Tese de Ivan Alemão - OAB e Sindicatos

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OAB e SINDICATOS: Importncia da filiao corporativa no mercado

Ivan Alemo Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense, Professor Permanente do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF), Doutor em Cincias Humanas (UFRJ), Mestre em Cincias Jurdicas e Sociais (UFF), Juiz do trabalho titular da 5 Vara do Trabalho de Niteri-RJ

Dedico este trabalho memria de meu av, Anbal da Costa Alemo, nascido em Coimbra em 1881 e falecido em So Paulo em 1964.

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Sumrio Lista de Siglas Apresentao Introduo 1. A Filiao no Associativismo Individualista do Final do Sculo XIX 000 e Incio do Sculo XX 1.1. A importncia da filiao no associativismo classista e no associativismo mutualista 1.1.1. Portugal: filiao supervisionada pelo Estado 1.1.2. Brasil: filiao negligenciada e associao incentivada para atuar no mercado 1.2. Surgimento dos sistemas closed shop e union shop 1.3. A liberdade de filiao vista pelos positivistas 1.4. A liberdade de negociao 1.5. O insolidarismo e a falta de objetividade da filiao 2. Ascenso e Queda da Sindicalizao do Corporativismo de Estado 2.1. A sindicalizao nos Estados corporativos (Portugal e Brasil) 2.2. A importncia da carteira profissional no fortalecimento da sindicalizao 2.3. O enquadramento sindical substituindo a sindicalizao 2.4. A atuao compulsria do no-filiado enquanto fator de enfraquecimento da sindicalizao 2.4.1. Contribuio compulsria do no-scio 2.4.2. Extenso das convenes coletivas pelo poder Executivo 2.4.3. Extenso das normas coletivas pela Justia do Trabalho e a importncia desta para os liberais 2.5. A sindicalizao no perodo democrtico e de movimentos de massa 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000

3. As Ordens Profissionais e a Filiao Obrigatria

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3.1. As redefinies dos grupos profissionais e sua importncia no mercado 3.2. Surgimento das leis de proteo dos grupos profissionais no Brasil 3.3. A criao e a autonomia das Ordens Profissionais em Portugal e no Brasil 4. A OAB e o Mercado de Trabalho e de Consumo 4.1. Surgimento da Ordem dos Advogados no Brasil e em Portugal e as diferenas marcantes em relao a outras Ordens Profissionais 4.2. A relao da OAB com o Poder Judicirio e o Poder Executivo 4.3. A autonomia do campo de trabalho dos advogados: problemas com o controle do mercado judicial 4.3.1. A concorrncia com os provisionados e os solicitadores 4.3.2. A concorrncia com estagirios na Justia do Trabalho 4.3.3. A concorrncia com os prprios clientes 4.4. Problemas com a reduo do mercado extrajudicial e a desjudicializao 4.5. A atuao da OAB e a quantidade de advogados 4.5.1. O problema histrico da quantidade de advogados e as primeiras propostas da AOB para enfrent-lo 4.5.2. Mercado de trabalho dos advogados nas dcadas de 1980-1990 4.5.3. Conflito OAB x MEC 4.5.4. O exame de Ordem O closed door 4.5.5. O estgio e o limbo 4.5.6. Horda de desfiliados. Um novo grupo social? 4.5.7. Os projetos polticos e eleitorais em face dos desfiliados 4.5.8. Processo disciplinar, o purgante doce 5. A Filiao e o Mercado de Consumo 5.1. Nova configurao do profissional liberal como prestador de servios 000 5.2. A presso da Unio Europeia contra as tabelas de honorrios 5.3. As discusses dentro da Unio Europeia sobre profisses liberais e o risco da precarizao 5.4. A desterritorialidade do poder das Ordens de Advogados 5.5. Alguns novos direitos e obrigaes dos advogados 5.6. Novas configuraes das Ordens Profissionais no contexto da Unio Europeia 000

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6. Concluso Bibliografia Principais atos normativos de Portugal Principais atos normativos do Brasil Principais documentos e atos normativos da CE-EU Principais fontes utilizadas (peridicos, textos e sites)

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Lista de Siglas ABC Regies das cidades de So Bernardo do Campo, So Caetano do Sul e Santo Andr (Br) ABPOO Associao Brasileira de Profissionais de ptica e Optometria (Br) ADIn Ao Direta de Inconstitucionalidade (Br) AGU Advocacia Geral da Unio (Br) AIT Associao Internacional dos Trabalhadores Amatra1 Associao de Magistrados da Justia do Trabalho da 1 Regio (RJ/Br) AMB Associao dos Magistrados Brasileiros Anamatra Associao Nacional dos Magistrados da Justia do Trabalho (Br) BIT Repartio Internacional do Trabalho BNH Banco Nacional da Habitao (Br) CAA-DF Caixa de Assistncia dos Advogados do Distrito Federal (Br) CAARJ Caixa de Assistncia dos Advogados do Rio de Janeiro Caged Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Br) CAPS Caixa de Previdncia dos Advogados e Solicitadores (Br) CAT - Comunicado de Acidente de Trabalho (Br) CBO - Conselho Nacional de Oftalmologia (Br) CD Comunicado de dispensa para o seguro desemprego (Br) CBO - Classificao Brasileira de Ocupaes (Br) CCJ - Cdigo de Custas Judiciais (Port) CCJ - Comisso de Constituio e Justia (Br) CCBE - Conselho das Ordens dos Advogados da Unio Europia (UE) CE Comunidade Europia Cedipre - Centro de Estudos de Direito Pblico e Regulao da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Port) CEE Comunidade Econmica Europia (UE) CEJ - Comisso de Ensino Jurdico da OAB (Br) CES Comisso de Enquadramento Sindical (Br) CES/CNE Cmara e Educao Superior do Conselho Nacional de Educao (Br) Cespe/UnB - Centro de Seleo e de Promoo de Eventos da Universidade de Braslia (Br) CF Constituio Federal (Br) CF da OAB Conselho Federal da OAB (Br) CF da OMB Conselho Federal da OMB (Br) CFAS - Conselho Federal de Assistentes Sociais (Br) CFA/CRA Conselho Federal de Administrao/Conselho Regional de Administrao (Br) CFB/CRBiblio Conselho Federal de Biblioteconomia/Conselho Regional de Biblioteconomia (Br) CFBio/CRBio Conselho Federal de Biologia/Conselho Regional de Biologia (Br)

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CFC/CRC Conselhos Federal de Contabilidade/Conselho Regional de Contabilidade (Br) CFE Conselho Federal de Educao (Br) CFESS - Conselho Federal de Servio Social (Br) CFF/CRF - Conselho Federal de Farmcia/Conselho Federal de Farmcia (Br) CFFa/CRFa - Conselho Federal de Fonoaudiologia/Conselho Regional de Fonoaudiologia (Br) CFJ - Conselho Federal de Jornalismo (Br) CFM/CRM - Conselho Federal de Medicina/Conselho Regional de Medicina (Br) CFMV/CRMV - Conselho Federal de Medicina Veterinria/Conselho Regional de Medicina Veterinria (Br) CFN/CRN - Conselho Federal de Nutricionistas/Conselho Regional de Nutricionistas (Br) CFO/CRO - Conselho Federal de Odontologia/Conselho Regional de Odontologia (Br) CFP/CRP - Conselho Federal de Psicologia/Conselho Regional de Psicologia (Br) CFQ/CRQ; Conselho Federal de Qumica/Conselho Regional de Qumica (Br) Ciesp - Centro das Indstrias do Estado de So Paulo (Br) CGT Confederao Geral do Trabalho (Port) Ciet - Conferncia Internacional de Estatsticos do Trabalho (OIT) Cipa - Comisso Interna de Preveno de Acidentes (Br) CIS Comisso Inter Sindical (Port) CITP Classificao Internacional Tipo Profisses (OIT) Ciuo - Classificao Internacional Uniforme de Ocupaes (OIT) CLT Consolidao das Leis do Trabalho (Br) CNAE Classificao Nacional de Atividades Econmicas (Br) CNDS - Comisso Nacional de Direitos Sociais da OAB (Br) CNF Consiglio Nazionale Forense (Itlia) CNI Confederao Nacional da Indstria (Br) CNJ - Conselho Nacional de Justia (Br) CNMP - Conselho Nacional do Ministrio Pblico (Br) CNP Classificao Nacional de Profisses (Port) CNPL Confederao Nacional das Profisses Liberais (Br) CNPL - Conselho Nacional de Profisses Liberais (Port) CNRT Conselho Nacional de Relaes de Trabalho (Br) CNT Conselho Nacional do Trabalho (Br) CNTI Confederao Nacional do Trabalhadores na Indstria (Br) COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Br) Codefat Conselho Deliberativo do FAT (Br) Coffito/Crefito - Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional/Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Br) COM Comunicado (UE) Concla - Comisso Nacional de Classificao (Br) Conclat Coordenao Nacional da Classe Trabalhadora (depois chamada CGT, Br) Conclat Congresso Nacional dos Trabalhadores (Br) Confe/Conre - Conselho Federal de Estatstica/Conselho Regional de Estatstica (Br) Confea/Crea Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia/Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Br) Confere/Core - Conselho Federal dos Representantes Comerciais/Conselho Regional dos Representantes Comerciais (Br)

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Conferp/Conrerp - Conselho Federal dos Profissionais de Relaes Pblicas/Conselho Regional de Profissionais de Relaes Pblicas (Br) Confef/Cref Conselho Federal de Educao Fsica/Conselho Regional de Educao Fsica (Br) Conter/CRTR - Conselho Federal dos Tcnicos em Radiologia/Conselho Regional dos Tcnicos em Radiologia (Br) Cofeci/Creci Conselho Federal dos Corretores de Imveis/Conselho Regional de Corretores de Imveis (Br) Cofecon/Corecon Conselho Federal de Economia/Conselho Regional de Economia Cofen/Coren Conselho Federal de Enfermagem/Conselho Regional de Enfermagem (Br) COM Comunicado (UE) CP Cdigo Penal (Br e Port) CPC Cdigo de Processo Civil (Br) CRAS - Conselhos Regionais de Assistentes Sociais (Br) CRESS - Conselhos Regionais de Servio Social (Br) CRJ - Conselho Regional de Jornalismo (Br) CTPS carteira de trabalho e previdncia social (Br) Deco Associao Portuguesa para a Defesa do Consumidor (Port) DIAP Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Br) DIEESE Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioconmicos (Br) DJ Dirio da Justia (Br) Dnmo Departamento nacional de Mo-de-Obra (Br) DOU Dirio Oficial da Unio (Br) EC Emenda Constitucional (Br) ELDR Partido Europeu dos Liberais, Democratas e Reformistas (UE) Enade - Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Br) ETN Estatuto Nacional do Trabalho (Port) FAO Federao das Associaes Operrias (Port) FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador (Br) FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Servio (Br) Fiesp Federao das Indstrias de So Paulo FIP - Federao das Indstrias Paulistas FNT Frum Nacional do Trabalho (Br) GAFI - Grupo de Ao Financeira (internacional) Gats - Acordo Geral sobre Servios (internacional) IBGE Brasileiro de Geografia e Estatstica (Br) IDD - ndice de Desempenho Desejvel (Br) IEFP Instituto do Emprego e Formao Profissional (Port) IHS Instituto de Estudos Superiores (UE) INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Ansio Teixeira (Br) INTP Instituto Nacional do Trabalho e Previdncia (Port) INPS Instituto Nacional de Previdncia Social (Br) INSS Instituto Nacional de Seguro Social (Ex- INPS, Br) IOAB Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (Br) Isco - International Standard Classification of Occupations (UE) ISSB Servios Sociais do Brasil (Br) JOC Jornal Oficial da Comunidade (UE) Loas Lei Orgnica da Assistncia Social (Br) LCT Lei do Contratdo de Trabalho (Port)

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LRCT Lei das Relaes Coletivas de Trabalho (Br) MEC Ministrio da Educao e Cultura e Ministrio da Educao e do Desporto (Br) MP Medida Provisria (Br) MTE Ministrio do Trabalho e Emprego (Br) MTSS Ministrio do Trabalho e da Solidariedade Social (Port) MUM Movimento Unificado Metalrgico (Br) NEP Nova Poltica Econmica (URSS) NLRB Conselho National Labor Relations Board (EUA) OA Ordem dos Advogados (Port) OAB Ordem dos Advogados do Brasil OCDE - Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico (internacional) OMB Ordem dos Msicos do Brasil OIT Organizao Internacional do Trabalho PCP Partido Comunista Portugus PDT Partido Democrtico Trabalhista (Br) PFL Partido da Frente Liberal (Br) PIS Programa de Integrao Social (Br) Plasc Plano de Assistncia de Sade Complementar (Br) PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro (Br) PNAA Programa Nacional de Acesso Alimentao (Br) PP Partido Progressista (Br) PPE-DE Partido Popular Europeu Democrata-Cristo (UE) PPS Partido Popular Socialista (Ex- PCB) PR Partido da Republica (Br) PSE Partido Socialista Europeu (UE) PT Partido dos Trabalhadores (Br) PSDB Partido da Social Democracia Brasileira (Br) PTB Partido Trabalhista Brasileiro (Br) PUC Pontifica Universidade Catlica (Br) PV Partido Verde (Br) Rais - Relao Anual de Informaes Sociais (Br) SRT/MTE Secretaria das Relaes de Trabalho do Ministrio do Trabalho e Emprego (Br) SEADE Fundao Sistema Estadual de Anlise de Dados (Br) SESu - Secretaria de Educao Superior do MEC (Br) SFH Sistema Financeiro da Habitao (Br) Sine - Sistema Nacional de Emprego (Br) SNE - Servio Nacional de Emprego (Port) STF Superior Tribunal Federal (Br) STJ Superior Tribunal de Justia (Br) STU Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp TED Tribunal de tica e Disciplina da OAB (Br) TCE Tratado da Comunidade Europia (UE) TCU Tribunal de Contas da Unio (Br) TFR Tribunal Federal de Recurso (Br) TJCE - Tribunal de Justia da Comunidade Europia (UE) TJ/SP Tribunal de Justia de So Paulo (Br) TRT Tribunal Regional do Trabalho (Br) TST Tribunal Superior do Trabalho (Br) TUE Tratado da Unio Europeia (UE)

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UE Unio Europeia

Apresentao e Agradecimentos Essa tese foi defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCSPPGSA) em julho de 2008, para aquisio do ttulo de doutor, aps estudos realizados no Brasil e em Portugal (Universidade de Lisboa -ICS) com apoio da Capes e do TRT-1 Regio. Embora essa tese tenha sido redigida nos ltimos trs anos e meio, ela reflete uma trajetria pessoal iniciada no final da dcada de 1970, quando eu ainda era estudante na Faculdade de Histria da Universidade Federal Fluminense e participei, como estagirio, de um projeto com as professoras Elina Gonalves da Fonte Pessanha e Ismnia Martins, na Hemeroteca Estadual de Niteri. Quando me formei, prossegui a pesquisa por meio de uma bolsa de aperfeioamento do CNPq em 1980-2 (que resultou no trabalho Histria dos Institutos de Aposentadoria e Penses), sob a orientao do professor Luiz Antonio Machado da Silva, na poca professor do Instituto Universitrio de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj). Este estudo despertou o interesse pela advocacia, ento cursei a Faculdade de Direito na UFF, concluda em 1987. Tive sorte em estagiar e advogar em importantes sindicatos num momento histrico relevante, quando foram editados trs Planos Econmicos (Cruzado, Vero e Collor) e foi instalada a Assemblia Constituinte. Estagiei e depois trabalhei como advogado no Sindicato dos Trabalhadores Metalrgicos de Niteri, o primeiro sindicato operrio do Estado do Rio de Janeiro a ter uma diretoria pr-CUT. Como advogado de outro sindicato, o dos Metalrgicos do Rio de Janeiro o segundo maior da Amrica do Sul criei e coordenei o Departamento de Coletivo, sob a primeira gesto da CUT. Depois de cinco anos atuando nessas duas entidades, fiz concurso pblico para a Magistratura do Trabalho, tendo sido aprovado em 1993. Em 1995, aps passar no concurso pblico para o magistrio, assumi a funo de professor adjunto de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da UFF, na qual hoje atuo como professor assistente. Tambm foi na UFF que fiz o mestrado em

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Cincias Sociais e Jurdicas, que faz parte dos cursos de Sociologia e de Direito, orientados por um projeto interdisciplinar de abordagem do trabalho e da cidadania. Conclu o curso em 2001 com a dissertao Desemprego e Direito ao Trabalho, sob a orientao do professor Andr Laino. O novo passo foi o doutorado, que ora concluo. Fao este relato consciente do risco de no agradar aos que negam a relao pessoal entre o pesquisador e seu objeto de estudo. No sou capaz de dizer se, em minha pesquisa, essa antiga relao com os sindicatos e a advocacia foi positiva. Mas a verdade que pude aproveitar reflexes desenvolvidas ao longo de todos esses anos. Agradeo de corao orientadora Elina Gonalves da Fonte Pessanha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que tem estabelecido uma importante ponte entre a Sociologia e o estudo das relaes jurdicas e judiciais dos trabalhadores e que, principalmente, soube me compreender e comprometer, o que, certamente, no foi tarefa fcil. Agradeo tambm a meu co-orientador em Lisboa, Antnio Costa Pinto (ICSUL), sempre atencioso e que me transmitiu vlidos ensinamentos. Agradeo a Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva, profunda conhecedora do Direito Coletivo e do Exame de Ordem e que j coordenou a Banca Examinadora da OAB do Rio de Janeiro; e ao professor Eduardo Garuti Noronha, importante estudioso das normas do mercado e das relaes de trabalho no Brasil. Ambos compuseram a banca examinadora de minha tese, ao lado de minha orientadora e dos professores Francisco Carlos Palomanes Martinho, valioso historiador do corporativismo portugus e brasileiro, e Regina Lcia de Moraes Morel, estudiosa do corporativismo e da Justia do Trabalho. Meus agradecimentos ao professor e colega Jos Ribas Vieira (UFF), que me ajudou a interagir a Sociologia com o Direito; e ao professor Andr Laino (UFF), sempre amigo e orientador. Agradeo, ainda, aos professores do doutorado (PPGSA-IFCS-UFRJ) Maria Lgia Barbosa, que me apresentou Sociologia das Profisses, Charles Pessanha, Elisa Reis, Paola Cappellin, Marco Aurlio Santana e Jos Ricardo Ramalho. Agradeo tambm ao amigo e secretrio da OAB-RJ Marcelo Chalo, que me ajudou a encontrar dados importantes para esta pesquisa; a Luiz Salvador, presidente da Associao Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat), ilustre advogado. Agradeo a minha irm Kathia Ferreira pelo incentivo que me deu nos momentos mais rduos da elaborao desta tese, aos amigos, que sempre me apoiaram e ajudaram a definir este estudo, em especial a minha companheira Ana Martha Mandetta, e a dois juristas que muito discutiram comigo o Exame de Ordem, Diogo Menchise Ferreira 10

e Marcus Vincius Mandetta Medeiros; meus colegas de trabalho e de discusso jurdica diria Gerson Lester Corra Moreira e Ana Paula de Moura Bonfante ; a meus amigos histricos, do mundo jurdico e sindical, Csar Dria, Aderson Bussinger, Rodrigo Carelli, Wilson Prudente, Rosilda Lacerda, Eliete da Silva Telles, Nilton de Souza Soares Neto, Marlia Medeiros, Roberto Fragale Filho, Rogrio Lucas Martins, Marcelo Augusto de Oliveira Souto, Benimar Marins, Leonel Alvim, Wilson Madeira, Felipe Santa Cruz, Julio Aurlio Vianna Lopes, Denis Halis, Alexandre Veronese Agiar, Alexandre Bibiani, Delton Meirelles, Patrick Maia Mersio, Teresa Cristina Basteiro, Marcos Cavalcante, Alexandre Teixeira de Freitas, Fbio Gomes, Elma Pereira, Doris Castro, Ivan Rodrigues, Aloysio Santos, Paulo Cardoso, Paulo Priss, Cludia Mrcia Soares, Mnica Brando, Lila Bokelmann, Oswaldo Mesquita, Marcel Bispo, Amlia Valado, Bisa Junqueira, Paulo Cardoso Silva, Roque Bonfante, Aldo Alves, Maurcio Drummond, Denize DAssumpo, Dalva Amlia, Aurora Coentro, Leonardo Borges, Jos Nascimento Arajo Neto, Sergio Rodrigues, Mrcia Cristina Cardoso, Paulo Maurco Campanha, Jorge Orlando Ramos, Antonio Jos Barbosa da Silva, ndio do Brasil, Manoel Martins, Alexandre e Geraldo Bezerra de Menezes, Gustavo Maya, Emil Von Mnchen, Nivaldo Renato Guimares, Magda Biavaschi e Ricardo Fraga. Agradeo meus pais, Paulo e Yara. E tambm aos colegas estudiosos portugueses e brasileiros que compartilharam estudos em Portugal, entre eles, Francisco Martinho, Manuel Villaverde Cabral (ICS), Luiz Antonio Machado (UFRJ), Donaldo Bello (UERJ), Nuno Estevo Ferreira (ICS), Filipina Chinelli (UFF), Nilda Stecanela (UFRG), Karla Cunha Pdua (UFMG), Roseli Porto (NIGS), Reginaldo Meloni (Unicamp), Jaqueline Ventura (UFF), Antnio Garcia Pereira (advogado e jurista portugus), Diogo Ravara (Juiz do Tribunal do Trabalho de Lisboa). E agradeo ainda a todos aqueles que, apesar de no citados, sabem da importncia que tm na minha trajetria. Por fim, agradeo ao Programa de Ps-Graduao de Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), que propiciou o prprio doutorado; Capes, que me concedeu a bolsa-sanduche; ao Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), que me acolheu por um ano; e OAB-RJ, que me forneceu dados sobre Exame de Ordem e processos disciplinares. UFF, da qual me considero um eterno aluno, e ao Tribunal Regional do Trabalho TRT da 1 Regio, que um laboratrio de Justia social, um agradecimento especial por me haver concedido licena para melhor desenvolver esta pesquisa. 11

Introduo A importncia da filiao corporativista entre os trabalhadores surgiu para ns como tema quando nos propusemos a analisar o corporativismo num espao que contivesse no apenas os sindicatos, mas tambm as Ordens Profissionais. Essas duas formas de corporao se distinguem sob vrios aspectos no que se refere s relaes com o Estado, a poltica, os filiados, os grupos oponentes, as massas, as classes. Priorizamos, no entanto, um nico ponto de encontro: a filiao. E ela aqui analisada a partir de uma pergunta simples, que pode ser feita por qualquer trabalhador mdio. Vale a pena se filiar? Essa pergunta comeou a adquirir pertinncia no final do sculo XIX, quando surgiram as associaes livres. Essas associaes, j menos corporativistas que as medievais, procuravam conviver com a liberdade individual. A filiao passou, ento, a ser uma opo que no raramente se transformava em assunto polmico. E esse problema no menor quando ela tem carter compulsrio. Alertamos, desde logo, que no pretendemos dar ao tema uma resposta definitiva, nem pretendemos defender uma opinio a favor ou contra as corporaes. Num plano geral, achamos que as corporaes fazem parte de nossa sociedade tal como o Estado, com seus aspectos positivos e negativos. Neste estudo, deter-nos-emos na importncia da filiao corporativa e esta ser analisada a partir dos resultados histricos que propicia ao trabalhador associado no mercado de trabalho. Partimos do pressuposto de que as filiaes existem e de que o trabalhador tem conscincia do status que representa ser ou no um filiado, uma vez que a filiao corporativa pode definir sua situao econmica e social, no sendo, necessariamente, mera opo ocasional. Embora no tenhamos a pretenso de darmos uma resposta integral e final nossa pergunta inicial, ela nos estimulou e ajudou a definir o objeto de estudo, em torno do qual arriscamos algumas teses. Em nossa imaginao, o trabalhador mdio de que falamos aquele que tem uma ocupao profissional definida, no reconhecido como lder, embora no seja desinformado, e faz parte de um contingente majoritrio dentro de seu grupo ocupacional. Ou seja, aquele que tem interesse na evoluo do grupo ao qual se sente pertencente e, 12

ainda, aquele que tem esperana de que a filiao corporativa seja til para si prprio, o grupo e a sociedade. O objeto de nosso estudo , portanto, a filiao corporativa de trabalhadores assalariados e de profissionais liberais. Os advogados aparecem nesta pesquisa como atores principais por servirem de paradigma para outros grupos ocupacionais de trabalhadores. A filiao corporativa engloba a sindicalizao e a inscrio em ordens. O grau de importncia da filiao equivale aos direitos que esta propicia no mercado de trabalho, substancialmente para os assalariados, e no mercado de consumo, para os profissionais liberais. Sempre acreditamos que as campanhas de sindicalizao do perodo psditadura militar iam do apelo ideolgico oferta de brindes, superestimando ou subestimando o sindicalizante. Por outro lado, existem mecanismos, propiciados por oponentes de classe ou at mesmo pelo sindicalizador, que atuam a favor da no-filiao ou da desfiliao e que banalizam a prpria sindicalizao. Por vezes, nem o sindicalizador est convencido da utilidade da sindicalizao, no conseguindo, por isso, convencer o sindicalizante. refutvel dizer que a filiao boa por princpio e que um grande nmero de filiados sempre conveniente para o grupo social. Talvez tenha faltado uma discusso sobre o tema, sobretudo a partir da Constituio Federal de 1988, quando os sindicatos adquiriram maior liberdade e importncia nos contextos poltico e social. A literatura existente sobre o sindicalismo no deu relevncia indagao sobre o sentido da sindicalizao, abordando-a, em geral, em seu aspecto quantitativo. No esta a nossa preocupao maior. Aproveitamos a tese de Mancur Olson (1999), de que o sucesso do sindicalismo no depende da quantidade de sindicalizados, ainda que um grande nmero de filiados possa expressar fora poltica em alguns momentos. Essa tese se confirma quando vemos uma associao poderosa como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) rejeitando a filiao de novos bacharis em desagravo ao volume de faculdades de Direito hoje no Brasil, tema que ser tratado no Captulo 4. Para rastrear a importncia da filiao corporativa, retrocedemos no tempo, procurando traar um paralelo histrico entre os sindicatos e as Ordens Profissionais. Esses dois tipos de corporao tiveram caminhos prprios, embora ambos, de algum modo, tenham vivido experincias de filiao com preocupaes de defesa de grupos profissionais. Para expor essa trajetria, recuamos at o final do sculo XIX, quando as corporaes comearam a ser permitidas. Nessa poca, caracterizada por governos liberais e lderes sindicais radicais, teria tido a sindicalizao um significado 13

mais preciso? Qual o papel das associaes de mtuos socorros na filiao das associaes de classe? Qual a relao entre a filiao nas associaes de profissionais e nas de assalariados? Que trajetrias esses tipos de filiao corporativa seguiram? Dedicamos parte do Captulo 1 a estas indagaes. Dois livros bem conhecidos nos serviram de referncia para o levantamento da estrutura sindical brasileira: Problemas de Direito Sindical, de Oliveira Vianna, escrito e publicado em 1943; e O Problema do Sindicato nico no Brasil Seus Fundamentos Sociolgicos, de Evaristo de Moraes Filho, escrito em 1952. Segundo os dois autores, os sindicatos surgem espontaneamente a partir da existncia de grupos profissionais, o que os levou a defender a unicidade sindical. E ambos apontam a falta de solidariedade entre os trabalhadores brasileiros, fenmeno a que chamam insolidarismo. Seria essa caracterstica um componente importante para explicarmos uma possvel fragilidade da sindicalizao no Brasil? Ainda no Captulo 1, enfrentamos esta questo. Em relao s Ordens Profissionais, a Sociologia das Profisses que oferece os estudos mais profundos. Entre eles, destacamos alguns clssicos, como o de Magali Larson (1977), que relaciona os grupos profissionais conquista do monoplio de mercado de trabalho; o de Abbott (1988), que aponta a importncia dos conflitos de jurisdio; o de Freidson (1994), sobre o credenciamento profissional; e o de Vital Moreira (1997), sobre o poder de autorregulao das ordens. Na literatura brasileira, destacamos os trabalhos de Marcelo Marinho (1986), que trata das Ordens Profissionais e dos sindicatos dentro da estrutura corporativista; o de Maria Glria Bonelli (1999), que procura demonstrar a trajetria dos advogados da poca do IOAB at a Primeira Repblica; o de Edmundo Coelho (1999), que faz uma anlise das chamadas profisses imperiais at 1930 e esmia muito bem a poltica contra o credenciamento adotada no Brasil no incio da Repblica; o de Maria Ligia de Oliveira Barbosa (1998), que analisa a importncia dos projetos dos grupos profissionais; o de Joaquim Falco (1984), que aborda o ensino jurdico e o mercado de trabalho dos advogados; os de Edmundo Arruda Junior (1988) e de Roberto Aguiar (1991) que, da mesma forma que Falco, diagnosticaram a existncia de uma crise na advocacia no incio da dcada de 1980, entre outros estudos, arrolados em nossa bibliografia. No mbito da anlise do papel do Estado, desde as primeiras polticas liberais contra a pobreza at as novas configuraes das crises na sociedade salarial, foi de grande valia a pesquisa de Robert Castel (1998). O processo de descentralizao do 14

trabalho um fator inexorvel de enfraquecimento do sindicalismo de tipo fordista e no por acaso a Sociologia do Trabalho tem ressaltado as transformaes das relaes produtivas. Nessa linha, utilizamos os dados de Andr Gorz e Ricardo Antunes, especialmente por terem dado conta das transformaes sofridas pela classe trabalhadora. Por isso procuramos dar continuidade s anlises sobre o que passou a ser conhecido como precarizao do trabalho e/ou do trabalhador, que uma das caractersticas mais marcantes da era neoliberal no final do sculo XX, mais por sua intensidade do que por um possvel ineditismo. Esses temas esto desenvolvidos nos Captulos 4 e 5. Ao longo da Histria, em diversos momentos os sindicatos enfrentaram o problema da precarizao do trabalho. Mas parece-nos que, agora, a dificuldade de eles prprios se firmarem como um instrumento para o enfrentamento da questo. E a deficincia da sindicalizao , a nosso ver, um fator importante para a ausncia de respostas a essa nova conjuntura. A impresso, nos dias atuais, de que os lderes das associaes de trabalhadores esqueceram que o associativismo constitudo por associados. Por vezes, percebemos que muitos pensam a partir do sindicato enquanto instituio, no se lembrando da razo de ser do prprio sindicato. Essa , tudo leva a crer, uma herana do corporativismo de Estado. Os sindicatos, antes de serem vencidos pelo mercado, j tinham perdido o seu sentido associativo mais puro, de aglutinao, de organizao e de defesa dos interesses de um grupo ocupacional. O movimento sindical brasileiro no teve suas bases fundamentadas na sindicalizao, e sim num jogo poltico que, independentemente de ser positivo ou negativo, acabou por deformar o projeto de crescimento do corpo associativo. Defendemos essas assertivas nos dois primeiros captulos. No final do segundo, procuramos avaliar se o chamado novo sindicalismo, surgido no final da dcada de 1970, fortaleceu a sindicalizao, no levando em conta, nesse caso, se ele cumpriu ou no um papel relevante na democratizao do Brasil. Procuramos demonstrar que, enquanto as Ordens Profissionais surgiram e se desenvolveram respondendo a necessidades de grupos, os sindicatos ficaram mais voltados para os interesses polticos do Estado e dos partidos polticos. Com essa premissa, defendemos a tese de que a estrutura sindical brasileira, de fato, no se formou tanto a partir de grupos profissionais, como esperavam Oliveira Vianna e Moraes Filho. Apresentamos a hiptese de que o enquadramento sindical substituiu parte significativa da finalidade da sindicalizao, uma vez que ele acabou se tornando o caminho direto

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para que o trabalhador tivesse acesso aos direitos da negociao coletiva e a da Previdncia Social. Por sua vez, em relao aos profissionais liberais, advogamos a tese de que eles seguiram um caminho diferente do perseguido pelos sindicatos. Por no terem com quem negociar, nos moldes sindicais, buscaram leis de proteo de mercado e, dessa forma, puderam organizar seus respectivos grupos com o auxlio da expanso do ensino universitrio. Esse processo foi possvel aps o enfraquecimento do positivismo poltico da Primeira Repblica e, tambm, por no estarem os profissionais liberais submetidos s diretrizes da OIT do perodo ps-Segunda Guerra Mundial, que impuseram a liberdade de filiao. Assim, enquanto os sindicatos espelhavam mais diretamente os conflitos de classe, as ordens dos profissionais liberais refletiam mais diretamente as relaes de consumo, no tendo como oponente o empregador, e sim o consumidor. Outro ponto que visamos demonstrar neste estudo a influncia da liberdade de filiao na sindicalizao brasileira. Essa liberdade pareceu-nos, a princpio, se assemelhar mais a um slogan do que a uma efetiva poltica; porm nosso estudo acabou por demonstrar que ela teve uma importncia significativa na consolidao da estrutura corporativa nacional. Defendemos a tese de que a liberdade de filiao foi imposta pelos liberais e, por conseqncia, bem aceita no mercado liberal, perdurando, por isso, nos regimes autoritrios. Por esse prisma, perguntamo-nos se haveria atrito entre a liberdade de filiao e a liberdade de organizao, o que expressaria o velho conflito entre individualidade e Direito Coletivo, tema que volta tona sempre que as negociaes coletivas, no neoliberalismo, comeam a suprimir os direitos dos trabalhadores (clusulas in pejus). Uma problemtica que nos acompanhou durante toda a pesquisa foi o fato de algumas regras de filiao serem rejeitadas por grande parte dos autores estudados quando aplicadas aos sindicatos, o mesmo no ocorrendo com relao s Ordens Profissionais. Referimo-nos, basicamente, a trs regras: obrigatoriedade de filiao, obrigatoriedade de contribuio e unicidade organizativa. Defendemos a hiptese de que a necessidade sentida pelas Ordens Profissionais de aplicar estas trs regras, que restringem a liberdade, decorre da possibilidade real de o consumidor intervir na prpria corporao, por exemplo, por meio da abertura de um procedimento disciplinar contra um membro da corporao. Novidade no corporativismo, essa possibilidade desenvolvida nos Captulos 4 e 5. 16

Quando apresentamos o projeto deste estudo banca de qualificao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), composta por nossa orientadora, Elina Gonalves da Fonte Pessanha, e os professores Jos Ribas Vieira e Regina Lcia de Moraes Morel, foi-nos recomendado que dssemos destaque ao grupo profissional dos advogados, tal a importncia da OAB. Para o professor Ribas, essa ordem veste, sob medida, os pressupostos do corporativismo. Procurar entender alguns de seus mecanismos de filiao foi, portanto, um desafio. E nosso estudo revelou que essa corporao vem apresentando um problema que cresce a cada dia, de forma nunca vista. No caso da OAB, a pergunta do trabalhador mdio a que nos referimos, e que norteou nossa pesquisa, ganha uma conotao particular. Em todas as Ordens Profissionais, a filiao representa uma condio legal para o exerccio da atividade. Mas, na OAB, essa exigncia acrescida de um exame de carter eliminatrio. Defendemos a hiptese de que a OAB vem fazendo uma espcie de campanha de desfiliao. Neste estudo, a palavra desfiliao tem um duplo sentido: de associativo estatutrio e de marginalizao social. O estagirio perde a sua filiao quando esgota seu prazo de estgio e, se no foi aprovado no Exame de Ordem, no pode manter sua inscrio. J o sentido social da desfiliao se d com todos os bacharis de Direito que no foram aprovados nos Exames de Ordem e que, portanto, no possuem habilitao para exercerem a advocacia. Processa-se quase uma campanha de desfiliao da Ordem, com forte reflexo social. Por isso, a expresso desfiliao tambm foi utilizada por ns de forma semelhante utilizada por Castel (1998, p.26 e 569), com o significado maior de processo de transformao social e menos de excluso social em seu sentido estanque. Trata-se, a nosso ver, de uma crise de crescimento, que quando uma associao luta para reduzir o nmero de seus filiados. A OAB justifica a rigidez de seus critrios para filiao sob o argumento de que a maioria das inmeras faculdades no forma os bacharis adequadamente. O debate , assim, levado para o campo do ensino jurdico, quando a base do problema est no mercado de trabalho. A nossa hiptese de que a OAB, que teve fora para afastar todos os grupos ocupacionais concorrentes, entre eles os solicitadores, atraiu para si a concorrncia de mercado, j que a nica ordem profissional que luta mais contra o prprio grupo do que contra outros. Chegou quase a criar um segundo grupo profissional, formado apenas por filiados. E sob critrios corporativos, desprezando os diplomas emitidos pelas faculdades. Um dos riscos que a expertise adquirida na universidade deixe de ser o referencial do grupo, substitudo pelo da inscrio na corporao. 17

O estudo da OAB levou-nos a procurar algumas fontes em Portugal, pas cuja ordem dos advogados serviu de modelo para a criao da ordem brasileira. A leitura do livro de Francisco Carlos Palomanes Martinho (2002) abriu-nos as portas para a pesquisa do sindicalismo portugus. Seguindo pistas apontadas por esse autor, procuramos o professor Antnio Costa Pinto, do Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa, que aceitou ser nosso coorientador na bolsa-sanduche da Capes. Essa bolsa permitiu-nos pesquisar durante um ano na capital portuguesa, na condio de investigador visitante. Sendo assim, pudemos ampliar nossas possibilidades e efetuar comparaes pontuais entre a estrutura corporativista brasileira e a portuguesa, essenciais para o desenvolvimento de alguns aspectos de nossa pesquisa. Portugal e Brasil tiveram o mesmo modelo de Estado Novo, seguido de um processo de democratizao onde a estrutura corporativista foi preponderante. Quanto ao perodo mais recente, de globalizao, verificamos que as comparaes j no poderiam se limitar a Brasil e a Portugal, tendo em vista as recentes e inovadoras experincias trabalhistas na Unio Europia (UE). Todos os pases europeus seguem hoje as normas internacionais e so fiscalizados e punidos por rgos da UE. O estudo na Europa permitiu-nos aprofundar o aspecto da importncia da filiao corporativa em relao aos consumidores. A discusso sobre o papel das Ordens Profissionais junto ao mercado de consumo se encontra evoluda na Unio Europia, embora no totalmente resolvida. At porque a livre circulao de trabalhadores entre os Estados-membros tem causado mudanas de atitudes no que tange aos direitos e deveres dos filiados. Tambm procuramos encarar a filiao corporativa sob duplo aspecto: o da dominao do mercado de trabalho e o da dominao do mercado de consumo. Tratamos disso no Captulo 5. Com o estudo em Portugal, foi possvel ainda situar melhor o cenrio brasileiro no mbito internacional e confirmar a influncia da herana liberal no Brasil. Isso se tornou mais claro quando comparamos a situao trabalhista no Brasil com o sistema adotado na Europa, onde a precariedade do trabalho legislada e no empurrada para as relaes informais. Essa diferena de postura diante do mercado gera conseqncias quanto firmeza tica do grupo profissional e quanto ao grau de interferncia da ordem profissional no grupo social. A partir da, construmos uma nova hiptese, desenvolvida no Captulo 4: a de que o mercado brasileiro prejudica a qualidade tica profissional, sobretudo por causa de sua grande informalidade. 18

E, por ltimo, elaboramos a hiptese, explanada no Captulo 5, de que aps a precarizao do trabalho assalariado, h agora a possibilidade institucional de ocorrer a precarizao do trabalho dos profissionais liberais. Essa possibilidade apresentada especulativa, no conclusiva, e parte do fato, este sim comprovado, de que, sob a presso dos consumidores, existe hoje no mbito de muitos pases uma tal unificao de regras profissionais que tira das Ordens Profissionais a fora institucional para impor regras vantajosas no mercado. Referimo-nos s profisses liberais em geral e no apenas advocacia no Brasil, como abordado no Captulo 4. Em funo da tentativa de harmonizao da regulamentao estatutria das profisses liberais o que vem acontecendo na Unio Europia com o objetivo de propiciar a circulao de trabalhadores , possvel que haja um nivelamento por baixo das condies de trabalho desses profissionais, o que j ocorreu com os assalariados de diversas ocupaes. Nosso trabalho apresentado em cinco partes. As duas primeiras concentram os temas relativos aos sindicatos; as outras trs focam as Ordens Profissionais. O Captulo 1 busca as origens tanto da filiao associativa no Brasil e em Portugal, do final do sculo XIX ao incio do XX, quanto das discusses sobre o insolidarismo dos trabalhadores. No Captulo 2, procuramos demonstrar o significado da filiao desde os Estados autoritrios formados no Brasil e em Portugal na dcada de 1920-30 at pocas mais recentes, quando o corporativismo sofreu modificaes substanciais nos dois pases. No Captulo 3, analisamos a constituio das leis de proteo dos profissionais liberais. No Captulo 4, enfocamos a OAB, desde sua fundao at os principais problemas enfrentados por ela no mercado de trabalho. O ltimo captulo se concentra na situao das profisses liberais na Unio Europia, sob o ponto de vista, sobretudo, da relao das Ordens Profissionais com os consumidores.

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1. A Filiao no Associativismo Individualista no Final do Sculo XIX e Incio do Sculo XX Resumo: neste captulo, expomos o incio do associativismo para ressaltar os primeiros significados das filiaes corporativas modernas, tendo como campos de anlise Portugal e Brasil. O objetivo identificar se o associativismo entrou em conflito com o mercado e o Estado e qual a importncia das iniciativas voluntrias dos grupos profissionais. Procuramos abordar os seguintes pontos: 1) o desenvolvimento do associativismo de classe ao lado do associativismo mutualista; 2) a consolidao da liberdade de associao ao lado da liberdade de filiao; 3) as tentativas de tornar a filiao um meio de reserva de mercado, tanto entre os trabalhadores assalariados quanto entre os profissionais liberais; 4) os pontos de vista dos liberais, dos positivistas, dos anarquistas e as teorias da solidariedade dos grupos profissionais. 1.1. A importncia da filiao no associativismo classista e no associativismo mutualista Comecemos historicamente, pelos primrdios do associativismo da classe operria, quando nem todos os sindicatos eram tolerados e a perspectiva da criao de leis de proteo de mercado de trabalho ainda no era colocada efetivamente como uma alternativa de favorecimento de um grupo profissional. Quando as primeiras associaes operrias comearam a surgir, no sculo XIX, aps longo perodo de proibio 1, a referncia bsica para a oferta de emprego e a fixao de salrios era a lei de mercado. No documento da Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT) para o Congresso de Genebra de 1866, que trata dos sindicatos, esta questo foi expressa nos seguintes termos:A nica fora social que os trabalhadores possuem o seu nmero. Mas a fora do nmero anulada pela desunio. Essa desunio dos trabalhadores engendrada e perpetuada pela concorrncia inevitvel que se fazem uns aos outros. Os sindicatos nascem dos esforos espontneos de operrios em luta contra as ordens despticas do1

O direito de associao s foi permitido na Inglaterra em 1871 e, na Frana, em 1884, j que at ento era proibido pela famosa Lei Le Chapelier, de 1791(Orlando Gomes,1981, p. 524).

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capital, para impedir ou, pelo menos, atenuar os efeitos desta concorrncia que os trabalhadores fazem entre si.2

O inimigo da AIT era o capitalista; mas a preocupao imediata dizia respeito concorrncia entre os prprios trabalhadores, o que desvalorizava o salrio. Em todo o mundo, diversos sindicatos perseguiam os trabalhadores que aceitavam salrios inferiores ao piso fixado, unilateralmente, por aqueles. Na definio do terico italiano Pissarelli (1973), o sindicato surgiu para disciplinar a concorrncia entre trabalhadores e entre empregadores. A luta era, pois, contra iguais. As chamadas unies se voltavam para a lei de oferta e procura e a filiao no tinha muito significado, sendo mais uma forma de cotizao financeira para organizar campanhas de lutas. Com o aumento do exrcito industrial de reserva e a explorao da maisvalia relativa, a possibilidade de os sindicatos interferirem direta e unilateralmente na lei de oferta e procura ficou extremamente reduzida. O aumento da oferta de trabalhadores, fruto do trajeto do campocidade, adicionado s necessidades tecnolgicas de fazer com que um nico trabalhador produzisse a mesma quantidade que antes dependia de vrios para ser obtida, propiciou no s a desvalorizao dos salrios mas tambm o risco da reduo de empregos. As primeiras lutas para evitar demisses consistiam nas conhecidas quebras de mquinas, logo reprimidas por se tratar de atos ilcitos. Como manter um sistema associativo legal, ou pelo menos tolerado, que pudesse interferir na contratao e na fixao do preo dos servios foi uma preocupao constante de todos os grupos profissionais. Duas alternativas foram desenvolvidas para suprir essa limitao do poder de interferncia direta das associaes de classe no mercado de trabalho. Uma foi no sentido de tornar ainda mais politizadas as aes associativas, pressionando a edio de leis protetoras ou diretamente o empregador. Se essa opo colocava a ao das associaes de classe mais no cenrio aberto opinio pblica, a outra se voltava mais para dentro das prprias associaes, priorizando o acmulo de capital por meio de cotizaes (o mutualismo). A primeira alternativa estava mais preocupada com as condies de vida no trabalho (o emprego, o salrio etc.) e a segunda, com as condies de vida fora do trabalho (o desemprego, o infortnio etc.). Ambas se entrelaavam e divergiam, tendo colaborado, respectivamente, para o surgimento do Direito do Trabalho

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Fonte: O Partido de Classe II Problemas de Organizao Seleo, Introduo e notas de Roger Dangeville, Publicao Escorpio, 1975, Porto.

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e da Previdncia Social. A distino entre essas duas vertentes s ocorreu com maior clareza gradualmente, sobretudo a partir das dcadas de 1920-30. As dificuldades encontradas nas associaes de classe em suas aes para a rua, ou seja, em direo ao mercado ou aos rgos pblicos, fizeram com que muitas se aproximassem das associaes de mtuos socorros, que tinham um significado de filiao mais permanente, com menos altos e baixos. No entanto, os dois tipos de associaes sofreram mudanas expressivas em funo das polticas implementadas pelos governos: em Portugal de forma mais intervencionista e no Brasil, mais liberal, o que atingiu a relao entre o scio e a entidade, como veremos a seguir. O processo entre as associaes classistas e as associaes mutualistas, ora de identificao, ora de afastamento, passou por divergentes opinies ideolgicas no incio do sculo XX. Em alguns pontos, o significado da filiao sob a influncia do mutualismo entrava em choque com a filiao mais politizada, almejada pelos movimentos anarquistas e socialistas, que seguiam as diretrizes da Associao Internacional do Trabalho (AIT). Contudo, em outros pontos, no havia embate. Um fator de divergncia era a possibilidade de filiao mista, que reunia empregados e empregadores na mesma entidade, como defendido pelos catlicos. Se isso inibia o seu grau de combatividade, tambm fortalecia a estrutura mutualista. O mesmo se pode dizer em relao interveno fiscalizadora do governo nos assuntos da associao, valorizada pelos filiados mutualistas. A interveno estatal evitava aplicaes financeiras arriscadas e corrupo, ainda que reduzisse a autonomia da entidade, o que era criticado pelos revolucionrios. Se o acmulo de capital e sua administrao eram imprescindveis no mutualismo, era tambm permanente o risco de quebra. Essa preocupao com os rumos financeiros da entidade amortecia os esforos para as lutas sindicais que envolvessem formas de conflito poltico, como greves. O pesquisador Silva Junior (2006) afirma que o movimento anarquista no era suficientemente claro quanto s entidades de mtuos socorros e s cooperativas, embora no Brasil, os Congressos Operrios (1906, 1913 e 1920) tenham aconselhado os trabalhadores a no fazerem parte delas. Mas o autor ressalta que muitas entidades que subscreviam posies contrrias aos socorros mantinham-nos. Isso demonstra uma certa distncia entre a teoria e a prtica. Silva Junior (2004) relata ainda que os associados geralmente estavam interessados nos benefcios materiais oferecidos pelas sociedades de socorros mtuos, ao passo que as lideranas eram atradas por seus recursos espirituais e/ou polticos. 22

Os revolucionrios no estavam interessados no tipo de sindicalismo voltado para uma sindicalizao consistente. Na verdade, os principais instrumentos de ao dos revolucionrios, alm dos organismos polticos, eram os jornais e os congressos, no porque a lei fizesse restrio s associaes (quando fazia, a represso tambm atingia a imprensa e os congressos), mas porque no se compreendia um cotidiano associativo com objetivos de lutas. J a imprensa e os congressos reuniam lderes, estes sim com compromissos cotidianos de luta. A propaganda proveniente de jornais e congressos parecia mais eficaz para responder aos objetivos revolucionrios, por demonstrar fora de organizao com mais capacidade de mobilidade e ao. J levar adiante uma associao exigia uma estrutura com administrao, recursos e capacidade profissional. O anarquista portugus Neno Vasco (1984, p.121-2), que viveu no Brasil de 1901 a 1911, em 1920 pregava a rejeio s prticas mutualistas e cooperativistas dos sindicatos, o que acabaria com as indefinies de atribuies existentes entre as associaes. Para ele, a mutualidade e as cooperativas valiam bem menos do que a resistncia, a ao direta sindical. Vasco considerava mesmo que a mutualidade facilitava a explorao capitalista, pois reduzia os recursos dos trabalhadores medida que estes, pela associao cooperativa e de socorros mtuos, aprendiam a fazer face s necessidades da vida com o minguado fruto de seu trabalho. O autor destaca que o mutualismo e o cooperativismo, mais do que o corporativismo, incentivavam a burocracia parasitria. Segundo ele, essa burocracia, quando muito, se prestava a ser usada como obra feita, como organismo de Estado, por algum governo revolucionrio, desconfiado da liberdade e das iniciativas populares. J os sindicatos, de acordo com Vasco, pelo contrrio, educavam o proletariado para a luta contra o capitalismo e pela solidariedade. Vasco levanta a questo de a burocracia e o associativismo serem utilizados como instrumentos econmicos at mesmo para baixar salrios. De fato, as cooperativas e as associaes mutualistas tiveram uma importante funo no mercado e na administrao, ao gerarem uma embrionria previdncia social. De acordo com a concepo anarquista de Vasco, tais iniciativas, que haviam surgido por obra dos operrios, proporcionavam espao para que o Estado capitalista aproveitasse-as, como de fato ocorreu. A industrializao havia se firmado e com ela aumentou o nmero de mortes e de mutilaes entre trabalhadores, intensificando a questo social. O papel das associaes mutualistas, que depois foi assumido pelo Estado, atenuava a responsabilidade do empregador e respondia aos apelos sociais. Mas como a preocupao 23

com os acidentes e as aposentadorias, antes de tudo, era do prprio trabalhador, ele no deixaria de se filiar s associaes de socorros mtuos. As associaes mutualistas serviram de apoio tanto s associaes de classe como ao prprio Estado. A experincia de associativismo e administrao de bens coletivos foi passada ao Estado quando este procurou desenvolver a Previdncia Social. O sucesso de qualquer associao no mercado era to importante quanto um apoio institucional ou uma campanha salarial bem-sucedida, se que possvel fazer tal comparao. A estabilidade financeira dos sindicatos sem filiao compulsria podia ser algo significativo como sair vitorioso numa greve. Para o filiado, o lder-administrador era to ou mais importante que o lder-grevista. A estrutura sindical liberal raramente conseguia equilibrar fatores como lutas, organizao e defesa de interesses dentro e fora do trabalho. E tambm era por meio do mercado que o movimento associativista podia ser controlado e direcionado, seja por grupos, partidos ou pelo Estado. O liberalismo conseguiu que as associaes dinamizassem o mercado, ajudassem a contornar a questo social e at diminussem o custo da reproduo da fora de trabalho, como diria Neno Vasco (1984), mas no permitiu que os sindicatos utilizassem sua fora para controlar o mercado. Era fcil fundar formalmente um sindicato, mas dar um sentido a ele era tarefa rdua. O voluntarismo dos trabalhadores ao criar sindicatos s seria consolidado se estes dessem, de fato, sentidos filiao. Quando a questo solidariedade colocada no se pode deixar de lado esta importncia do mercado. 1.1.1. Portugal: filiao supervisionada pelo Estado Seguindo os princpios liberais da poca, o Estado portugus combateu as corporaes, o que foi sacramentado em 18343, com o Decreto de 7 de maio. Mas logo a Constituio de 20 de maro de 1838 (art.14) permitiu que os cidados se associassem e se reunissem pacificamente em local fechado sem necessidade de permisso. Trs dias depois, em 23 de maro de 1838, foi fundada a Associao dos Advogados de Lisboa4. Porm, muitos atribuem esse pioneirismo Sociedade dos Artistas Lisbonenses, criada em 17 de janeiro de 18395.3

Foram extintos os Lugares de Juiz, Procuradores do Povo, Mestres, Casa dos Vinte e Quatro, e os grmios dos diferentes ofcios (art.1 do Decreto de 7/5/1834, p.115). 4 A antiga Associao Jurdica de Lisboa, de 1835, considerada sua precursora, no tinha ainda uma tpica representao de classe, embora j reunisse juristas para elaborar temas jurdicos e projetos de lei. 5 Emygdio da Silva (1905, p.46 e 104), Edgar Rodrigues (1977, p.59) e Oliveira (1973, p.114).

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Em 1867, surgiu o primeiro Cdigo Civil portugus, que inclui o direito de associao, desde que esta no prejudique os direitos de terceiros (Ennes Ulrich, 1906, p.364-67). Podemos concluir que havia condies para a formao de entidades de classe nos limites aceitveis pelo governo, que era quem autorizava seu funcionamento por meio de alvars. Predominavam as associaes profissionais e as de socorros mtuos e, com o tempo, cada qual definiu melhor a prpria identidade e a relao com o governo. Em 1874, o governador civil da cidade do Porto quis saber se ele poderia obrigar os montepios e as associaes de socorros mtuos a fazerem oramentos e prestarem contas, o que era exigido das corporaes de beneficncia. A resposta do rei6 foi negativa, por considerar que tais associaes tinham natureza civil. A finalidade social da associao de socorros mtuos foi considerada como de repartio, tendo o objetivo de cuidar dos salrios ganhos nos tempos de trabalho e constituindo-se, assim, verdadeiros bancos de crdito popular e no associaes de esmolas, caso das entidades de beneficncias propriamente ditas. As associaes de socorros mtuos tinham por base o contrato civil, que conferia direitos e obrigaes, e por isso o scio socorrido no recebia esmola, mas o pagamento de uma dvida. Assim, a resposta do rei deixou pouca margem para dvidas. Essa maneira de encarar as associaes de socorros mtuos, todavia, acabaria mudando, tal o seu crescimento e a importncia que adquiriram na vida social. Em 2 de dezembro de 18867, o governo reconheceu, oficialmente, o aumento do nmero dessas entidades e se props a incentiv-las. Considerando que em Portugal no havia estatsticas sobre elas, determinou-se a elaborao de um inqurito com questionrios tanto para as que j possuam Estatutos aprovados pelo governo, quanto para as que ainda no os possuam. Em 10 de fevereiro de 1890, o Ministrio das Obras Pblicas, Comrcio e Indstria, encarregado do inqurito iniciado em 1886, por meio de Decreto, enalteceu o papel humano dessas associaes, alm de prever que elas poderiam concorrer para aliviar o tesouro, em um futuro prximo, de encargos, dia a dia crescentes, que impem os estabelecimentos de pura beneficncia e a caridade oficial. Levando-se em conta que o governo se limitava a aprovar os Estatutos dessas associaes, o Ministrio props que ele fosse alm e verificasse se elas se assentavam em bases seguras, se os auxlios

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Dirio de 6 de julho de 1874, p.116/117. Documento da Direo-Geral do Comrcio e Indstria, Dirio Oficial portugus de 2.12.1886.

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prometidos aos filiados se achavam em harmonia com as cotas estabelecidas e se as receitas criadas seriam suficientes para fazer face aos encargos. Assim, procedeu-se regulamentao das associaes de socorros mtuos, no ano seguinte. Porm, desde logo, estabeleceu-se que fossem mais diretamente fiscalizadas, j que haviam adquirido os seguintes direitos: 1) dispensa de pagamento de contribuio de renda de casas; 2) imvel cedido pelo Estado gratuitamente para sua sede; 3) auxlio pecunirio por ocasio de epidemias. Tambm foi determinada a criao de um tribunal arbitral com rbitros eleitos pelas associaes8. Com base em tais medidas, surgiram dois decretos em 1891: o de 28/2, que tratou das associaes de socorros mtuos; e o de 9/5, sobre as associaes de classe. Na introduo do segundo, o legislador assumiu expressamente a inteno de distinguir um tipo do outro. Por isso ficaram proibidos Estatutos com dupla finalidade e discusses em assemblias sobre assuntos alheios aos fins designados nos Estatutos, sob risco de nulidade (art. 14). Pelo Decreto de 9 de maio de 1891 ( 5 do art. 4), as associaes de classe podiam criar associaes de socorros mtuos, caixas econmicas e cooperativas, mas sempre mantendo total independncia, inclusive em relao aos scios, que no estavam obrigados a terem dupla filiao. A partir de 1 de agosto de 1899, passou-se a exigir um mnimo de 200 scios e mais de um ano de existncia para que as associaes de classe se constitussem entidades. A quantidade de scios para fundar uma associao era algo mais importante do que se pode supor. At ento, o Cdigo Penal portugus (art. 282) s permitia associaes com mais de 20 pessoas se fossem previamente autorizadas, de acordo com as condies que o governo achasse conveniente. Aquelas criadas com nmero inferior no precisavam de autorizao. De acordo com este fato, tudo indica que vrias associaes evitavam correr riscos de no serem autorizadas e, por isso, muitas foram criadas com 19 membros. Esse detalhe, um tanto legalista, tem prejudicado as anlises estatsticas sobre a verdadeira representatividade dessas corporaes. A partir de 1891, no foi mais possvel criar uma associao com menos de 20 membros (art. 1 do Decreto de 9/5/1891), enquanto as associaes de socorros mtuos no podiam ter menos de 25 membros (art. 3 do Decreto de 28/2/1891). A partir do Decreto de 5 de outubro de 1896 (art. 3), que tratou das associaes de socorros8

Observamos, embora no seja prioridade neste estudo, que este Decreto de 10 de fevereiro de 1890 foi historicamente importante no sentido de determinar a regulamentao do trabalho de menores e mulheres em estabelecimentos industriais, de higiene e de segurana das oficinas.

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mtuos, o nmero necessrio de associados elevou-se bastante, para 500 scios (Lisboa e Porto), 400 ou 200, conforme a regio9. A partir de 28 de julho de 1905, exigiu-se das associaes de mtuos socorros que pedissem aprovao de seus Estatutos e a apresentao da lista de todos os scios fundadores, com nome, estado civil, profisso e residncia; todos com exames mdicos realizados, comprovando a inexistncia de molstia crnica; reconhecimento de assinatura de todos os fundadores; e comprovao, dentro de quatro meses da fundao da associao, do pagamento em dia da mensalidade dos scios. Verifica-se que as exigncias burocrticas foram ficando mais rgidas, o que, de certa forma, criou obstculos para o surgimento de novas associaes. Em 1894, a Sociedade dos Artistas Lisbonenses sofreu alterao em seus Estatutos para ganhar o subttulo de Socorros Mtuos, definindo-se, assim, pela finalidade mutualista10. Entre os fins da sociedade (art. 7 do Estatuto que obteve Alvar em 30/12/1869, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870) foram extrados os de progresso e melhoramento das artes, para constar apenas os benefcios especificamente ligados impossibilidade do trabalho (art.7 do Estatuto aprovado por Decreto em 4/5/1894, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894). Mas no foi s isso. Essa associao aceitava apenas como scios os artistas (art.8 do Estatuto de 1869), mas, depois de 1894, passou a admitir todos os profissionais do comrcio e da indstria (art. 8 do Estatuto de 1894). A mudana, evidentemente, descaracterizou o seu perfil de classe. Pelo ngulo financeiro das sociedades de socorros mtuos, justificava-se a filiao de qualquer tipo de profissional, j que com isso se aumentaria a receita proporcionalmente s despesas dos antigos scios, o que corriqueiro em qualquer sistema previdencirio (em geral, os novos pagam pelos antigos scios). Seria arriscado para as sociedades de socorros restringir a filiao a um determinado tipo de profissional, em geral limitado, pois, assim, ficariam sujeitas ao esgotamento de filiao e sua reduo, em virtude de uma eventual quebra de empresas, com demisses. O que causa estranhamento, entretanto, o fato de o Decreto de 9/5/1891, que trata das associaes de classe, permitir que estas fossem mistas, reunindo patres e empregados, ainda que, diferentemente das associaes de socorros mtuos, a filiao no pudesse ir alm da profisso ou profisses correlativas. Esse decreto entendia como9

Mais tarde, a partir do Decreto n 19.281, de 29 de janeiro de 1931 (art. 5), passou a ser exigido, para a constituio da associao de socorros mtuos, mil scios em Lisboa e no Porto, 500 nas demais capitais de distritos e 300 nos restantes conselhos. 10 As fontes de informaes sobre a Associao dos Artistas Lisbonenses foram colhidas nos documentos originais impressos pela Imprensa Nacional em 1870 e 1894, e encontram-se na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa.

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classe apenas o setor econmico e no a relao de propriedade. Certamente essa regra ia contra os interesses das lutas salariais dos trabalhadores, j que no propiciava a formao de sindicatos organizados, conforme defendia, por exemplo, a Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT). A permisso da filiao mista dada s associaes de classe poderia ser aceita com mais facilidade pelas profisses liberais11, j que era indiferente se o scio era empregado ou empregador. Porm, quando se tratava de associaes de classe que reuniam scios operrios e scios industriais, a diferena de interesses era, evidentemente, grande. Os eventos em Portugal ocorridos em 1891 modificaram a viso contratualista que as associaes de socorros mtuos tinham nos idos de 1874. Alm de autorizar os Estatutos das associaes, o governo passou a fiscalizar e interferir na vida associativa. Ou seja, a interveno do Estado j no se dava apenas quando um scio descontente vinha provoc-lo, o que poderia ser encaminhado pelo Judicirio. Agora o Estado, por conta prpria, podia dissolver a entidade por desvio de finalidade, respaldado no art. 33 do Decreto de 28/2/1891. O outro decreto, das associaes de classe, ir prever essa dissoluo de entidades de forma semelhante (art. 12 do Decreto de 9/5/1891). As associaes de classe que ainda no tinham sido autorizadas pelo Ministrio de Obras Pblicas, Comrcio e Indstria, mas somente por governadores civis, tiveram o prazo de at 30/6/1892 para modificar seus Estatutos em funo da nova lei12. Cinco anos depois, o governo portugus reformou o Decreto de 1891 das sociedades de socorros mtuos criando um novo, em 5/10/1896. Passou a ser proibida s novas sociedades do gnero a concesso de penses de inabilidade permanente ou de sobrevivncia ( 5 do art. 11), considerada pelo legislador uma das causas mais freqentes da runa das referidas associaes. Nesta reforma, tambm se proibiram rateios quando a receita no chegasse a fazer face aos encargos ( 3 do art. 11). Segundo o legislador, prefervel que desapaream as associaes arruinadas, a que se mantenham por meio de expedientes que, sem as salvar, alimentam nos scios esperanas irrealizveis, origem de tristes desenganos. Se por um lado seria bom acabar com as iluses dos associados, por outro estar-se-ia terminando tambm com o interesse do trabalhador em se filiar a um rgo11

Da mesma forma, a sociedade de classe dos artistas, pois os contratos de trabalho tinham carter de prestao de servios liberais e mesmo os empregadores eram donos de pequenas companhias, sem patrimnio significativo. 12 1 do art.15 do Decreto de 9/5/1891.

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previdencirio que poderia simplesmente ser extinto por falta de outra soluo. De uma forma ou de outra, as crises financeiras das associaes de mtuos socorros e a reforma legal que tentou salv-las, sem muito sucesso, em parte por causa de seu prprio rigor, foram fatores que contriburam para o refluxo do movimento mutualista. Alguns estudiosos atuais consideram que o Estado portugus agiu de forma tardia. Rosendo (1996, p.273-74) acha que ele foi alheio e no se empenhou em relao ao movimento mutualista. Segundo o autor, este, ao lado do movimento associativista, teve a tarefa de suprir o vazio deixado pelo desaparecimento das corporaes medievais. Ressalta ainda que o prprio movimento operrio e o surto do sindicalismo foram influenciados pelo movimento mutualista. Tambm Lousada (2004, p.50), ao analisar a trajetria das sociedades de socorro, afirma que o Estado portugus tolerou-as at regulament-las tardiamente, em 1891. Uma das explicaes para essa tolerncia, e at proteo, foi o fato de elas terem como finalidade o socorro mtuo e de sua base social ser formada por patres e trabalhadores. Mas tal panorama, segundo a autora, no se manteve e, j nas primeiras dcadas do sculo XX, foram abrandadas tanto a criao de associaes de socorros mtuos como a proliferao de associaes de classe. A Regulamentao de 1891, que, de acordo com Lousada (2004), chegou tarde demais, vista de outro ngulo pode ser considerada prematura, pois, de certa forma, antecipou alguns mtodos que seriam intensificados durante o corporativismo de Estado. E este tambm foi um fator de refluxo na criao das associaes profissionais. Isso porque essa interveno do governo portugus no final do sculo XIX no visava dar ajuda financeira s entidades e ao filiado, e sim corrigir desvios de finalidade, extirpando as associaes que no conseguiam se manter sozinhas. O aumento da burocratizao e das exigncias punha em risco a sua natureza privada e independente. Acreditamos, no entanto, que, para alm desse tipo de interveno do Estado, o problema maior enfrentado pelas associaes de socorros mtuos foi financeiro, o que , at certo ponto, natural ao mutualismo, que depende apenas das contribuies de seus scios. Nos primeiros anos de existncia, e at nas primeiras dcadas, as associaes de socorros mtuos tiveram mais contribuinte do que beneficirios. Mas, com o avano do tempo e da idade dos scios, tornou-se imprescindvel a ampliao de novos e jovens associados. Muitas associaes tomavam algumas medidas preventivas, como estipular

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uma idade-limite para a inscrio do scio13 ou possibilitar o acesso aos mais variados tipos de profissionais. Porm, tais medidas no eram suficientes. O governo tambm expedia regras preventivas, exigindo, por exemplo, exame mdico do pretendente a scio (art. 9, Decreto de 28/2/1891). Depois passou a exigir a comprovao desses exames junto ao Ministrio, pelo menos em relao aos fundadores, como vimos, e carncia de pelo menos trs meses para gozo de benefcios de doenas ( nico, idem). A vantagem de ser filiado a uma corporao dependia exclusivamente da prpria entidade, pois no havia um benefcio decorrente de lei ou de um contrato coletivo, como aconteceria mais tarde. Nem o Estado nem terceiros estavam obrigados s decises da associao. Eram a entidade e o conjunto dos filiados, com seus prprios recursos, que tinham que responder s expectativas gerais de cada filiado, conforme direitos e deveres estatutrios. No era sem motivo que as entidades viviam em crise financeira, ainda que seu nmero fosse crescente. Nesta poca, havia uma relao muito estreita e at confusa entre as associaes de classe e as associaes de socorros mtuos, a primeira voltada para a ocupao profissional e a segunda, mais mutualista. Autores portugueses que escreveram no incio do sculo XX, como Emygdio da Silva (1905, p.86 e 102) e Ennes Ulrich (1906, p.335/336), afirmam que o movimento associativo de classe encontrava-se relacionado com o mutualismo. Silva (1905, p.102) ressalta que as sociedades mutualistas no eram de classe, pois podiam ser abertas a indivduos de todas as categorias sociais e o nmero de associados era ilimitado. Mesmo demonstrando as dificuldades financeiras das associaes de socorro, Silva relata que elas cresciam bastante: o seu fluxo era sem refluxo, mas o nmero de seus aderentes aumentava todos os dias. Na Frana, entre 1794 a 1806, fundaram-se 13 sociedades mutualistas; porm, de 1834 a 1846, o nmero subiu para dois mil (p.100). Ennes Ulrich (1906, p.335) afirma que muitos viam nas associaes profissionais uma finalidade mutualista e outros atribuam a essa finalidade a causa da runa financeira das unies, do que ele discorda. Embora distinguindo o propsito entre a mutualidade e o associativismo profissional, o autor no via diferena na prtica, pois muitos dos membros das associaes de classe j o eram das associaes mutualistas (p.336).

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A Associao dos Artistas Lisbonenses de 1839 exigia a idade mnima de 45 anos (art. 8 dos Estatutos).

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Com base nessas observaes, podemos dizer que as associaes de socorro, embora tambm tivessem dificuldades econmicas, propiciavam uma funo mais concreta para os filiados, principalmente em conjunturas normais, quando no havia um conflito mais latente de luta contra patres. As greves no eram constantes e os seus resultados, mesmo que positivos, eram breves em funo de diversos fatores: ausncia de mecanismos jurdicos, demisses, facilidade de o prprio mercado absorver novos salrios etc. Diferentemente das associaes mutualistas, em que o beneficirio era o associado contribuinte, as associaes de classe propiciavam vantagens a todos membros da categoria, como observado por Ulrich (1906, p.331). No toa muitas associaes de classe ficavam na sombra de alguma associao mutualista ou de cooperativas. A tentativa de aumentar o nmero de filiados nas associaes de classe no tinha finalidade mutualista, ocorria sob presso quase fsica ou sob a prtica de discriminao do no filiado. Mas com a filiao compulsria do mutualismo, quando a contribuio passou a ser obrigatria de natureza tributria e as associaes mutualistas perderam o significado que tinham, passando a entidades privadas de complementao de benefcios legais14, que o Estado passou a se preocupar. Acreditamos que as constantes crises financeiras das sociedades mutualistas ajudavam a afastar os lderes mais politizados, j que representavam compromissos difceis de serem resolvidos, mais do que a burocratizao. At porque os sindicatos tambm j tinham tendncia burocratizao. O Estado brasileiro que apareceria, na dcada de 1930, como o salvador das associaes de socorros mtuos, com sua poltica de caixas de aposentadoria e penses, mais voltada para empresas (como a ferroviria, em 1923), e por categoria. Com toda a interveno do Estado portugus no associativismo, desde o final do sculo XIX, no lhe escapou centralizar a fiscalizao das instituies de previdncia social, com a criao do Instituto Nacional do Trabalho e Previdncia INTP (Decreto-lei n 23.053 de 23 de setembro de 1933). A interveno do Estado em Portugal mais intensa do que no Brasil , tinha dupla finalidade. Uma era evitar que as sociedades de socorros mtuos quebrassem, desequilibrando o mercado e gerando problemas sociais para os scios desamparados. A outra era interferir em seu acmulo de capital e at aliviar o tesouro, como consta no Decreto de 10/2/1890, anteriormente citado. Em 1929, j existiam 533 associaes de

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Ver Rosendo (1966, p.290).

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socorros mtuos em Portugal, com 575.976 associados e 196.500 contos, conforme levantamento estatstico oficial de 192915. 1.1.2. Brasil: filiao negligenciada e associao incentivada para atuar no mercado A primeira Constituio do Brasil, de 1824, proibiu as corporaes de ofcio e criou a liberdade profissional (respectivamente, incisos XXV e XXIV do art. 179). A segunda Constituio, primeira republicana, de 1891, manteve a liberdade de profisso, mas modificou o cenrio ao estabelecer a liberdade de associao ( 24 e 8 do art. 72). As duas Constituies seguiam a receita liberal, com as prprias repercusses histricas. Essa linha s seria modificada a partir de 1930, com a regulamentao profissional. A liberdade de associao j existia no Imprio para as profisses liberais com finalidade de estudo, caso do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros IOAB de 1843. As duas primeiras leis sindicais que se seguiram proclamao da Repblica eram liberais e influenciadas pela lei francesa de 1884. O Decreto n 979, de 6/1/1903, facultou aos profissionais da agricultura e das indstrias rurais de qualquer gnero a organizao em sindicatos para estudo, custeio e defesa dos seus interesses. E sem quaisquer restries ou nus, bastando depositar em cartrio dois exemplares do Estatuto, o que no era muito diferente de criar outra associao qualquer16. Bastavam sete trabalhadores para constituir um sindicato (art. 5). Permitiu-se inclusive que os sindicatos institussem caixas de crditos, cooperativas, sociedade de seguros, assistncia etc. A seguir, veio o Decreto n 1.637, de 5/1/1907, que vigorou ao lado do outro, seguindo diretrizes semelhantes, mas, agora, com validade para quaisquer profisses. Em seu texto declarava-se expressamente que os sindicatos se constituem livremente, sem autorizao do governo (parte do art. 2), bastando para tanto registrar os Estatutos em cartrio. Foi um convite ao amplo associativismo. Essa liberdade de organizao sem interferncia do Estado vivida no Brasil por mais de 30 anos, ou seja, durante o perodo da Primeira Repblica, teve muitos motivos, mas, em nosso entender, a fundamental foi a predominncia de uma nova15

A informao consta na introduo do Decreto n 19.281, de 29/1/1931. At ento necessitavam de autorizao do governo para se organizarem as associaes e corporaes religiosas, os montepios, os montes de socorro ou de piedade, as caixas econmicas e as sociedades de seguros mtuos, sociedades annimas que tinham por objetivo o comrcio ou fornecimento de gneros ou substncias alimentares ( 2 do art. 1 da Lei n 2.150 de 4/11/1882).16

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concepo de associativismo do prprio liberalismo. O liberalismo renovou-se com a luta contra a escravido e os efeitos da Revoluo Industrial inglesa. No houve uma mera retomada do princpio corporativista medieval, mas a criao de um novo, que no fechava o mercado, diferentemente do antigo. Contriburam para isso no s os liberais, mas os positivistas sociolgicos, os catlicos e os anarquistas, como veremos adiante. Os grandes prejudicados foram os movimentos de profissionais liberais e de sindicatos que defendiam os closed shops e unions shops, ambos voltados mais para o fechamento do mercado. Embora houvesse no Brasil a liberdade de associao, especialmente com o Decreto de 1907, no foi significativa a quantidade de associaes criada, o que provocou certa decepo17. No havia um propsito claro de filiao. O Decreto deu mais destaque ao cooperativismo do que s prprias associaes. As cooperativas pareciam mais interessantes e teis aos seus coligados. Sob o ngulo da filiao, o Decreto de 1907 pode ser considerado um fracasso, mas s aparentemente. A proposta de liberdade de organizao associativa defendida pelo liberalismo no era seguida de uma preocupao com a criao de muitas associaes e menos ainda com a ampla filiao. O fundamental para o liberalismo era a garantia da liberdade, essencial para a manuteno das regras de livre concorrncia, e o incremento de pessoas jurdicas capazes de acumular capital e dinamizar o mercado, como veremos. Os catlicos que valorizavam o aumento do nmero de associaes e de filiados. Segundo Maurcio de Lacerda (1980), poca deputado, a iniciativa do projeto de 1907 foi animada pelo esprito cristo e defendida pelo deputado Incio Tosta em 1905, que o justificou em longo discurso em que abordou a questo social. Esta, segundo Tosta, vinha despontando no pas e despertando antagonismos de classe nas sociedades operrias de resistncia j existentes, cujos congressos lanavam bases e proclamavam reivindicaes revolucionrias e de luta. Para Tosta, era preciso prevenir mais do que coibir, com a criao de outras sociedades obreiras de paz e concrdia social. Segundo Maurcio de Lacerda (1980, p.48), o esprito dessas leis em curso no Congresso Nacional, no incio do sculo XX, era catlico, de conciliao sistemtica do capital e do trabalho e de harmonia permanente entre patres e trabalhadores.17

Ver Lacerda (1980), Prado (1986), Evaristo de M. Filho (1978), Waldemar Ferreira (1934). Nenhum destes estudos destacou o aumento da quantidade de sindicatos, pelo contrrio. Prado (1986, p.63) afirma que o Decreto de 1907 no conseguiu a repercusso que merecia. Evaristo de M. Filho (1986), em artigo, afirma que o Decreto de 1907 nunca tivera aplicao entre ns, pois nem agncia administrativa prpria encontrara para cuidar dos assuntos que lhe diziam respeito.

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Esse esprito, contudo, seguia a concepo associativa tpica da poca, em que as tenses eram atradas para os corpos associativos, ou fruns criados por eles, como pra-raios, e no dirigidas ao Estado. Este s intervinha em caso de desordem ou de ilcito. O Decreto de 1907 espelhou esta viso pacificadora18. Primeiro, permitindo a associao mista, o que j era uma forma de conciliao19. O deputado Medeiros de Albuquerque, que se declarava socialista e que em 1904 apresentou projeto sobre acidente de trabalho20, teria se insurgido contra este detalhe da lei, porm sem sucesso (Lacerda, 1980). Segundo, realizando a conciliao por meio da criao de comisso paritria de conciliao. Mas estas comisses, sob ntida influncia dos conseils de prudhommes franceses, s foram efetivamente implantadas no Brasil pelo governo do Estado de So Paulo em 1922, com Washington Luiz21 e, depois, j no Governo Provisrio de 1930, com as Juntas de Conciliao e Julgamento e as Comisses Mistas de Negociao. Os liberais e os anarquistas discordavam, entre si, em relao criao de foros conciliatrios. Os liberais, ao lado dos catlicos, aceitavam estes foros para dirimir os conflitos, sob influncia francesa. J os anarquistas, como Vasco (1984, p.128-9), viam a arbitragem obrigatria ao lado da sindicalizao obrigatria, idias que surgiriam na dcada de 1920, como ameaa de se transformar o sindicato em uma engrenagem do Estado. O autor criticava igualmente a ausncia de fora efetiva do movimento operrio para impor alguma justia e a falta de eficcia dos laudos arbitrais favorveis aos trabalhadores. Todavia, a participao do sindicato em foros conciliadores ou julgadores outorgava poder significativo aos lderes sindicais, sem que isso representasse um ganho direto para os filiados. Essa era uma medida que favorecia a burocracia sindical que Neno Vasco combatia. A liberdade de organizao no final do sculo XIX e no incio do XX no resultou apenas de presso poltica dos trabalhadores, mas, como mencionamos, da prpria iniciativa liberal, tendo em vista fazer frente s necessidades sociais. No se admitia que estas associaes interferissem nas regras de mercado, mas se esperava que pudessem atuar como as sociedades comerciais, s que sem finalidade de lucro. Ou seja, a associao era vista como um corpo fechado que buscava benefcios no mercado para seus scios, mas por meio da livre concorrncia, no sendo permitido que restringisse o mercado dando exclusividade de atuao profissional ou limitando filiaes.18 19

O art. 8 do Decreto de 1907 referia-se claramente ao esprito de harmonia entre patres e operrios. A Carta Encclica de Leo XIII, de 1891, defendia expressamente a aproximao entre as duas classes. 20 Esse projeto encontra-se no anexo do livro de Evaristo de Moraes (1998). 21 Ver Moraes Filho (1988 e 1978, p.190, 196, e posfcio, p.324).

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O implemento das sociedades por cotas limitadas, que tanto dinamizou o mercado, acabando com a falncia pessoal do comerciante e propiciando o investimento em cotas de capitais, ajudou a consolidar o associativismo. Este poderia tambm acumular capital, agir socialmente e at investir no mercado, abrindo caixas de crditos, cooperativas, fundos de socorros etc. Quer dizer, conforme a viso liberal da poca, as associaes deveriam ser parceiras comerciais. Da o destaque dado s cooperativas pelo Decreto de 1907: os trabalhadores poderiam ser scios de um empreendimento, cada um dando um pouquinho e recebendo uma cota, o que era importante no novo mercado republicano, carente de capital. E mais, esta responsabilidade do scio da cooperativa era limitada, o que representava uma inovao comercial no Brasil. O Cdigo Comercial, ainda do tempo da escravido, era o grande referencial da vida social, ao lado da Consolidao das Leis Civis. O Cdigo Civil s apareceu em 1916 e a Lei da Sociedade de Responsabilidades Limitadas em 1919 (Decreto n 3.708), o que agilizou o mercado liberal, uma vez que o capitalista passou a poder fazer, ao mesmo tempo, diversos investimentos sem risco de falncia total e pessoal, respondendo apenas por suas cotas. A Lei de Sociedade Annima (Lei n 3.150, de 4/11/1882) no respondia expectativa dos pequenos e mdios empreendedores. At ento, as associaes que eram, por excelncia, as pessoas jurdicas no estatais de pequeno porte, os rgos que podiam criar scios com limites de responsabilidade. Embora as associaes de classe e as mutualistas no tivessem finalidade de lucro, podiam comerciar e lucrar, desde que se limitando a seus objetivos societrios. At certo ponto, a novidade, no sentido de dinamizar o mercado, era, no Brasil, o associativismo, embora, por princpio, o filiado no pudesse ficar rico, salvo se fossem implementados mecanismos informais ou fraudulentos. O Decreto de 1903 (art.10) declarava expressamente que os sindicatos no respondiam pelas transaes de caixas, cooperativas, sociedades de seguros, assistncia etc. O Decreto de 1907 regulamentou detalhadamente as cooperativas. As associaes eram, assim, aliadas do mercado e no o seu entrave. Por natureza, a filiao deveria ser livre. Como dissemos, alguns autores se decepcionaram com os efeitos do Decreto de 1907; mas o associativismo cumpriu uma funo no regime liberal, o de dar vazo ao prprio mercado. As associaes no foram planejadas para serem rgos de luta. Se poucas ou muitas foram criadas difcil dizer. Provavelmente, a quantidade no correspondeu s expectativas dos catlicos, mentores do Decreto de 1907. Podemos dizer que no Brasil as associaes de classe, ao lado das cooperativas, foram incentivadas a 35

atuarem no mercado, mas no para fech-lo (closed shop) e sim para funcionarem como parceiras do capital. 1.2. Surgimento dos sistemas closed shop e union shop A Revoluo Francesa no defendeu a liberdade de filiao, o que seria incoerente com a proibio das associaes. Mas, at certo ponto, a liberdade de filiao j seria uma forma de abrir as portas das corporaes fechadas de ento, que selecionavam rigorosamente seus membros. Porm, quando o liberalismo aceitou as corporaes, no final do sculo XIX, a defesa da liberdade de filiao ocorreu de forma imediata, j que impedia que grupos se organizassem para controlar o mercado. O que no mudou, desde a Revoluo Francesa at o incio do sculo XX, foi a defesa do liberalismo pela liberdade de trabalho. Para Castel (1998, 232), a verdadeira descoberta que o sculo XVIII promoveu, referindo-se Revoluo Francesa, no foi a necessidade do trabalho, mas, sim, a necessidade da liberdade de trabalho. Tocqueville (1984) talvez seja quem melhor tenha demonstrado esse carter libertrio da Revoluo Francesa. Todas as Constituies de pases influenciados por esta descoberta incluiram esta nova liberdade no rol das garantias individuais do cidado. A luta daqueles que, mais tarde, procuraram fechar o mercado foi no sentido de justificar excees pontuais a esta liberdade. A liberdade de organizao, exposta e aceita no liberalismo econmico do final do sculo XIX, tinha ento como reflexo a liberdade de filiao nos moldes do que ocorria com as associaes civis. Na liberdade de filiao, est implcita a liberdade de o indivduo manter-se filiado ou se retirar da sociedade. Quando a corporao forte ou realmente traz benefcio ao scio, o direito de se filiar mais exigido, e quando a filiao no gera muitos benefcios, prevalece a exigncia do direito oposto. Embora no seja uma regra universal, podemos dizer que quanto mais as corporaes servem como meio de aquisio de direitos, mais restritiva ser a sua filiao. O mesmo se d em sentido contrrio. A liberdade de organizao foi permitida na Europa no final do sculo XIX; mas, nesse momento, os direitos dos filiados voltavam-se para dentro das entidades. As associaes agiam como unies de foras dirigindo-se para as ruas apenas para reclamar direitos e divulgar ideias. Seus problemas deveriam ser resolvidos substancialmente pelos prprios interessados, sem grande ajuda externa, como era natural 36

nos Estados mnimos liberais. As primeiras associaes de assalariados ou de profissionais liberais no diferiam muito das demais associaes civis, com conotaes contratualistas, individualistas e civilistas. Os cdigos civis tratavam de todas as associaes de forma generalizada. As poucas leis sobre as associaes de classe estavam preocupadas em garantir o direito individual de filiao (e desfiliao) e, principalmente, o direito individual de no se estar obrigado s determinaes coletivas. Ou seja, a liberdade de organizao no significava Direito Coletivo, o que s ocorreria mais tarde. As desfiliaes voluntrias ou as expulses implicavam perda de direitos e deveres do exscio at a data da sada, no recebendo, inclusive, o valor das parcelas j pagas. As primeiras leis portuguesas e brasileiras se preocuparam em garantir a liberdade individual de filiao e de desfiliao. As duas leis portuguesas de 1891 tratavam textualmente do direito de sada da sociedade (art. 6), o mesmo ocorrendo no Brasil com o Decreto de 1903 (art. 6). O Decreto de 1907 foi mais completo: ningum ser obrigado a entrar para um sindicato sob pretexto algum, e os profissionais que foram sindicalizados podero retirar-se em todo tempo (parte do art. 5). Incio Tosta, seu autor, j havia afirmado que esta lei chegara cedo ao Brasil. E, se esta afirmao verdica, podemos concluir que quando os sindicatos foram fundados no Brasil, j encontraram a premissa da liberdade de filiao. No s os liberais defendiam esta premissa, tambm os positivistas e os anarquistas. Uma das poucas restries de mercado, ocorrida sob forte resistncia dos positivistas, foi a exigncia de diploma para o exerccio da Medicina, como veremos. No incio do sculo XX, uma nova concepo sobre filiao surgiria. As perseguies que as associaes de trabalhadores faziam aos fura-greves e queles que aceitavam salrios baixos foram transferidas para os no-scios. A filiao passou a ter um Estatuto de compromisso, sobretudo moral. Pela primeira vez, o no-scio foi personificado, sendo apontado, acusado e at punido com atitudes discriminatrias. Antes o no-scio no existia no mundo da associao, quando esta estava voltada para si, mas aos poucos o no-scio passou a incomodar. Se, todavia, neste primeiro cenrio, a associao pressionava os no-scios a se filiarem, num segundo cenrio, ocorreu o inverso. A prpria associao criou dificuldades para o ingresso de novos filiados. Tratava-se do jogo de mercado j mencionado por ns sobre direito de no se filiar e direito de se filiar, que so duas faces da mesma moeda, dependendo da utilidade da prpria filiao. O problema deixou de ser o do trabalhador ser pressionado a se associar para ser o da recusa. A liberdade de 37

filiao deixou o seu lado de direito de absteno para mostrar o lado de direito de associar-se. O sentido de direito negativo ou de absteno da liberdade de filiao passou a ser de direito positivo ou de ao. A partir dessas novas questes que o anarquista Neno Vasco (1984, p.124-5) denunciou o que chamou fortalezas trade-unionistas, que dificultavam a entrada de scios mediante joias e cotas inacessveis aos mais pobres. Dizia ele que qualquer coao exercida sobre o operrio no associado produziria o mesmo efeito que os falsos engodos mutualistas. A coao, sob forma de boicote contra o no-scio, segundo o autor, favorecia o dio e os atritos dentro do proletariado. Para ele, a filiao deveria ser voluntria e consciente. Maior motivo ainda, dizia o autor, para combater a sindicalizao obrigatria por lei do Estado, seria o que chamou de cavalo-de-Tria. O sindicato teria que oferecer compensao aos recrutas incorporados por lei: seguros contra a desocupao, doena ou invalidez, penses e subsdios por isto e por aquilo enfim tudo o que sufoca a ao essencial de resistncia (p.128). Os no-scios, agora personificados como inimigos ou traidores, muitas vezes eram enfrentados pelos sindicatos com o aumento da perseguio, por falta de outra opo. Emygio Silva (1905, p.331) ressalta que tambm os que no faziam parte da associao se beneficiavam das vantagens de melhorias das condies de trabalho alcanadas pelos sindicatos, e no apenas os operrios sindicalizados. O autor refere-se ao boicote que havia contra os no-scios. A oposio a estes era enrgica substancialmente quando eles aceitavam trabalhar por salrio mais baixo que o considerado pelo sindicato ou quando furavam greve. Silva (1905, p.337) relata que era comum a associao operria no permitir a seus membros que trabalhassem nos estabelecimentos onde eram recebidos operrios no-associados, fazendo presso sobre os patres para que no os contratassem. Isso levava os trabalhadores a se sindicalizarem. O autor, crtico dessas prticas sindicais, chegou a aventar a possibilidade de o operrio prejudicado ajuizar uma ao de indenizao contra o sindicato; porm lembra que seria necessrio que este praticasse um ato que realmente houvesse impedido a contratao, no bastando a simples difamao do prejudicado por parte da entidade. A ausncia de uma regulao no de mera lei que levasse em conta a existncia do conflito propiciava a violncia. As ameaas eram uma forma primitiva de obrigar a definio de uma direo e de exigir seu cumprimento. Tanto o Estado como os sindicatos acabavam por praticar a violncia a fim de se posicionarem num mercado liberal sem regulao. 38

Os liberais e os anarquistas no queriam a regulamentao por esta significar interferncia do Estado. Mas o vazio de regulamentao no deixa de ser uma regulamentao passiva, para no dizer liberal. O vcuo de regulamentao formal era um incentivo violncia, pois cada grupo procurava fazer valer sua prpria regra num ambiente em que o Estado se colocava afastado, permitindo os