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Universidade Estadual do Ceará - UECE Erika Belém Lima A TRAJETÓRIA PARA A BEATITUDE EM BENEDICTUS DE SPINOZA Fortaleza 2009

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Universidade Estadual do Cear - UECE Erika Belm Lima A TRAJETRIA PARA A BEATITUDE EM BENEDICTUS DE SPINOZA Fortaleza2009 Erika Belm Lima A TRAJETRIA PARA A BEATITUDE EM BENEDICTUS DE SPINOZA DissertaoapresentadaaoCursode MestradoAcadmicodeFilosofiadoCentro deHumanidadesCHdaUniversidade EstadualdoCearUECE,comorequisitoparaobtenodotitulodeMestreem Filosofia. Orientador: Emanuel ngelo Rocha Fragoso Fortaleza 2009 Universidade Estadual do Cear - UECE Mestrado Acadmico em Filosofia A Trajetria para a Beatitude em Benedictus de Spinoza Erika Belm Lima Defesa em: ____ / ____ / ______Conceito Obtido: _________ Nota Obtida: ____________ Banca Examinadora _________________________________________________________ Prof. Dr. Emanuel ngelo da Rocha Fragoso _________________________________________________________ Prof. _________________________________________________________ Prof. Dr. Joo Emiliano Fortaleza de Aquino Fortaleza 2009 Dedicoessetrabalhoaomeupai, Francisco, por ele ter estimulado em mim o gosto pela leitura, pelo conhecimento. Eporsaberqueeleestariaduplamente feliz, se pudesse estar aqui... AGRADECIMENTOS Emprimeirolugaraosmeusfilhos,IngrideIghor,poisambosforamfonte demotivaoeincentivonosmomentoscruciaisondeodesnimoeocansao quase me venceram. inestimvel ajuda e colaborao de minha me, Rosa. Exemplo de amor, dignidadeecoragemquefoiumfarolameguiareafortalecermeunimoem todas as fases da minha vida. Aosmeusirmos,Hernandes,RicardoeCarlosIranporseremoporto seguro que eu pude recorrer em todas as horas que precisei. umapessoamuitoespecialquefoifontedecarinho,compreensoe aconchego. Meu querido Gabriel, pelo apoio e abnegada dedicao. minha prima-irm-comadre e amiga Aninha, referncia de determinao e de conquista pelo esforo pessoal. Colaborao e ajuda imprescindveis. EmespecialmeuorientadorProf.Emanuel,pelasuaprestimosaajudae apoio,tambmagradeosinceramenteaoProf.Emilianopelosapontamentose generosa contribuio para o desenvolvimento dessa pesquisa. minhaamiga Neidinha,grata surpresaque o mestrado mereservou, por estaraomeuladonas fasesmaisdifceisetambmnosmomentosalegres,que s mesmo a amizade sincera capaz de possibilitar.Estalistaficariaextensademaissefossemencionaronomedetodasas pessoasquemeajudaramnodecorrerdessetrabalho,quemeestimularam,me auxiliaram de uma forma ou de outra, mas cito em especial meus amigos queridos que conquistei no mestrado tais como Ubiratane, Milena, Ana Alice, Mari, Rafaela etambmaquelesqueconheciduranteesteperodocomoPatrick,Rossana, Galba e todos os outros que direta ou indiretamente estiveram comigo. Aosmeusamigosdejornadaquetantomeincentivarametorcerampara que eu conclusse este trabalho. Aos meus professores do mestrado e aos solcitos e dedicados funcionrios da secretaria. Efinalmenteagradeoaorgoqueatravsdaconcessodebolsade estudo viabilizou financeiramente minha pesquisa, a FUNCAP. RESUMO Talvez uma das temticasmais instigantese mais desafiadoras em Spinoza seja justamenteaquetratadafelicidadehumana,poissubvertecompletamentea ordemaqueestvamosacostumados.Apropostadessetrabalhoesboaro itinerrioapontadopelofilsofoparaohomemalcanarafelicidade.Noo conceitoqueusualmenteempregadoparadesignarfelicidade,queaconfunde exclusivamente com contentamento, mas a felicidade em seu mais alto grau e que resultado do esforo contnuo e dedicao incansvel, a qual, Spinoza chama de beatitude.Traaremosopercursoqueoautorindicacomoonicopossvelao homemquebuscaabeatitude.Estepercursoummergulhonasubjetividade humana,dondeohomempercebe-secomoparteintegranteenecessriada naturezaoudeDeus.Umaexperinciacapazdepossibilitaralibertaodo homem dos grilhes que o mantm sob o jugo da ignorncia e da subjugao. Palavras-chave: Beatitude - Homem - Deus - Itinerrio -Liberdade.

ABSTRACT

Maybe one of thematic the instigating and most challenging ones in Spinoza isexactlytheonethatdealswiththehappinesshumanbeing,therefore subvertcompletelytheordertheonethatwewereaccustomed.The proposalofthisworkistosketchtheitinerarypointedforthephilosopherit mantoreachthehappiness.Notitconceptthatusuallyisusedtoassign happiness,exclusivelyconfuses thatitwithcontentment,butthehappiness initshigherdegreeandthatheisresultedofthecontinuouseffortand untiring devotion, which, Spinoza beatitude flame. We will trace the indicated passageasonlythepossibleonetothemanwhosearchsthebeatitude. Thispassageisadivinginthesubjectivityhumanbeing,ofwheretheman perceivesitselfasintegrantandnecessarypartofthenatureorGod.An experiencecapabletomakepossiblethereleaseofthemanofthefetters keep that it under the yoke of the ignorance and the subjugation.

Key Words: Beatitude - Man - God - Itinerary - Freedom LISTA DE ABREVIATURAS CM - Appendix, continens Cogitata Metaphysica; Pensamentos Metafsicos E-Ethicaordinegeometricodemonstrata;ticademonstradamaneirados gemetras EP - Epistolae; Correspondencia KV-KorteVerhandelingvanGod,deMenschemdeszelfsWelstand;Tratado Breve TIE - Tractatus de Intellectus Emendatione; Tratado da Correo do Intelecto SO-SpinozaOpera,imAuftragderHeidelbergerAkademiederWissenschaften Herausgegeben von Carl Gebhardt.A - apndice Ax - axioma C - corolrio D - demonstrao Def - definio Ex - explicao Int - introduo L - lema P - proposio Post - postulado Pref- prefcio S esclio SUMRIO INTRODUO 10 I A BEATITUDE15 I.1 Da Felicidade15 I.2 O Paralelismo22 I.3 Do Conhecimento25 I.4 A Suprema alegria36 II. OS AFETOS41 II.1 Uma Anlise dos Afetos41 II.2 Da Paixo a Ao 51 II.3 O Conatus54 II.4 A tica dos Afetos56 II.5 A Potncia 61 III. DE DEUS66 III.1 Consideraes sobre o mtodo de exposio66 III.2 Deus Substncia nica76 III.3 Os Atributos79 III.4 Os Modos79 III.4.1 Modos infinitos imediatos84 III.4.2 Modos infinitos mediatos84 III.4.3 Modos finitos85 CONCLUSO88 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 92 10 INTRODUO QuandoofilsofoholandsBenedictusdeSpinozaempreendeusuadura jornadadequinzeanos,naelaboraodesuaobramaisimportante,atica, talveznoimaginassequeasrepercussesdasidiascontidasnesselivro assumissemumcartertoextraordinriocomooquepdeserobservadoao longo de mais de trezentos anos. Alvodecrticasferozes,aticaconstitui-seemumdoslivrosquemais despertam o dio e a indignao de diversos segmentos religiosos, tais como: as naes judaca, catlica e protestante. Portanto, longe de ser uma obra indiferente ou que possa ser enquadrada num contexto mstico, uma exaltao natureza, aohomemeatudoquepossibiliteoplenoconhecimentodesimesmoedo mundo. precisamenteestelivroquepretendemosescrutinaraolongodeste trabalho, examinando, especificamente a problemtica da beatitude e de tudo que nos afasta ou nos leva at ela ser o tema investigado nessa pesquisa. Buscamos traar o percurso demonstrado na tica para o homem atingir a beatitude, e desse modo necessitamos fazer diversos recortes imprescindveis para a demarcao da temtica. Paraumacompreensodoselementosfundamentaisdopensamentode Spinozarelacionadoquestodabeatitude,necessriocontextualizaroautor no seu tempo, mostrando como o perodo histricoe o local onde o mesmo vivia influenciaramsuasidias.OdesenvolvimentodopensamentodeSpinozaest diretamente ligado aos fatos correntes de sua vida.Ahermenuticadosistemaspinozistanopodeperderohorizontedas circunstnciashistrico-culturais,nosquaisopensamentodeSpinozase 11 desenvolveu,operodomodernoquefoimarcadopelaimpossibilidadedo pensamento livre. Cauteloso,SpinozatinhaconscinciadequevivianumaRepblicacom direitosrestritoseque,aomenorsinaldeameaascrenasvigentes,seria perseguidoepunidoimpiedosamente.Mesmocomtodocuidadoseutalentono deixou de ser notado em Amsterd e ele passou a ser ainda mais hostilizado pelos judeus,encontrando,apenasentrepessoasdeoutroscredos,amigosqueo seguiram at o final de sua vida. Spinozadesenvolveuseupensamento num pasdividido entrea influncia deLuteroeadeCalvino.Haviaaindaoscatlicoseosjudeus,bemcomoos liberais e os conservadores. Foi a partir dessa miscelnea cultural e religiosa que ofilsofoholandsteceuumdosmaiscomplexossistemasfilosficosdaera moderna.Sistemaestequepassousculossendoencaradocomonefastoe perigosoparagrandepartedoscrentes.Somentealgunss11culosdepois1que foirevisitadopelospensadoresalemestaisquais:Jacobi,Novalis,Lessinge Goethe e, por conseguinte, reabilitado diante da comunidade acadmica.Comosetratadeumavastarededetemticasnaobradoautor, importante salientar que esta pesquisa abrange predominantemente as Partes III e IV da tica, mas tambm sem deixar de recorrer a outras partes que a compem e queservemdeapoioparaodesenvolvimentoeanlisedesuasidiasnoque concerne questo do itinerrio rumo beatitude. Noprimeirocapituloiniciamoscomaquestocentraldessetrabalho,a beatitude.InvestigamosoconceitodebeatitudeemSpinozaeverificamosque paraestepensadorbeatitudeomaisaltonveldefelicidadeaqueumhomem podeaspirar,ouseja,abeatitudeomaisaltognerodeconhecimentoque podemosalmejar.Umajornadaquepassapeloconhecimentodesimesmoeda natureza. 1DepoisdoIluminismo,ainflunciadeSpinozatorna-semaisaberta.CitarSpinozadeixadeser crime. Spinoza torna-se mesmo um profeta do mundo secular apesar de ser pouco lido, mal lido, ounolidocomoumtodo[...].EmbuscadeSpinoza:prazeredornacinciadossentimentos, Antonio Damsio. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 271 12 Nestesentido,conhecimentoebeatitudesoindissociveis,poiso conhecimento intuitivo a via que leva beatitude. Somente quando intumos que somospartedanaturezaefrutosdeumaredecausaldeacontecimentos transpomosapercepolimitadadeunidadeenospercebemosna universalidade.Aonosenxergarmoscomopartedotodo,ascendemosanveis mais elevados do saber e nos libertamos da influncia exclusiva da imaginao. noterrenodaracionalidadeounosegundognerodeconhecimentoquenos afirmamoscomoserespensantes,distantedeserapenasummeroobjetodo acaso.Nestecaptulodemonstramosoquantoofilsofofoiumferrenho combatentedaignorncia,sempremarcadapelovisdasuperstioedo misticismoexacerbado.Nessesentidoelefoiumestudiosodacondiohumana na sua totalidade. No segundo captulo, acompanhamos Spinoza em sua anlise dos afetos e detodaarepercussodestesemnossavida.Comoosafetosinterferem diretamenteemnossocotidiano,nopodemosprescindirdeumainvestigao maisacuradadesteassunto.Logo,quandonosdispusemosadescrevera trajetriaparaatingirmosabeatitudepercebemossernecessriocompreendera abordagemspinozistadessatemticaqueestdiretamenterelacionada beatitude. Empreendemos umaanlise dosafetos fundamentados na Parte III da tica,nointuitodeestabelecerporque-segundoofilsofo-tantopodemser causa de alegria, como de tristeza, de felicidade ou de infelicidade. ParaSpinoza,somospassveisdesofreraaodosobjetossobrens. Quando no compreendemos as causas, somos meramente passivos, pois somos apenascausaparcial,eaocontrrio,quandoconhecemosaquiloquenosafeta, somos causa adequada, logo, agimos ou conquistamos nossa autonomia. Possumos a potncia de agir e de cultivar nossa autonomia, mesmo sendo modos finitos de Deus e tendo limitaes; podemos serativos, pois possumos o que Spinoza chamou de conatus, que vem a ser o esforo para perseverar no ser. Desejoeapetitequenosestimulamalutarpelasobrevivnciaeabuscara alegria, que o motor que nos impulsiona ou que eleva nossa perfeio. 13 O conatus a essncia atual do ser. fora vibrante que tanto pode estar ligado s paixes tristes como as alegres. Ao cultivarmos a autonomia, gerindo de modo inteligente nossos afetos, fortalecemos o nosso conatus e nos aproximamos doconhecimentointuitivoquefavoreceabeatitudeoualegriasuprema.Quando nosmovimentamosexclusivamentepeloterrenoinsegurodapassionalidade, ficamos a merc do conhecimento mutilado e das paixes que enfraquecem nosso conatus e nos escravizam. NoterceirocaptulotrataremosdotemaDeusedaformacomoSpinozao afirmacomoSubstncianica.EmSpinozaacompreensodaunicidadeda Substanciafatorimprescindvelparaohomematingirafelicidadesuprema. Portanto,discorreremossobreessatemticatendosemprecomohorizonteo DeussivenaturaapresentadonaParteIdaticaouaindaoDeussalvficoda Parte V da referida obra. Estaproblemticaontolgicaconsideradacomoumadasmais complexas do sistema spinozista, portanto, ser investigada a partir dos elos que o filsofo designou chamar de Substncia e o real concreto, atravs de um estudo das construesprogressivas da mediaes entre Deus e os homens, chamadas deatributosedemodoscomoestodescritasnatica.Essasmediaesso apresentadas de forma sinttica. Devido impossibilidade de esgotar to vasto e controvertido assunto, deixaremos para uma pesquisa posterior. O itinerrio apontado por Spinoza para a beatitude traado neste trabalho demonstrandoqueparaofilsofoholandsoDeusSubstncianoomesmo Deusdatradioteolgica,poisnotranscendente.ODeusapresentadopor Spinoza na tica vai tornando-se mais inteligvel no decorrer das partes. Na Parte IpercebemosqueSpinozabuscafundamentarracionalmenteaexistnciada Substancianica,posteriormente,passadeumserpuramenteabstratoparaum Deus queama a si e, portanto,ama tambmtodos os modosproduzidos porele como est expresso na Parte V. pelaviagnosiolgicaperpassadapelaticaquepodemoschegar beatitude.EsteitinerrioaviadeamoraoDeus-Substnciaabsolutamente 14 infinitoqueSpinozademonstranaparteV.Ohomemscapazdeatingira supremafelicidadeapssuperarapassionalidadeprimitivaecompreender-se como parte da totalidade e, portanto, inserido na universalidade que Deus. 15 I A BEATITUDE I.1 DA FELICIDADE As coisas belas so difceis. Plato PerguntarpelosentidodebeatitudeemSpinozapenetrarnumavasta rede deenunciadosestreitamente interligados. Enunciadosestesqueperpassam todo o pensamento do autor, como se observa em sua obra fundamental: a tica.Apartirdaanlisedessaobra,pretendemosinvestigarnestapesquisacomoo filsofoholandsexpeedemonstraapossibilidadedechegarmosverdadeira felicidadeapartirdaanlisedessaobra.Nessaperspectiva,buscamostraaro itinerrio que Spinoza aponta para ser percorrido pelo homem que almeja atingir o maisaltograudefelicidade.Iniciaremosfundamentandooconceitodebeatitude para esse filsofo.NaParteVdatica,Spinozatratadeformamaisespecficadotemaque perpassatodaessaobraeaqueofilsofochamadebeatitudedamente.o desfechoqueesteautordconstruodeumsistemacomplexo,emque ontologia,gnosiologiaeticaformamumaunidadeeestointrinsecamente relacionadosformaodoprpriohomem.Abeatitudesupremaalegriaou felicidade,segundopropeMariaLuisaR.Ferreira2otermodolivroVede todatica.Essabuscacontnuaoprpriomotorquelevaohomemaagir, emboranagrandemaioriadasvezesmotivadoporidiasinadequadas;ainda 2FERREIRA,MariaLuisaRibeiro.UmaSupremaAlegria:escritossobreEspinosa.Coimbra: Quarteto, 2003, p. 170. 16 assim,afelicidadeemseumaisaltograuqueSpinozaclassificoucomo beatitude ou a prpria virtude. AindanoPrefciodaParteVdatica,Spinozacriticaenfaticamente Descartes e sua afirmao de que possvel dominar os afetos pelo adestramento damenteoucontroledamentesobreocorpo.Spinozaextremamentecrtico dessaconcepocartesianadequeoshomenspossuemcorpoementeunidos por um rgo, que fica acima do crebro, chamado glndula pineal3. [...]Comefeito,eleafirmaqueaalma,ouamente,estunida, principalmente,aumacertapartedocrebro,maisespecificamente, chamadaglndulapineal,pormeiodaqualamentesentetodosos movimentos que se produzem no corpo, bem como os objetos exteriores. [...]4(EV Pref) Ofilsofoholandsafirmacategoricamentequeamenteafetada simultaneamentepelocorpoenoquehajaalgumtipodesupremaciadeum sobreooutro5.Refutatambmaidiacartesianadevontade6,afirmandoqueo filsofo francs se equivocou ao afirmar que vontade do corpo pode ser controlada pela vontade da mente. Spinoza considera que a nica forma de regular os afetos atravsdoplenoconhecimentodessesafetosedesuascausas;logo,pela intelignciaenopelavontadequeoshomensexercemcontrolesobresuas afeces. Longe de afirmar que a mente do homem possui poder sobre seu corpo, 3Quehnocrebroumapequenaglndulanaqualaalmaexercesuasfunesmais especificamentedoqueasoutraspartes.DESCARTES,Ren.AsPaixesdaAlma.Trad. Rosemary Costhek Ablio. So Paulo: Martins Fontes, 2005. Art. 31. p. 49. 4[...]Namstatuitanimamseumentemunitampraecipueessecuidamparticerebri,glandulae scilicet pineali dictae, cuius ope mens motus omnes, qui in corpore excitantur, et obiecta externa sentit, quamque mens eo solo, quod vult, varie movere potest. [...] (EV Pref) 5 Tudo aquilo que acontece no objeto da idia que constitui a mente humana deve ser percebido pelamentehumana,ouseja,aidiadaquiloqueacontecenesseobjetoexistir necessariamentenamente;istoseoobjetodaidiaqueconstituiamentehumanaum corpo, nada poder acontecer nesse corpo que no seja percebido pela mente. (EII P XII) 6 Em As Paixes da Alma, art 18, Descartes afirma que temos dois tipos de vontades: umas so aesdaalmaeoutrassoaesdocorpo,equesoasaesdaalmaquedeterminamas aes do corpo.17 comodefendiaDescartes7,oautordaticaobjetaestatese,ratificandoa importnciadoconhecimentoparaqueohomempossaserdefatolivre,possa alcanar o mais alto grau de felicidade a que o homem capaz, o amor intelectual a Deus ou Beatitude.OpercursoparaohomemalcanaraBeatitudetraadonaticanuma ordenao geomtrica que tem como base o conhecimento de Deus, do homem e deseusafetosatconquistaraliberdade.Contudoimportanteressaltarque liberdadenopodeserencaradaemSpinozacomovontade,mascomo autonomia, pois o sentido de liberdade para este pensador diverge completamente do sentido de liberdade para grande parte da tradio filosfica.Spinozarechaaqualquerpossibilidadedeatosvolitivos.Segundoeste autornopossvelaohomemdeliberarsobreabsolutamentenada,poistudo sempredeterminadoaagirdeacordocomsuaprprianatureza.Ohomemno temaopodeescolher,poissuasaesseguemnecessariamenteaordem natural. Portanto, no pode arbitrar sobre aquilo que quer, mas pode desenvolver a capacidade de buscar aquilo que mais favorece sua felicidade.Somentepeloconhecimentodascausaspodemosfavorecernossa autonomia,buscandosempreaquiloqueaumentanossapotncia,pormjamais escolherumadeterminadacoisacomopuroatodevontadequeseimpecomo aodeliberadadaracionalidadehumana.EmSpinozaliberdadeganhaoutro contornomuitodiverso,poislongedeserumaafirmaodavontadeuma determinao da necessidade da natureza. Anecessidadedeconhecertambmseimpeaohomemeomesmo capazdeadquiriresteconhecimentoporquesuapotnciapermiteisso.Ora, medida que o homem aprende a pensar adequadamente menos influenciado por forasexternasnasuanaturezaetorna-seautnomo.Sobreissoofilsofo adverte: 7 Que no existe alma to fraca que, sendo bem conduzida, no possa adquirir um poder absoluto sobre suas paixes. DESCARTES, op. cit., Art. 50, p. 64.18 Aforaeaexpansodeumapaixoqualquer,assimcomosua perseverananoexistir,sodefinidasnopelapotnciacomquenos esforamos por perseverar no existir, mas pela potncia, considerada em comparao com a nossa, da causa exterior8. (EIV P 5) Todavia,Spinozaadvertequerduoocaminhoemdireoasabedoria, masquenoimpossvelalcan-la,sendonecessrioesforoemuita dedicao.Asupremaalegriaqueosbiodesfrutaemcomparaoeterna insatisfaodoignorantecolocadapeloautorcomoestmulofundamentale como algo a ser almejado por todos os homens. O caminho apontado para atingir averdadeirabeatitudetambmnomeadocomoocaminhodasalvaoouda liberdade: [...] Torna-se, com isso, evidente o quanto vale o sbio e o quanto ele superioraoignorante,quesedeixalevarapenaspeloapetitelbrico[...]9.(EVP 42 D S) Nestesentido,beatitudeeconhecimentoestointrinsecamenteligados. ParaSpinozanohfronteirasentreagnosiologiaeatica,dondeo conhecimento caminho seguro para aprendermos a gerir nossas emoes e no sofrerainflunciaexternadeformatodanosacomocostumeiramenteestamos habituados.A proposta spinozista de ruptura com esse velho padro ou comportamento desafiadora,poisestimulaumaliberdadeinteriorcalcadanareflexoena mudanadepadresdepensamentoedeidias.tambmapossibilidadede superao do homem transitrio no homem eterno, porque este j compreende a essncia de Deus e j se percebe parte dessa essncia e, portanto, age e pensa tal qual Deus.Longe de ser uma fuso mstica ou asctica essa unidade entre o homem e Deus,sobretudo,umacompreensodotodo;umaafirmaodapotncia humanacomoextensodapotnciadivina.Mascomoesseprocessoleva beatitude?Pelainternalizaodanaturezadivinaouaindapelaviado 8Visetincrementumcuiuscumquepassionis,eiusqueinexistendoperseverantianondefinitur potentia,quanosinexistendoperseverareconamur, sedcausaeexternaepotentiacumnostra comparata. (EIV P V) 9[...]Exquibusapparet,quantunsapienspolleat,potiorquesitignaro,quisolalibidineagitur.[...] (EV P XLII D S)19 conhecimentointuitivo.Essaformadepercepojestemancipadadognero imaginativo, sendo uma cincia intuitiva ou terceiro gnero do conhecimento como est descrito na Parte V da tica, sendo um verdadeiro apelo de salvao dirigido aos sbios: AvirtudesupremadamenteconsisteemconheceraDeus[...]ouseja, em compreender as coisas por meio do terceiro gnero do conhecimento [...],virtudequetantomaiorquantomaisamenteconheceascoisas por meio desse mesmo gnero [...]. Por isso quem conhece as coisas por meiodessegnerodeconhecimentopassasupremaperfeio humanae,conseqentemente[...],afetadopelasupremaalegria,a qual[...]vemacompanhadodaidiadesimesmoedesuaprpria virtude [...]10. Todavia,numafilosofiadeterministacomoadeSpinoza,resta-nossaber comopoderemosbuscaressasupremaalegriasesomoslimitadospelanossa natureza, que toda determinada pela nossa potncia. Encontrarmos o equilbrio entre necessidade e liberdade talvez seja um dos grandes desafios a que Spinoza se disps a expor na tica. Coordenar nossas aes de forma a embas-las sempre pelo uso da razo e negara dimensode passionalidade e conflito oque constitui o serhumano, segundosalientaBennett11.Noentanto,Wielpahl,outrointrpretedeSpinoza, destacaqueosentidodeunidadeopilardosistematicoSpinozanoeques conseguimoscompreenderosentidoverdadeirodestesistemaquando entendemos que somos uma s mente e um s corpo e que no h nada mais de tilaohomemqueoprpriohomem:Somosconscientesdenossasaes, porm, ignorantes de suas causas. [...] todos somos como uma s mente e um s 10 Summa mentis virtus est Deum cognoscere [...], sive res tertio cognitionis genere intelligere [...]; quaequidemvirtuseomaiorest,quomenshoccognitionisgeneremagisrescognoscit[...]. Adeoquequireshoccognitionisgenerecognoscit,isadsummamhumanamperfectionem transit,etconsequenter[...]summalaetitiaafficitur,idque[...]concomitanteideasuisuaeque virtutis [...]. (EV P 27 D) 11UnEstdiodeLaticadeSpinoza,Trad.JosAntnioRoblesGarca.Mxico:FondodeCultura Econmica, 1990. p. 349. 20 corpo.Nadamaistilaumserhumanoqueoutroserhumano 12.Este comentadordefendeaindaquenossacegueiraparaenxergarmo-noscomo parte integrante de uma natureza nica que Spinoza se referia, pois tendo corpo e pensamento herdados de outros seres humanos, no podemos olvidar que somos causadoreseaomesmotemposomostambmcausa.Portanto,menteecorpo para Spinoza, segundo a viso de Wienpahl fundem-se numa s mente e num s corponumaredecausalderelaesquesoestabelecidasnodecorrerdetoda existncia humana13. Naproposio29daParteIIIdatica,Spinozadefendeaidiadequeo homemirremediavelmenteinfluenciadopelomeioemqueestinseridoeque agedeacordocomospadrescaracterizadoscomoaceitveis.Nsnos esforaremos,igualmente,porfazertudoaquiloqueimaginamosqueoshomens [...]vemcomalegriae,contrariamente,abominaremosfazeraquiloque imaginamosqueoshomensabominam(EIIIP29)14.Seriaessauma necessidadedesermosaceitos?Spinozaenfatizaquensnosesforamospara fazeraquiloqueaprovadopelosdemaisenecessrioparaaconvivnciaem sociedade;quetratamosdecultivaressesvaloresaprovadospelasociedade repassandosgeraesposteriorescomoformadepreservartradiese costumesculturalmenteaceitosemnossomeio,ouaindaposturastidascomo moralmentecorretas,logo,capazesdeasseguraraconvivnciadentrodeuma sociedade. Adificuldadedefazeroquemoralmentedeterminadopelasnormas vigentes na sociedade em que vivemos se d pelo fato de todos ns tendermos a nosperseverarnoser,ouseja,pelonossoconatusOesforopeloqualcada coisaseesforaporperseveraremseusernadamaisdoqueasuaessncia 12Somosconscientesdenuestrasacciones,peroignorantesdesuscausas.(...)TodosSomos comoumasolaMenteyumsoloCuerpo.Nadaesmstilaumserhumanoqueoutroser humano. Paul Wienpahl. Por um Spinoza Radical, p. 139 (Traduo nossa). 13 Ibid., p. 142. 14Nosidomneetiamagereconabimur,quod[...]hominescumlaetitiaaspicereimaginamur,et contra id agere aversabimur, quod homines aversari imaginamur. (EIII P XXIX) 21 atual(EIIIP7)15queumaforaimanentequeimpulsionaohomema conservarsuaexistncia.Aquesto:massenossatendnciade autoconservaoestivercontrariandoanoodedeverdemarcadopelonosso meio,comoagiremos?Serqueconfrontaremosnossaprprianaturezana tentativa de fazer aquilo que nos imposto?UmatentativaderesponderaessasinterrogaessednaparteVda tica,quandoSpinozasalientaqueaignornciaaresponsvelpelosnossos equvocosesofrimentosequesnossentimoscoagidosaagircontranossa naturezaporqueaindadesconhecemosoqueengendranossasemoes.Em outras palavras, o conflito de interesses existe porque ainda somos incapazes de agirorientadospelarazo,poissoaspaixesquemotivamnossaformade conduziravida,porissonecessrioaregramoral,anorma,aleipara conseguirmosnosrelacionarunscomosoutros.Essaautoridadeseria desnecessriasenonosmovimentssemosquasequeexclusivamenteno crculodaspaixes.Soessaspaixesqueimpedemohomemdeascendera esferas mais altas do conhecimento. Contudo,comoaindanonosmovemosnoterrenosegurodarazoe sofremosainflunciadaspaixes,Spinozaadvertequeaindanecessitamos elegerumsistemadeleisedenormasparanosguiarmosoupararefrearmos nossos impulsos. Conforme a razo no chega, que chegue o dever normativo ou imperativo moral. [...]Portanto,omelhorquepodemosfazer,enquantonotemosum conhecimento perfeito de nossos afetos, conceber um princpio correto de viver, ou seja, regras seguras de vida, confi-las memria, e aplic-lascontinuamenteaoscasosparticularesque,comfreqncia,se apresentamnavida,paraquenossaimaginaoseja,assim, profundamenteafetadaporelas,demaneiraqueestejamsempre nossa disposio16 [...]. (EV P 10 S) 15Conatus,quounaquaequeresinsuoesseperserverareconatur,nihilestpraeteripsiusrei actualem essentiam. (EIV P XVIII S) 16[...]Optimumigitur,quodefficerepossumus,quandiunostrorumaffectuumperfectam cognitionemnonhabemus,estrectamvivendirationemseucertavitaedogmataconcipere, 22 OmeioapontadoporSpinozaparaohomemalcanarabeatitudepassa essencialmentepelarazo,poissarazocapazdefornecerossubsdios necessriosparaumalibertaoprogressivadetodasascausasexterioresque boicotamanossafelicidade.Estaafirmaotemdesdobramentosimportantese faz-se necessrio conhecermos o que representa a mente e o corpo para Spinoza e como ambos atuavam e possibilitavam o desenvolvimento da razo humana. I.2 O PARALELISMO Paraumaplenacompreensodoitinerrioquenoslevabeatitudeno podemosnoseximirdeinvestigarosignificadodecorpoementeparaSpinoza. Este assunto analisado de forma pormenorizada na parte II da tica. Impossvel chegar beatitude sem conhecer como se relacionam corpo e mente, como feita adisposioentreessesdoismodosecomoestesfundamnossasaes.Se Spinozaalertaquenohnenhumapossibilidadedeamentecontrolarnossos impulsos - pois estes so causa de nossa prpria natureza - a questo que resta :comoagirsenossocorponopodesercoagidopelamente?Comoatingira beatitude, se no controlamos nossasaes? Segundo Ferreira, Spinoza adverte que pelo conhecimento do nosso corpo e de nossa mente que podemos adquirir o pleno domnio de ns mesmos atravs da moderao de nossa vida afetiva e do equilbrio interior. Diz ela: Numprimeirotempo,ofilsofotentaidentificaropoderdarazocoma libertaoprogressivaquedevemosfazerrelativamentescausas exteriores determinantes das paixes. Assim, as idias claras e distintas, ouseja,oconhecimentopelasnoescomuns,seromelhorantdoto eaque memoriae mandare, et rebus particularibus in vita frequenter obviis continuo applicare, ut sic nostra imaginatio late iisdem afficiatur, et nobis in promptu sint semper. [...] (EV P X S) 23 dapaixo,amelhorgarantiadeumequilbrionosnossosdesejoseda sua transformao em virtudes17. Um dos primeiros aspectos que Spinoza retoma na parte V a questo do paralelismo18. Ora, para Spinoza a ordenao da mente simultnea do corpo; corpo e mente s diferem entre si enquanto so efeitos de dois distintos atributos divinos:ExtensoePensamento19.Nohseparaopossvelentreeles:jna proposioIenasproposiesqueseseguem,ofilsofoexplicitasuatese reiterandoquementeecorposeinterpenetrameque,aosermosafetadosno corpo, a nossa mente que capta essa afeco. Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento e ao repouso, ou a qualquer outro estado (se que isso existe)20. (EIII P2) E rechaa a hiptese de Descartessobreapossibilidadedeexistiralgumaformadecontroledamente sobre o corpo, defesa feita nos seguintes termos: Acrescentemosaquiqueapequenaglndulaqueaprincipalsededa almaestsuspensaentreascavidadesquecontmessesespritosde umaformatalqueelapodesermovidaporelesdediversasmaneiras quantasdiversidadessensveishnosobjetos,masqueelapodeser diversamente movida pela alma, a qual tem uma natureza tal que recebe em si tantas diversas impresses, isto , tem tantas diversas percepes quantos diversos movimentos ocorrem nessa glndula21. 17 FERREIRA, op. cit., 2003, p.175. 18 Com o paralelismo, Spinoza estabelece uma identidade de ordem entre idias e os corpos (ou isomorfia,isto,aidentidadeentreassriesdosatributosdasubstnciaabsoluta)euma identidadedeconexoentreduassries(ouisonomia,isto,osatributosproduzemseus respectivosmodosautonomamente,maselesagemsegundoumencadeamentoesob princpios iguais). Enfim, estabelecida a identidade de ser (ou isologia, isto , a mesma coisa produzida,noatributopensamento,sobomododeumaidia,e,noatributoextenso,sobo modo de um corpo). Deleuze, G. apud Fragoso, E. A. R. A Alma Humana como Idia do Corpo na tica de Benedictus de Spinoza. Ideao. Feira de Santana, n. 4, p. 37-47, jan/jun. 2000. 19Osatributossoinstnciasautnomas,responsveispelodesenvolvimentomodalecausal realizado em seu interior, porm esta autonomia limitada, pois um atributo no interfere e nem determina a causalidade do outro.20Neccorpusmentemadcogitandum,necmenscorpusadmotum,nequeadquietem,necad aliquid (si quid est) aliud determinare potest. (EIII PII) 21DESCARTES,Ren.AsPaixesdaAlma,Trad.RosemaryCosthekAblio.2ed.SoPaulo: Martins Fontes, 2005. art. 34. p. 52. 24 SegundoocomentadorJonathanBennett,Spinozaacreditaqueoreino mental corre em paralelo ao reino fsico. Diz ele: medida que se desenvolve o pensamentodeSpinozanaspartes2e3,sefazcadavezmaisclaroqueele aceitaeapiaumadoutrinadoparalelismoentreosreinosmentalefsico22. Aindadeacordocomomesmointrprete,Spinozaadotouatesedoparalelismo psicofsico para resolver problemas reais de seu sistema, manter o nexo de suas tesesemostrarqueaordemcausalfsicadosacontecimentossimultnea ordem causal mental. Ora, como Spinoza no admite conhecimento de algo, sem conhecimentodassuascausas,compreensvelqueeleadmitaainter-relao entreomundomentaleofsicotendocomoeixonorteadorarazoquebusca sempre o conhecimento das causas. ComoSpinozaasseguraacorrespondnciaentreamenteeocorpo, segue-se que no h possibilidade de a mente exercer controle sobre as afeces do corpo: mente e corpo no podem ser concebidos isoladamente, um no existe semooutro,porqueumaprpriamanifestaodooutro.Estaquestoest descrita na Proposio 12: Tudoaquiloqueacontecenoobjetodaidiaqueconstituiamente humana deve ser percebido pela mente humana, ou seja, a idia daquilo que acontece nesse objeto existir necessariamente na mente; isto , se o objeto da idia que constitui a mente humana um corpo, nada poder acontecer nesse corpo que no seja percebido pela mente23. (EII P12) AbeatitudeparaSpinozasedjustamentequandonossamentecapaz deformaridiasadequadasedeagir;libertando-sedasinflunciasexternas,o corporefleteapazinteriorquesasabedoriaproporciona.Algoqueofilsofo atestaserrarssimodealcanar,sunspoucossendocapazesdeconseguirtal intento.Porm,afirmaquetodosnstemospossibilidadedeencontraressa 22 A medida que se desenvolve el pensamiento de Spinoza en las Partes 2 y 3, se hace cada vez ms claro que l acepta y apoya una doctrina de paralelismo entre los reinos mental y fsico. Un Estdio da La tica de Spinoza. p. 133. Traduo nossa. 23 Quicquid inobiectoideaehumanam mentem constituentis contingit, idad humana mente debet percipi,siveeiusreidabiturinmentenecessarioidea:hocest,siobiectumideaehumanam mentemconstituentis.sitcorpus,nihilineocorporepoteritcontigere,quodamentenon percipiatur. (EII P XII)25 alegriasupremaousalvaodesdequenosesforcemos,noparareprimiro corpo,masparacompreend-locomoatributodasubstncianica.Devemos conhecernossosafetoseaprendermosaagir,asairdapassividadeeatuarno contextodenossasexistncias,formandoidiasadequadasecompreendendo quesomosefeitosdeumacausamuitomaiore,porsermosseuefeito,estamos imersos na essncia dessa causa maior que Deus.Como j mencionado, para Spinoza existem trs tipos de conhecimentos. A beatitudealadaaoterceirognerodoconhecimentoenoestcircunspetaa momentosdeefusivafelicidade,masestacimadasefmerassensaesque estamosacostumadosadesfrutar.Senoconseguimosusufruirdessasuprema felicidadechamadabeatitudepornegligenciarmosoconhecimentoqueaela conduz, que o mais alto grau de conhecimento, sendo este puramente intuitivo. I.3 DO CONHECIMENTO Spinoza afirma que pelo conhecimento das causas que o homem torna-selivre,reporta-seaoconhecimentodaordeminteiradouniversooudacausa primeira. Quando compreendemos a verdadeira ordenao e necessidade de tudo que existe somos capazes de deduzir o efeito. A base de sustentao epistmica queSpinozadefendesefundanoconhecimentocomumainequvocadefesada cognoscibilidade do real. Neste sentido, conhecimento do homem conhecimento integral da natureza ou de Deus. Os trs gneros de conhecimentos que Spinoza especifica na tica podem coexistirsimultaneamente,cadaumdelestemumafunoespecficaenoso excludentesentresi.Comoaepistemologiaeametafsicasovertentesdeum mesmo percurso importanteobservar como sedesenvolveequal oalcancedo conhecimentoemsuagnesee,principalmente,porqueconhecerarealidade 26 como um todo permite ao homem ultrapassar suas limitaes e descobrir a gama de potencial que h em sua natureza. nesta perspectiva que conseguimos trilhar o percurso que nos proporciona mais profunda felicidade, ou seja, beatitude. Colocandooconhecimentocomopressupostofundamentalparao desenvolvimentodopotencialhumano,Spinozademonstraquespelaviada cogniooupelaexegeseintelectualchegamosaomaisaltograudo conhecimento e ao pleno gozo da existncia. Ferreira24 explica que conhecimento a espinha dorsal do sistema spinozista ou ainda o nico meio para a salvao. O homem, ao se livrar da ignorncia que engendra as armadilhas que o aprisionam -,consegueenxergaratotalidadeerefletirsobreanecessidadedaordemda razoedetodasascoisasqueexistem.Combasenisso,analisaremosaseguir como se ordena esta estrutura gnosiolgica em nossa mente. Oprimeirognerosedpelaviadaimaginao,queumconhecimento baseadoemidiasinadequadas,logo,superficialemutilado.Ora,comoj mencionado, o corpo pode deduzir o que se passa na mente, pois esta idia do prpriocorpoe,portanto,quandooscorpossoafetadosdediversasmaneiras porcoisasexteriores,amentecaptaessasafecestambmdevriasformas. Em outraspalavras,amente formadapor um conglomeradode idias que tm como base central a unio substancial, enquanto uma unio de partes nfimas de idias. Essas idias refletem exatamenteo que sepassa no corpo, eispor que a natureza emprica do corpo no lhe escapa. Assim,oconhecimentosensvelpresentenoscorposafetadiretamentea mente; quando esta no separa o corpo afetante do prprio afeto, o conhecimento se d apenas de forma imaginria, na esfera meramente hipottica e, logo, sujeita aequvocos.Comoamentedefinidapeloatodeconhecercorpospelas afecesquesocausadasnestecorpoporcorposexternos,elesempre suscetvel a enganos. A mente no conhece o prprio corpo humano e no sabe 24 FERREIRA, op. cit., 2003, p. 118. 27 queeleexistesenopormeiodasidiasdasafecespelasquaisocorpo afetado 25. (EII P 19) Oconhecimentodecorposexternospassveldeenganosporquenossa menteignoraaessnciadessescorpos,tendodelessomenteoconhecimento causadopelotipodeafecoqueeleprovocounocorpo.Conheceosefeitose no as causas, portanto ignorante e est muito prximo s da sensibilidade. Por isso,aesseprimeirognerodoconhecimento,Spinozadesignouchamarde conhecimentoporimaginao.Todavia,comoohomempartedointelecto divino,acabapercebendoqueessaformadeconhecimentonolheconferea verdadeira sabedoria. Isso gera o que Francisco Jordo chamou de conflito entre a natureza imaginativa e a intelectiva: O conhecimento das coisas externas no um conhecimento das coisas externas, mas do modo como somos afetados por ela. O que quer dizer que o conhecimento sensvel sempre muito relativo, na medida em que a mente fica sujeita a confundir a natureza do corpo afectante com a da afecocausadaporele:nopassadumapercepodenvel imaginrio, por isso, sujeita ao erro26. EmSpinoza,necessrioqueohomemultrapasseesteconflitoouest fadadoasemovimentarexclusivamentenaesferadosensvel.medidaque conseguimostransporessaesferapuramenteimaginativa,ecomotemosa tendnciaaconhecer,nosafirmamoscomoseresquetmapotnciade conhecer, no somente os efeitos, mas principalmente as causas. Esse poder que temos se sobrepe imaginao ao perceber o modo como um corpo afetado. Comoessaatividadeindicamovimentodointelecto,designadocomopoder (potentia) e no mais como o padecimento (passio) do conhecimento por imagens; e nesse processo, o homem manifesta sua capacidade de atuar, de agir, e no de ser apenas passivo: 25Menshumanaipsumhumanumcorpusnoncognoscit,necipsumexisterescit,nisiperideas affectionum, quibus corpus afficitur. (EII P XIX) 26 JORDO, Francisco Vieira, Sistema e Interpretao em Espinosa. Coimbra: Castoliva,1993, p. 45. 28 Isso evidente. Pois quando dizemos que uma idia se segue, na mente humana,deidiasquenelasoadequadasnodizemossenoque (pelo corol. Da prop. 11) existe, no prprio intelecto divino, uma idia da qualDeusacausa,noenquantoinfinito,nemenquantoafetado dasidiasdemuitascoisassingulares,masenquantoconstitui unicamente a essncia da mente humana27. (EII P 40 D) Noprimeirognerodeconhecimento,ohomemlevadoaimaginarea acreditarquesuasidiassofrutodoentendimento,quandonaverdadeso resultadosdesuaimaginao.ParaJordo,estaformadeconhecimento necessria: apesar de no possuir os pressupostos de uma verdade constituda, atravs dele que ns entramos em contato com o mundo exterior. Essa forma de conhecimento a via que conduz o homem ao segundo gnero de conhecimento ou conhecimento do segundo grau. Na condio que ainda nos encontramos, a de atribuirmosentendimentoouidiasquesoapenasfrutodaimaginao, necessitamos nos esforar muito para controlar a imaginao, para permitir que o nosso intelecto a regule e se afirme como potncia cognoscitiva. Essa dificuldade se d pelo fato de ainda imperar o domnio de foras externas sobre nosso poder mental; nesse sentido, a imaginao j se configura um vcio da mente. A mente s amplia sua capacidade de conhecer quando comea a dominar acomplexidadedocorpo.Pelacompreensodequepercebemosnossocorpo pelas afeces sofridas. Essa a forma de aperfeioamento da mente humana. medidaemqueocorpopassaaseadaptarmelhoraoscorposexternos,exerce maiorcontrolesobreasafecesqueessesoutroscorposprovocam;nesta perspectiva,ocorreumagradualdiminuiodadependnciaexterior, possibilitandooaperfeioamentodarazo,quecontrolaaimaginao,ouainda, um meio de progresso intelectual. Esteprocessoquesednointeriordamente,Spinozaochamoude segundognerodeconhecimento,poisjnoestamosmercdenossas percepes pela via exclusivamente de corpos externos, mas j temos capacidade 27 Patet. Nam cum dicimus, in mente humana ideam sequi ex ideis, quae in ipsa sunt adaequatae, nihilaliuddicimus(percoroll.Prop.11huius)quamquodinipsodivinointellectudeturidea, cuiusDeusestcausa,nonquatenusinfinitusest,necquatenusplurimarumrerumsingularium ideis affectus est; sed quatenus tantum humanae mentis essentiam constituit. (EII P XXXVI D) 29 deelaborarmentalmenteamaneiracomosomosafetadosporoutroscorpos.A uniodamenteidiaqueestetipodeconhecimentoproporcionaqueleva tambmuniodamenteecorpoemDeus,deformasimultnea.Oprocesso gnosiolgicodamentehumana,quepossibilitaaohomemenxergaralmdas imagensexteriorescondioimprescindvelparaqueohomemobtenhaa felicidade. O conhecimento de segundo e de terceiro gnero, e no o de primeiro, nos ensina a distinguir o verdadeiro do falso 28. (EII P 42) no ato de conhecer-seedeconhecerosoutrosmodoscomosquaisserelaciona,queohomem tambm chega ao conhecimento de Deus e, portanto, a beatitude. Nessaperspectiva,oconhecimentoracionaloparadigmadaprpria felicidade, pois quando, em vista do todo, ns suplantamos a mera representao quefazemosdensmesmosedosoutroscorposquenosafetam,conseguimos superarnossaignornciaquenoslevaaconhecerapenaspelossentidosou imagens.SegundoLvioTeixeira,Spinozachamaderazo(ratio)estetipode conhecimento: Osegundognerodeconhecimentoaquetambmchamarazo, Espinosadeclaraqueeledizrespeitosnoescomunsesidias adequadasdaspropriedadesdascoisas[EII,PXL,esc.II].Queso essasnoescomuns,essasidiasadequadasdaspropriedadesdas coisas?Qualoplanometafsicoquelhesprprio?Qualseulugar noconhecimentotericodamoralpropriamente?Taissoasquestes queseapresentamapropsitodesseassunto.evidentequesetrata denoesgerais,masdenoesgeraisquediferemdos transcendentaisedosuniversaisqueconstituemidiasprpriasdo primeiro gnero de conhecimento, porque estas, como se viu, so de sua natureza inadequada e confusa no mais alto grau [...]29.

28 Secundi et tertii, etnon primi generis cognitio docet nos verum a falso distinguere. (EII P LXII) 29TEIXEIRA,Lvio.ADoutrina dos Modosde Percepoe o ConceitodeAbstrao naFilosofiadeEspinosa,SoPaulo:UNESP,2001,p.165.Jordocorroboracom essa tese de Teixeira e afirma que o sentido de noes comuns em Spinoza diverge da concepoescolsticadosuniversais:Asnoescomunssoessencialmente diferentes dos universais, dos escolsticos. Estes so simples construes imaginrias ou representaes vagas, sem verdadeira correspondncia na realidade, pois no so umprodutogenunoda atividadedarazo, masprodutodumacombinao fortuitade impressesvindasdoexterior.Oconhecimentopelosuniversaiscorrespondeaum nvel nfimo de conhecimento o da simples opinio. Op. cit., 1993, p. 51. 30 Oconhecimentoimaginativo,Spinozaoconsideracomoapenas representativotalqualespecificaaticaII,P25:Aidiadeumaafeco qualquerdocorpohumanonoenvolveoconhecimentoadequadodocorpo exterior 30. Portanto, s conseguimos avanar de fato para alm das imagens ou daesferasensvelquandopercebemosque,nessembito,conhecemos confusamenteequesomosinfluenciadospelacadeiadecausaseacadeiade coisas materiais, da as deformaes na forma do nosso modode pensar; isto , noprimeirognerodoconhecimento,aindaestamosrestritosesferadonosso corpo e s afeces a que ele est suscetvel.Comomencionadoanteriormente,somosinduzidosaoerroporqueainda temosidiasconfusasemutiladas;mascomosomospartedasubstnciadivina, temosapotnciaparaascenderaoutrosnveisdeconhecimento.Somos capazesepossumosafaculdadedeconhecer,segundodizSpinoza:Noh nenhuma afeco do corpo da qual no possamos formar algum conceito claro e distinto 31.(EVP4)Issosedquandoformamosidiasadequadas,quando conhecemosparaalmdosefeitos,tambmascausas.Eumaidiaadequada, segundoJordo,umaidiatotal.Oconhecimentoverdadeiroformadopor idias adequadas, pois j existe a compreenso do sentido de totalidade e de sua necessidadenanatureza.Aoinvsdeohomemsefixarnumelementoisolado que toma como causa, compreende que no h contingncia na natureza, no h corrupoemseuselementos,mastudopertenceaodomniodanecessidade dessa natureza. Nas palavras de Jordo: Espinosadefende,noentanto,queumamenteexistenteemuniocom umcorpopodeelevar-seaumestadodeconhecimentoadequado, perfeitoouverdadeiro.Acondioimprescindvelparaissoouso corretodarazocomofaculdadederelacionamento,confrontoe deduo.Arazo,paraohomem,onicopedagogocapazdeguiar atravs do caminho que conduz verdade32. 30Ideacuiuscumqueaffectioniscorporishumaniadaequatamcorporisexternicognitionemnon involvit. (EII P XXV) 31 Nulla est corporis affectio, cuius aliquem clarum et distinctum non possumus formare conceptum. (EV P IV) 32 Ibid. p. 50. 31 Spinozaafirmaquetemosapotnciadedesenvolveroconhecimento adequadobastandoquearazosejaomeiodereflexo,contatoededuo,ou ainda, a razo segundo Spinoza, uma das instncias capazes de guiar o homem paraalmdoconhecimentomeramenteimaginativo.Sendoohomemumser compostodecorpoemente33,partedointelectoinfinito,temtodasascondies de apreender o sentido de totalidade. Asnoescomuns,aqueSpinozaclassificoudesegundognerode conhecimento,estoacimadatransitoriedadeedasidiasmutiladassquais estamossujeitosquandopensamosconfusamenteeinfluenciadosapenaspor fatores externos. Pelas noes comuns aprimoramos nossa percepo do mundo e dos outros, pois ao confrontarmos e relacionarmosas singularidades presentes emoutroscorposdeduzimosque,emsuasessncias,todosfazemparteda substncianicaequeestointerligadosunsaosoutrosirremediavelmente. Portanto,oquehdecomumentretodasascoisasqueexistemquetodas possuempropriedadessemelhantesepelarazopodemosformaridias adequadas capazes de distinguir entre as noes comuns e as idias imaginadas.O conhecimento do segundo gnero racional, compreende a necessidade danaturezaededuzoencadeamentolgicodascausasquehentretodasas coisas a partir de suas propriedades comuns. Os corpos tm muito em comum uns com os outros, e so por estas caractersticas que geramos as idias adequadas e captamos os nexos que ligam as idias entre si. Isso se d pela atividade reflexiva queestimulaaconfrontaoeacomparao,extraindodaospressupostos indispensveisparaafundamentaodasidiaseparaconseguirdistinguiruma noo comum de uma idia imaginria.Aprpriaimaginaojpossuiogermelatentedopensamentoracional, basta a atividade reflexiva para esse germe eclodir. Somente a atividade cognitiva para Spinoza, capaz de despertar na mente as noes comuns que ali j esto presentesnaformadepotnciaimanenteaoprpriointelectodohomem.A imaginao , portanto, a gnese do conhecimento humano, que, enquanto tal, s 33 Este composto corpo e mente no tem o sentido de dualidade da filosofia cartesiana. 32 consegueperceberascoisaspelasimagensformadasdessascoisas.Mascomo modos finitos da Substncia, estamos sujeitos s leis da natureza e necessidade absoluta. Como modos, somos um conglomerado de idias sejam elas adequadas ou inadequadas, como confirma o prprio Spinoza: TodasasidiasexistememDeus(pelaprop.15daP.1)e,enquanto esto referidas a Deus, so verdadeiras (pela prep. 32) e (pelo corol. da prop.7)adequadas.Portanto,nenhumaidiainadequadaeconfusa senoenquantoestareferidamentesingulardealgum(vejam-seas prop.24e28).Logo,todasasidias,tantoasadequadas,quantoas inadequadas,seguem-seumasdasoutrascomamesmanecessidade (pelo corol. Da prop. 6) C.Q.D.34( EII P 36 D) ParaSpinoza,spelasnoescomunsqueohomemcapazde apreenderasverdadeiraspropriedadesdascoisas,logo,umconhecimento racionalqueestparaalmdascontingnciasevicissitudesdomundo singularizado.Contudo,mesmotratando-sedeumconhecimentoadequado, Spinozanoafirmaqueoconhecimentopelasnoescomunschaveparaa beatitude,masapenasumdostrechosdessepercursoqueconduzohomem forma mais pura de conhecimento que h. Esta forma designada como terceiro gnero de conhecimento. Spinoza defende que h uma forma de conhecimento que possibilita de fato aohomemfruirdaeternaecontnuaalegria 35;aesseconhecimentoSpinoza denominou de beatitude suprema: [...] Assim, essa doutrina alm de tornar nosso espritointeiramentetranqilo,tambmnosensinaemqueconsistenossa suprema felicidade, ou seja, nossa beatitude [...] 36. (EII P 49 S) Na proposio 25 daparteV,Spinozaafirmaainda:Oesforosupremodamenteesuavirtude 34 Ideae omnes in Deo sunt (per prop.15 P.1) et quatenus ad Deus referuntur, sunt verae (per prop. 32 huius) et (per coroll. prop. 7 huius) adaequatae; adeoque nullae inadaequatae nec confusae sunt,nisiquatenusadsingularemalicuiusmentemreferuntur(quaderevideprop.24et28 huius).Adeoqueomnestamadaequatae,quaminadaequataeeademnecessitate(percoroll. prop. 6 huius) consequuntur. Q.E.D. (EII P. XXXVI D) 35TIE . p. 22. 36[...]Haecergodoctrina,praeterquamquodanimumomnimodequietumreddit,hocetimhabet, quod nos docet, in quo nostra summa felicitas sive beatitudo [...]. (EII P XLIX S) 33 supremaconsistememcompreenderascoisaspormeiodoterceirognerode conhecimento 37. (EV P 25).Considera ainda que o pice da potncia humana est em compreender de formaintuitiva,ascoisaspelasuaessncia.Somenteacinciaintuitiva proporciona ao homem o pleno conhecimento de si e da natureza. A dinmica que atuanessegnerodeconhecimentocompletamenteintuitiva,ouseja,o processoquesedquandoarazo,jlivredaspercepesimaginativas,se elevaatavisodeDeuscomototalidadeecomocausaimanenteatudoque existenanatureza.Essavisointuitiva,porm,desenvolvidabasede princpiosracionaisedenominadaporSpinozacomoamaiorsatisfaoque existe. Ainda segundo Jordo: Aapreensodanecessidadecomopropriedadecomumdetodasas coisasspossvelnacinciaintuitiva.Pelaatividadedarazo,a mente conduzida apenas ao limiardo conhecimento intuitivo. A esfera deao,prpriadarazo,adacomunidadedeseremtodasas coisas. Mas pela atividade racional que a mente desperta para a viso de todas as coisas na causalidade divina 38. A intrprete Ferreira salienta que Spinoza considera possvel a todo homem ascenderaoterceirognerodoconhecimento,emboranecessitedemuito empenho e desde que empreenda grande esforo intelectual: A todo homem dada a possibilidade de conhecer as causas objectivas, impessoais,queofazemagir.Massosbioseempenhanessa descoberta,enveredandoporummodusvivendiqueodemarcado homem comum39. Noconhecimentoracional(segundognero)deduzimososefeitospelas causasecompreendemosquehumprincpiocomumatodasascoisas, designado por Spinoza de noes comuns; ou seja, h um fio condutor que guia o pensamentoequepodeserapreendidopelointelecto.Jnoterceirognerode 37Summusmentisconatussummaquevirtusestresintelligeretertiocognitionisgenere.(EVP XXV) 38 JORDO, op. cit., 1993, p. 53. 39 FERREIRA, op. cit., 2003, p. 145. 34 conhecimentoaintuioquenosremeteidiadeDeus,mostrandoqueesta idia est acima do plano dos princpios racionais, pois j se percebe partcipe do plano das propriedades essenciais da Natureza Divina. Pelasnoescomunspercebemosascoisasnecessrias,pelas propriedades comuns que estas possuem, seguindo a ordem dedutiva. Todavia, o que existe em comum entre as coisas no constitui a sua essncia singular, dado queaessncianopodeserinferidapelomecanismoracionalqueabasedo segundo gnero de conhecimento. A essncia singular apreendida pela intuio, donde esta precedida por idias adequadas da essncia de Deus. Pela intuio percebemosnossantimarelaocomDeus,daresultanossasalvaoou beatitude.Spinozadefineoterceirognerodeconhecimentocomoonicoque exprime a idia de Deus. Francisco Vieira Jordo admite: Sabemos que o homem um ser que pensa, por isso, uma idia duma coisa singular existente em acto. Esta idia tem Deus como sua causa[...] 40.A mente humana capaz de formar uma idia adequada quando tem Deus como pressuposto, mas isso independe de sua vontade, pois a vontade para Spinoza no tem poder nenhum e tudo obedece uma ordem causal e determinadapela necessidade da natureza. Para Jordo, o conhecimentointuitivoenglobaoracional,masnoamanifestaoda racionalidade humana: O conhecimento intuitivo, sendo luz que, por si mesma, se manifesta na mentehumana,noumresultadodoconhecimentoracional,maso que, em ultima anlise, o possibilita e est como seu complemento. No nascenomomentoemquenosapercebemosdequeestamosnasua posse:quandodesabrochaemns,logonosapercebemosdequeno podesersenoeterno,emborasdespertenamenteapsumlongo percurso reflexivo41. atravsdo conhecimento intuitivo queohomem percebe-se partcipe da naturezadeDeus.Atrajetriarduaquenoslevaaoterceirognerodo conhecimento passa necessariamente pela razo. No entanto, a intuio encontra- 40 JORDO, op. cit., 1993, p. 40. 41 Ibid., p. 54.35 se em esfera mais elevada, dado que j repousa num nvel de compreenso muito acimadaspropriedadesconstitutivasdarazohumana.Possuinoseucerneo sentido de totalidade e da realidade sem mistrios. Realidade centrada na idia de Deusenaradicalidadeabsolutadeumpensartico.Estetipodeconhecimento no sofre nenhum tipo de coao ou presso externa. Como a eternidade de Deus estende-seatudo,ns,porsermosexpressesdadivindade,tambmsomos infinitos.Oconhecimentointuitivoumaconquistadohomemsbioeno passveldeinflunciadecausasfinitas,poiseterno.Spodeserdespertado com grande esforo intelectivo. Todavia, o comentador salienta que esta forma de conhecimento no uma fuso entre o finito e o infinito, entre efeito e causa, nem a elaborao do singular peladimensoinfinita42.Nohmisticismonosistemaspinozista,segundo Jordo,poisnohmistrioincognoscvelemsuafilosofia,muitolongedisso, poisexatamenteomistrioqueSpinozacombate.Nestesentido,o conhecimentointuitivonodiluiodoprincpiodeidentidadedohomemem Deus, pois nossa individualidade no se perde, mas preservada; portanto, essa formadeconhecimentoconsistenamaisaltaexpressodaintuiohumana, intuioessaquelevaaessnciasingulardohomemacaptaraessncia incondicionada e incausada de Deus.Arelaodiretaentregnosiologiaemetafsicanosistemaspinozista influenciadiretamenteocampotico,demonstrandoqueinvestigarascausasdo agirhumanosemprefoiumadesuasmaiorespreocupaes.Ora,ohomemao sentir-separtedanaturezadivinatornaseuespritomaistranqiloesereno,age melhorcomseussemelhantes.espontaneamentegenerosoejusto,pois enxerga muito alm do horizonte limitado da imaginao e encara todos os modos existentesnanaturezacomopartenecessriadaSubstncia.Semestar condicionadosinjunesdoacasoedasorte,ohomempodeusufruiraforma mais elevada da felicidade, abeatitude. Spinoza atestaque somente destinado aquele homem que por profundo esforo cognitivo atingiu essa mais alta esfera de 42 Ibid., p. 55. 36 sabedoria humana que a prpria virtude.Afirmar que virtude e beatitude so a mesmacoisasignificarechaarastesesdosgregosdequeafelicidadeeraum prmio conquistado pelos virtuosos. Spinoza refuta essa noo e considera que a beatitude a virtude e no um prmio da mesma: Abeatitudenoumprmiodavirtude,masaprpriavirtude;enoa desfrutamosporquerefreamososapetiteslbricos,mas,emvezdisso, podemos refrear os apetites lbricos porque a desfrutamos43. (EV P 42) No esclio da Proposio 42, o filsofo afirma que a superioridade do sbio em relao ao ignorante justamente porque o sbio j controla seus apetites e o ignoranteaindasemovenoterrenodaimaginaoe,portanto,viveagitado;ao contrrio, o sbio j desfruta da felicidade por inteiro porque j intui Deus em toda suaplenitudeecompreendequepartedessadivindade.Oignorantevive mercdosafetos,dependeaindadeforasexterioresparasemovimentar,jo sbio movimenta-se na esferada intuio e prescindede interferncias externas. Spinozaadvertedadificuldadedesechegarsabedoria,poisestararae preciosa,masnoalgoimpossvel,exigindodaquelesqueaalmejammuito esforo e dedicao. I.4 A SUPREMA ALEGRIA ParaocomentadorPaoloCristofoliniafelicidadeemSpinozaganhaum contorno muito diverso do que comumente atribudo: [...] A palavra latina correspondente (felicitas) no tem relevante emprego naticadeSpinoza,porquenolatinodosclssicosqueoseu,tal 43Beatitudononestvirtutispraemium,sedipsavirtus;neceademgaudemus,quialibidines coercemus; sed contra quia eadem gaudemus, ideo libidines coercere possumus. (EV P XLII) 37 palavraindicaantesdetudosucessoeobomxitodeoperaes determinadasdoqueoescopogeralaoqualtendemos.Aquelaque felicidade, em Spinoza, ora umbem (bonum), oraa alegria(laetitia), e ora a beatitude (beatitudo) [...]44. Ora,obemparaSpinozatemsentidopuramenterelativoedepende exclusivamentedofatodenosaproximardaperfeio,ouseja,darealizaode um projeto de vida ou ainda do modelo de natureza a que nos propomos. Todo o restoquenosafastadestemodeloummal.Oprojetodoserhumanotudo aquiloquepertenceasuanatureza.Todavia,importantefrisarqueofilsofo rechaaqualquerpossibilidadedeumaconcepodeprojetocomvisfinalista. Finalismo este,quefortementeevocadopelos homensqueacreditamque tudo queexistenouniversoobradaonipotnciaebenevolnciadeumadivindade criadoraqueestsuadisposio,oquedenunciaoabsurdodapresuno humana. Portanto,oprojeto45deserhumanooquedsentidogeralsua existnciaetudoaquiloquedistanciaohomemdechegaraessaperfeio consideradoummal,oqueaproximaumbem.Conheceranaturezadeste projeto e seguir fielmente a seu formato o que proporciona felicidade ao homem. Obemcomofelicidadeestrelacionadotambmesferasocial.Ao vincular-seemsociedadecomoutrospares,oshomenspercebemquepodem ajudar-se mutuamente. Dessa troca nasce a compreenso da utilidade que h nas agregaeshumanasnosentidodequeprecisamosunsdosoutrosparanossa proteo, conservao e diviso de trabalho. Isto uma prova da necessidade de interao e demonstra a rede causal que sustenta todas as relaes. A soma das atividadesdesempenhadasemconjuntopossibilitaodesenvolvimentodo potencialindividualdecadaumproporcionandoobemcomumqueoprimeiro sentido de felicidade para o sbio holands.Asegundafacedafelicidadeaalegria.Osignificadodealegriaest diretamenterelacionadopassagemdeumaperfeiomenoraumamaior 44CRINTOFOLINI,Paolo.AltimaSabedoriaeaFelicidade.In:CadernosEspinosanosVI,S. Paulo, Nov. de 2000. Trad. Stella Penido. Rev. Tec. Maurcio Rocha. p. 5. 45 Este projeto refere-se, segundo Cristofoloni ao modelo racional de natureza humana.38 perfeio.Estaalegrianocoincidecomasensaoagradveloudebem-estar em que costumamos classific-la. A alegria encarada como felicidade vincula-se idiadeamor.Amorumaalegriaacompanhadadeumacausaexteriorque sempre passagem a um grau de perfeio mais elevado. Na concepo spinozista amoraplenacompreensodaexistnciadealgoexternoansque reconhecidamentenostornamelhoroumaispotentes.Podeserumacoisaou pessoa,ouainda,umsaber,algoquenosajudaadesenvolvertodanossa potncia. Oamorsemprealegriaeoobjetodesseamoraidiadequehalgo externoansqueelevanossapotncia.Logo,oamorumaalegriaque potencializa nossa fora de existir e difere do desejo (cupiditas)46 que a essncia mesmadohomemeestassociadoordemdosimpulsoseapetite(appetitus) humano.Oamor,aocontrrio,efeitodaalegriadeenxergarmosforadens motivao para nossa prpria existncia. O terceiro sentido de felicidade em Spinoza a beatitude, o ponto mais alto de ascendncia de um homem em direo sabedoria. A beatitude algo que o homemsconsegueatingirpelaterceiraviadoconhecimento,emseumais profundo nvel de intuio. Ao perceber-se irremediavelmente como parte de uma ordemnecessriaeperfeitaemqueestimersoelongedoplanomeramente contingente,ohomemcapazdedescobrirasuaeternidadeedecompreender oselosnecessriosqueounematodasascoisasexistentes,libertando-seda incmodaeaterrorizanteidiadefinitude.EternidadeemSpinozarefere-se verdadeeternadaleidanaturezaedivergedosentidojudaico-cristo,quando defendequenohnenhumaformadesobrevivnciadaalma,alertandoquea individualidadenosobrevivemortedocorpo,poisprecisadeleparase expressar.Emmomentoalgum,ofilsofofazrefernciaimortalidadedaalma, 46 Desejo (cupiditas) a estrutura dinmica que constitui o conatus, ou todo esforo deperseverar naexistnciaeaumentaranossapotncia,quandoesteesforovemacompanhadoda conscincia de si, no caso especfico dos seres humanos, chama-se apetite (appetitus).39 considerando ainda que: A mente no pode imaginar nada, nem se recordar das coisas passadas, seno enquanto dura o corpo 47. (EV P 21) A serenidade da aceitao de que pertencemos ordem natural e imutvel das coisas eternas nos d a sabedoria de saber lidar com a nossa prpria morte e destruio, encarando-a como algo inevitvel para a sobrevivncia do todo; isto partedaconquistadohomemsbio.Noentanto,Spinozaafirmaque:noh nadaemqueohomemlivrepensemenosquenamorte,esuasabedoriano consiste na meditao da morte, mas da vida 48. (EIV P 67) Nessa concepo, a felicidade algo que s pode ser conquistada pela via rduadoconhecimentoedasabedoria.Portanto,noterceirognerode conhecimento que o homem descobre sua eternidade personalizada, atendendo positividadeexistenteemsimesmo.Quandoadquirimosaplenaconscinciade nossaintimaligaocomoTodoouDeus,tantoemrelaoessnciacomo existnciadescobrimosafelicidade.Aexatacompreensodenossaeternidade nos ajuda a entender nossa condio no mundo e aprendemos a agir melhor sem depender do acaso ou da sorte. Essa forma de encarar a vida nos leva a enxergar a essncia divina e desfrutamos a mais verdadeira e plena felicidade que Spinoza classificou como salvao (salus) ou beatitude (beatitudo). O grau mximo de conhecimento permite ao homem descobrir-se eterno e necessariamenteligadoatodasascoisasqueexistem.Encarandootempono comoobstculo,mascomoumacondioparaaprpriafelicidade,ohomem transcendedoplanoperecveldafinitudehumanaedescobreasleisinexorveis danaturezaedoinfinitoeternodequefazparte.Paraofilsofoholands,o conceitodefelicidadenodiferedevirtude.Ambosestointimamenteligados, poisohomemvirtuoso,porissomesmo,verdadeiramentefeliz.Abeatitude umaexperinciasubjetivacapazdelevarohomemsalvao,quespodeser encontradanantimacompreensodesicomopartedeDeus,distantede qualquer contingncia, logo, como absolutamente necessrio. 47 Mens nihil imaginari potest, neque rerum praeteritarum recordari. Nisi durante corpore. (EV P 21) 48 Homo lber de nulla re minus, quam de morte cogitat, et eius sapiencia non mortis, sed vitae meditatio est. (EIV P LXVII) 40 AvirtudeemSpinozanotemumaconotaomoral49,poisnaontologia destepensadornohformulaodeprincpiodedeveroudequalqueroutro artifciodenormatizaodocomportamentohumano.Porestarazoasuprema alegria no depende do controle da mente sobre o corpo, nem da estigmatizao dosafetos,masapenasdasuacompreensoedaaceitaodestescomo estruturasinerentesnaturezahumana.Corpoementesopartcipesdeuma mesmaunidade,sorepresentaesdosatributospensamentoeextenso,no cabendoser-lhesimputadoonusdamisriamoraldohomemsobnenhum aspecto.Essatrilhaqueconduzohomemfelicidadeousalvaospodeser alcanada quando o homem, tendo o conhecimento de Deus, aprende a moderar seus afetos e a ter controle sobre suas emoes, sai da esfera da passionalidade irracionalparacompreenderoquesepassanoseucorpoqueimediatamente captadapelasuamente.Nestesentido,umaanliseapuradadosafetosetodas asrepercussesparaodesenvolvimentohumanofundamental,paraque possamos inferir que a tica spinozana toda perpassada pela metafsica e s possvelentendermososeusistemasenosdedicarmosaescrutinarsuateoria dos afetos. o que faremos no prximo captulo. 49Brunschvicgafirmaqueutilizaromtodospinozanopararesolverproblemamoralsignifica alterar a forma natural de seu sistema que busca a verdade acima de idias preconcebidas ou de finalidadestranscendentes.HENRY,Michel.LaFelicidaddeSpinoza.Trad.AxelCherniavsky. Buenos Aires: Ediciones La Cebra, 2008. p. 27. 41 II OS AFETOS II.1 UMA ANLISE DOS AFETOS Os homens so bons de um modo, mas maus em vrios.Aristteles Quandopenetramosnaredecausaldeacontecimentosquepermitem acendermos beatitude percebemos que no podemos prescindir de uma anlise apuradadosafetos,poiscomojmencionadoanteriormente,ocaminhoque conduzfelicidadeemSpinozapassairremediavelmentepelosafetos. Demonstraremos a abordagem spinozista dessa temtica to intimamente ligada questo que nos propomos analisar nessa pesquisa, a trajetria empreendida pelo homematabeatitude.Considerandoqueohomempartedanaturezae, portanto,jamaisdeixadeserafetado,umadasquestesfundamentaisque buscaremos compreender no captulo que segue. Spinozaentendeosafetos(affectus)50comoconstitutivosdanatureza. Acerca deste tema,ofilsofo holandselaboraum verdadeiro tratado. Aparte III da tica dedicada anlise dosafetos eaparte IV, servidospaixes. No intuitoderompercomatradioqueconsideraaspaixes(passiones)51como 50 Deleuze esclarece uma diferena entre affectio e affectus: Quando emprego a palavra afeto isso remete aoaffectus de Spinoza, quandodigo a palavra afeco, esta remete a affectio - Curso 24/01/78.Cfin:Deleuze:SpinozaCursosde24/01/78.Trad.deEmanuelngelodaRocha FragosoeHlio Rebello Cardoso Jr. Estano uma diferenaestabelecida por Deleuze, mas da prpria lngua latina. Com efeito, affectus significa afeto (resultado ou modo de uma afeco) eaffectiosignificaafeco(aodealgodeafetaroutroalgo).Oaffectusindicaapaixo(a passividade)dequemsofreaaodooutro;jaaffectioindicaaaodeafetar,aodesse outro sobre algo/algum.51 Spinoza emprega tanto afeto quanto paixo para designar a mesma coisa. Na traduo da parte IIIdatica,porJoaquimFerreiraGomes(OsPensadores,5Ed.NovaCultural,SoPaulo, 42 contrriasmoral,afirmaquenohpecadoeperversonanaturezahumana, poispaixesnosovciosesimcaractersticasnaturaisdossereshumanos, que, por estarem em contato freqente com outros seres humanos, sofrem a ao vinda deles. Portanto,os afetos so causados pelaatividade de foras exteriores queagemsobreosindivduos,forasessasquetambmpodemserpositivas quanto negativas como explicaremos mais adiante. Spinoza demonstra em ordem geomtrica o carter dos afetos, que podem ser tanto causa de servido quanto de liberdade52, liberdade entendida no como atodeliberadodeescolha,masdeoposioainterfernciasexternasque constrangem a essncia do homem. Logo, na concepo spinozista, os afetos no sovciosenosedevemsfraquezasefragilidadesdohomemous inconstncias e impotncias do seu esprito. Ao contrrio, devem-se potncia da naturezae,comotais,nopodemsercensuradas,masprecisamser compreendidas e explicadas, como todas as outras realidades da natureza. GillesDeleuzeconsideracomoafetotodomododepensamentono representativoouquenovemacompanhadodeumobjeto.Difere-a,assim,do conceitodeidia,queseconstituicomoalgocomcarterrepresentativoou realidade objetiva. Sobre isso afirma: Todomododepensamentoenquantonorepresentativoser denominadoafeto.Umavolio,umavontade,implicabem,arigor,que euqueroalgumacoisa,istoqueeuquero,objetoderepresentao, issoqueeuqueroestdadoemumaidia,masofatodequererno umaidia,umafetoporqueummododepensamentono representativo53. No prefcio do livro III da tica, Spinoza adverte claramente sobre o grande equvocoquecometeramaquelesquesepuseramatratardestetema,poisna concepo spinozista os afetos sempre foram tratados como algo fora da natureza humana:Osqueescreveramsobreosafetoseomododevidadoshomens 1991) o termo afeto traduzido tambm como afeco. A intrprete Marilena Chau tambm usa o termo paixo para se referir afeto na Vida e Obra do livro mencionado acima. 52 Esse tema ser retomado de forma detalhada no prximo captulo. 53 Ibid.,Curso de 24/01/78. 43 parecem, em sua maioria, ter tratado no de coisas naturais, que seguem as leis comuns na natureza, mas de coisas que esto fora dela54. (EIIIPref) Para Spinoza, a razo de distorcerem o conceito de afeto se d pelo fato de conceberemohomemcomoUmimpriodentrodeumimprio 55,ouseja,o homemcompoderesabsolutossobreseusatosecomcapacidadeirrestritade controlar suas aes. Tese que completamente rechaada, pois sendo o homem determinado a agir segundo sua prpria natureza, no possui controle total sobre seus afetos, sendo apenas um modo finito e que vive merc de outros encontros (occursus)comoutrosmodosfinitos.Spinozautilizaotermoencontropara demonstrarquesomospassveisdeserafetadosportudoqueexisteequevai dependerdanaturezadesseencontrooudaformacomosomosafetadospara aumentarmos ou diminuirmos nossa potncia de agir. Resta-nosentenderumacoisa:porqueofatodeoshomensnoterem controleabsolutosobresuasaes-postoquesopartedanatureza-significa que os afetos no so exteriores natureza, mas compem a natureza humana?Essaquestodeveserexplicadapelarelaoao-paixo.Osencontrosque mantemoscomascoisasexterioresprovocamumaafecoouumamodificao em nossa mente e em nosso corpo. Quando somos capazes de formar uma idia adequadadessasforasexterioresedeampliarmosopoderdonossoconatus, somos ativos, ou ainda, como salienta Delbos: Somos ativos com efeito, quando emnsouforadensproduz-sealgodequesomoscausaadequada,isto, quando segue de nossa natureza algo que se pode conhecer clara e distintamente por ela. [...]56; e, ao contrrio, quando permitimos que foras externas sobrepujem a nossapotncia somos passivos ou comocompleta novamenteDelbos: Somos passivos,pelocontrrio,quandoseproduzemnsalgoouseguedenossa 54Pleriquequideaffectibusethominumvivendirationescripserunt,videnturnonderebusnaturalibus,quaecommunesnaturaelegessequuntur,sedderebus,quaeextranaturamsunt, agere. (EIII Pref.)55 Imo hominem in natura, veluti imperium in imperio, concipere videntur. (id ibdem) 56DELBOS,Victor.OEspinosismo.Trad.HomeroS.Santiago.SoPaulo:DiscursoEditorial, 2002, p. 131. 44 naturezaalgodequeapenasparcialmentesomoscausa57.Sobreessaquesto afirmaSpinoza:Porafetocompreendoasafecesdocorpo,pelasquaissua potncia de agir aumentada ou diminuda, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idias dessas afeces.58 (EIII. Def. 3) Issonosignificaqueohomemsejaimpotentediantedanatureza,mas comoestsempreemcontatocomoutrosseres,constantementeafetadode diferentesmaneirasportudoqueestsuavolta,nopodendoexercertotal controlesobreessasafecesaqueestsujeito.Mesmoaquelesquetentaram apontarumasadasalvacionistaparaevitar-segundoelesmesmos-queo homemfossevtimadotorvelinhodaspaixesnoconseguiramdemonstrarde formaconvincentecomoaverdadeiranaturezadosafetos,masapenas definiram os afetos como algo pertencente ao corpo e que, portanto, deveriam ser sistematicamente regulados pela mente, apontando a mente como o nico tribunal capazdecontrolaressaforasupostamentenocivaqueageincessantemente tolhendo a fora do homem e que, portanto, deveria ser rigorosamente adestrado. Foraestaquesemprefoidesignadacomocontrriadignidade,honrae virtude, logo, um vcio, uma impotncia ou ainda algo abominvel, pecaminoso. NadamaisabsurdosegundoSpinoza,quedefendeosafetoscomoalgo completamentenatural,e,logo,devendosercompreendidosemtodasua extensoemagnitudeejamaisencaradoscomoobjetodeescrnio.Issos demonstraaignornciadaquelespensadorescomoofilsofofrancsDescartes, que,natentativadedarumaexplicaosobreoassunto,tambmnoofaz, justamenteportratarseparadamentementeecorpoeporquererimputarao homem um poder que este absolutamente no tem. Sobre isso Spinoza comenta: Sei,verdade,queomuitocelebradoDescartes,emboratambm acreditassequeamentetemumpoderabsolutosobresuasaes, tentouaplicadamente,entretanto,explicarosafetoshumanosporsuas causasprimeirasemostrar,aomesmotempo,aviapelaqualamente podeterumdomnioabsolutosobreosafetos,maselenadamais 57 Ibid., p. 132.58Peraffectumintelligocorporisaffectiones,quibusipsiuscorporisagendipotentiaaugeturvel minuitur,iuvatur vel coercetur, et simul harum affectionum ideas. (EIII.Def. 3) 45 mostrouemminhaopiniodoqueaperspicciadesuagrande inteligncia, como mostrarei num momento oportuno59.(EIII Pref) Anoodeafetoestligadaaumadasquestesmaiscontrovertidasna filosofia spinozana e constitui o cerne de todo seu pensamento, a idia de Deus60. Apropsitodessetema,Ferreirasalientaoseguinte:otemadeDeuscentral emEspinosa.E,noentantoofilsofofreqentementeapelidadodeateu,quer pelosseuscontemporneosqueporpensadoresatuais 61.Ofilsofoholands divergecompletamentedatradiojudaico-cristqueacreditanumDeus transcendenteerevelado.SpinozapostulaDeuscomosubstncianica,como causasui,necessriaelivre,causauniversaleimanenteatodasascoisas.Os infinitosatributosdivinos,pelapotnciadeseredeagir,atravsdesuas modificaes,doorigemaosmodosfinitos,entreosquaisnosincluimos.Como modosfinitos,somoscompostospormenteecorpo,postoquepertencemos ordem dos atributos pensamento e extenso.Nesta perspectiva, corpo e mente esto completamente interligados, porm se exprimem de diferentes maneiras, mas sem hierarquia entre si. A mente, como modofinitodoatributopensamento,seexpressaatravsdasidias,eocorpo, como modo finito de extenso, atravs de uma relao estvel com outros corpos. Noentanto,afirmaSpinoza,estesmodosnososubstnciasealigaoentre elessedpelofatodeserempartesfinitas(modosfinitos)deumanica Substncia,Deus,doqualestesmodossoapenasaexpressofinitadeseus atributos infinitos em gnero. Delbos considera: A doutrina espinosana dos atributos e dos modos ope-se antes de tudo definiodaordemdosatributosporelementosemprestadosordem dosmodos; exclui ento, com singular energia,todas as representaes antropormficasdeDeus.NosDeusnoagitadopornenhumdos sentimentoshumanoscomonotem,parafalarrigorosamente,nem intelectoenemvontade.Avontadeeointelectonotmoutrarelao 59 Scio equidem celeberrimum Cartesium, licet etiam crediderit, mentem in suas actiones absolutum haberepotentiam,affectustamenhumanosperprimassuascausasexplicare,simulqueviam ostendere studuisse, qua mens in affectus absolutum habere possit imperium; sed mea quidem sententia nihil praeter magni sui ingenii acumen ostendit, ut suo loco demonstrabo. (EIII Pref) 60 Abordaremos essa temtica mais detalhadamente no captulo que segue. 61 FERREIRA, op. cit., 2002, p. 122.46 comDeussenoomovimentoeorepouso,querdizerpertencem natureza naturada, no natureza naturante62. Ohomemnecessitaconhecersuaparticipaofinitanainfinitudede atributos de Deus para conquistar sua liberdade, pois a mesma est inteiramente vinculadaredecausaldeacontecimentosinternoseimanentesprpria Substncia,determinandodiretamentealiberdadeouaservidohumana. Desvendandoagnesenaturaldanecessidadee,nela,daliberdade(ouda servidoedadominao),ateoriadosafetosseconstituinafundamentaoda ticaspinozana,caracterizando-oscomoforasimanentesnaturezahumana, poisresultamdepotnciasdemesmomodonaturais.Comoforas,acrescenta Spinoza, esses afetos s podem ser vencidos por outros mais fortes ou contrrios, pois a razo completamente impotente para dom-los ou dirigi-los, a menos e istolhefundamentalqueestaatividaderacionalsejaexperimentadatambm como um afeto.Investigarodesenvolvimentodessesafetos,suaorigem,sesoprimitivos ouderivados,sesofortesoufracoseoqueosdiferencia,bemcomosuas implicaesnavidadohomem,constituiumgrandedesafionapropostatico-metafsicadeSpinoza,ouainda,achaveparaasrespostasquebuscamosno decorrer de nossas vidas e que o foco principal desta pesquisa: Ser possvel ao homemalcanarafelicidade?Qualocaminhoparaissonumafilosofia deterministacomoadeSpinoza?Oquepodemosentenderporfelicidadenessa filosofiaimanentista?Continuemos,entoatratardessatemtica,embuscado nexo interno das idias que compem a problemtica dos afetos em Spinoza, ele defende a existncia de trs afetos originrios: o desejo, a alegria e a tristeza: Todososafetosestorelacionadosaodesejo,alegriaoutristeza, comomostramasdefiniesquedelesforamdadas.Ora,odesejoa prpria natureza ou essncia decadaum [...]. Portanto,odesejode um indivduodiscrepadodesejodeumoutro,tantoquantoanaturezaou essnciadeumdiferedaessnciadooutro.Almdisso,aalegriaea tristezasopaixespelasquaisapotnciadecadaumouseja,seu 62 DELBOS, op. cit., 2002, p. 73. 47 esforoporperseverarnoseraumentadaoudiminuda,estimulada ou refreada63. (EIII P 57 D) Alegria e tristezanoconstituemestados dalma, so modosde seroude existir. A alegria (laetitia) a passagem de uma perfeio menor para uma maior, ouainda,umaumentodepotnciaquesednosencontrosfelizescomoutros modosfinitos,poisnessesencontrosohomemaprpriacausaadequada determinantedesuasaes.Atristeza(tristitia)umapassagemdeuma perfeiomaioraoutramenor,sentimentodediminuiodaprpriapotnciade existir e de agir. A tristeza tem causasexclusivamente exteriores, constituindo-se como algo que declina a potncia de agir do homem, sendo, portanto, uma paixo enuncaumaao,poisestaumaanttesedaalegriaqueelevaapotnciade agir do homem. Neste sentido, Spinoza defende os afetos como uma conseqncia natural deconservaodoprprioser(conatus).Quandoestatendnciarefere-ses mente chama-se vontade (voluntas); quando se refere tambm ao corpo, chama-seapetite(appetitus).Todoesforoqueamentefazparaconservaroseuser relaciona-secomavontadeetodoesforoqueocorpofazparaseconservar chama-seapetite.Spinozaexplicaquenohdiferenaentredesejoeapetite, pois ambos constituem a prpria essncia humana: [...]Almdisso,entreapetiteedesejonohnenhumadiferena, excetuando-seque,comumente,refere-seodesejoaoshomens medidaqueesto conscientes de seu apetite. Pode-se fornecer, assim, a seguinte definio: o desejo o apetite juntamente com a conscincia que se dele se tem. [...]64. (EIII P 9 S) 63Omnesaffectusadcupiditatem,laetitiamveltristitiamreferuntur,uteorumquasdedimus definitionesostendunt.Atcupiditasestipsauniuscuiusque[...]ergouniuscuiusqueindividui cuipiditas a cupiditate alterius tantum discrepat, quantum natura seu essentia unius ab essentia alteriusdiffert.Laetitiadeindeettristitiapassionessunt,quibusuniuscuiusquepontentiaseu conatus in suo esse perseverandi augetur vel minuitur, iuvatur vel coercetur. (EIII P LVII D) 64Deindeinterappetitumecupiditatemnullaestdifferentia,nisiquodcupiditasadhomines plerumquereferatur,quatenussuiappetitussuntconscii;etprotereasicdefiniripotest,nempe cupiditas est appetitus cum eiusdem conscientia.(EIII P IX S) 48 SegundoSpinoza,oquefavoreceoconatus,ouseja,atendncianatural deconservaodoserchama-sealegriaeoseucontrrio,tristeza.Logo,o filsofo considera que afetos existentes no qual um afeto mais forte se sobrepe aummaisfracopermitemaconservaoouadestruionaturaldoser.Portanto,desejo(cupiditas),alegria(laetitia)etristeza(tristitia),soasmolas propulsorasdoserhumano,dasquaisderivamtodososoutrosafetosqueso largamentedemonstradosnatica.Ferreiraafirma,nessaperspectiva,que homem busca constantemente formas de garantir sua existncia: Ohomemummodoquepermanentementeprocuramanter-seem equilbrio,gerindoasafeces,modificandoaquesujeito,demodoa preservaroserprprio.Osafetos(affectus)sodeterminadostiposde afeces(affectiones)quetmcomoconseqnciaumaumentoou diminuio do nosso agir65. Spinozapropeumacompreensoradicaldanoodeafeto.Porisso mesmoeleseopevisodepensadoresquedefendiamosafetoscomo simplesmente a ao do corpo sobre a alma numa interferncia danosa e obscura, poisagiadiretamenteemsuasidias.Estateseconsideradaabsurda,poisos afetossointrnsecosaohomem,quenecessariamenteexistenoreal,na imanncia da natureza e, por conseqncia, somente pode existir e pensar junto matria e ao corpo, independente de ter idias claras ou obscuras. Para Spinoza, ocorpoementesocompreendidoscomoums,ouseja,seupensamento fundamentalmentemonistaeimanentista,portanto,umnopoderiaagir separadamente do outro, tendo em vista que ambos se complementam. Para ele, nosomosafetadossomentenocorpo,mastambmnamente.Osafetosno acontecemexclusivamenteporinterfernciadocorpo,maspelainterfernciada mente,emvirtudedascausasexteriores.Spinozaadverte:Quandoamente imagina aquelas coisas que diminuem ou refreiam a potncia de agir do corpo, ela 65 FERREIRA, Ma. Lusa R. Dilogo e Controvrsia na Modernidade Pr-crtica. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 109. 49 se esfora, tanto quanto pode, por se recordar de coisas que excluam a existncia das primeiras 66. (EIII P 13) Porsermosdeterminadosirremediavelmentepelanecessidadede conservaodoser,osnossosdesejossoafetosqueresultamdanecessidade de nossa natureza. Como explicita Spinoza na tica: Todososnossosesforosetodososnossosdesejosseguem-seda necessidadedenossanaturezademaneiratalquepodemser compreendidosouexclusivamentepormeiodela,enquantocausa daquelasforasedaquelesdesejos,ouenquantosomosumaparteda natureza, a qual no pode ser concebida adequadamente por si s, sem os outros indivduos67. (EIV A Cap. 1) Spinozafazumaclaraseparaoentreosdesejosdecorrentesdarazo, chamados de ao, e os desejos advindos da imaginao, designados de paixo. Os desejos advindos da razo so concebidos a partir de idias claras e distintas, pois esto relacionadas mente,portanto, so ativoseaumentam apotncia do homem.Osdesejosquesocausadosporidiasmutiladaseinadequadas,que enfraquecemnossapotnciadeagir,sopaixesenopodemserconcebidas pelarazo;essesdesejossofrutodaimaginaoepodemsercausatantode alegriaquantodetristeza,aocontrriododesejoativoquesemprecausade alegria, nunca de tristeza, posto que conduz suprema felicidade. Osdesejospassivosnopodemserresultadodoconhecimentoracional, pois a razo jamais concebe algo que decline nossa potncia. O desejo que surge da razo ativo, pois a nossa prpria essncia tende sempre elevao da nossa potnciadeagir.Tudoaquiloqueresultadodepensamentosadequadosouda compreenso da necessidade da natureza surge da razo e a prpria essncia humana. Esses desejos so fruto da alegria e surgem sempre do conhecimento do bem, ou seja, daquilo que nos til. Spinoza acrescenta: 66Cummenseaimaginatur,quaecorporisagendipotentiamminuuntvelcoercent,conatur, quantum potest, rerum recordari, quae horum existentiam secludunt. (EIII P XIII) 67Omnesnostriconatusseucupiditatesexnecessitatenostraenaturaeitasequunturutvelper ipsam solam tamquam per proximam suam causam possint intelligi vel quatenus naturae sumus pars quae per se absque aliis individuis non potest adaequate concipi.( EIV A Cap I) 50 Com efeito, o desejo que surge da razo s pode surgir [...] de um afeto de alegriaquenoumapaixo,isto,deumaalegriaquenopodeser excessiva [...], mas no da tristeza. [...] Por isso, quando conduzidos pela razoapetecemosdiretamenteobem,eapenasenquantotalfugimosdo mal68. [...] (EIV P 63 D) Osdesejosativosestosemprerelacionadosmenteesoassociados alegria,jamaistristeza,poissofrutosdeidiasadequadasequantomaisa menteseesforaparateridiaclarasedistintaselaageeseesforapara perseverarnoser.Spinozaconcebeatristezacomoumafetoquerefreiaa potncia de pensar, logo, no pode proporcionar idias adequadas e nem desejos ativos.Odesejodohomemdeseconduzirpelarazo,Spinozaochamade firmezaedegenerosidadeoesforoquetodohomemfaz,nousoexclusivoda razo, para servir ou ajudar, sem a espera de recompensa. Emsuma,odesejodefinidocomoaessnciadohomem,quandoeste homemestdeterminadoaagiremresultadodeumaafeco.Desejonesse sentidoconcebidocomoesforo,apetite.Movimentaamentehumanaparao homembuscarsempreaconservaodeseuser,emborasvezesbusquede forma equivocada ou simplesmente motivado por idias inadequadas. Todavia, se realmenteohomemseesforarecultivaroconhecimentoracional,percebera foradasinflunciasexternasemseumododeagir.Essacompreensoresulta numamudanadeatitudeeemseupadrodecomportamentoe conseqentementeohomempassarabuscarsomenteaquiloquetrazalegriae felicidade, o que garantir a conservao de seu ser. Osafetosestoemconstantemovimento,poisoconatusnoinerte69, masosciladeacordocomabuscaqueohomemfazpelascoisasalegresou tristes.Oconhecimentodetodooprocessointernoaqueohomemest condicionado em relao a seus afetos o caminho apontado por Spinoza para o 68 Nam cupiditas, quae ex ratione oritur, ex solo laetitiae afecctu, quaepassio non est, oriri potest [...], hoc est, ex laetitia, quae excessum habere nequit [...], non autem ex tristia. Ac proinde haec cupiditas[...]excognitioneboni,nonautemMaliorituratqueadeoexducturationisbonum directe appetimus, et eatenus tantum malum fugimus. [...] (EIV P LXIII D) 69 Abordaremos posteriormente este assunto de forma mais especfica. 51 fimdessaoscilao.Somentepeloconhecimentoecompreensodosafetos possvelabuscapelosbonsencontros,que,porsuavez,proporcionamalegria, fortalecendo o conatus.Conhecer de fato o que constitui a alegria e a tristeza so pontos fundamentais para entendermos os liames da antropologia spinozana. Ontologicamente, os afetos mais fortes viro da alegria e os mais fracos da tristeza. Ora, como as paixes no tm uma conotao negativa - como explicado anteriormente-tantopodemseralegrescomotristes.Osafetosalegresso resultado da compreenso clara das causas exteriores que nos afetam, posto que somoscausaadequadadealgoquecompreendemos.Aalegriaoafetoque amplia nossa capacidade de agir, que fortalece nossa potncia, logo, vista com toda positividade do ser, pois passagem de uma perfeio menor a uma maior. Atristezaumapaixoqueenfraquecenossoconatus,implicanumapassagem de uma perfeio maior para uma menor. Nos afetos tristes somos causa parcial e nosso conhecimento mutilado, portanto, somos totalmente passivos. II.2 DA PAIXO A AO Spinozareafirmaconstantementequeohomemsucumbeaovcioquando se deixa coagir por algo que foge sua essncia, designando isto de servido, e, aocontrrio,quandoohomemativoouacausaadequadadesuasaes, realmentelivre.Todavia,perguntamo-nos:Comoohomempodeserrealmente livre,jquesuasaesnosoindependentesdasaesexteriores,oudos nexos naturais que lhe so, de certo modo, impostos? Como, estando merc de causasexternas,agimosdemodoafortaleceronossoconatus?Sobreessa questo, Chau esclarece: Com a definio da paixo e da ao pelo conatus como causa eficiente inadequada ou adequada, Espinosa afasta a suposio tradicional de que somos movidos (seja na paixo, seja na ao) por causas finais externas 52 e que somos livres quando nosso apetite e nosso desejo so levados por nossa vontade a escolher os fins bons e virtuosos70. Spinozaestabeleceumadistinoentrepaixoeao,mostrandoquea diferenaentreessesdoisconceitossedemrelaoscausasadequadasou inadequadas. A paixo, nesse sentido, um declnio da potncia humana por ser concebidapelainflunciadefatoresexternosansouaindasoidias inadequadasenasquaisnsnosomosacausaeficienteousuperiordessas afecesqueatuamsobrens,SobreessaquestoDelbosdiscorre:[...]As paixes em sua origem no so nada mais que a passividade sofrida pelo corpo e aceita pelo esprito como estado normal [...] 71. A ao o seu oposto, pois se d justamentemedidaquesomoscausaadequadadenossasidiasequejno somos subjugados por foras externas a ns. A ao aumenta nossa potncia de agir e conseqentemente um afeto de alegria. Apassagemdapassividade(submissopassionalscausasexternas) ao,sed,paraSpinozadaseguinteforma:aspaixestristesenfraquecem homem e o tornam cada vez mais passivo, fica dependente de foras externas. O homempassadapassividadeaoouatividadefortalecendoaspaixes alegreseodesejo,queaprpriaessnciaatualdohomemparaque sobrepujematristezaeparafortalecersuaprpriaforainternadeexistir72. Completa Chau: medidaqueaspaixestristesvosendoafastadaseasalegresvo sendo aproximadas, a fora do conatus aumenta, de sorte que a alegria e odesejodelanascidotendem,poucoapouco,adiminuirnossa passividade e preparar-nos para a atividade73. EmSpinozahclaramenteumapreocupaoemnegarqueosafetos possam ocasionar a degradao moral, pelo que deveriam ser, portanto, coibidos oueliminados.Eleconsideraarelatividadedobemedomal,daalegriaeda tristezacomofortalecendoouenfraquecendooconatus,aumentandoou 70 CHAU, op.cit., 1995, p. 64.71 DELBOS, op.cit., 2002, p. 138.72 Designado por Spinoza como conatus ou esforo de perseverar no ser. 73 CHAU, op.cit., 1995, p. 71. 53 diminuindoapotnciadeagirdocorpoeapotnciadepensardamente,pois ressaltaqueosafetosdevemsercompreendidoseencaradoscomo absolutamente naturais. Segundo Saraiva: Quando Espinosa denuncia a tradio pelo modo com que esta, ao se referirspaixesincluinoroldosvciosepatologiasdohomem,visa sobretudoademolirposturasatentoarraigadasnasdoutrinasdeste pensamentoquelheanterior.Elesedepararcomproblemasquese imiscuemnasatitudes,nasdiferentesmaneirascomasquaisatradio se manifesta, e que vo exigir dele uma meticulosa anlise, que ter em simesmaumpapelreconstrutor,namedidaemqueasuafilosofiaser calcada numa nova perspectiva de natureza racional, oposta, portanto, a um pensamento permeado pela superstio74. Omovimentointernodosafetospontofundamentaldeanliseparaque tenhamosconhecimentodecomoessesafetosagemsobreocorpoementee comosetornamobalizadordodesejo,queporsuavez,determinaromodode agirdoserhumano.PenetraropensamentodeSpinoza,investigandoacercada teoriadosafetostarefarduaeimprescindvelpararespondersquestes elementaresdoarcabouoticoemetafsicodessefilsofo,taisquais:Como podemos fortalecer nosso conatus para alcanarmos a felicidade? Por que o pleno conhecimentoacercadenossosafetostoimportanteparaatingirmosa beatitude? Ascircunstnciasemquesedesenvolvemosafetos,segundoa compreensodeSpinoza,socapazesdeoferecersubsdiosparaaumentar nossa capacidade de agir75 e de sermos sujeitos atuantes em nossa prpria vida, libertando-nosdocontroledasinterfernciasexternas,poismesmosendo impossveldeixarmosdeserafetados-comoratificaSpinoza-possvelser menossuscetvelsinflunciasexternas,sendopartcipedenossafelicidade. Sobreissoofilsofoatesta:anossamente,algumasvezes,age:outras,na verdade, padece. Mais especificamente, medida que tm idias adequadas, ela 74 SARAIVA, Jorge. In Cadernos Espinosanos p. 97. 75 Agir para Spinoza significa ter idias adequadas. 54 age;medidaquetm idiasinadequadas,elanecessariamentepadece76.(EIII P 1) O autoradverteque so pleno conhecimento acercadosafetose de todas as suas implicaes pode conduzir retamente o ser humano na busca pelos afetos alegreseestimul-loaodesapegosaparncias,ssuperficialidades,aos maniquesmos,auto-depreciaoeaosentimentodeculpa.Acreditaaindaser imprescindvel investigar como osafetos atuam e interferemsistematicamente na subjetividade humana, engendrando conflitos e crises das mais variadas espcies. Logo, aponta para a importncia do papel dos afetos alegres que proporcionam a liberdade, colaborando para o homem seemancipar da ignorncia, do misticismo edassuperstiesquesempretiveramointuitodesubjug-loequepodem contribuirdemaneiraefetivaparaadiminuioeatmesmoaaniquilamentode seu conatus ou da sua potncia de agir. II.3 O CONATUS Ao esforo empreendido pelo ser no sentido de auto-conservao Spinoza - seguindo a tradio moderna77- designou chamar de conatus. Segundo o filsofo, aprpriaessnciaatualdoserouaindaaexpressodapotnciadivina. SpinozaafirmanaParteIIIdaticaquecadacoisaesfora-se,medidaque existe em si, por perseverar em seu ser e todas as nossas aes so resultados desse movimento de perseverao em si. O esforo de perseverar no ser deve tambm ser traduzido como busca de umamaiorperfeioounecessidadecontnuadeaumentarnossapotncia buscandotudoaquiloquenosutil.Comojmencionadoanteriormente,o aumentodapotnciasedatravsdaalegriaqueelevaohomemaumamaior 76Mensnostraquaedamagit,quaedamveropatitur;nempequatenusadaequatashabetideas, eatenusquaedamnecessrioagit,etquatenusideashabetinadaequatas,eatenusnecessrio quaedam patitur (E III PI). 77 CHAU, Op. cit., 1995. p. 63. 55 perfeio. Portanto, o conatus fora que tende a buscar o aumento da alegria e detudoqueestimuleapotnciadeagir.Oconatussecolocacomoesforode auto-conservaoalimentadopelapotnciadecadaumdens.Esseesforo permanenteoquepossibilitavencermosasinflunciasexternasparanos tornarmos ativos e com capacidade de auto-determinao. Quantomenosohomemsedeixadeterminarporcoisasexterioresasi, maisfortaleceoconatusporquesetornaativoe,porconseguinte,autnomoou livre no sentido spinozista. A manuteno da existncia atribuda ao conatus deve sercompreendida,segundoRafaelRodriguesPereira,deformadiferenciadada que usualmente atribumos ao conceito de existncia. Afirma que o conatus a que Spinoza se refere no alude mera preservao do indivduo do senso comum, mastemumaaomuitomaiscomplexaqueenglobaosentidode i