reclamando uma melhoria nas condições do porto, e com aqueles para os quais as

obras no Porto Formoso era em qualquer caso sinónimo de progresso. A indignação

sentiu-se sobre tudo entre aqueles que defendiam a necessidade de intervir com a

máxima sensibilidade para com esta paisagem, tão susceptível para muitos dos

habitantes da aldeia. O que eles reclamavam era, no fundo, “a sua participação num

processo - o de alteração da sua paisagem- do qual se sentem afastadas e incapazes de

controlar” (Mendes, 2008: 204).

A apresentação do projecto final para a baía chamou também a atenção de

alguns movimentos ambientalistas, com destaque para o movimento SOS Porto

Formoso, que nesse mesmo verão tinha estado a contestar as obras projectadas para a

praia dos Moinhos. Mas é preciso salientar que os movimentos locais de defesa da

paisagem e aqueles outros de organizações ambientalistas não se fundamentam nem

em pressupostos nem em objectivos iguais. Como indica Prado (2003: 220) no fundo

estamos diante de dois códigos de relacionamento com a natureza: o tradicional/local

e o da ideologia ambientalista de protecção.

120

Vamos então por partes. Em relação à forma em que os locais se relacionam

com a natureza, nomeadamente na baía, Mendes afirma que

As populações locais reagem essencialmente à alteração da paisagem que entendem como sua e ao facto dos seus posicionamentos individuais e/ou colectivos não serem considerados pelos novos agentes e pelas políticas a partir do centro(i.e o governo nacional e o da União Europeia) (2008:204)

Para aqueles habitantes de Porto Formoso preocupados com as obras da baía,

o valor desta paisagem pouco ou nada tem a ver com os princípios ambientalistas.

Esta paisagem é sua, tanto mais quando é reconhecida por todos como símbolo da

freguesia, à qual dá nome. Casualmente esta paisagem é principalmente natural e daí

coincidirem com as reivindicações dos grupos ambientalistas. Mas poderia não sê-lo e

ainda assim ser defendido por parte da população: o valor dele recai no seu

simbolismo, que faz dele uma paisagem “sagrada” e daí a indignação perante a falta

de controlo sobre o seu futuro. Segundo as obras avançam e as máquinas entram em

acção ouvem-se cada vez mais entre os habitantes comentários do tipo “já não

reconheço o Porto Formoso”.

FIG. 4-4. Obras na baía: Máquinas a trabalhar com a ruína

do castelo ao fundo (cedida pelo Regedor)

As obras na baía são repudiadas não por ser um atentado contra a natureza,

mas por ser um atentado contra o seu símbolo, contra a paisagem que funcionou

sempre como um elemento de identidade, e nesse sentido

Quando a Natureza faz de uma paisagem natural uma imagem simbólica de uma freguesia, aonde o mar estende todo o seu espaço na nossa visão, onde as rochas bordam de uma forma tão simples a nossa concentração, digo eu, para quê essa OBRA!? Futuro!? Propaganda Política!? Com essa obra, o Porto Formoso ficará mais turístico, mais científico...mas muito menos contemplativo, pelo menos por

121

mim. Vai-se uma das minhas imagens inspiradoras, ficará para muitos uma paisagem incompleta. falange116 | 16/11/08 13:10

Como já foi referido as reacções externas mais significativas perante a situação

de Porto Formoso tem-se manifestado através do grupo crítico SOS Porto Formoso.

Este movimento faz parte de um movimento maior chamado SOS Costa Norte. O

movimento critica o que eles denominam “crimes ambientais”, isto é, as intervenções

em cimento levadas a cabo em diversos lugares da freguesia, a destruição da paisagem

natural 117 da localidade, a acumulação ilegal de lixo, a construção ilegal. É

significativo qual tem sido a sua maior luta: não são as obras na baia mas sim as obras

de requalificação na praia dos Moinhos, que também começaram a ser projectadas no

verão de 2008.

FIG. 4-5. Protesto organizado pelo SOS Porto Formoso

contra as obras na praia dos Moinhos. Julho de 2008 (cedida pelo Regedor)

Nessa luta o movimento tem sido amplamente mediatizado, através de

blogs118, redes sociais (Facebook), protestos no local, entrevistas em canais regionais

de televisão, debates na rádio e artigos de jornais, através dos quais reivindicaram a

reavaliação do projecto119. Veja-se o Jornal Correio dos Açores, com data de 28 de

Março de 2009:

O ‘SOS Porto Formoso’ aceita que se melhore as condições na praia dos Moinhos, criando infra-estruturas que “proporcionem as devidas condições aos banhistas”, mas considera que o projecto camarário “é um atentado à paisagem natural da praia, e um profundo desrespeito e má gestão de dinheiro público”.(...) “O projecto revela uma grande falta de sensibilidade. Não se enquadra no local, tem

116 Mesmo blogger que anteriormente usava a alcunha de “Gnussen” (Ver p. 46): Jovem de 31 anos, natural de Porto Formoso e amigo de infância do Bruno Raposo (Regedor), é aficionado à leitura e escreve poesia desde jovem. 117 A paisagem que é objecto de admiração por parte dos citadinos corresponde, não a uma paisagem selvagem, totalmente desprovida de marcas de acção humana, nem tão-pouco inteiramente humanizada (Silva 2007b: 147). Trata-se, então, de uma paisagem intermédia entre a cidade e a natureza. 118 Para mais informação consultar http://sosportoformoso.blogspot.com/ 119 O Movimento chegou, inclusivamente a submeter o projecto a discussão na Assembleia Regional.

122

um enorme impacto visual, e irá degradar a paisagem original da praia, dando assim continuidade ao massacre que aquela praia bem como toda nossa costa tem vindo a sofrer nos últimos anos”, afirma-se numa petição que o movimento tem online. Acrescenta que, se a tendência é construir desta forma nos litorais urbanos, por serem zonas mais habitadas, poderiam muito bem ter o cuidado de manter os belos recantos desta ilha intactos porque senão, fazer publicidade dos Açores com slogans do tipo ‘Açores, um paraíso intacto’ passa a ser publicidade enganosa”.

São raras as pessoas que integram ou participam no grupo que vivem ou são

naturais da freguesia, sendo a maioria residentes nas cidades de Ponta Delgada ou

Ribeira Grande com um nível cultural alto e em muitos casos naturais de Portugal

Continental: nenhuma das pessoas que aparece na imagem 4-3 é natural dos Açores,

exemplificando assim o fenómeno do “resgate salvacionista”, isto é, quando pessoas

de fora se autoproclamam defensores e salvadores duma comunidade que não a sua..

Um dos seus principais organizadores, Filipe Tavares, originário de Ribeira Grande,

vive entre São Miguel, Lisboa, Espanha e Inglaterra e trabalha como técnico de som,

praticando o ambientalismo apenas como uma actividade secundária. Como indica

Sahlins (1993:390) “the leaders of modern movements of cultural revival are often

the most acculturated people, and most successful in the commercial world whose

values they ostensibly repudiate”. Estas pessoas são assíduos frequentadores da praia

dos Moinhos, não o sendo da baía dos pescadores, daí o seu afinco na defesa daquele

espaço do qual mais usufruem.

Em relação ao porto, embora as acções tenham sido menores e a luta muito

menos significativa, expressam uma posição clara contra a construção de um

“monstro” em cimento. Se os habitantes da freguesia que defendem a não intervenção

na baía o fazem pelo seu valor identitário e/ou pelo seu valor potencial como destino

turístico, os argumentos do SOS Porto Formoso centram-se apenas na preservação da

natureza da baía.

Partindo do principio de que o ser humano não é perfeito e de que temos inúmeros casos que demonstram perfeitamente essa imperfeição deveríamos parar e pensar que em vez de andarmos por aí a vandalizar a Natureza, devíamos antes preserva-la. Na minha opinião, muita falta de visão tiveram os Governantes e os reivindicadores desta porcaria que fizeram nesta baia que outrora era uma das mais pitorescas dos Açores. Um recanto sem igual, que deveríamos puramente ter preservado, protegido e investido na sua preservação. Em bom português, os Portoformosenses, os Pescadores e os Políticos "CAGARAM" no outrora PORTO FORMOSO. Filipe Tavares | 30/11/09 14:52 (v. pág. 117-n115)

123

Segundo este comentário, deixado pelo Filipe Tavares, a culpa não é só dos

políticos mas também da população. Este “ambientalista” não parece ter interesse em

perceber os argumentos do outro lado, pois para ele é apenas um caso de desinteresse.

Como já se viu até agora, nada mais longe da realidade. Veja-se apenas como

exemplo ilustrativo o argumento de peso expresso pelo pescador João Manuel (v.

pág.80) “A gente não vai penar na vida para as pessoas verem uma coisa linda.

Lindo é não penar”. Mas como aponta Prado:

Como costuma acontecer naqueles casos, na percepção de boa parte dos ambientalistas, as visões nativas em geral são consideradas como uma “não ecologia”, isto é, como uma “ausência de”, ao invés d “a presença de uma ecologia nativa” (etnoecologia) ou de uma visão peculiar. (2003:220)

Mas existe uma ecologia nativa? Para responder a esta questão importa

analisar o conceito de “natureza” à luz das diversas reivindicações, pois cada um

constrói os seus argumentos com base neste conceito. Vejamos três percepções da

natureza que estabelecem três posições diferentes sobre a intervenção na baía.

Parece claro que o movimento ambientalista SOS Porto Formoso se refere à natureza

como tudo aquilo que o homem não modificou: neste caso, a natureza é a baía e o

porto de barcos natural, pois nada foi modificado para a realização desta actividade.

Quanto ao castelo, o movimento ambientalista não se pronuncia. Mas se voltarmos à

discussão presenciada no miradouro no verão de 2006 (ver págs. 101-102)

encontramos outras perspectivas. O jovem César designa como “natureza” não só a

paisagem natural do porto mas também o “castelo”, em contraposição ao que é feito

pelo homem. Para o jovem, parece que os elementos do passado, como o “castelo”,

fazem parte da ordem natural das coisas. Perde-se assim a consciência da ligação do

“castelo” ao homem, e inclui-se numa paisagem atemporal, naturalizando assim a

cultura e o passado: as ruínas estiveram sempre aí, “desde o início dos tempos”, tal e

como a natureza. Ao igualar ambos elementos, o César faz do “castelo” um elemento

intocável, merecedor do respeito dos homens. Por último, o João Ribeirinha, opondo-

se as percepções anteriores, considera natureza tudo o que “Deus fez”, incluindo

assim tudo o que conforma o mundo, isto é, casas, estradas, barcos, cimento,

paisagens. Para o João Ribeirinha e para muitos outros que partilham a sua visão, “o

credo e a aura ecológica , que é apresentada pelos agentes externos como uma pressão

inquestionável, pode ser considerada tão invasora na visão nativa como as espécies

exóticas o são na visão dos ecologistas” (Prado, 2003:222)

124

Deve-se defender o que é belo e a baia do Porto Formoso encerra muita beleza. Mas sem os barcos, teria certamente menos encanto e sem a actividade piscatória perderia toda a sua mística. Não vale a pena fomentar “fundamentalismos ecológicos” do género não se mexe em nada, nem fazer “análises economicistas” o que seria descabido. A natureza é para ser utilizada de uma forma sustentada CLARO! JAGPacheco | 25/9/08 10:56 (v. pág. 111-n108)

Para o dirigente sindical Liberato Fernandes, que tem representado os

pescadores de Porto Formoso ao longo do desenvolvimento do projecto na baía, as

críticas ambientalistas estão baseadas em opiniões subjectivas e acusam uma falta de

informação. Segundo ele as obras estavam mais do que justificadas, mesmo sem a

aparição dos novos barcos, pois Porto Formoso sempre foi um porto de pescas e a

reivindicação da sua melhora era já antiga. Além disso, as obras permitiriam, a longo

prazo, dar uma nova valência turística à pesca. Neste contexto Liberato defende que

as obras foram feitas para ter o mínimo impacto: de pequena dimensão e

relativamente equilibradas, não há um sobredimensionamento da parte betumada e

deixam em aberto a recuperação futura do castelo. Na sua opinião, os movimentos

ambientalistas dão toda a importância às medidas com impacto visual, esquecendo

todas aquelas cujo impacto sobre o meio ambiente não é visível. As suas críticas

incidem assim neste tipo de ecologismo contemplativo, romântico e subjectivo.

Às vezes aparece uma reclamação sobre aquilo que se vê que é o impacto visual, que é subjectivo, quanto há outras que tem efeitos nocivos e não são visíveis como o efeito de estufa resultado da sobre queima de combustíveis devido a potências maiores nas embarcações, ou o sobre esforço de pesca não regulado, ou sobre um crescimento desmesurado do recreio náutico e as pessoas não comentam sobre isso. Sobre as questões do ambiente, não há falta de informação só da parte dos pescadores, também da parte dos ambientalistas é possível ver-se uma cruzada sobre uma coisa que é menor e passar ao lado outras que são atentados graves ao ambiente. É verdade que os pescadores tem um interesse e defendem o seu interesse, mas é um interesse mais ou menos visível. No caso dos movimentos ambientalistas, esses interesses não são tão claros. É impressionante ver que existem movimentos que criticam a pequena construção no Porto Formoso, e o silencio ensurdecedor que existe à volta do casino, que destruiu a única parte que existia há 20 anos atrás do povoamento primitivo de Ponta Delgada. Se pode ter uma visão ambiental que tenha em conta as pessoas, as características culturais das pessoas, a consciência de que é possível construir o futuro sem deitar abaixo o passado e que o passado até faz pate do futuro.

Poucos meses depois de começarem as obras, as críticas subiram de tom e pela

primeira os pescadores começaram a expressar o seu descontentamento com o que ia

aparecendo, ao ponto de em Novembro de 2008 aparecer no jornal Açoriano Oriental

o seguinte titular: “ Pescadores não estão satisfeitos com obras no porto de pescas”.

125

Os pescadores alegavam que, por a obra estar a ser feita tão perto da praia, a maré

baixa provocaria dificuldades de navegabilidade dentro do porto. Além disso, pela

pequena dimensão dos braços de cimento, o novo porto não poderia albergar mais do

que duas embarcações profissionais e duas de pesca desportiva. Mais uma vez, o

dirigente Liberato Fernandes explica o processo da seguinte maneira:

No Porto Formoso houve alguma contestação o que levou a que a gente requeresse uma segunda discussão e fomos lá com o governante e algum técnico. Depois de vários dias de mau tempo, nesse dia o tempo estava bom e só apareceram 2 ou 3 pescadores, pois o resto foi para o mar. A gente ainda andou atrás dos que tinham chegado à noite, e os pescadores eram do género; agora tanto me faz. O problema é que embora os pescadores conheçam bem o porto e os seus problemas, nem eles nem nós temos a competência técnica para discutir as obras, isso ultrapassa as nossas capacidades. Depois há a questão do dinheiro, a gente só tem esta verba para aqui, e a proposta que os pescadores faziam implicava o dobro. Em qualquer caso em Porto Formosos a contestação foi leve: não há nenhuma obra que se faça com a concordância de todos e isso não é nenhuma anormalidade.

Esta consulta “pública” não só não trouxe nenhuma alteração ao projecto

inicial, como ainda provocou novos atritos com os pescadores, uma vez que o resto

dos habitantes críticos com a obra se sentiram excluídos.

Em suma, um projecto que melhora as condições actuais do porto de pescas, mas que não é estruturante para a nossa freguesia, não projecta o Porto Formoso para o século XXI. Não podemos perder esta oportunidade única de desenvolvimento com a obra mais importante jamais realizada no Porto Formoso. Esta obra, devidamente executada, com um porto de boas dimensões e uma pequena marina com condições, mudaria o Porto Formoso para sempre. Seria uma aliança entre a pesca e o turismo, com empresas de whale-watching, de mergulho, de big-game fishing (pesca de corrico de grandes espécies) e todo o desenvolvimento económico e social que isso traria à freguesia. Seria a única marina virada a norte dos Açores! O Regedor | 15/11/08 16:04

4.5 Novo Postal120.

No fim de 2009 a obra estava terminada e o regedor colocava no blog o novo

postal. Como diz o mestre Eugénio: “A gente da terra não gostou. Para a gente do

mar foi melhor, mas eles preferiam que nós continuássemos a sofrer”121. O pescador

João Manuel, o mais velho da sua companha, acrescenta “há muitos habitantes que

não gostaram mas isso não interessa, porque eles não vêm para aqui trabalhar”. Para

120 Título do post colocado pelo Regedor no blog no dia 11/12/2009. 121 Como já se viu neste capítulo existem outros fatores que determinam as posturas a favor ou contra dos habitantes de Porto Formoso.

126

os “eles” citados pelo pescador (isto é, aqueles que não trabalham no porto), perdeu-

se a “beleza” da baía, e para muitos, “a sua identidade”. Perdera-se também o sonho

de o Porto Formoso se transformar na única marina da costa norte. Embora a obra

tivesse melhorado objectivamente as condições de trabalho para os pescadores, não

trazia nenhuma outra mais-valia, e mesmo para os pescadores tinha provocado novos

problemas: queixavam-se do esgoto directo da Ribeira Seca que agora poluía as águas

da baía, provocando alergias nas crianças que ainda tomavam banho lá, da escassa

navegabilidade dentro da baía nos períodos de maré baixa e do erro de cálculo na

inclinação da rampa de varagem que desviava os barcos contra o muro. Apesar de

tudo o pescador João Manuel afirma que “podia ser muito melhor, mas para aquilo

que já passei é muito bom”. Mas há muitos que não têm consolo:

Isto não é um porto de pesca, é uma "banheira" sem préstimo, uma destruição gratuita do meio ambiente e um desperdício de recursos financeiros do Estado. Nuno Barata122 | 12/12/09 11:13

Reacção: Isto é dinheiro da U.E portanto não prejudica em nada o nosso Governo. Mestre Eugénio

Amigo regedor devia ter tirado a fotografia com a maré vazia!! Viva os engenheiros das obras paradas porque com a maré vazia fica pouca água e parece um poço de rãs ou um lago de marrecos. Alguns pescadores merecem, mas destruíram a baía para isto! deus2deus | 12/12/09 02:06 (S/I)

A minha posição quanto a estas obras pode parecer ambígua, mas é clara: 1. Não se mexia em nada ou 2. Fazia-se uma coisa em condições, com os pontões mais fora (no inglês), cais de acostagem em espinha para permitir a vinda de empresas de whale-watching que trariam turistas à freguesia, etc. Assim como está parece uma coisa feita apena para calar a boca dos pescadores que ficam com um pouco mais de condições de trabalho. Esta obra não traz dinheiro à pobre economia da freguesia e não dinamiza o Porto Formoso. Não serve os interesses da freguesia O Regedor | 12/12/09 12:49

Agora não há nada nessa zona da freguesia que nos convença a voltar lá! É este o modelo de desenvolvimento que vocês gostam??? Vão fazer postais com o Porto de pescas depois das obras ou antes das obras??? Filipe Tavares | 1/12/09 11:51 (v. pág.117-n115)

122 Armador de pesca (de atum) de profissão, e também Ex-presidente do Conselho Regional e ex-vice-presidente da Comissão política do CDS-PP/Açores, cargos dos quais se demitiu em Fevereiro de 2008 por alegadas pressões do seu partido contra os comentários publicado no seu blog, “Fogotabrase”, considerado o decano dos blogs azoricos por ser o mais antigo e mais visitado da blogosfera açoriana.

127

Confesso que não sou adepto do betão, mas reconheço que sempre foram os pescadores que deram vida a esta baia. JAGPacheco | 11/12/09 12:13 (v pág.111-n108)

No fim das obras, o descontentamento entre os habitantes acabou por ser, em

maior ou menor medida, geral; até os pescadores faziam queixas, apesar de

reconhecerem a melhoria das condições do seu trabalho. Embora a pesca em Porto

Formoso continuasse a ser tradicional, a intervenção em cimento aproximou-a dos

paradigmas industrias, sem por isso garantir maior quantidade de peixe. Para muitos,

foi-se a mais valia escópica da baía, que funcionava como importante ponto de

atracção turística, mas mais importante ainda, como espelho simbólico onde a

população de Porto Formoso se revia.

Fig 4-6.Fotografia da baía de Porto Formoso, Fig 4-7. Fotografia depois das obras. Autor da

antes das obras (2005) (cedida pelo Regedor) foto - O regedor, 02/12/2009.

Quanto ao turismo, o pescador João Manuel acredita que apenas os habitantes

de Porto Formoso é que sentem a diferença, porque “quem viu antes e vê agora pode

sentir a diferença mas quem nunca viu acha bonita da mesma maneira”. O mestre

Eugénio ainda acrescenta que desde que as obras foram feitas, tem visto muitos mais

turistas a descer até ao porto, segundo ele, graças a facilidade do acesso actual,

refutando assim aqueles que defendem que a baía perderá assim turismo.

Quanto ao valor simbólico para a população da freguesia: Chega a ser sarcástico ter de aceitar que o Porto Formoso "deixou de existir"!. Quando digo que sou natural do Porto Formoso, lembro-me logo que, de natural o Porto Formoso nada tem. Pois bem! o que aconteceu no Porto só não mudou a paisagem, como também mudou a forma de eu pensar o nome da freguesia. Não consigo deixar de relacionar a antítese que existe entre o nome - Porto Formoso- com o actual Porto da "nossa" freguesia. Em poesia até daria um bom recurso estilístico, mas este Porto actual jamais dará um poema. Fica esta foto e outras tantas, a tornar intemporal um Porto genuinamente Formoso. Ps- É muito provável que a quantidade de fotografias tiradas, ao Porto da Freguesia, sofra um decréscimo. falange | 30/11/09 18:59 (v. pag. 119-n116)

128

Quanto ao nosso amigo falange, bem sabe que concordo com ele. O Porto "já não é" Formoso. Talvez se pudesse chamar: Porto quase Formoso ou Porto menos Formoso. Achei muito curioso o facto de referires o olhar para o fundo. É verdade. Na foto de abaixo olhamos para ela toda: vemos os barcos, a areia, queremos ver as pedras, o mar a aconchegar-se e também queremos ver o horizonte. Na foto de cima a tendência é olharmos para o horizonte e não olharmos para a parte inferior! Porque será?? O Regedor | 11/12/09 18:10

129

Conclusão Com o tempo, tudo se torna natureza... e para os

mais novos existirão fotografias de um Porto

genuinamente Formoso. falange | 25/9/08 11:34

130

Em Fevereiro de 2012 voltei, finalmente, a visitar o Porto Formoso: tinham

passado quatro anos e meio desde a última viagem à aldeia. Da última vez que estive

lá, no verão de 2007, ainda nem sequer tinha sido apresentado o projecto que depois

viria a ser construído, embora eu seguisse todo o processo através dos jornais, de

conversas telefónicas com os meus informadores e amigos, de emails com o

Presidente da Junta e mais tarde com o blog A Casa da Mosca. Por isso, apesar de

toda a análise que estava a fazer, esta seria a primeira vez que veria in situ o “novo

postal” da baía. Reconheço que senti uma certa apreensão a caminho do Porto

Formoso, já na estrada nova: tinha passado muitos bons momentos no cenário dessa

baía. Quando finalmente estacionámos, dirigi-me rapidamente para o jardim sobre o

porto. Fiquei parada por um longo momento, a olhar para a nova paisagem: a

primeira impressão foi desoladora. Eram duas da tarde e não havia nem pessoas no

miradouro nem barcos no porto: parecia uma aldeia fantasma. Para desviar o olhar,

decidi ir beber uma cerveja à loja do Mestre João, onde o Américo costumava passar

os tempos livres. Perguntei por ele, e como fui reconhecida quase de imediato,

mandaram o miúdo para o ir buscar a casa. Enquanto esperava, entrou o Sr. Emanuel

Faria, ainda Presidente da Junta de Freguesia. Quando me viu, fingiu não me ver, mas

mesmo assim fui falar com ele. Quando lhe perguntei sobre o processo das obras no

porto apenas respondeu: Nem quero ouvir falar disso, apanhei alergia a essas

obras!123 O Américo apareceu uns minutos depois (ainda bem!), tão bem disposto

como sempre: já tinha saudades deste homem!. Depois dos correspondentes abraços,

fui passear com ele e foi-me contando as novidades da aldeia e dos vizinhos. O velho

Adolfo acabava de voltar para Califórnia, o Manel Cabral estava muito doente, com

cancro, o “Beijinhos” estava agora a morar na Maia, na casa da filha.... Fomos

cumprimentar uns e outros, e todos eles me receberam, mais uma vez, calorosamente.

Entre conversas, a imagem da nova baía ia-se diluindo. Também a polémica se tinha

diluído: perguntei a opinião das pessoas sobre o novo porto. A resposta mais comum

foi um simples “Está bom”, outros pareciam apenas cansados dessa discussão. Parece

que a nova paisagem estava a ser assimilada pela população. Como nos lembra o 123 Nesse dia, combinei com ele uma entrevista a realizar uns dias depois, mas apesar das minhas tentativas nunca se chegou a realizar. A partir desse momento, o Sr. Emanuel Faria passou a evitar o nosso encontro.

131

blogger Silva, esta não foi a única modificação que a baía sofreu ao longo da sua

história, e como esta, todas as outras acabaram por fazer parte do imaginário da

comunidade, mesmo apesar da tristeza que provocaram na altura:

Falando com alguém mais antigo, que se lembra, de naquela muralha, só existia um pequeno muro de suporte, que quando de maré cheia, a malta mergulhava para o mar, não foi menos triste ver ali construir aquela muralha, que já não era possível, saltar de maré cheia. Hoje, que eu me lembre só de grande maresia é que ele bate naquela muralha. Quando da desistência da fábrica das Baleias, havia uma roda parecida com um carrossel que ficava ali entre o Castelo e o Porto, onde muitos dos rapazes passavam as tardes na brincadeira. Foi triste vê-la desaparecer. Meus caros amigos não deve ter sido menos triste, do que quando os nossos antepassados, se aperceberam de algo que tinha transformado este Porto, e que hoje, não podíamos ver destruído, porque nascemos e crescemos, habituados a vê-los, onde estão. Pois uma próxima geração, irá gostar daquelas transformações, que foram o Castelo, a Muralha, e aqueles "bonitos pontões", que já o denominam a "Lago dos Marrécos", apesar de não estarem, um pouco mais atrás, que era onde se devia ter feito, irão deliciar os seus olhos daquela baía formosa que é a do Porto Formoso. E como provavelmente já não irá existir a Casa da Mosca para verem quanto foi dito sobre aquelas transformações, que ião dar a sua graça a este porto, e que provavelmente outras virão e serão contestadas por eles!.... Meus amigos não há cura que com o tempo não se cura. Do Silva para a Casa da Mosca. Silva | 11/12/09 21:22 (S/I)

No mesmo sentido, o pescador João Manuel defende que as pessoas “Vão-se

acostumar com isto como se acostumaram com a outra. No fim vão acabar por achar

bonita, o costume é tudo”. Andava eu entretida nestas conversas quando chegou o

mestre Paulo Jorge, filho do Américo. Vinha de Ponta Delgada, onde tinha ido tratar

dalgumas licenças do barco. A vida estava a correr-lhe bem, o barco tinha dado boas

pescarias e com a nova doca, o trabalho tinha-se tornado muito menos pesado. Fui

com ele para o porto. Lá encontrei a companha do Barbosa (o mestre de Ribeira

Grande) a preparar os anzóis para as gamelas do palangre. O panorama tinha mudado

mas a alegria era a mesma: perante um fundo de cimento, no lugar da areia, os

pescadores, em animada conversa, faziam o seu trabalho enquanto se riam com as

anedotas e comentários que iam lançando. Já o dizia o blogger sono1 em Novembro

de 2008: A paisagem está humanizada mas não está descaracterizada!124 Eu pensava

para mim que os pescadores tinham feito do novo entorno a sua paisagem,

integrando-a nas suas rotinas como se tivesse sido sempre assim. Mais um sinal da

capacidade de adaptação das comunidades piscatórias. Falei com eles sobre o novo

porto: era melhor que nada, diziam, mas tinha muitas coisas que foram mal feitas.

124 Comentário do blogger sono1 publicado em 19/11/2008 às 13:22

132

Esta foi em geral a opinião que encontrei entre todos os mestres e pescadores de Porto

Formoso. Entretanto, apareceu o Mau Tempo, a quem conheci em 2005 como sendo o

pescador mais novo de Porto Formoso. Agora, com 21 anos, tinha acabado de casar e

de comprar um barco: seria o novo mestre de Porto Formoso, abrindo assim caminho

ao relevo geracional. Fiquei com eles à espera da chegada do “Bom Barqueiro”, o

barco do mestre Eugénio. Após ter presenciado inúmeras vezes o árduo trabalho de

deslizar um barco daquele tamanho pela areia até ao mar, queria presenciar a sua

chegada à doca seca. A pescaria tinha corrido bem e o barco vinha carregado.

Demoraram 15 minutos em descarregar o peixe directamente para a carrinha

refrigeradora, que tinha estacionado ao pé da doca. Depois de ter passado a noite no

mar, os pescadores vinham em alegre algazarra: já não lhes esperava o inferno que

significava varar o barco na areia. Fiquei surpreendida ao ver o mestre Ricardo no

barco. Mais tarde ele explicou-me que, após vender o seu barco, tinha voltado a

trabalhar na companha do seu primo Eugénio, complementando a pesca com os

biscates que iam saindo na construção ou na agricultura. Em 2007 o Ricardo tinha um

filho, o Maurício; agora tinha três. Convidou-me para ir à sua casa conhecê-los e

assim foi. Passei uma tarde bem divertida com toda a família, e mostrei algumas

imagens do documentário que estava a preparar. Os miúdos ficaram fascinados ao ver

ao seu pai no ecrã, mas o que mais lhes surpreendeu foi a imagem da baía como “era

antigamente”. Tinham passado apenas 3 anos desde que a obra mudara a paisagem

para sempre, mas eles, que tinham brincado anos e anos nesse lugar, já não se

lembravam de como tinha sido antes...

Com o tempo, tudo se torna natureza... e, para os mais novos existirão fotografias de um Porto genuinamente Formoso. Muitas vezes foi um Porto de inspiração para mim. Depois dessa "cirurgia plástica", todo o rosto de uma beleza ímpar irá continuar a fazer parte da minha vida. Na companhia da minha imaginação, com sentimento e raciocínio, vou olhar para uma diferente paisagem , mas vou receber a mesma inspiração. falange | 25/9/08 11:34 (v. pág. 121-n116)

Em todo o processo de intervenção na baía de Porto Formoso, desde as

primeiras reivindicações até à colocação da “última pedra”, manifestou-se a

complexidade do seu tecido social e da sua construção de identidade, levantando

questões problemáticas sobre a relação da contemporaneidade com o seu passado e

sobre os “complexos exibicionários” que caracterizam a modernidade. A este respeito,

Kaplan escreve:

133

Os sítios patrimoniais referem-se geralmente ao passado, mas o seu estudo revela lideranças contemporâneas, pertenças, redes, processos de decisão e estratégias adoptadas por grupos envolvidos na construção e/ou desconstrução de narrativas acerca do “nós”, do “outro”, do self e da identidade. (2006: 121)

Apesar da complexidade do processo e da rede de agentes envolvidos no

mesmo, a decisão final sobre a orientação que seria dada a baía coube aos poderes

regionais, que optaram por seguir as reivindicações dos pescadores, dando prioridade

à melhoria das condições de varagem dos barcos , mesmo quando se reconhece na

política a necessidade de desenvolver o turismo. Nunca iremos saber se a actividade

piscatória teria desaparecido, caso esta obra não se tivesse realizado: o mestre Ricardo

e o mestre Paulo Jorge afirmaram que sim (era apenas uma forma de pressão?), mas o

mestre Eugénio e o pescador Jeremias, da sua companha, disseram que nunca iriam

desistir, porque não sabiam fazer outra coisa. Independentemente disto, a verdade é

que os pescadores continuam, ainda hoje, ameaçados pela conjuntura externa, isto é, a

escassez dos recursos marinhos, o encarecimento dos combustíveis, a falta de relevo

geracional, e ainda a crise mundial. Como reconhece o Mestre Eugénio “o porto

melhorou mas o peixe está pior”. No fim a obra foi feita, mas ninguém ficou

plenamente contente, nem sequer os pescadores, que como já foi referido se queixam

do desconhecimento de quem a projectou. Embora seja de prever que uma obra não

seja do agrado de todos, perdeu-se uma oportunidade única de harmonizar

minimamente posturas, objectivos e sensibilidades, o que vem demonstrar, mais uma

vez, que em casos como este, as soluções não podem surgir apenas em função de

relatórios, políticas, visitas de engenheiros e estatísticas. Aplicar unicamente uma

perspectiva burocrática e económica a este processo foi um erro grave que teve como

resultado uma intervenção medíocre que parece manifestar a dificuldade dos poderes

regionais em apostar a sério nalguma coisa. Contra aquilo que geralmente acontece,

Kirshemblatt-Gimblett (1998) apela a que sejam os grupos e as comunidades quem

decida em cada momento aquilo que para eles é valioso, pois “ the tourism industry is

a business, and as far as industry is concerned, cultures is not” ( id..:142).

Na sua obra de 2006, Prats defendia ainda a intervenção do antropólogo como

gestor patrimonial e o trabalho de campo como metodologia capaz de analisar o

contexto e a memória local antes de levar a cabo qualquer acção patrimonial. Desta

maneira, prossegue Prats, a estratégia de desenvolvimento patrimonial assim

desenhada não dependeria apenas das esferas de poder nem estaria vocacionada

134

exclusivamente ao turismo nem a outra actividade económica. O trabalho do

antropólogo careceria de interesses ideológicos e aprofundaria o carácter identitário

do passado local. Como aponta Silva (2011) sobre os processos patrimoniais

Resta zelar para que os seus novos promotores se mantenham empenhados na exibição de expressões culturais e patrimoniais representativas da sua pluralidade sem, contudo, ceder à febre do património (Jeudy 1990) que o turismo pode inflamar: do ponto de vista meramente económico, e como nos ensinou a história, o princípio de exclusividade é um dos motores de arranque de muitos destinos turísticos, enquanto a banalização mata a atracção; do ponto de vista social e político é importante evitar que a mercadorização da cultura a congele e dissipe o seu valor identitário e potencialmente reivindicativo. É nestes equilíbrios instáveis que assenta o binómio turismo/desenvolvimento, tão propalado, mas tão difícil de conseguir. (id.:5)

Durante o meu trabalho de campo, não era a minha intenção interferir no

processo, mas antes perceber as motivações por trás das ideias que a polémica em

torno à intervenção na baía fez surgir entre os habitantes e interessados em Porto

Formoso, para tentar deduzir daí algumas das controvérsias atuais que nascem de

conceitos como “modernidade”, “progresso”, “natureza” , “património”, “turismo” e

“pesca”. Por isso é difícil saber se uma análise antropológica como a que se apresenta

aqui poderia ter tido alguma influência nas decisões finais adoptadas pelos poderes

regionais. Porém, quer-se acreditar que este trabalho possa ter algum interesse público

para o futuro desta aldeia, pela qual, depois de um trabalho efectuado ao longo de 9

anos, sinto uma forte afeição tanto pessoal como profissional. Tendo em conta que as

obras já estão feitas e sobre isso nada se pode fazer, acredita-se que esta comunidade,

pelo seu tamanho, pela sua localização, pelas suas condições naturais e infraestruturas,

mas sobretudo pelo carácter da sua gente, possa ser um lugar com potencial para

albergar um projecto piloto de pesca-turismo, pois esta é uma das prioridades do

Governo Regional em termos de desenvolvimento turístico. Neste sentido, a minha

esperança viu-se reforçada depois do recente encontro mantido em Bruxelas com o

director do Observatório de Turismo dos Açores, professor Carlos Santos, por motivo

da conferência “New Trends of Tourism in the European Islands”125. Nas conversas

informais do encontro tive a oportunidade de lhe explicar, sumariamente, o trabalho

que estava a desenvolver em Porto Formoso e a possibilidade de criar o projecto

piloto já referido, ao que ele respondeu com um enorme interesse, uma vez que, ele

125 Como já foi referido, a conferência teve lugar em Bruxelas nos dias 22 e 23 de Março de 2012, e foi organizada pelo “Observatory on Tourism in the European Islands” (OTIE).

135

próprio levou a cabo várias tentativas de reunião com os pescadores doutras

freguesias para implementar projectos similares sem sucesso. O conhecimento pessoal

e profissional desta comunidade, mas sobretudo, a observação e a análise das suas

motivações, permitem perceber melhor como é que os seus habitantes entendem a

freguesia e como é que a projectam no mundo. Estes dados, são sem dúvida uma

mais-valia no desenho de projectos de desenvolvimento que possam, se não criar um

consenso total, harmonizar as várias posturas, integrar as diversas sugestões e

perceber as diferentes argumentações, respeitando, até onde for possível, o carácter

poliédrico que caracteriza toda comunidade.

136

Epílogo

Poucas semanas depois de eu ter voltado a Porto Formoso, no dia 20 de Março

de 2012, apareceu na página do PSD Açores (partido da oposição) um comentário

cujo título era “Obras no Porto Formoso criaram atentado ambiental”. Na minha

última visita voltei a levantar a questão das obras no porto e falei com os pescadores,

a população em geral e com outros agentes envolvidos, como o dirigente sindical

Liberato Fernandes ou o historiador maiense Daniel de Sá. Tendo em conta que as

obras no porto tinham deixado de fazer notícia algum tempo atrás, questiona-se a

relação da minha visita com a publicação deste comunicado partidário, e pergunto-me

se foi apenas coincidência ou se a política, em ano de eleições, instrumentalizou esta

luta fazendo-a sua. A intenção deste comunicado não parece ser servir os cidadãos e

defender os seus direitos, mas antes levar o outro partido a reconhecer os seus erros:

basta o Governo e a oposição escolherem um lado para aumentarem a sua influência

sobre a população. Esta apropriação do conflito pela política interfere no processo de

assimilação da nova paisagem que, a bem ou mal, está a decorrer entre os habitantes

da aldeia: a publicação destes comunicados políticos levantaram de novo velhas

questões e as vozes dos habitantes começaram a ouvir-se outra vez, voltando aos

mesmos tópicos. É tendência da política discutir sobre o que já está feito, alimentar

conflitos passados e lançar recriminações: quando o conflito começa a dar sinais de

estar a ser digerido (ou pelo menos esquecido) pela comunidade, e quando, pela

impossibilidade de refazer ou destruir a obra feita, faz sentido trazer novas questões à

discussão do futuro de Porto Formoso, os poderes políticos irrompem outra vez no

processo, olhando para trás e adoptando apenas um lado, pondo assim novamente em

causa o frágil equilíbrio da comunidade.

Obras no porto de Porto Formoso “criaram atentado ambiental”126

Data: 2012-03-20

O PSD/Açores questionou hoje o governo regional sobre “o atentado ambiental ocorrido no porto de pescas do Porto Formoso”, onde foram feitas “obras orçadas em cerca de um milhão de euros, numa iniciativa que era muito aguardada pelos pescadores que, no entanto, estão

126 Acesso à notícia no link: http://www.psdacores.pt/noticias.php?id=1716

137

insatisfeitos com o resultado da mesma”, refere o deputado António Pedro Costa, num requerimento enviado à Assembleia Legislativa.

“Os pescadores estão insatisfeitos por não terem sido consultados na fase de elaboração do projecto, e por não ter havido uma fase prévia de discussão pública, isto numa obra que tem em vista proporcionar melhores condições para a prática da actividade piscatória”, lembra o deputado, que questiona a tutela “sobre a actual situação de atrofiamento, provocada pelo assoreamento do interior da baía, que resulta em pouca navegabilidade dentro do molhe, devido à reduzida profundidade quando a maré está vazia”, explicou.

“De acordo com os pescadores”, adianta o social-democrata, “o molhe devia ter ficado mais por fora, protegendo o molhe de pesca desportiva, que ficaria por dentro e do lado esquerdo. Ou seja, perdeu-se uma oportunidade de uma junção positiva entre a pesca e o turismo, na que seria a única marina virada a norte da ilha de São Miguel”, frisou.

O deputado quer saber se o governo regional “reconhece o erro técnico na solução encontrada para as águas residuais, que constitui um verdadeiro atentado ambiental, com impactos muito negativos na qualidade de vida, não apenas dos pescadores, mas da população do Porto Formoso”, refere.

Com efeito, “foi encontrada uma solução para a descarga dos efluentes do saneamento básico das moradias que utilizam a ribeira que desagua na enseada, e isto mesmo no centro do novo porto, visando as descargas domésticas. Isso constitui um verdadeiro atentado público, que urge ultrapassar. O governo regional tem de corrigir esse erro, que está já a prejudicar visivelmente a população daquela localidade”, concluiu António Pedro Costa.

Obras no Porto Formoso melhoram a segurança dos pescadores e a qualidade ambiental127

Ponta Delgada , 19 de Março de 2012

Face a alguns comentários surgidos sobre o porto de Porto Formoso, reafirma-se que a obra de requalificação do porto de pescas do Porto Formoso foi objecto de discussão prévia com a comunidade piscatória local e a sua forma final resultou da avaliação dos seus custos e benefícios, sendo que o preço da obra mais do que duplicariam com qualquer solução que avançasse para águas mais profundas, a que acresce a necessidade de resguardo da obra portuária numa zona da costa norte da ilha muito batida pelo mar.

Quanto ao assoreamento do porto, ele resultou do carreamento de materiais pela Ribeira do Lugar, em particular durante a obra de requalificação do leito e margens que está a terminar. Tratando-se de materiais finos, na sua maioria terras, espera-se que os mesmos sejam arrastados pelo mar no decurso dos próximos meses. Se tal não ocorrer será executada uma dragagem da bacia portuária. Para além disso, a obra de requalificação da Ribeira do Lugar incluiu a construção de uma bacia de retenção que produzirá uma redução do transporte de caudal sólido (terras e pedras) para valores residuais, tornando insignificante o assoreamento induzido pela ribeira.

A obra de requalificação da Ribeira do Lugar inclui a eliminação de todas as descargas de esgoto doméstico, ilegais à luz da legislação regional recentemente aprovada. Terminada a

127 Acesso ao comunicado no sítio do Governo http://www.azores.gov.pt/Portal/pt/novidades/Obras+no+Porto+Formoso+melhoram+a+seguran%C3%A7a+dos+pescadores+e+a+qualidade+ambiental.htm?lang=pt&area=ct.Por este link estar indisponível na actualidade, pode ser consultado em http://www.radioatlantida.net/noticias/2012/03/19/obras-porto-formoso-melhoram-a-seguranca-dos-pescadores-e-a-qualidade-ambiental-defende-governo-regional.php

138

obra a ribeira ficará totalmente livre de esgotos, não constituindo as suas águas qualquer problema para os utentes do porto.

São assim totalmente infundados os pressupostos em que assentam as críticas feitas, pois nem o porto poderia, sem custos proibitivos, ter outra configuração, nem a ribeira, com a conclusão da bacia de retenção de caudal sólido e a eliminação das descargas clandestinas que recebia, constitui qualquer ameaça para os utentes do porto ou será fonte de novo assoreamento.

No caso vertente está-se perante uma tentativa de desvalorizar as importantes melhorias que a consolidação do porto e a requalificação da Ribeira do Lugar trouxeram à população do Porto Formoso, criando condições de segurança contra cheias e eliminando um importante foco de poluição das águas, ao mesmo tempo que se criam melhores condições para os pescadores e outros utilizadores daquele porto. GaCS/SRAM

139

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Anexo 1

Filme documentário: Porto Formoso Amaya Sumpsi