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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Leila Rose Márie Batista da Silveira Maciel FICÇÃO, HISTÓRIA E IMAGINÁRIO EM TAL DIA É O BATIZADO (O ROMANCE DE TIRADENTES), DE GILBERTO DE ALENCAR Belo Horizonte 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras

Leila Rose Márie Batista da Silveira Maciel

FICÇÃO, HISTÓRIA E IMAGINÁRIO EM TAL DIA É O BATIZADO (O ROMANCE DE TIRADENTES), DE GILBERTO DE ALENCAR

Belo Horizonte 2013

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Leila Rose Márie Batista da Silveira Maciel

FICÇÃO, HISTÓRIA E IMAGINÁRIO EM TAL DIA É O BATIZADO (O ROMANCE DE TIRADENTES), DE GILBERTO DE ALENCAR

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Melânia Silva de Aguiar

Belo Horizonte 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Maciel, Leila Rose Márie Batista da Silveira

M152f Ficção, história e imaginário em Tal Dia é o Batizado (O Romance de

Tiradentes), de Gilberto de Alencar / Leila Rose Márie Batista da Silveira

Maciel. Belo Horizonte, 2013.

201f.: il.

Orientadora: Melânia Silva de Aguiar

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Ficção brasileira – Crítica e interpretação. 2. Alencar, Gilberto de, 1887-

1961. Tal dia e o batizado : (o romance de Tiradentes) – História e crítica. 3.

Romance histórico. 4. Memória na literatura. 5. Imaginário. I. Aguiar, Melânia

Silva de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-

Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-3.09

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Leila Rose Márie Batista da Silveira Maciel

FICÇÃO, HISTÓRIA E IMAGINÁRIO EM TAL DIA É O BATIZADO (O ROMANCE DE TIRADENTES), DE GILBERTO DE ALENCAR

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa.

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Melânia Silva de Aguiar (Orientadora) – PUC Minas

_______________________________________________________________ Profª. Drª. Moema Rodrigues Brandão Mendes – CES/JF

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart – PUC Minas

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Ângela Tonelli Vaz Leão – PUC Minas

_______________________________________________________________ Profª. Drª. Eliane Vasconcellos – AMLB

Belo Horizonte, 6 de setembro de 2013.

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A Emmanuel, fiel companheiro, pelo amor e apoio incondicional, pela paciência e pelo tempo roubado ao nosso convívio. A meus queridos filhos, Emmanuelle e Vinícius, pelo carinho, compreensão e incentivo ao longo desta caminhada.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pela vida e pela presença constante. À Professora Drª. Melânia Silva de Aguiar, por ter aceitado o convite para me

orientar e pelo maravilhoso trabalho de orientação realizado ao longo da pesquisa. Agradeço-lhe, também, pela paciência, sensibilidade e ética na condução da mudança do projeto desta tese e pelas incansáveis leituras do trabalho. Obrigada pelos ensinamentos e apoio em todos os momentos necessários.

À Professora Drª. Eliane Vasconcellos, pela amizade, carinho, atenção e por

ter aceitado o convite para participar de minha Banca de Defesa. Serei eternamente grata por ter-me mostrado o caminho da pesquisa da correspondência no arquivo de Gilberto de Alencar.

À Professora Drª. Moema Rodrigues Brandão Mendes, pela amizade e pelo

apoio incondicional ao longo desta pesquisa, incentivando-me e mostrando-me a possibilidade de novos caminhos.

À Professora Drª. Ângela Tonelli Vaz Leão, exemplo de amor ao magistério.

Admiro sua capacidade de, mesmo estando em uma sala de aula, com poucos recursos, transportar o aluno para outro espaço, levando-o para uma representação cênica. Ao longo de minha vida, sempre me lembrarei da senhora com muito carinho e amor. Obrigada pelos ensinamentos!

Ao Professor Dr. Audemaro Taranto Goulart, por ter aceitado o convite para

fazer parte da Banca de Qualificação e de Defesa desta tese. As sugestões, além de terem sido muito bem-vindas, enriqueceram, sobremaneira, minha pesquisa com a leitura da novela Eu, Tiradentes , de Pascoal Motta.

Ao Professor Dr. Hugo Mari, pelo carinho e atenção, quando de minha

chegada à PUC Minas. À Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas,

Professora Drª. Márcia Marques de Morais, pela atenção e pelo compromisso com o trabalho realizado na instituição.

A todos os Professores da PUC Minas e a todos os funcionários, pela

disponibilidade e carinho, especialmente, às secretárias Vera Lúcia Mageste de Salles Alves, Berenice Viana de Faria e Rosária Helena de Andrade, pelo compromisso com o trabalho realizado.

Aos familiares de Gilberto de Alencar, Marta Maria de Alencar e Sousa e

Dóris Marlene Rocha de Alencar, que sempre me receberam com carinho e atenção para a realização das pesquisas na Biblioteca do escritor mineiro e para as entrevistas.

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À funcionária da Academia Mineira de Letras, Marília Moura, pelo carinho e atenção durante as pesquisas da correspondência ativa de Gilberto de Alencar nos arquivos da instituição.

Ao Professor Carlos Alberto Pinho Neves, então Pró-Reitor de Cultura da

Universidade Federal de Juiz de Fora na época da pesquisa da correspondência de Gilberto de Alencar no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, pela atenção durante a pesquisa no arquivo do escritor mineiro nesse espaço cultural.

Aos funcionários do Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, da Universidade

Federal de Juiz de Fora, Maria Helena Sleutjes (bibliotecária à época da pesquisa da correspondência de Gilberto de Alencar), Lucilha de Oliveira Magalhães e Bruno Defilippo Horta, pela atenção e carinho durante as pesquisas no arquivo de Gilberto de Alencar.

Às Professoras Drªs. Maria de Lourdes Abreu de Oliveira, Thereza da

Conceição A. Domingues e Marlene Gomes Mendes, pelos ensinamentos e amizade.

À Direção do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste

de Minas Gerais (IF Sudeste MG) – câmpus Juiz de Fora, pelo apoio e licença concedida para a realização da pesquisa.

Ao Professor Walter Rossignoli, pela amizade sincera e apoio incondicional

ao longo de minha vida profissional e acadêmica. Agradeço-lhe também pelas leituras dos textos. Serei eternamente grata a você!

Ao Professor José Maria Pereira Guerra, pelo carinho e atenção, e também

pelo incentivo, ao interessar-se pela leitura da obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes), de Gilberto de Alencar.

Aos professores do Departamento de Educação – Núcleo de Línguas – do IF

Sudeste MG, Aline Fonseca, Carmem Silva Martins Leite, Denise Adélia Vieira, Patrícia Botelho, Solange da Silva Augusto dos Santos, Teresa Maria Videira Rocha de Souza, Wagner Eduardo Rodrigues Belo, pelo carinho e apoio ao longo desta caminhada. Obrigada por tudo!

Aos meus familiares, meu irmão, Padre Aderbal Teotônio de Paula, que

acompanhou este trabalho bem de perto nestes últimos anos, incentivando-me e apoiando-me; a meus irmãos, Hilton e Vouner, e irmãs, Dalma, Elza (in memoriam) e Madrinha Helena, pelo apoio e carinho.

À Maria Gomes Panza, uma amiga sincera, que, em todos os momentos,

muito me auxilia com palavras, as quais sempre caem como um bálsamo em minha alma. Obrigada pela paz que transmite a mim e a meus familiares!

À grande amiga Maria das Graças de Castro Nogueira, pela amizade e

convívio no decorrer do curso na PUC Minas, e a todos os colegas do curso de Pós-Graduação da PUC Minas, pela amizade sincera, carinho e atenção ao longo do curso e também pela troca de experiência.

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O que se busca principalmente nos livros é a magia da arte, a ficção, o sonho, o à peu près. O atormentado coração do homem encontra neste jogo mágico alguma coisa que se assemelha à insatisfação de seus desejos, tão certo é que a realidade representada produz os mesmos efeitos afetivos como se se tratasse da realidade vivida (FRIEIRO, 1983, p. 132).

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RESUMO

Esta tese tem como objeto de estudo a análise do romance Tal dia é o batizado (o

romance de Tiradentes), de Gilberto de Alencar (1886-1961), do ponto de vista de

sua construção e do papel aí exercido pela história em sua interface com a ficção e a

memória coletiva. O exame da correspondência ativa e passiva do autor, localizada

em acervos diversos, constitui, entre outras fontes bibliográficas, subsídio importante

para análise da obra. Ainda, serão apresentados alguns pontos de convergência e

divergência no diálogo intertextual entre as narrativas Tal dia é o batizado e a

novela Eu, Tiradentes : confissões do maior mito da História do Brasil, de Pascoal

Motta (1990). O romance Tal dia é o batizado tem ambiência no século XVIII, em

Minas Gerais, e focaliza a saga de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes,

principal herói (e mártir) do movimento que veio a ser conhecido na história do país

como Inconfidência Mineira. Ficção, história e imaginário mesclam-se, pois, na bem

urdida trama tecida pelo autor, impondo, assim, dentro da proposta do trabalho,

maior aprofundamento de conceitos e aspectos teóricos relativos, entre outros, a

“romance histórico”, “memória coletiva”, “imaginário”, “ficcionalização”.

Palavras-chave: Romance histórico. Memória. Ficção. Imaginário. Gilberto de Alencar Tiradentes.

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ABSTRACT

This thesis has as its object of study to analyze the romance of Gilberto de Alencar

(1886-1961), Tal dia é o batizado (a novel about Tiradentes), from the viewpoint of

its construction and the role played in it by history in its interface with the fiction and

the collective memory. The examination of author's active and passive mailing,

located in various collections, together with other bibliographical sources, is an

important subsidy for analysis of the work. Still, we introduce some points of

convergence and divergence in intertextual dialogue between the narratives Tal dia

é o batizado and the novel I, Tiradentes : confessions of the biggest myth in the

history of Brazil, Pascoal Motta (1990). The novel Tal dia é o batizado is set in the

eighteenth century, in the state of Minas Gerais, and focuses on the saga of Joaquim

José da Silva Xavier known in history as Tiradentes, the main hero (and martyr) of

the movement that came to be known in history as The Conspiracy of the state of

Minas Gerais. Fiction, history and imagination interlace into the well-woven fabric of

the narrative of the author, imposing within the proposed work a deeper

understanding of the concepts and theoretical issues concerning, among others

concepts, the "historical romance”, "the collective memory", "imaginary",

“fictionalization".

Keywords: Historical romance. Memory. Fiction. Imaginary. Gilberto de Alencar Tiradentes.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Gilberto Napoleão Augusto de Alencar.......................................... 14

Figura 2 – Prédio da redação do jornal O Pharol – Juiz de Fora................... 26

Figura 3 – Academia Mineira de Letras – Belo Horizonte............................... 29

Figura 4 – Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar – Ouro Preto.................. 30

Figura 5 – Estátua de Tiradentes.................................................................... 44

Figura 6 – Capa da obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes).... 106

Figura 7 – A Visão de Tiradentes, Croquis, Belmiro de Almeida.................... 115

Figura 8 – Alferes Joaquim José da Silva Xavier. Quadro de José Wasth Rodrigues.....................................................................................

130

Figura 9 – Vista parcial de Ouro Preto, MG.................................................... 133

Figura 10 – Casa de Reunião dos Conjurados – Ouro Preto........................... 141

Figura 11 – Bandeira de Minas Gerais............................................................. 143

Figura 12 – O Santo Adormecido, de Antônio Francisco Lisboa. Congonhas do Campo, MG..............................................................................

147

Figura 13 – Enforcamento de Tiradentes – quadro de Alberto da Veiga Guignard.......................................................................................

175

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 12 1.1 Gilberto de Alencar: um romancista na “Manchest er Mineira” ......... 13 1.2 Tal dia é o batizado : o tempo, o espaço e a ação da escrita .............. 30 1.3 Tiradentes: o tempo e o espaço da história ........................................ 38 2 O QUE É (PODE SER) HISTÓRICO NO TEXTO FICCIONAL? ................ 45 2.1 Entre a ficção e o fictício ....................................................................... 45 2.2 A memória coletiva e o poder do imaginário ....................................... 54 2.3 O romance histórico e seus limites ...................................................... 63 3 A CORRESPONDÊNCIA DE GILBERTO DE ALENCAR E O PODE R

DA “REDE LETRADA” .............................................................................

80 3.1 O gênero epistolar .................................................................................. 80 3.2 Correspondência de Gilberto de Alencar ............................................. 83 4 TAL DIA É O BATIZADO : FICÇÃO E HISTÓRIA ...................................... 102 4.1 Processo de criação da obra ................................................................. 102 4.2 Joaquim José: características físicas e psicoló gicas – predições ... 109 4.3 Idílio amoroso no romance – fictício no texto ficcional ................... 117 4.4 Joaquim José da Silva Xavier: um alferes do Regimento dos

Dragões da Capitania de Minas Gerais – um olhar par a a exploração da colônia pelos portugueses ...........................................

126 4.5 Inconfidência Mineira: o sonho de tornar o Bras il uma República ... 137 5 TAL DIA É O BATIZADO : MEMÓRIA E IMAGINÁRIO .............................. 161 5.1 Depoimentos de Tiradentes: interlocução com a o bra Eu,

Tiradentes : confissões do maior mito da História do Brasil, de Pascoal Motta .......................................................................................

161 5.2 A Alçada no Rio de Janeiro: julgamento dos inco nfidentes .............. 166 5.3 Desenlace: morte de Tiradentes ........................................................... 170 5.4 Epílogo: tradição oral e imaginário presentes n o romance ............... 176 6 RESULTADOS DA PESQUISA .................................................................. 182 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 187 REFERÊNCIAS.............................................................................................. 192

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1. INTRODUÇÃO

Esta tese tem como objeto de estudo a análise do romance Tal dia é o

batizado (o romance de Tiradentes), de Gilberto de Alencar (1886-1961), do ponto

de vista de sua construção e do papel aí exercido pela história em sua interface com

a ficção e a memória coletiva. O exame da correspondência ativa e passiva do autor,

localizada em acervos diversos, constitui, entre outras fontes bibliográficas, subsídio

importante para análise da obra. Os conceitos e aspectos teóricos referentes a

romance histórico, texto ficcional, memória coletiva e imaginário apresentados neste

trabalho têm como base estudos de autores como Lukacs (1965), Iser (1983), Duby

(1986), Le Goff (2003), Halbwachs (2006), entre outros. Também foram realizadas

entrevistas com alguns contemporâneos e familiares do escritor mineiro, a fim de

elucidar fatos importantes de sua vida e obra. Os volumes dos Autos de Devassa

da Inconfidência Mineira , bem como livros de história e de literatura, foram muito

importantes para a realização desta pesquisa. Ainda, com o objetivo de enriquecer

os dados apresentados neste estudo a respeito dos registros da memória de

Joaquim José da Silva Xavier, escolhemos, por sua relevância e pertinência, entre

as obras congêneres de Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes), de Gilberto

de Alencar (1981), a novela Eu, Tiradentes : confissões do maior mito da História do

Brasil, de Pascoal Motta (1990). Buscaremos mostrar alguns pontos de

convergência e divergência no diálogo intertextual entre as narrativas.

O romance Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes), de Gilberto de

Alencar (1981), tem ambiência no século XVIII, época em que o Brasil era colônia de

Portugal. Em razão da escassez do ouro e da iminência de a Coroa portuguesa

lançar a derrama, pois o pagamento do quinto estava muito atrasado, houve grande

insatisfação na Capitania de Minas Gerais, originando a Inconfidência Mineira. O

autor utiliza-se de seu dom nato1 de escrever para romancear esse episódio,

traçando, inicialmente, a trajetória de vida de Joaquim José da Silva Xavier, o

Tiradentes, para depois chegar aos fatos históricos e apresentá-los com muita

fidedignidade.

Gilberto de Alencar, antes de escrever esse romance, fez um minucioso

estudo da primeira edição da obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira ,

1 Essa referência ao escritor está presente nas correspondências de críticos literários e escritores de sua época.

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edição de 1936, livros que lhe foram emprestados pelo colega de trabalho, Almir de

Oliveira2, quando ainda só existia a vontade de escrever o romance e algumas

ideias. O título da obra – Tal dia é o batizado –, por sua remissão à senha

escolhida pelos inconfidentes para marcar o dia do levante, já indica o arcabouço

histórico que deverá sustentar a narrativa. Conforme informações coletadas em

entrevista com sua neta Marta Maria de Alencar e Sousa (2011), na residência dela,

documentos originais foram doados a Gilberto na época em que ele escreveu o

romance.

Este estudo buscará responder às seguintes questões: até que ponto a

história oferece subsídios para a elaboração da obra Tal dia é o batizado (o

romance de Tiradentes)? Em que medida a correspondência de Gilberto de Alencar

ilumina esta questão? Os dados presentes no imaginário de um povo também

podem contribuir para a construção de narrativas históricas?

1.1 Gilberto de Alencar: um romancista na “Manchest er Mineira”

O gênero biográfico teve seus momentos de glória na época da aristocracia;

contudo, perde o valor nos movimentos historiográficos do século XX. Na década de

1970, há uma retomada da biografia como fonte, e, segundo Kappel (2010, p. 33),

isso não significa “o retorno à história dos grandes homens e sim à análise social do

sujeito biografado desprendido do estudo das ações individuais e abrindo espaço

para a investigação das ações coletivas”. Assim, a partir das considerações

apresentadas pela autora, buscar-se-á apresentar Gilberto de Alencar dentro do

contexto social em que viveu, mostrando a grande contribuição que deu, como

escritor, para as letras mineiras e, como jornalista, para o meio político e social em

que estava inserido, pois a Imprensa naquela época, em Juiz de Fora, exercia

grande poder sobre a sociedade, porquanto era o meio de comunicação mais eficaz

e formador de opinião.

Gilberto Napoleão Augusto de Alencar – cujo familiar mais famoso talvez seja

o romancista José de Alencar, de quem era primo – nasceu em Palmira, então

estação de João Gomes, atual Santos Dumont, em Minas Gerais, no dia 1º de

dezembro de 1886, e morreu em Juiz de Fora, em 4 de fevereiro 1961. Casou-se

2 Almir de Oliveira é historiador e contemporâneo de Gilberto de Alencar. Na época em que Gilberto trabalhou no Diário Mercantil de Juiz de Fora, Almir era o redator-chefe do jornal.

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com Sofia Áurea do Espírito Santo, com quem teve 5 filhos (Fernando, Heitor,

Cosette, Emília e Kikita), sendo que uma de suas filhas, Cosette de Alencar, seguiu

o caminho do pai: foi escritora e também exerceu atividades na educação e no

jornalismo. Maria de Lourdes Abreu de Oliveira, escritora mineira e contemporânea

de Gilberto de Alencar, em entrevista concedida à pesquisadora, em 16 de março de

2010, informa que Cosette “tinha ligação muito forte com o pai. Filha que endeusava

o pai. Lia os livros do pai” (OLIVEIRA, 2010). Apresenta-se uma fotografia de

Gilberto de Alencar (FIG. 1), presente no livro Figuras Notáveis de Minas Gerais ,

de Rabello et al. (1973-1974):

Figura 1: Gilberto de Alencar.

Fonte: Rabello et al.,1973-1974, p. 209.

Foram pais de Gilberto de Alencar: Fernando de Alencar3, médico, escritor e

professor, e d. Emília de Alencar. Conforme a biografia de Fernando de Alencar,

presente no escaninho de Gilberto na Academia Mineira de Letras (AML), ele foi um

“orador notável, dotado de vasta cultura, bateu-se com denodo pela extinção do

famoso ‘anel de ferro’, que foi a escravidão do negro. (...) Além de médico excelente,

3 Fernando de Alencar nasceu em Fortaleza, em 31 de março de 1857, e faleceu em Sete Lagoas, em 1910. Formou-se em Medicina, na Bahia, tendo sido o orador da turma. Morou em várias cidades: Barbacena, Santos Dumont, Patos, Dores do Indaiá, Itapecerica e Sete Lagoas. Publicou Pálidas (poesias), que foi muito elogiado pelo poeta português Tomás Ribeiro. Foi também romancista: deixou os romances Celestina , O apóstata , Heroína (inéditos). Escreveu, além disso, o drama Ó insurgente (inédito) (trecho da biografia de Fernando de Alencar presente no escaninho da AML – Cadeira nº. 21).

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notabilizou-se na poesia e no romance”4. Gilberto, em homenagem a seu pai,

escolheu-o para ser o Patrono da Cadeira nº. 21 da AML. Nelson de Faria, substituto

do escritor mineiro na AML, no discurso de posse, proferido em 16 de novembro de

1961, coloca-o no mesmo nível de José de Alencar: “Gilberto não é, em vários

momentos de sua prosa admirável, inferior ao primo famoso. Muitas vezes eles se

equivalem, na urdidura de seus romances de costumes, na sobriedade e pureza de

escrever. Não faltam ao consanguíneo qualidades de lexicógrafo. Ao parente

próximo tão pouco (...)” (FARIA, 1961, p. 16).

Na época em que Gilberto de Alencar era criança/adolescente, ainda não

havia o ensino elementar em Minas. Então as primeiras letras – até aos 16 anos –

foram ensinadas pelo próprio pai. Segundo Christo (1994, p. 38):

A maior parte dos acadêmicos da AML iniciaram o aprendizado das primeiras letras com os próprios familiares, ou por frequência às casas dos (mestres-escolas) – os únicos mestres particulares do ofício de ensinar, a única alternativa no interior.

Gilberto viajou muito em companhia do pai pelo interior, sempre com

dificuldades financeiras – embora fosse médico, o pai não equilibrava as finanças,

pois exerceu a profissão no interior e, muitas vezes, comprava o remédio ou os

alimentos para seus pacientes. Desse modo, não foi possível a Gilberto de Alencar

passar por escolas regulares, salvo o tempo em que, por dois anos, estudou no

Colégio Gonçalves, de Barbacena. Ainda jovem, o contato de Gilberto com as letras

era grande, pois passava a limpo os manuscritos do pai – escritos a lápis, em tiras

de papel quadriculado:

A mim me tocava o trabalho de passar a limpo os capítulos, a tinta, com letra caprichada, em tiras de almaço, para a imprensa. Para ganhar-lhe os elogios, esmerava-me o mais que podia na cópia, mas nem sempre esta saía perfeita, que a letra do autor, conquanto legível, não deixava de ser letra de médico... (ALENCAR, 1955-1959, p. 131).

Talvez, em razão dessa atividade constante de copiar os textos do pai e

devido à sua fabulosa habilidade mental e manual, ele tenha adquirido essa prática

de escrever seus artigos de jornal diretamente no tipógrafo, conforme afirma Faria

(1961, p. 23-24):

4 A biografia de Fernando de Alencar foi escrita pelo filho Gilberto de Alencar.

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(...) Gilberto não se dava ao trabalho de escrever as crônicas, os tópicos, mesmo o artigo de fundo, para o jornal. Pegava do componedor – êsse instrumento de suplício de todos os tipógrafos – e nêle ia colocando as letras, alinhando as palavras. Do componedor saíam prontos os sueltos, sem erros, para a paginação5.

Gilberto de Alencar deixou a casa dos pais e ingressou no jornalismo, tendo

exercido, inicialmente, a função de tipógrafo, diversificando, gradativamente, seu

trabalho para: revisor, cronista, articulista, entre outros. A atividade de jornalista foi

de capital importância para Gilberto, pois, como afirma Frieiro, em carta endereçada

ao escritor mineiro, de 2 de outubro de 1957, o jornal é “boa escola de escritores”6.

Nesse trabalho, Gilberto de Alencar exerceu atividades de diretor e redator do jornal

O Pharol , além de escrever artigos para periódicos como A Pátria , Correio de

Minas , Gazeta Comercial , A Batalha , Diário Mercantil e Diário da Tarde , todos de

Juiz de Fora. Em Belo Horizonte, seus textos foram publicados nos jornais Minas

Gerais , Folha de Minas , A Tarde e na revista Alterosa . Os periódicos A Noite e o

Diário de Notícias , do Rio de Janeiro, também deram a lume textos de Gilberto.

Sua contribuição se fez presente ainda no Jornal do Comércio , de São João del-

Rei. Vale lembrar que, em 1920, o autor de Tal dia é o batizado foi proprietário do

jornal A Batalha .

Belmiro Braga (que morava em Juiz de Fora), em cartão endereçado a

Gilberto de Alencar, de 7 de abril de 1910, (que na época morava em São João

Nepomuceno), informa que acompanha o trabalho do jornalista à distância:

Continuo a acompanhar-te com interesse e a admirar-te o talento, a independência e a constância no trabalho. Moço como és e assim trabalhador – irás longe. Abraço-te com saudades o amigo e muito admirador7.

Pelos elogios recebidos, nota-se que Gilberto de Alencar, ainda no início da

carreira, já mostrava o domínio sobre a palavra escrita e o compromisso com o

trabalho. Desse modo, Belmiro Braga já antevia o grande talento do romancista

mineiro.

5 Nas citações de textos antigos, nesta pesquisa, será adotada a ortografia original. 6 Carta de Eduardo Frieiro a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 2 de outubro de 1957. 2 fls. Envelope nº. 8. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 7 Cartão de Belmiro Braga a Gilberto de Alencar. Juiz de Fora, 7 de abril de 1910. Envelope nº. 5. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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Segundo informações de sua filha Cosette de Alencar8 (1961, p. 2), Gilberto

cultuava os autores clássicos franceses, conhecia-os a fundo; considerava “a França

sua pátria espiritual”. Em sua biblioteca – doada juntamente com seu arquivo

pessoal para o Museu de Arte Moderna Murilo Mendes (MAMM), pertencente à

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – a maioria dos títulos são de autores

franceses, que ele lia no original. Frise-se que à sua cultura linguística

incorporavam-se também conhecimentos de língua latina.

Na época em que viveu Gilberto de Alencar, faltava, no Brasil, uma ambiência

adequada que favorecesse a plena floração dos talentos. Conforme Frieiro (1983, p.

12), “As obras literárias são produções que não dependem somente da boa

qualidade do elemento produtor, mas também das condições favoráveis ou

desfavoráveis em que elas podem ser obtidas”. O escritor mineiro enfrentou grandes

dificuldades para editar seus livros e, muitas vezes, utilizou-se de recursos próprios

para publicá-los, visto que à época não havia no Brasil as facilidades hoje existentes

para a publicação de livros. Também era difícil a divulgação e vendagem das obras,

pois não havia tantos meios de comunicação como hoje. Desse modo, contava com

a ajuda dos próprios colegas escritores, tanto de Juiz de Fora quanto da região, para

recomendar os livros e colocá-los em livrarias de outras cidades.

O seguinte pensamento de Frieiro (1983, p. 13) traduz, com propriedade, a

pouca valorização do trabalho do escritor no Brasil, razão pela qual esse profissional

não podia dedicar-se somente a essa função e ter de buscar outros meios para sua

sobrevivência:

Quem se dispõe a ser escritor na nossa terra, embora esteja a cem léguas de Flaubert e de Camilo, é porque sente como esses ilustres e distantes confrades igual nojo pela vil pecúnia e pela grosseria dos processos de enriquecer. Doutro modo, teria preferido moer canas ou serrar madeiras.

Como no Brasil a literatura jamais constituiu uma profissão, os escritores

precisavam buscar outros tipos de trabalho para sua subsistência: “(...) no Brasil, os

homens de letras, como os sábios, têm forçosamente de ser empregados de

secretarias, advogados no foro, agentes de companhias, industriais e corretores

internacionais” (OLIVEIRA LIMA apud FRIEIRO, 1983, p. 56-57). Em sintonia com a

citação, Gilberto de Alencar foi Professor e Secretário da Escola Normal Oficial de

8 Diário Mercantil , Juiz de Fora, p. 2, 3 mar. 1961.

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Juiz de Fora, Inspetor Escolar Estadual, Diretor do Serviço de Educação do

município de Juiz de Fora, Professor do Ginásio Santa Cruz (CHRISTO, 1994). Foi

Conselheiro da Coroa Italiana. Escreveu contos, crônicas, novelas, romances. Fez

traduções, comentários políticos, entre outros. Em sua ficha na AML, no quesito

“Instituições a que pertence”, de próprio punho, Gilberto escreveu: Academia Mineira

de Letras e Instituto Histórico de Ouro Preto (documento datado de 15 de março de

1955).

No caso de Gilberto de Alencar, além desses cargos, como já se viu, ele

exerceu o jornalismo que, segundo João Ribeiro (apud FRIEIRO, 1983, p. 57), é

uma profissão literária aproximada:

(...) é o professorado, o didatismo, que estiola numa vocação ocasional os espíritos mais bem-dotados, impossibilitando-os para a obra de arte. Na magistratura, na advocacia, na medicina, na engenharia, na política, encontra igualmente o homem de letras as muletas duma profissão aproximada.

Gilberto de Alencar, tal como outros intelectuais de Minas Gerais, dedicou-se

ao jornalismo, ao magistério e ao serviço público. Desse modo, é possível perceber

que ele se enquadra nesse pensamento de João Ribeiro. Além dessas atividades,

ainda era necessário dar-se à família, sobrando-lhe, então, pouco tempo para se

dedicar ao fazer literário.

Maria de Lourdes Abreu de Oliveira (2010), em entrevista concedida à

pesquisadora, relata que Gilberto de Alencar era autodidata e, como possuía o

conhecimento, fora absorvido no magistério. A escritora mineira esclarece que ele

dava aula de Jornalismo na Faculdade de Filosofia e Letras (FAFILE), “ele era o

dono da cadeira”, mas “o ordenado era simbólico, era um valor tão ínfimo que não

pagava nem o bonde”. A leitura da correspondência passiva do escritor deixa

transparecer que Gilberto buscava nomeações para cargos públicos, utilizando-se

de amizades com pessoas ligadas a políticos ou mantendo contato com os próprios

governantes. Em um cartão de 10 de março de 1924, Affonso Penna Junior

responde a uma carta de Gilberto de Alencar, em que este pede nomeação: “Estou

dando passos pa lhe conseguir o logar pedido em sua carta. O Mario Brant deseja

mto fazer a nomeação; mas há umas difficuldades, vindas d’ahi, que estou

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procurando remover. Darei noticia do resultado9”. Christo (1994, p. 47), sobre o

assunto, assim se expressa:

(...) a grande “vocação” das camadas médias urbanas impunha aos acadêmicos a busca do emprego público. Principalmente aqueles que, autodidatas, não dispunham de uma profissão liberal. (...) buscavam, dentro do próprio magistério estadual assegurar uma fonte de renda mais estável.

Gilberto de Alencar está inserido nesse grupo de pessoas, pois não fez curso

superior, mas esforçou-se e buscou o conhecimento por conta própria. Desse modo,

ao enveredar para a carreira do magistério, garantiu estabilidade econômica, mas

não o suficiente para levar uma vida mais tranquila. Conforme informação de sua

neta, Marta de Alencar e Sousa (2011), “A vida deles [da família] era difícil. O

caderno era feito de papel de pão e o presente de natal era uma maçã”. A família

morava em uma casa modesta – rua Marechal Deodoro, nº. 987 – no centro de Juiz

de Fora. Gilberto gostava muito de ficar no escritório de sua casa, local em que

havia uma coleção de livros franceses encadernados a mão por ele.

Como já visto anteriormente, Gilberto de Alencar vem de uma família sem

muitos recursos, pois o pai, apesar de ser médico, não conseguiu ter uma boa

situação financeira: “(...) o acesso à posição de escritor aparece, nesta conjuntura,

como produto de uma estratégia de reconversão que se impõe por força do

desaparecimento do capital de que a família dispunha inicialmente, ou então, pela

impossibilidade de herdar tal capital em toda sua extensão” (MICELLI, 1977, p. 22).

Assim, o autor mineiro utilizou-se do capital de suas relações sociais de todas as

formas possíveis para fazer a reconversão social e levar uma vida com dignidade

junto a sua família. Gilberto, como já se viu, buscava se relacionar com políticos

importantes de sua época, a fim de tomar posse do capital social para fazer a

mudança em sua vida profissional. Mas uma atitude muito segura para atingir seu

objetivo foi preocupar-se com os estudos dos filhos. Conforme esclarecimento de

sua neta Marta de Alencar e Sousa (2011), os filhos tinham de ser independentes

economicamente; esse propósito, Gilberto o atingiu até mesmo com as filhas, que

buscaram no magistério a forma de trabalho – uma das poucas opções para a

mulher naquela época. Cumpre ressaltar que uma de suas filhas, Cosette de

9 Cartão de Affonso Penna Junior a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 10 de março de 1924. Envelope nº. 2. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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Alencar, herdou do pai o talento para escrever. Ela também se dedicou ao

jornalismo, tendo muitos artigos publicados em periódicos, além de um romance:

Giroflei, giroflá . Cosette, nas décadas de 1960 e 1970, manteve vasta

correspondência com escritores de destaque de sua época.

Rangel (1940) divide os jornalistas em diversas categorias: políticos,

doutrinadores, poetas, cronistas, articulistas e críticos literários. Gilberto de Alencar

insere-se entre os articulistas, mas Rangel (1940, p. 219) apresenta a seguinte

particularidade sobre o romancista: “(...) Gilberto de Alencar há sido um lidador

intemerato, tendo percorrido todos os estágios da vida jornalística (...)”. Sobre o

escritor mineiro, Rabello et al. (1973-1974, p. 210) assim se expressam: “Poeta

bissexto, escreveu quadrinhas satíricas com o pseudônimo de Zangão e alguns

versos humorísticos, publicados na Imprensa de Juiz de Fora e do interior de Minas

Gerais”. Mendes (2010) confirma a questão do uso de pseudônimos por Gilberto de

Alencar: escrevia seus textos e os assinava com os pseudônimos: Zangão, G., G. de

A., Germano D’Aguilar, João do Carmo e Napoleão.

Nos últimos anos de sua vida, o escritor mineiro trabalhou no jornal Diário

Mercantil , de Juiz de Fora. Segundo Almir de Oliveira, em entrevista concedida à

pesquisadora, na residência dele, em 19 de agosto de 2011, além de escrever

crônicas para esse periódico, Gilberto fazia “recortes” para o jornal, ou seja, lia as

notícias que saíam nos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, recortava-as, para

que saíssem no mesmo dia em Juiz de Fora. Almir afirma que, na redação desse

jornal, os colegas “zombavam do conservadorismo de Gilberto de Alencar e que

somente três colegas gostavam de conversar com ele: Paulino de Oliveira, Hipólito

Teixeira e eu”. Na entrevista, ao perguntar sobre os traços físicos de Gilberto, Almir

respondeu: “Ele era da minha altura [estatura média], mas não tinha traços de

mulatice não, branco moreno, cabelos anelados”. Maria de Lourdes Abreu de

Oliveira (2010) acrescenta as seguintes características físicas: “Ele era magro, rosto

marcado, tipo intelectual mesmo”. Almir de Oliveira (2011), em entrevista concedida

à pesquisadora, apresenta ainda algumas características da forte personalidade de

Gilberto de Alencar: “Ele era muito difícil, fechado, cheio de métodos (...) ele era

daqueles pais antigos. Ele era um pai muito severo. E formou na Cosette [filha do

escritor] o mesmo espírito. (...) Ele era um homem muito sistemático, mas, para

conversar, era uma prosa muito boa! (...) Ele tinha opinião de homem mais antigo”.

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Na biografia de Gilberto de Alencar (recorte de jornal), presente no escaninho

da Cadeira nº. 21 da AML, há as seguintes características do escritor mineiro:

“Homem boníssimo, desambicioso, modesto, modestíssimo, como fôra seu ilustre

pai, foi um dos grandes valores da Academia, que se revê inteiramente nele como

representação de seu passado”. Nesse recorte, há as iniciais: M. de O. (Martins de

Oliveira). Também Mário Matos (1954, p. 181), acadêmico da AML, em 21 de agosto

de 1952, na sede da Academia Mineira de Letras, por ocasião da homenagem

prestada a Gilberto de Alencar, em uma “Saudação a Gilberto de Alencar”,

apresenta as seguintes características do escritor mineiro: “Singelo nas vestes,

monossilábico na conversação, tímido na sociedade, doméstico como os gatos,

ressabiado e meio solitário, Gilberto espalha, na palavra escrita, mais meu que tudo,

sabedoria de vivem [sic] e especulações sôbre o universo”. Ainda nessa saudação,

Matos (1954, p. 183), poeticamente, faz uma comparação da vida de Gilberto a um

rio do Brasil, com nascente nas montanhas de Minas Gerais:

Sua vida é comparável a um rio do Brasil que se avolumou devagar sem afluentes, carreando a soma das experiências gotejantes no ritmo do seu curso. Sua origem é gloriosamente humilde, pois brotou, não do limo na charneca, mas da pedra lacrimosa da montanha.

Segundo Micelli (1977, p. 140), “(...) Os escritores profissionais viam-se

forçados a ajustar-se aos gêneros que vinham de ser importados da imprensa

francesa: a reportagem, a entrevista, o inquérito literário e, em especial, a crônica”.

Nesse contexto, a crônica foi um gênero muito cultivado por Gilberto de Alencar:

“Cronista de delicioso sabor, tinha Gilberto de Alencar as suas crônicas lidas e

relidas pela Rádio Difusora e Rádio São João de Juiz de Fora e Rádio Inconfidência

de Belo Horizonte” (RABELLO et al., 1973-1974, p. 209).

De acordo com informação de Marta de Alencar e Sousa (2011), se todas as

crônicas que o avô escreveu fossem reunidas, o resultado seriam três ou quatro

volumes. Apesar disso, o escritor mineiro escolheu o romance para registrar suas

memórias, episódios e vivências de sua época e de outras, levando o leitor a fazer

reflexões sobre a vida, o meio social, econômico e político, talvez pelo fato de esse

gênero textual, como afirma Frieiro (1983, p. 69), poder ser “Espelho de certos

aspectos da sociedade” e refletir o pensamento de uma coletividade.

Vejam-se os romances e coletâneas de contos de autoria de Gilberto de

Alencar e o longo período de sua vida dedicado ao fazer literário:

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Imprensa Mineira – 1908, dá notícia sobre o estado do jornalismo de Minas

Gerais à época;

Candidatura militar – 1909;

Prosa rude – livro de contos, publicado em 1909, pela editora Agir;

Névoas ao vento , crônicas, edição única, impressa em 1914, nas oficinas do

jornal Gazeta Comercial , de Juiz de Fora;

Cidade do sonho e da melancolia – obra em que o escritor registra suas

impressões de Ouro Preto, romance publicado em duas edições: a primeira pela

editora Agir, em 1926; a segunda pelo Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de

Fora/Esdeva – Lar Católico , 1971. Esse livro tornou-se uma referência para as

primeiras ações de preservação do patrimônio histórico nacional;

Itália intrépida – 1935;

Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho – romance publicado em

quatro edições: a primeira pela editora Montanheza, de Juiz de Fora, em 1946; a

segunda, pela editora Agir, em 1957; a terceira e a quarta, pela editora Itatiaia.

Rachel de Queiroz, prima de Gilberto de Alencar, gostou tanto dessa obra – um livro

autobiográfico, segundo a crítica da época – que tomou providência para reeditá-lo

“pela Editora Agir do Rio de Janeiro, que enviou emissário a Juiz de Fora para obter

opção e contrato para sua obra toda” (RABELLO et al., 1973-1974, p. 209). Os

manuscritos desse romance foram estudados pela Doutora Moema Rodrigues

Brandão Mendes, que apresentou uma edição crítica em uma perspectiva genética

da obra, na tese intitulada Incursões na gênese do romance Memórias sem

malícia de Gudesteu Rodovalho , de Gilberto de Alencar , na Universidade

Federal Fluminense (UFF);

Misael e Maria Rita – romance publicado em 1953, pela editora Montanheza

e, em 1962, pela editora Itatiaia;

Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) – publicado, em primeira

edição, em 1959, nas oficinas da Gazeta Comercial de Juiz de Fora , MG; em

segunda edição, pela editora Itatiaia, em 1972; em terceira edição, pela mesma

editora, em 1981, ressaltando-se que o livro continua sendo editado até a presente

data pela Itatiaia;

Reconquista (romance publicado em 1961, pela editora Itatiaia);

O escriba Julião de Azambuja (publicado em 1962, pela editora Itatiaia).

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Acrescenta-se que muitas páginas dos romances de Gilberto de Alencar

fazem parte de Antologias e foram usadas em vestibulares da “Conceitec” do Rio de

Janeiro e da Universidade Federal de Juiz de Fora (RABELLO et al., 1973-1974).

Importa assinalar que a editora Itatiaia, de Belo Horizonte, detém

exclusividade do trabalho de Gilberto de Alencar, publicando suas obras e

traduções. Entre os trabalhos de tradução, podem ser citados “Adorável Marquesa”,

de Lambert, “Maria Stuart”, de Peyramaure, “A Divina Cleópatra”, de Kenyon e

“Cenas da vida boêmia”, de Henri Murget (RABELLO et al., 1973-1974). Também a

Revista Mensal Ilustrada Alterosa 10 publicou, em abril de 1946, em capítulos, a

novela O retrato da sala de visitas , do autor mineiro.

Assim, a partir das obras e dos artigos publicados em jornais e revistas, nota-

se que Gilberto de Alencar é um escritor comprometido com a arte literária. A obra

escolhida para esta pesquisa – Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) – foi

escrita quando Gilberto já estava aposentado, época em que passava as noites

acordado, envolvido na elaboração de seus romances. O silêncio da noite ajudava

na urdidura da narrativa – o criador podia ficar a sós com as personagens criadas,

em diálogo constante. Almir de Oliveira (2011) informa: “Quando eu o conheci, ele já

não dava mais aula. Ele já era madurão. Fizemos boa amizade nos intervalos do

serviço”.

Gilberto de Alencar, o romancista, segundo Rabello et al. (1973-1974), poeta

bissexto e estilista, pelo mérito de suas obras e pelo que significava a sua figura

humana, recebeu as seguintes honrarias:

a) Comenda de Cavalheiro da Coroa da Itália11, por decreto de S. M. o Rei da

Itália, em 21 de novembro de 1936.

b) Medalha de Honra da Inconfidência, pelo Decreto nº. 4.453, em 10 de

março de 1955.

c) Título de Cidadão Honorário de Juiz de Fora, por Resolução da Câmara

Municipal de Juiz de Fora, em 17 de outubro de 1951.

10 O secretário da revista Alterosa , Jorge Azevedo, em cartão enviado ao escritor Gilberto de Alencar, de Belo Horizonte, 2 de abril de 1946, informa: “(...) tem o máximo prazer em informar que a sua excelente novela ‘O RETRATO DA SALA DE VISITAS’ terá alguns de seus capítulos iniciais publicados no número de abril, a sair. (...) publicará as grandes novelas que possui em três números, iniciando a série com a sua, que é, realmente, um belo trabalho de crítica social e escrito num estilo a que já nos habituamos a admirar”. 11 Gilberto de Alencar devolveu essa comenda na época da Primeira Guerra Mundial (MENDES, 2010).

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d) Medalha de bronze da Academia Mineira de Letras, em 25 de dezembro de

1959.

e) Membro Honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora, em

31 de maio de 1960.

f) Personalidade do Ano, pelo jornal Binômio de Juiz de Fora, em 1960.

Acrescente-se que, por lei municipal, uma das ruas do centro de Juiz de Fora

leva o nome do romancista, assim como uma Escola Rural, no Bairro Francisco

Bernardino (Escola Municipal Gilberto de Alencar, Estrada Elias José Mockdeci, nº.

3272). Por decreto estadual, foi também dado seu nome a um Ginásio Combinado,

no bairro São Benedito. Por sua vez, a cidade de Cambuquira, em Minas Gerais,

somou-se às homenagens, expondo o retrato do romancista na Galeria Nobre da

Biblioteca Municipal (RABELLO et al., 1973-1974).

Um pesquisador, para melhor compreender o autor que ele se propõe a

estudar, precisa conhecer sua história a partir do contexto social em que viveu,

buscando desvendar fatos de sua experiência pessoal; por isso, buscou-se fazer um

levantamento histórico sobre a cidade de Juiz de Fora, local em que Gilberto de

Alencar viveu e teve o reconhecimento de ter sido um dos intelectuais de seu tempo.

Juiz de Fora ficou conhecida como a “Manchester Mineira”, em razão de seu

desenvolvimento industrial, e foi comparada a uma cidade industrial da Inglaterra –

Manchester. Juiz de Fora surgiu a partir da construção do “Caminho Novo” por

Garcia Rodrigues Paes e Domingos Rodrigues da Fonseca, cujo trânsito regular de

tropeiros teve início em 1709. Esse atalho tinha como objetivo ligar Minas Gerais ao

Rio de Janeiro, em um percurso menor; o transporte do ouro, de diamantes e de

outras mercadorias era feito em lombo de animais (LESSA, 1985). O município de

Juiz de Fora, antigo povoado de Santo Antônio do Paraibuna, foi criado em 1850,

mas instalou-se somente três anos depois.

Lessa (1985, p. 154), em sua obra intitulada Juiz de Fora e seus pioneiros :

do caminho novo à Proclamação, refere-se à boa impressão que a cidade deixou em

um viajante:

Um viajante que chegou pela rodovia, fez publicar no Farol uma muito bem escrita e simpática crônica sobre a cidade. Achou tudo excelente, inclusive o cemitério que só viu de longe, bonito, em local alto e saudável. Boas ruas – comentou – prédios notáveis, “servida por uma companhia de bondes que prima pelo asseio de seus carros e regularidade de suas viagens”. “Conhece-se que se está em um centro de vida; que o progresso não é uma

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mentira, que ele existe aqui em todas as manifestações de sua opulência”. “Nesta cidade, cousa rara nas cidades do interior, trabalha-se”. E continuava o simpático visitante, tecendo loas, dizendo que tínhamos um bom jardim, um mercado razoável, fábricas de cerveja, hotéis idênticos aos do Rio, dois jornais – o Farol e o Eco do Povo – prédio para o Fórum notável pelo tamanho e elegância da construção, “incontestavelmente o primeiro edifício para tal fim construído no interior do país”. E terminava: “Eu, desconhecido viajante, a saúdo cheio de entusiasmo e de respeito”.

No final do século XIX e início do século XX, Juiz de Fora estava em pleno

desenvolvimento econômico e cultural. Era considerada “o maior centro cultural do

Estado, aproximando-se da Corte Capital Federal” (GIROLETTI, 1988, p. 9).

Percebe-se, desse modo, que o jornalista Gilberto de Alencar viveu em uma cidade

que passava por grandes transformações políticas, econômicas, sociais e culturais,

lembrando que, naquela época, a Imprensa era muito valorizada e exercia grande

influência sobre a população: O Imparcial é o primeiro jornal que surgiu na cidade e

O Pharol durou de 1872 a 1939: “Este acompanhou diversos momentos históricos e

sempre contribuiu para a formação da opinião pública, retratando a atividade cultural

da cidade” (OLIVEIRA, 1994, p. 27). Gilberto de Alencar trabalhou nesse jornal, que

noticiou o início da organização da cidade e o processo de construção dos prédios

públicos. A seguir, apresenta-se o prédio (FIG. 2) da redação do jornal O Pharol , em

Juiz de Fora:

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Figura 2 – Prédio da redação do jornal O Pharol – Juiz de Fora.

Fonte: ESTEVES, 1850, p. 323.

O destaque de Juiz de Fora no campo das letras, segundo Kappel (2010), foi

tão grande a ponto de ter sido chamada de Atenas de Minas – nome dado por Arthur

Azevedo12, em razão do desenvolvimento cultural: havia muitos teatros e

apresentação de espetáculos; também, na cidade, circulavam, com frequência,

muitos periódicos, cujos jornalistas eram pessoas letradas e capazes de levantar

discussões políticas. Além disso, havia boas escolas particulares na cidade e

estavam sendo criadas escolas públicas com base na Reforma João Pinheiro. O

Instituto Granbery, criado em 1890, e a Academia de Comércio, criada em 1891,

foram as primeiras escolas particulares de Juiz de Fora daquela época e persistem

até hoje como centros de ensino de excelência, oferecendo cursos superiores e de

pós-graduação. Gilberto de Alencar, como já se viu, embora não tivesse diploma,

participou, ativamente, do processo educacional em Juiz de Fora como professor e

Inspetor de Ensino. Conforme Barbosa e Rodrigues (2009), lecionou também no

externato “Lucindo Filho”, a convite do diretor Machado Sobrinho13.

12 Arthur Azevedo foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras; foi jornalista, poeta, cientista e teatrólogo. 13 Machado Sobrinho foi o principal idealizador do projeto da Academia Mineira de Letras. Nasceu em Limoeiros, no município de Vassouras. No Rio de Janeiro, concluiu o Curso Teórico e Prático de Comércio e Contabilidade. Criou o Externato Lucindo Filho, em 1909, e fundou o Instituto Comercial Mineiro em 1912, atual Fundação Educacional Machado Sobrinho. Também foi fundador do Instituto Brasileiro de Contabilidade (IBC) (BARBOSA; RODRIGUES, 2009).

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A atividade jornalística em Juiz de Fora foi intensa. Nela participaram

advogados, médicos, farmacêuticos, dentistas, sacerdotes, professores e políticos,

todos desenvolviam significativa atividade cultural enquanto participavam, quase

todos, do magistério secundário e superior da cidade, onde os grêmios literários

despertavam vocações, que viriam a manifestar-se mais tarde no terreno das letras.

Mas o jornalismo, em Minas Gerais, não rendia lucro aos escritores, não podendo,

portanto, ser a única fonte de sobrevivência para eles; contudo, era “atividade sine

qua non para que se obtivesse a consagração” como intelectuais (CHRISTO, 1994,

p. 46, grifos da autora). A Imprensa em Juiz de Fora esteve sempre presente nas

questões sociais, econômicas, políticas e literárias; era o veículo de comunicação

mais eficaz naquela época. Noticiava tudo o que ocorria na cidade, que passava por

um processo de grandes melhoramentos, apesar da falta de recursos de

infraestrutura. Segundo Oliveira (1966), entre os anos de 1870 e 1900, circularam na

cidade mais de cem jornais. Os intelectuais da época eram os proprietários dos

jornais, que costumavam também exercer o jornalismo; além dessa atividade,

atuavam na educação, como professores ou inspetores técnicos de ensino do

Estado de Minas Gerais. O jornal em que Gilberto de Alencar trabalhava – O Pharol

– era o de maior destaque e tinha grande compromisso com a vida social e cultural

da cidade: “E o repórter sabia das coisas, pois o Farol tinha a obrigação, por força

contratual, de publicar todo o expediente de cabo-a-rabo” (LESSA, 1985, p. 158).

Em Juiz de Fora, no final de 1896, foi instalada “a Confraria Literária,

sociedade de homens de Letras. No dizer de João Dornas Filho, a Confraria foi o

gérmen da Academia Mineira de Letras (AML). Tanto vale dizer que a Academia

será a continuação dos planos da antiga sociedade”14. O objetivo de seus membros

era fundar um gabinete de leitura popular, além de organizar palestras e publicar um

Anuário; contudo, esse movimento não teve êxito.

Em 1906, segundo Christo (1994), os intelectuais de Minas se organizaram

novamente para a formação de um grupo, mas também não houve bom resultado.

No dia 25 de dezembro de 1909, houve a reunião de fundação da Academia Mineira

de Letras, organizada, inicialmente, por 12 pessoas residentes em Juiz de Fora.

Essa reunião se deu na Câmara Municipal, local em que foi feita a leitura dos

Estatutos e do Regimento para depois serem aprovados. Também foi efetuada a

14 Datiloscrito da Academia Mineira de Letras como preparação para o documento da instituição: Efemérides de Dezembro – segunda quinzena (mimeografado).

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eleição que completaria o quadro de 30 membros permanentes, sendo que, mais

tarde, esse número foi aumentado para 40. Durante a reunião, foram indicados o

presidente, os secretários e o tesoureiro, bem como os membros das comissões de

contas. Esses intelectuais exerciam várias atividades: professor, escritor, funcionário

público, jornalista, entre outros. Assim, em 13 de maio de 1910, foi inaugurada, no

Teatro de Juiz de Fora, a Academia Mineira de Letras. Estiveram presentes no

evento autoridades de Juiz de Fora, bem como representantes do governo de Minas

Gerais e da Imprensa do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte e da cidade. O grupo

fundador da AML ficou conhecido como “Grupo dos Doze”:

Albino Esteves, Amanajós de Araújo, Belmiro Braga, Dilermando Cruz, Eduardo de Menezes, Francisco Brant Horta, Francisco Lins, Heitor Guimarães, José Rangel, Lindolfo Gomes, Luis de Oliveira, Machado Sobrinho (CHRISTO, 1994, p. 19-20).

Os membros da AML eram considerados os intelectuais da cidade naquela

época; os que se enveredavam para o magistério, na maioria das vezes,

trabalhavam no Serviço Público ou ministravam aulas nos colégios particulares

Granbery e Academia de Comércio. Como membro da AML, Gilberto de Alencar

ocupou a Cadeira nº. 21 da instituição, tendo sido eleito membro perpétuo da

associação com 30 votos, no dia 6 de maio de 1911. O acadêmico tomou posse no

dia 3 de junho de 1911, em reunião dos membros da Academia Mineira de Letras,

realizada no Fórum de Juiz de Fora. Nesse dia, proferiram discurso o escritor

Belmiro Braga15 e o empossado.

A Academia Mineira de Letras (FIG. 2) foi transferida para Belo Horizonte em

25 de dezembro de 1914 e instalada em 24 de janeiro de 1915. Depois de passar

por vários lugares, atualmente sua sede é a Casa de Alphonsus de Guimaraens,

situada na rua da Bahia, nº. 1466, em Belo Horizonte, MG.

15 Belmiro Belarmino de Barros Braga (1872-1937) nasceu em Vargem Grande, atual Belmiro Braga, município de Juiz de Fora. Estudou no Atheneu Mineiro nesta cidade. Publicou versos no Correio de Minas . O poeta cearense Antonio Salles o incentivou a publicar um livro – intitulado Montesinas – que foi impresso no Porto, em Portugal, em 1902. Escreveu, além de poesias, obras em prosa (Dias idos e vividos , publicada em 1936) e textos dramáticos (BARBOSA; RODRIGUES, 2009).

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Figura 3 – Academia Mineira de Letras – Belo Horizo nte.

Fonte: MINTZ, 2013.

Segundo a bibliotecária Marília Moura (2008): “O acervo da biblioteca da AML

guarda os originais das crônicas escritas por Carlos Drummond de Andrade, nos

últimos anos de sua vida, para os diários ‘Correio da Manhã’ e ‘JB’”. A AML

completou cem anos e, quando do recebimento do valor de R$ 230 mil para

restauração do prédio, Murilo Badaró afirmou: “A AML é um símbolo importantíssimo

em termos culturais. E esse palacete onde ela está sediada é referência da

Academia (...)”16.

Este subcapítulo buscou mostrar a trajetória da vida intelectual de Gilberto de

Alencar, que, como jornalista, professor, escritor, deu uma grande contribuição para

o engrandecimento da sociedade mineira, sobretudo a juiz-forana. Gilberto, apesar

das dificuldades, publicou seus livros e persistiu como escritor até o entardecer de

sua vida, tendo sido reconhecido por críticos literários de sua época e por outros

escritores como um romancista de valor para as letras nacionais.

16 Jornal O tempo , Belo Horizonte, p. 3, 11 maio de 2008.

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1.2 Tal dia é o batizado : o tempo, o espaço e a ação da escrita

A sociedade está sempre envolta em um processo de mudanças as quais

ocorrem em diferentes campos do conhecimento: tecnologia, alimentação, moda,

arquitetura dos espaços privados e públicos, lazer, entre outras. E, para que o

passado fique guardado na memória cultural de um povo, a história se encarrega de

registrar os fatos, além de estudar o processo de transformação. Mas, segundo

Boulos Júnior (2009, p. 12), “a História não estuda apenas as mudanças. Estuda

também as permanências, ou seja, aquilo que, mesmo com o passar dos anos, não

mudou, ou mudou pouco”. Como exemplo, há no Brasil construções do século XVIII

preservadas até hoje, justamente, para permanecer na memória cultural do povo

brasileiro parte de sua história: a arquitetura barroca nos casarões, igrejas e

monumentos, presentes nas cidades de Ouro Preto, Diamantina, Mariana,

Tiradentes, São João del-Rei... A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar (FIG. 4)

mostra a imponência da arquitetura barroca, existente no Brasil, no Ciclo do Ouro:

Figura 4 – Igreja Matriz de Nossa Senh ora do Pilar – Ouro Preto.

Fonte: SALGADO, 2013.

Além disso, as cidades históricas relembram o ciclo do ouro, com suas igrejas

e monumentos, uma época de enriquecimento de muitos brasileiros e também de

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um momento político: a Inconfidência Mineira – o primeiro passo para a

Independência do Brasil.

Enfim, ao mostrar o modo como as pessoas vivem em tempos antigos e nos

tempos atuais, a história estuda os seres humanos no tempo, buscando sempre

estabelecer a relação existente entre passado e presente. As fontes históricas são

todos “os vestígios ou pistas disponíveis para construir um conhecimento sobre a

História” (BOULOS JÚNIOR, p. 14), havendo grande variedade dessas fontes:

escritos, imagens, objetos, podendo ser visuais, orais e da cultura material.

Gilberto de Alencar, a partir de fontes históricas escritas e de diversas visitas

às cidades históricas Ouro Preto e São João del-Rei, onde colheu dados da tradição

oral e do imaginário dos habitantes desses locais, escreveu o romance Tal dia é o

batizado , a fim de deixar registrado, como se viu, um importante episódio da História

do Brasil, ou seja, a Inconfidência Mineira. A obra foi publicada em primeira edição,

em 1959, nas oficinas da Gazeta Comercial de Juiz de Fora , MG; em segunda

edição, em 1972, e terceira edição, em 1981, ambas pela editora Itatiaia. No tocante

à ordem de publicação, é o quinto livro e, depois dele, o autor escreveu mais duas

obras: Reconquista , em 1961, e O escriba Julião de Azambuja , publicado em

1962 (obra póstuma).

Em um nível imediato, o tema do romance é rememorar esse acontecimento

histórico e apresentar a trajetória da vida da personagem Joaquim José da Silva

Xavier, o membro mais entusiasmado da revolta premeditada na Capitania de Minas

Gerais, cujo objetivo era libertar o Brasil do jugo português. Parte do título da

narrativa – Tal dia é o batizado – mostra a senha combinada entre os conjurados

da sublevação, e a outra parte – o romance de Tiradentes, já antecipa que será

contada a história de sua vida, apresentando um acontecimento histórico que já faz

parte da memória cultural dos brasileiros.

A obra foi escrita quando Gilberto de Alencar já estava aposentado das

atividades do magistério e tinha mais tempo para se dedicar à arte literária; nessa

época, o escritor ainda prestava algum serviço para o Diário Mercantil de Juiz de

Fora. A obra teve uma repercussão nacional, tendo sido adotada para o último

Vestibular Unificado do Brasil, informação dada pela neta do escritor, Marta Maria de

Alencar e Sousa, em entrevista realizada na residência dela, em 27 de julho de

2011. Wilson Cid, jornalista contemporâneo de Gilberto de Alencar, em entrevista

por telefone, realizada em 17 de agosto de 2011, informou que a obra Tal dia é o

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batizado representa o amadurecimento do trabalho de Gilberto como romancista,

esclarecendo também que o livro ajudou a despertar o conhecimento de toda a obra

do autor mineiro.

A narrativa Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) tem ambiência no

século XVIII, na cidade de Vila Rica de Ouro Preto, momento em que houve grande

produção de ouro no Brasil, causando transformações, entre as quais se destacava

a migração de nordestinos e de portugueses para a região mineradora.

Descrevendo belas paisagens de Minas Gerais, o enredo do romance registra

uma representação encantadora da infância e juventude de Joaquim José, a partir

dos sete anos de idade, quando morava com a família na Fazenda do Pombal, na

Capitania de Minas Gerais. O narrador cria um envolvimento amoroso fictício entre

Joaquim José e Isabel Gracinda, uma bela jovem, filha de portugueses, mas o

romance não teve final feliz porque o pai da moça não aceitou o relacionamento da

filha com uma pessoa pobre. Após a desilusão amorosa, o protagonista passa

aproximadamente 12 anos mascateando pelo sertão e, como esse trabalho lhe dava

mais prejuízos que lucros, resolve dedicar-se ao ofício de “pôr e tirar dentes”, do

qual vem a alcunha de Tiradentes. Mais tarde, ingressa nas milícias como alferes do

Regimento dos Dragões, momento em que amadurece o projeto da emancipação

política do Brasil. O autor focaliza desde o envolvimento pessoal do protagonista

com a revolta premeditada na Capitania de Minas Gerais até seu enforcamento e

destino final de sua cabeça no Cemitério São Francisco, em Vila Rica, incursionando

antes pela prisão do herói, o que lhe valeu três anos de suplício nos intermináveis

interrogatórios nas cadeias sujas e pestilentas do Rio de Janeiro.

A ação do enredo da obra Tal dia é o batizado desenrola-se em fundo

geográfico bastante restrito: inicialmente, as cenas se passam na Fazenda do

Pombal, passando pela Vila de São João del-Rei, Vila Rica de Nossa Senhora de

Ouro Preto, localidades no interior de Minas Gerais, com passagens importantes

também no Rio de Janeiro. Nesses locais, trava-se a ação histórica e revolucionária

do romance – o pensamento de libertação vai surgindo a partir das constantes

injustiças que o protagonista percebe desde criança com os escravos e com as

pessoas humildes que habitavam a Capitania de Minas Gerais em suas andanças

pelos sertões e também na época em que era alferes, pois, nesse momento de sua

vida, em função do ofício militar, Tiradentes ficava pouco em Vila Rica, embora

gostasse muito da cidade. No romance, era sempre escolhido para as tarefas mais

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difíceis no sentido de combater os infratores pelo interior da capitania; entretanto,

não tinha o reconhecimento dos governantes.

No início do primeiro capítulo, o narrador apresenta as crianças Joaquim José

da Silva Xavier e seus irmãos Maria Vitória, Antônio e José, acompanhados de

Simplício (filho de escravos), todos eles no local em que morava a família:

“NAQUELA TARDE JÁ BASTANTE fria do mês de maio de 1753, os filhos de

Domingos da Silva Santos brincavam ruidosamente no vasto terreiro que se

estendia à frente do casarão assobradado da fazenda do Pombal (...)” (ALENCAR,

1981, p. 9).

Depois de mostrar as crianças brincando de chicotinho queimado, o narrador

apresenta algumas características psicológicas de Joaquim José:

– Está com sete anos e é o mais vivo de todos. Aquilo parece um azougue, não fica quieto um minuto. E tem umas esquisitices... (...) – E os repentes que às vezes lhe dão? Fica furioso, grita, avança para os outros, parece que vai brigar, mas logo volta às boas e começa a rir (ALENCAR, 1981, p. 12).

Segundo o romance, Joaquim José da Silva Xavier era filho de Domingos da

Silva dos Santos e de D. Antônia da Encarnação Xavier17. Eram seus irmãos:

Domingos, Maria Vitória, Antônio, José, Catarina e Antônia Rita de Jesus, sendo que

Domingos e Antônio eram seminaristas em Mariana. A família morava na Fazenda

do Pombal, próximo à vila de São José (atual Tiradentes); tinha alguns escravos,

tratava-os bem, e Simplício (personagem que acompanhou Joaquim José em todo o

romance), filho de escravos, era criado como irmão do protagonista. Outras

personagens, além dos familiares, vão sendo apresentadas ao longo da narrativa:

Francisco de Paula Freire de Andrade, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio

Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Joaquim Silvério dos Reis, Basílio de

Brito Malheiro, Inácio Correia Pamplona, Domingos de Abreu Vieira, Luís Furtado de 17 As notas apresentadas por Herculano Gomes Mathias, que trazem mais esclarecimentos sobre a família, na obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1977, p. 15, v. 9), confirmam os dados sobre o local de nascimento de Joaquim José, bem como os nomes de seus familiares, que estão de acordo com o que foi apresentado no romance: “Tiradentes (...) nasceu na Fazenda Pombal, próxima ao arraial de Santa Rita do Rio Abaixo, pertencente ao termo da Vila de São José, por sua vez compreendida na Comarca do Rio das Mortes com sede em São João del-Rei. Perdeu a Mãe, D. Antônia da Encarnação Xavier, com 9 anos (1755), e o Pai, Domingos da Silva Santos, aos 15 anos de idade (1761). Eram sete irmãos dos quais três mais velhos que Tiradentes: Domingos da Silva Xavier e Antônio da Silva Santos eram seminaristas em Mariana, e Maria Vitória já se casara com Domingos Gonçalves de Carvalho (1759). Tiradentes, portanto, era o mais velho dos que permaneciam na companhia paterna. Seus irmãos menores eram José da Silva Santos (n. 1747), Eufrásia [Catarina] (n. 1749) e Antônia Rita (n. 1751) (...)”.

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Mendonça, Manuel Rodrigues da Costa, Carlos de Toledo e Melo, José de Oliveira

Rolim, Antônio Francisco Lisboa, José Lobo Mesquita, Domingos Fernandes e José

Álvares Maciel.

Ao longo da leitura dessa obra, o autor vai pintando o retrato da sociedade

daquela época, do qual se apresenta um breve resumo. As famílias eram mais

numerosas e se reuniam para a ceia; a alimentação era mais saudável, por exemplo,

na casa do Sr. Domingos (pai de Tiradentes), eram servidos pratos de leite com

angu, feitos no fogão a lenha. As crianças brincavam ao ar livre de pique-esconde,

chicotinho queimado, entre outras brincadeiras infantis. As moças se casavam muito

jovens, não estudavam, eram preparadas para cuidar do lar e para a maternidade.

Também era costume dos homens, apesar de solteiros, terem filhos e netos. Os

meios de transporte eram muito precários. As viagens eram feitas a cavalo e

gastavam-se 10 dias para ir ao Rio de Janeiro, a capital do Brasil. As crianças que

moravam na roça tinham de ir a pé para a escola. Na época, o governo não se

preocupava com a educação do povo, então os pais que tinham melhor poder

aquisitivo enviavam seus filhos para estudar em Portugal. Havia crianças que

aprendiam com professores particulares; Joaquim José e seus irmãos Antônio e

José, por exemplo, aprenderam as primeiras lições com mestre Lucas, um professor

mulato de aproximadamente 40 anos. As aulas eram ministradas em uma sala

precária em São João del-Rei, e o método pedagógico em voga era a palmatória, a

vara de marmelo, entre outros instrumentos de castigo. Todos os dias, as crianças

faziam o trajeto da Fazenda do Pombal (situada à margem direita do Rio das

Mortes) até São João del-Rei a pé. Eles saíam de casa ainda de madrugada para

chegar à escola às 8 horas. Almoçavam e voltavam para a escola à tarde e,

somente à noitinha, retornavam à Fazenda do Pombal.

A história é contada por um narrador heterodiegético e onisciente, que

antecipa alguns episódios como preâmbulo do que vai ocorrer, mostrando que

possui um conhecimento global da vida do protagonista. O romance é atravessado

por várias passagens em que são evocados os problemas políticos e sociais da

Capitania de Minas Gerais.

No romance Tal dia é o batizado , a questão temporal é bem demarcada. O

narrador tem o cuidado de citar as datas dos acontecimentos históricos com

bastante precisão, obedecendo à cronologia dos fatos. Sobre a questão do

cronotopo de uma obra literária, Bakhtin (2010, p. 358-359) assim se expressa:

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A obra e o mundo nela representado penetram no mundo real, enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado, tanto no processo da sua criação como no processo subsequente da vida, numa constante renovação da obra e numa percepção criativa dos ouvintes-leitores. Esse processo de troca é sem dúvida cronotópico por si só; ele se realiza principalmente num mundo social que se desenvolve historicamente, mas também sem se separar do espaço histórico em mutação.

Percebe-se que, embora o autor da obra Tal dia é o batizado não tenha

vivenciado a época do fato histórico retratado, nem tenha convivido com Joaquim

José da Silva Xavier, ele representa o mundo espácio-temporal, com os seus

eventos, como se o visse e o observasse, como se fosse a sua testemunha

onipresente – o narrador está fora do mundo representado, pois está fora do tempo-

espaço em que o fato histórico se realizou. Bakhtin (2010, p. 360-361) assevera: “O

mundo representado, mesmo que seja realista e verídico, nunca pode ser

cronotopicamente identificado com o mundo real representante, onde se encontra o

autor-criador dessa imagem”.

O encontro é um dos mais antigos acontecimentos formadores do enredo de

um romance e, particularmente sobre o encontro na estrada, Bakhtin (2010, p. 223)

afirma:

No cronotopo da estrada, a unidade das definições espaço-temporais [sic] revela-se também com excepcional nitidez e clareza. É enorme o significado do cronotopo da estrada em literatura: rara é a obra que passa sem certas variantes do motivo da estrada, e muitas obras estão francamente construídas sobre o cronotopo da estrada, dos encontros e das aventuras que ocorrem pelo caminho.

No romance, Tiradentes e Simplício viajam sempre juntos pelo interior de

Minas Gerais, mantendo diálogos que traduzem o pensamento do alferes. Nessas

viagens, houve alguns encontros na estrada que foram fundamentais na ação do

romance, como, por exemplo, o encontro com Joaquim Silvério do Reis, quando

Tiradentes seguia viagem para o Rio de Janeiro, a fim de fazer os últimos contatos

para a sublevação e esperar na capital a chegada da senha: “tal dia é o batizado”.

Este foi um momento marcante na trama da narrativa, pois, como Joaquim Silvério já

estava decidido a delatar a revolta ao governador, o Visconde de Barbacena, o

denunciante aproveitou o encontro para pedir mais detalhes sobre o que havia sido

resolvido na última reunião, a fim de ter argumentos mais concretos diante do

governador.

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A obra Tal dia é o batizado é ulterior aos fatos narrados, ou seja, ela registra

um acontecimento histórico ocorrido muito tempo antes do momento em que foi

escrita, pois, como já se viu, o fato ocorreu no século XVIII, e a narrativa foi escrita

em meados do século XX. O narrador, ao longo da obra, busca mostrar,

internamente, a personagem principal; todavia, mesmo conhecendo a história de

Tiradentes, finge não saber o que vai se passar na história. Desse modo, contempla

o caráter gradual e imediato das vivências dessa personagem.

A narração ulterior, segundo Reis e Lopes (1988, p. 117), “é dada como

terminada e resolvida quanto às ações que a integram”. Assim, o narrador, ao se pôr

diante desse universo diegético acabado, inicia a narrativa em uma situação

privilegiada, uma vez que possui o conhecimento dos episódios que narra, por isso

ele tem autonomia para antecipar fatos futuros, fazendo predições, por exemplo.

Isso lhe possibilita manipular as atitudes das personagens, os incidentes da ação.

Pode-se afirmar que, no romance em estudo, essa antecipação ocorre muitas vezes,

sobretudo quanto ao fim trágico do herói: a morte de Tiradentes na forca. Alguns

episódios ilustrativos serão mostrados mais à frente, quando se fizer referência às

intrusões ou predições do narrador.

A ação do herói da obra Tal dia é o batizado é marcada pela ideologia de

Tiradentes: libertar o Brasil do jugo de Portugal e criar uma República, visto que se

trata de um país rico em ouro, pedras preciosas, além de outros minérios. Essa

personagem vive e age em seu próprio mundo ideológico, tem sua própria

concepção de mundo, personificada em sua ação e em sua palavra. O narrador dá

voz a Tiradentes, ora em discurso direto, ora em discurso indireto livre, para que a

própria personagem vá elencando, inúmeras vezes, as dificuldades pelas quais

passava a população da capitania naquela época, sendo que havia tanta riqueza no

local. Após entrar nas milícias, Joaquim José começou a colocar em prática o seu

projeto, fazendo contatos com pessoas da elite da Capitania de Minas Gerais e,

quando o projeto estava amadurecido, buscou adeptos para a revolução pelo interior

de Minas Gerais, sobretudo no caminho de suas viagens a serviço do Regimento

dos Dragões ou quando estava de licença para ir ao Rio de Janeiro.

Por causa de tanta opressão em que viviam os habitantes e da falta de

condições para ter uma vida com mais dignidade, tendo de pagar altos impostos ao

governo português sem nenhum retorno para as vilas, Tiradentes, alguns

intelectuais de Vila Rica e pessoas da elite vislumbraram a possibilidade de tornar a

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Capitania de Minas Gerais e o país livres de Portugal. Para isso, foram feitas várias

reuniões a fim de definir como seria a sublevação. Ocorreu, entretanto, que a traição

de um dos inconfidentes – Joaquim Silvério dos Reis – pôs fim ao movimento, que

culminou na morte de dois de seus membros: Cláudio Manuel da Costa, que

“suicidou” logo após os primeiros depoimentos, e do líder da revolução, Joaquim

José da Silva Xavier, condenado à morte por decisão da Rainha D. Maria I. Este foi

morto em uma forca no Largo da Lampadosa, no Rio de Janeiro, em meio a uma

grande comemoração dos governantes, que levaram às ruas as tropas militares em

seus trajes de gala e toda a população para festejar a vitória da Coroa portuguesa.

Seu corpo é esquartejado e sua cabeça pendurada em uma gaiola na praça de Vila

Rica para escarmento das pessoas dessa cidade e de outros lugares. No final do

romance, reaparecem a ex-noiva, Gracinda, e o escravo que acompanhava

Tiradentes, Simplício, para roubarem a cabeça de Tiradentes e enterrá-la no

cemitério da cidade. Nessa parte do romance, o narrador traz uma das lendas do

roubo da cabeça de Tiradentes, bem como as lendas do Embuçado e do Vira Sahia,

valorizando na obra o imaginário dos ouro-pretanos.

O tema da Inconfidência Mineira é um conteúdo obrigatório nas escolas

brasileiras, e, com frequência, os alunos guardam em sua memória a imagem de

Tiradentes de cabelos e barba longos, vestido com uma alva e um baraço no

pescoço. Mas, segundo Faria (1961, p. 21), Gilberto de Alencar, em Tal dia é o

batizado , ao recriar a personagem de Joaquim José da Silva Xavier, coloca “diante

dos nossos olhos um Tiradentes diferente daquele a que já nos habituáramos; um

alferes de corpo inteiro, com as virtudes, os defeitos e os pecados que são inerentes

à alma de todos nós, míseros mortais”. Isso poderá ser constatado ao longo da

análise do romance.

O livro é um espelho da história, da memória coletiva, da tradição oral, da

linguagem oral, pois muitos dos episódios representados podem ser encontrados

nos livros de História do Brasil e em relatos da tradição oral que faz parte do

imaginário dos habitantes de Ouro Preto e região. A obra baseia-se também na

história literária como subsídio para inserir a ideia de verdade real na narrativa; para

tanto, o narrador apresenta, entre outros, os poetas Tomás Antônio Gonzaga e

Cláudio Manuel da Costa, que recitam seus versos no romance.

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1.3 Tiradentes: o tempo e o espaço da história

No século XVIII, Portugal estava com sua economia em declínio e já estava

dependente da Inglaterra. Em 1703, assinou com este país o tratado de Methuen,

que “estabelecia a redução das tarifas para as manufaturas inglesas em troca de

vantagens para seus vinhos no mercado inglês” (CÁCERES, 1980, p. 41). Como as

manufaturas de Portugal foram à falência, o país luso teve de ativar as importações,

as quais eram pagas com o ouro proveniente do Brasil.

A criação de uma Casa de Fundição no Rio de Janeiro (Parati), em 1704, foi

uma das medidas da política de extração fiscal que causaram grande repúdio aos

colonos. Como não podia mais circular o ouro em pó, ao passar por essa casa, o

governo já retirava a parte que lhe cabia, o quinto, fortalecendo, desse modo, o

Tesouro Real (COTRIM, 2005). Segundo o autor, as duras medidas de fiscalização e

de cobrança de impostos fizeram eclodir tensões e revoltas nas regiões auríferas,

uma vez que as pessoas encontradas com ouro em pó ou com barras sem o selo

fornecido pela Casa de Fundição sofriam penas muito duras: podiam perder todos

os bens e, até mesmo, serem enviadas para as colônias portuguesas, na África, e

condenadas à prisão perpétua.

Mais tarde, a metrópole instalou uma Casa de Fundição em Vila Rica de Ouro

Preto, cujo objetivo era retirar ali mesmo o quinto. Essa medida causou uma grande

revolta liderada por Pascoal da Silva Guimarães e Filipe dos Santos a qual durou 20

dias. Mas este foi preso e condenado à morte na forca, teve o corpo esquartejado e

espalhado pelos quatro cantos da cidade para servir de exemplo, em 21 de julho de

1720 (PEDRO; LIMA, 2005). Vale lembrar que, no mesmo ano em que ocorreu essa

revolta, Minas Gerais foi transformada em capitania, ficando, portanto, separada de

São Paulo. Mas, apesar das medidas de fiscalização adotadas pela Coroa

portuguesa, o ouro continuava sendo contrabandeado entre as Minas e o porto do

Rio de Janeiro.

Com a morte de D. João V, em 1750, sobe ao trono D. José I, e os negócios

do Reino foram gerenciados pelo Marquês de Pombal, que primou por uma política

renovadora, embora as reformas tenham sido restritas e limitadas. Destaca-se como

principal atuação de Pombal a diminuição do poder da Igreja. Os jesuítas foram

expulsos de Portugal em 1759 e também a Inquisição foi abrandada (NADAI;

NEVES, 1993). Havia muito desrespeito no comércio, fraudes e corrupção no

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governo, mas, mesmo assim, o Marquês de Pombal vislumbrou possibilidade de

realizar uma ação política efetiva em Portugal. Como primeira medida para a

investida, buscou reforçar os métodos de fiscalização da produção de ouro do Brasil.

Na época, no Brasil colônia, foram criadas as Câmaras Municipais, cujo poder

era exercido pelos aristocratas locais das cidades, eleitos entre os donos de terras

mais importantes das cidades. Como o poder central na colônia era incipiente, essas

câmaras se aproveitavam da situação para tomar as seguintes decisões: “Fixavam

os preços das mercadorias, regulavam o valor das moedas e recusavam mesmo a

pagar certos tributos reais” (CÁCERES, 1980, p. 49). Mas, apesar dessa autonomia,

a última palavra era do rei.

Pombal tomou atitudes no sentido de diminuir o volume de importações da

Inglaterra. Além disso, criou novas Companhias de Comércio em sua colônia na

América: Grão-Pará e Maranhão (1755) e Pernambuco e Paraíba (1759). Essas

regulavam as quantidades de mercadorias a serem introduzidas na colônia e ainda

eram favoráveis aos comerciantes maiores e estabelecidos (CAMPOS; MIRANDA,

2000).

Nessa época, o vice-rei no Brasil, o Marquês de Lavradio, fez diversos

melhoramentos para desenvolver o comércio e aumentar sua produção. Também

houve mudanças na estrutura fiscal e militar: as forças armadas do Brasil foram

reorganizadas por peritos militares estrangeiros, tendo sido unificadas as tropas de

Portugal e do Brasil. Regimentos de infantaria e de cavalaria auxiliar foram

organizados, os quais eram comandados por pessoas de destaque e de maior

honestidade da capitania, pois na época não havia escola militar no país: em Minas,

foram organizados 13 regimentos. Os Dragões de Minas, segundo Pedro e Lima

(2005, p. 225) “eram a tropa de elite para burlar qualquer tentativa de burlar o fisco”.

Mas a corrupção e as fraudes continuavam sendo atos correntes na Capitania

de Minas Gerais. Também a Junta da Fazenda de Minas relaxou com sua função de

receber a receita da Coroa e já deixava os pagamentos contratados, os dízimos e as

entradas arrolarem anos a fio. O descalabro era geral, pois até os magistrados e o

governador participavam de negócios ilícitos na Colônia: havia subornos, corrupção

e recebimento de grandes somas em função dos contratos. Foram feitas denúncias

ao ministro, em Lisboa, mas a situação continuava a mesma, pois os governantes,

os funcionários dos órgãos públicos, os militares do regimento queriam lucrar

sempre mais.

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Em 1777, morre D. José I, subindo ao trono D. Maria I, conhecida, mais tarde,

como a Louca. Os inimigos do Marquês de Pombal acreditavam que a soberana

poderia transformar o ambiente político. Martinho de Melo e Castro assinou a

demissão de Pombal.

No Brasil, Luís de Vasconcelos e Sousa é o substituto de Lavradio. Em 1785,

o Ministro Martinho de Melo e Castro, já sabendo o que ocorria na colônia quanto à

comercialização de mercadorias, aos contrabandos e descaminhos, mandou novas

instruções aos governadores das capitanias: extinguir todas as fábricas do Brasil,

com exceção dos teares que fabricam tecidos grosseiros para vestir os escravos.

Segundo Pedro e Lima (2005, p. 271), uma das leis mais famosas nessa época foi o

Alvará de Proibição das manufaturas; o argumento da Rainha D. Maria I era de que

“faltava mão de obra na agricultura. Na verdade, seu objetivo era aumentar a

dependência do Brasil”. Essa atitude foi tomada porque Melo e Castro percebeu

defasagem no comércio luso-brasileiro e, nas instruções, deixou transparecer que os

brasileiros, se continuassem a fabricar os produtos de que necessitavam, poderiam

tornar-se independentes de Portugal. Essa medida foi percebida pelos brasileiros

como repressiva, causando-lhes revolta e indignação.

O descontentamento dos colonos da Capitania de Minas Gerais implicará

reações contra a metrópole. A vida colonial tornou-se mais tensa e complexa, e o

horizonte político das revoltas ultrapassou as fronteiras, pois, além do declínio da

produção do ouro, da pressão fiscal, dos tributos, houve interesse da elite de Minas

Gerais pelas notícias que envolviam a Independência dos Estados Unidos, bem

como a Constituição desse país, cujo lema era a liberdade e a igualdade dos direitos

dos cidadãos.

Importa ressaltar que, no século XVIII, vinham pessoas de todas as partes do

Brasil e de Portugal para a região mineradora, e o enriquecimento se dava com a

extração do ouro, com o comércio de gêneros alimentícios ou de consumo

transportados em tropas de mulas ou, ainda, com o tráfico de escravos vindos da

África:

Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa (ANTONIL, 1711 apud FREIRE; MOTTA, ROCHA, 2004, p. 91).

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Em 1786, em Minas Gerais, havia, aproximadamente, 394 mil pessoas; esse

contingente era grande para a época e correspondia a 15% da população do Brasil.

Havia conflitos constantes nessa corrida pelo ouro, e a Guerra dos Emboabas, em

1708, foi o mais relevante desses embates (COTRIM, 2005).

O governador Luís Furtado de Castro Mendonça, o Visconde de Barbacena –

nomeado em 1788 para o governo da Capitania de Minas Gerais – informou a Coroa

sobre o declínio do ouro; como não houve resposta, o governador entendeu que a

Coroa havia compreendido a situação de escassez; o tempo foi passando e a dívida

dos que aqui viviam, crescendo. A Rainha D. Maria I reagiu com ordens expressas

para que se lançasse a derrama, o que iria causar o empobrecimento da elite

mineira, pois esta já estava muito endividada e, não tendo o ouro, deveria entregar

seus bens: terras, imóveis, gado, dinheiro, escravos... (CAMPOS; MIRANDA, 2000).

Além da cobrança dos impostos atrasados, veio outra instrução do Reino: nenhuma

pessoa, na capitania, poderia ter consigo mais do que 10 mil cruzados.

A administração dos dois governadores, Luís da Cunha Meneses e do

Visconde de Barbacena, foi marcada por desmandos, corrupção, apadrinhamentos;

os governantes afastaram membros da elite local dos cargos públicos para colocar

pessoas de seu relacionamento. A insatisfação era tão grande a ponto de, no

governo de Luís da Cunha Meneses, circular na cidade um poema denominado

Cartas chilenas , que fazia uma crítica ferrenha ao governo da época; Cunha

Meneses, nesse poema, era chamado de Fanfarrão Minésio.

As instruções da Coroa para lançar a derrama representaram uma ameaça à

elite mineira, que devia grandes somas à Fazenda Real. Desse modo, em uma

tentativa de se libertar do domínio português, um importante grupo de pessoas

premeditou uma revolução na Capitania de Minas Gerais – a Inconfidência Mineira –

cujos propósitos, segundo Campos e Miranda (2000), eram:

a) matar o Visconde de Barbacena e tornar Minas Gerais uma república

independente de Portugal;

b) criar uma Universidade em Vila Rica do Ouro Preto;

c) desenvolver a indústria manufatureira de tecidos e metais;

d) perdoar as dívidas atrasadas àqueles que deviam à Fazenda Real;

e) transferir a capital de Vila Rica para São João del-Rei;

f) libertar os escravos da capitania nascidos no Brasil.

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Os inconfidentes aguardavam o melhor momento para dar início à revolta:

quando Barbacena lançasse a derrama. A ordem da Coroa, o Visconde de

Barbacena já a trazia consigo; no entanto, ele também aguardava um momento

propício para executá-la. Mas, vale lembrar que o próprio governante português

sabia que a população não tinha como pagar o pesado tributo, pois, naquele

momento, a extração do ouro estava em declínio, como já visto anteriormente.

Enquanto esperavam a decisão do governador para lançar a derrama, os

planos para a sublevação estavam sendo elaborados. Em dezembro de 1788, houve

uma reunião na casa do comandante do Regimento dos Dragões – Francisco de

Paula Freire de Andrada, a fim de discutirem sobre a revolução. Joaquim José da

Silva Xavier, o Tiradentes, era o mais empolgado de todos. Segundo Schmidt (2008,

p. 302), “Tiradentes não foi o líder da conjuração, mas teve papel importante porque

era ele quem fazia a propaganda do movimento entre as camadas populares”. Entre

outros, destacam-se como participantes da Inconfidência Mineira: Cláudio Manuel da

Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga, Cônego Luiz

Vieira da Silva, Vigário Carlos Correa de Toledo, Padre Manuel Rodrigues da Costa,

Padre José da Silva e Oliveira Rolim, Domingos de Abreu Oliveira.

Joaquim Silvério dos Reis também fazia parte do grupo dos inconfidentes e,

como contratador18, teria de pagar uma grande soma à Fazenda Real. Mas, para ter

suas dívidas perdoadas, denunciou a revolta ao Visconde de Barbacena em 15 de

março de 1789. Imediatamente, o governador comunicou o fato ao vice-rei Luís de

Vasconcelos e Sousa, no Rio de Janeiro. Este logo instituiu uma Devassa para

apurar o acontecimento.

Nesse momento, Tiradentes, que tomou para si a principal responsabilidade

da revolução e o maior risco, já se encontrava no Rio para fazer os contatos

necessários ao sucesso do levante. O próprio Silvério dos Reis foi enviado ao Rio a

fim de vigiar Tiradentes; para tanto, alugou uma casa na mesma rua em que o

alferes estava morando. Cumpre assinalar que Silvério dos Reis avisou Tiradentes

de que ele estava sendo seguido por dois granadeiros. Por algum tempo, o vice-rei

deixou Joaquim José livre para ver se era possível capturar mais pessoas por

intermédio do alferes, que depois se foragiu no sótão da casa de Domingos

18 Os contratadores eram “homens que compravam da coroa o direito de cobrar alguns impostos (o dízimo da Igreja e os tributos de importação) por determinado tempo” (CAMPOS; MIRANDA, 2000, p. 163).

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Fernandes, mas foi logo preso. Novas prisões e intermináveis interrogatórios

ocorreram nos anos subsequentes. Após o primeiro interrogatório, o poeta Cláudio

Manuel da Costa, em 4 de julho de 1789, foi encontrado morto em sua cela. As

autoridades informaram que ele cometera suicídio.

Joaquim José da Silva Xavier, no primeiro momento das Inquirições, negou

sua participação na revolta, conforme havia sido combinado entre os inconfidentes.

Mas, “em janeiro de 1790, Tiradentes resolveu assumir sozinho a iniciativa da

rebelião, apresentando-se como único líder do movimento” (CAMPOS; MIRANDA,

2000, p. 163). Vale lembrar que esse inconfidente não pertencia à elite mineira; era

revoltado, conforme o próprio depoimento da 4ª Inquirição, por não ter tido

promoções no Regimento de Cavalaria dos Dragões; sentia-se sempre preterido e

não passava de alferes – um cargo pouco acima de soldado. Também perdera o

lucrativo posto no Regimento dos Dragões: o comando da Serra da Mantiqueira.

Após aproximadamente três anos, os revoltosos foram julgados e a instrução

da Rainha D. Maria I chegou por meio de uma Carta Régia: deveria ser condenado à

morte somente o cabeça da conjuração. Segundo Maxwell (2005, p. 216), “(...) ele

[Tiradentes] se apresentara para o martírio ao proclamar sua responsabilidade

exclusiva pela inconfidência”. Nesse caso, coube a Joaquim José da Silva Xavier a

pena máxima: “foi condenado à morte por enforcamento e teve seu corpo

esquartejado e exposto para intimidar a população. Numa extraordinária festa

barroca, em 21 de abril de 1792, Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro”

(CAMPOS, MIRANDA, 2000, p. 163). A cabeça de Tiradentes ficou exposta dentro

de uma gaiola de ferro, na praça central de Vila Rica do Ouro Preto; contudo, após

alguns dias, apesar de toda a vigilância dos soldados, ela desapareceu

misteriosamente e jamais apareceu. Os outros integrantes do grupo, exceto Cláudio

Manuel da Costa, foram enviados para as colônias portuguesas da África.

Após a morte de Tiradentes, não se falava mais no assunto e, somente

muitos anos depois, por meio da Lei nº. 4.89719, de 9 de dezembro de 1965, o dia 21

de abril passou a ser feriado nacional, a fim de que a figura de Tiradentes ficasse

guardada para sempre na memória coletiva do povo brasileiro. Embora Joaquim

José tenha vivido há muitos anos, as pessoas, mesmo sem conhecê-lo, têm sua

imagem registrada na memória: “(...) muitas recordações que incorporamos ao

19 O Presidente da República [Humberto Castelo Branco] declara, no Art. 1º: “Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é declarado Patrono Cívico da Nação Brasileira” (MATHIAS, 1969, p. 35).

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nosso passado não são nossas: simplesmente nos foram relatadas por nossos

parentes e depois lembradas por nós” (BOSI, 1994, p. 407). Como há poucas

referências físicas de Tiradentes nos documentos oficiais, o governo brasileiro, por

meio do Decreto nº. 58.168, de 11 de abril de 1966, abriu um concurso para que

artistas, a partir de documentos, construíssem um modelo que reproduzisse a figura

de Tiradentes, tendo sido o vencedor o trabalho de Francisco Andrade (MATHIAS,

1969). Veja-se esse modelo na Figura 5:

Figura 5 – Estátua de Tiradentes.

Fonte: MATHIAS, 1969, p. 43.

Considerado um herói (e mártir) nacional, Joaquim José da Silva Xavier é

sempre lembrado, no Brasil, pela sua força de vontade de lutar pela liberdade do

país.

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2 O QUE É (PODE SER) HISTÓRICO NO TEXTO FICCIONAL?

Busca-se, neste capítulo, apresentar os fundamentos teóricos desta pesquisa,

a fim de mostrar que, na atualidade, está havendo uma aproximação entre história e

literatura e que, a partir da leitura de textos ficcionais, pode-se conhecer muito da

história e do imaginário de um povo.

2.1 Entre a ficção e o fictício

A literatura, segundo Iser (1983), passou, nos últimos tempos, a ter maior

importância no interior das Ciências Sociais. Os conceitos de estrutura, função e

comunicação, independentemente das teorias e dos métodos utilizados, precisam,

conforme o autor, ser examinados para facilitar a análise de uma obra literária.

A análise estrutural de um texto literário propicia a descrição da construção do

sujeito e da produção de sentido. O conceito de função facilita a relação do texto

com a realidade extratextual, permitindo um esclarecimento a respeito dos

problemas relevantes que o texto busca levantar. Por conseguinte, há possibilidade

de se “reconstruir um mundo passado e assim recuperar uma experiência histórica

da qual se pode dizer que se abre à compreensão, muito embora nunca seja uma

realidade concretamente vivida pelo presente” (ISER, 1983, p. 943). Mas, como o

uso desse conceito não envolve o receptor, é necessário observar também o

conceito de comunicação, a fim de que possam ser preenchidos os espaços vazios

deixados pelo conceito de função. Esse conceito envolve interação entre texto e

leitor, sendo que, na consciência do leitor, o texto se transforma em objeto

imaginário. Mas o que é o imaginário?

Buscaremos suporte no pensador francês Michel Maffesoli (2001, p. 74) para

trazer um esclarecimento sobre a questão: o imaginário opõe-se ao real, ao

verdadeiro, “seria uma ficção, algo sem consistência ou realidade”, o imaginário é

como uma atmosfera, aquilo que Walter Benjamin chama de aura. Trata-se de uma

construção mental, ambígua, que pode ser percebida, mas não quantificada.

O imaginário, segundo Iser (1983), é a dimensão última do texto, surgindo,

dessa forma, o discurso ficcional. Por ter caráter difuso, o imaginário assume

configurações diversas, uma exigência quando se trata de tornar o imaginário apto

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para o uso. Assim, “A ficção é a configuração apta para o uso do imaginário” (ISER,

1983), visto que ela não se deixa determinar como uma correspondência

contrafactual da realidade existente. A ficção movimenta o imaginário como uma

reserva de uso específico a uma situação. A configuração que o imaginário ganha

pela ficção, contudo, não reconduz à modalidade do real que, por meio do uso do

imaginário, deve ser justamente mostrado. A ficção se origina do ato que excede os

limites que existem entre o imaginário e o real. Na ficção, há um entrelaçamento do

real e do imaginário, de forma que possam ser estabelecidas as condições para que

a interpretação constante seja imprescindível. O imaginário se relaciona com a

realidade retomada pelo texto.

Um escritor tematiza o mundo por meio do texto literário. Mas, para criar o

texto, é feita uma seleção dos sistemas contextuais preexistentes, tanto de natureza

sociocultural quanto de natureza literária. Nesse processo de seleção, ocorre uma

transgressão de limites, uma vez que os elementos acolhidos pelo texto se

desprendem da estrutura semântica ou dos sistemas de que foram tomados,

ocorrendo o ato de fingir.

O imaginário realiza a relação entre ficção e realidade por meio dos atos de

fingir, havendo uma transgressão dos três elementos: ficção, realidade e imaginário.

Mas o que é realidade? Segundo Houaiss, Vilar e Franco (2009, p. 1616), realidade

é “o que realmente existe; fato real; verdade”. É preciso enfatizar que as pessoas

têm percepções diferentes a respeito do mundo a seu redor; portanto, fazem

interpretações diversas em razão da subjetividade, podendo-se afirmar que o que é

verdade para uns pode não ser para outros. Assim, podemos ter várias realidades

na formação de uma realidade social, cultural, nacional. O real, por sua vez, faz

referência ao mundo extratextual, sendo definido como o “que existe realmente,

verdadeiro” (HOUAISS; VILAR, FRANCO, 2009, p. 1616). Mas o real só existe a

partir do que já foi concebido na realidade: as ideias, os signos, os símbolos, sendo

que as ideias são representações mentais do que é concreto e abstrato no mundo.

As imagens são criadas quando pensamos, então são formadas em nossa mente e,

por conseguinte, são abstratas; já os símbolos são diferentes e contrários à imagem

pelo fato de serem criados a partir de convenções. Assim, pode-se inferir que

imagens e símbolos são representações.

Segundo Iser (1983), na ficção, sempre se dá a representação de algo, mas,

concomitantemente, por seu caráter de ficcionalidade, aquilo que é representado

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pela ficção tem somente a qualidade de um “como se”, que não é idêntico nem ao

real, nem ao imaginário. A expressão “como se” estabelece somente uma

comparação de um fato da realidade com uma criação do imaginário, não se

tratando, portanto, de “tomar-se como real algo que é irreal” (ISER, 1983, p. 974).

Por ser uma figuração do imaginário, conforme o autor, a ficção exige que se faça

uma interpretação, a qual tem como objetivo extinguir o abismo existente quando é

realizada sua tradução semântica. Se a ficção, pelo ato de pôr entre parênteses, não

traduz o que é por ela representado, então sua manifestação verbal é a condição

para que se perceba, por meio da interpretação, o significado latente, isto é, o

velado, dando-se, portanto, sua garantia ao como se. Realiza-se, nesse processo, a

transposição da dimensão do imaginário na dimensão semântica.

O autor afirma que, na atualidade, há um pensamento amplamente aceito de

que os textos literários são de natureza ficcional. Desse modo, esses textos são

diferentes dos que se relacionam com a realidade. Mas é discutível se existe, de

fato, a distinção entre textos ficcionais e não ficcionais. Nos textos ficcionais,

mesclam-se real e fictício, porque neles há também presença de realidade,

podendo-se renunciar à relação dicotômica ficção/realidade e se pensar em uma

relação tríplice, ou seja, real/fictício/imaginário.

No texto ficcional, há trechos que podem ser identificados na realidade.

Também “a realidade representada no texto não deve ser tomada como tal; ela é a

referência de algo que ela não é, mesmo se este algo se torna representável por ela”

(ISER, 1983, p. 973). O mundo presente no texto é um mundo representado

diferente do contexto que serviu de inspiração ao escritor. Esse mundo representado

no texto não corresponde a um mundo existente; portanto, não pode representá-lo

por sua representação. O mundo representado representa algo diferente de si

mesmo.

O texto ficcional, na literatura, manifesta-se por um número considerável dos

repertórios de signos os quais não podem ser confundidos com os signos

linguísticos do texto, uma vez que o sinal de ficção na produção ficcional é

reconhecido por meio de “convenções determinadas historicamente variadas, de que

o autor e o público compartilham e que se manifestam nos sinais correspondentes”

(ISER, 1983, p. 970).

O texto ficcional é mais aberto e permite uma não obediência às regras e

maior liberdade de expressão de quem o escreve, permite a subjetividade, o uso de

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linguagem poética. O discurso ficcional vai mais além da realidade, pois estimula a

fantasia, a ilusão e o imaginário, lembrando que nesse tipo de texto também há

muita realidade identificável tanto como realidade social quanto como realidade de

ordem sentimental e emocional. Mas as realidades presentes, de um lado, não são

ficções nem se transformam em ficções por entrarem na apresentação de discursos

ficcionais. Por outro lado, essas realidades, ao aparecerem no texto ficcional, neles

não se repetem por efeito de si mesmas. Se o texto ficcional se refere à realidade

sem se esgotar nesta referência, pode-se concluir que a repetição é um ato de

fingir20, pelo qual surgem finalidades que não fazem parte da realidade repetida. Se

o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele surge, portanto, um

imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Por conseguinte, o

ato de fingir passa a ter sua marca própria, ou seja, a de ocasionar a repetição no

texto da realidade vivencial, por esta repetição conferindo uma configuração ao

imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo, e o imaginário se

converte em efeito do que é assim referido.

Desse modo, a relação triádica do real com o fictício e o imaginário mostra-se

como uma característica própria do discurso ficcional. A partir do momento em que a

realidade repetida no fingir se transforma em signo, acontece, como consequência,

uma transgressão de limites, sendo desse modo que se realiza sua ligação com o

imaginário. O imaginário, todavia, “é por nós experimentado antes de modo difuso,

informe, fluido e sem um objeto de referência” (ISER, 1983, p. 958), podendo se

manifestar em situações inesperadas, estimulando a fantasia, uma característica

própria do imaginário. O fingir não é idêntico ao imaginário. No ato de fingir, o

imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria, passando a ter, dessa

forma, uma característica de realidade; porquanto, a determinação é uma definição

mínima do real. Na verdade, o imaginário não se converte em um real por efeito da

determinação alcançada pelo ato de fingir, apesar de poder adquirir aparência de

real na medida em que através desse ato pode entrar no mundo e nele atuar. Neste

sentido, o ato de fingir faz uma transgressão de limites diferente daquela que se

mostrava a respeito da realidade vivencial repetida no texto. Nessa realidade, a

determinação da realidade repetida é transgredida por força de seu emprego. O

20 Segundo Natalie Davis, citada por Peter Burke (2008, p. 117), “Por ‘ficcional’ não quero dizer elementos fingidos, mas, em vez disso, usando um outro e mais amplo sentido da raiz fingire, seus elementos formadores e moldadores: a tessitura de uma narrativa”.

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caráter difuso do imaginário é mudado para uma configuração determinada, a qual

se impõe no mundo dado como resultado de uma transgressão de limites. Dessa

forma, também no ato de fingir ocorre uma transgressão dos limites entre o

imaginário e o real, havendo, portanto, uma articulação que é proveniente da relação

entre o real, o fictício e o imaginário no texto literário.

A estrutura de um texto qualquer, ficcional ou não ficcional, de valor estético

ou não, é composta por diversos planos, dos quais o plano dos sinais tipográficos

impressos no papel pode ser considerado o único plano real (ROSENFELD, 1995).

Ao apresentar estudos sobre a obra literária ficcional, o autor enumera alguns

problemas:

a) problema ontológico: a verificação do caráter ficcional de uma obra não

depende de critérios de valor;

b) problema lógico: o termo “verdade”, ao ser utilizado em obras de arte ou de

ficção, possui significado diverso. Os discursos ficcionais, embora seus

enunciados costumem ostentar o hábito exterior de juízos, mostram, com

clareza, a intenção ficcional, mesmo quando essa intenção não aparece na

capa do livro, por meio de palavras como “romance”, “novela”, “conto”, entre

outras;

c) problema epistemológico (a personagem): a ficção é consagrada pela

personagem; também a camada imaginária se fortalece por meio da

personagem. No romance, há uma definição nítida da personagem em razão

da distensão temporal e da ação. O surgimento de um ser humano declara o

caráter fictício (ou não fictício) da narrativa, sendo que o aparecimento de

qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.

A personagem dá vida à narrativa, pois há os diálogos, os monólogos; ela

expressa seu pensamento por meio de palavras, atos, ações, fazendo o leitor

acreditar que há uma situação concreta na história narrada. A personagem incita o

imaginário do leitor, que cria fantasias e se deleita com os episódios narrados por

um narrador também fictício.

Em uma narrativa ficcional, há uma particularidade interessante quanto ao

narrador:

Na ficção narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um narrador fictício que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por vezes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se

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onisciente, etc. Nota-se também que o pretérito perde a sua função real (histórica) de pretérito, já que o leitor, junto com o narrador fictício, “presencia” os eventos (...) não é um sujeito real de orações, como o historiador ou o químico; desdobra-se imaginariamente e torna-se manipulador da função narrativa (dramática, lírica), como o pintor manipula o pincel e a cor; não narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas (personagens), eventos e estados (...) E isso é verdade mesmo no caso de um romance histórico (ROSENFELD, 1995, p. 26, grifo do autor).

Segundo o autor, quando o narrador onisciente focaliza as pessoas

(históricas), elas passam a ser personagens; então, deixam de ser objetos e tornam-

se sujeitos, seres que sabem expressar suas alegrias e tristezas. Somente um

narrador, um criador da personagem, conhece sua intimidade, sabe o que passa em

seu pensamento, diferentemente de um historiador, que pode se referir às suas

personagens somente como objetos, não permitindo, portanto, que elas falem de si

nos discursos historiográficos. Em uma narrativa de ficção, o narrador tem de ter a

capacidade de introduzir o leitor no mundo imaginário, dando-lhe a impressão da

“presença” real do objeto.

O pormenor, segundo Candido (1995), é importante na produção de uma

narrativa, uma vez que povoa o espaço literário e reforça a noção de realidade.

Igualmente de elevada importância é o monólogo interior das personagens,

sugerindo o fluxo da consciência. Também, a estrutura do romance requer uma

combinação dos traços para que possa sugerir algo na obra. Essa organização

funciona como uma cadeia:

Cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança, o sentimento da realidade, depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos (CANDIDO, 1995, p. 79-80).

O narrador de um romance será o mediador entre o texto narrado e o público

leitor. Além disso, conta a história “como se fosse, de verdade, a própria realidade”.

Mas, para haver melhor compreensão, é necessário que o narrador aguce a

imaginação do leitor, a fim de que o leitor transforme a narração em ação.

Desde o século XIX, com o advento do Romantismo, o gênero literário

“romance” passou a ser um dos preferidos do público leitor, justamente por instigar a

imaginação e a fantasia, sendo este um exemplo típico de ficção. Mas será que todo

o conteúdo de um romance é somente criação de seu autor, ou seja, tudo é ficção

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em uma narrativa-romanesca? Será que nesse tipo de texto ficcional, além de

ficção, há também realidade? E ainda: será que nos discursos considerados

científicos, filosóficos, religiosos, historiográficos não existe ficção? Lima (1986, p.

234), em seus estudos, também, em forma de questionamento, busca apresentar

esclarecimentos a respeito dos discursos historiográficos: “(...) se também a história

é produto de uma escolha do material, da maneira como se o interpreta, da teoria

que condiciona o olhar, não seria também ela uma forma de ficção?”. Com base em

estudos do próprio Lima e de outros autores, buscaremos, nesta pesquisa,

responder a esses questionamentos.

Guerreiro (2012) afirma que, entre textos vistos como literatura21 e como

ficção, “a expressão ‘como ficção’ indica algo próximo a ‘visto como fantasia’”, mas,

ao mesmo tempo, entende que esse sentido é pejorativo, uma vez que também o

texto considerado não ficcional pode ser, na realidade, um texto ficcional,

dependendo do objetivo do autor. Acrescenta que textos vistos como literatura

também podem não ser tão reais como se pensa, pois há muitos textos

considerados não ficcionais em que o autor utiliza-se de subjetividades para

escrevê-los, “dando asas à sua imaginação”. Duby (1986, p. 7) corrobora esse

pensamento de Guerreiro, afirmando que, progressivamente, foi descobrindo que “a

objectividade do conhecimento histórico é um mito, que toda história é escrita por

um homem e que quando esse homem é um bom historiador põe na sua escrita

muito de si próprio”.

Guerreiro (2012, p. 8) esclarece que o conceito de “‘ficção’ opõe-se ao de

‘teoria’”, acrescentando ainda que:

Pode-se considerar que um texto teórico (crítico, filosófico ou científico) tem como finalidade explicar ou compreender este ou aquele aspecto da realidade, ao passo que um texto ficcional tem como finalidade entreter, instruir ou mesmo estimular a imaginação dos seus leitores (...).

Assim, se essa afirmação for verdadeira, o autor de um texto teórico escreve

assumindo um compromisso com a realidade, enquanto que o autor de um texto de

ficção tem como característica o descompromisso. Contudo, segundo o autor, não

fica muito claro o significado da expressão “ter compromisso com a realidade”, fato

que poderia causar insatisfação tanto em filósofos quanto em romancistas, em razão

21 Textos teóricos.

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da complexidade que envolve o conceito de realidade. O autor apresenta duas teses

que vão de encontro às considerações apresentadas:

(a) Um ficcionista pode elaborar seu texto a partir de precisas e preciosas observações sobre pessoas e situações humanas. (b) Um texto de ficção pode expressar – e de fato sempre expressa – visões de mundo (tanto as das personagens como a do próprio autor) (GUERREIRO, 2012, p. 8).

Essas teses mostram, claramente, o valor de um texto ficcional, uma vez que,

por meio dele, é possível conhecer personagens históricas, bem como o

pensamento e a ideologia de uma época. Além disso, nesse tipo de texto, o autor e

as personagens, muitas vezes, expressam sua visão de mundo, lembrando que o

narrador onisciente faz intromissões ao longo da narrativa.

Sobre o assunto, Searle (1995) enfatiza que, para se estabelecer diferença

entre texto de ficção e texto de não ficção, é necessário levar em consideração os

enunciados de quem escreve, bem como o contexto da narrativa. Desse modo, não

se pode ter como critério somente o significado semântico das sentenças de um

texto, pensamento afinado com a seguinte citação de Iser (1983, p. 948): “a

dimensão última do texto não pode ser de natureza semântica”.

Vale assinalar que a elaboração de um texto de ficção é uma atividade tão

séria quanto a elaboração de um texto teórico. O texto de ficção pode expressar

visões de mundo e seu autor pode elaborar sua narrativa de ficção tendo como base

observações corretas e importantes a respeito de pessoas e situações humanas. Em

seus estudos sobre discurso ficcional, Searle (1995, p. 62) apresenta 4 (quatro)

regras básicas para serem seguidas pelo escritor, a fim de que ele consiga produzir

um texto considerado como não ficção:

1 - A Regra Essencial: aquele que faz uma asserção compromete-se com a veracidade da proposição expressa. 2 - As Regras preparatórias: o falante tem de estar em condição de fornecer evidências ou razões a favor da veracidade da proposição expressa. 3 - A proposição expressa não deve ser obviamente verdadeira, tanto para o falante como para o ouvinte, no contexto do proferimento. 4 - A Regra da sinceridade: o falante compromete-se com uma crença na veracidade da proposição expressa (SEARLE, 1995, p. 62).

O autor de textos não ficcionais consegue seguir essas regras, enquanto que

o autor de textos ficcionais, em razão de não poder assumir um compromisso total

com a verdade, não consegue atingir a Regra número 1 e, como o cumprimento das

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regras acontece em cadeia, o autor do texto ficcional fica impossibilitado de cumprir

as outras regras. Desse modo, o texto ficcional fica sempre em desvantagem com

relação ao texto teórico, mas, ainda assim, como já se viu, o texto ficcional pode

apresentar fatos reais por meio da representação, tal como ocorre nos romances

históricos.

Segundo Searle (1995, p. 65), o autor de um texto de ficção finge fazer uma

asserção; mas fingir, nesse contexto, está no sentido de “fazer crer, sem a intenção

de enganar”, o que corresponde ao “como se” apresentado na teoria de Iser (1983),

ou seja, o episódio representado no texto ficcional não é idêntico nem ao real, nem

ao imaginário. Enfim, no caso da ficção, o autor finge contar ao leitor diversos

episódios, contudo há intenção de “fazer crer”, ou seja, ele quer que os leitores

“façam de conta” que é verdade o que está sendo contado. Então, para viabilizar o

processo de comunicação proposto pelo autor de um romance, é necessário que o

leitor aceite seu convite tácito, ou seja, aceitar “fazer de conta” que os fatos

apresentados ocorreram daquela maneira.

No “fingimento compartilhado”, de acordo com Guerreiro (2012, p. 16), “tanto

emissores como receptores de enunciados ficcionais fingem que as coisas se

passam deste ou daquele modo, que existe de fato esta ou aquela pessoa”. Nesse

caso, há uma cumplicidade assumida. O autor, em seus estudos, apresenta uma

diferença entre referência autêntica e referência fingida:

Um historiador usa nomes próprios para fazer referência a indivíduos reais (Napoleão, Churchill, Reagan, etc.). Um romancista usa nomes próprios para fingir fazer referência a indivíduos reais. Ele não faz autênticas referências a indivíduos imaginários, como se costuma crer; ele finge fazer referências a indivíduos reais (GUERREIRO, 2012, p. 16, grifos do autor).

Essa diferenciação apresentada do uso dos nomes próprios pelo historiador e

pelo romancista é bastante esclarecedora, pois, no caso de um romance histórico, o

autor não faz, de verdade, referência a indivíduos reais; ele finge fazer referência,

mostrando que se trata somente de uma “representação de algo”, corroborando o

pensamento de Iser (1983) sobre o texto ficcional.

Conforme Searle (1995), é justamente essa referência fingida que cria a

personagem de ficção, e o fingimento compartilhado pelo leitor (a convenção tácita)

permite que este possa fazer verdadeiras referências a personagens de ficção. Em

sua teoria, o autor não sustenta que todas as referências presentes em um texto de

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ficção sejam referências fingidas, podendo, portanto, haver no texto de ficção

referências verdadeiras. Por exemplo, em Tal dia é o batizado (o romance de

Tiradentes), há referências autênticas a Joaquim José da Silva Xavier e à

Conjuração Mineira, as quais convivem com referências fingidas, como, por

exemplo, o amor romântico de Joaquim José e Isabel Gracinda.

A partir das considerações apresentadas, é cabível afirmar que um ficcionista

pode criar seu texto com observações verdadeiras e importantes a respeito de

pessoas e situações cotidianas, e um texto de ficção pode expressar visões de

mundo do autor e das personagens criadas. Enfim, em um texto ficcional, mesclam-

se fatos reais e fictícios, pois nele há também realidade.

2.2 A memória coletiva e o poder do imaginário

O interesse por estudos de memória, bem como pela relação “história”/

“memória”, na atualidade, tem alimentado uma discussão nos mais variados campos

profissionais e sociais, sobretudo nos meios acadêmicos. O avanço tecnológico tem

dado grande contribuição aos estudos da memória, pois permite arquivar os traços

conservados do passado e possibilita a valorização de culturas outrora segregadas.

A memória, em seu significado mais comum, corresponde a um processo

parcial e limitado de lembrar fatos passados, mas, ao longo dos anos, o conceito de

memória passou a contemplar tanto a ordenação de acontecimentos ocorridos

quanto a releitura do que está registrado em documentos. A memória dá-se de

maneira ativa e dinâmica, envolvendo vários aspectos, destacando-se a capacidade

de um indivíduo narrar fatos acontecidos, contribuindo, sobremaneira, para contar a

história de um indivíduo e do meio social a que pertence. Assim, a memória vai

deixando, gradativamente, de ser algo estático para ser entendida como um

processo ativo, dinâmico, complexo e interativo.

O sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um grande pesquisador da

memória, e seu trabalho se volta para as relações entre memória e história social.

Escreveu várias obras sobre o tema, e, para este estudo, a obra de referência será

A memória coletiva (2006). O autor percebe a memória como “quadros sociais da

memória”. Considera a importância da memória individual, uma vez que a memória

de um sujeito está ligada à memória do grupo, e essa memória está integrada à

memória coletiva, ou seja, à memória mais ampla da sociedade. Mas a memória

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individual não está isolada, uma vez que, comumente, toma como referência pontos

externos ao sujeito. A memória individual é construída a partir dos relatos e das

lembranças próprias do grupo, fazendo menção, por conseguinte, a um ponto de

vista sobre a memória coletiva, sendo que o sujeito é o referencial em todo esse

processo de construção da memória. A memória do indivíduo depende da rede de

relacionamentos com a sociedade em geral: família, escola, igreja, grupo de

trabalho, entre outros.

Conforme o autor, a lembrança é provocada pela situação presente vivida por

um indivíduo. Na maior parte do tempo, lembrar não é rever, mas refazer,

reconstruir, repensar com ideias de hoje a experiência do passado, uma vez que a

percepção de um indivíduo sofre mudança no decorrer do tempo e com ela seus

pensamentos e juízos de valor. O sociólogo ainda entrelaça a memória individual à

memória do grupo, e a do grupo à tradição – a memória coletiva de cada sociedade

–, esclarecendo que o instrumento socializador da memória é a linguagem.

A linguagem – oral ou escrita – constitui um fator relevante nesse processo da

memória, visto que possibilita o armazenamento daquilo que está guardado na

memória de uma pessoa. Segundo o autor, a memória tem como base o passado

“vivido”, que torna possível a composição de uma narrativa sobre o passado do

sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o passado assimilado pela história

escrita. Este sobrevive por meio da lembrança. Os seres humanos têm a capacidade

de transmitir, guardar e reforçar as lembranças. A memória depende do modo de

lembrar situações vividas, sendo que o modo de lembrar pode ser individual e social.

A ação de um grupo é de grande importância na retenção da memória, pois, além de

transmitir, guarda e reforça as lembranças. Ao lembrarmos fatos ocorridos em nossa

vida, estamos exercitando nossa memória e, quando há um pensamento unívoco em

torno de um tema, o grupo compactua com as mesmas ideias, surgindo a memória

coletiva.

Na memória coletiva, estão contidas as memórias individuais dos sujeitos;

contudo, não se confunde com elas, pois evolui de acordo com suas leis. Vale

assinalar que se, em algum momento, determinadas lembranças invadem a memória

coletiva, essas já não terão mais a mesma aparência, pois são substituídas em um

conjunto que não é mais uma consciência pessoal, surgindo, assim, o imaginário,

que, segundo Maffesoli (2001, p. 76), é algo que ultrapassa a esfera individual e

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impregna o coletivo ou parte dele: “é o estado de espírito de um grupo, de um país,

de um Estado-nação, de uma comunidade, etc.”, estabelecendo vínculo.

Sobre a memória, Pollak (1989, p. 9) assim se expressa:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra (...) em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc.

Essa referência ao passado, segundo o autor, tem como objetivo manter a

coesão dos grupos e das instituições que formam uma sociedade, a fim de elucidar

não só qual é seu lugar respectivo, sua complementaridade, como também quais

são as oposições irredutíveis. As funções da memória coletiva são manter a coesão

interna de um grupo e defender as fronteiras do que um grupo tem em comum,

incluindo também o território, quando se trata de Estados.

A memória coletiva registra o passado por meio de lembranças, de

rememorações, ajudando para a conservação da identidade dos povos; nela, estão

registradas as imagens, os gestos, os ritos, as festas, os costumes e as tradições de

uma comunidade. Na memória coletiva, o passado é permanentemente reconstruído

e vivificado – havendo, nesse caso, uma ressignificação do vivido. A memória

coletiva se robustece, sobretudo, na história oral, quadro em que seus conteúdos se

atualizam e se articulam. Segundo Leroi-Gourhan, citado por Le Goff (2003, p. 423),

a história da memória coletiva pode ser dividida em cinco períodos distintos: “o da

transmissão oral; o da transmissão escrita com tábuas ou índices; o das fichas

simples; o da mecanografia; o da seriação eletrônica”.

O estudo de memória coletiva, conforme Halbwachs (2006), constitui

importante meio para o entendimento de diferentes realidades, uma vez que propicia

melhor compreensão do mundo, levando o indivíduo a uma reflexão do presente a

partir do que ocorreu no passado, a fim de melhor compreender sua realidade.

Sobre o assunto, o historiador Pierre Nora, citado nos estudos de Decca (1992, p.

130), assevera:

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A memória é a vida, sempre guardada pelos grupos vivos e, em seu nome, ela está em evoluções permanentes, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todas utilizações e manipulações, suscetível de longas latências e de súbitas revitalizações.

Percebe-se, a partir das considerações do autor, que a memória coletiva está

sempre em movimento, o que não impede que alguns fatos fiquem latentes e depois

retornem um pouco mudados em relação ao modo original, ou seja, passam por

contínuas mudanças e revitalizações, porquanto a memória está sujeita a

esquecimentos e deformações sucessivas.

Pollak (1989, p. 201) discorre sobre a memória individual e a memória de uma

coletividade:

Em primeiro lugar (...) os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.

O autor acrescenta que os pontos de referência que estruturam a memória

coletiva presentes na análise de Halbwachs são os monumentos, o patrimônio

arquitetônico e seu estilo, as paisagens, as datas e as personagens históricas – as

quais sempre são relembradas pela sua importância – as tradições e os costumes,

algumas regras de interação, o folclore, a música, incluindo também as tradições

culinárias.

Le Goff (2003, p. 469) afirma que “a memória coletiva faz parte das grandes

questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de

desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando, todas,

pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção”. Das famílias às

Nações, elenca alguns espaços que considera lugares da memória: árvores

genealógicas, arquivos, bibliotecas, museus, cemitérios, entre outros. Enfim, em

qualquer espaço em que haja seres humanos, pode-se dizer que a memória

estabelece-se, gerando seus lugares. A partir das considerações apresentadas pelo

autor, nota-se a importância da memória coletiva em todas as sociedades, pois

funciona como reservatório da história, rico em documentos e arquivos.

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Nas sociedades, as pessoas guardam grande quantidade de informações em

sua memória de longo prazo e, temporariamente, em sua memória de curto prazo.

As pessoas mais velhas têm muita facilidade de lembrar fatos ocorridos há muitos

anos; por isso, podem ser consideradas fontes importantes de informação dos

episódios de sua época. Elas conseguem relembrar fatos históricos que ficaram

gravados em sua memória dos quais, muitas vezes, participaram, sendo que essa

acumulação de elementos na memória faz parte de suas vidas, pois, em família ou

em grupos, os fatos do cotidiano sempre são contados e recontados. Gogy, citado

por Le Goff (2003), assinala que, na maioria das culturas ágrafas, a acumulação de

dados na memória faz parte da vida cotidiana das pessoas. Nesse caso, os

guardiães da memória são os velhos, que retêm os episódios espirituais da

comunidade, a tradição. Segundo Pollak (1989), a história oral “contada e vivida”

mostra o quanto é importante a memória coletiva, que se opõe à “memória oficial”,

ou seja, a memória nacional.

Estudiosos têm-se dedicado a trabalhos, a partir de relatos orais e/ou

escritos, com grupos de pessoas que guardam em suas lembranças a história de

seu povo, de seus antepassados, o que muito auxilia na configuração subjetiva do

imaginário social:

O imaginário não é mais que esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, as representações subjetivas se explicam “pelas acomodações anteriores do sujeito” ao meio objetivo (DURAND, 2002, p. 41).

Com o intuito de exemplificar pesquisas que objetivam o resgate da memória

social de alguns grupos, citamos os trabalhos de Ecléa Bosi e Marina Maluf – uma

reprodução de testemunhos individuais sobre determinado período. Também nos

servirão de aporte os estudos de Angela Leite Xavier sobre memória coletiva.

Ecléa Bosi (1994), para escrever sua obra Memória e sociedade : lembrança

de velhos, entrevistou pessoas com idade superior a 70 anos, habitantes de São

Paulo, com o objetivo de registrar a voz dessas pessoas para obter informações

sobre a vida e o pensamento delas. O registro da autora abrange uma memória

pessoal, que é também uma memória social, familiar e grupal. Marilena de Souza

Chauí, na Apresentação dessa obra de Ecléa (1994, p. 20), refere os entrevistados

como “recordadores” e afirma: “(...) lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão,

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compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido,

não sua mera repetição”.

A pesquisa de Marina Maluf (1995), na obra intitulada Ruídos da memória ,

examina as memórias de duas mulheres, suas histórias, suas vidas – Floriza

Barbosa Ferraz (que escreveu um livro de memórias aos 73 anos) e Brazilia Oliveira

Franco de Lacerda (que deixou anotações sobre sua vida em cadernos e diários).

Essas mulheres pertenciam às camadas mais altas do grupo agrário paulista da

virada do século XIX. Trata-se de um trabalho em que a autora, a partir do material

pesquisado, resgata muito do que há na memória coletiva das pessoas, trazendo à

luz também o que faz parte do imaginário da comunidade retratada nos documentos.

Xavier (2009), em sua obra intitulada Tesouros, fantasmas e lendas de

Ouro Preto , registra muito do que está guardado na memória coletiva dos

moradores da antiga Vila Rica, buscando mostrar o que se passa no imaginário dos

ouro-pretanos. Essa cidade tem muitas histórias a contar, pois, em sua memória

coletiva, ficaram registrados episódios da época do ciclo do ouro – momento em que

recebeu, além de escravos, habitantes de todas as partes do país, forasteiros e

estrangeiros, que vinham em busca de minérios. Além dos trágicos episódios

registrados na História do Brasil sobre a Inconfidência Mineira e outros conflitos

ocorridos em razão da exploração do povo brasileiro pelos portugueses, juntam-se

as lendas, os relatos sobre fantasmas e assombrações, que fazem parte do

imaginário dos habitantes e que passam de geração a geração:

A memória de um povo se conserva na tradição oral, naquilo que é passado de geração a geração, que foi vivido pelos avós, bisavós, tataravós... Essa bagagem que trazemos dentro de nós constitui a nossa identidade, a base sobre a qual se assenta nossa força de povo ímpar (XAVIER, 2009, p. 15).

O trabalho realizado por Xavier busca resgatar a memória coletiva das

comunidades a partir da lembrança que as pessoas guardam em sua memória, ou

seja, de sua memória individual. Os diversos relatos apresentados na obra de Xavier

mostram como é grande o poder do imaginário das pessoas, como são capazes de

criar fantasias a partir dos fatos ocorridos em uma determinada época e como ficam

guardados na memória coletiva do grupo. Bosi (1994, p. 418) afirma que “Cada

geração tem, de sua cidade, a memória de acontecimentos que permanecem como

pontos de demarcação em sua história”. Desse modo, o conjunto de lembranças

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colhido por Xavier, em Ouro Preto, e registrado em seu livro apresenta episódios

ocorridos no passado e que não são encontrados nos manuais de História do Brasil,

uma vez que retratam aquilo que foi realmente vivido e que se encontra no

imaginário das pessoas.

Vale assinalar nesta pesquisa, também, que a memória literária é

esclarecedora dos mecanismos biológicos dos seres humanos, pois os fatos são

relembrados com a carga de subjetividade peculiar a cada um, e, mesmo após

muitos anos, uma pessoa é capaz de relembrar episódios ocorridos em sua vida,

ainda que sem total fidedignidade, visto que o tempo contribui para apagar um

pouco as lembranças. O médico e escritor Pedro Nava (1903-1984), segundo Vale

(2009), publicou seis livros de Memórias (aproximadamente 2.500 páginas), no

período de 1972 a 1983, depois de se aposentar do Serviço Público, registrando não

só a história de sua vida e de seus antepassados, como também da sociedade em

que viveu (Juiz de Fora, Monte Aprazível, Belo Horizonte, Rio de Janeiro),

apresentando informações valiosas sobre questões de saúde e doenças de sua

época, além de outros temas de importância, que elucidam fatos do presente a partir

do que ocorreu no passado. O texto memorialístico do escritor mineiro tem servido

de subsídio para pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento.

Em diversos tipos de sociedade, como já visto anteriormente, os costumes e

as tradições são passados de geração a geração pelos mais velhos; assim, um fato

histórico contado por um parente idoso fica impresso na memória dos mais jovens

“não como uma aparência física um tanto apagada, mas com o relevo e a cor de

uma personagem que está no centro de todo um quadro, que o resume e o

condensa” (HALBWACHS, 2006, p. 5). O autor afirma que “A história não é todo o

passado e também não é tudo o que resta do passado”, pois, paralelamente a uma

história escrita, existe uma história viva, que permanece ou se renova através do

tempo. A seguinte concepção de história apresentada pelo autor mostra que a

historiografia presente nos livros não é completa e que ainda precisaria haver

informações adicionais aos estudos apresentados pelos historiadores: “Por história,

devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o

que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas

em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto”

(HALBWACHS, 2006, p. 89). Duby (1986) esclarece que houve uma mudança no

pensamento dos historiadores quanto ao desprezo que davam às fontes narrativas e

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que, aos poucos, foram percebendo que as narrativas (a história oral), entre outros

materiais, constituem uma importante e inesgotável reserva de material sobre as

mentalidades e as ideologias.

Halbwachs (2006) afirma que as pessoas têm de se basear na memória

histórica, uma vez que é por meio dela que os fatos exteriores à vida delas vêm

assim mesmo deixar sua impressão em determinado dia e hora, sendo essa

impressão somente uma marca superficial, feita de fora, sem haver relação com a

memória pessoal dos sujeitos e com suas impressões de criança. A lembrança é

uma reconstrução do passado e, para que esse processo se realize, torna-se

necessário tomar dados emprestados do presente e preparados por outras

reconstruções feitas em épocas anteriores, lembrando que as imagens desses

tempos já saíram bastante alteradas.

Sobre essa questão, Bergson, citado nos estudos de Halbwachs (2006),

esclarece que o passado fica intacto na memória das pessoas; contudo, há

obstáculos, tal como o comportamento do cérebro, os quais não permitem que todas

as partes do passado sejam evocadas. O autor afirma, ainda, que as imagens dos

episódios passados ficam retidas na parte do inconsciente do espírito do ser

humano, tal como páginas impressas em um livro, com possibilidade de serem

abertas caso se deseje fazê-lo. Por isso, os fatos históricos que um dia foram

estudados exclusivamente por historiadores, hoje, começam a ser examinados por

outros olhares vindos dos vários lugares da memória, fato que requer a atenção dos

historiadores, os quais precisam analisar essa interferência da memória coletiva na

historiografia, para que não haja distorções.

A história e a memória entrelaçam-se na memória histórica para não deixar

desaparecer a memória viva de determinados processos e acontecimentos, quando

vão desaparecendo as gerações que os vivenciaram. Nesse caso, torna-se

necessário um movimento de registro dessas memórias. Os dicionários e as

enciclopédias podem ser citados como objetos materiais e textuais da memória. A

literatura também dá sua contribuição, de diferentes formas, para a preservação da

memória de um povo, porquanto os autores, por meio de suas obras ficcionais,

pintam o retrato da sociedade de uma determinada época. Particularmente, o

Romantismo buscou retratar momentos históricos importantes de épocas passadas,

rememorando episódios e personagens da história, a fim de não deixar cair no

esquecimento o que ficou gravado na memória coletiva dos povos.

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Halbwachs (2006), com muita propriedade, traça um paralelo entre história e

memória, apresentando pontos relevantes que podem esclarecer o quão importante

é prestar atenção nos episódios que ficam guardados na memória das pessoas.

Esclarece, ainda, que a memória coletiva não se confunde com a história e afirma:

“A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos

homens (...) a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento em

que se apaga ou se decompõe a memória social” (HALBWACHS, 2006, p. 100-101).

Há dois aspectos que o autor aponta para fazer a distinção ente memória coletiva e

história: a memória coletiva “é uma corrente de pensamento contínuo”, mas essa

continuidade é natural, retendo do passado o que ainda está vivo ou que seja capaz

de viver na consciência do grupo que mantém a memória coletiva; já a história é

comparada a uma tragédia dividida em muitos atos: a história divide a sequência dos

séculos em períodos, tendo-se a impressão de que tudo se renova de um período a

outro, não havendo ligação entre eles. O autor esclarece que não há linhas de

separação claramente traçadas no desenvolvimento contínuo da memória coletiva,

tal como ocorre na história, o que existem são somente limites irregulares e incertos:

a memória de uma sociedade vai até onde pode, ou seja, até onde atinge a memória

dos grupos de que ela é formada. Como os grupos que guardam a memória de uma

sociedade desaparecem ao longo dos anos, essa memória vai apagando grande

quantidade de episódios e de personalidades antigas.

O segundo aspecto apontado pelo sociólogo para mostrar a diferença entre

memória coletiva e história é que existem várias memórias coletivas, enquanto que

só existe uma história. Acrescenta que a história investiga os grupos de fora e

engloba um período muito longo, enquanto que a memória coletiva vê o grupo de

dentro e em um intervalo de tempo que não ultrapassa a duração média da vida

humana, e comumente este tempo é bem inferior. Enfim, para esse autor, a história

de uma nação pode ser compreendida como um resumo dos episódios mais

relevantes para um grupo de indivíduos, mas encontra-se muito afastada das

percepções do indivíduo.

Também Pierre Nora, citado por Decca (1992, p. 130), faz um paralelo entre

história e memória, corroborando o pensamento de Halbwachs:

A história é reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que já não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, uma ligação do vivido com o eterno presente; a história é uma representação do passado. Porque

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ela é afetiva e mágica, a memória se acomoda apenas nos detalhes que a conforma; ela se nutre de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a toda transferência, censura ou projeção. A história, porque operação intelectual e laicizante, exige a análise e o discurso crítico... A memória se enraiza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto. A história não se liga a não ser em continuidades temporais, nas evoluções e relações de coisas. A memória é um absoluto, a história não conhece mais do que o relativo.

O historiador enfatiza a capacidade envolvente da memória coletiva, cujos

episódios são relembrados com vivacidade e sem fronteiras espaciais e temporais,

podendo ser renovados, diferentemente da história, que apresenta os fatos

incompletos e focalizados em um recorte temporal fechado e contínuo.

Cumpre ressaltar, com Barros (2009), que há correntes historiográficas, por

exemplo, o Historicismo, que já aceitam a utilização de relatos orais memorialísticos,

mas, paralelamente, há desconfianças entre alguns historiadores. A partir do final do

século XX, houve um processo de expansão de fontes e objetos de estudo, o que

permitirá um resgate maior das relações entre história e narrativas produzidas pela

memória, podendo surgir um novo campo historiográfico: a história oral. Trata-se de

incluir na história a pessoa comum, os sujeitos que são excluídos dos documentos

oficiais, dos jornais, entre outros, por meio de entrevistas e depoimentos, para

multiplicar pontos de vista, confrontá-los, fazer oposição ao que já existe na história

e ensejar uma problematização mais abrangente dos fatos.

Aguiar22 (2011) afirma que esse retorno do estudo da memória nos meios

acadêmicos deve-se às mudanças ocorridas na atualidade, levando tanto o

historiador quanto a sociedade a repensar questões que estão surgindo e que estão

causando grande impacto no meio social: o processo de globalização; a questão da

identidade; a ampliação do conceito de cidadania não só no interior da sociedade,

como também nas relações de poder...

2.3 O romance histórico e seus limites

O romance é um gênero textual de grande complexidade dialética, mas que

se consolidou nas produções literárias dos mais diferentes escritores em países

22 AGUIAR, Melânia Silva de. Anotações do programa da disciplina Literatura Brasileira: “Narrativas do eu e consciência histórica – o narrado e o vivido”, ministrada no período de março a maio de 2011, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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distintos e acabou tornando-se a forma por excelência de se retratar a sociedade de

uma época. Goldmann (1990, p. 14) assevera que, “sendo o romance, durante toda

a primeira parte da sua história, uma biografia e uma crônica social, sempre foi

possível mostrar que a crônica social refletia, mais ou menos, a sociedade da

época”. Nesse gênero textual, o narrador transpõe para o plano literário a vida

cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado, havendo,

portanto, uma grande aproximação entre o romance e a relação do dia a dia dos

homens com os bens de consumo de modo geral e, como consequência, dos

homens com seus semelhantes.

Segundo Reis e Lopes (1988, p. 68, grifo dos autores), “(...) a narrativa não

cessa de se afirmar como modo de representação literária preferencialmente

orientado para a condição histórica do Homem, para o seu devir e para a realidade

em que ele se processa”. Por meio de uma narrativa de ficção, há possibilidade de

se conhecer a história das diferentes sociedades em que o homem vive, podendo-se

perceber que no mundo há culturas diversas, com hábitos e costumes muito

distintos. Umberto Eco (1983, p. 74-75) afirma que existem três formas diferentes de

narrar o passado: “a fábula, a estória heroica e o romance histórico”. Os romances

históricos “não só identificam no passado causas para o que veio depois, mas

também investigam o processo pelo qual, lentamente, essas causas começaram a

produzir seus efeitos” (ECO, 1983, p. 76).

O romance histórico, segundo Lukacs (1965), nasceu no começo do século

XIX, pouco depois da queda de Napoleão Bonaparte. Surgiu em um momento de

intensos conflitos sociais, destacando-se a Revolução Francesa, que causou

grandes transformações na sociedade. Esse acontecimento foi um ponto culminante

de um longo e progressivo crescimento histórico, sendo este um caminho aberto

para o desenvolvimento futuro da humanidade. Houve uma grande mudança de

perspectiva na interpretação do progresso humano em comparação ao século das

Luzes. Essa revolução levou grandes massas da população a terem o sentimento

nacional como propriedade. Em vários países, esse sentimento nacional se tornou

um lugar-comum e, como consequência, houve interesse pela compreensão da

história do país:

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(...) qualquer que seja a combinação de <<regeneração e reação>> nos movimentos nacionais particulares, é claro que esses movimentos, que foram verdadeiros movimentos de massa, deveriam fazer penetrar o sentido da história, a experiência vivida da história nas grandes massas. O apelo à independência nacional e ao caráter nacional está necessariamente ligado a uma ressurreição da história nacional, às lembranças do passado, à grandeza passada, aos momentos de honra nacional (...) (LUKACS, 1965, p. 24, tradução nossa)23.

Nesse contexto, surge o romance histórico como um gênero particular, em

que os escritores, em suas obras, implementam uma maneira nova, histórica, de ver

a sociedade; todavia, essa nova perspectiva nasce da própria vida, no presente real.

Para reagir à realidade daquele momento, tanto nos conhecimentos históricos

quanto na literatura, foram produzidos conteúdos e formas análogas da consciência

histórica. Essas novas tendências tiveram suas raízes nas mudanças indicadas de

toda a vida política e intelectual da classe burguesa. Essa tomada de consciência

dos homens sobre si mesmos constitui o fundamento econômico e ideológico para a

gênese do romance histórico do início do século XVIII. Alfredo Bosi (1997, p. 105)

concorda com o pensamento de Lukacs, afirmando que “A epopeia, expressão

heroica já em crise no século XVIII, é substituída pelo poema político e pelo romance

histórico, livre das peias de organização interna que marcavam a narrativa em

verso”. O autor esclarece que a ficção histórica teve seu florescimento entre os

românticos: o romance, a partir do Romantismo, foi “um excelente índice dos

interesses da sociedade culta e semiculta do Ocidente. A sua relevância no século

XIX se compararia, hoje, à do cinema e da televisão” (BOSI, 1997, p. 106). Nesse

momento, a literatura inseriu textos que retomam períodos temporais históricos de

uma determinada época, a fim de relembrar fatos passados que marcaram a história

do país. Assim, a partir dessa época, o romance passa a ser um gênero textual

dignificado, sendo o preferido do público leitor.

Lukacs (1965, p. 260-261, tradução nossa) apresenta as seguintes

considerações sobre a obra de Walter Scott, a fim de ilustrar o nascimento do

romance histórico:

23 (...) quelle que soit la combinaison de <<régénération et de réaction>> dans les mouvements nationaux particuliers, il est clair que ces mouvements, qui ont été de véritabbles mouvements de masse, devaient faire pénétrer les sens de l’histoire, l’expérience vécue de l’histoire dans de larges masses. L’appel à l’independence nationale et au caractère national est nécessairement lié à une réssurrection de l’histoire nationale, à des souvenirs du passé, à la grandeur passée, aux moments de honte nationale (...) (LUKACS, 1965, p. 24).

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Seus temas históricos resultaram organicamente, de algum modo por eles mesmos, do nascimento, da difusão e do aprofundamento do sentimento histórico. Os temas de Walter Scott exprimem somente este sentimento, o sentimento que uma compreensão real dos problemas da sociedade contemporânea pode nascer somente da compreensão da pré-história e da gênese dessa sociedade24.

O autor esclarece que isso ocorre porque o romance histórico, como

expressão artística que busca contar a história da vida, de uma compreensão

histórica crescente dos problemas da sociedade contemporânea, tem,

necessariamente, conduzido a uma forma superior do romance da atualidade tanto

em Balzac como em Tolstoi (LUKACS, 1965, p. 260-261).

Os romances históricos de Walter Scott, segundo Lukacs (1965), inovaram a

literatura épica, pois apresentam uma vasta pintura dos costumes e das

circunstâncias dos acontecimentos, o caráter dramático da ação, além da introdução

do diálogo no romance, tornando a obra viva, uma vez que as personagens podem

expressar seus sentimentos e pensamentos, dando uma impressão de realidade na

representação. Lukacs (1965, p. 43, tradução nossa) trata da questão nos seguintes

termos: “(...) precisamente no romance histórico a tentação é extraordinariamente

grande de reproduzir inteiramente a totalidade das coisas. Estamos perto de

acreditar que somente uma tal completude pode garantir a fidelidade histórica”25. O

autor esclarece que quanto mais um período histórico e as condições de existência

das pessoas que viveram na época focalizada são ampliados, mais a ação deve se

concentrar sobre o objetivo de apresentar, de um modo claro e plástico, diante dos

leitores, essas condições de existência, para que esses não vejam a psicologia

particular e a ética, que resultam como uma curiosidade histórica, mas para que

possam revivê-las como uma fase do desenvolvimento da humanidade que lhes

refere.

24 Ses thèmes historiques ont résulté organiquement, em quelque sorte par eux-mêmes, de la naissance, la diffusion et l’approfondissement du sentiment historique. Les thèmes de Walter Scott expriment seulement ce sentiment, le sentiment qu’une compréhension réelle des problèmes de la société contemporaine ne peu naître que de la compréhension de la préhistoire e de la genèse de cette societé24 (LUKACS, 1965, p. 260-261). 25 “(...) précisément dans le roman historique la tentation est extraordinairement grande de reproduire entièrement la totalité des choses. On est bien près de croire que seule uma telle completude peut garantir la fidélité historique” (LUKACS, 1965, p. 43).

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Lukacs (1965, p. 43-44, tradução nossa) afirma:

Não importa então no romance histórico repetir a narração dos grandes acontecimentos históricos, mas de ressuscitar poeticamente os seres humanos que figuraram nos acontecimentos. Importa nos fazer reviver os movimentos sociais e humanos que conduziram os homens a pensar, sentir e agir precisamente como eles fizeram na realidade histórica. E esta é uma lei da figuração literária, que parece de início paradoxal, mas em seguida completamente evidente, que para tornar sensível esses movimentos sociais e humanos de conduta, os acontecimentos exteriormente insignificantes, as circunstâncias menores – vistas do exterior – são mais apropriadas do que os grandes dramas da história mundial26.

Conforme o autor, para a produção de um romance histórico, o escritor

precisa ter qualidades específicas quanto ao dom de escrever, ou seja, ele necessita

ter um talento especial para narrar aquilo que é historicamente autêntico no que se

refere aos costumes e aos sentimentos dos homens. Nesse tipo de narrativa, a

história é bem mais que os costumes e o cenário, uma vez que determina realmente

a vida, o pensamento, o sentimento e a conduta de suas personagens; enfim, o

escritor deve ser um criador de indivíduos. O autor enumera as seguintes qualidades

do escritor para a produção de um bom romance histórico:

a) capacidade de inventar a história;

b) possuir poder de imaginação para representar as características das

diferentes classes sociais;

c) ter sentimento de autenticidade histórica na vida interior e exterior.

Em sua obra Le roman historique , Lukacs (1965, p. 273, tradução nossa)

levanta o seguinte questionamento no que tange à questão do gênero: “quais fatos

da vida são a base do romance histórico, que são especificamente diferentes

daqueles que constituem o gênero do romance em geral?27”. Ao analisar obras de

autores realistas importantes (romances sociais), o autor esclarece que, nos

romances históricos deles, não há somente um problema fundamental de estrutura e

de caracterização que falta nos outros romances desses escritores. O objetivo é o

26 “Il n’importe donc pas dans le roman historique de répéter le récit des grands événements historiques, mais de ressusciter poétiquement les êtres humains qui ont figuré dans ces événements. Il importe de nous faire revivre les móbiles sociaux e humains qui ont conduit les hommes à penser, sentir e agir précisément comme ils l’ont fait dans la réalité historique. Et c’est une loi de la figuration littéraire, qui paraît au premier abord paradoxale, mais ensuite tout à fait evidente, que pour rendre sensibles ces móbiles sociaux e humains de conduite, les événements exteriorment insignifiants, les circonstances mineures – vues de l’exterior – sont plus apropriés que les grands drames de l’histoire mondiale” (LUKACS, 1965, p. 43-44). 27 “quels faits de la vie sont à la base du roman historique, qui sont spécifiquement différents de ceux qui constituent le genre du roman en géneral?” (LUKACS, 1965, p. 273).

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mesmo nas obras, ou seja, representar a totalidade de um contexto da vida social do

presente ou do passado, por meio de uma narração. Mas o autor aponta uma

particularidade do romance histórico:

(...) as intenções falsas do escritor são menos facilmente corrigidas para a própria vida no romance histórico do que no romance que trata do presente. No romance histórico, as teorias falsas, os prejulgamentos literários, etc., do autor podem ser ou são muito menos facilmente corrigidas pela riqueza dos dados da experiência vivida que encontramos nos temas contemporâneos (LUKACS, 1965, p. 274, tradução nossa)28.

O romance histórico deve apresentar uma reprodução artística fiel de uma

época histórica concreta, sendo importante assinalar que a história não pode ser

somente o pano de fundo das ações apresentadas nesse tipo de romance. Também

as personagens têm de estar em acordo com a especificidade histórica da época

focalizada, ou seja, elas devem ser apresentadas como seres pertencentes a uma

época concretamente determinada. Mas vale lembrar que o tempo histórico, em sua

figuração, possui caráter abstrato, o que também traz consequência para a figuração

do lugar histórico. O talento inventivo do escritor, como já visto anteriormente, é de

fundamental importância na criação de um romance histórico. Ele deve abordar os

fatos históricos, caracterizando a sociedade da época e as situações vivenciadas

pelas personagens, sem deturpar a verdade histórica. Desse modo, segundo Lukacs

(1965, p. 310, tradução nossa), “Uma familiaridade íntima com a vida do povo é a

condição prévia de um talento inventivo”29. Em um romance histórico, pode haver

representações muito importantes e convincentes sobre o fato histórico abordado;

isso ocorre quando a relação do escritor quanto aos aspectos determinados da vida

popular do presente é mais profunda, mais complicada, mais direta, abstrata e

alegórica. A criação de personagens positivas é importante nesse tipo de narrativa.

Na concepção original dos romances históricos, há um desejo de se fazer

uma ligação com o povo, um reconhecimento da importância do povo do ponto de

vista político, da vida do povo do ponto de vista figurativo, mas não ainda a figuração

concreta da vida popular como base da história. Lukacs (1965, p. 310, tradução

28 “(...) les intentions fausses de l’écrivain sont moins facilement corrigées para la vie elle-même dans le roman historique, que dans le roman qui traite du présent. Dans le roman historique, les théories fausses, les préjugés littéraires, etc., de l’auteur peuvent être ou sont beaucoup moins facilement corrigés par la richesse des données d’experience vécue qu’on trouve dans les thèmes contemporains” (LUKACS, 1965, p. 274). 29 “Une familiarité intime avec la vie du peuple est la condition préalable d’un talent inventif réellement littéraire” (LUKACS, 1965, p. 310).

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nossa) afirma que: “(...) este caráter de transição, esta vitória ainda incompleta sobre

o caráter estrangeiro do povo da literatura burguesa moderna exerce uma profunda

influência sobre a originalidade artística das obras” 30.

Quanto ao conteúdo de uma narrativa histórica, Lukacs (1965, p. 335) aponta

uma diferença entre o historiador e o autor de um romance histórico, informação que

pode trazer um esclarecimento de valor para esta pesquisa. O historiador deve

examinar, de modo concreto, os distintos efeitos concretos da situação econômica

das classes sociais, bem como as mudanças dessa situação. Precisa também

descobrir as mais diferentes conexões, extremamente complicadas, muito pouco

diretas, para poder explicar, realmente, os problemas ideológicos de uma época

passada. Já o escritor de romances históricos pode somente descobrir essas

conexões e representá-las artisticamente, buscando ver nos problemas econômicos

os problemas concretos da existência dos seres humanos.

Lukacs (1965, p. 122, tradução nossa) apresenta o seguinte questionamento

de Manzoni31: “Mas então o que resta fazer ao poeta?”32. Ao que ele mesmo

responde: a poesia. Mas Manzoni continua a indagação, perguntando o que a

história oferece àquele que busca o conhecimento. Ao que ele responde: a história

mostra os conhecimentos que são conhecidos somente em seu exterior, sendo que

a parte psicológica, o que os homens pensaram na época passada, os sentimentos

que acompanharam as deliberações e os planos deles, seus sucessos, suas

desventuras, as palavras por meio das quais externaram suas paixões e vontades,

suas angústias, seu ódio, sua tristeza, que revelaram a individualidade deles, tudo

isso passa quase em silêncio na história, e, em contrapartida, toda essa parte

pessoal, emocional, íntima e psicológica das personagens é do domínio da poesia33.

Essas considerações mostram uma diferença marcante na abordagem de um

acontecimento histórico por um historiador e por um escritor de romance histórico,

ressaltando a capacidade de criação do profissional de literatura para entrar no

momento histórico e criar personagens capazes de representar a época focalizada

como se pertencessem concretamente a ela.

30 “(…) ce caractère de transition, cette victoire encore incomplète sur le caractère étranger au peuple de la littérature bourgeoise moderne exerce une profonde influence sur l’originalité artistique des oeuvres” (LUKACS, 1965, p. 310). 31 Alessandro Francesco Tommaso Manzoni (1785-1873) foi um escritor e poeta italiano, um dos mais importantes nomes da literatura de seu país. 32 “Mais que reste-t-il alors à faire au poète?” (LUKACS, 1965, p. 122). 33 Nesse caso, a palavra “poesia” é mais abrangente, pois faz referência aos textos ficcionais.

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A Escola dos Annales levou a uma nova concepção da história como política

do passado, questionando as estruturas de referência e os métodos utilizados para

escrever sobre os acontecimentos, pois as fontes de pesquisa estão sob a forma de

textos, e o historiador, ao reescrevê-los, utiliza-se de um discurso geralmente do

poder dominante, além de subjetividade. Está havendo também mudanças quanto à

escrita da história, e, como consequência, surge um tipo de narrativa que abordará

conhecimentos históricos dentro de uma nova perspectiva, distanciando-se, dessa

forma, de antigas teorias que tinham o conhecimento histórico como aquele de

verdades absolutas:

(...) cada vez mais historiadores estão começando a perceber que seu trabalho não reproduz “o que realmente aconteceu”, tanto quanto o representa de um ponto de vista particular. Para comunicar essa consciência aos leitores de história, as formas tradicionais de narrativa são inadequadas. Os narradores históricos necessitam encontrar um modo de se tornarem visíveis em sua narrativa, não de autoindulgência, mas advertindo o leitor de que eles não são oniscientes ou imparciais e que outras interpretações, além das suas, são possíveis (BURKE, 1992, p. 337).

Assim, a partir das considerações apresentadas, pode-se afirmar que o

historiador, além de não conseguir retratar o que realmente aconteceu no passado,

ainda coloca no texto sua ideologia e subjetividade, transmitindo ao leitor seu ponto

de vista sobre o que aconteceu em épocas pretéritas. Burke (1992, p. 16), em seus

estudos sobre história cultural, acrescenta que, nas obras A cultura do

Renascimento , do historiador Jacob Burckhardt, publicada pela primeira vez em

1860, e Outono da Idade Média , do também historiador Johan Huizinga (1919),

“(...) está implícita a ideia de que o historiador pinta o ‘retrato de uma época’”. Essa

afirmação é de capital importância para esta pesquisa porque também na arte

literária os escritores, sobretudo nos romances históricos, além da história narrada,

das ações das personagens, do enredo, traçam o retrato da sociedade do momento

histórico focalizado e se impregnam, a exemplo dos historiadores, de subjetividade.

Em razão de mudanças de pensamento sobre a história entre historiadores,

filósofos e outros profissionais que atuam nas Ciências Sociais, na Antropologia e

em outras áreas, está havendo, na atualidade, uma aproximação dos discursos da

história com os literários, e, como consequência, estão ocorrendo mudanças de

paradigma quanto à identificação/avaliação/abordagem dos romances históricos.

Buscaremos abordar o assunto, com base em estudiosos cujas reflexões aproximam

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os discursos da história e do romance histórico, apresentando, antes, um breve

resumo de como eram vistos os textos históricos séculos atrás.

Na Era Medieval, segundo Lima (1986), não havia distinção entre o texto

histórico e o ficcional, desde que não se fizesse oposição às verdades religiosas.

Mas, a partir da época em que Fernão Lopes começou a escrever as crônicas para a

nobreza da Espanha, passou a existir uma linha divisória entre história e ficção, por

causa da subjetividade presente no texto literário. Lima (1986, p. 23) esclarece que,

além dessa nítida divisão, “as formas discursivas diferenciadas se mostram

antagônicas e hierarquizadas”, valorizando-se muito o texto histórico em detrimento

do literário, em razão da subjetividade deste último e de seu caráter estético (uso de

linguagem poética, com alegorias, figuras de linguagem...). Essa rejeição ao

discurso literário vai na esteira de uma defesa incondicional do discurso do

historiador, na tentativa de considerar o texto histórico como uma verdade do

passado; por isso, o discurso historiográfico passou a ser mais valorizado.

Naquela época, o advento da imprensa e a descoberta da subjetividade,

segundo o autor, acirraram ainda mais a diferenciação entre os discursos da história

e da ficção, havendo elogios aos textos interessados em declarar a verdade e

descaso aos textos que eram lidos para distrair o leitor com representações, sem

instruir. Houve difusão, pela imprensa, de que a subjetividade é potencialmente

perigosa; então, estabeleceu-se um problema que envolve o cotidiano: “o povo

comum precisar ser persuadido de que certos livros não falam da ‘realidade’” (LIMA,

1986, p. 43). Desse modo, no século XVI, surge o escritor profissional, ou seja, o

autor de uma obra literária, em razão do público que crescia em busca de se deleitar

com os livros que estimulavam a fantasia, o sonho e, até mesmo, o desejo sexual,

acendendo o fogo do corpo. Mas, naquela época, a Igreja tinha grande poder sobre

o Estado; então, foi preciso eliminar os riscos contra os pecados do corpo, a fim de

manter a ordem instituída. Os livros considerados ameaçadores à ordem religiosa e

à ordem política eram combatidos porque podiam influenciar o indivíduo em sua

conduta moral, como se retrata em O nome da rosa , de Umberto Eco (1980).

Após a década de 1970, cada vez mais, a história tem sido fonte de

inspiração para obras de ficção e não ficção históricas, sendo que os textos

ficcionais, muitas vezes, pintam o retrato da sociedade de uma época. Ricoeur,

citado nos estudos de Reis e Lopes (1988, p. 69), assevera que há ligações muito

fortes entre a narrativa ficcional e a narrativa histórica:

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A história e a ficção referem-se ambas à ação humana, embora o façam na base de duas pretensões referenciais diferentes. Só a história pode articular a pretensão referencial de acordo com as regras da evidência comum a todo o corpo das ciências”, ao passo que, por sua vez, “as narrativas de ficção podem cultivar uma pretensão referencial de um outro tipo, de acordo com a referência desdobrada do discurso poético.

O ser humano está sempre em evidência tanto na historiografia como na

literatura; contudo, o discurso histórico é mais objetivo pelo fato de ser um texto da

área das ciências, embora sempre haja um pouco de subjetividade, pois o

historiador tende a colocar sua ideologia em seus textos. O discurso literário retrata

a realidade de um modo diferente e utiliza as estruturas simbólicas da ficção,

destacando-se pelo uso da subjetividade do narrador, pelo uso de imagens,

alegorias, figuras de linguagem, enfim, são utilizados todos os recursos que possam

instigar a imaginação do leitor.

O estudo da história, a partir do século XIX, tem-se diversificado muito e

novos problemas, novas abordagens e novos objetos passaram a ser alvo de

estudos dessa área de conhecimento, surgindo, assim, a Nova História, um

movimento que causou grandes mudanças na historiografia, inovando temas nos

registros históricos. Segundo Burke (1997), Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand

Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Laduire, entre outros,

foram os responsáveis por boa parte dessa Nova História. Esses estudiosos estão

associados à revista dos Annales, criada em 1929. A partir desse momento, a

história passou a realizar um diálogo com outras áreas, tais como a geografia, a

sociologia, a psicologia, a economia, a linguística, a literatura, a antropologia social...

Os historiadores, na última fase do movimento denominado Nova História, passaram

a dar ênfase à história das mentalidades e, no interior dos Annales, alguns deles

focalizaram, em suas obras, fenômenos culturais, buscando mostrar as ideologias e

o imaginário social do grupo. O descolonialismo e o feminismo impulsionaram o

movimento, acarretando grandes mudanças sociais.

Burke (1997) afirma que Le Goff e Georges Duby são os historiadores que

mais se destacam na escrita da história das mentalidades; Le Goff publicou a obra O

nascimento do purgatório , na qual registra uma história das mudanças das

representações da vida após a morte, buscando mostrar a história do “imaginário

medieval”. Essa denominação mostra a estreita relação da história com a literatura e

com a memória coletiva, pois, para saber o que se passa no imaginário de um grupo

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social, como já visto anteriormente, é necessário buscar dados também na tradição

oral e não somente nos documentos oficiais. Mas, para tanto, o autor utilizará sua

subjetividade para escrever a narrativa, uma característica do texto literário.

Burke (2011, p. 10) informa ainda que Le Goff publicou uma coleção de

ensaios – La nouvelle histoire – uma história ligada à École des Annales: “A nova

história é a história escrita como uma reação deliberada contra o ‘paradigma’

tradicional, aquele termo útil, embora impreciso, posto em circulação pelo historiador

de ciência americano Thomas Kuhn”.

Esse paradigma tradicional, conforme o autor, é o modelo utilizado pelo

historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886) – a visão do senso comum da

história. De acordo com esse paradigma, a história diz respeito, essencialmente, à

política, sendo alvo dos estudos somente os feitos dos grandes homens, dos

estadistas e generais; também outros assuntos que poderiam ser incluídos na

historiografia, por exemplo, a história da arte, ficavam excluídos ou marginalizados

por não serem tão importantes segundo a visão dos historiadores. Assim, dentro do

novo pensamento, as pessoas comuns e todos os assuntos que se referem aos

seres humanos são incluídos nos estudos históricos. Os historiadores têm dado

grande ênfase à história da vida cotidiana, sendo esta “encarada agora, por alguns

historiadores, como a única história verdadeira, o centro a que tudo o mais deve ser

relacionado (BURKE, 2011, p. 23).

Acrescenta-se, ainda, que, de acordo com o paradigma tradicional, a história

deveria ser baseada em documentos (registros oficiais vindos dos governos e

conservados em arquivos). Mas, é preciso assinalar que esses documentos, em

geral, expressam o ponto de vista oficial; então, para captar o pensamento das

pessoas comuns, torna-se necessário pesquisar outros tipos de fontes, por exemplo,

a história oral. Os historiadores, sobretudo os empiricistas ou positivistas, de acordo

com Burke (1997, p. 163), “tratavam os documentos históricos como transparentes,

dando pouca ou nenhuma atenção à sua retórica”. Não levavam em consideração as

ações humanas, mas isso tem mudado e os próprios historiadores demonstraram as

fraquezas dessa abordagem positivista na elaboração de seus textos. Os

historiadores, conforme o autor, foram criticados por Michel Foucault com as

seguintes palavras: “ideia empobrecida do real”, que não deixava lugar para o que é

imaginado. Assim, desde essa época, muitos importantes historiadores reagiram à

provocação de Foucault, permitindo um pouco de subjetividade e linguagem

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metafórica nos textos historiográficos. Como exemplo, foi citado Georges Duby com

a obra As três ordens , publicada em 1978. Trata-se de um estudo a respeito das

circunstâncias que cercam a construção da famosa imagem medieval composta do

Clero, da Nobreza e do “terceiro estado”. Tal como em um romance, Duby apresenta

essa imagem como uma representação, com o poder de mudar a realidade que

parece refletir (BURKE, 1997).

Outro ponto importante a ser destacado no paradigma tradicional é a questão

da objetividade do texto histórico. Segundo Ranke (apud BURKE, 2011, p. 15), os

fatos históricos devem ser apresentados aos leitores “como eles realmente

aconteceram”, uma afirmação que pode ser questionada: se os historiadores não

vivenciaram os episódios, então, será que seriam capazes de atender a esse

quesito, sendo que os documentos são somente vestígios do que ocorreu no

passado?

Assim, devido a inúmeros problemas tanto na forma de elaborar os textos

históricos quanto no método utilizado, as mudanças estão ocorrendo e, cada vez

mais, os historiadores estão se preocupando com toda a abrangência das atividades

humanas, razão pela qual passaram a:

(...) aprender a colaborar com antropólogos sociais, economistas, críticos literários, psicólogos, sociólogos, etc. Os historiadores de arte, literatura e ciência, que costumavam buscar seus interesses mais ou menos isolados do corpo principal de historiadores, estão agora mantendo com eles um contato mais regular (BURKE, 2011, p. 16).

Esse contato entre historiadores e profissionais de diversas áreas aproxima a

história de outras áreas de conhecimento, inclusive da literatura, um assunto tratado

por Hayden White em suas pesquisas, pois, diante dessa consciência da

impossibilidade de retratar os fatos históricos como “realmente” aconteceram, os

historiadores utilizam novas formas de narrar os fatos, como formas literárias e

recursos linguísticos, tal qual os romancistas de textos ficcionais.

No prefácio da obra intitulada Meta-história : a imaginação histórica do século

XIX, White (2008, p. 11) afirma que a escrita da história é vista como “uma estrutura

verbal na forma de um discurso narrativo em prosa”, sendo este o ponto

fundamental das pesquisas que apresenta em seu livro.

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Nessa obra, o autor busca, além de identificar e interpretar as principais

formas de consciência histórica na Europa de 1800, “estabelecer os elementos

inconfundivelmente poéticos presentes na historiografia e na filosofia da história em

qualquer época que tenham sido postos em prática” (WHITE, 2008, p. 13, grifo do

autor). Conforme o autor, há um pensamento recorrente de que a história é uma

mistura de ciência e arte; enfatiza também que recentes filósofos analíticos têm

buscado esclarecer até que ponto pode-se considerar a história como um ramo da

ciência, mas pouca atenção tem sido dada à história como arte. Desse modo, o

autor se debruça sobre a questão de perceber a história como arte e analisa,

profundamente, textos historiográficos não só de historiadores como também de

filósofos da história, procurando desbravar o caminho para a reconstrução da

história como modo de atividade intelectual que é, simultaneamente, poética,

científica e filosófica em suas preocupações.

White (2008), em sua obra, elabora uma terminologia específica para

caracterizar os textos historiográficos, mas, para nosso estudo, será dada uma

ênfase àqueles termos voltados para a “elaboração do enredo” do texto histórico,

pelo fato de o autor apontar as seguintes formas literárias utilizadas pelos

historiadores: romance, comédia, tragédia e sátira, as quais são recorrentes em

textos ficcionais. O autor aponta, nas obras dos historiadores Michelet, Ranke,

Tocqueville e Burckardt, bem como dos filósofos da história, Hegel, Marx, Nietzsche

e Croce, o recurso utilizado por cada um deles, e, em sua percepção, é possível

analisar obras de historiadores de acordo com essas quatro modalidades literárias e

com as seguintes figuras de linguagem: metáfora, sinédoque, metonímia e ironia,

mostrando que também os historiadores se utilizam de recursos literários e

linguísticos que evocam a imaginação e a subjetividade, havendo, por conseguinte,

uma aproximação entre discurso histórico e ficcional.

Letícia Malard (2006, p. 85), ao tratar das relações entre ficção e história,

aponta para a necessidade de uma “nova compreensão das imbricações entre

realidade e imaginação, entre factual e ficcional, quer no discurso histórico, quer no

literário”. Segundo a autora, tanto nos estudos literários quanto nos históricos, as

coisas parecem confusas, não só quanto ao aproveitamento de episódios históricos

no romance, como também com relação ao fato de se considerar um texto literário

como fonte fidedigna do historiador. Inicia sua reflexão a respeito do tema a partir do

pensamento de quatro historiadores:

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a) Jacques Le Goff: relatou apreciar o romance histórico, contudo não permite

que se identifiquem como história as liberdades presentes nesse tipo de

narrativa;

b) Roger Chartier: limitar a história à ficção significa esquecer o respeito que o

historiador deve ao passado, segundo as marcas que este deixou arquivado;

c) Peter Burke: relatou que o historiador deve equilibrar-se entre estar preso à

evidência e ter imaginação para interpretar fatos brutos;

d) Hayden White: aceita a mescla entre ficção e história, explicando que “o

passado é uma construção da linguagem”.

Malard (2006) percebe que há problemas quanto a esse assunto, mas

esclarece, com Ginzburg, que, de forma alguma, pode haver “invenção” no texto

histórico. A autora considera como categorias fundamentais: invenção e conjectura,

as quais não se confundem, esclarecendo que a invenção é uma categoria do texto

literário e a conjectura, do texto histórico. Enfatiza, ainda, que o romancista tem total

liberdade para criar seus textos e não tem nenhum compromisso com “as verdades

totalizadoras das fontes, ele não se vê necessariamente premido pela ação de

conjecturar. Ele é livre para transformar a História não só em Literatura, como

também em Ideologia” (MALARD, 2006, p. 87). A autora reforça que aos

romancistas é permitido o uso de “liberdades” na elaboração da narrativa, mas estas

são inadmissíveis nos historiadores.

Em razão das dificuldades que estão sendo encontradas pelos historiadores

no sentido de relatar os fatos históricos, entrelaçando os acontecimentos e as

estruturas e ainda apresentar pontos de vista múltiplos, Burke (2011) sugere aos

historiadores a utilização das seguintes técnicas cinematográficas (estas são na

verdade literárias) de maneira superficial: visões retrospectivas, cortes e alternâncias

entre cena e história, acrescentando, ainda, que: se os historiadores continuarem a

fazer uso dessas técnicas, esses desenvolvimentos podem ser vistos tanto como

mero “renascimento” da narrativa quanto como uma forma de regeneração.

Georges Duby (1986, p. 14), em entrevista realizada por Raymond Bellour, ao

ser questionado sobre a função da história, afirma: “A história é, antes de mais, um

divertimento: o historiador sempre escreveu por prazer e para dar prazer aos outros”.

Esse pensamento está em sintonia com a vontade do autor de uma obra literária que

escreve para atender a um público que procura esse tipo de leitura para se deleitar,

por meio do sonho e da fantasia encenados na narrativa. Desse modo, pode-se

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inferir que a história é contada por meio de textos e, quando o historiador os

escreve, ele também, tal como um escritor de narrativas ficcionais, coloca neles sua

visão ideológica e subjetividade. O autor admite que, mesmo que os historiadores da

atualidade procurem afinar seus instrumentos de trabalho, buscando compreender a

realidade do passado de forma cada vez mais científica, eles utilizam o material

pesquisado tal como seus antecessores, ou seja, “ao serviço das nossas paixões e

da ideologia que nos domina, e que o discurso histórico continua a ser uma forma de

criação, no qual a sensibilidade e a arte de escrever desempenham (...) um papel

necessário. A elaboração do material é sempre feita de uma forma subjectiva”

(DUBY, 1986, p. 8).

O historiador contratado para fazer o registro da história tende a repassar sua

visão política, ou a do contratante, e acaba também deixando suas marcas no texto,

traços de seu “eu”, podendo-se afirmar que, mesmo no texto histórico, há

subjetividade de quem o escreve: “Trabalhamos, muitas vezes, por encomenda. (...)

Não foi por gosto que redigi uma história da França, mas sim porque, certo dia, me

propuseram a fazê-lo, e o projecto não me desagradou” (DUBY, 1986, p. 17). Além

desse depoimento muito importante sobre a produção dos textos históricos,

acrescenta-se que esse autor chama atenção para as consequências que podem

advir para a produção dos textos historiográficos quanto ao local em que são feitas

as investigações históricas, não só as universitárias, como também outras

consideradas menos fortes, mas de valor na sociedade: as editoras, a rádio e a

televisão. Em todos esses locais, há uma tendência natural de transmitir sua

ideologia, fragilizando, desse modo, o teor de verdade do texto histórico e, nesse

caso, a historiografia desistoriza o seu próprio objeto.

Hutcheon (1991), a respeito das mudanças de pensamento quanto à

valorização dos textos literários na atualidade, afirma que a situação embasada nas

velhas tradições também está mudando porque “(...) a própria história pode vir a

perder seu status como uma forma autônoma e autolegitimadora de pensamento”

(WHITE apud HUTCHEON, 1991, p. 129). Essa perda de status pode vir a ocorrer

porque, nos últimos anos, mesmo entre os historiadores, está sendo discutido o

modo como a história é escrita e estão sendo revistos os métodos utilizados para

escrever sobre os acontecimentos do passado. Segundo Duby (1986, p. 7), “Fomos

progressivamente descobrindo que a objetividade do conhecimento histórico é um

mito, que toda história é escrita por um homem e que quando esse homem é um

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bom historiador põe na sua escrita muito de si próprio”. Além disso, conforme Le

Goff (2003, p. 40, grifos nossos), “muitos historiadores e teóricos da história

reivindicaram e continuam a reivindicar o direito à imaginação”, sendo esta uma

característica do texto literário, cujos autores têm a liberdade de criar os episódios

de suas narrativas, utilizando sua criatividade. O autor assinala que a historiografia

aparece como uma sequência de novas leituras do passado, sendo atravessada por

perdas e renascimentos, falhas de memória e revisões. Vale lembrar que as

atualizações podem ser prejudicadas pelo vocabulário do historiador, quando

introduz palavras que podem comprometer a qualidade do trabalho.

Em seus estudos, Hutcheon (1991) permite um questionamento sobre qual

pode ser o sentido de “real” quanto ao que ocorreu no passado e de que modo é

possível conhecê-lo. A autora afirma que o objetivo, ao se reunir o historiográfico e o

metaficcional, “é conscientizar o leitor sobre a distinção entre os acontecimentos do

passado que realmente ocorreu e os fatos por cujo intermédio presumimos conhecê-

lo” (HUTCHEON, 1991, p. 281, grifos da autora). Sobre o assunto, Duby (1986, p.

11, grifos nossos) afirma que os historiadores, aos escreverem os textos, transmitem

ao leitor uma visão deformada da sociedade retratada, pois deixam incidir sobre os

escritos sua ideologia:

(...) nesses processos e nessas escrituras de doação, o vivido é igualmente manipulado, modificado pelo mental, e de que, no final de contas, a imagem da sociedade que nos é dada por esses documentos é tão falseada, ou quase, como nas crônicas e narrativas que, à primeira vista, nos parecem muito próximas da ficção.

Desse modo, observa-se que tanto a história quanto a literatura constituem

áreas de conhecimento que precisam ser repensadas, pois cada uma, de seu modo,

reconta os acontecimentos passados: a ficção e a história são discursos, sendo que

ambos formam os sistemas de significação pelos quais é possível dar sentido ao

passado. Assim, o sentido e a forma da narrativa não se encontram nos

acontecimentos, mas nos sistemas que transformam os acontecimentos passados

em fatos históricos presentes. Duby (1986, p. 11) faz uma revelação muito

interessante para a presente pesquisa, ao afirmar que o historiador não deve

enganar a si mesmo: “O que ele enuncia, quando escreve a história, é o seu próprio

sonho”, mostrando que não há uma grande diferença entre história e romance, na

medida em que a ficção histórica está, forçosamente, ligada a algo que foi vivido no

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passado. Entre esses dois tipos de narrativa, o autor enfatiza que, no fundo, não é

muito diferente a forma de abordagem, aproximando, desse modo, o romance

histórico da historiografia, pois o historiador pesquisa fatos concretos para escrever

uma história, mas, como as informações estão em forma de textos, documentos,

arquivos, ele só possui vestígios do que aconteceu de verdade; então, ele buscará

reproduzir as mensagens daquele material, usando de sua ideologia e subjetividade,

alterando, parcialmente, os acontecimentos históricos. Importa ressaltar que também

o escritor lança mão dessa técnica para escrever o romance histórico, porquanto,

utiliza-se dos vestígios encontrados nos documentos para retratar o acontecimento

histórico em sua narrativa. Desse modo, pode-se afirmar que, na atualidade, aquela

separação entre a história e a ficção, tão difundida entre os historiadores, está se

diluindo cada vez mais, pois as novas teorias tendem a derrubar a hipótese muito

divulgada de que o discurso histórico traduz objetivamente o real.

Este subcapítulo será encerrado com as seguintes palavras de Le Goff (2003,

p. 37, grifos nossos): “(...) a conclusão mais geral – mesmo para além da concepção

de história do século XIX – é que a obra do historiador é uma forma de atividade

simultaneamente poética, científica e filosófica”, pensamento que mostra

aproximação do discurso da história com o romance histórico, embora este tenha

seus limites.

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3 A CORRESPONDÊNCIA DE GILBERTO DE ALENCAR E O PODE R DA “REDE

LETRADA”

Este capítulo apresenta a correspondência de Gilberto de Alencar, a fim de

evidenciar a importância da troca de missivas entre os escritores para os estudos

literários, buscando mostrar como ocorreu a organização da correspondência

passiva desse autor e de sua filha Cosette de Alencar, no arquivo pessoal do

escritor. Será apresentada breve amostragem da correspondência34 desses

escritores mineiros; em primeiro lugar, serão registrados recortes de algumas

missivas que contenham informações a respeito da obra Tal dia é o batizado (o

romance de Tiradentes) – objeto de pesquisa desta tese – e outros recortes que

possam elucidar fatos a respeito do fazer literário do autor mineiro, bem como de

suas obras; depois, serão apresentados outros recortes da correspondência geral do

autor e de sua filha Cosette de Alencar.

3.1 O gênero epistolar

O gênero epistolar está presente nos escritos da humanidade desde a

Antiguidade. Como exemplos, podem ser citados, no século III a. C., Demetrius, que

escreveu um livro sobre cartas, esclarecendo que essas devem ser simples,

sinceras e breves. A Ilíada , de Homero, no Canto VI, e a Ars poética , de Horácio,

também se identificam com esse gênero textual. No Velho e no Novo Testamento, a

epístola está presente, o que mostra sua capacidade de comunicação no sentido de

educar. São Paulo, São Pedro, São João e São Lucas escreveram epístolas com o

objetivo de enaltecer a fé cristã, fazer reflexões, dar conselhos, entre outros.

Escritores, tais como Voltaire, Diderot, Antero de Quental, Kafka, Mário de Andrade,

Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto de

Alencar, Cosette de Alencar, entre outros, utilizaram-se desse meio de comunicação

para expressar seus pensamentos e fazer diferentes leituras do momento histórico

em que estavam inseridos.

O gênero epistolar pode contribuir para o conhecimento da história de um

povo, porquanto, além da comunicação, quando escrita por escritores, possui

34 Na transcrição das cartas, optamos por manter a grafia original.

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conteúdo crítico e de crítica, episódios históricos e políticos, servindo para elucidar

fatos importantes sobre os escritores, suas obras e o ideário das diferentes escolas

literárias, além da possibilidade de retratar, com fidelidade, uma época. Esse gênero

constitui um meio de comunicação de grande importância para as sociedades em

geral. Sobre a carta, Moraes (2005, p. 19) afirma: “Essa escrita resulta [...] de uma

reflexão maior, do encontro mais intenso do sujeito com ele mesmo”. Nela, há “o

completo amadurecimento das nossas ideias, o confronto mais apurado com as

nossas verdades interiores, em um tempo mais dilatado” (MORAES, 2005, p. 19).

Segundo Santos (1998, p. 15), a leitura de cartas “ilumina fatos e

acontecimentos, desrecalca impressões, deixa entrever sentimentos, revela

experiências e idiossincrasias com a acuidade de um aparelho de raio X”. O sujeito

das cartas possui um espírito preocupado em captar sentimentos e determinado em

abarcar, por meio da enunciação, a realidade do momento em que vive. Para

exemplificar, citam-se as Cartas de Madame Sévigné que, após a visão

historiográfica, “passam a ser examinadas como a expressão de uma individualidade

e como texto literário” (AMARAL, 2000, p. 21). Mas essa mudança de perspectiva

sobre sua produção divide a opinião: alguns veem a marquesa como escritora

acidental; já outros consideram as Cartas como literatura, tal como Jean Cordelier,

que sugere a leitura dos textos como um romance. Enfim, pode-se afirmar que a

carta é um documento capaz de enfocar a dinâmica de um tempo, com base na

experiência e na memória de quem escreve.

A carta constitui um gênero literário com características bastante específicas,

possuindo regras e exigências que a distinguem de outros gêneros, por exemplo,

local e data, invocação, texto, cumprimento final e assinatura. Historicamente, como

já visto, é reconhecida como um meio de comunicação. Houve época em que era a

forma mais conhecida, e talvez a única, do contato entre os diferentes povos. Para

exemplificar, será focalizada a Companhia de Jesus, cujos membros, desde sua

fundação, em 1534, comunicavam-se somente por meio de cartas. Estas

informavam sobre a evangelização dos jesuítas pelo mundo e eram utilizadas para

manter a unidade e a comunicação entre o centro da Companhia (Roma) e seus

membros, dispersos em diferentes lugares: Japão, Congo, Índia e Brasil. Quando as

missivas chegavam a Roma, eram copiadas e distribuídas pelas missões, para que

todos soubessem o trabalho que estava sendo realizado. Santo Inácio redigiu 6.815

cartas de 1524 a 1556. As cartas eram organizadas em livros e, por terem a

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intenção de dar as notícias atuais, aproximavam-se da prática jornalística (HUE,

2006).

A respeito das cartas, Andrade (apud SANTOS, 1998, p. 11) afirma: “No

Brasil, a glória começa com a violação do sigilo epistolar. Lemos amanhã nos jornais

a carta que mandamos hoje ao moço escritor”. Esse depoimento demonstra o

grande valor das críticas dos escritores mais experientes que vinham por meio das

cartas. Para aqueles que estavam começando seus trabalhos na arte literária, era

tão significativo o atendimento a seus apelos, que a carta-resposta costumava, até

mesmo, ser publicada no jornal.

Sendo transportada em envelope lacrado, a carta preserva o aspecto pessoal

e confidencial da mensagem. Esse gênero textual permite ao missivista fugir da

solidão e dedicar-se a um tipo de relacionamento pessoal, extravasando o que sente

em seu interior. Enfim, a carta apresenta um repertório variado, em que o sujeito da

escrita desvenda sua personalidade.

As cartas podem servir como suporte teórico para a compreensão daquilo que

é enigmático na obra literária de um autor. Santos (1998, p. 26) afirma que as cartas

“são o alter ego do texto literário (...). Além disso, por meio da correspondência, é

possível rastrear posicionamentos e surpreender momentos em que o remetente se

desnuda para o outro, projetando o que estava escondido ou o que lhe [sic]

preocupa no momento”. O escritor, ao dedicar-se à arte de escrever cartas, foge de

sua solidão. Dedica-se a um relacionamento pessoal com amigos, outros artistas,

jovens escritores, amores... Como está sozinho e sabe que se trata de um

documento confidencial, consegue falar tudo o que se passa dentro dele e desvenda

sua verdadeira personalidade, ficando bem à vontade para expor seus

pensamentos. Mário de Andrade é um escritor que só conseguiu mostrar seu eu por

meio de cartas, porquanto, pessoalmente, não transmitia os sentimentos que

guardava dentro de si. Também, outros escritores da literatura destacaram-se como

missivistas: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Antero de Quental,

entre outros.

Destacam-se, neste estudo, alguns assuntos comuns quando as cartas são

trocadas entre escritores: pedidos de colaboração para jornais e revistas; envio de

livros como cortesia, agradecimentos pela oferta de um livro; solicitação de ajuda

para divulgação e venda do livro, por exemplo, pedir ao colega para fazer contato

em livrarias de sua cidade ou outra; uma dedicatória ou um artigo publicado

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referendando uma obra ou trabalho; comentários sobre obras publicadas ou ainda

em construção; críticas de obras e artigos de jornais e revistas; depoimentos sobre

si mesmo, bem como sobre a vivência familiar e social – alegrias, tristezas, medos,

angústias; questões relativas ao trabalho; solicitação de voto para academias de

letras, discussão sobre questões linguísticas. Percebe-se, pelos assuntos que

surgem nas epístolas, a grande importância desse meio de comunicação. Ressalta-

se que, quando há troca de correspondência entre escritores de idades diferentes,

há um lado doutrinário muito forte, fato que aconteceu, nas cartas de Mário de

Andrade com os moços Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, entre

outros.

3.2 Correspondência de Gilberto de Alencar

Ao enveredar pela correspondência de Gilberto de Alencar, foi possível fazer

descobertas valiosas sobre ele e sobre o contexto social em que viveu. O interesse

pelo estudo da obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) surgiu após

uma longa pesquisa da correspondência do autor, a que se acrescem as constantes

visitas a seu arquivo pessoal e à Academia Mineira de Letras. O primeiro contato

com uma parte desse livro deu-se nessa instituição, onde, no escaninho de Gilberto

de Alencar – Cadeira nº. 21 –, na pasta de documentos pessoais do acadêmico, há

um texto (capítulo 8 de Tal dia é o batizado ), um datiloscrito, cuja leitura despertou

interesse pelo conhecimento integral da obra. Além disso, há algumas referências a

esse livro tanto na correspondência pessoal de Gilberto de Alencar, na de sua filha

Cosette de Alencar e em outros documentos pesquisados, como, por exemplo, os

discursos proferidos na Academia Mineira de Letras.

A correspondência passiva do escritor juiz-forano, por adoção, Gilberto de

Alencar, juntamente com a de sua filha Cosette de Alencar, encontra-se arquivada

em três caixas de papelão, com etiquetas, em ordem alfabética. Cada caixa contém

envelopes pardos, numerados de 1 a 33. Os envelopes têm uma lista da qual

constam os nomes dos signatários e o ano da correspondência. Esse material foi

organizado pela família do escritor. As cartas, os cartões e os telegramas

encontravam-se agrupados e presos por clips já enferrujados; por isso, em algumas

correspondências, há marcas de ferrugem. Os papéis já estão amarelados devido ao

tempo transcorrido.

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Em 1961, quando da morte de Gilberto de Alencar, o Acervo situava-se na

rua Marechal Deodoro, nº. 987, em Juiz de Fora, MG, na residência do escritor. Sua

filha Cosette de Alencar, também escritora e cuja correspondência encontra-se junto

com a de Gilberto de Alencar nos mesmos envelopes, assumiu toda a

responsabilidade pela biblioteca, constituída de mais de 3.000 volumes, de uma obra

inédita, da Correspondência e de Documentos Pessoais, além dos manuscritos das

obras publicadas, exceto o do romance Tal dia é o batizado (o romance de

Tiradentes), que, até agora, não foi localizado pela pesquisadora Drª. Moema

Rodrigues Brandão Mendes, embora muitas pesquisas tenham sido feitas para o

sucesso desse empreendimento. Com a morte de Cosette, ocorrida em 1973, o

Acervo foi recolhido pelo filho do escritor, Fernando de Alencar, e removido para a

rua Vilela Filho, nº. 75, também em Juiz de Fora. A família, com a iniciativa de

Fernando de Alencar e de sua esposa, Dóris Marlene Rocha de Alencar, organizou o

acervo – um trabalho que durou aproximadamente um ano, de 1974 a 1975 – do

seguinte modo: os livros foram colocados em estantes; os manuscritos,

acondicionados em pacotes distintos de papel pardo e depois amarrados com

barbante, ressaltando-se que todos se encontram devidamente etiquetados na parte

externa, com os nomes das obras e as datas. A Correspondência e a Documentação

Pessoal, tanto a de Gilberto de Alencar quanto a de Cosette de Alencar, foram

organizadas em caixas de arquivo de papelão e colocadas em envelopes pardos

numerados.

Essa documentação encontrava-se no acervo pessoal da família do escritor,

sob a responsabilidade de sua neta, Marta Maria de Alencar e Sousa. A partir de

2005, eu, Leila Rose Márie Batista da Silveira Maciel, professora do Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais – câmpus Juiz de

Fora, dei início à organização da correspondência dos escritores mineiros pelo fato

de estar inserida no seguinte Projeto coordenado pela Professora Drª. Eliane

Vasconcellos, à época, Chefe do Arquivo Museu de Literatura Brasileira Fundação

Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro: “A construção da memória nos manuscritos

e correspondência de Gilberto de Alencar”. A Drª. Moema Rodrigues Brandão

Mendes também faz parte desse Projeto e realizou uma pesquisa nos manuscritos

de Gilberto de Alencar que resultou na tese de Doutorado intitulada Incursões na

gênese do romance Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho , de

Gilberto de Alencar .

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Em 11 de abril de 2007, o acervo foi doado para o Museu de Arte Moderna

Murilo Mendes, pertencente à Universidade Federal de Juiz de Fora. Trata-se de um

espaço cultural, situado à rua Benjamin Constant, nº. 790, centro, que abriga, além

de coleções de livros, obras de vários artistas.

A correspondência foi separada por signatário e organizada em folhas de

papel, com indicação, a lápis, das iniciais de cada remetente, com os respectivos

anos das cartas, cartões e telegramas. Esse material foi mantido dentro dos

envelopes originais na mesma ordem.

Após essa organização, iniciamos a leitura das cartas de Gilberto de Alencar,

das quais foram selecionadas algumas cujos conteúdos estejam voltados para

produções de obras literárias de autores da época e do autor em estudo.

Paralelamente, foi feito um levantamento dos signatários da correspondência do

autor, bem como da quantidade existente no acervo, distribuída entre cartas,

cartões, telegramas e cartões postais com as respectivas datas. Há 305 cartas na

correspondência passiva do autor, 14 cartas na correspondência ativa do autor

(podendo ainda aumentar este número), 131 cartões (alguns possuem conteúdo de

carta), 10 cartões postais e 21 telegramas, podendo ainda haver alteração nesses

números, pois temos conhecimento de que ainda há correspondências esparsas no

Acervo. A primeira carta é datada de 1906, do Conde Afonso Celso e a última foi

escrita em 1960 por Onofre de Andrade. Parte da correspondência ativa de Gilberto

de Alencar encontra-se na Academia Mineira de Letras, em Belo Horizonte, MG, e

as cartas estão distribuídas em diferentes arquivos dessa instituição, tendo sido

encontradas por mim depois de um minucioso trabalho de pesquisa.

A leitura das cartas pode ajudar o pesquisador a desvendar alguns mistérios

que o escritor não deixa transparecer em sua obra, por exemplo, o caminho

percorrido para a elaboração de um romance, suas angústias e inseguranças quanto

à qualidade de seu trabalho. Poe (2008, p. 9), em sua obra intitulada A filosofia da

composição , afirma: “Normalmente cabe aos críticos a tarefa de desvendar uma

obra de arte (...) Um determinado tipo de crítica, que busca explicar a obra pelo

criador, recorre à pesquisa de cartas, entrevistas, testemunhos, a todas as

informações biográficas disponíveis (crítica) (...)”. Por isso, foi realizada uma

minuciosa pesquisa na correspondência ativa e passiva de Gilberto de Alencar, bem

como na de sua filha Cosette de Alencar, buscando desvendar alguns mistérios na

elaboração das obras de Gilberto de Alencar.

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Como a obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) constitui o

objeto de pesquisa desta tese, foram selecionadas, em um primeiro momento, cartas

que fazem referência a esse livro, cujos trechos serão apresentados, juntos,

obedecendo a uma ordem cronológica, a fim de elucidar fatos que envolvem a

tessitura desse romance. Em seguida, serão apresentados trechos de outras cartas,

buscando mostrar os diversos assuntos presentes nelas, além de referências ao

fazer literário e às obras de Gilberto de Alencar. Vejam-se os resumos e trechos

desses documentos.

A carta de Gilberto de Alencar a Eduardo Freiro, de 5 de outubro de 1957,

além de agradecer a opinião positiva de Frieiro sobre o romance O escriba Julião

de Azambuja , mostra que o escritor mineiro pretende escrever seu quinto romance:

Muito grato pelas boas palavras, tão encorajadoras, que me manda a respeito do meu mofino Julião. Sua observação quanto á possibilidade de dar-lhe maior extensão é muito justa. E tambem acertou, dizendo que tive pressa de acabar o Mouquin. Tive mesmo. (...) É certo que agora poderia augmentar o numero dos capitulos, mas já estou pensando noutro livro, a que dedicarei as energias que ainda me restam, procurando fazer coisa mais densa e de maior envergadura. Se fôr avante o projecto, cinco serão os romances que deixarei. Muito fracos e maus, mas darão testemunho do meu esforço indormido. (...) É provavel que até o fim do anno dê outro pulo até ahi para fugir um pouco ao triste isolamento em que me encontro. Reverei amigos e velhos companheiros, participarei de uma sessão “mais malle” da Academia, arejarei a alma. As almas, como os tapetes, precisam de ser batidas, de vez em quando e extendidas á janella, ao sol e ao vento. (...)35

Dessa missiva, infere-se que Gilberto de Alencar faz alusão à obra Tal dia é o

batizado (o romance de Tiradentes), um projeto que ainda estava em seu

pensamento; essa inferência se deve ao tempo gasto para escrever a obra – agosto

de 1958 a janeiro de 1959, informação presente no último capítulo do livro, que foi o

quinto romance do escritor. Gilberto escreve “às energias que me restam”, porque já

estava com idade avançada e esteve muito doente.

Em uma carta de Gilberto de Alencar36, de 7 de maio de 1959, a Vivaldi

Moreira, Presidente da AML à época, o escritor mineiro informa que pretende ir a

Belo Horizonte para o lançamento do livro Tal dia é o batizado . Tomamos aí

35 Carta de Gilberto de Alencar a Eduardo Frieiro. Juiz de Fora, 5 de outubro de 1957. 2 fls. Arquivo de Eduardo Frieiro, Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG. 36 Carta de Gilberto de Alencar a Vivaldi Moreira. Juiz de Fora, 7 de maio de 1959. 1 fl. Documento do acervo de Vivaldi Moreira, doado pela família à Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG.

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conhecimento de um fato, como de tantos outros, a partir da correspondência do

autor. Foi possível saber o local onde foi o lançamento da obra e a época em que

ocorreu o evento. Vale assinalar que, em algumas cartas, os correspondentes fazem

alusão a esse livro como o romance do Tiradentes. Na correspondência, ainda

informa a Vivaldi que está “apressando a tradução de Cleópatra, para em seguida

meter os peitos na Marquesa de Santos, encomenda do Pedro Paulo”. Após a

assinatura da missiva, em uma observação, esclarece não ter recebido o jornal

Minas em Foco de março nem o de abril, o que mostra como era a movimentação

literária dos intelectuais daquela época.

Eduardo Frieiro, em carta enviada a Gilberto de Alencar, de 28 de junho de

1959, mostra que já tem conhecimento do romance sobre Tiradentes:

Recebi o recorte da sua generosa nota sôbre o meu último livrinho. Sei que o seu louvor nasce duma boa e cordial camaradagem literária. Isso porém não lhe tira a eficácia. Sou, como não era para menos, sensível à lisonja dos confrades, embora tenha começado a escrever sem muitas ilusões acêrca de mim mesmo e já me ache no fim da minha modesta carreira – se é uma – de homem de letras frustrado. Muito e muito obrigado pela nota simpática, mas uma que fico a dever-lhe. Como vai o romance do Tiradentes? Leio sempre os rodapés de Cosette no Diário Mercantil. Escreve bem, com finura e subtileza. Há nela o estôfo do romancista, e tem a quem sair. (...)37

Nessa carta, o crítico literário, ao elogiar a filha, Cosette de Alencar, faz

também uma crítica positiva ao pai, considerado um bom romancista por ele.

A carta de Martins de Oliveira, de 21 de outubro de 1959, traz uma nota

importante sobre o sucesso do lançamento da obra Tal dia é o batizado : “Espero

que esteja completamente refeito das emoções por que tem passado com o

lançamento do seu livro – Tal dia é o Batizado. Pelo que me informaram, o êxito é

grande”38. Percebe-se, por meio das palavras do acadêmico, que Gilberto de

Alencar ficou muito emocionado pelo sucesso de seu romance sobre Tiradentes.

Em outra carta, de 7 de junho de 1960, Martins de Oliveira solicita a Gilberto

de Alencar um trecho do romance Memórias sem Malícia de Gudesteu Rodovalho

para figurar na Antologia da Academia Mineira e esclarece que nela já consta uma

página de Tal dia é o batizado . Informa que: 37 Carta de Eduardo Frieiro a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 28 de junho de 1959. 1 fl. Envelope nº. 8 do arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 38 Carta de Martins de Oliveira a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 21 de outubro de 1959. 3 fls. Envelope nº. 23. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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Primeiro. Mandar copiar um trecho de seu romance Memórias sem malicia de Gudesteu Rodovalho, para figurar na Antologia. Nela já está uma página de “Tal dia é o batizado”. (...) A Antologia da Academia Mineira está pronta. Tudo depende do que estou pedindo ao caro confrade na presente carta. O livro da nossa Casa irá dar um grosso volume de quatrocentas a quinhentas páginas. Terá edição de luxo, feita no Rio, graças à Confederação Nacional de Indústrias39.

Em carta a Cosette, datada de 14 de setembro de 1966, Ascendino Leite,

além de mostrar a necessidade de divulgar mais as obras de Gilberto de Alencar e

de o autor mineiro ser mais estudado, dá testemunho da fidedignidade do escritor

mineiro quanto aos fatos históricos apresentados na obra Tal dia é o batizado :

Nela [na carta], se bem me lembro, já lhe falava dos romances do Gilberto, esse grande escritor ainda não bem difundido e devidamente estudado, mas de quem se orgulharia qualquer outra grande literatura. Dele li, numa edição da Agir, as incomparaveis “Memorias sem malicia de Gudesteu Rodovalho”, indiscutivelmente um romance lapidar, vivido intensamente, como um homem de talento pode viver a sua aventura; e tambem o “Tal dia é o batizado”, da edição Itatiaia, onde ele reafirmou suas poderosas qualidades de ficcionista, mesmo amarrado à objetividade da historia (...)40.

Como três livros de Gilberto foram reeditados, com relançamento em 3 de

maio de 196341, Cosette de Alencar recebeu de seus correspondentes comentários

sobre eles, além da confirmação do pai como um excelente romancista da Literatura

Brasileira. Ascendino Leite, em carta-resposta a Cosette de Alencar, de 20 de março

de 1967, comenta sobre as obras reeditadas, inclusive Tal dia é o batizado , e tece

elogios a Gilberto de Alencar como um criador de almas:

Li-os [os romances] imediatamente. – “O escriba Julião Azambuja” e o “Misael e Maria Rita”, este em duplicata, pois você me enviara antes a delicia de edição que é a primeira, juiz-de-forana. Anteriormente, eu lera as “Memórias sem malícia de G. R.” e bem antes desse, o “Tal dia é o batizado” numa edição Itatiaia. (...) Dos primeiros citados, escrevi-lhe a respeito tão pronto os li, especialmente do “Misael e Maria Rita”, cheio da

39 Carta de Martins de Oliveira a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 7 de junho de 1960. 1 fl. Envelope nº. 23. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 40 Carta de Ascendino Leite a Cosette de Alencar. Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1966. 1 fl. Envelope nº. 4. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 41 Na crônica do dia 03/05/1963, intitulada “Convite ao povo”, Cosette escreve sobre o relançamento dos romances de Gilberto de Alencar, que aconteceria no mesmo dia, 3/05/1963, na livraria Zappa, e convoca o povo para prestigiá-lo. Já na crônica do dia 08/05/1963, “À margem do lançamento”, a autora faz menção a vários escritores que estiveram presentes ao lançamento, inclusive, menciona a presença de Enrique de Resende (Diário Mercantil , Juiz de Fora – 3 de maio de 1963 e 8 de maio de 1963). .

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melancolica expressão do viver provinciano – a perspectiva dos singelos destinos, maravilhosamente descritos por um ficcionista inteligente e um dos últimos grandes prosadores deste pais. É engraçado como a impressão, entre melancolica e vívida, que me deixaram aqueles romances corresponde a uma tendencia do meu espirito: sempre que passo por ai de onibus encanta-me aquele cemiterio cujos muros, felizmente não são tão altos que impeçam a visão dos seus pequenos tumulos. A tristeza que me vem deles é de tal forma espiritualizada e me toca tão particularmente que me dá vontade de saltar e correr depressa até junto do tumulo em que repousa mestre Gilberto a lhe dizer que eu já conhecia a representação dessa incidencia magica, e é algo que eu lhe devo, que nós devemos, e que está na medida daquelas pobres almas a que ele deu vida e movimento nas paginas definitivas de suas fabulas admiraveis42.

A leitura dessa carta de Ascendino Leite – última missiva selecionada que faz

menção ao romance Tal dia é o batizado – mostra que Gilberto de Alencar tinha o

dom de escrever e capacidade de criar personagens com plasticidade, dando vida

aos romances. Também a saudade de Gilberto de Alencar é marcante no coração

desse correspondente da filha do escritor mineiro.

Souza (2010, p. 22) afirma que “A troca de cartas, de natureza mais

profissional, embora marcada pela afetividade, traça o esboço de retratos singulares

de grande parcela da intelectualidade brasileira da época”. A amizade literária,

segundo a autora, possui feições diferentes: ora pode estar ligada ao

relacionamento afetivo entre escritores, ora pode ser imaginada por autores que

procuram afinidades entre seus escritos e os de seus colegas, mesmo que não se

conheçam. A vivência literária é o fator responsável por esse contato e, no caso de

Gilberto de Alencar, além disso, por ele ser um dos membros da AML, muitas cartas

e/ou telegramas eram-lhe endereçados a fim de lhe pedir votos quando surgia

alguma vaga na instituição. Para se apresentar, o escritor interessado à vaga

elencava suas obras e, na maioria das vezes, ainda enviava seus melhores textos

ou livros para que Gilberto pudesse conhecer seu talento literário. O acadêmico

Martins de Oliveira, em carta de 22 de junho de 1957, pede voto a Gilberto para um

colega: “Se não tiver compromisso, pediria ao ilustre confrade sufrágio para o Dr.

Paulo Pinheiro Chagas. Trata-se de nome em projeção nacional, que muito fará pela

Academia, se eleito, dado o enorme prestigio de que dispõe43”.

42 Carta-resposta de Ascendino Leite a Cosette de Alencar. Rio de Janeiro, 20 de março de 1967. 2 fls. Envelope nº. 4. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora. 43 Carta de Martins de Oliveira a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 22 de junho de 1957. 1 fl. Envelope nº. 23. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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Os interlocutores de Gilberto de Alencar são todos masculinos, pois seu

círculo literário era composto, essencialmente, por escritores, fato que mostra o

retrato de uma época: a mulher ocupava poucos espaços públicos, havia muita

limitação para ela. Conforme Souza (2010, p. 35), “(...) é difícil o lugar a ser

conquistado pela mulher-intelectual num período em que a tarefa de construção de

uma nacionalidade literária se fazia no interior de uma confraria de homens”. A

autora acrescenta que, naquela época, a mulher desejava conquistar também o

espaço público “na luta pelos direitos de cidadania, como o do voto, além da entrada

[...] em academias literárias” (SOUZA, 2010, p. 35).

Na Academia Mineira de Letras, houve uma polêmica quanto à entrada da

mulher na instituição, embora não houvesse no estatuto nenhuma cláusula que a

impedisse de ser membro. Em carta de 9 de junho de 1959, Martins de Oliveira

informa a Gilberto de Alencar o que foi deliberado a respeito da entrada da mulher

na AML:

Examinado por uma Comissão, da qual foi relator o acadêmico Aires da Mata Machado Filho, foi o projeto em parte aceito pela referida comissão, ficando assentado que a mulher seria admitida nos quadros acadêmicos. Deliberou-se, na sessão de 4 de junho, já referida, que o parecer fosse votado em julho próximo, mediante consulta a todos os acadêmicos ausentes44.

Nessa carta, envia um anexo com o parecer da Comissão o qual contém

todos os elementos para esclarecimentos e, ao mesmo tempo, pede o voto de

Gilberto de Alencar. Este, em carta-resposta enviada ao Presidente da Academia,

Vivaldi Moreira, em 24 de junho de 1959, informa seu desacordo; contudo, se a

admissão for aceita pelos membros, o escritor mineiro apoia a presença feminina na

AML, desde que a candidata tenha méritos literários:

Rogo a V. Exa. tomar nota de meu voto contrario á acceitação de candidaturas femininas ás vagas que se abrirem na Academia. Logo, entretanto, seja victoriosa a these da admissão dellas, não terei duvida em suffragar o nome de qualquer escriptora, cujos meritos literarios sejam incontestaveis45.

44 Carta de Martins de Oliveira a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 9 de junho de 1959. 1 fl. Envelope nº. 23. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 45 Carta de Gilberto de Alencar ao Presidente da Academia Mineira de Letras, Vivaldi Moreira. Juiz de Fora, 24 de junho de 1959. 1 fl. Gaveta do arquivo de documentos da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG.

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Importa assinalar que a primeira escritora eleita integrante da Academia

Mineira de Letras foi Henriqueta Lisboa, em 1963.

A leitura da correspondência de Gilberto de Alencar, bem como a de sua filha

Cosette de Alencar, cujos interlocutores sempre fazem referência a seu pai e à obra

dele, traça o perfil do escritor mineiro, apresentando-o como um romancista que se

destacou em sua época, como se pode verificar nos seguintes documentos de

críticos literários e escritores, aos quais se acrescentam também cartas de Gilberto.

Agrippino Grieco, em carta a Gilberto de Alencar, de 10 de dezembro de

1948, afirma estar surpreso por Gilberto – um jornalista – de repente, publicar um

romance de aproximadamente 300 páginas. Faz uma crítica construtiva à obra

Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho , apontando intertextualidade com

a obra O Ateneu , de Raul Pompeia, afirmando que “a surpresa meio medrosa torna-

se encanto”. Diz ainda que, no início do romance, o autor “vacila um pouco, o livro

arrasta-se um bocado (...). Mas a aprendizagem é rápida e logo o livro toma corpo,

faz-se narrativa em que há unidade na continuidade, cenários e criaturas vivendo

realmente” 46. Nessa carta, Grieco afirma:

Seu romance foi para mim surpresa. Eu me habituara a ver em Você o jornalista e não esperava de Você senão jornalismo. Mas, de repente, o homem que encontrei naquela manhã nevoenta de Juiz de Fora, por sinal que com o bolso do paletó cheio de lápis ponteagudos, aparece-me romancista. Vou lendo as trezentas e tantas páginas das “Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho” e a surpresa meio medrosa torna-se encanto47.

Percebe-se que Grieco ficou muito encantado com o romancista mineiro.

Além de palavras elogiosas, prometeu fazer uma referência ao escritor em sua obra:

“Como quer que seja, falarei de Você na minha história da literatura, bem adiantada

no momento, colocando Você ao lado do João Lúcio, do Godofredo Rangel, do Artur

Lobo (o seu Artur Lobo) e outros ficcionistas aí das montanhas”48.

46 Carta de Agrippino Grieco a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1948. 2 fls. Envelope nº. 2. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 47 Carta de Agrippino Grieco a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1948. 2 fls. Envelope nº. 2. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 48 Carta de Agrippino Grieco a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1948. 2 fls. Envelope nº. 2. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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Campomizzi Filho, em carta de 1º de março de 1947, acusa o recebimento de

uma carta de Gilberto de Alencar, datada de 19 de fevereiro, e apresenta a seguinte

crítica sobre o romance Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho : “O livro

deixou marcas bem nítidas e bem justas no meu espírito. A pureza da linguagem, a

realidade dos personagens, a sobriedade da paisagem e o cuidado na elaboração

dos capítulos mostram bem o lugar de destaque do romance na literatura

nacional”49. Ainda nessa missiva, informa sobre a venda dos livros de Gilberto em

uma livraria de Ubá. Na época, Gilberto residia em São João del-Rei.

Em correspondência de 26 de maio de 1955, Affonso Penna Junior50 tece

elogios a Gilberto de Alencar pelo livro Misael e Maria Rita , revelando que “há muito

não sentia tanta emoção ao ler um romance”. Revelou que a narrativa evocou os

mesmos sentimentos que Eugènie Grandert, de Balzac, suscitou nele anos atrás.

Informa que o romance Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho recebeu

calorosos elogios da crítica, sobretudo de Grieco e de Linhares. Affonso Penna

pergunta a Gilberto: “Você mandou os dois [romances] à Academia Brasileira? Estou

certo do aplauso com que seriam acolhidos: Quando é que nós mineiros deixaremos

de estar encantoados?”.

As cartas de Gilberto de Alencar para Eduardo Frieiro mostram o quão

importante é a comunicação entre os escritores e como ocorria a troca de

informação naquela época – o correio era um grande aliado dessa rede letrada. Ao

reunir em coletânea artigos publicados em jornal, Frieiro, segundo Alencar, dá uma

grande contribuição para a Literatura Brasileira, uma vez que foi um crítico

respeitado daquele tempo:

Muito lhe agradeço a remessa das Páginas de critica. Embora já conhecesse algumas, estou lendo agora todo o livro, com muito prazer e proveito. Acho que V. fez muito bem em reunir em volume os folhetins da Folha de Minas, onde ficariam injustamente esquecidos. E prestou, por outro lado, um bom serviço á historia de nossas letras51.

49 Carta de Campomizzi Filho a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 1º de março de 1947. 1 fl. Envelope nº. 6. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 50 Carta de Affonso Penna Junior a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 26 de maio de 1955. 2 fls. Envelope nº. 2. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 51 Carta de Gilberto de Alencar a Eduardo Frieiro. Juiz de Fora, 15 de dezembro de 1955. 2 fls. Arquivo de Eduardo Frieiro, Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG.

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Gilberto mostra interesse em saber a opinião de Frieiro sobre seu livro

intitulado Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho . Para o escritor mineiro,

um parecer favorável a respeito da obra pode ser não só um reforço para uma

reedição, como também um apoio para a publicação de outros romances que já

estão sendo escritos:

A razão é que, espontaneamente, o Affonso Penna Junior e o Octavio Tarquinio se estão empenhando no Rio com o Zé Olympio para reedital-o e no caso do seu juizo ser favoravel eu o mandarei ao editor com o apreciavel reforço á pretenção. Caso consiga a reedição, isto abrirá caminho para dois outros romances, um já escripto e outro no estaleiro. Projectos...52

Os escritores trocavam manuscritos de seus romances, buscando uma

apreciação dos colegas. Em trecho de carta de 16 de setembro de 1957, além de

confirmar o recebimento de um livro de Frieiro, Gilberto de Alencar informa-o de que

enviou os manuscritos do livro O escriba Julião de Azambuja , a fim de ter uma

opinião do crítico:

Estou recebendo o exemplar de “O brasileiro não é triste”, com o qual você me presenteou, dando assim mais uma demonstração de sua estima, que tanto me honra. (...) Acho que é muito mais panphleto [o Julião ] do que romance. Mas romance, afinal, não é tudo quanto o autor entende que romance seja? Em todo o caso, enviei-lhe hoje, pelo correio, sob registro, o tal Julião. Diga-me com franqueza o que delle pensa, devolvendo depois a papelada. Mais trabalho para você!53

O escritor mineiro, nessa epístola, demonstra a vontade de ver o referido

romance citado editado pela Itatiaia. Informa ainda a Frieiro que, no próximo ano,

publicará outro romance, Reconquista , pela editora Agir. A carta é finalizada com o

seguinte pedido: “Quando tiver lido o calhamaço, peço-lhe passar ao Mário Mattos,

cuja opinião desejo também ouvir”. Percebe-se que um parecer favorável dos

colegas literatos sobre as obras dá tranquilidade a quem escreve.

Estudiosos importantes não se furtaram a reconhecer o talento de Gilberto de

Alencar; apresente-se, ilustrativamente, um trecho de correspondência de Moacyr

Lobo da Costa a Vivaldi Moreira, de 29 de agosto de 1966:

52 Carta de Gilberto de Alencar a Eduardo Frieiro. Juiz de Fora, 15 de dezembro de 1955. 2 fls. Arquivo de Eduardo Frieiro, Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG. 53 Carta de Gilberto de Alencar a Eduardo Frieiro. Juiz de Fora, 16 de setembro de 1957. 2 fls. Arquivo de Eduardo Frieiro, Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG.

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Quem me encantou foi o Gilberto de Alencar. Entre outros débitos de gratidão, fico devendo a você [Vivaldi] o conhecimento dêsse escritor admirável. Pelo título, não me animaria a ler o livro de desconhecido, e, não fôsse sua apresentação, desconhecido permaneceria, com o que eu saía perdendo muito. Sente-se que êle [Gilberto] aprendeu a escrever com Machado de Assis, mas não lhe herdou a bile do ceticismo. Vou atrás de seus outros livros, pois, é homem de se conhecer por inteiro54.

Moacyr Lobo, embora faça menção a um livro de Gilberto, não cita o nome da

obra. A correspondência está digitada em papel timbrado do Instituto Brasileiro de

Direito Processual Civil, Faculdade de Direito, São Paulo, e foi encontrada por

acaso, na busca pela correspondência ativa de Gilberto de Alencar, no acervo de

Vivaldi Moreira, na Academia Mineira de Letras.

Gilberto de Alencar utilizava-se de correspondência não só a fim de tratar de

assuntos da AML com seus interlocutores, quando estes ocupavam algum cargo na

instituição, como também para comentar tanto obras por ele próprio assinadas como

as de seus colegas; também se valia de cartas para pedir aos amigos que lessem

manuscritos de romances e, entre outros assuntos, para solicitar a parentes e/ou

amigos uma colocação no Serviço Público.

Gilberto de Alencar é homenageado na Academia Mineira de Letras pelo seu

Cinquentenário de vida jornalística, conforme carta de Martins de Oliveira, de 21 de

março de 1955:

A Academia, na sessão de 3 de março deste ano (a mais concorrida, até agora) deliberou, por proposta do consócio Heli-Menegale, prestar-lhe especial homenagem, por motivo de seu cinquentenário de vida jornalística. Constará de uma sessão solene, com a sua presença. Rogo-lhe a bondade de, quanto antes, escolher uma das quinta-feiras (primeira e terceira de cada mês), para a solenidade. O preclaro consócio será saudado por um dos acadêmicos55.

Ainda nessa missiva, Martins de Oliveira informa que está preparando os

quadros da Academia Mineira de Letras, em razão do Cinquentenário da instituição,

e que pretende “exibir ao povo mineiro a própria vida, cheia de serviços às letras

mineiras e brasileiras”.

54 Carta de Moacyr Lobo da Costa a Vivaldi Moreira. São Paulo, 29 de agosto de 1966. 2 fls. Arquivo de Vivaldi Moreira, Academia Mineria de Letras, Belo Horizonte, MG. 55 Carta de Martins de Oliveira a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 21 de março de 1955. 3 fls. Envelope nº. 23. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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Em carta de Mário Matos a Gilberto de Alencar, de 7 de dezembro de 1946,

há uma revelação de que o livro Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho é

uma autobiografia, sendo considerado pelo acadêmico como um grande romance:

É um grande romance, vivido como são sempre os grandes romances. Ele me trouxe tristes e agradaveis recordações dos tempos de Dores de Indaiá. E sinhô está esplendido. Você é o Gudesteu. O final é empolgante e traduz uma das maiores tragedias humanas, que é a solidão do homem em face dos filhos. Nessas páginas, Você mostra todo o seu poder de romancista nato. E que belas figuras que há no seu livro!56

Nas palavras de Mário Matos, percebe-se a habilidade nata de Gilberto na

urdidura de seu romance. O acadêmico mostra a sensibilidade do escritor ao retratar

no romance um tema que aflige o ser humano: a solidão.

Em outra carta de Mário Matos a Gilberto de Alencar, de 21 de março de

1954, há assuntos variados e interessantes sobre o fazer literário; por isso, alguns

trechos dela foram selecionados para exemplificar como o hábito de cartear

enriquece a arte literária e esclarece fatos de uma obra. Mário tece elogios ao livro

Memórias sem malícia de Gudesteu Rodovalho e, por ter sido colega de infância

de Gilberto, dá testemunho, mais uma vez, de que o Gudesteu do romance é o

próprio Gilberto, porquanto as imagens do livro trazem à sua memória passagens da

infância juntamente com o amigo em Dores de Indaiá:

–– Gostei muito do seu livro. Ele me evocou a Dores de nosso tempo. De página a página, no curso da leitura, eu parava e voava, na asa da memória, a Usina. Eu vi de novo as árvores enfloradas e os passarinhos brincando em suas copas. Lembrei-me dos dias de chuva, de pescaria, de caçada. Revi nossos passeios pela cidade, nossas conversas, nossos amores. (...) Pode ficar certo, seu livro é bom. Bom livro certamente é o que nos acorda, nos faz reviver, nos faz reviver a vida. Bom livro é o livro mágico, sendo o seu autor um prestidigitador espontâneo e natural. Noto que seu estilo agora combina a frescura de ideias e observações com a simplicidade. Não a simplicidade buscada mas nascida da experiencia e da direção segura do espirito. Se você conseguir firmar a saude, ainda virá a escrever melhor, se possivel57.

56 Carta de Mário Matos a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 7 de dezembro de 1946. 2 fls. Envelope nº. 22. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 57 Carta de Mário Matos a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 21 de março de 1954. 4 fls. Envelope nº. 22. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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Em carta enviada a Martins de Oliveira, de 9 de novembro de 1957, Gilberto

apresenta informações sobre intelectuais de sua época como Brant Horta, João

Monteiro e João Massena, este último assim descrito:

––– João Massena era uma figura de alto valor intellectual. Um verdadeiro humanista, á moda antiga. Sabia bem o latim, falava e escrevia correntemente o francez, o inglez, o italiano. Conhecia a fundo o vernaculo. Era escriptor magnifico, bela correcção, belo alticismo, bela erudição. Mas raramente escrevia. Muito comodista, levava vida retirada e só escrevia quando vivamente solicitado. Era pharmaceutico e leccionava sciencias naturaes. Em 1907, ou por ahi assim, auxiliado por Alvaro da Silveira e Augusto Franco, manteve accesa polemica com Estevam de Oliveira. Seus artigos de ataque a Estevam foram publicados em volume intitulado “A morte do Major” (Estevam era Major da Guarda Nacional...). O volume não é encontrado em parte alguma, sendo raridade bibliographica. Massena era filho de Barbacena e tinha grande ternura por seu torrão natal58.

Ainda nessa carta, Gilberto busca saber quando seria publicada a Revista da

Academia Mineira de Letras , pois nela viria a lume a biografia de seu pai.

O escritor mineiro também aproveitava as cartas para divulgar seus livros e

até comercializá-los, pois alguns correspondentes distribuíam os livros dos colegas

em livrarias de outras cidades. A carta de Mário Matos a Gilberto de Alencar, de 7 de

dezembro de 1946, entre outros temas literários, aborda esse assunto:

– Já conversei com alguns livreiros daqui. Para começar, Você pode mandar 20 exemplares para cada uma dessas livrarias: – Pax – (Avenida Afonso Pena) 20 exemplares; Livraria Minas-Gerais, Rua da Bahia, 20; Livraria da A noite, rua da Bahia, 20 exemplares; Livraria Alves, rua Rio de Janeiro, 20 exemplares. Vou conversar com as outras e lhe mandarei aviso. Assim que forem se exgotando, Você enviará mais, sob meu aviso59.

Entre os correspondentes de Gilberto de Alencar, Renato Vianna60 destaca-se

pela quantidade de cartas, cujos assuntos são variados e culturalmente muito

densos e ricos. Os recortes selecionados versam, sobretudo, a respeito da cidade

58 Carta de Gilberto de Alencar a Martins de Oliveira. Juiz de Fora, 9 de novembro de 1957. 3 fls. Escaninho da Cadeira nº. 21, de Gilberto de Alencar, Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG. 59 Carta de Mário Matos a Gilberto de Alencar. Belo Horizonte, 7 de dezembro de 1946. 2 fls. Envelope nº. 22. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 60 Renato Vianna (1894-1953). Autor, diretor, ator. Autor do espetáculo A última encarnação do Fausto (1922). Inicia a carreira como dramaturgo, escrevendo para a atriz Itália Fausta. Funda o Teatro de Arte e monta, de sua autoria, O homem silencioso dos olhos de vidro . Em 1946, cria o Teatro do Povo, em uma tentativa de fazer teatro com e para operários (Enciclopédia Cultural).

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de Ouro Preto, da obra Cidade do sonho da melancolia e da impressão do

dramaturgo sobre o escritor Gilberto de Alencar.

A obra em prosa poética Cidade do sonho e da melancolia foi publicada

pela primeira vez em 1926, época em que a cidade estava esquecida pelo governo,

quase morta, e muito distante de sua consagração como patrimônio da humanidade.

Dada a importância histórica dessa obra, o Instituto Histórico e Geográfico de Juiz

de Fora, em 1971, lançou nova edição, a pedido de Almir de Oliveira, um estudioso

da história de Juiz de Fora, que teve a oportunidade de conhecer Gilberto de Alencar

na redação do jornal Diário Mercantil , com quem travava longos diálogos no local

de trabalho, conforme depoimento em entrevista realizada na residência dele, em 19

de agosto de 2011. Veja-se um pequeno trecho dessa obra, em que o narrador faz

uma descrição poética da paisagem sombria de Ouro Preto:

Os vales, estreitíssimos, são antes pequenas trilhas sinuosas, que coleiam por entre os montes escalvados, em cuja superfície verde-escura, coberta de mirrada e rasteira vegetação, se escancaram a espaços, como chagas imensas, barrancos avermelhados e profundos. (...) No cimo das serranias, esgarçando-se pelas rochas, panos de bruma viajavam, batidos pelo vento. À esquerda, para os lados do Itacolomi, entre dois morros, o nevoeiro, mais baixo, adensava-se, alvíssimo e imóvel, como nuvem prisioneira (ALENCAR, 1971, p. 11).

Sobre a abundância do ouro nessa cidade, o narrador relembra: “Tôda gente

possuía ouro em casa. Ouro em barra, ouro amoedado, ouro em pó, enterrado pelos

quintais, metido sob os assoalhos, escondido nas paredes ocas (...)” (ALENCAR,

1971, p. 41). Mas, na mesma página, mostra sua decadência:

Dir-se-ia a cidade, rainha destronada, vivendo de recordações que são hoje o seu único patrimônio, não quer que também elas se percam, como tudo se perdeu, e, então as vai zelozamente mantendo, embelezando-as e perfumando-as com a forma ingênua que lhes empresta, através das narrativas pitorescas da gente simples que ainda conta histórias e que ainda sabe ouvi-las (ALENCAR, 1971, p. 41).

A palavra “destronada” caracteriza muito bem Ouro Preto à época em que se

escreveu o romance, pois um dia a cidade foi uma “rainha” muito cultuada e

procurada, porquanto lá chegavam viajantes de todos os lugares em busca do

precioso minério, que ela guardava em suas montanhas. Destaque-se, também,

que, quando o narrador menciona como patrimônio de Ouro Preto suas

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“recordações”, ele quer que todos os acontecimentos e toda a história dessa “rainha”

sejam sempre lembrados e, para isso, têm papel importante as pessoas humildes,

que vão relembrando as histórias de seu povo, contando-as de geração a geração.

A carta de 11 de janeiro de 1926 mostra o interesse de Renato Vianna pela

política de Minas Gerais, pois tem em mente uma tragédia sobre Vila Rica, intitulada

A cidade morta :

Tambem tenho concebida, para este anno, uma grande tragedia sobre Villa Rica: “A Cidade Morta”. Mas essa eu só escreverei no proprio scenario. Precizarei de um mez ou dois em Ouro Preto. Pretendo interessar a politica de Minas nessa obra. Mas sobre isto nós conversaremos pessoalmente61.

Informa, ainda, na missiva que está escrevendo Salomé Segunda , para

teatro ou cinema, e que pretende apresentá-la em Juiz de Fora, mas, para tanto,

quer a opinião de Gilberto de Alencar:

Neste momento, escrevo uma Salomé Segunda, que destino ao Theatro e ao cinema –– para lá. Devo terminar até o dia 20 deste. Lembrei-me de ir dar uma audição dessa peça ahi –– e isso seria um meio de encher o buraco do Pedro II. Achas viavel a minha idèa? (...) Escreve-me as tuas sinceras impressões. Faria uma noite de arte em homenagem aos meus amigos intellectuaes de Juiz de Fóra. Salomé se presta a uma audição, pela sua alta esthesia. Muito mais interessante que uma conferencia. Enfim: nada resolverei sem te ouvir. (...)62

Percebe-se, pela leitura da correspondência, que há uma ligação muito forte

entre Renato e Gilberto e que eles têm algo em comum: a paixão não só pela cidade

de Ouro Preto, como também pela sua história.

A carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar, de 12 de agosto de 1926,

deixa transparecer que o escritor mineiro já comentara com ele sobre o romance

Cidade do sonho e da melancolia . O dramaturgo aguarda para ler as páginas

desse belo poema em prosa, já antevendo o conteúdo da obra:

61 Carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1926. 4 fls. Envelope nº. 28. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 62 Carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1926. 4 fls. Envelope nº. 28. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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O artista que tu és não podia passar invisivel pela triste e bella “Cidade do Sonho e da Melancolia”. Não. Era fatal que escrevesses. Era fatal o estremecimento esthetico do teu espirito de arte e gigantesco, o eschiliano scenario daquella Tradição. E que sentidas paginas eu advinho nesse teu livro, Gilberto! paginas que “escreveste com o coração”, que é a fonte unica do amor –– e por isso da Vida, e por isso da Arte...63

Também nessa missiva – em que Renato Vianna ainda apresenta sua visão

sobre a história – há o testemunho de que Gilberto de Alencar é conhecedor desse

assunto:

No organismo cósmico da Historia, o coração é tudo. Como nos organismos humano –– tal e qual; e o cerebro, o vaidoso Cerebro (palacio da soberba Razão) um misero craneo vasio se o coração é morto. Conheces bem a Historia, meu caro professor; e sabes, melhor que eu, o segredo do seu progresso através dos seculos: nunca deu um passo para frente senão á força da fé humana, que é a força synthética disciplinadora e incitadora de todos os tumultuarios sentimentos do individuo. Que é a Historia? Um simples quadro das misérias infligidas á multidão pelas paixões de alguns homens. (...)64

Mesmo sem ler o livro, Vianna já apresenta palavras elogiosas ao escritor

mineiro, pois sabe de seu poder de criação e de sua sensibilidade:

Tudo isto para te dizer que se as tuas paginas tu as “escreveste com o coração” –-– nas tuas paginas deverei encontrar, e commigo todos, a verdadeira sabedoria: a sabedoria innata, divinatoria dos genios, que só escreveram com o coração. (...) Ora, pois: o teu livro ha de ser um livro sentido, um livro humano, um livro verdadeiro –- um grande livro. Só ha vida onde ha sensibilidade –- e isto é scientifico, é positivo. Só haverá arte onde houver sublimação dessa sensibilidade – e isto me parece logico. (...) Venha quanto antes a tua “Cidade do Sonho e da Melancolia”, que eu desejo entrar nella e mergulhar no seu silencio –- e sonhar! Que não farei por esse livro, Gilberto? Tudo. Tudo! E por que mereci a tua evocação de artista em pleno sonho da tua Cidade Magica? Quem sou, afinal? e que valho? Não serei por demais pequeno para vulto do teu poema? (...)65

As cartas do dramaturgo mostram que Gilberto de Alencar possuía uma forte

ligação com Ouro Preto e admiração por essa cidade. Um fato interessante que

63 Carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 12 de agosto 1926. 4 fls. Envelope nº. 28. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 64 Carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 12 de agosto 1926. 4 fls. Envelope nº. 28. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG. 65 Carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 12 de agosto 1926. 4 fls. Envelope nº. 28. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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merece ser ressaltado é a presença de Renato Vianna como personagem,

juntamente com Gilberto, nessa obra sobre Ouro Preto:

Chegáramos na véspera à noite. Como só no dia seguinte devesse começar o desempenho da missão oficial que nos havia levado a Ouro Prêto, saíramos, logo cedo, a percorrer as velhas ruas clivosas, que eu ia mostrando à comovida curiosidade de Renato Viana, então pela primeira vez em contato com a cidade. (...) (ALENCAR, 1971, p. 11).

A carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar, de 24 de novembro de 1926,

mostra que, naquele momento, o livro de Gilberto sobre Vila Rica já se encontrava

no mercado. As palavras do dramaturgo enaltecem o escritor mineiro, uma vez que

este imortaliza a cidade de Joaquim José da Silva Xavier; ainda lamenta não poder

acompanhar Gilberto para uma viagem a Vila Rica de Ouro Preto:

Accuso tua carta (és sempre generoso!) de despedida para Villa-Rica –– a Cidade Morta que tu acabas de tornar immortal com o milagre do teu talento. Milagre bem maior do que o de Lazaro, amigo! Eu escrevi não sei onde (acho que no meu romance) que os Artistas são a ultima encarnação de Jesus Christo a fazer pelo mundo o milagre das ressurreições. Tu és o exemplo. Villa Rica deve-te a unica immortalidade concebivel nos juizos humanos: a que resulta das expressões estheticas. Vens de fazer dessa Montanha Sagrada a expressão esthetica de uma Patria: o Brasil. Estás, afinal, no sossegado Toffolo, bem no seio do formidavel scenario dos teus pensamentos. Que saudades de não estar ahi comtigo! (...) Carlos Dias Fernandes publicou n´ “O Paiz” sobre o teu livro. Lêste? Envio-te a chronica66.

O crítico Agrippino Grieco (1933, p. 113-114), em sua obra intitulada

Evolução da prosa brasileira , confirma a grande paixão de Gilberto de Alencar

pelos versos do poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga e pela melancólica e sombria

Ouro Preto: “(...) o sr. Gilberto de Alencar [é] um amoroso de Marília de Dirceu e um

voluptuoso das ruínas de Ouro Preto, cidade de sonho e de lenda em que elle

enxerga uma espécie de Bruges montanheza de Minas Gerais”. As palavras de

Grieco mostram a forte ligação do autor mineiro com a antiga Vila Rica de Nossa

Senhora do Ouro Preto e com os textos literários do Arcadismo, cujo poeta mais lido

66 Carta de Renato Vianna a Gilberto de Alencar. Rio de Janeiro, 24 de novembro de 1926. 2 fls. Arquivo de Gilberto de Alencar, Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz de Fora, MG.

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é o inconfidente Tomás Antônio Gonzaga. Importa lembrar que, na obra Tal dia é o

batizado , o narrador apresenta alguns versos de famoso poema da Literatura

Brasileira: “Marília, tu chamas?/ Espera, que eu vou” (ALENCAR, 1981, p. 165).

A partir desta breve incursão pela correspondência de Gilberto de Alencar e

de sua filha Cosette de Alencar, foi possível perceber a importância das missivas

enquanto fonte de pesquisa, uma vez que propiciaram o conhecimento de aspectos

da vida e da obra do escritor mineiro, apresentando-o como um romancista que deu

grande contribuição às letras nacionais. Os comentários das obras de Gilberto

presentes em sua correspondência são enriquecedores e contribuem, sobremaneira,

para sua fortuna crítica.

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4 TAL DIA É O BATIZADO : FICÇÃO E HISTÓRIA

Como Gilberto de Alencar (1981), para escrever Tal dia é o batizado ,

pesquisou profundamente os documentos que envolvem a Conjuração Mineira, nos

quais há depoimentos escritos tanto de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes

(que relatam não só dados de sua vida pessoal, como também sobre seu

envolvimento no levante), quanto de pessoas de seu convívio, que, em cartas-

denúncia ou em seus depoimentos, conseguiram transmitir o pensamento de

Joaquim José da Silva Xavier, tem-se convicção de que estão registrados, na obra

em epígrafe, não só a trajetória de vida, como também o próprio pensamento de

Tiradentes. Isso se pretende demonstrar por meio de documentos a serem

oportunamente apresentados, tais como obras que versam sobre as Devassas da

Inconfidência Mineira – realizadas no Rio de Janeiro e em Vila Rica – e em livros de

História do Brasil.

4.1 Processo de criação da obra

Deve-se aqui esclarecer que, para o estudo do processo de criação da obra

focalizada, não será realizada a gênese textual nos moldes da crítica genética, em

que o processo de criação é acompanhado gradualmente em manuscritos saídos

diretamente do punho do autor; nosso fundamento teórico e campo de análise é

outro, como se vê na proposta inicial (documentos históricos, correspondência do

autor, interlocução com obra congênere).

O escritor, ao rememorar a Inconfidência Mineira, buscou representar, no

discurso presente no romance sob análise, alguns acontecimentos históricos vividos.

Os episódios da Inconfidência Mineira foram à época testemunhados e registrados

em uma “pilha de papéis” que resultou em uma coleção com vários volumes

intitulada Autos de Devassa da Inconfidência Mineira , publicada por órgãos do

governo brasileiro; por isso, as informações não se perderam com o tempo, embora

haja dúvidas quanto à veracidade do que foi escrito na época, pois, há muitas

contradições nos próprios depoimentos dos inconfidentes; as pessoas que redigiam

os textos tinham pouca instrução e, ainda, há a questão da subjetividade e da

ideologia do poder, muito marcante nesses escritos históricos.

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No último capítulo do livro, registra-se o período de sua elaboração: “Agosto

de 1958 – janeiro de 1959” (ALENCAR, 1981, p. 283). Nos cinco (ou seis?) meses

gastos para a criação da narrativa, o autor já estava aposentado e pôde dedicar-se,

inteiramente, à arte literária. Sabe-se, por meio de entrevista concedida à

pesquisadora pela neta de Gilberto, Marta Maria de Alencar e Sousa, realizada na

residência desta, em 27 de julho de 2011, que ele passava as noites em claro, no

escritório, escrevendo seus textos literários. A correspondência do autor dá a saber

que o novo romance já estava sendo planejado desde o fim do ano de 1957, quando

Gilberto de Alencar, em carta dirigida a Eduardo Frieiro67, datada de 10 de outubro

daquele ano, expressa esse seu desejo:

É certo que agora poderia augmentar o número dos capítulos, mas já estou pensando noutro livro, a que dedicarei as energias que ainda me restam, procurando fazer coisa mais densa e de maior envergadura. Se for avante o projeto, cinco serão os romances que deixarei. Muito fracos e maus, mas darão testemunho do meu esforço indormido68.

Importa assinalar que, naquele momento de sua vida, Gilberto havia passado

por problemas de saúde e já sentia o peso da idade, embora ainda fizesse alguns

trabalhos para o jornal Diário Mercantil , de Juiz de Fora.

Um fato curioso sobre a criação do romance, conforme depoimento da Almir

de Oliveira (2011), foi uma conversa que os dois tiveram na redação do jornal Diário

Mercantil , de Juiz de Fora: Gilberto expôs a Almir suas ideias do que estava

pensando escrever em seu romance, porém este não gostou muito do que ouviu e

emprestou a Gilberto sua coleção dos Autos de Devassa da Inconfidência

Mineira , edição de 1936, e disse: “Leia primeiro estes livros e depois escreva o

romance”. Almir, naquele momento da conversa com Gilberto, já havia publicado a

seguinte obra: Gonzaga e a Inconfidência Mineira , sendo, portanto, a pessoa

indicada para refutar as primeiras ideias que pairavam no pensamento de Gilberto

sobre o romance que pretendia escrever. Almir (2011), sobre Gilberto, afirma: “Ele

era muito difícil, fechado, cheio de métodos. Ele era um excelente ficcionista. Ele

romanceou [no livro Tal dia é o batizado ] o que tinha acontecido”.

67 Crítico literário. Acadêmico da Academia Mineira de Letras. 68 Carta de Gilberto de Alencar dirigida a Eduardo Frieiro, Juiz de Fora, 5 de outubro de 1957. 2 fls. Arquivo de Eduardo Frieiro, Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte. Escrita em papel timbrado da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora – Inspetoria Escolar.

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Wilson Cid, jornalista contemporâneo de Gilberto de Alencar e que atua até

hoje na Imprensa juiz-forana, em entrevista concedida à pesquisadora por telefone,

em 17 de agosto de 2011, informou que a obra Tal dia é o batizado representa o

amadurecimento do trabalho de Gilberto como romancista, esclarecendo também

que o livro ajudou a despertar o conhecimento da obra do autor mineiro. Ao escrever

o livro, o autor mostra interesse pela soberania do país. Cid informa que Gilberto

queria criar um ambiente histórico no romance e, para tanto, fez várias viagens a

Ouro Preto, além de fazer uma longa leitura na obra Autos de Devassa da

Inconfidência Mineira . Informou ainda que Gilberto não escreveu o romance de

uma só vez e que Guimarães, conhecido como “Guima” [jornalista do Diário

Mercantil ], foi o ilustrador da primeira edição do romance. Guimarães, cuja

biblioteca se encontra no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, um espaço

cultural da Universidade Federal de Juiz de Fora, foi um dos grandes cultores da

memória do escritor Gilberto de Alencar.

Gilberto de Alencar brindou o leitor com uma narrativa interessante e bem

construída nos seus fatos de vulto, ao mesmo tempo, incitando-o a refletir sobre um

acontecimento histórico que foi a pedra angular para o Brasil deixar de ser colônia

de Portugal. O narrador usou a imaginação como faculdade básica para criar a

história, mas aliou a essa faculdade seus dons de estilo, contextura vocabular e

eficácia da expressão para fazer a transposição do real para a ficção, buscando não

distorcer os fatos históricos apresentados. Houve um alindamento do episódio da

Inconfidência Mineira, pois, com sua habilidade nata, o escritor utilizou-se de sua

pena para consorciar o tom lírico com o objetivo da narrativa histórica, sempre

criando ambientes propícios para a encenação das personagens.

O romancista Gilberto de Alencar, ao escrever o romance Tal dia é o

batizado , bem como as outras obras que produziu, foi fiel à sua principal função, ou

seja, “a de narrar pelo prazer de narrar; a de nos dar uma visão transfigurada dos

seres e das coisas, forjando-os mais vivazes que os da vida; a de contar histórias

para a eterna criança que é o homem” (FRIEIRO, 1983, p. 74).

Cumpre ressaltar que, quando Gilberto de Alencar escreveu essa obra, ele já

era reconhecido pelos críticos literários de sua época como um bom escritor.

Possuía uma prática discursiva muito vasta, pois, como já visto anteriormente,

trabalhou, ao longo de sua vida, na Imprensa de Juiz de Fora e de outros locais,

exerceu o magistério, possuía uma biblioteca com muitos títulos de autores

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franceses, fatores que o levaram a trabalhar tão bem os diferentes discursos

presentes na obra em estudo.

Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) compõe-se de nove partes,

divididas cada uma em capítulos sem título, lembrando que estes são curtos e

numerados. O tempo é bem marcado na obra e segue uma ordem cronológica da

vida do protagonista e dos acontecimentos históricos representados. Não há

prefácio nesse livro, mas, nas duas páginas iniciais, sob o título “Personagens”,

registra-se, antes da Primeira Parte, uma lista de nomes próprios levemente

biografados. No primeiro parágrafo dessa página, Gilberto de Alencar apresenta um

esclarecimento sobre o local em que se passa a história, denominada por ele

“drama”, afirmando que, em Minas Gerais, “desenrola-se a vida, a paixão e a morte

de Joaquim José da Silva Xavier, alferes e ‘tiradentes’, herói da conjura destinada a

libertar sua pátria do domínio português” (ALENCAR, 1981, p. 7). Após tecer mais

alguns comentários sobre a luta de Tiradentes para emancipar o país, apresenta

com destaque, em letras maiúsculas, os seguintes nomes, com data de nascimento

e morte de alguns, abrindo um parágrafo para cada ator: Joaquim José da Silva

Xavier, Francisco de Paula Freire de Andrade, Cláudio Manuel da Costa, Tomás

Antônio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Joaquim Silvério dos Reis,

Basílio de Brito Malheiro, Inácio Correia Pamplona, Domingos de Abreu Vieira, Luís

Furtado de Mendonça, Manuel Rodrigues da Costa, Carlos de Toledo e Melo, José

de Oliveira Rolim, Domingos da Silva Santos, Antônia da Encarnação Xavier,

Antônio Francisco Lisboa, José Lobo Mesquita, Domingos Fernandes e José Álvares

Maciel. Trata-se de uma estratégia utilizada para dar maior credibilidade à narrativa

de ficção e aproximá-la do real, pois, assim como os historiadores, o autor usa os

mesmos nomes próprios do acontecimento histórico, deixando pressupor que esses

nomes vão fazer uma referência direta à realidade. Acredita-se que os nomes foram

elencados nessa primeira página com o intuito de ativar a memória coletiva do leitor,

pois alguns deles são muito conhecidos.

Ao se escolher um livro para fazer uma leitura, é importante observar que ele

é envolvido de todos os lados por uma encadernação, que, muitas vezes, chama a

atenção do leitor em razão das imagens que aparecem na capa, do título da obra e

do autor, contudo, a obra “é viva e literariamente significativa numa determinação

recíproca, tensa e ativa com a realidade valorizada e identificada pelo ato”

(BAKHTIN, 2010, p. 30). A obra literária é viva e possui significado do ponto de vista

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cognitivo, social, político, econômico e religioso, em um mundo também vivo e

significante.

A narrativa sob análise traz em sua capa uma ilustração de uma casa de Vila

Rica, com um fundo negro em toda a sua extensão e lombada, já sugerindo talvez o

funesto fim de seu herói, o Tiradentes. O título aparece em letras de forma bem

destacadas nas cores branca (título – TAL DIA É O BATIZADO) e preta (subtítulo –

O ROMANCE DE TIRADENTES), como se pode observar na Figura 6:

Figura 6 – Capa da obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes).

Fonte: ALENCAR, 1981.

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O título é um elemento muito importante no que se refere à identificação da

narrativa: “Elemento marcado por excelência (...) o título pode assumir um papel de

grande relevo semântico e ser dotado de considerável peso sociocultural” (REIS;

LOPES, 1988, p. 97, grifos dos autores). No título do romance, há um nome próprio

– Tiradentes – a alcunha de Joaquim José da Silva Xavier, que daquela forma ficou

conhecido em seu meio social por “sua prenda de pôr e colocar dentes”, como ele

mesmo afirmou em seus depoimentos, presentes na obra Autos de Devassa da

Inconfidência Mineira 69 (1982, p. 21).

Mateus et al. (apud REIS; LOPES, 1988, p. 214, grifos dos autores)

corroboram a afirmação de Reis e Lopes, considerando “que um nome próprio é um

designador de referente fixo e único, pertencente ao universo de referência

pressuposto pragmaticamente num dado discurso”. Nas narrativas de ficção, os

nomes próprios se reportam a pessoas que existem no mundo de referência

construído pelo texto, o qual é sempre um mundo possível ficcional e, no caso da

narrativa em estudo, os nomes próprios se referem a personagens da historiografia.

Os nomes próprios são “designadores rígidos” da realidade (LYOTARD apud

HUTCHEON, 1991, p. 196), sendo esta a pressuposição dos historiadores quando

usam os nomes próprios em seus textos: “o referente é uma constante, apesar das

diferentes conotações para diferentes leitores” (HUTCHEON, 1991, p. 196). No

romance, a maioria dos nomes próprios das personagens criadas para a

representação da narrativa correspondem aos nomes dos atores da Inconfidência

Mineira: “(...) em toda ficção os personagens históricos podem conviver com

personagens ficcionais dentro do contexto do romance porque aí eles só se sujeitam

às regras de ficção” (GENETTE apud HUTCHEON, 1991, p. 197).

No título da obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes), já está

esboçado qual é o gênero da narrativa – romance –, mostrando sua importância

semionarrativa. O conhecimento prévio do gênero constitui, por si só, uma

orientação de leitura, com incidências pragmáticas e semânticas. O romance é um

gênero textual muito apreciado pelos leitores:

69 Neste trabalho, será usada a sigla ADIM, para a obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira , publicada pela Câmara dos Deputados, Governo de Minas Gerais, Imprensa Oficial de Minas Gerais, coleção elaborada em 10 volumes. A sigla será seguida sempre pelo ano, página e volume, pois a coleção apresenta anos diferentes em alguns volumes.

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(...) os gêneros narrativos detêm considerável capacidade de codificação: o fato de muitos escritores incluírem no título ou no subtítulo da sua obra uma designação de gênero como romance, memórias ou conto (...), tal fato confirma essa propensão narrativa e indica uma certa tendência contratualista que os gêneros narrativos possuem (REIS; LOPES, 1988, p. 47, grifos dos autores).

Assim, ao escolher uma obra, o leitor fará opção por um gênero que

reconhece e com o qual tem mais afinidade, levando em consideração a disposição

psicológica, a motivação cultural, entre outros fatores, havendo, portanto, uma

espécie de contrato entre o leitor e o gênero escolhido. Vale lembrar que essa

interação autor/leitor na identificação e recepção dos gêneros narrativos requer certa

competência narrativa para a construção e recepção da história.

O título da obra apresenta, de imediato, informações sobre o conteúdo da

narrativa, uma vez que possui estreita relação com o episódio histórico principal da

narrativa, ou seja, a Inconfidência Mineira, pois ficou combinado entre os envolvidos

na sedição que, quando recebessem a senha “tal dia é o batizado”, iria começar o

levante. Além disso, realça uma categoria narrativa – a personagem principal –

Tiradentes. Essa apresentação da personagem no título ocorre, principalmente, “em

períodos literários interessados no percurso (social, ético, ideológico, artístico etc.)

da pessoa humana” (REIS; LOPES, 1988, p. 98). Esse é o caso do romance em

estudo, porquanto o autor objetiva traçar a trajetória de Joaquim José da Silva

Xavier, o Tiradentes, desde criança, quando morava com seus pais na Fazenda do

Pombal, passando pela sua juventude – momento em que viveu uma grande paixão

amorosa por Isabel Gracinda –, até a vida adulta, momento em que ocorre seu

grande envolvimento com a revolta premeditada na Capitania de Minas Gerais. O

desenlace do romance é seu fim trágico – condenação do herói à forca, havendo

ainda o epílogo, quando voltam à cena as personagens: Isabel Gracinda, a ex-noiva,

e Simplício, o escravo que acompanhou Tiradentes por toda a vida, a fim de darem

um sepultamento digno à sua cabeça. No romance, é possível perceber a

personagem em seu meio social, suas ideologias, sua vontade política de tornar o

Brasil uma República.

O título Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) permite uma leitura

do ficcional em uma ligação estreita com o real. Trata-se de um título que:

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(...) convoca o leitor dotado de memória cultural e detentor de uma certa competência narrativa a adotar uma atitude psicológica e estética adequada a certo tipo de narrativa, às estratégias que usualmente a caracteriza, aos vectores temáticos eventualmente insinuados, etc. (REIS; LOPES, 1988, p. 99, grifo dos autores).

A alcunha Tiradentes, no Brasil, é conhecida inclusive pelas crianças, que

sabem a quem se refere e conhecem, ainda que superficialmente, a história da

personagem. O autor usou a mesma estratégia de um historiador ao utilizar nomes

próprios na narrativa, não só o de Tiradentes, como também o de outras

personagens envolvidas na Conjuração Mineira, a fim de designar a realidade

representada. Sob esse aspecto, o título da obra, reforce-se, ao se referir à figura de

Tiradentes, está intrinsecamente ligado ao protagonista, buscando o narrador, com a

estratégia, ativar a memória coletiva e despertar o interesse pelo enredo.

4.2 Joaquim José: características físicas e psicoló gicas – predições

Joaquim José aparece na Primeira Parte do romance – capítulo 1 – com sete

anos de idade. Era um menino diferente das outras crianças, porque não aceitava

nenhum tipo de injustiça, seja com os animais, seja com seus semelhantes – os

escravos – ou qualquer outra pessoa, influenciando até mesmo seu professor,

mestre, que, nos últimos tempos de escola, já quase não usava mais os

instrumentos de castigo. No romance, achavam que Joaquim José tinha algumas

esquisitices: “(...) soltava os passarinhos, desarmava as arapucas, não deixava

cobra pegar tico-tico e abria a porta do curral para os bezerros não ficarem presos”

(ALENCAR, 1982, p. 112). Tem-se convicção de que o narrador criou as cenas do

protagonista ainda criança para mostrar o traço de humanidade característico de

Tiradentes.

Segundo Dourado (1973, p. 103), “O personagem não existe anteriormente a

si mesmo, ele só existe depois de criado, de narrado, e só se cria e se narra um

personagem através, por exemplo, entre muitas outras técnicas e figuras de retórica,

da técnica associativa. O que não acontece na vida real”. O autor informa que um

romancista poderoso pode, às vezes, visualizar a personagem criada, do contrário,

seria incapaz de construí-la. Mesmo quando o autor de um romance pretenda

retratar uma pessoa da vida real que ele tenha conhecido, “o que na verdade está

fazendo não é retratar a pessoa real mas transpor para o romance uma figura que

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agora existe dentro dele (a pessoa real pode morrer, que continuará a viver na

memória do autor)” (DOURADO, 1973, p. 103-104). Ser um substantivo, ter um

nome, é a grande virtude da personagem: “O personagem como substantivo, ou em

uma linguagem abstrata – a sua unicidade, é que permite ao romancista tratá-lo

objetivamente, plasticamente, colocá-lo no romance e movimentá-lo, utilizá-lo

conforme, e dentro da estrutura narrativa” (DOURADO, 1973, p. 106). Segundo o

autor, uma questão importante em uma narrativa é a personagem ter “vida”, sendo

que isso depende, exclusivamente, “do dom, nato ou conquistado, do escritor, de

criar essa impressão” (DOURADO, 1973, p. 106). Em Tal dia é o batizado , as

personagens possuem essa plastificação, esse movimento, têm vida, elementos

aventados pelo narrador, sendo possível visualizá-los com muita clareza.

Percebe-se, em diversas passagens, a caracterização indireta da

personagem, ou seja, “(...) a partir dos discursos da personagem, dos seus atos e

reações perante os outros, se vai inferindo um conjunto de características

significativas do ponto de vista psicológico, ideológico, cultural, social, etc.” (REIS;

LOPES, 1988, p. 195). O narrador do romance em estudo, na voz de Tomás Antônio

Gonzaga, apresenta as seguintes características de Tiradentes: “– Tem uma telha

de menos, positivamente. Aquele ar espantado, aquela gesticulação desordenada,

aqueles olhos chamejantes... Ninguém me convence de que não seja meio doido!”

(ALENCAR, 1981, p. 159). Também, na narrativa, ao mostrar descontentamento

pelo apelido que lhe foi colocado, Corta-Vento, Tiradentes descreve a si próprio:

Sou um homem sem instrução, não sei latim, não faço versos, mas sou pelos fracos, pelos pobres, pelos oprimidos... Sou pela liberdade da minha terra e por ela hei de lutar até a morte. Não adulo governadores, nem capitães-generais, que aqui só aparecem para enriquecer à custa do povo, eles e mais a criadagem que os acompanha70 (ALENCAR, 1981, p. 167).

Joaquim José, no romance, apesar de não ter instrução e de possuir hábitos

simples, reconhece seu valor quando deixa transparecer sua ideologia de luta para

tirar o povo da opressão em que vivia. Importa assinalar que, além de Corta-Vento,

70 As características apresentadas são compatíveis com Joaquim José, pois era uma pessoa de pouca instrução, o seu sonho era libertar o Brasil de Portugal e, em seu depoimento – 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790 –, relata o que pensava sobre os governadores: “(...) porque poderia assim suceder, que esta terra se fizesse uma República, e ficasse livre dos governos, que só vêm cá ensopar-se em riquezas de três em três anos, e quando eles são desinteressados, sempre têm uns criados, que são uns ladrões (...)” (ADIM, 1982, p. 33, v. 5).

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chamavam-no também de o República, o Liberdade71, em razão de seu discurso

inflamado para conquistar a liberdade e constituir uma República no Brasil. Segundo

o narrador, Joaquim José era bravo, estourado; contudo, era contrário a qualquer

tipo de violência. Como se trata de um narrador heterodiegético, dispõe de

condições de distanciamento para apresentar os atributos de Joaquim José da Silva

Xavier de forma bastante exaustiva e desapaixonada.

Outro ponto forte na caracterização de uma personagem é o aspecto físico,

sendo este “capaz até de fazer notar importantes transformações no estatuto

sociomental das personagens” (REIS; LOPES, 1988, p. 194). Em Tal dia é o

batizado , a personagem principal é caracterizada a partir de um conjunto de

atributos que lhe são conferidos ao longo da narrativa, tanto em sua meninice

quanto na vida adulta.

O narrador dessa obra utiliza-se de diferentes estratégias narrativas,

destacando-se, entre elas, as predições. Estas aparecem no início do romance e

fazem uma espécie de fechamento mais no final, próximo ao momento do

enforcamento do herói, quando vêm à memória de Joaquim José os episódios de

sua infância presentes na história narrada. Essas predições “correspondem a

movimentos de antecipação discursiva de eventos que virão a ser posteriormente

confirmados no plano da história” (REIS; LOPES, 1988, p. 87). Como narrador

heterodiegético e onisciente, tem conhecimento de tudo o que vai acontecer, então

antecipa, já no início do romance, o que vai ocorrer com o protagonista, por meio de

diferentes passagens que serão apresentadas neste subcapítulo.

Cumpre assinalar que, a partir daqui, serão apresentados alguns trechos da

novela Eu, Tiradentes : confissões do maior mito da História do Brasil, de Pascoal

Motta (1990), que dialogam com a obra Tal dia é o batizado , de Gilberto de Alencar.

Essa novela é um monólogo e contém as confissões de Tiradentes aos frades, na

madrugada do dia 21 de abril de 1789. Para tanto, o protagonista utiliza-se do

discurso direto coloquial, alternado com uma belíssima linguagem poética, dando um

71 A 14ª testemunha, em Vila Rica, em 3 de agosto de 1789, Vicente Vieira da Mota, disse que ouviu dizer ao S. M. José Joaquim da Rocha, quando este estava no Rio de Janeiro: “Que depois, chegando o dito alferes do Rio de Janeiro a esta vila, entrou nela a falar sem reserva que esta Capitania podia viver independente do governo de Portugal; que podia ser uma República e conseguirem a liberdade; tanto assim que, por esta razão uns lhe chamavam – o República e outros – o Liberdade (...) que se tivesse outro governo e fosse uma República, assim como a América Inglesa, seria o país mais feliz do mundo” (ADIM, 1981, p. 120, v. 4).

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tom de suavidade à narrativa. O fluxo de consciência constitui uma técnica que

atravessa toda a obra. Tiradentes narra para o Outro fatos marcantes de sua vida,

as dificuldades e injustiças por que passou não só em sua vida pessoal (vivência de

um amor proibido), como também em sua vida profissional enquanto Alferes do

Regimento dos Dragões na Capitania de Minas Gerais (era sempre preterido), sua

luta pela libertação do Brasil do jugo português, sua vontade de ver os escravos

como homens livres.

Na obra Tal dia é o batizado , quando Joaquim José ainda era menino, houve

uma cena marcante e que o impressionou muito, ou seja, a da cabeça de um

escravo pendurada em um poste no caminho da escola. Naquele momento, Joaquim

José se encontrava sozinho com o irmão: “À saída da vila, em frente às últimas

casas, num poste de madeira plantado à margem do córrego do Lenheiro, via-se a

cabeça ensanguentada de um negro, de olhos abertos e língua pendente (...)”

(ALENCAR, 1981, p. 23). Este era um costume da época – decepar a cabeça dos

escravos, quando eles cometiam algum crime, e pendurá-la em algum lugar para

escarmento dos negros que a vissem. Essa cena é uma predição: como o narrador

tem conhecimento de tudo no romance, antecipa uma situação que vai acontecer no

futuro com Joaquim José, ou seja, tal como aconteceu com o negro, sua cabeça

será pendurada em um poste, na praça de Vila Rica.

O triste episódio da cabeça do escravo impressionou muito Joaquim José. Os

pais tentaram explicar-lhe o que ocorria, mas foi em vão. O menino não quis se

alimentar, trancou-se no quarto e disse que nem à escola ele iria mais; passados

alguns dias, contudo, seu pai levou-o novamente à escola e a vida da família voltou

à normalidade. O pai “Compreendia, sim, a revolta do filho e admirava-lhe o espírito

de justiça, a bondade, o horror à violência. Joaquim José aparecia em verdade como

uma criança fora do comum” (ALENCAR, 1981, p. 24). Essa passagem do romance

Tal dia é o batizado dialoga com a novela Eu, Tiradentes , justamente, quando o

protagonista mostra o quanto era sensível, desde menino, às atrocidades praticadas

contra os escravos, momento em que faz alusão, na novela, ao costume de se

pendurar cabeças de escravos em postes para servir de exemplo para outros

negros:

Juro: no tal sucedimento de Minas Novas, a assistência da brutalidade contra o negro escravo acendeu no meu coração brasa de urgente liberdade, que envinha em desde meus dias de menino, de rapazola,

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topando de frente tal processo de correção por falta cometida, muitos deles batem, surram, matam por pura, simples necessidade de desabafar ódio da alma. Não acostumava minha vista, de menino ainda, na confrontação com cabeça degolada, espetada em ponta de moirão. Era negro morto com máxima violência, por motivo de insubordinação, mesmo morto por revolta, vingança, por tamanho sofrimento deles escravos (...) (MOTTA, 1990, p. 87).

Na citação apresentada, Tiradentes faz referência a um episódio ocorrido com

ele quando ia para a escola o qual foi narrado com mais detalhes na obra Tal dia é

o batizado , como já visto anteriormente. Ainda na representação da novela Eu

Tiradentes , o alferes confessa aos frades não se acostumar com a violência

praticada contra os escravos; por isso, havia dentro dele uma revolta e uma grande

vontade de mudar aquela situação dos negros no Brasil.

O narrador do romance Tal dia é o batizado também dá pistas do que

ocorrerá com Joaquim José da Silva Xavier por meio de duas personagens, um

espanhol que passava pela fazenda e uma escrava bem velha que vivia com a

família do sr. Domingues: mãe Balbina. O viajante que se hospedara na Fazenda do

Pombal tomou a mão esquerda de Joaquim José e passou a examinar-lhe as linhas,

dizendo:

– Este menino... (...) – Vai ter uma vida difícil, será célebre, sofrerá bastante... (...) – Trabalhará pelo bem dos outros, mas muitos hão de rir-se dele e todos o trairão. Morrerá... Não, não digo como morrerá. Pode ser até que me engane... Digo só que o seu nome se tornará glorioso, depois que morrer... (ALENCAR, 1981, p. 33).

Após essas palavras, a mãe do menino ficou muito abalada, nem dormiu à

noite. O pai, também impressionado, não gostou do que ouviu e preferiu dizer não

acreditar em adivinhações e feitiçarias, embora já tivesse ouvido contar histórias de

profecias estranhas que acabaram se realizando. No dia seguinte à predição, o

espanhol foi embora bem cedo, para alívio da família. Trata-se de caso da história

oral relativo a crenças populares sendo introduzido no romance. Também a escrava

Balbina, imediatamente após esse episódio, complementou a profecia do espanhol

do seguinte modo: “– Eh! eh! Nhonhô Joaquim... Nhonhô Joaquim vai ser falado, vai

ser falado nesse mundão tudo...” (ALENCAR, 1981, p. 44). O progenitor mostrou-se

preocupado com o que poderia acontecer com Joaquim José no futuro, recordando-

se das palavras de mãe Balbina e do espanhol:

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– Eh! eh! Nhonhô Joaquim... Nhonhô Joaquim vai ser falado, vai ser falado nesse mundão tudo... (...) Mas Domingos da Silva Santos não achava que fosse caduquice, achava que talvez fosse outra coisa. E lembrava-se do espanhol que havia passado certo dia pelo Pombal, em demanda do Tejuco, atraído pela fama dos diamantes, e cujas palavras tanto haviam impressionado D. Antônia da Encarnação e a ele mesmo. – Que será deste meu filho? (ALENCAR, 1981, p. 44).

Nessa passagem, as vozes das personagens mãe Balbina e sr. Domingos,

em discurso direto, misturam-se com a do narrador, em discurso indireto, em uma

variação estilística que dá vivacidade à narrativa.

No início do romance, há um episódio em que Joaquim José, ao regressar da

escola de mestre Lucas, faz uma parada em um altiplano no caminho para apreciar

a beleza natural do Brasil:

(...) permanecia de pé na estrada, esquadrinhando longo tempo os horizontes longínquos que daquele ponto se descortinavam a perder de vista. Não se cansava jamais de observar o espetáculo impressionante, o magnífico espetáculo que se afigurava sempre novo e misterioso ao seu olhar pensativo, mergulhado na distância infinita. Para qualquer lado que se voltasse, via as montanhas e as florestas, atrás das quais outras montanhas e outras florestas se estendiam, numa sucessão interminável, separadas, a curtos intervalos, pelos vales e pelas várzeas (ALENCAR, 1981, p. 38-39).

Essa passagem do romance é de capital importância, pois aquele momento

de meditação de Joaquim José, em que admira a beleza natural do Brasil, vai

inspirá-lo toda vez que queria arregimentar mais adeptos para a sublevação da

Capitania de Minas Gerais, pois ele começava pela exaltação da natureza

exuberante do país, pondo em relevo suas riquezas naturais, em uma tentativa de

sondar a pessoa em um primeiro momento, para, depois, entrar no assunto que lhe

interessava, ou seja, a emancipação da Capitania de Minas Gerais e do Brasil. A

Figura 7, a seguir, ilustra essa passagem da vida de Joaquim José:

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Figura 7 – A Visão de Tiradentes, Croquis, Belmiro de Almeida.

Fonte: MATHIAS, 1969, p. 77.

No romance, a libertação dos escravos era uma causa que Joaquim José

defendia, ardorosamente: “Libertar a colônia para libertar os escravos” (ALENCAR,

1981, p. 117). Em várias passagens, o narrador retrata a crueldade no trato com os

negros. A título de ilustração, será apresentada uma citação em que o narrador

descreve, com detalhes, a crueldade no trato com os escravos, reportando uma

lastimável passagem da História do Brasil:

Debaixo do relho do feitor sem piedade, gemiam os escravos de sol a sol no trabalho do eito, das betas e das bateias. A lida mais dura era esta última, que os constrangia a passar o tempo todo, seminus, dentro dos riachos, com água até a cintura. A qualquer descuido, a qualquer falta leve, a qualquer parada no esforço que lhes inundava de suor o rosto reluzente, o azorrague de couro cru, manejado com pulso de ferro, logo fazia brotar o sangue das pobres costas retalhadas. E quando se descobria, porventura, a menor parcela de ouro, um grão que fosse, em poder de qualquer dos negros, o castigo chegava ao auge, deixando por terra o desgraçado quase morto de tanta pancada (ALENCAR, 1981, p. 113).

Assim, inconformado com essa situação, Joaquim José acreditava que havia

somente uma forma de tirar essa gente do sofrimento: libertar a colônia do jugo de

Portugal, pois libertando as pessoas, havia possibilidade de libertar os escravos

também. Outro episódio, no tocante aos maus tratos com os escravos, ocorreu

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quando o protagonista já era adulto e dirigia-se para a Vila de Minas Novas.

Presenciou uma cena em que um escravo estava sendo espancado, tomou para si a

ofensa:

Uma nuvem escureceu a vista de Joaquim José. [...] desmontou, voou para ele [um português] e desfechou-lhe vigoroso murro em pleno rosto. [...] Buscavam retirar-se [Joaquim José e Simplício] quando chegaram as autoridades, chamadas às pressas, e os dois foram passar alguns dias na prisão da vila, por atentado ao direito de propriedade72 (ALENCAR, 1981, p. 115).

Cumpre assinalar que, de acordo com o romance, naquela época, não era

comum as pessoas fazerem qualquer tipo de interferência quando os escravos eram

maltratados, lembrando que, em Minas Novas e por todo o sertão, nunca se tinha

visto um ato semelhante.

O romance Tal dia é o batizado , reportando-se ao ano de 1755, relata uma

tragédia na família de Joaquim José: sua mãe morreu, causando muita tristeza a

todos os familiares. Ela foi enterrada no cemitério de São Francisco e, após alguns

dias, a sepultura se transformou em um “canteiro, muito bem arrumado e repleto de

mudas de escabiosa, a flor da saudade” (ALENCAR, 1981, p. 42). Após a morte da

mãe, o sr. Domingos pediu ao bispo de Mariana um lugar no seminário para Antônio;

assim, o menino poderia acompanhar o irmão mais velho, Domingos, no sacerdócio.

O irmão mais novo, José, foi matriculado na escola do mestre Lucas e passou a

fazer companhia a Joaquim José nas caminhadas para a escola.

Em razão da ausência da esposa, o sr. Domingos mandou buscar de São

Paulo a irmã de d. Antônia, d. Francisca, para tomar conta das filhas pequenas,

Catarina e Antônia Rita de Jesus. A tia era escravocrata e tratava muito mal os

escravos, fato que incomodava muito Joaquim José, mas, aos poucos, ele foi

conseguindo mudar algumas atitudes dela.

O narrador informa que, nessa época, os negócios do sr. Domingos estavam

indo muito mal. Em 175773, morre o patriarca da família, deixando os filhos quase

72 Herculano Gomes Mathias, em nota explicativa na obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1977, p. 16. v. 9), atesta essa passagem na vida de Joaquim José: “Em 1775, antes de sentar praça no novo Regimento de Cavalaria Regular, fazia comércio com Minas Novas, pois aí foi preso ao defender um escravo contra maus tratos do dono, segundo depôs Alexandre da Silva, mais tarde escravo-secretário do Pe. José da Silva e Oliveira Rolim”. 73 O ano do falecimento do pai de Tiradentes, bem como sua idade quando da morte de seu progenitor, não estão de acordo com os dados apresentados na nota de Herculano Gomes Mathias:

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sem recursos. Mas, em 1758, com o menino Joaquim José, com menos de 12 anos,

à frente dos negócios, e com a ajuda de d. Francisca e dos escravos, as atividades

normais foram retomadas. Domingos, o irmão mais velho, ainda seminarista,

acompanharia os negócios da fazenda à distância, pois estava em Mariana.

A coragem era uma característica predominante de Joaquim José e se tornou

evidente quando ele deixou sua infância para trás e assumiu as responsabilidades

de um adulto na Fazenda de Pombal74, juntamente com um escravo bem antigo na

fazenda, Adão, que o ajudou a tocar os negócios: “– Tem o Adão para ajudar a

gente. Já conversei com ele... Domingos já tinha conversado, antes de ir embora...

O Adão tem prática, é de muita confiança, está disposto a tudo” (ALENCAR, 1981, p.

57). Tiradentes revelou enorme firmeza, e “(...) a infância prematuramente encerrada

com o desaparecimento do pai, a infância assinalada de maneira indelével por

tantos episódios que prefiguravam já o destino que o aguardava [não esmoreceriam

sua coragem] (ALENCAR, 1981, p. 54). Nessa passagem, o narrador volta a

antecipar, no romance, o fim trágico de Joaquim José.

4.3 Idílio amoroso no romance – fictício no texto f iccional

Joaquim José, em Tal dia é o batizado , ativou a exploração de ouro no

Pombal, mas o minério estava cada vez mais escasso, e, mesmo com dificuldade,

apareciam algumas pepitas de bom tamanho do precioso metal. Também plantava

milho e feijão, além de investir na cultura de algodão, chegando a haver alguns

teares na fazenda para fabricar as roupas dos escravos. Aumentou a extensão dos

canaviais e investiu também na criação de gado. Os irmãos seminaristas Domingos

e Antônio, após a morte do pai, foram passar algum tempo na fazenda. Domingos

prometeu assistência a Joaquim José e, de tempos em tempos, ia ao Pombal.

Nesse ínterim, a irmã mais velha, Maria Vitória, casa-se aos 17 anos.

Joaquim José sentiria a ausência da irmã, que colaborava muito nos afazeres da

casa. Ele disse: “– Vai fazer muita falta, mas foi melhor assim...” (ALENCAR, 1981,

p. 57). Ao pensar nos irmãos menores, José, Catarina e Antônia Rita, que ainda Domingos da Silva Santos morre em 1761, quando Joaquim José tinha 15 anos (ADIM, 1977, p. 16, v. 9). 74 Em nota explicativa de Herculano Gomes Mathias (ADIM, 1977, p. 16, v. 9), há informação de que “Tiradentes se achava na administração da Fazenda de Pombal, naturalmente sob a tutela de um tio; tinha dois tios afins moradores em São José: José Veloso do Carmo e Martinho Lourenço”.

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iriam precisar muito dele, Tiradentes buscou forças em seu interior para continuar a

luta com muito vigor nos trabalhos da fazenda.

Joaquim José estava apaixonado por seu amor de infância – Isabel Gracinda

– a filha de Venâncio Moreira Dias, o Alcobaça, e de d. Rosa, um casal de

portugueses amigo da família que dava refeição a Joaquim José e seus irmãos na

época em que estudavam em São João del-Rei, na escola de mestre Lucas.

Naquele momento, enquanto esperavam o horário do turno da tarde, Joaquim José

e Gracinda brincavam no pomar e, aos poucos, um forte sentimento foi se

apossando de seus corações: “Gracinda não lhe saía do pensamento um só

instante. Sonhava com ela dormindo, com ela sonhava acordado. Mais, na verdade,

acordado do que dormindo” (ALENCAR, 1981, p. 59).

Todos os domingos, Joaquim José ia à missa em São João del-Rei, em um

vistoso cavalo baio. Ele tinha muita fé na Santíssima Trindade, mas, junto à sua fé

cristã, havia o interesse de ver Gracinda na igreja, local em que os enamorados

trocavam olhares apaixonados. Depois da missa, o jovem rapaz ia à casa dos pais

de Gracinda, tomava café com biscoitos e sempre era convidado para o almoço.

Este foi um grande momento de sua vida, “pois o amor que o abrasava tinha muito

de verdadeiro culto, com a sua deusa e o seu altar. Amor de adolescência, puro,

absoluto, sem cálculos, capaz de todos os sacrifícios e referto de todas as

ingenuidades” (ALENCAR, 1981, p. 61-62). Eles não iam muito à chácara dos pais

de Gracinda, visitavam o local só de vez em quando: “E foi na chácara, uma tarde,

que os dois, vermelhos de confusão e trêmulos de medo, trocaram o primeiro beijo”

(ALENCAR, 1981, p. 64). Aqui, o narrador, em seu discurso carregado de

subjetividade e romantismo, aguça a imaginação do leitor, levando-o a se deliciar

com o idílio amoroso dos enamorados.

Nessa parte da narrativa, registra-se uma conversa entre Gracinda e o

namorado, em que são referidas algumas mudanças no aspecto físico de Joaquim

José, após os serviços na roça; ele ficara mais forte, pois o trabalho braçal exige

força e define os músculos do corpo; também o sol deixa a pele bronzeada:

Posto que um tanto magro, ostentava mesmo robustez. Mas o que sobretudo ostentava era decisão e firmeza, reveladas pelo queixo voluntarioso e pela boca enérgica, sombreada já pelo bigode nascente. O nariz aquilino harmonizava-se com a fronte ampla sob a cabeleira negra e ondulada, que se derramava quase até os ombros (ALENCAR, 1981, p. 63).

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Joaquim José aproveitou o momento e convidou a jovem para ir visitar o

Pombal com os pais dela. Estes aceitaram o convite. O dia foi maravilhoso para os

enamorados, pois tiveram oportunidade de passear pela fazenda, cuja paisagem era

belíssima: este foi “O DIA CERTAMENTE MAIS venturoso de toda a existência de

Joaquim José” (ALENCAR, 1981, p. 64). Visitaram o engenho de cana, o galinheiro,

o moinho, a horta, a pocilga, o paiol, o monjolo. Depois do almoço servido pelas

escravas, Alcobaça preferiu descansar enquanto d. Rosa, Gracinda e Joaquim José

foram conhecer os arredores da fazenda: foram ver as plantações, as betas de

exploração do ouro, o córrego em que os negros bateavam, o local onde as vacas

estavam sendo ordenhadas.

Nesse dia, Adão, um antigo escravo da fazenda, encontrou uma pepita de

ouro na beta mais alta do Pombal; Joaquim José presenteou Gracinda com o

precioso metal. Após agradecer o presente, a moça: “Lançou um demorado olhar de

agradecimento a Joaquim José e seguiram os dois na frente, a boa distância dos

outros, conversando a eterna conversa dos idílios, cortada de súbitos silêncios”

(ALENCAR, 1981, p. 65). A jovem deixou boa impressão às pessoas do Pombal: “As

escravas, na fazenda, elogiando os modos de Gracinda e a sua beleza, diziam na

cozinha umas às outras que aquilo ainda acabava dando em casamento e que iriam

ter uma nova sinhá-moça, não demoraria muito” (ALENCAR, 1981, p. 67).

Houve um momento em que Joaquim José tomou a decisão de cuidar de si e

trilhar um novo caminho, pois estava muito apaixonado por Gracinda e entendeu que

aquele amor ardente devia levá-lo ao matrimônio. Para realizar o sonho, fez algumas

reservas. Mais uma vez, para dar mais vida a este momento romântico da obra, o

narrador utiliza-se de subjetividade com linguagem poética:

Ao fim dos dias escaldantes do veranico de janeiro, o crepúsculo prolongava-se, a noite custava a chegar, as primeiras estrelas nunca mais que apareciam no azul profundo do céu sem nuvens. Logo que as sombras afinal se adensavam, Joaquim José mandava embora os negros e deixava-se ficar à beira do ribeirão (ALENCAR, 1981, p. 71).

Este é um momento em que o jovem apaixonado entrega-se ao sonho e à

imaginação; sozinho, deitava-se de costas na areia e aguardava que o ar

refrescasse com a vinda da brisa noturna. Ali, ouvia suavemente o coaxar dos

sapos, o cri-cri dos grilos, o canto da coruja, o murmúrio das águas que se

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deslizavam com monotonia, contemplava as estrelas e sonhava com sua eterna

amada.

Em um domingo, após a missa, falou de seus projetos com Gracinda; todavia,

ainda não fez alusão a casamento. Os pais da moça percebem o namoro e logo

começam reações contrárias, dando algumas indiretas, como, por exemplo, as

palavras de despedida da mãe da jovem: “– Já se vai? Pois até mais ver”

(ALENCAR, 1981, p. 74). A grande paixão por Gracinda venda seus olhos e, em um

primeiro momento, ele não percebe a rejeição dos pais da moça e continua

frequentando a casa.

A narrativa é permeada por discursos indiretos, diretos e indiretos livre; o

narrador dá voz às personagens, cujos diálogos levam o leitor a acreditar que os

fatos narrados estão mesmo acontecendo, aumentando seu interesse pelo

desenrolar das ações do romance. É preciso assinalar que a personagem Simplício,

escravo muito próximo a Joaquim José, participa mais intimamente da vida do

protagonista, havendo diálogos constantes entre eles. Considerado um “irmão” de

infância, o escravo acompanha Joaquim José em suas viagens, ouvindo-o tanto nos

momentos de alegria como nos de grande tristeza e, na maioria das vezes, faz

reflexões sobre as atitudes e decisões de Joaquim José, aconselhando-o. A bem

dessa informação, cita-se um diálogo do protagonista com Simplício, momento em

que Joaquim José toma a decisão de deixar a Fazenda do Pombal:

– Pois é, Simplício, já estou mesmo resolvido a deixar a fazenda, talvez no ano que vem, e ir de uma vez para a vila. O Pombal já não precisa de mim, tudo aqui vai bem... – Mas pode dar para trás, se você for embora. – Dá para trás não. O José já está homem, fica em meu lugar (ALENCAR, 1981, p. 75).

A decisão já está tomada e Joaquim José não voltará atrás, pois deseja viver

um grande amor com Gracinda. O jovem está seguro de já ter dado uma boa

contribuição à família: tomou a frente dos negócios ainda criança, quando os pais

faleceram, restaurou a fazenda e agora o irmão José continuaria os trabalhos.

Segundo o romance, há dois anos o irmão Domingos já se ordenara e, nesse

período, foi somente uma vez ao Pombal, não cumprindo a promessa que fizera de

ficar na fazenda ou atuar como padre em uma paróquia da vizinhança. Jamais

perguntara a Joaquim José se ele pretendia continuar à frente dos trabalhos da

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fazenda ou se tinha outros projetos para sua vida. Domingos sempre dizia: “– A

fazenda está em muito boas mãos...” (ALENCAR, 1981, p. 78).

Na metade do ano de 1767, já estava quase tudo pronto para Joaquim José

deixar o Pombal, mudar-se para a Vila de São João del-Rei, casar-se e viver a vida

com seu grande amor. Para realizar seu desejo, já havia combinado a entrega da

fazenda a seu irmão José, já comunicara o fato a sua tia Francisca e aos irmãos,

enfim, aos poucos, tomava todas as providências para deixar a fazenda sem haver

prejuízos materiais para a família. Desse modo, antes de completar 21 anos, deixa a

fazenda em plena prosperidade: “Assim como antes de tempo dera por encerrada a

infância, encerraria também precocemente a mocidade, deixando-a para trás, sem

ter colhido todas as alegrias de que ela se carrega. Ainda não havia completado os

vinte e um anos” (ALENCAR, 1981, p. 79).

Contudo, enquanto sua família acatava as decisões com alegria, o pai de

Gracinda, Venâncio, cada vez mais se desgostava com o namoro da filha. Então,

quando os pais da moça começaram a perceber que o envolvimento amoroso dos

jovens poderia resultar até mesmo em casamento, aos poucos, utilizaram-se de

estratégias para separá-los. Eram portugueses e vieram para o Brasil em busca de

fortuna. Embora Joaquim José fosse de boa família e de boa índole e já tivesse

condições de arcar com as despesas de uma casa, o Alcobaça considerava-o pobre

e, além disso, havia o preconceito contra os brasileiros.

A frieza dos pais da moça era tão grande que Joaquim José passou a

percebê-la em diferentes ocasiões, por exemplo, já não o convidavam mais para o

almoço de domingo; o café com biscoitos era servido com indelicadeza da parte de

d. Rosa, que já não deixava a filha e Joaquim José ficarem conversando na sala

com tranquilidade, gritando sempre com a moça: “– Ó Isabel, até quando ficas por aí

a dar com os dentes? Tu não sabes que ando cheia de serviço até aqui?”

(ALENCAR, 1981, p. 81). Enquanto falava, a portuguesa, irritada, levava a mão até a

garganta, para mostrar até onde o serviço a enchia. Os pais da moça também

deixaram de ir à missa dominical, na matriz de Nossa Senhora do Pilar. Gracinda,

em razão da brusca mudança de atitude dos pais e da proibição do namoro, sem

compreender o que se passava, vivia chorando pelos cantos da casa, com os olhos

vermelhos. Sobre a proibição, a moça disse a Joaquim José: “– Respondi que havia

jurado casar-me com você e que não me casaria com outro de maneira nenhuma”

(ALENCAR, 1981, p. 82). A atitude dela tranquilizou o namorado, o qual acreditou

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que, em algum momento, os pais compreenderiam o sentimento do casal e

aceitariam a união. Diante de outras atitudes de desagrado em relação à presença

de Joaquim José na casa de Gracinda, o rapaz decidiu oficializar o pedido de

casamento. Para tanto, solicitou a ajuda de um advogado, Lourenço Alves Miranda,

amigo do sr. Domingos – pai de Joaquim José – para fazer o pedido, mas “A

resposta, no sábado, foi uma recusa terminante” (ALENCAR, 1981, p. 87).

Como Joaquim José já esperava uma reação desse tipo do Alcobaça, não

ficou surpreso nem teve desgosto. Vale lembrar que, no último encontro com

Gracinda, eles já haviam decidido fugir para casar, se os pais não consentissem a

união. Naquela época, imediatamente, as pessoas ficavam sabendo o que acontecia

na vila: “Por toda parte só se falava no casamento malogrado. – O rapaz do Pombal

levou a tábua da filha do Alcobaça” (ALENCAR, 1981, p. 88). Muito consternado

com o que aconteceu com seu ex-aluno, mestre Lucas tomou para si a causa e

passou a organizar uma defesa, entre os moradores, a favor de Joaquim José. Mas

percebe-se que a recusa de Venâncio não era somente pelo fato de considerar o

moço pobre, pois “os portugueses ricos, ou simplesmente remediados, jamais

davam de bom grado as filhas aos nativos, ora alegando pobreza, ora alegando

mestiçagem” (ALENCAR, 1981, p. 88).

Por meio dessa passagem, o narrador levanta uma questão social até hoje

polêmica no Brasil: a discriminação racial. E já naquela época “A reação nativista

dava (...) os primeiros sinais de vida na capitania, onde passaram a ser vistos com

maus olhos os casamentos de portugueses com brasileiras” (ALENCAR, 1981, p.

89). Por conseguinte, se os portugueses não aceitavam que as filhas se casassem

com brasileiros, então também os rapazes portugueses não poderiam se unir às

moças brasileiras. No decorrer do tempo, essa reação se estendeu por toda a

Capitania de Minas Gerais, não só contra os portugueses, como também contra

outros estrangeiros, notadamente os recém-chegados.

Como naquela época os amores românticos despertavam a simpatia das

pessoas, sobretudo se os apaixonados estavam infelizes em razão da proibição dos

pais, surgiam muitas “alcoviteiras” para facilitar os encontros furtivos dos

apaixonados. A paixão era mais ardente quando proibida, e, quanto mais difícil a

possibilidade dos encontros, maior era o amor e a vontade de os apaixonados

ficarem juntos. Como haviam combinado de fugir, Joaquim José, de um lado, tratou

de conversar com o Padre Tiago de Assis, vigário da Vila de São José, para fazer o

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casamento logo após a fuga. Contudo, de outro lado, o pai de Gracinda armou um

plano: tomou a decisão de enviar a filha para Portugal com seu irmão e cunhada,

que já estavam, naquele momento, no Rio de Janeiro. Como Venâncio era um

português muito ambicioso, queria casar a filha com um primo, Miguel, para que a

riqueza ficasse em família: “Que tal se a Isabel fosse com eles para o reino? Já

venho pensando nisto há tempos, prevendo estas coisas. Ela vai, esquece logo o

namorico e casa-se por lá com o Miguel. O Miguel vai muito bem de vida, já tem a

sua quinta só dele e o Anselmo lhe deixará boa fortuna” (ALENCAR, 1981, p. 85).

Nesse momento, Joaquim José estava com tudo preparado para receber a

jovem esposa após o casamento: comprara uma casa na rua da Prata, os móveis já

estavam encomendados, já havia escolhido uma escrava do Pombal para servir o

casal, e o cômodo na casa para Simplício morar com eles já estava reservado.

Como fazia negócios de compra e venda de gado, precisava ainda de 15 dias para ir

a Tamanduá receber um dinheiro. Gracinda não queria que ele viajasse, estava com

mau pressentimento, mas o amante decidiu pela viagem. No último encontro, os

apaixonados se beijaram ardentemente: “Um beijo ardente, acaso o mais ardente de

quantos haviam trocado até ali, serviu de consolo à separação, que julgavam seria

tão somente de quinze dias” (ALENCAR, 1981, p. 96, grifos nossos). Nessa

passagem, o narrador deixa antever o malogrado desfecho da história de amor de

Joaquim José e Gracinda.

Mais uma vez, o narrador faz uma predição do que está para acontecer com

os enamorados. Depois de despedir-se de Gracinda, Joaquim José, na viagem de

volta para o Pombal, no mesmo altiplano em que gostava de parar e admirar a

paisagem do Brasil, teve um presságio: “(...) afigurou-se-lhe que via, feito num

sonho, a imagem de Gracinda, chorosa e magoada, suplicando-lhe com o olhar que

não fizesse a viagem, que voltasse para ela, que a levasse logo ao altar onde os

esperava a bênção da Igreja (...)” (ALENCAR, 1981, p. 96). Também, à noite, na

fazenda, a mesma imagem se repetiu. Mas nada o impediu de seguir seu propósito

e fazer a viagem. Na aurora do dia, partiu rumo a Tamanduá.

Ao retornar da viagem, ansioso por ver Gracinda, não mais a encontrou, pois

a amada seguira viagem com os tios para o Reino. Ficou hipnotizado e imóvel ao

receber a notícia. Emudeceu e seguiu seu caminho; não teve palavras nem para se

despedir das “comadres”. Um novo golpe para Joaquim José ainda viria nas

palavras de mestre Lucas: Gracinda partiu “– A fim de casar-se com o sobrinho do

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Alcobaça... É o que todo o mundo anda dizendo aí na vila” (ALENCAR, 1981, p.

100). Após ouvir o relato de mestre Lucas, pensou em procurar Alcobaça, mas

aquele o aconselhou a não ir ao Lago das Mercês, dizendo-lhe que era preciso ter

calma e juízo. Para acalmar o protagonista, o professor levou-o à casa do advogado

Miranda, que também reprovou a atitude do português. Após algum tempo, Joaquim

José “Regressou à Fazenda do Pombal e só Deus é que soube a noite de tormento

que passou. Só Deus e ele” (ALENCAR, 1981, p. 101). Durante toda a noite, tentou

encontrar respostas para o acontecido, buscando decifrar o enigma: Gracinda era

culpada ou não? Será que partiu obrigada ou por vontade própria? Mas “O mistério

só seria esclarecido se pudesse falar a Gracinda, se pudesse vê-la, se pudesse ler a

verdade nos olhos dela” (ALENCAR, 1981, p. 102).

Joaquim José viveu uma noite de horror; seu espírito lutou a noite inteira

entre o desespero e a esperança. Como estava muito apaixonado, venceu a

esperança. Então, ao raiar do dia, o rapaz já se encontrava a uma légua do Pombal,

rumo ao Rio de Janeiro. Em uma das paradas, durante a viagem, teve notícias de

um casal que seguia viagem com uma moça que parecia triste. Assim, Joaquim José

“Corria como quem, no meio das trevas ameaçadoras, corre para a luz que brilha ao

longe” (ALENCAR, 1981, p. 104). O narrador utiliza-se dessa bela metáfora para

mostrar que ainda havia esperança no coração de Joaquim José de encontrar

Gracinda e tudo se esclarecer. Mas, ao chegar à capital, em meio à encantadora

beleza natural da cidade, o mundo se desmoronou para o jovem apaixonado,

quando foi informado de que a fragata para Lisboa havia partido na antevéspera.

Faltou-lhe o ar para respirar, seus olhos não viam mais a luz, e, mais uma vez

emudeceu; uma grande tristeza invadiu seu coração, pois jamais iria desvendar o

grande mistério: Gracinda partiu por livre vontade ou foi obrigada pelos pais a seguir

um caminho com o qual nunca sonhara?

Essa passagem do envolvimento amoroso de Joaquim José e Gracinda é

uma ficção e, talvez, tenha sido calcada no depoimento de Tiradentes aos frades,

ocorrido na madrugada de 21 de abril de 1792; o amor romântico, nas narrativas

ficcionais, aumenta o interesse do leitor e causa muita emoção. O narrador utilizou

linguagem poética, muita subjetividade e imaginação para narrar esse episódio, que

mostra a personagem por dentro, seus sentimentos, suas emoções, diferentemente

do texto histórico, que apresenta as personagens objetivamente.

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O amor proibido vivenciado pelo protagonista de Tal dia é o batizado , bem

como a humilhação por que passou em São João del-Rei, também estão presentes

na novela Eu, Tiradentes , observando-se um jogo intertextual entre as duas

narrativas ficcionais:

Mais não conto, igual sucedido no meu tempo de rapazinho, naquele de mascateação, quando sofri, na carne, na alma, um amor proibido, em São João Del Rey, justo por razão da labuta daqui para ali, não possuir assentado negócio, enrolado diploma de doutor nalguma ciência. Como duvidar que ela me amava? Não mente coração: olhos confessam acima de palavra. Ela no idêntico padecer nossa separação, imagino. Resultado: acabo escorraçado, ameaçado de surra de bacalhau, por modo de pública humilhação, com fito de dessa forma não pisar jamais naquela cidade, que, aliás, me viu virar gente, em desde meu primeiro dia (MOTTA, 1990, p. 52-53).

Nesse relato, Joaquim José deixa transparecer que foi discriminado

socialmente, por não possuir negócio estável e pelo fato de não ser um homem

culto. Os narradores das duas obras, cada um a seu modo, mostram, na

representação, a humilhação pela qual Tiradentes passou quando era muito jovem,

momento em que ainda não estava estabelecido na vida. Como apresentado neste

subcapítulo, o narrador de Tal dia é o batizado criou uma bela história de amor,

utilizando-se de seu poder de criação, registrando o mesmo desfecho presente na

novela Eu, Tiradentes , ou seja, as duas narrativas apresentam a vivência de um

amor proibido, culminando em uma situação vexatória de Joaquim José. Torna-se

necessário ressaltar um ponto divergente entre as duas obras quanto à questão do

amor proibido de Tiradentes em São João del-Rei: em Tal dia é o batizado , o

romance entre Joaquim José e a mulher amada ocorreu antes de ele decidir

mascatear pelos sertões de Minas; já em Eu, Tiradentes , o episódio da paixão

amorosa acontece quando ele já viajava para fazer negócios.

O narrador de Tal dia é o batizado relata que, depois de ter sido abandonado

por Isabel Gracinda, Joaquim José voltou ao Pombal e, após duas semanas, já

estava dominando a crise. Decidiu deixar, definitivamente, a Fazenda do Pombal

para trilhar outros caminhos. No final do capítulo, mais uma vez, o narrador, ciente

de tudo o que vai acontecer, antecipa cenas do futuro da vida de Joaquim José: “E

partiu decidido em busca dos vastos sertões do norte, onde desapareceria, como o

Cristo, por muitos e muitos anos, misteriosamente, antes que um dia surgisse

pregando pela capitania, com destemor, o luminoso evangelho da liberdade

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(ALENCAR, 1981, p. 107). O narrador já antecipa que Joaquim José passará vários

anos de sua vida mascateando pelos sertões de Minas e que, depois de vários anos

na Cavalaria dos Dragões, surgirá como um messias pregando a liberdade do povo

brasileiro, hasteando uma bandeira de luta contra a Coroa portuguesa: emancipar o

país e instalar uma República, a fim de acabar com a opressão em que viviam os

brasileiros.

4.4 Joaquim José da Silva Xavier: um alferes do Reg imento dos Dragões da

Capitania de Minas Gerais – um olhar para a explora ção da colônia pelos

portugueses

Joaquim José da Silva Xavier perambulou pelos sertões durante 12 ou 13

anos, mascateando75, momento em que começou a germinar em seu pensamento o

projeto de emancipação, pois observou de perto a situação de miséria dos

habitantes da Capitania de Minas Gerais e as injustiças cometidas contra os

escravos. Em suas andanças pelo sertão, observava a vida das pessoas, a

humilhação por que passavam, sem recursos, fortalecendo “os projetos que trazia

em mente, ainda vagos e confusos, mas prestes a tomar corpo (ALENCAR, 1981, p.

112). Percebia também o estrago que a extração do ouro causava ao meio ambiente;

observava tudo, ligando fatos antigos aos novos, e tudo o levava a crer que era

necessário romper os laços que prendiam a capitania à metrópole. Nesse tempo em

que viajava pelos sertões, fazendo negócios, chegou a ser preso quando acudiu um

escravo que sofria maus tratos, uma cena relembrada na obra Eu, Tiradentes :

Numa dessa, sucede um capataz maçudo exemplar um negro; revido em cima do dito cujo de cara reinol. Soco sua branquela cara, depois surro com o relho de couro cru retorcido, o cujo, dele mesmo tomado, na raiva com tal injustiça em cima dum pobre coitado infeliz escravo. (...) Tal sucesso ocorreu na passagem pela Villa do Bom Sucesso das Minas Novas, parte de morada de meu futuro compadre, o Coronel Domingos, padrinho, mais tarde em Villa Rica, de batismo de minha pequena Joaquina. Ele agora de triste lembrança (MOTTA, 1990, p. 48).

(...) acabo preso, despojado, mal visto (MOTTA, 1990, p. 52).

75 Na 1ª Inquirição de S. M. Alberto da Silva e Oliveira Rolim, em Vila Rica, no Quartel de Infantaria, em 20 de fevereiro de 1790, este irmão do Pe. Rolim afirma: “o Alf. Joaquim José da Silva (Xavier), por alcunha o Tiradentes, que conheceu ainda do tempo em que andava mascateando por Minas Novas, ao qual desde antes de sentar praça não tornou a falar até agora; (...) (ADIM, 1981, p. 148, v. 3).

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Entre os diversos episódios vivenciados por Joaquim José da Silva Xavier e

apresentados na novela Eu, Tiradentes , este, em particular, chamou-nos a atenção:

ao presenciar um escravo sendo açoitado em praça pública, em Minas Novas,

Joaquim José interferiu, enfrentando, corpo a corpo, o português que cometia a

violência; por isso, foi preso e perdeu as poucas economias que possuía naquele

momento. Esse acontecimento lhe causou grande revolta e contribuiu para aumentar

sua vontade de criar uma República no país, acreditando que, se isso acontecesse,

libertaria também os escravos.

Na novela Eu, Tiradentes , o monólogo apresenta o escravo Lisauro

Benguela, em passagem que denota sua gratidão a Joaquim José por tê-lo livrado

de maus tratos em Minas Novas:

(...) Saído da cadeia, injustiçado, humilhado, arruinado de meus parcos haveres de trabalho, ganhame de vida, procurou-me achar, no cômodo onde pousava, recompondo força de regresso a Villa Rica, aparece na porta da casa o tal negro, o salvado por mim do bacalhau do capataz, já amarrado no tronco, descida a esfarrapada tanga que mal lhe cobria as partes pudentas. O tal negro, de nome Lisauro Benguela, me aparece com cordial convite de presenciar piedosa função lá deles africanos (...) Notei no convite modo de reconhecimento por minha intervenção no sobredito relatado açoitamento público (MOTTA, 1990, p. 97-98).

Interessante notar, na continuidade das confissões de Tiradentes aos frades,

que aparece em sua fala uma profecia, num evidente intertexto com diversas

passagens da obra Tal dia é o batizado , cujo narrador heterodiegético faz

predições a respeito do futuro de Tiradentes, entre elas seu desaparecimento, citado

nos episódios do espanhol, da Mãe Balbina, entre outros. Na novela Eu, Tiradentes ,

o protagonista entra em mínimos detalhes quanto às gesticulações de Lisauro e

nomeia uma entidade da crença africana – o gunucô –, a qual revela a Lisauro que a

morte de Joaquim José já estava prevista bem antes de seu envolvimento na

Inconfidência Mineira:

Dando por finalizada a cerimônia, a comedoria culmina de farta caça, fresca pesca, apreciada cachaça da cabeça, da excelente, surrupiada do alambique. (...) Mas, no caminho, indo [Lisauro] do meu lado, té um ponto dum corguinho correr, numa tronqueira dentro dágua, quando um vira para passar entre paus, meu novo amigo pára, me repara, fechado cenho, duro suspiro saído do fundo da caixa do peito; vai ver, era de enorme tristeza pelo destino dos seus semelhantes, do meu próprio em particular, que agora compreendo, o gunucô a ele Lisauro revelou minha morte na forca. Mais alguma coisa, juro, o negro escutou no bamburral, a respeito de minha destinação, da demora da liberdade clarear para todos, pode ser (MOTTA, 1990, p. 101).

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Desse modo, é possível inferir que as várias passagens do romance Tal dia é

o batizado com predições do narrador podem também ter sido respaldadas por

esses depoimentos de Tiradentes aos frades na madrugada do dia 21 de abril de

1792, lembrando que, na novela Eu, Tiradentes , as confissões apresentadas pelo

condenado constituem “o resultado de acuradas pesquisas76” do autor da obra,

Pascoal Motta.

No romance Tal dia é o batizado , o narrador dá voz ao escravo, que está

sempre conversando com Joaquim José sobre todos os assuntos, o que torna viva a

narrativa, devido aos diálogos constantes. Homem de bom coração, Joaquim José,

na vida clandestina, levava mais prejuízos do que lucros, sendo alvo das

advertências de Simplício: “De que vale mascatear? Se ganha numa troca, perde

noutra. E você tem tomado cada manta, que Deus me livre”. Ao que Joaquim José

respondia: “Simplício, nem só de pão vive o homem...” (ALENCAR, 1981, p. 109).

Nesse momento do romance, quando o escravo pergunta a seu senhor como ele vai

fazer se ficar doente e se não puder mais trabalhar, o narrador estabelece um jogo

intertextual com uma bela passagem bíblica: “– Deus ajudará. Passarinho não

trabalha e come. Os lírios do campo não fiam nem tecem e andam vestidos como

ninguém. Está na Bíblia. A Bíblia não mente...” (ALENCAR, 1981, p. 110). Essa

passagem encontra-se em Mateus (6, 26), e o narrador utilizou-a para mostrar o

desprendimento de Joaquim José com os bens materiais e em razão de sua grande

fé em Deus. O protagonista acredita que Deus sempre proverá aquilo de que ele

necessita para sua subsistência no mundo, não precisando, portanto, haver grande

preocupação com o futuro. A tradição religiosa está presente em toda a narrativa:

não só o pai de Joaquim José, como também o filho e outras personagens são muito

religiosos. O catolicismo, no século XVIII, esteve muito presente nas cidades

históricas da região de mineração. As suntuosas igrejas distribuídas nos altos dos

morros denunciam a fé religiosa da população nesses locais.

Depois do trabalho de mascate, Joaquim José trabalhou como pesquisador

de ouro e orientador das lavras, um assunto de que entendia bastante, mas passou

pouco tempo nessa função. Segundo o romance, houve um momento em que ficou

trancado por alguns dias em um quarto, fabricando umas ferramentas de metal e

76 REIS, Geraldo. Orelha de capa. In: MOTTA, Pascoal. Eu, Tiradentes : confissões do maior mito da História do Brasil. Belo Horizonte: Lê, 1990.

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adotou o ofício de dentista77, daí a alcunha Tiradentes. Essa habilidade, embora não

lhe rendesse quase nada, ajudou no relacionamento de Joaquim José com pessoas

de várias camadas da sociedade, em diferentes lugares. Além disso, por onde

passava, fazia curas com ervas e raízes (sobretudo doenças de pele) e pequenas

cirurgias78, tal como os padres faziam naquela época.

Algum tempo depois, conforme o romance, resolveu alistar-se no Regimento

dos Dragões da Capitania de Minas Gerais, ficando aquartelado em Vila Rica, como

alferes Joaquim José da Silva Xavier79. Nessa parte da narrativa, Joaquim José está

com 33 anos e possui as seguintes características:

Nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, dava-lhe a farda aspecto varonil e lia-se-lhe, na fronte ampla, nos olhos brilhantes e nos gestos decididos, a coragem, a generosidade, a ausência completa de dissimulação. Era loquaz e alegre, mas a alegria e a loquacidade não raro cediam lugar, de súbito, sem razão aparente, a longos momentos de tristeza e silêncio, durante os quais mergulhava os dedos na basta cabeleira, alisando-a, ou cofiava a densa barba, com o olhar perdido na distância (ALENCAR, 1981, p. 118).

Descrições como a apresentada pelo narrador ajudam o leitor a construir a

imagem da personagem, funcionando como um retrato falado do ser representado.

Trata-se de uma estratégia que dá mais vida à narrativa, pois é possível visualizar a

personagem com seus movimentos e plasticidade: Joaquim José passa os dedos

nos cabelos, alisando-os, e ainda é retratado com o olhar perdido na distância, como

se fosse real e estivesse ali olhando para o infinito. Esse perfil é fictício, pois,

conforme informações de documentos oficiais, não há uma descrição exata das

características físicas de Tiradentes: a imagem e representação da personagem se

fizeram por decreto governamental, conforme já visto anteriormente. Vale lembrar

77 A 14ª testemunha, em Vila Rica, em 3 de agosto de 1789, Vicente Vieira da Mota, fez uma referência a esse ofício de Joaquim José da Silva Xavier: “(...) e que, posteriormente precisando ele, testemunha, do préstimo e habilidade que o dito alferes tinha de tirar e pôr dentes foi por esta razão diferentes vezes à casa de João Rodrigues de Macedo, onde ele, testemunha, assiste (...)”(ADIM, 1981, p. 120, v. 4). O próprio Joaquim José, na 11ª Inquirição, no Rio de Janeiro, na Cadeia da Relação, em 15 de julho de 1791, fala desse seu ofício, quando lhe perguntaram quem eram as pessoas de maior representação que conhecia no Rio de Janeiro, ao que ele respondeu: “(...) que eram Possidônio Carneiro, e Antônio Ribeiro de Avelar, por ter ido à casa dos mesmos por conta da dita habilidade de pôr e tirar dentes” (ADIM, 1982, p. 73, v. 5). 78 Em depoimento prestado na Devassa, afirma “(...) que conhecia o dito padre de casa da dita viúva Inácia, pelo ter aí visto algumas vezes, quando ia curar sua filha, que julgava ser o dito parente daquela viúva (...)” (ADIM, 1982, p. 52-53, v. 5). 79 Na 1ª Inquirição, Rio de Janeiro, Ilha das Cobras, 22 de maio de 1789, Tiradentes respondeu “que se chamava Joaquim José da Silva Xavier, (...) e que era Alferes do Regimento de Cavalaria paga de Minas Gerais” (ADIM, 1982, p. 18, v. 5).

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que o quadro de José Wasth Rodrigues (FIG. 8) é aceito, na atualidade, como uma

das melhores representações iconográficas de Tiradentes:

Figura 8 – Alferes Joaquim José da Silva Xavier. Qu adro de José Wasth Rodrigues. Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro.

Fonte: ADIM, 1983, p. 15, v. 10.

No romance, por ser muito valente, coube a Joaquim José a ronda da Serra

da Mantiqueira, ligação entre Vila Rica e Rio de Janeiro: “Não se lhe [Tiradentes]

pode negar coragem. Quando comandava a ronda do mato, na serra da

Mantiqueira80, deu provas de muita bravura e conseguiu destruir a quadrilha de

80 Prova dessa atuação de Tiradentes é a <<Carta de Maria 1ª ao Alf.es Joaquim J.e da S.a X.er Commandante do Caminho do Rio de Janeiro>>, presente no livro de Registro de ordens da Junta,

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bandoleiros” (ALENCAR, 1981, p. 194). Naquele momento, estava havendo, no

local, muitos assaltos às diligências que transportavam o ouro. Os bandidos,

revoltados pelo mau exemplo das autoridades, agiam assim porque se encontravam

em extrema pobreza, justamente pela falta de compromisso dos governantes quanto

à organização do trabalho. Também essa fora uma experiência importante na vida

de Tiradentes para intensificar mais ainda o projeto de emancipação que já havia em

seu pensamento, visto que percebia os mesmos problemas em todos os lugares por

que passava: a escravidão, a madraçaria, a libertinagem e o total desgoverno da

capitania.

Contudo, houve um momento, no romance, em que Joaquim José resolveu

tirar uma licença para se dedicar à mineração; para isso, comprou várias sesmarias

em Simão Pereira81, à margem do Caminho Novo. Malogrado o negócio de

mineração, Tiradentes voltou para o Regimento dos Dragões. Estava insatisfeito82

porque, nas milícias, não passava de alferes. Os colegas que tinham alguma

“proteção” dos superiores mudavam rapidamente de patente, e ele só servia para

realizar trabalhos difíceis na corporação. O narrador do romance dá voz a Joaquim

José, para que ele externe sua mágoa pelo fato de ser sempre preterido:

– Esse governador Luís da Cunha Meneses é uma boa bisca! (...) Na hora das diligências perigosas é de mim que logo se lembra. Mas na hora das promoções, acha a outros que tenham comadres influentes ou lhe pareçam mais bonitos. O Valeriano Manso e o Fernando Vasconcelos, que foram meus soldados, já são tenentes. O Antônio José de Araújo, que foi meu furriel, já está feito capitão. – E o Tomás Joaquim? – Nem me lembrava mais... O Tomás Joaquim, que foi alferes comigo, já está também capitão83 (ALENCAR, 1981, p. 120).

para a Comarca do Rio das Mortes, aberto a 11 de Dezembro de 1777, de fls. 22 v. a 23 (ESTEVES, 1850). 81 Trata-se de um fato real no romance, pois Simão Pereira é um município situado na Zona da Mata Mineira, cuja origem remete ao ano de 1699, com a abertura do Caminho Novo: “(...) nessa ocasião só se falou em querer o mesmo alferes vender umas terras e lavras, que tinha nas cabeceiras do Paraibuna, afrontando a ele testemunha para as comprar; e se não tratou de mais coisa alguma; queixando-se unicamente o dito Alferes que tinha feito muitos serviços a Sua Majestade, e que nem por isso era premiado, por cujo motivo estava desgostoso deste país, presenciando toda esta conversação o Capitão José Maurício de Castro e Sousa (...)” (ADIM, 1976, p. 274, v. 1). 82 Essa insatisfação de Joaquim José é confirmada por ele na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, com as seguintes palavras: “(...) e que tendo projetado o dito levante, o que fizera desesperado, por ter sido preterido quatro vezes, parecendo a ele Respondente, que tinha sido muito exato no serviço, e que achando-o para as diligências mais arriscadas, para as promoções e aumento de postos achavam outros, que só podiam campar por mais bonitos, ou por terem comadres, que servissem de empenho (...)” (ADIM, 1982, p. 32, v. 5). 83 Na 4ª Inquirição, Rio de Janeiro, Ilha das Cobras, 18 de janeiro de 1790, Tiradentes cita os nomes dos colegas que foram promovidos, o que confere com os nomes apresentados no romance: “(...) porque o seu Furriel está feito Tenente, Valeriano Manso, (1) (...) Fernando de Vasconcelos, (2) que

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Percebe-se que o protagonista vivenciou no quartel uma injustiça: era um

excelente oficial das milícias, mas nunca era lembrado pelos seus feitos gloriosos.

Esse foi um motivo que muito contribuiu para que pensasse em colocar, de verdade,

em prática o projeto de libertar o Brasil de Portugal. Desse modo, Joaquim José da

Silva Xavier passou a se empenhar nessa ação, acreditando e fazendo com que

outros também acreditassem em seu grande sonho de constituir no Brasil uma

República, tal como acontecera recentemente com os Estados Unidos.

Tiradentes gostava muito de morar em Vila Rica, embora parasse pouco na

cidade em razão das tantas viagens que era obrigado a fazer como alferes do

Regimento dos Dragões. Segundo o romance, morava em casa própria na rua de

São José84 e tinha muitos amigos na região, cuja topografia montanhosa e a beleza

natural que a circunda são poeticamente exaltadas pelo narrador de Tal dia é o

batizado :

Vila Rica impressionava-o pela topografia atormentada, a majestade dos templos, as residências senhoriais, o casario denso subindo pela encosta das montanhas, as construções apoiando-se umas nas outras, as ruas tortuosas calçadas de pedras roliças ou de lajes brutas, os becos abertos entre os pesados muros de adobo das chácaras umbrosas. E as águas, tanto as que desciam dos morros como as do córrego do funil, serpenteando embaixo pelo vale, ele nunca vira outras tão leves e tão puras. Tinha a sua poesia o próprio nevoeiro que constantemente envolvia as serras circundantes, entre elas a do Itacolomi, com os dois rochedos do cume, os quais por tanto tempo haviam sido, na imensidade do sertão, o ponto de referência dos bandeirantes e dos aventureiros que o penetravam e desbravavam (ALENCAR, 1981, p. 123).

Embora não haja nenhuma referência no romance em estudo, percebe-se

que a descrição apresentada dialoga com a obra Cidade do sonho e da

melancolia , de Gilberto de Alencar (1971), referida neste estudo anteriormente na

correspondência de Renato Vianna para o escritor mineiro. Como já se viu, trata-se

de uma obra poética, em que o narrador faz uma verdadeira exaltação a Ouro Preto,

antiga Vila Rica, como demonstração da grande admiração que tem por essa

cidade. A Figura 9 comprova as palavras do narrador do romance Tal dia é o

batizado em relação à cidade histórica de Ouro Preto:

foi cadete seis anos, sendo ele Respondente já Alferes, está feito Tenente, Antônio José de Araújo, que era Furriel, sendo ele Respondente Alferes, está feito Capitão, e Tomás Joaquim, (3) que foi Alferes ao mesmo tempo em que ele Respondente, está feito Capitão da sua mesma companhia (...)” (ADIM, 1982, p. 32, v. 5). 84 A casa de Tiradentes situava-se na rua São José, atual rua Tiradentes (JOSÉ, 1985, p. 49).

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Figura 9 – Vista parcial de Ouro Preto, MG.

Fonte: Foto do Lala, 2013.

Na novela Eu, Tiradentes , também aparece uma descrição de Vila Rica, mas

sem o encantamento poético apresentado pelo narrador de Tal dia é o batizado ,

pois, na representação do depoimento aos frades, Joaquim José, a partir das

seguintes palavras: “Do escalavrado chão”, já inicia o discurso apontando a

destruição do solo da Capital em decorrência da extração do ouro e do crescimento

desordenado da cidade, porquanto, vinham pessoas de todos os lugares em busca

do precioso metal:

Do escalavrado chão, brota, cresce, floresce, mostra flor, fruto a Villa Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto. Enquanto sucede tal, homens se corrompem, se corrompe religião, se corrompe novo, se corrompe velho, pobre, rico, no tumultuado coração de cada vivente. A Villa sobe morro, desce morro, se espraia que nem tiririca no pasto; o povo se corrompendo, o povo se santificando, o povo catando, o povo plantando, o povo colhendo, o povo nascendo, o povo comprando, o povo vendendo, o povo crescendo, o povo morrendo; o povo em Villa Rica prenhe de suas virtudes, abastado de seus pecados. A Villa Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, de covardes, de heróis, de mulheres virtuosas, de mulheres perdidas, de negros suados, de mulatos famintos, de pés-rapados largados e; Villa debaixo de chicote, com todos os pobres no ai, ai, que nem negro escravo, todos, por um dominados, vexados; Villa Rica de gingantes mulatas, de ricos de lisas, rosadas mãos, de miseráveis de panela vazia, de estropiados de forçados trabalhos. Pobre Villa Rica (MOTTA, 1990, p. 42-43).

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O narrador, em seu monólogo, tal como em uma ladainha, vai mostrando

comportamentos sociais e atividades dos moradores de Vila Rica. Faz uma crítica

social ao governo: a falta de condições para a população viver com dignidade, a

dominação dos governantes, o estado de humilhação em que vivia o povo, a

situação dos escravos...

Assim, enquanto o narrador de Tal dia é o batizado descreve, poeticamente,

a bela Vila Rica, o narrador de Eu, Tiradentes , apesar de também se utilizar de

figuras de linguagem, traça um retrato do que se passa no interior daquelas

montanhas, já muito devastadas pelos moradores e forasteiros.

Em Vila Rica, conforme o romance Tal dia é o batizado , havia sempre festas

nos salões senhoriais, e, apesar de não apresentarem mais a pompa de outrora,

sempre havia o brilho, de acordo com as circunstâncias. Tiradentes era sempre

convidado para as festas. Como já havia observado o povo em suas andanças pelos

sertões de Minas e em suas viagens a serviço do Regimento dos Dragões, agora

prestava atenção na alta sociedade. Queria saber se havia insatisfação entre as

pessoas da classe alta quanto à situação de opressão em que se encontrava a

capitania. Em uma dessas festas, uma mulher chamada Ana85 interessou-se por ele:

Numa dessas festas, em que houve danças, notou que certa dama lhe dava atenção desusada, para não dizer que o requestava abertamente, apesar da sua frieza propositada. Soube tratar-se da filha de um sargento-mor do Tejuco, de passeio na capital. Era Ana de nome, bela de rosto e talvez escultural de formas, nos seus quinze ou dezesseis anos. Tiradentes não se emocionou (ALENCAR, 1981, p. 124).

Ana deu atenção a Joaquim José, mas, de acordo com o narrador, este não

se emocionou com a presença dela. Com base nessa citação do romance e após a

leitura dos Autos da Devassa, acredita-se que o autor se calcou em um fato real

85 Na 1ª Inquirição de S. M. Alberto da Silva e Oliveira Rolim, em Vila Rica, no Quartel de Infantaria, em 20 de fevereiro de 1790, quando lhe foi perguntado se, antes das prisões realizadas no Rio e em Vila Rica, ele estava disposto a tratar algum gênero de aliança ou parentesco com algum dos conjurados, ele respondeu que “absolutamente, nunca em tal se pensou nem tratou. E, quando lhe perguntaram se ele tinha alguma filha em idade de poder casar ele respondeu que: “tem uma filha por nome Ana (Clara Freire) a qual já está contratada a casar com o Cap. José Teodoro de Sá” (ADIM, 1981, p. 149, v. 3). Mas depois, quando de uma nova pergunta, os Juízes da Devassa afirmaram “que há notícia que ele, respondente, fora falado (ou se pretendeu falar) para convir em que aquela sua filha casasse com o referido Alf. Joaquim José da Silva; e assim já ele, respondente, fica sendo menos sincero nas suas respostas” (ADIM, 1981, p. 150, v. 3). O irmão do Pe. Rolim respondeu o seguinte: “que nunca tal pensou, nem se lhe falou. Nem ele respondente, jamais conviria em tal pelo conhecimento que tem da conduta e da morigeração do dito alferes – (...) não fica verossímel consentisse em tal casamento. Muito mais por se achar justa, a dita sua filha, com aquele Cap. José Teodoro” (...) (ADIM, 1981, p. 150, v. 3).

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ocorrido na vida de Tiradentes, para criar o idílio amoroso entre Gracinda e Joaquim

José apresentado anteriormente nesta análise.

No romance em questão, Joaquim José, muitas vezes, faz referência aos

“americanos ingleses”86, que se libertaram da Inglaterra pouco tempo antes de se

pensar na revolução na Capitania de Minas Gerais. Vale lembrar que esse fato

histórico foi a principal fonte de inspiração para a revolta. O cônego Luís Vieira da

Silva, residente em Mariana, deu a Joaquim José um livro em francês87, “traduziu

para o alferes vários trechos da Constituição adotada pela América do Norte livre”

(ALENCAR, 1981, p. 125) e, para continuar a leitura, o alferes conseguiu um

dicionário de francês emprestado com Salvador do Amaral Gurgel88. Tiradentes

sonhava com um Brasil livre89, com sua própria Constituição, enfim, uma República

com homens brancos, negros e índios livres.

No romance, os anos se passaram. Tiradentes já tinha mais de 40 anos e não

havia atingido ainda estabilidade na vida, pois falharam todas as tentativas dele

nesse sentido. Cada vez mais, crescia nele “a revolta causada pelas injustiças de

que era vítima e pela opressão em que se encontrava o povo de Minas e do resto do

Brasil” (ALENCAR, 1981, p. 126). Continuava na milícia, porque, bem ou mal, o

soldo lhe ajudava nas despesas, mas sempre era necessário completar com algum

outro trabalho. Tinha a intenção de abandonar esse ofício e buscar um novo trabalho

que lhe rendesse mais, para que pudesse viver com mais decência e conforto. O

narrador aproveita essa passagem do romance para fazer menção a dois filhos de

Joaquim José90, afirmando que o alferes não se envergonhava dos filhos naturais,

86 A 11ª testemunha (em Vila Rica), José Vasconcelos Parada e Sousa, em 30 de julho de 1789, afirma que ouviu o seguinte do tenente de seu Regimento José Antônio de Melo: “(...) o referido alferes, entrando em certa ocasião em casa dele, dito tenente lhe dissera na conversa que com ele teve, (...) – Que se deviam lembrar do que fizeram os americanos ingleses e que logo subsistiram na sua liberdade. Como eles, teriam ouro para os fins ainda referidos e até os mesmos ofícios que havia nesta Capitania, que de justiça se deviam dar aos nacionais e não aos europeus (...)” (ADIM, 1981, p. 103-104, v. 4). 87 Luiza Lobo (2005, p. 110), na obra intitulada Épica e modernidade em Sousândrade , afirma que “As Leis constitutivas da Independência das colônias norte-americanas, por exemplo, faziam parte da biblioteca particular de Tiradentes”, confirmando que ele possuía esse livro. 88 Na 6ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 14 de abril de 1791, Tiradentes confirma o empréstimo do dicionário presente no romance: “E que com Salvador do Amaral Gurgel falou poucos dias antes de partir para esta cidade; por ocasião de lhe pedir um dicionário francês; porque antes disso o não conhecia; (...)” (ADIM, 1982, p. 49, v. 5). 89 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Tiradentes confirma que o país poderia ficar independente: “porque poderia assim suceder, que esta terra se fizesse uma República, e ficasse livre dos governos [de Portugal]” (ADIM, 1982, p. 33, v. 5). 90 Na obra intitulada Confidências de um inconfidente , de Marilusa Moreira Vasconcellos (1983, p. 176), há a seguinte informação: “(...) o alferes Xavier tinha o amor de Eugênia Maria de Jesus, que lhe dera um filho de nome João Antônio, mas andava de carinhos com a filha de uma senhora viúva

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pois: “Os homens que na capitania não se encontravam em condição idêntica à sua

eram tão raros que na verdade poderiam ser apontados a dedo” (ALENCAR, 1981,

p. 126). Nessa passagem, o narrador, mais uma vez, faz um juízo subjetivo discreto

sobre a questão moral na capitania, pois, a seu ver, quase todos os homens eram

pais solteiros, uma situação preocupante no local, em razão da construção das

famílias e da religiosidade, que era muito presente em Vila Rica, como já se viu.

Houve um momento, na narrativa, em que Tiradentes passou alguns dias no

Rio de Janeiro91, a serviço do Regimento dos Dragões. Ele achava precário o

abastecimento de água dessa cidade e teve a ideia de apresentar ao vice-rei, Luís

de Vasconcelos, um projeto para melhorar o atendimento de água à população,

fazendo um desvio dos rios Andaraí e Maracanã, acreditando que, com a concessão

da obra, poderia ganhar muito dinheiro. Ficou por um bom tempo pensando na

possibilidade de executar o projeto e, com o intuito de realizá-lo, pediu uma licença

de dois meses92, a fim de tentar colocar em prática o plano no Rio de Janeiro: “–

Vou-me com os dois meses. Se prorrogarem, muito bem. Se não prorrogarem, tanto

faz... Corria o ano de 178893 e eram os últimos dias de março. (...) e o alferes

Joaquim José da Silva Xavier, deixando Vila Rica, tomou o rumo do Rio de Janeiro”

de nome Maria José e a filha desta, Antônia, lhe dera uma menina por nome Joaquina”. Registra-se que se trata de uma obra psicografada por uma medium respeitada; entretanto, não podemos endoçar, sem maiores provas, a afirmação aqui presente. Também na obra intitulada Tiradentes , de Oiliam José (1985, p. 49-50), há a seguinte informação a respeito dos filhos de Joaquim José: Joaquina, a filha de Tiradentes, vivia juntamente com sua mãe, a menor Antônia Maria do Espírito Santo, em Vila Rica, à época da Conjuração: “(...) Também a Tiradentes atribuem a paternidade do soldado João de Almeida Beltrão, que residiu, organizou família e faleceu no então arraial do Indaial, depois Dores do Indaiá. Teria ele, segundo escreveu Assis Rocha, no ‘Minas Gerais’, entre 12 e 15 de fevereiro de 1923, por mãe Eugenia Maria de Jesus ou Eugenia Joaquina da Silva, outra companheira do Alferes em Ouro Preto e senhora de expressiva beleza e longa existência, pois morreu aos 121 anos de idade. Beltrão fora, criança ainda, levado ao Indaial, pouco depois da captura do pai como envolvido na conjuração, e, ali, recebido como filho de um bacharel em leis”. Mas é preciso registrar que Oíliam José, em nota explicativa, informa que essa paternidade é contestada e que, portanto, o assunto requer comprovação e análise. 91 Fato comprovado na seguinte citação de Maxwell (2005, p. 144): “Conhecia bem o Rio, pois ali estivera com as forças militares enviadas por Minas Gerais para ajudar a defesa da cidade em 1778”. 92 A Certidão das licenças concedidas ao alferes Joaquim José da Silva Xavier para viagens ao Rio (Vila Rica 10-10-1789) mostra que, de fato, a licença de dois meses, com prorrogação de mais dois meses, foi concedida a Tiradentes: “Certifico que Joaquim José da Silva Xavier, Alferes da 6 Companhia do dito Regimento, saiu desta capital para o Rio de Janeiro em 2 de março de 1787, com dois meses de licença, e depois teve mais dois meses de prorrogação, concedida pelo Excelentíssimo Senhor Luís da Cunha Meneses (...) até que se apresentou no Regimento em 28 de agosto de 1788” (ADIM, 1976, p. 293, v. 1). 93 O depoimento de José Álvares Maciel mostra que está correta a data apresentada pelo narrador do romance: “(...) em que ele Respondente chegou de Portugal, e se passava para Minas, que foi pouco mais ou menos no mês de agosto, ou setembro do ano de mil setecentos e oitenta e oito (...) (ADIM, 1982, p. 328-329, v. 5).

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(ALENCAR, 1981, p. 128). Embora tivesse tirado uma licença de apenas dois

meses, acabou ficando na capital durante quatro meses.

No final da Quarta Parte da narrativa, o alferes ainda se encontra na capital.

O narrador faz mais uma predição, referindo-se ao encontro de Joaquim José da

Silva Xavier com José Álvares Maciel no Rio de Janeiro, tratados, respectivamente,

como explosivo e fagulha: “O explosivo ia ao encontro da fagulha”. O encontro e o

bom entendimento dessas personagens darão início ao projeto de Tiradentes para a

libertação da capitania e do país do domínio português: a Inconfidência Mineira.

4.5 Inconfidência Mineira: o sonho de tornar o Bras il uma República

“Havia cerca de quatro meses que Tiradentes se encontrava no Rio de

Janeiro” (ALENCAR, 1981, p. 129). Entregou ao vice-rei os papéis referentes a um

projeto de águas94 que pretendia executar, desviando o curso dos rios Andaraí e

Maracanã para o centro da cidade.

Joaquim José já estava para regressar a Minas quando ficou sabendo que

chegara da Europa o Dr. José Álvares Maciel95, jovem de 28 anos, com quem

travou, pela primeira vez, uma conversa sobre o plano de emancipação da colônia.

O moço era cunhado do comandante de Tiradentes, o tenente-coronel Freire de

Andrade. O alferes informa ao Dr. José Álvares Maciel que aquela foi a primeira vez

que ele falava de seu segredo para outra pessoa: “Quero confiar-lhe um segredo

que até agora não ousei manifestar a ninguém, por não haver ainda quem pensasse

94 Na 1ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 22 de maio de 1789, quando lhe perguntaram o motivo de ter ido ao Rio naquele momento, ele respondeu: “que viera a esta cidade para a informação de três requerimentos, um a respeito de umas águas, outro de um trapiche, e outro sobre o embarque e desembarque de gados (...)” (ADIM, 1982, p. 21, v. 5). Apresenta-se também um trecho do depoimento da 15ª testemunha, José Antônio de Melo: “(...) e mostrando-lhe uns papéis que trazia, com despachos do Conselho do Ultramar para informar o Excelentíssimo Vice-Rei do Estado, dizendo que eram sobre umas águas que ele, dito Alferes, pretendia meter na Cidade do Rio de Janeiro (...)” (ADIM, 1976, p. 183, v. 1). 95 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Tiradentes confirma que falou pela primeira vez sobre o levante com o Dr. Álvares Maciel, recém-chegado da Inglaterra: “(...) que a primeira pessoa a quem falou, propondo-lhe o intento da sublevação, e motim foi nesta cidade a José Álvares Maciel, filho do Capitão-Mor da Vila Rica, o qual aprovou o projeto da premeditada sublevação, e motim, e nesta Cidade do Rio de Janeiro (...)” (ADIM, 1982, p. 32, v. 5). Essa passagem do romance é confirmada também por José Álvares Maciel, na 1ª Inquirição, Rio de Janeiro, Fortaleza de Villegagnon, em 26 de novembro de 1789: “Respondeu, que a primeira vez que ouviu a má proposição, de que a Capitania de Minas Gerais havia de ser independente e livre, foi ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha – o Tiradentes – nesta Cidade do Rio de Janeiro, na ocasião, em que ele Respondente chegou de Portugal, e se passava para Minas, que foi pouco mais ou menos no mês de agosto, ou setembro do ano de mil setecentos e oitenta e oito (...)” (ADIM, 1982, p. 328-329, v. 5).

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como eu a respeito do futuro do Brasil. O senhor é o primeiro...” (ALENCAR, 1981,

p. 130).

Ainda nesse encontro com José Álvares Maciel, falou-se do estudante

brasileiro, José Joaquim da Maia96, que procurou o embaixador dos Estados Unidos

na França, a fim de pedir ajuda para libertar o Brasil de Portugal, pois,

recentemente, os americanos ingleses tinham conseguido sua independência. No

romance, estas são as palavras de Maciel a respeito da atitude de Maia: “– Estava

estudando na França e escreveu ao embaixador Jefferson, que lhe concedeu uma

entrevista na cidade de Nimes. O embaixador protelou a resposta ao pedido e Maia;

pouco depois, quando regressava ao Brasil, morreu em Lisboa, levando seu

segredo” (ALENCAR, 1981, p. 133). Maia usou o pseudônimo Vendek em sua

correspondência.

Assim, a Inconfidência Mineira, no romance Tal dia é o batizado , nasce com

um diálogo entre Joaquim José da Silva Xavier e José Álvares Maciel. A revolta,

como já se viu, constitui um fato histórico de capital importância para o povo

brasileiro, por ter sido o primeiro movimento em que se pensou na emancipação

política do Brasil. No momento em que o país era colônia de Portugal, a população

era explorada e vivia sem dignidade, pois toda a riqueza era encaminhada para o

Reino. Naquela época, quando era extraído muito ouro e diamante na Capitania de

Minas Gerais, era enorme a sujeição às rigorosas leis de Portugal. Os vice-reis e os

governadores exerciam grande pressão sobre o povo para que fossem retirados do

solo brasileiro todos os recursos necessários ao bem-estar dos portugueses.

No romance, Tiradentes deixou o Rio de Janeiro a 12 de agosto de 1788 e

chegou a Vila Rica no dia 27 desse mês. Nessa viagem, ele e o escravo Simplício

96 Há possibilidade de Maia ter sido credenciado pelos comerciantes do Rio de Janeiro para entrar em contato com Jefferson. Maia fazia parte do grupo de brasileiros que estudava em Coimbra os quais apertaram as mãos no início da década de 1780 e juraram dedicar-se à causa da independência do Brasil. O estudante brasileiro estudava na Faculdade de Medicina de Montpellier, em 1786. Jefferson respondeu a Maia que não tinha autoridade para assumir um compromisso dessa monta e que só podia falar em seu próprio nome, pois naquele momento, os Estados Unidos não poderiam entrar em uma guerra e também essa nação queria ter um bom relacionamento com Portugal. Contudo, o embaixador americano esclareceu que uma revolução vitoriosa no Brasil “não seria desinteressante para os Estados Unidos e a perspectiva de lucros poderia, talvez, atrair um certo número de pessoas para a sua causa e motivos mais elevados atrairiam oficiais (...)” (MAXWELL, 2005, p. 101). Registra-se que o autor se fundamentou em fontes documentais legítimas, segundo informação em notas explicativas: ADIM (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 7 vols. 1936-8) II, 81-95 e 84-8, II, 40; Jefferson a Mr. Jay, Marselha, 4 de maio de 1787, Anuário do Museu da Inconfidência , II, (1953) 17, Ouro Preto, Minas Gerais.

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pernoitaram na casa de José Aires Gomes97: “– Vamos pousar hoje na Borda do

Campo, Simplício. Sou velho amigo do coronel Aires Gomes” (ALENCAR, 1981, p.

138).

Nesse encontro, em conversa com Aires Gomes98, quando este perguntou ao

alferes pelo Visconde de Barbacena, o coronel obteve a seguinte resposta:

Pois olhe, coronel, tomara que seja um demônio ainda pior que o outro Luís, o danado do Cunha Meneses! E com certeza há de ser mesmo... (...) O senhor então não sabe que esses governadores e generais que vêm do reino são todos mais ladrões uns do que os outros? (...). – Não tarda que se funde aqui uma república e que se mande barra fora toda essa corja! (ALENCAR, 1981, p. 139).

No dia seguinte, pernoitaram na Fazenda do Registro Velho, pertencente ao

Pe. Manuel Rodrigues da Costa99.

Segundo o romance, no momento em que começaram as reuniões para a

conspiração que pretendia derrubar a tirania, o governador da Capitania das Minas

Gerais era Luís Furtado de Mendonça, o Visconde de Barbacena. Mas este, como o

seu antecessor, desinteressava-se do bem-estar do povo. O narrador do romance

informa que o Visconde ficava retirado em Cachoeira do Campo, repousando,

jogando, estudando e aguardava o melhor momento para lançar a derrama100,

97 Essa passagem é confirmada por Tiradentes, na 6ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 14 de abril de 1791, quando lhe perguntaram de que forma esteve com Aires Gomes: “(...) a José Aires falara recolhendo-se desta cidade [Rio de Janeiro] para Minas (...)” (ADIM, 1982, p. 47, v. 5). 98 Segundo depoimento de José Aires Gomes, de 28 de julho de 1789, em Vila Rica, Tiradentes disse as seguintes palavras, quando de passagem em sua fazenda: “’Antes ele [o Visconde de Barbacena] fosse o diabo, e ainda pior que o Excelentíssimo Luís da Cunha Meneses, porque não havia cá necessidade de Generais, e pode ser que isto viesse a ficar uma República’” (ADIM, 1976, p. 183, v. 1). A testemunha informou ter ficado admirada, tendo repreendido o alferes pelas suas palavras. No depoimento de Aires Gomes, este informa que Tiradentes estava em companhia de Pedro José de Araújo de Saldanha, Desembargador e Ouvidor da Comarca de Vila Rica. Também Tiradentes, ainda na 6ª Inquirição, confirma suas palavras quando o amigo lhe perguntou pelo Visconde de Barbacena: “(...) antes ele fosse um demônio; porque disporiam as coisas ao estabelecimento de uma República (...)” (TOSTO; LOPES, s./d., p. 96). Registra-se que Tosto e Lopes partilham da mesma informação presente no texto ficcional de Gilberto de Alencar, certamente fundamentados em fontes documentais legítimas. 99 Em seu depoimento, 6ª Inquirição, Tiradentes confirma ter-se encontrado com Rodrigues da Costa ainda nessa viagem de volta do Rio de Janeiro: “(...) E que ao Padre Manuel Rodrigues da Costa falara por mais ou menos por esta mesma forma, e com as mesmas palavras (...) E que, estas conversas, que teve com esses dois sujeitos, foi recolhendo-se desta cidade por dias do mês de agosto (ADIM, 1982, p. 48, v. 5). 100 Cobrança violenta de 500 arrobas de ouro que a capitania de Minas Gerais estava devendo à Metrópole.

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Embora já houvesse recebido ordens da Rainha101, D. Maria I, o Visconde de

Barbacena estava postergando, uma vez que ele mesmo tinha consciência de que o

ouro estava escasso, fato que já havia comunicado ao Ministro de Portugal.

Em dezembro de 1788, após alguns dias em casa, por ter machucado o pé,

Tiradentes foi à casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade102,

na rua Direita, e, mais uma vez, enumerou os problemas que levavam a capitania à

decadência: “(...) a pobreza dos geralistas, as exigências cada vez mais rigorosas do

fisco, o descalabro geral” (ALENCAR, 1981, p. 145), objetivando acelerar o processo

do levante. Ainda na casa de Freire de Andrade, lembrou a seu comandante que,

em 1775, a capitania das Minas Gerais enviou 6 mil recrutas para as guerras do

Prata103.

No momento da conversa com Freire de Andrade, em Tal dia é o batizado , o

comandante do regimento lembrou que o Visconde de Barbacena trouxera ordens

severas para lançar a derrama e que, em Lisboa, as autoridades estavam

aborrecidas com o atraso no pagamento dos quintos; por essa razão, tinham

ordenado ao intendente Pires Bandeira que requeresse derrama. De acordo com as

personagens do romance, isso seria bom, pois a cobrança dos impostos atrasados

aumentaria o descontentamento da população e facilitaria, sobremaneira, a revolta.

As reuniões dos inconfidentes eram realizadas na casa de Freire de

Andrade104 ou de Domingos de Abreu Vieira105. A Figura 10, a seguir, ilustra um dos

locais onde ocorriam as reuniões dos inconfidentes:

101 Tomás Antônio Gonzaga, na 1ª Inquirição, realizada no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 17 de novembro de 1789, confirma essa passagem histórica, presente em de Tal dia é o batizado : “Sexto, porque tendo chegado ordem de Sua Majestade para se lançar a derrama, ele réu Respondente disse ao Intendente de Vila Rica, Procurador da Coroa, que o tributo era grande, e que temia alguma revolução no povo” (ADIM, 1982, p. 209). 102 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Joaquim José afirma que, realmente, esteve na casa desse tenente-coronel, fazendo referência aos problemas da população: “(...) estava doente de um pé (...) sucedeu passar ele Respondente por casa do dito tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada (...) e ultimamente todos convieram em que se fizesse a sedição, e levante, fundamentados na derrama, a qual causava um desgosto geral aos povos (...)” (ADIM, 1982, p. 34-35, v. 5). Registra-se que, no romance, Gilberto de Alencar utilizou a palavra Andrade na designação do nome do tenente-coronel, não correspondendo, portanto, ao nome real da personagem histórica, ou seja, Andrada. 103 De acordo com Maxwell (2005, p. 86): “Durante os últimos anos da década de 1770, no regime de ajuda recíproca de capitania a capitania, tropas de Minas Gerais foram enviadas para o sul e para o Rio”. Registra-se que o autor, para esta afirmação, além de outras fontes, utilizou o livro intitulado A Capitania de Minas Gerais, origens e formação , de Augusto de Lima Júnior, 3ª edição, Belo Horizonte, 1965. 104 Apesar de estar bastante implicado na conjuração, Francisco de Paula Freire de Andrada, tenente-coronel do Regimento de Cavalaria paga da Capitania de Minas Gerais, foi um dos primeiros denunciantes da revolta, em carta dirigida ao Visconde de Barbacena, escrita em 17 de maio de

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Figura 10 – Casa de Reunião dos Conj urados – Ouro Preto.

Fonte: JOSÉ, 1985, p. 57.

Em razão da proximidade da cobrança dos impostos atrasados, no romance,

foi feita uma reunião na casa do comandante para apresentação do plano do levante

e pormenores de sua execução, da qual fizeram parte Álvares Maciel, Freire de

Andrade, os padres Carlos Toledo e Rolim, Tiradentes, Alvarenga Peixoto106.

1789. Ele informa sobre reuniões do grupo em sua casa, mas não assume seu envolvimento na sublevação: “(...) no mês de janeiro foram à casa dele, testemunha, o Cel. Inácio José de Alvarenga (Peixoto), o alferes Joaquim José da Silva Xavier e o vigário da Vila de São José, Carlos Correia de Toledo e feitos os primeiros cumprimentos, passaram os ditos a tratar do estado atual deste país, das suas produções e motivos da total decadência dele: que poderia ser muito feliz se fosse habitado por outra qualquer nação que não fosse a portuguesa, porém de semelhante conversação não fez ele, testemunha, caso nem lhe pareceu misteriosa. Que passados alguns dias tornaram os sobreditos Cel. Alvarenga, Alf. Joaquim José da Silva Xavier e vigário Carlos Correia de Toledo à casa dele, testemunha, e pouco depois deles, entrou também o Pe. José da Silva (e Oliveira) Rolim, e tornando todos à antecedente conversação, acrescentaram que os povos se achavam aflitos e consternados com a notícia da derrama; e que até se lembrariam de formar uma sublevação se não temessem a oposição da tropa (...)” (ADIM, 1981, p. 162-163, v. 4). 105 No depoimento do tenente-coronel Basílio de Brito Malheiro do Lago, em 28 de julho de 1789, como 9ª testemunha em Vila Rica, ele informa onde aconteciam as reuniões dos inconfidentes: “(...) posteriormente também ouviu dizer pública e geralmente que, estando nesta vila o Pe. José da Silva e Oliveira Rolim, também se ajuntavam os sobreditos em casa do Ten. Cel. Domingos de Abreu Vieira, de quem o dito padre era hóspede nesta vila” (ADIM, 1981, p. 95, v. 4). O próprio Domingos de Abreu Vieira, no dia primeiro de setembro de 1789, como 25ª testemunha em Vila Rica, confirma que houve reuniões em sua casa para tratar de assuntos relativos à revolta: “Sendo daí a dois dias, pouco mais ou menos, com os ditos alferes Joaquim José da Silva Xavier e Pe. José da Silva e Oliveira Rolim, se juntou em casa dele, testemunha, o Ten. Cel. da tropa paga desta Capitania, Francisco de Paula Freire de Andrada, e tornaram todos os referidos a falar na presença dele, testemunha, na sublevação e motim que pretendia fazer-se nesta Capitania (...)” (ADIM, 1981, p. 180, v. 4). 106 Alvarenga Peixoto era casado com D. Bárbara Heliodora, que nascera na Vila de S. João del-Rei, onde residia o casal. A filha Efigênia era, carinhosamente, chamada pelos pais de Princesa do Brasil, epíteto por que, no romance, era conhecida dos amigos mais chegados (Disponível em:

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Tiradentes, ao apresentar o plano do levante aos participantes, “(...) reclamava para

si o papel de maior perigo, encontrando-se disposto a enfrentar todos os riscos que

se apresentassem, ainda que, em sua opinião, tudo devesse correr bem”

(ALENCAR, 1981, p. 154). E no desenrolar das atribuições, surgiu a seguinte

indagação: “– E o Visconde de Barbacena?”. Então o alferes disse que iria a

Cachoeira do Campo prendê-lo, quando, de repente, ouve-se uma fala, cuja autoria

ficou incógnita: “– Melhor seria cortar-lhe logo a cabeça!107”. Tiradentes olhou a sua

volta, não conseguiu identificar de quem partiu a sugestão, mas logo foi contra a

ideia: “– Cortar a cabeça, não! Virá preso para aqui e daqui o enviaremos, com a

viscondessa e filhos, até o Paraibuna, dizendo-lhe que já não precisamos cá de

generais, porque os mazombos podem governar-se por si mesmos” (ALENCAR ,

1981, p. 155, grifos nossos).

Ainda nessa reunião, foi abordado como seria a bandeira da República. Por

meio da posição de Joaquim José, percebeu-se que a devoção dele era muito

grande, tanto que na bandeira da República, com a qual tanto sonhava, exigiu que

houvesse um triângulo como símbolo da Santíssima Trindade108, alegando ser o

http://www.colegioweb.com.br/trabalhos-escolares/literatura/arcadismo/alvarenga-peixoto.html. Acesso em: 5 jul. 2013). 107 A afirmação de que Tiradentes iria “cortar a cabeça do Visconde de Barbacena” é recorrente nos depoimentos das testemunhas nos Autos da Devassa. Domingos Vidal de Barbosa, 27ª testemunha, em 13 de julho de 1789, em Vila Rica, informa, em seu depoimento: “Que também tinham assentado que o Alferes Joaquim José da Silva Xavier fosse à Cachoeira e matasse o Excelentíssimo Senhor General; e que, trazendo a cabeça, a havia de mostrar ao povo, subindo a um lugar alto e dizendo: ‘Este era quem nos governava; de hoje em diante viva a República’” (ADIM, 1976, p. 215, v. 1). Também o segundo denunciante da Conjuração, o tenente-coronel Basílio de Brito Malheiro do Lago, em uma carta dirigida ao Visconde de Barbacena, em 15 de abril de 1789, informa que: “(...) a primeira cabeça que se havia de cortar, principiada que fosse a dita sedição e motim, era a do Ilmo. e Exmo. Visconde de Barbacena, Governador e Capitão General desta Capitania, que o dito Alf. Joaquim José da Silva Xavier era quem depois de dado este mortal golpe, havia de trazer a dita cabeça à parada” (ADIM, 1981, p. 99, v. 4). Mas, em seu depoimento, Tiradentes nega ter concordado em cortar a cabeça do Visconde de Barbacena. Será apresentada a fala de Joaquim José da Silva Xavier sobre essa questão, na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790: “(...) e só conservou, e conserva na memória as coisas principais, em que se assentou, como foi, o ir ele Respondente a Cachoeira prender o general, e fazê-lo conduzir com a sua família para fora do Distrito de Minas, dizendo que fosse embora, e dissesse em Portugal, que já cá se não carecia de governadores; esta foi a última resolução (...)” (ADIM, 1982, p. 36, v. 5). Nos Conclusos, Rio de Janeiro, 18 de abril de 1792 – Acórdão dos Juízes da Devassa, os juízes não acreditam nessa confissão de Tiradentes sobre a possibilidade de o Visconde de Barbacena poder ir embora sem que nada lhe acontecesse. Para eles, Joaquim José queria somente amenizar seu crime: “(...) parecendo-lhe talvez que com esta confissão ficaria sendo menor o seu delito” (ADIM, 1982, p. 205, v. 7). Mesmo não havendo certeza sobre essa questão, porquanto os depoimentos presentes nos Autos da Devassa foram permeados por omissões, esquecimentos, mentiras, falsidades..., pode-se afirmar que o depoimento de Tiradentes está em harmonia com seu pensamento no romance Tal dia é o batizado . 108 Esse desejo de Tiradentes é confirmado por meio de seu depoimento na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790: “(...) E falando ele Respondente que

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Brasil um país católico: “– De uma única coisa faço questão absoluta. Posso abrir

mão de tudo, menos disso. A bandeira terá um triângulo, simbolizando a Santíssima

Trindade. É um voto que fiz...” (ALENCAR, 1981, p. 156). O dístico adotado foi o

seguinte verso de Virgílio: Libertas quae sera tamen109. A senha dos inconfidentes,

para que todos pudessem saber a data da sublevação, era “tal dia é o batizado”110 e

foi escolhida pelo comandante dos Dragões Freire de Andrade. A Figura 11 ilustra

esta passagem do romance quanto à bandeira idealizada por Joaquim José:

Figura 11 – Bandeira de Minas Ge rais.

Fonte: BORGES, 201 3.

Ao terminar a reunião em que foram feitos diversos ajustes para a

conspiração, Tiradentes sai em companhia de Alvarenga Peixoto e decide

acompanhá-lo até a praça, ocasião em que o alferes lhe pergunta por D. Bárbara

a nova República que se estabelecesse devia ter bandeira, disse que como Portugal tinha nas suas por armas as cinco chagas, deviam as da nova República ter um triângulo, significando as três pessoas da Santíssima Trindade (...)” (TOSTO; LOPES, s./d., p. 85). Registra-se que Tosto e Lopes partilham da mesma informação presente no texto ficcional de Gilberto de Alencar, certamente fundamentados em fontes documentais legítimas. 109 No depoimento de Francisco Antônio de Oliveira Lopes, coronel do Regimento de Cavalaria Auxiliar da Vila de São João del-Rei, 21ª testemunha, na Cadeia Pública de Vila Rica, em 8 de agosto de 1789, há uma referência à bandeira: “Que igualmente concordaram os ditos vigário e Cel. Alvarenga, que o letreiro da bandeira havia de ser uma passagem em latim (...) e queria dizer em português que a liberdade chegara, ainda que tarde (...)” (ADIM, 1981, p. 154, v. 4). 110 Na carta-denúncia de Joaquim Silvério dos Reis, dirigida ao Visconde de Barbacena, há comprovação sobre a senha escolhida para dar início ao levante: “(...) e que a senha para o assalto haviam de ser cartas dizendo tal dia é o batizado (...) (ADIM, 1976, p. 93, v. 1). Também no depoimento da 20ª testemunha, Domingos Vidal de Barbosa, em 8 de agosto de 1789, na Cadeia Pública de Vila Rica, há referência à senha: “(...) contou a ele, testemunha, o dito Francisco Antônio de Oliveira Lopes que se tinha justo fazer o rompimento, avisando-se a todos para se ajuntarem com a senha de dizerem – tal dia é o batizado – com cujo aviso se juntariam todos, vestidos de casacões ou capotes, para debaixo trazerem armas escondidas (...)”(ADIM, 1976, p. 146-147, v. 1).

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Heliodora (ALENCAR, 1981, p. 157). O narrador aproveita o momento para informar

o local de nascimento da esposa de Alvarenga Peixoto – São João del-Rei – e

lembra que ela é conterrânea de Tiradentes. E não tardou que Alvarenga reportou o

que se passava a Tomás Antônio Gonzaga111 e a Cláudio Manuel da Costa112, os

quais, no romance, “receberam a notícia com verdadeiro assombro”113 (ALENCAR,

1981, p. 158) (notícia do que estava sendo tramado contra a metrópole).

Nesta parte, a obra sob análise dialoga com a literatura registrando trechos

de poetas inconfidentes. Segundo Bakhtin (2010, p. 124): “Os gêneros introduzidos

no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia

e a sua originalidade linguística e estilística”. E ainda: “(...) os gêneros poéticos em

versos (...) introduzidos no romance podem ser poética e diretamente intencionais,

sem segundas intenções”. O narrador de Tal dia é o batizado introduz no romance

alguns versos dos poetas Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa,

mostrando que o autor valeu-se também da literatura para a construção da narrativa.

Além da presença da linguagem poética da época em que ocorreu o acontecimento

histórico, acredita-se que o autor teve a intenção de dar um tom de verdade real ao

romance e, para dar mais plasticidade à história narrada, deu voz aos poetas, que

recitam, eles mesmos, seus versos. Cláudio Manuel da Costa declama a seguinte

estrofe:

Este é o rio, a montanha é esta, Estes os troncos, estes os rochedos; São ainda os mesmos arvoredos; Esta é a mesma rústica floresta (ALENCAR, 1981, p. 162).

111 Tomás Antônio Gonzaga, na época, estava com 40 anos. Homem bem-sucedido na vida, vestia-se bem, estava perdidamente apaixonado por Maria Doroteia Joaquina de Seixas, que tinha entre 15, 16 e não mais que 17 anos. Esta foi imortalizada na Literatura Brasileira como a Marília de Dirceu (Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/biografias/tomas-antonio-gonzaga.jhtm>. Acesso em: 5 jul. 2013). 112 Claúdio Manuel da Costa, com 60 anos, tinha boa situação financeira e várias fontes de rendimento: lavras, escravos, fazenda na Várzea do Itacolomi, banca de advogado. Embora fosse solteiro, tinha filhos e netos (Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/fantasmas-da-inconfidencia>. Acesso em: 5 jul. 2013). 113 Segundo Maxwell (2005, p. 147), que se baseou na obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1936-38, v. IV), Cláudio e Gonzaga também estavam muito envolvidos na revolta: “O ex-ouvidor mantinha as mais íntimas relações pessoais com Alvarenga Peixoto e Carlos Correia. Estes dois hospedavam-se em sua casa em Vila Rica, quando das reuniões de dezembro de 1788”. Desse modo, a expressão “com verdadeiro assombro”, usada por Alencar (1981) no romance, não condiz com os fatos históricos verdadeiros, parecendo que os poetas não sabiam do que estava sendo tramado naquelas reuniões.

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Além de outros versos de Tomás Antônio Gonzaga, o narrador apresenta

algumas estrofes do poema Marília de Dirceu , lembrando que os versos

apresentados são os mais conhecidos do poeta. No romance, Gonzaga murmura os

seguintes versos, enquanto desce as escadas de sua casa para ir ao encontro de

Maria Doroteia, pseudônimo de Marília, sua amada: “Marília, tu chamas? Espera,

que eu vou” (ALENCAR, 1981, p. 165). E ainda:

Enquanto resolver114 os meus consultos, Tu me farás gostosa companhia, Lendo os fastos da sábia, mestra História, E os cantos da poesia (ALENCAR, 1981, p. 161).

Nesta cena, aparecem versos concretos de Gonzaga, contribuindo para a

verossimilhança do romance, sendo este um traço muito forte no romance histórico.

Além desses versos e de outros trechos de poemas que aparecem na obra, alguns

deles sendo até mesmo recitados pelo protagonista, o narrador faz alusão às Cartas

chilenas 115, não deixando claro de quem é a autoria dos versos, que eram lidos

pelas pessoas de Vila Rica – as cópias do poema passavam de mão em mão na

cidade: “Contra o mau governador corriam pela capitania, uns versos ferinos,

cantando-lhe as proezas e as tratantadas, que eram numerosas” (ALENCAR, 1981,

p. 122). Trata-se de uma crítica ao governo de Luís da Cunha Meneses,

cognominado nessas cartas de Fanfarrão Minésio. Tiradentes, no romance, utiliza o

apelido para se referir ao governador em outras situações, como, por exemplo,

quando lamenta da falta de promoção no Regimento dos Dragões: “– O Fanfarrão

Minésio (...) sabe dos meus serviços, escolhe-me sempre para as missões

arriscadas, de meu nome é que se lembra para tudo” (...) (ALENCAR, 1981, p. 122).

A alusão à poética dos inconfidentes e a outros textos literários mostra que a

literatura também serviu de subsídio para a escrita do romance em estudo.

114 Nas edições correntes e fidedignas de Marília de Dirceu consta “revolver os meus consultos”, tendo havido aqui, seguramente, um equívoco de transcrição. 115 As Cartas chilenas constituem uma crítica ao governador Luís da Cunha Menezes. As 12 cartas são assinadas por Critilo e endereçadas a Doroteu, um amigo. Nessas missivas, o autor descreve um mundo às avessas; o Chile é, na verdade, Minas: “Nessa obra de circunstância agrada sempre a fluência do decassílabo solto que vai marcando um brio do mau político, sem deixar em branco as suas maneiras de ‘caduco Adônis’ exibidas por ocasião dos esponsais de D. João e Dona Carlota Joaquina” (BOSI, 1997, p. 83). Importa assinalar que o poema faz uma crítica somente às pessoas, não se referindo às duras leis da época. Como as cartas eram passadas de mão em mão, acabaram chegando às mãos de pessoas como Joaquim Silvério dos Reis, que também era criticado no poema.

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Na obra Tal dia é o batizado , há um capítulo dedicado a Antônio Francisco

Lisboa, o Aleijadinho, um vulto nacional das artes plásticas, muito presente na

memória coletiva do povo brasileiro. Tiradentes foi visitá-lo em sua casa situada à

rua Detrás. Lisboa já estava tomado pela doença e quase não fazia contato com

ninguém:

A fim de não ser visto nas ruas, saía de madrugada para o trabalho e só voltava depois da noite fechada. E foi talvez nessa época, em que se encontrou obrigado a amarrar o escopro na mão para poder trabalhar, que produziu o melhor de sua obra, como se a enfermidade repulsiva lhe estimulasse o gênio criador e o obrigasse a dar de si quanto podia (ALENCAR, 1981, p. 178).

Ao ouvir o plano de emancipação, Lisboa alertou Tiradentes do perigo que

estava correndo e lembrou-lhe de como os dirigentes são cruéis quando há qualquer

tentativa de revolta. O narrador intertextualiza o episódio histórico de Filipe dos

Santos, que, apesar de português: “Teve o corpo amarrado à cauda de um cavalo e

arrastado aí por essas ladeiras” (ALENCAR, 1981, p. 181).

Assim, após o diálogo e a despedida, o narrador, mais uma vez, antecipa o

desaparecimento de Tiradentes para sempre de Vila Rica, com as seguintes

palavras: “Nunca mais se encontrariam, entretanto” (ALENCAR, 1981, p. 182). Além

disso, apresenta um juízo subjetivo discreto sobre a questão dos apelidos de Lisboa

e de Joaquim José: “Os dois apelidos ridículos é que se tornariam gloriosos e

andariam juntos pelo tempo fora” (ALENCAR, 1981, p. 182). Desse modo, o

narrador afirma que os cognomes “Aleijadinho” e “Tiradentes” ficariam gravados

para sempre na memória coletiva do povo brasileiro, exaltando a glória de cada

personagem: Tiradentes faz referência ao herói (e mártir) da República brasileira e

Aleijadinho, ao grande escultor da arte barroca em Minas Gerais. A Figura 12, a

seguir, ilustra o trabalho de Antônio Francisco Lisboa:

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Figura 12 – O Santo Adormecido, de Antônio Franc isco Lisboa. Congonhas do Campo, MG.

Fonte: TOSTO; LOPES, [s./d.], p. 106.

Segundo o romance, o plano de revolta já era conhecido por muitas pessoas

em Vila Rica, o assunto da emancipação era “comentado a medo dentro das casas,

sussurrado pelas ruas, cochichado nos templos116” (ALENCAR, 1981, p. 182).

116 No depoimento de Manuel Rodrigues da Costa, presbítero do hábito de São Pedro, em 25 de setembro de 1789, na Fazenda do Registro Velho, há constatação de que Tiradentes falava pública e geralmente sobre a revolução, sem se preocupar em fazer disso um segredo: “(...) e a razão que teve para assim o dizer, foi ter ouvido pública e geralmente, que o dito alferes publicamente e sem reservas, falava do motim e sedição que podia fazer-se nesta Capitania (...)” (ADIM, 1981, p. 237-238, v. 4). O Reverendo Padre José Martins Machado, 41ª testemunha, em 18 de julho de 1789, em Vila Rica, afirmou que: “(...) ouviu ele testemunha dizer a algumas pessoas, que aquelas prisões se tinham feito por ser o dito Alferes tão desavisado, que andava falando e convocando gente, tanto nesta terra como no Rio de Janeiro, para um levante, sendo seu sócio o Coronel Joaquim Silvério; (...)”. Registra-se que também nos Embargos ao Acórdão pelo Advogado dos réus inconfidentes, Dr. José de Oliveira Fagundes, Rio de Janeiro, 20 de abril de 1792, há uma referência de que Tiradentes falava com muita liberdade sobre o levante. Ele não se preocupava em guardar segredo e sua vontade de libertar a capitania da dominação portuguesa era tão grande que ele nem se dava conta de que o que estava sendo premeditado era um crime de lesa-majestade: “(...) que há muito tempo já o réu Joaquim José da Silva Xavier falava com liberdade na matéria do levante; e a razão de ser esta

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No romance, o sargento-mor Luís Vaz de Toledo Piza falou ao coronel

Joaquim Silvério dos Reis sobre o plano117 e convenceu-o a acompanhá-lo ao arraial

da Laje, na casa do capitão Resende Costa, local em que o sargento-mor “expôs

miudamente o plano da revolta, dando o nome dos principais conjurados, dizendo os

recursos com que já se podia contar até o momento e explicando como ia ser o novo

governo” (ALENCAR, 1981, p. 193). E, após mais alguns relatos sobre o que estava

para acontecer na capitania, Joaquim Silvério disse que estava disposto a colaborar

com o levante, julgando-o necessário e justo. Afirmou que “Daria homens, daria

pólvora, daria dinheiro, tudo quanto pudesse...118” (ALENCAR, 1981, p. 193).

Mas o vigário Carlos Correia de Toledo119, em Tal dia é o batizado , não

aprovou o fato de Luís Vaz ter convidado Joaquim Silvério para fazer parte da

revolta, por não ser um sujeito muito confiável e por ser trapaceiro. Enriquecera

rapidamente na capitania e, quando chegou ao Brasil, era pobre: “Conhecia a fama

nada invejável do coronel, sabia das suas trapaças, não ignorava o alcance dele

para com a fazenda” (ALENCAR, 1981, p. 197).

Apesar de depois ter aceitado a entrada de Joaquim Silvério no grupo,

Correia de Toledo estava de todo certo, pois Joaquim Silvério tramou a traição,

pensando em beneficiar-se. Este ficou pensando e refletiu sobre tudo o que ouviu;

pensou nas vantagens que iria ter, se denunciasse o levante. Não dormiu à noite, e,

de manhã, estava alegre, satisfeito, pois já havia tomado a decisão de delatar os

sua libertinagem ouvida sempre com desprezo foi por ser conhecida a loucura deste réu, o pouco siso de que é dotado, a facilidade e soltura da sua língua (...)” (ADIM, 1982, p. 257, v. 7). 117 O depoimento de Luís Vaz de Toledo Piza (26ª testemunha), de 2 de setembro de 1789, em Vila Rica, confirma o encontro com Joaquim Silvério dos Reis e seu interesse em entrar na revolta, pois, se vingasse o plano, ele seria beneficiado, uma vez que era grande devedor da Fazenda Real: “Que ele, testemunha, (...) se encontrou com o Cel. Joaquim Silvério dos Reis (...) em casa do Cap. José de Resende (Costa), que mora na Laje, (...) e supondo ele, testemunha por esta conversa ao dito coronel que este sabia da sedição e motim premeditada, lhe disse que isso estava muito adiantado e lhe contou tudo o que a este respeito sabia e que tem deposto; ao que o dito Cel. Joaquim Silvério dos Reis respondeu que estava pronto a entrar na sublevação e motim (...)” (ADIM, 1981, p. 189, v. 4). 118 Luís Vaz de Toledo Piza, na 1ª Inquirição, Cadeia Pública de Vila Rica, em 30 de junho de 1789, afirma que na casa de seu irmão, o vigário de São José, Carlos Correia de Toledo, Joaquim Silvério “(...) oferecendo-lhe doze mil cruzados e persuadindo-o a que fosse a São Paulo buscar gente (...)” (ADIM, 1978, p. 106, v. 2). 119 Luís Vaz afirma: “Que participado ele, testemunha, a seu irmão Carlos Correia de Toledo, que tinha dado parte ao Cel. Joaquim Silvério dos Reis da conjuração e motim que premeditava fazer-se na Capitania pela ocasião que fica dita, ficou seu irmão enfadado com ele, testemunha (...) porquanto dizia o irmão dele, testemunha, dito Pe. Carlos Correia de Toledo, que o Cel. Joaquim Silvério dos Reis era um louco e que havia de participar e dar parte da sedição e motim (...)” (ADIM, 1981, p. 189, v. 4).

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colegas, garantindo, assim, os próprios negócios. Agindo dessa forma, agradaria à

rainha, D. Maria I, mostrando ser um súdito fiel e devotado (ALENCAR, 1981).

Em um determinado momento da narrativa, Freire de Andrade mostrava-se

apreensivo, receoso, e parecia estar mesmo um pouco arrependido de fazer parte

da conspiração. Quando Tiradentes tentava apressá-lo para marcar a data, o

tenente-coronel sempre protelava, usando como desculpa a derrama, pois achava

que, se não houvesse a derrama, o povo não se revoltaria contra a metrópole e não

haveria muitos adeptos para lutar junto com eles. É fato que Freire de Andrade não

estava muito confiante na sublevação120, uma vez que o Visconde de Barbacena já

havia recebido de Portugal ordem de lançar a derrama e não tomava as

providências, como já visto anteriormente. O tenente-coronel121, no romance,

chegou, até mesmo, a pedir a Tiradentes para não falar com mais pessoas sobre o

levante e desconversasse com as que já sabiam do projeto.

A obra Tal dia é o batizado registra, ainda, que as reuniões se realizavam no

morro do Cruzeiro, em um prédio isolado, à margem direita do córrego do Funil. Não

havia moradores na casa. Esse fato contribuía para aumentar o mistério e o medo

que envolvia a capital das Minas Gerais. Trata-se de uma “invenção” do narrador,

que romanceou o episódio da última reunião dos inconfidentes, dando um tom

misterioso à situação: os envolvidos usavam capotes, apesar de não ser época de

frio; eles iam esgueirando-se por becos e esquinas, às escondidas, como se fossem

malfeitores e marginais. Esse clima de suspense aguça o imaginário dos leitores,

dando mostras do fictício no texto ficcional. Na realidade, as reuniões sempre

aconteciam na casa de um dos inconfidentes, e nunca em casa abandonada, sem

moradores, não havendo nenhum registro sobre reuniões em lugares ermos.

Os ânimos estavam alterados, pois Tiradentes tinha pressa em saber qual era

“o dia do batizado”, mas Freire de Andrade insistia em esperar a derrama. O grupo 120 Conforme o Acórdão dos Juízes da Devassa no Rio de Janeiro, em 18 de abril de 1792, houve, realmente, um desvanecimento no tocante à animação para que houvesse a sublevação: “(...) e da prática que teve o réu Alvarenga com o padre Carlos Correia de Toledo, dizendo-lhe que – ele tinha chegado havido pouco de Vila Rica, e que lá ficava este negócio em grande frieza (tratavam da conjuração), porque já se não lançava a derrama (...)” (ADIM, 1982, p. 231, v. 7). 121 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Joaquim José confirma essa passagem do romance relativa ao esfriamento de Freire de Andrada no tocante à revolta premeditada: “Depois disse a ele Respondente o Padre José da Silva e Oliveira Rolim, que o Coronel Inácio José de Alvarenga dissera que o Tenente-Coronel Francisco de Paula Freire de Andrada mandava dizer a ele Respondente, que não falasse mais a pessoa alguma, e que às que tinha falado, se pudesse as desvanecesse; porque podia não ter efeito a sublevação, e motim, e que só depois de posta a derrama se havia de ver, se a dita sublevação se fazia” (ADIM, 1982, p. 38-39, v. 5).

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ficou dividido; alguns apoiavam Tiradentes e outros, Freire de Andrade. Este

esclareceu que o motivo de não marcar a data ainda não era somente a derrama,

mas o fato de ele achar que a revolta deveria iniciar no Rio de Janeiro para, depois,

ser apoiada por Vila Rica. Como Cláudio Manuel da Costa achou que seria melhor

que o movimento tivesse início, ao mesmo tempo, em Vila Rica e no Rio de Janeiro,

Tiradentes, em um primeiro momento, ficou meio indeciso, mas depois apoiou a

ideia. Para que isso acontecesse, precisava-se de alguém capaz de realizar tarefa

muito perigosa, ou seja, ir ao Rio a fim de fazer os contatos com aqueles que se

comprometeram a dar apoio ao levante. A difícil tarefa foi dada a Tiradentes, que

tirou uma licença de 30 dias122 e partiu para a capital.

Joaquim José, no romance, com confiança total na vitória, anunciou-se para a

viagem com as seguintes palavras: “E nada de receio, nada de desânimo, nada de

hesitação, meus senhores! Obteremos a vitória, porque Deus está conosco! Se

todos quiserem, faremos uma grande nação!” (ALENCAR, 1981, p. 205). Tiradentes

não tinha dinheiro para a viagem, então foi necessário pedir uma quantia

emprestada123 a seus compadres: João de Almeida Beltrão e Domingos de Abreu

Vieira124; este havia batizado sua filha125.

Freire de Andrade recomendou a Tiradentes que aguardasse a senha no Rio

de Janeiro, dizendo-lhe que a notícia iria pelo correio. Antes da viagem, porém, o

tenente-coronel e Tiradentes dialogaram “– Quem é o figurão do rio das Velhas, que

ficou de apoiar-nos?” Ao que o alferes respondeu: “– A seu tempo se há de saber,

meu comandante. Por enquanto é segredo. O homem pediu-me a maior reserva até

que chegue a hora...” (ALENCAR, 1981, p. 210). O romance é atravessado pelo

122 Joaquim José, enquanto alferes do Regimento dos Dragões, tirou, realmente, várias licenças, fato comprovado na Certidão das licenças concedidas ao alferes: “(...) Teve segunda licença de um mês para ir ao Rio de Janeiro, que principiou em 10 de março de 1789, à qual excedeu; o que tudo consta dos Mapas de Mês do Regimento” (ADIM, 1976, p. 293, v. 1). 123 O pedido de empréstimo constitui um fato real no romance, pois o tenente-coronel Domingos de Abreu Vieira, como primeira testemunha nos Autos da Devassa, declara que emprestou o dinheiro a Tiradentes para fazer a viagem: “(...) quando aquele Alferes se retirou ultimamente desta Capital para a Cidade do Rio de Janeiro, lhe emprestou ele, testemunha, cem mil réis para suas despesas;” (ADIM, 1976, p. 143, v. 1). 124 O tenente-coronel Domingos de Abreu Vieira era natural de São João de Concieiro, Termo de Regalos. Foi inquirido na Cadeia Pública de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto no dia 16 de junho de 1789, momento em que se achava preso em degredo nessa Cadeia (ADIM, 1976, v. 1). 125 Apesar de ser solteiro, Joaquim José da Silva Xavier possuía uma filha, Joaquina, cujo batizado foi realizado no dia 31 de agosto de 1786, na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Nota explicativa de Herculano Gomes Mathias, presente em ADIM (1982, p. 18, v. 5): “(...) foi padrinho o Capitão Domingos de Abreu Vieira, solteiro, morador na Freguesia Antônio Dias desta vila, de que fiz este assento. (...)”.

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mistério que envolve o poderoso homem de Sabará126, pois Tiradentes sempre

afirmava que o grupo precisava ter a ajuda dos maiorais da capitania.

Assim, em Tal dia é o batizado , na primeira quinzena de março127, o alferes

e Simplício seguiram viagem para o Rio de Janeiro, na esperança de um país

melhor. Tiradentes, ao encontrar na estrada o amigo Antônio de Oliveira Lopes128,

falou sobre a conspiração e as mudanças que viriam a ocorrer, caso tudo desse

certo: “– Mas isso tudo há de mudar. A república não será como este governo que

só sabe cobrar impostos e impedir o progresso da terra. A república saberá

aproveitar, para o bem do povo, todas essas riquezas (ALENCAR, 1981, p. 212).

Segundo o romance, no caminho, Tiradentes encontrou com Joaquim Silvério

dos Reis129, que aproveitou o momento para fazer um verdadeiro interrogatório

sobre a ação dos inconfidentes em seus respectivos lugares de atuação. Após as

informações recebidas, Joaquim Silvério ficou muito satisfeito, mas não deixou

transparecer o seu contentamento. Como já estava decidido a denunciar o levante,

126 De acordo com informações presentes na obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1976), o Doutor José Correia da Silva, Vigário da Vara na Vila do Sabará, seria o “’doutor de Sabará’, presente no complô inconfidente de Vila Rica (TJBO)” (ADIM, 1976, p. 241, v. 1). Mas há também outro doutor de Sabará, presente no mesmo complô: o Dr. José de Sá Bittencourt, preso na Bahia. Ele era colega de José Álvares Maciel. Há informação de que os moradores dessa cidade foram protegidos por José Caetano César Manitti, Ouvidor Geral de Sabará, que era o Escrivão da Devassa em Vila Rica: “Correu à boca pequena que a inocência custara à tia e madrinha, que vivia em Caeté, duas arrobas de ouro...” Nota explicativa de Tarquínio J. B. de Oliveira (ADIM, 1977, p. 404, v. 9). 127 Quanto à data da saída de Tiradentes de Vila Rica, nota explicativa do Dr. Tarquínio José Barbosa de Oliveira, revisor da edição da obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira , registra o seguinte esclarecimento: “Tiradentes partiu de Vila Rica para o Rio a 10-03, passando no mesmo dia por Cachoeira do Campo e indo pousar na Varginha. No dia seguinte, 11-03, encontrar-se-ia em Carijós (atual Lafaiete) com seu companheiro de regimento, Alferes Matias Sanches Brandão, prosseguindo juntos a viagem para o Rio” (ADIM, 1976, p. 231, v. 1). 128 Tiradentes, em seu longo depoimento, 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, momento em que decidiu fazer alguns esclarecimentos aos juízes da Devassa sobre o levante, declara que, no percurso da viagem, sempre que a ocasião fosse propícia, e se falasse em derrama, ele colocava suas ideias de libertar a Capitania e fazer uma República. Confirmou o encontro com Antônio de Oliveira Lopes, “no sítio da Varginha, em casa do estalajadeiro João da Costa, estando presente um viandante fraca-roupa chamado Antônio de Oliveira Lopes, o qual pareceu abraçar o sistema que o Respondente seguia (...) e beberam à saúde dos novos governos; (...)” (ADIM, 1982, p. 39, v. 5). 129 O narrador é fiel aos fatos históricos, pois há várias passagens que comprovam o encontro dos dois inconfidentes na estrada, por exemplo, a seguinte nota explicativa do Dr. Tarquínio José Barbosa de Oliveira: “O sítio de João Dias da Mota, nas proximidades de Carandaí, seria alcançado a 12-03 à noite. Terá sido neste dia que cruzou com Joaquim Silvério dos Reis, este a caminho de denunciar a Inconfidência” (ADIM, 1976, p. 231, v. 1). Joaquim Silvério, em sua Carta-denúncia ao Visconde de Barbacena (Cachoeira, 19-04-1789, datada de Borda do Campo, 11-04-1789), confirma o encontro com Tiradentes quando este seguia viagem para o Rio de Janeiro, a fim de fazer os contatos para a revolta: “Meu senhor, eu encontrei o dito Alferes, em dias de março, em marcha para aquela cidade; e pelas palavras que me disse me fez certo o seu intento e do ânimo que levava (...)” (ADIM, 1976, p. 94, v. 1).

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aquelas informações colhidas com Tiradentes, no rio das Mortes, seriam muito

preciosas. Pensou em procurar o Visconde de Barbacena, onde quer que ele

estivesse para delatar o fato. No momento do encontro, Joaquim Silvério também

fez questionamentos sobre a viagem de Tiradentes ao Rio de Janeiro, e todas as

informações da última reunião dos inconfidentes foram dadas em pormenores,

inclusive a senha foi informada ao coronel: “Tal dia é o batizado... A senha é essa.

Assim que a receber no Rio de Janeiro, direi aos homens de lá o dia escolhido e

voltarei imediatamente para Vila Rica” (ALENCAR, 1981, p. 217). Tiradentes seguiu

viagem, falando sobre o levante em todos os lugares por que passava e a todas as

pessoas130: “Na fazenda das Cebolas131 e no sítio do Ribeirão, tornou a falar do

levante às pessoas que encontrou. No último desses lugares topou com Matias

Sanches Brandão (...). Deixaram [Tiradentes e Simplício] Matias Sanches no sítio do

Ribeirão (...) e de novo meteram-se pela estrada (...)” (ALENCAR, 1981, p. 221). Na

última sexta-feira de março, ele e Simplício chegaram ao Rio de Janeiro. O alferes

alugou uma pequena casa em S. Pedro132, por 30 dias.

No romance, já haviam passado 10 dias, mas o mensageiro não chegava

com a senha: “– Tal dia é o batizado...” (ALENCAR, 1981, p. 221). Ao andar pelas

ruas, Joaquim José encontrou-se com o porta-estandarte do Regimento dos

130 No depoimento da 28ª testemunha, Teotônio Maurício de Miranda, há confirmação de que Joaquim José, no percurso para o Rio de Janeiro, ia informando as pessoas sobre o levante: “Conversando nesta matéria com o Tenente-Coronel Manuel Teixeira de Queiroga, este disse a ele, testemunha, que as referidas prisões tinham mais poderoso objeto, contando-lhe que lhe tinham segurado que o Alferes Joaquim José da Silva, por alcunha o Tiradentes, quando foi para o Rio de Janeiro, tomou a sua conta ir semeando alguns discursos suasórios das conveniências deste País, que podia muito bem ser livre e independente, alargando-se e convidando algumas pessoas, a quem persuadia dos seus intentos, e a quem se encaminhavam aqueles discursos” (ADIM, 1976, p. 218, v. 1). 131 Na 4ª Inquirição, Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Tiradentes comprova a passagem por esse local: “No Sítio das Cebolas, falou o mesmo perante o Furriel de Artilharia desta cidade, Manuel Luiz Pereira, o qual não deu assenso ao partido, que ele Respondente propunha” (ADIM, 1982, p. 39, v. 5). 132 Nessa passagem do romance, há um pouco de ficção e um pouco de não ficção, pois, em nota explicativa do Dr. Tarquínio José Barbosa de Oliveira, revisor da edição da obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1976, p. 237, v. 1), há informação de que Tiradentes alugou uma casa com o Alferes de seu Regimento, Matias Sanches Brandão: “Acompanhou [Matias] Tiradentes ao Rio de Janeiro em sua última viagem. Alugaram casa juntos nesta cidade. Deixou o Rio em 02-05-1789 (...). Levaria [Joaquim José] consigo dois ou três escravos de Tiradentes com os quais o Inconfidente contava para a travessia do Paraibuna, clandestinamente” (ADIM, 1976, p. 237, v. 1). Também a declaração de Joaquim José da Silva Xavier, na 7ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 20 de junho de 1791, mostra que ele morou com o alferes Matias quando de sua última viagem ao Rio de Janeiro: “Respondeu [Tiradentes] que era verdade ter vindo para esta cidade de camarada com o Alferes Matias Sanches Brandão, ao qual encontrou no sítio, chamado Ribeirão, que com ele viveu na mesma casa nesta cidade [Rio de Janeiro] todo o tempo que aqui esteve, até que o dito Alferes se foi embora, quatro ou cinco dias antes dele Respondente se ocultar” (ADIM, 1982, p. 55, v. 5).

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Dragões, Francisco Machado, para quem expôs todo o plano. Este ouviu,

atentamente, toda a notícia, com surpresa. Nesse momento, Tiradentes retirou do

bolso um folheto contendo as leis dos Estados Unidos e pediu a Francisco para

traduzi-lo133: “O folheto continha as leis estabelecidas pelos norte-americanos e era

o mesmo que o cônego Luís Vieira lhe havia dado” (ALENCAR, 1981, p. 222). Após

a leitura, contudo, ele alertou Tiradentes sobre o perigo: “– Meu alferes, tenha

cuidado, tenha muito cuidado com esse negócio, que é por demais grave e perigoso.

Olhe que isto aqui não é Vila Rica e que o vice-rei não é homem com quem se

brinque” (ALENCAR, 1981, p. 222). Tiradentes, entretanto, estava convicto de que o

plano daria certo e de que nada iria acontecer que pudesse impedi-lo de tirar o país

da dominação de Portugal. Era intenso o sonho de liberdade.

No Rio de Janeiro, Joaquim José “Procurou, em suas lojas ou armazéns, os

negociantes descontentes e dispostos a encabeçar o levante na capital do vice-

reino...” (ALENCAR, 1981, p. 223), mas, ao falar com os comerciantes, percebeu

que, apesar da grande insatisfação, eles não estavam dispostos a lutar para mudar

a situação. Chegaram a achar que o alferes estava louco. O narrador rememora

uma passagem vexatória na história da vida de Tiradentes nessa cidade: uma noite,

para se divertir um pouco, resolveu ir ao teatro, a fim de verificar se, naquele lugar

público, poderia obter adeptos para o levante. Sentou-se entre os espectadores e

começou a conversar com algumas pessoas, fazendo referência “ao abandono em

que jazia a capital do vice-reino, sem água, sem higiene, sem segurança, sem

liberdade, sem melhoramento algum (...)” (ALENCAR, 1981, p. 223).

Tiradentes começou a falar sobre a revolta que estava sendo premeditada,

chamando a atenção das pessoas para os benefícios que iriam ter se o povo se

unisse para libertar o país de Portugal. Informou que a sublevação já estava a

caminho e que “o povo precisava mostrar que trazia sangue nas veias e que não

estava disposto a suportar por mais tempo nem o despotismo nem a ganância da

metrópole”. Ele enfatizou: “– Faremos desta cidade uma cidade feliz!” (ALENCAR,

1981, p. 223). Em um primeiro momento, sua fala despertou a curiosidade das

pessoas que estavam a sua volta, mas depois, como não tinham conhecimento do

133 Como 20ª testemunha dos Autos da Devassa, Francisco Xavier Machado, em 27 de junho de 1789, em Vila Rica, confirma ter feito a tradução para Tiradentes: “(...) o mesmo Alferes (...) lhe mostrara um livro escrito em francês, pedindo-lhe que lhe quisesse traduzir um capítulo dele (...) A Coleção das Leis Constitutivas dos Estados Unidos d a América (...)” (ADIM, 1976, 189, v. 1).

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que estava sendo tramado contra a Coroa, não entenderam a atitude dele e

começaram a rir. Ele foi obrigado a sair do teatro, tendo sido muito vaiado134.

A aflição de Tiradentes era grande, porquanto já estava na metade do mês de

abril e o correio não chegava ao Rio de Janeiro com o aviso de qual seria o dia do

levante. O desânimo e uma tristeza profunda se apoderaram dele, causando

preocupação a Simplício, que percebeu a enorme mudança. À época, Joaquim José

encontrou-se, novamente, com o porta-estandarte Francisco Machado, na rua da

Mãe dos Homens. Este lhe confidenciou: “dois granadeiros à paisana e de bigodes

rapados, andam-lhe seguindo os passos aí por essas ruas. E de noite, ficam

rondando a rua de S. Pedro” (ALENCAR, 1981, p. 226). O alferes percebeu essas

pessoas por perto, seguindo-o em lugares distintos: rua da Vala, rua do Piolho, rua

do Cano, e depois, até mesmo na rua em que estava morando provisoriamente, em

São Pedro. Tiradentes ficou surpreso ao encontrar-se com Joaquim Silvério na

mesma rua em que estava morando no Rio de Janeiro; este também alugara uma

casa em frente à casa de Joaquim José. O Coronel informou que fora ao Rio para

tratar de negócios de seu irmão. Tiradentes não sabia que, naquele momento, a

denúncia já tinha sido feita por Silvério dos Reis135, oralmente e depois por escrito

ao Visconde de Barbacena. Naquele momento, portanto, Barbacena136 já estava

134 Em seus depoimentos, Tiradentes não faz alusão a esse episódio, mas o sargento-mor de Minas Novas, que também estava no teatro naquele momento, testemunhou tudo, dando o seguinte depoimento em 25 de junho de 1789, em Vila Rica: “(...) achando-se ele, testemunha, na Casa da Ópera no Rio de Janeiro, há de haver um ano, viu entrar pela plateia um oficial do Regimento de Cavalaria Paga dessa Capitania, Joaquim José da Silva, por alcunha o Tiradentes; e logo que entrou, lhe deram uma pateada; no que refletindo ele, testemunha, perguntou: “Por que motivo tinham dado aquela pateada ao dito oficial?” Eles responderam que era porque andava espalhando por aquela cidade que ele ainda havia de fazer feliz a América, e muito mais aquela cidade; do que todos se riram (...)” (ADIM, 1876, p. 165, v. 1). 135 Este é também um fato real apresentado no romance, uma vez que, após ter feito a denúncia sobre o levante ao Visconde de Barbacena, Joaquim Silvério dos Reis fora enviado para o Rio de Janeiro, com o objetivo de repetir a denúncia ao vice-rei e seguir os passos de Tiradentes: “A dezenove do mês seguinte era despachado o próprio Coronel Joaquim Silvério dos Reis para o Rio de Janeiro com a finalidade de repetir a denúncia ao Vice-Rei e seguir os passos do Alferes Joaquim José da Silva Xavier (...)” (ADIM, 1976, 22, v. 1). Tiradentes não sabia que, naquele momento, a denúncia já tinha sido feita por Silvério dos Reis ao Visconde de Barbacena. Trata-se de um fato real, pois “No dia 15 de março de 1789, foi o Visconde de Barbacena, Governador e Capitão-General da Capitania de Minas Gerais, procurado em sua residência de Cachoeira do Campo pelo Coronel de Cavalaria-Auxiliar dos Campos Gerais, Joaquim Silvério dos Reis, ex-contratador das Entradas no triênio que se estendeu de 1 de janeiro de 1782 a 31 de dezembro de 1784. Recebido por aquela autoridade, revelou este último, ‘cheio de sustos e cautelas’, que se tramava na Capitania de Minas Gerais uma conjuração para transformar esse rico território em um estado livre” (ADIM, 1976, 22, v. 1). 136 “O Visconde, que assinara ofício à Câmara de Vila Rica com data de 14-03, comunicando a suspensão da Derrama, ofício aliás entrado na Câmara a 17-03, tratou de tomar as providências mais objetivas e urgentes que o caso exigia (...)” (ADIM, 1976, 22, v. 1).

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preparado para aniquilar a Inconfidência Mineira, tendo tomado, de imediato, as

seguintes providências: “(...) suspendeu logo a derrama, alertou a tropa, preparou os

cárceres de Vila Rica para as prisões que não tardariam e ordenou ao traidor que

fosse espionar os conjurados, seguindo-lhes todos os passos, e o trouxesse

informado de tudo quanto acontecia, tivesse ou não importância” (ALENCAR, 1981,

p. 227).

Ao mesmo tempo, em razão da presença constante dos granadeiros137, que o

seguiam para todos os lugares, o alferes estava muito incomodado. Como um oficial

do Regimento dos Dragões, sentiu que não podia ser assim vigiado. Então, em uma

bem urdida invenção do narrador, o protagonista foi reclamar o fato ao vice-rei Luís

de Vasconcelos. Este já estava ciente de tudo, pois o Visconde de Barbacena já o

havia informado sobre o levante. Tiradentes fez a queixa meio exaltado, como de

costume, mas o vice-rei procurou acalmá-lo, dizendo que iria mandar ver o que

estava acontecendo, proferindo as seguintes palavras: “– Não se exalte, tudo se

arranjará” (ALENCAR, 1981, p. 230). Segundo o romance, o vice-rei estava

aguardando o momento certo para prender Tiradentes138.

No romance, após o encontro com Luís de Vasconcelos, Tiradentes desceu

as escadas do palácio muito triste e desalentado:

Agora já não era só a tristeza e o desalento. Verdadeiro terror acabara apoderando-se do seu espírito conturbado, sentia-se rodeado de espiões, via ameaças e perigos a cada passo que dava na cidade hostil, onde só colhera indiferença e sarcasmo na sua pregação (ALENCAR, 1981, p. 231-232).

Diante da situação em que se encontrava, Tiradentes pensou em fugir,

porém, não tinha dinheiro. Recorreu a Joaquim Silvério, mas este se desculpou: “(...)

disse que não podia, que o pouco que trazia no momento mal dava para tratar do

negócio do irmão” (ALENCAR, 1981, p. 232). Nesse momento, o narrador lembra

137 Na 1ª Inquirição, Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 22 de maio de 1789, Tiradentes afirma: “(...) ter visto que atrás dele andavam continuadamente dois inferiores, observando-lhe os passos” (ADIM, 1982, p. 19, v. 5). 138 Fato comprovado a partir da seguinte citação: “No Rio de Janeiro, por sua vez, Luís de Vasconcelos e Sousa que, bastante sagaz, procurava manter o Alferes Xavier em liberdade mas sob rigorosa vigilância, a fim de, pelos seus movimentos, descobrir os possíveis cúmplices da conspiração” (ADIM, 1976, p. 23, v. 1). Também no ofício do vice-rei a Martinho de Melo e Castro, de 16 de julho de 1789, há confirmação desse fato: “3 – Procurei entretê-lo, para continuar a seguir os seus passos e certificar-me mais e mais da falta de sócios nesta cidade (...)” (ADIM, 1981, 274, v. 4).

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que Silvério estava encarregado de vigiá-lo e que a falta de recursos do alferes era

uma boa notícia para levar ao vice-rei.

Joaquim José, bastante desolado, começou a percorrer as ruas do Rio de

Janeiro, pensando em algum meio para sair da capital. Foi quando se encontrou

com um antigo conhecido, o capitão Joaquim do Rego Fortes139, para quem expôs a

delicada situação em que se encontrava e pediu ajuda para a fuga. Este pensou na

possibilidade de Tiradentes ser abrigado na fazenda do mestre de campo Inácio de

Andrade Souto Maior cujo administrador era Manuel Miranda, um amigo de Rego

Fortes. No novo encontro, todavia, eles desconversaram, talvez por já saberem do

envolvimento de Tiradentes na revolta, apresentando várias desculpas.

Segundo o narrador do romance, “O porta-estandarte Francisco Machado

mandara-lhe dizer que se acautelasse, que mudasse de casa, que deixasse de sair

à rua, para não ser preso a qualquer hora, quando menos esperasse140 (ALENCAR,

1981, p. 234). Tiradentes ficou pensativo. Confiava em Joaquim Silvério e no porta-

estandarte; portanto, não supunha que ambos levavam notícias dele ao vice-rei.

Estava rodeado de espiões. Sentiu que precisava esconder-se. Mas onde poderia

ficar por alguns dias? Ao pensar em um modo de fugir, Tiradentes lembrou-se de D.

Inácia Gertrudes de Almeida141, pois, em outros tempos, havia curado uma ferida

maligna na perna da filha dessa senhora, quando de passagem pelo Rio de Janeiro.

Ele contou-lhe que estava sendo perseguido injustamente pela polícia, em razão de 139 Na 1ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 22 de maio de 1789, Joaquim José confirma contato com Manuel Joaquim do Rego Fortes e Manuel José de Miranda do seguinte modo: “(...) era verdade (...) que tinha as cartas de favor para ser auxiliado na sua fugida, as quais lhe deram uma, o Capitão Manuel Joaquim Fortes, (...) e a outra, de Manuel José, que também assistia nas mesmas casas (...)” (ADIM, 1982, p. 19, v. 5). 140 Na 1ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 22 de maio de 1789, Tiradentes confirma que recebeu vários avisos, mas, nesse depoimento, não apontou nenhum nome: “(...) e a razão que para isso teve foi por lhe fazerem repetidos avisos, (1) de que o Ilustríssimo, e Excelentíssimo Vice-Rei o mandava prender (...)” (ADIM, 1982, p. 19, v. 5). Registra-se que, na nota explicativa de número 1, nessa mesma obra e página, Herculano Gomes Mathias informa que Joaquim José foi avisado por Simão Pires Sardinha e por Joaquim Silvério dos Reis; portanto, acredita-se que a informação presente no romance quanto ao aviso do porta-estandarte Francisco Machado seja incorreta. O próprio alferes confirma o fato na 6ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 14 de abril de 1791, do seguinte modo: “(...) e que este [Joaquim Silvério] lhe dissera, que o vice-rei deste Estado andava com grande cuidado sobre ele Respondente, que tivesse conta em si, que retirasse, porque mais dia, menos dia, se ele Respondente se não retirasse seria preso; pois se persuadia que o vice-rei sabia da matéria dos ajustes feitos em Minas; e que por esta razão ele Respondente se escondera (...)” (ADIM, 1982, p. 50-51, v. 5). 141 Na 6ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 14 de abril de 1791, Tiradentes confirma a passagem do romance: “Respondeu, que a pessoa a quem falou para que o escondesse uma noite foi uma viúva chamada Inácia de tal, que morava ao pé da Igreja da Mãe dos Homens, porém esta o não recolhera em sua casa, por ser viúva (...) que a razão que teve para se valer da dita Inácia, foi por lhe ter curado uma filha de uma moléstia, que teve em um pé (...)” (ADIM, 1982, p. 50, v. 5).

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um crime que não cometera. Como na família havia uma moça solteira, a mulher não

pôde escondê-lo em sua casa, mas arrumou lugar na casa de um compadre dela na

rua dos Latoeiros142.

O narrador, no início do capítulo 11, já antecipa, no romance, o momento da

prisão de Tiradentes: “ESTE É O CAPÍTULO DA IMENSA angústia” (ALENCAR,

1981, p. 237). Joaquim José entra em um estado de grande tristeza, “Há várias

noites não dorme, alimenta-se mal, uma amargura profunda se estampa no rosto

magro e abatido” (ALENCAR, 1981, p. 237). Desse modo, toma consciência de sua

realidade, ao falar as seguintes palavras ao escravo: “– Tudo está perdido Simplício”

(ALENCAR, 1981, p. 237).

Tiradentes toma todas as providências para se mudar para a casa do sr.

Domingos: entrega a carta de alforria143 ao companheiro de infância, pedindo-lhe

que volte para Minas Gerais:

– Procura lá os meus irmãos, o Domingos, o Antônio, o José... (...) – Diga a eles que olhem pelos meus dois filhos. Deus sabe que eu ia tratar do futuro dessas crianças, mas o destino não quis (...) (ALENCAR, 1981, p. 239).

Assim, despede-se de seu companheiro fiel, já com pressentimento de que

não mais veria sua terra natal e segue para a rua dos Latoeiros. O sobrinho de D.

Inácia, o padre Inácio Nogueira, encarregou-se de fazer a intermediação a respeito

do local que iria abrigar Tiradentes. Domingos Fernandes144 acolheu-o em sua casa,

escondendo-o no sótão.

142 Na 6ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 14 de abril de 1791, Tiradentes confirma a passagem do romance: “(...) e a causa que lhe assinou para querer esconder-se, foi por se ter feito uma morte em Minas, na qual entendia que estava culpado, e por esse motivo o queriam prender; e esta figura, que levantou, foi o mesmo que também disse ao mesmo Domingos Fernandes [morador na rua dos Latoeiros]” (ADIM, 1982, p. 50, v. 5). 143 Essa passagem do romance é ficção, pois, em seu depoimento, Tiradentes confirma a venda de um escravo no dia que se refugiara, porém com a condição de esse negro permanecer com ele por mais quatro dias. Na 1ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 22 de maio de 1789, Joaquim José faz referência à venda desse escravo: “Respondeu, que a razão por que pedira os quatro dias para conservar o mulato em sua casa fora para observar, se havia algum procedimento no tempo que ele estava escondido; porque se neste tempo o não houvesse, fazia ele Respondente tenção de tornar a aparecer;” (ADIM, 1982, p. 20, v. 5). 144 Essa passagem na vida de Tiradentes é confirmada em sua declaração, na 7ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 20 de junho de 1791: “(...) estando escondido em casa do dito Domingos Fernandes, lhe fora falar um clérigo, parente da mesma viúva Inácia, que tinha intercedido com o dito Fernandes para que recolhesse a ele Respondente (...) Respondeu, que conhecia o dito padre de casa da dita viúva Inácia, pelo ter aí visto algumas vezes, quando ia curar sua filha, que julgava ser o dito parente daquela viúva (...)” (ADIM, 1982, p. 52-53, v. 5). E ainda: “(...) ter dito ao mesmo padre, que a causa de se ocultar era por temer estar culpado em uma morte, que

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Tiradentes desapareceu da casa de São Pedro; por isso, houve um grande

alvoroço no palácio do vice-rei145: “Soldados e mais soldados tiveram ordem de

percorrer todas as ruas da cidade, e numerosas patrulhas foram enviadas à pressa a

todos os caminhos que pudessem conduzir à capitania das Minas Gerais”

(ALENCAR, 1981, p. 240). Luís de Vasconcelos e Sousa pediu também a Joaquim

Silvério para ajudar a prender Tiradentes. Na mesma noite em que Joaquim José

chegou à casa de Domingos Fernandes, o padre Inácio Nogueira foi visitá-lo,

confortando-o naquele momento difícil de sua vida. Durante a visita, Tiradentes

pediu ao padre que procurasse o coronel Joaquim Silvério dos Reis146 na casa

alugada, em São Pedro, para saber notícias de Vila Rica.

No dia seguinte, o padre Inácio Nogueira, juntamente com o padre Manuel

José de Bessa, procurou Joaquim Silvério, mas, no momento em que falou sobre

Tiradentes, o traidor não soube dissimular o que estava ocorrendo, e o padre

desconfiou de sua fidelidade ao alferes. Joaquim Silvério quis logo saber onde

estava Tiradentes, mas isso não lhe foi dito. Então Joaquim Silvério perguntou ao

padre Bessa onde morava o padre Nogueira; desse modo, teve a informação de que

o padre morava “na travessa da Alfândega, junto à igreja Nossa Senhora Mãe dos

Homens” (ALENCAR, 1981, p. 244).

Dessa forma, o esconderijo foi descoberto, o vice-rei mandou buscar o padre

Nogueira147, ameaçou-o, e ele não teve outra alternativa que não fosse a de relatar

onde Tiradentes estava escondido. Uma escolta chefiada por Francisco Pereira

se fizera em Minas, que era aquilo mesmo que tinha dito à dita viúva Inácia, e ao dito Domingos Fernandes, em casa de quem estava” (ADIM, 1982, p. 53, v. 5). 145 Trata-se de um fato real no romance: “Seu desaparecimento [de Tiradentes] provocou grande alarme no palácio do vice-rei. Patrulhas passaram a procurá-lo e a guardar as saídas da cidade (...)” (MAXWELL, 2005, p. 178). Registra-se que o autor se fundamenta em estudos de Herculano Gomes Mathias, Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da Transferência da Sede do Governo do Brasil da Cidade do Salvador para o Rio de Janeiro (3 vols. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1967, II, p. 247-9). 146 Em seu depoimento, na 7ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 20 de junho de 1791, Joaquim José da Silva Xavier assevera: “(...) porém que lhe não lembra, se mandou pelo dito padre, ou pelo mesmo Domingos Fernandes, informar-se de Joaquim Silvério, e pela vizinhança donde ele Respondente assistia, se a seu respeito havia alguma novidade; e que ou o dito Fernandes ou o dito padre lhe trouxe a resposta, de que tendo falado a Joaquim Silvério, este lhe mandara dizer que queria falar-lhe (...)” (ADIM, 1982, p. 52, v. 5). 147 Maxwell (2005), com base em estudos de Herculano Gomes Mathias, Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da Transferência da Se de do Governo do Brasil da Cidade do Salvador para o Rio de Janeiro (3 vols. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1967, II, p. 247-9), confirma que foi exatamente desse modo que o esconderijo de Tiradentes foi descoberto, acrescentando que o Pe. Nogueira fora preso no dia 10 de maio e interrogado por Luís de Vasconcelos no palácio do governo.

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Vidigal dirigiu-se até a casa de Domingos Fernandes, na rua dos Latoeiros148, a fim

de prender Joaquim José: “Surpreendido no sótão, Tiradentes saltou do leito, pegou

a arma149 (...) e encostou-se à parede, disposto à resistência. (...) Atirou para um

lado o bacamarte e entregou-se” (ALENCAR, 1981, p. 245). Naquele momento,

percebe que o sonho da emancipação e da constituição de uma República no Brasil

já não seria mais possível.

Simplício soube da prisão quando um soldado foi à rua de São Pedro para

buscar os pertences de Tiradentes. No mesmo dia, à tardinha, partiu para Vila Rica,

buscando cumprir os pedidos de seu senhor: “Os pássaros soltavam o derradeiro

canto da tarde e a mata que a estrada ia costeando parecia em festa, toda ressoante

de gorjeios e de tatalar de asas. Era um domingo, dia 10 de maio de 1789”

(ALENCAR, 1981, p. 246). Em linguagem poética, o autor, sem o dizer

explicitamente, apresenta a data de prisão de Tiradentes na rua dos Latoeiros.

Também faz menção à prisão dos outros inconfidentes: “Não levaria muito tempo, os

companheiros de Tiradentes desceriam acorrentados das Minas, para serem

lançados nas masmorras da Ilha das Cobras e de outros presídios da capital do

vice-reino, já de antemão escolhidos” (ALENCAR, 1981, p. 247). As outras prisões

ocorreram pouco mais de uma semana após a prisão de Tiradentes150.

148 A prisão de Joaquim José nessa rua, bem como a data apresentada pelo narrador mais adiante, são verdadeiras em Tal dia é o batizado : “(...) no dia 10 de maio acabou sendo preso no sótão de uma casa da Rua dos Latoeiros” (ADIM, 1976, 23, v. 1). Também no documento Auto de Exame em um bacamarte encontrado em poder de Joaquim José da Silva Xavier, realizado no Rio de Janeiro, em 12 de maio de 1789, há confirmação sobre o local e quem chefiava a escolta que prendeu Tiradentes: “(...) Francisco Pereira Vidigal e José Lopes da Costa (...) sendo mandados juntamente com outros soldados a prenderem o Alferes Joaquim José da Silva, (...) acharam ao dito alferes em umas casas na rua dos Latoeiros, e cercadas elas, entraram pelas portas das ditas casas (...)” (ADIM, 1982, p. 370). 149 Realmente, Tiradentes estava com uma arma que lhe fora doada pelo alferes Matias Sanches Brandão: “Deixou o Rio em 02-05-1789, deixando a Tiradentes, para sua eventual fuga, o bacamarte de sua propriedade”, conforme nota explicativa do Dr. Tarquínio José Barbosa de Oliveira, revisor da edição, (ADIM, 1976, p. 237, v. 1), mas, como já visto anteriormente, Joaquim José, em seus depoimentos, declara que pedira o bacamarte “ao porta-estandarte Francisco Xavier Machado” (ADIM, 1982, p. 51, v. 5). 150 As prisões nesse intervalo de tempo podem ser atestadas pela seguinte citação da obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1976, p. 23-24, v. 1): “Pouco mais de uma semana depois, na noite de 20 de maio de 1789, ao tomar conhecimento dos fatos ocorridos no Rio de Janeiro, ordenava o Visconde de Barbacena, as prisões do Pe. Carlos Correia de Toledo e Melo, do Coronel Inácio de Alvarenga Peixoto e do Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza, irmão do Padre Toledo, residentes na comarca do Rio das Mortes, em diligência de que foi encarregado o Tenente Antônio José Dias Coelho e, no dia seguinte, a do Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, morador em Vila Rica, a cargo do Tenente-Coronel Francisco Antônio Rabelo. (...) Com exceção do Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza, que fugiu e só se apresentaria mais tarde, foram os detidos encaminhados diretamente, dos locais onde tinham sido detidos, para o Rio de Janeiro (...)”.

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Assim que recebeu a denúncia de Joaquim Silvério dos Reis sobre a conjura,

seguida pelas denúncias de Basílio de Brito Malheiro e Inácio Correia Pamplona,

(...) o Visconde de Barbacena151 suspendera a derrama, preparara também os seus cárceres provisórios e expedira as ordens de prisão, lançando o terror entre o povo de Vila Rica e o sofrimento no seio das famílias dos conspiradores. Todos estes, depois de interrogados, seriam remetidos ao Rio de Janeiro, carregados de ferros, para darem a prova de zelo do governador. Todos, menos um. Todos, menos o mais ilustre, talvez, entre quantos haviam sonhado obter a liberdade para o Brasil antes que a França houvesse caído a Bastilha. Cláudio Manuel da Costa, com efeito, ficaria sempre em Vila Rica (ALENCAR, 1981, p. 247).

Após alguns dias, Cláudio Manuel da Costa152 foi preso “submetido a

interrogatório e por fim encarcerado num cômodo existente no andar térreo da

residência do contratador João Rodrigues de Macedo. Nesse cômodo foi encontrado

morto na manhã subsequente” (ALENCAR, 1981, p. 247).

Os inconfidentes, segundo o romance, ficaram presos por mais de 30 meses

em cadeias sujas, pestilentas, incomunicáveis, passando por interrogatórios

intermináveis, mal alimentados, doentes, mal vestidos. Na região, o clima de horror

era tão grande, a ponto de pessoas irem ao capitão-general fazer denúncias falsas

“contra os conhecidos e até contra os próprios amigos, senão contra os mesmos

parentes” (ALENCAR, 1981, p. 248).

Desse modo, naquele momento, desvaneceu-se o grande sonho de

Tiradentes e de todos aqueles que desejavam fazer do Brasil uma República e viver

em um país livre.

151 Essa passagem é realidade transposta para o romance, pois “O Visconde, que assinara ofício à Câmara de Vila Rica com data de 14-03, comunicando a suspensão da Derrama, (...) tratou de tomar as providências mais objetivas e urgentes que o caso exigia” (ADIM, 1976, p. 22, v. 1). 152 Nos Conclusos, Rio de Janeiro, 18 de abril de 1792 – Acórdão dos Juízes da Devassa, os juízes afirmam que “(...) logo depois das primeiras perguntas que lhe foram feitas, foi achado morto no cárcere em que estava, afogado com uma liga como consta no apenso n.º 4 da Devassa de Minas” (ADIM, 1982, p. 212, v. 7). Segundo Maxwell (2005), foi improvisada uma cela para Cláudio na casa de João Rodrigues de Macedo, e dois dias depois de ter sido interrogado, foi encontrado morto, e, após o exame de seu corpo, foi escrito um relatório declarando que ele havia se enforcado. Mas não se sabe, com precisão, como ocorreu a morte do poeta, pois as pessoas ligadas ao governador diziam que era suicídio, mas a população acreditava em assassinato. O autor, em nota explicativa, informa que pesquisou o assunto na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasile iro , Rio de Janeiro, LIII, 1890, p. 163-4).

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5 TAL DIA É O BATIZADO : MEMÓRIA E IMAGINÁRIO

A obra sob análise, além de mostrar a trajetória da vida de Tiradentes,

rememora seu pensamento por meio dos diálogos com o escravo Simplício. É,

entretanto, a partir da Oitava Parte da narrativa – momento em que são

apresentados os depoimentos de Joaquim José da Silva Xavier aos Juízes da

Devassa – que o leitor tem um registro de sua memória na representação. Apoia-se,

então, a narrativa em documentos da História do Brasil e nas histórias da tradição

oral dos ouro-pretanos, as quais o autor coletou nas diversas viagens a Ouro Preto e

a São João del-Rei. Vale lembrar que, em um livro de sua autoria, Cidade do sonho

e da melancolia , que versa sobre Ouro Preto, publicado pela primeira vez em 1926,

há um capítulo dedicado às lendas e tradições dessa cidade, ficando evidente que,

muitos anos antes de escrever a obra Tal dia é o batizado , Gilberto de Alencar já se

interessava pela história da antiga Vila Rica.

5.1 Depoimentos de Tiradentes: interlocução com a o bra Eu, Tiradentes :

confissões do maior mito da História do Brasil, de Pascoal Motta

Nos primeiros interrogatórios da Devassa, no romance, Tiradentes negou ter

cometido algum crime, pois, durante as reuniões dos inconfidentes, ficou combinado

que, se o levante não vingasse e se fossem presos, negariam a revolta nos

interrogatórios. Tiradentes, obedecendo ao que fora combinado, negou tudo durante

os três primeiros interrogatórios, com muita tranquilidade: “Não sei a razão pela qual

estou aqui. Não cometi crime algum153” (ALENCAR, 1981, p. 249). Mas, quando

soube que os companheiros romperam com o ajuste combinado nas reuniões,

confirmando que estavam tramando uma revolta para libertar o país da tirania de

Portugal, resolveu confessar tudo:

(...) com toda a dignidade e altivez. (...) Encarou os juízes, cabeça erguida, olhos centelhantes, gestos largos e enérgicos, sem sombra de qualquer temor ou hesitação. Deu com o punho fechado no peito e exclamou: – O único responsável sou eu! Eu é que tive a ideia, mais ninguém! (ALENCAR, 1981, p. 250).

153 Na 1ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 22 de maio de 1789, quando foi perguntado a Tiradentes se sabia a causa de sua prisão, ele respondeu “que não (...) que não tinha crime algum, de que receasse, nem pelo qual fugisse (...)” (ADIM, 1982, p. 18, v. 5).

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Aos poucos, o narrador de Tal dia é o batizado vai apresentando os

depoimentos de Joaquim José, incluindo o lamento de Tiradentes quando era

preterido no Regimento dos Dragões154, sendo este um dos motivos de sua revolta

com o governo da Capitania de Minas Gerais:

Explanou que não chegara a tanto por interesse pessoal, embora, desde muito, viesse sofrendo injustiças, umas após outras, na sua carreira militar. Quando se precisava de alguém para missões delicadas e milindrosas, a ele é que recorriam, dele é que se lembravam. Na hora, porém, das promoções e benefícios, achavam a outros, que campavam de mais bonitos e acaso tinham comadres poderosas a protegê-los. Soldados e furriéis que havia tido sob o seu comando chegaram a tenentes e capitães, enquanto ele ia continuando como simples alferes (ALENCAR, 1981, p. 250-251).

A questão abordada pelo narrador da obra Tal dia é o batizado , ou seja, a

preterição de Tiradentes, também está presente na novela Eu, Tiradentes , em que

o protagonista utiliza-se, até mesmo, em alguns momentos, das mesmas palavras

(campar e comadres) constantes em Tal dia é o batizado , objetivando mostrar sua

grande insatisfação na carreira militar. Além disso, o narrador da novela agrega às

informações apresentadas em Tal dia é o batizado outras que levam o leitor a

conhecer um pouco mais o herói (e mártir) da Inconfidência Mineira:

Ofereci, quase dado, bastantes de meus dias, de minhas noites em mato infestado de bicho feroz, inseto maligno, no exato cumprimento de dever militar, na precisa diligência arriscada, difícil de execução. Por isto, mais não preciso relatar, o desabafo da condição onde andava minha vida encravada, eu aflito duma promoção por puro merecimento. (...) É perigosa a missão? Mande o Alferes Joaquim José. Prender ladrão, assassino? Só com o Alferes Joaquim José. Vai lá o Alferes Tiradentes, ele cavalga num entusiasmo sem medida, sempre enfrenta perigo. Agora, para promoção, subida de patente acima, os chefes iam no achamento de outrens, dos que podiam se campar, se ufanar por mais bonitos ou haverem lá suas comadres, de ajuda (MOTTA, 1990, p. 54).

Percebe-se, nesse depoimento, que Tiradentes era um militar muito valente e

aceitava os desafios de realizar tarefas arriscadas que poderiam, até mesmo, ter

ceifado sua vida, visto que cavalgar por matas virgens era sempre muito perigoso:

havia animais selvagens, mosquitos transmissores de doenças, além dos bandidos

154 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, sobre o mesmo assunto, Tiradentes afirma: “(...) e que tendo projetado o dito levante, o que fizera desesperado, por ter sido preterido quatro vezes, parecendo a ele Respondente, que tinha sido muito exato no serviço, e que achando-o para as diligências mais arriscadas, para as promoções e aumento de postos achavam outros, que só podiam campar por mais bonitos, ou por terem comadres, que servissem de empenho (...)” (ADIM, 1982, p. 32, v. 5).

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que ficavam à espreita nos caminhos para assaltar as diligências que transportavam

o ouro. Por ter sido muito dedicado a seu trabalho, achava justo ter uma promoção

que nunca aconteceu, sendo esta também uma razão para o alferes desejar

mudanças no país.

O narrador do romance deixa claro, em uma fala de Tiradentes apresentada

em discurso direto, que, muito antes de seu ingresso na carreira militar, ele já

sonhava com a emancipação do país, porquanto, nos anos em que passou

mascateando pelos sertões de Minas, observou como o povo vivia humilhado e

oprimido, na miséria, sem condições de uma vida melhor, tendo de enviar boa parte

do ouro extraído para enriquecer Portugal: “– Mas não foi isto o que me [Tiradentes]

moveu. Muito antes de assentar praça no Regimento de Dragões, vinha sonhando

com a emancipação das Minas, com a libertação do Brasil, com a derrubada do

Despotismo” (ALENCAR, 1981, p. 250-251). Como passou alguns anos fazendo

negócios pelo interior de Minas, o protagonista ficava observando o que se passava

com a população, sempre sonhando com a liberdade do povo brasileiro.

Seguindo o depoimento apresentado no romance, o narrador faz referência à

ganância dos governadores das Capitanias, que vinham para o Brasil somente com

o intuito de enriquecer, e, após os três anos do governo, eles, a família, bem como

as pessoas que traziam junto, iam embora com muito dinheiro: “(...) E os capitães-

generais e os seus fâmulos, que se ensopam de riquezas, no meio da pobreza

geral?155” (ALENCAR, 1981, p. 251).

Em seguida, ainda no capítulo do romance Tal dia é o batizado que

apresenta os depoimentos de Tiradentes na Devassa, o alferes diz ter-se

encontrado pela primeira vez com o Dr. José Álvares Maciel156 no Rio de Janeiro;

esclarecendo que este havia chegado naquele momento da Europa. A obra de

Gilberto de Alencar dialoga com a novela Eu, Tiradentes , uma vez que esta

155 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Joaquim José afirma: “(...) porque poderia assim suceder; que esta terra se fizesse uma República, e ficasse livre dos governos, que só vêm cá ensopar-se de riquezas de três em três anos, e quando eles são desinteressados, sempre têm uns criados, que são uns ladrões (...) (ADIM, 1982, p. 33, v. 5). 156 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Tiradentes informa quando encontrou pela primeira vez José Álvares Maciel: “(...) que a primeira pessoa a quem falou, propondo-lhe o intento da sublevação, e motim foi nesta cidade [Rio de Janeiro] a José Álvares Maciel, filho do Capitão-Mor da Vila Rica (...) porque tendo ele chegado da Inglaterra, e indo ele Respondente visitá-lo em razão de ser cunhado do seu tenente-coronel (...). (ADIM, 1982, p. 32, v. 5).

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apresenta diversas passagens em que o protagonista fala aos frades a respeito de

seu primeiro encontro com o Dr. José Álvares Maciel:

Em desde meados de oitenta e oito, aqui nesta Capital do Vice-Reino, em desde o encontro providencial com o Doutor Álvares Maciel, ainda quente de aportar de países europeus, formado em doutor, com bem enrolado diploma debaixo do sovaco, o dito Maciel mandou recado urgente em minha hospedaria na Rua de São Pedro, onde há tempos pousava, para me revelar boas novidades de povos se libertando, de fábricas, de idéias, ideais totalmente diferentes, iluminadores da inteligência. (...) o Brasil (...) precisava urgente sacudir o jugo estrangeiro, que já dispomos de fartura em terra, de decidida gente. (...) De três em três anos mandam novo governo para cá, leva um milhão, criados, outro tanto em suas burras. Por seu lado, como hão de passar os filhos da América? Se o Brasil fosse outra nação já se tinha levantado (MOTTA, 1990, p. 17-18).

Discorri com o Doutor Maciel por suas novidades européias; voltei para Minas Gerais em trote sem esmorecimento, enquanto suportava a cavalgadura. Ia indo perguntando, a quantos calculei acertado: se a América Inglesa conseguiu se livrar do sufoco do jugo anglicano, por que não semelhante processo o Brasil, com brasileiros? (MOTTA, 1990, p. 21).

Pode-se afirmar que o encontro de Tiradentes com Álvares Maciel no Rio de

Janeiro entusiasmou ainda mais o protagonista no seu propósito de libertar o país de

Portugal, lembrando que, desde os tempos em que mascateava pelos sertões da

Capitania de Minas Gerais, pelo fato de presenciar a situação vexatória em que o

povo vivia, ele já pensava nessa libertação. Acrescenta-se que os relatos de

Joaquim José, apresentados na novela Eu, Tiradentes , são muito enriquecedores

para esta pesquisa, porque trazem informações não contempladas pelo narrador de

Tal dia é o batizado , como, por exemplo, que o jovem recém-chegado da Europa

presenteou Tiradentes com um livro das Leis da Constituição dos Estados Unidos,

grande fonte de inspiração não só de Joaquim José, como também de estudantes

brasileiros que estudavam no exterior e dos outros envolvidos na revolução. O

alferes pensava e difundia em seus discursos: se a América Inglesa conseguiu se

libertar, o Brasil também poderá ser livre se o povo se unir e lutar por essa causa.

Tiradentes tomou para si a missão de arregimentar pessoas para o

movimento e relata aos frades que, entre os envolvidos, cada qual tinha um motivo

para se juntar ao grupo:

De mais de perto na adesão de sublevar, de levantar os povos das Minas, de restaurar o País, os dos conventinhos, cada qual possuía seu próprio motor de ação na causa: soltar o Brasil da afiada garra da Metrópole; um escapar de acumulada dívida com a Fazenda Real; outro, ampliar sem vexame seu negócio; um feito minha pessoa aqui, ansiar o povo inteiro

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liberto, (...) construir sua riqueza sem opressão, sem tanta preterição (...) (MOTTA, 1990, p. 153).

Também no romance Tal dia é o batizado , Joaquim José informa, em seu

depoimento, que, depois de ter-se encontrado com Álvares Maciel, procurou adesão

de outras pessoas importantes de Vila Rica e entorno, esclarecendo que foram feitas

muitas reuniões e que ele, por ser muito valente, ficaria com o papel mais

arriscado157, ou seja, ir a Cachoeira do Campo e prender o governador, o Visconde

de Barbacena, e que sua intenção era colocá-lo para fora da cidade juntamente com

a família:

– Procurei adesão dos principais da terra, obtendo a de alguns. Houve então muitas reuniões, na casa do tenente-coronel Freire de Andrade e em outras. Exigi logo, para mim, o papel mais arriscado. Eu é que, no dia escolhido, me colocaria à frente do povo e percorreria as ruas de Vila Rica, dando vivas à liberdade. O tenente-coronel acudiria à frente do Regimento de Dragões para reprimir a sedição, mas, em lugar disso, daria apoio ao movimento, declarando ser o mesmo justo. Eu iria em seguida à Cachoeira do Campo, para prender o Visconde de Barbacena, que seria posto para fora da capitania com a viscondessa e os filhos158 (ALENCAR, 1981, p. 252).

No romance, em uma das reuniões, quando os inconfidentes discutiam a

respeito do destino do Visconde de Barbacena, caso tivesse êxito a revolta, ouviram

uma voz não identificada: “– Melhor seria cortar-lhe a cabeça”159 (ALENCAR, 1981,

157 Ao se fazer a leitura dos depoimentos de Tiradentes na 4ª Inquirição, é possível perceber que tudo o que foi colocado pelo narrador do romance constitui realidade na vida de Joaquim José: “(...) no caminho perguntou ao coronel José Aires Gomes em casa de quem pousou, como se davam os povos com o novo general (...) chegando mais adiante à fazenda do Registro Velho, procurou o mesmo método de conversação com o padre Manuel Rodrigues da Costa (...) o ir ele Respondente a Cachoeira prender o general, e fazê-lo conduzir com sua família para fora do Distrito de Minas (...) ele dito coronel, como chefe da tropa, havia de vir em caminho a rebatê-los, e opor-se-lhes, e em lugar de o fazer se uniria à dita gente, e com ela viria a Vila Rica a dar princípio à sublevação (...)” (ADIM, 1982, p. 33-36, v. 5). 158 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, Tiradentes confirma que ficou encarregado de prender o Visconde de Barbacena: “(...) o ir ele Respondente a Cachoeira prender o general, e fazê-lo conduzir com a sua família para fora do Distrito de Minas, dizendo que se fosse embora, e dissesse em Portugal, que já cá se não carecia de governadores; esta foi a última resolução (...)” (ADIM, 1982, p. 36, v. 5). 159 Na 4ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 18 de janeiro de 1790, embora não confirme, em seus depoimentos, que os inconfidentes haviam planejado cortar a cabeça do governador, Joaquim José afirma que um dos revoltosos disse que não havia levante sem cabeça fora: “(...) não obstante haver quem lembrasse, que não havia levante sem cabeça fora, que segundo a lembrança dele Respondente, foi ou José Álvares Maciel, ou o Padre José da Silva e Oliveira Rolim (...) e só está certo, que ele, Respondente não conveio na proposição [de matar o governador], e disse, que a matar-se algum, fosse o Cabeça de Escova, denominando assim ao ajudante de Ordens Antônio Xavier de Resende, por andar com setecentos negócios logo que chegou. (...)” (ADIM, 1982, p. 36, v. 5).

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p. 154). Tiradentes interrompeu sua fala, olhou para os outros, procurando saber

quem pronunciou aquelas palavras. Mas foi em vão, não descobriu. Então disse: “–

Cortar a cabeça, não! Só em caso de resistência, e o visconde não resistirá

(ALENCAR, 1981, p. 155).

5.2 A Alçada no Rio de Janeiro: julgamento dos inco nfidentes

O narrador do romance sob análise inicia um novo capítulo, informando que

Luís de Vasconcelos foi substituído, em 1790, pelo Conde de Resende, Luís José de

Castro160.

Segundo o romance, em dezembro de 1790, a Alçada chegou ao Rio de

Janeiro, com três magistrados161, para tomar conhecimento da Devassa e julgar os

inconfidentes. Nem os componentes da Alçada nem o vice-rei tinham pressa em dar

andamento ao processo dos conjurados, que, enquanto isso, permaneciam nas

masmorras.

Para os juízes, o importante era colher mais dados: “O que importava era

avolumar os autos e eles os avolumavam com o auxílio de escrivães

semianalfabetos, empilhando resmas sobre resmas de papel, inçadas de gatafunhos

e solecismos” (ALENCAR, 1981, p. 254). Desse modo, foram escritos sete volumes

de livros, nos quais as próximas gerações perceberiam a crueldade da justiça do

Reino e a inépcia dos escribas. Na realidade, as coleções que tratam da

Inconfidência Mineira são compostas por vários livros; a título de exemplo, esta em

que está sendo realizada a pesquisa possui 10 volumes dos Autos de Devassa da

Inconfidência Mineira , organizada pela Câmara dos Deputados, Governo de Minas

Gerais, publicada a partir de 1976. Cumpre ressaltar que essa obra está sendo

muito importante para a realização desta pesquisa, uma vez que torna possível

confrontar as citações do romance, presentes neste estudo, com os dados históricos

160 “O Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Sousa também enviara para Lisboa uma cópia da Devassa aberta na cidade do Rio de Janeiro. E, sobretudo, tendo entregue ao conde de Resende o governo (9-06-1790), iria dar seu testemunho pessoal à Corte” (ADIM, 1976, p. 26, v. 1). 161 “Designou [o Ministro de Portugal Martinho de Melo e Castro] como Chanceler, o Conselheiro Sebastião Xavier de Vasconcelos Coutinho, Chanceler nomeado para a Relação do Rio de Janeiro, e como Juízes-Adjuntos, os Desembargadores de Suplicação, Doutores Antônio Dinis da Cruz e Silva, Agravante, e Antônio Gomes Ribeiro, Agravista. Os três magistrados desembarcaram no Rio de Janeiro no dia 24 de dezembro de 1790” (ADIM, 1976, p. 26, v. 1).

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registrados nos Autos da Devassa, embora tenham sido utilizadas também outras

obras de relevo que versam sobre o tema.

Conforme o narrador do romance, no ano de 1791, houve “mais

interrogatórios, mais acareações, mais diligências. Cumpria que em Lisboa se

ficasse sabendo não ser pequeno, nem de pouco respiro, o zelo dos homens que de

lá vinham vindo para a tarefa do castigo exemplar que era mister” (ALENCAR, 1981,

p. 254).

Em Tal dia é o batizado , José de Oliveira Fagundes162, advogado da Alçada,

visitou Tiradentes. Esse profissional foi designado para fazer a defesa de todos os

inconfidentes. Em um primeiro momento, quis saber os motivos que levaram o

alferes a revoltar-se contra a metrópole, mas Joaquim José repetiu que já havia

falado tudo e recordou mais uma vez:

(...) a ganância do fisco, os horrores da escravidão, o abandono em que permaneciam os povos, a falta de melhoramentos de qualquer natureza, o medo que abafava as consciências e trancava as bocas, as imensas riquezas inexploradas e que poderiam, com a liberdade, fazer da terra uma grande nação. A metrópole só queria saber do ouro, nada mais. Não lhe interessava de modo algum o progresso do Brasil (ALENCAR, 1981, p. 256).

Tiradentes falou ao advogado, com bastante clareza, que não precisava fazer

a defesa dele, e sim a dos outros, porque só ele fora culpado do levante e que ficava

incutindo na cabeça dos outros a ideia de liberdade. O advogado teve apenas 5 dias

para fazer a defesa de Joaquim José. O defensor, segundo o romance, “caprichou

na caligrafia e no latim”, mas faltou com a ética ao diminuir a figura de Joaquim

José, humilhando-o, embora tivesse certeza de que o alferes era um grande patriota:

“(...) [o advogado] não trepidou em desfazer no papel por ele desempenhado, em

apoucar o seu valimento, em retratá-lo [Tiradentes] como um joão-fernandes, como

indivíduo sem posses e sem importância, incapaz de ter tomado a frente do

movimento (...)163” (ALENCAR, 1981, p. 257). Dessa forma, o advogado julgava que

poderia inocentar Tiradentes.

162 Trata-se de um fato real, pois: “Os embargos de defesa oferecidos às sentenças de morte pelo advogado José de Oliveira Fagundes foram rejeitados no dia 20” (ADIM, 1976, p. 29, v. 1). 163 Os Embargos do Advogado José de Oliveira Fagundes, Rio de Janeiro, de 2 de novembro de 1791, comprovam a veracidade dessa passagem: “Quanto ao Réu alferes Joaquim José da Silva Xavier (...) acha-se sem a menor dúvida provado ser ele conhecido por loquaz, sem bens, sem reputação, sem crédito para poder sublevar tão grande número de vassalos quantos lhes seriam indispensáveis para o imaginário levante contra o Estado (...) e eis aqui a falta de pejo e ignorância

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168

Conforme o romance, no ano de 1792, de janeiro a abril, a Alçada, a partir

dos longos depoimentos, daria o veredicto final quanto à sentença de cada um dos

acusados. No dia 17 de abril164, “quase todos eles foram transferidos, pela calada da

noite, das diversas prisões onde se encontravam, para o edifício da Cadeia Pública,

no qual se havia preparado o Oratório165 (ALENCAR, 1981, p. 257).

No dia 18 de abril de 1792, pela manhã, houve uma reunião presidida pelo

vice-rei Luís José de Castro, com o objetivo de lavrar a sentença de cada conjurado;

como foi um trabalho muito longo, somente na madrugada do dia 19 (às duas horas

da manhã) ficou determinado o destino de cada um166.

Nesse momento, foi feita a leitura do texto diante dos inconfidentes, que já

aguardavam no Oratório, algemados e vigiados por soldados armados. Tiradentes

foi condenado à forca, e, depois desse ato cruel:

(...) teria a cabeça cortada e o corpo esquartejado, para que os seus membros pudessem ser expostos em lugares públicos de Minas, os lugares por onde ele andara pregando a liberdade, cabendo a Vila Rica a cabeça. Sua memória era declarada infame e infames seus filhos e netos, seus bens sequestrados, sua casa arrasada e salgado o terreno. Enforcados seriam também Freire de Andrade, Álvares Maciel, Alvarenga, Domingos de Abreu, Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Luís Vaz de Toledo, Domingos Vidal, Salvador Gurgel, cujo crime consistia em ter pedido emprestado ao alferes um dicionário francês em certa ocasião, e Resende Costa mais o filho. Quanto a Cláudio Manuel, não puderam os juízes mandar enforcá-lo, porque o poeta já havia sido enforcado quase três anos antes, sem sentença, mas sequestraram-lhe os bens e decretaram a sua infâmia até a terceira geração. Gonzaga e mais outros conspiradores eram degredados para a África e seriam enforcados se algum dia voltassem ao Brasil. A pena imposta aos padres Rolim, Toledo, José Lopes, Manuel Rodrigues e Luís Vieira, que não foram conduzidos ao Oratório, ficou secreta, porque o Trono nem sempre afrontava a Igreja167 (ALENCAR, 1981, p. 257-258).

da modéstia, e leviandade, e insânia lembrada pelos Imperadores Teodósio, Arcádio, e Honório (...)” (ADIM, 1982, p. 148-149, v. 7). 164 Essa passagem é confirmada do seguinte modo: “No dia dezessete de abril de 1792 os onze conjurados que deveriam ser condenados à pena máxima foram reunidos no Oratório da Cadeia da Relação, a fim de ouvirem a leitura do Acórdão da Alçada” (ADIM, 1976, p. 29, v. 1). 165 Local em que os condenados à forca deveriam passar seu último dia. 166 Na obra intitulada Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1976, p. 29, v. 1), há todas essas informações quanto à data e à lavratura do Acórdão e quem faz a leitura do texto é o Escrivão Desembargador Rocha: “Na lavratura do Acórdão, iniciada na manhã do dia 18, consumiram os Juízes da Comissão cerca de 18 horas, pois a sentença só foi por eles assinada às 2 horas da manhã seguinte. O Escrivão Desembargador Rocha intimou os 11 réus condenados à morte logo a seguir, abrindo-se vista dos autos à defesa no amanhecer de 19 de abril”. 167 Conforme o Acórdão dos Juízes da Devassa no Rio de Janeiro, em 18 de abril de 1792 – documento que descreve, minuciosamente, a culpa de cada réu, apresentando dados dos depoimentos e das acareações realizadas, as informações contidas nessa citação do romance são verdadeiras. Alguns réus acima elencados haviam sido condenados à pena capital, ou seja, iriam morrer enforcados; os bens de Cláudio Manuel da Costa seriam sequestrados; Gonzaga e os outros

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Em Tal dia é o batizado , após a leitura da sentença do dia 18 de abril de

1792, houve uma grande agitação no local, com muitos lamentos e recriminações

dos condenados168, que já haviam sofrido muito na prisão ao longo daqueles três

anos; houve, inclusive, uma testemunha169 que deu o seguinte depoimento: “(...)

Atiravam-se uns aos outros a culpa do que acontecia, choravam, imprecavam,

arrepelavam-se, chamavam pelas esposas, pelos filhos, pela vida que lhes ia ser

tirada (ALENCAR, 1981, p. 258).

No romance, há uma passagem que rememora o momento em que foi feita a

leitura da Carta Régia170 enviada pela Rainha D. Maria I, informando sobre a

condenação dos inconfidentes:

Sua Majestade a rainha, para estadear grandeza de alma, enviara uma carta171 aos magistrados que com tamanho zelo a serviam, declarando que a pena capital só seria de ser executada quanto aos réus mais comprometidos (...) Os demais (...) deveriam ter o castigo comutado em degredo para a África (ALENCAR, 1981, p. 259).

iriam ser degredados. Os padres foram julgados separadamente, conforme o que foi informado na narrativa. O Acórdão consta dos Conclusos dos Autos da Devassa (ADIM, 1982, v. 7). Quanto ao empréstimo do dicionário de francês, como já visto, Tiradentes confirma o fato na 6ª Inquirição, no Rio de Janeiro, Fortaleza da Ilha das Cobras, em 14 de abril de 1791, do seguinte modo: “E que com Salvador do Amaral Gurgel falou poucos dias antes de partir para esta cidade; por ocasião de lhe ir pedir um dicionário francês; porque antes disso não o conhecia” (ADIM, 1982, p. 49, v. 5). 168 Maxwell (2005), em sua obra intitulada A Devassa da Devassa : a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808, não só confirma o tumulto entre os inconfidentes mostrado no romance por Alencar, como também apresenta o relato de uma testemunha que caracterizou a cena como a mais trágica e cômica que se pode imaginar. Vale lembrar que os conjurados ficaram, aproximadamente, três anos incomunicáveis, então, naquele dia, no momento da decisão sobre a vida de cada um, eles ficaram muito alterados em razão dos depoimentos dados pelos colegas durante os interrogatórios. O autor afirma que: “Depois de quatro horas de recriminações recíprocas os presos foram postos sob pesadas correntes ligadas às janelas das salas” (MAXWELL, 2005, p. 221). Registra-se que o autor realizou a pesquisa no Anuário do Museu da Inconfidência , Ouro Preto, Minas Gerais. 169 “... então se vio representada a scena mais trágico comica, que se póde imaginar. Mutuamente pedirão perdão e o derão; porém cada um fazia por imputar a sua ultima infelicidade ao excessivo depoimento do outro. Como tinhão estado, há tres annos incommunicados, era n’elles mais violento o desejo de fallar ...” (MAXWELL, 2005, p. 221). 170 “RIO DE JANEIRO, 15-10-1790 – Carta Régia – Palácio de Queluz, Rio, Pela Rainha, Des. Sebastião Xavier de Vasconcelos Coutinho, do Conselho da Real Fazenda e Chanceler da Relação” (ADIM, 1982, p. 268, v. 7). 171 Essa atitude da Rainha D. Maria I constitui realidade no romance: “(...) Ordeno que a sentença que contra ele, ou contra eles for proferida, segundo a disposição das leis, se dê logo à sua devida execução” (ADIM, 1982, p. 269, v. 7). Nesse caso, o pronome “ele/eles” da citação se refere aos réus que forem reputados por chefes e cabeças da conjuração, e como Tiradentes, em seus depoimentos, conferiu a si próprio a culpa do levante, somente a ele foi determinada a pena máxima. A Rainha determina ainda: “(...) ordeno, pelo que respeita tão-somente à pena capital em que tiverem incorrido, que esta lhes seja comutada na imediata de degredo por toda a vida, para os presídios de Angola e Benguela, com pena de morte se voltarem para os domínios da América” (ADIM, 1982, p. 269, v. 7).

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170

O narrador do romance mostra como os réus receberam a notícia da vida que

lhes foi restituída pela Carta Régia de D. Maria I: “Abraçando-se uns aos outros172,

não obstante os pesados ferros que lhes tolhiam os movimentos, os inconfidentes

mostravam-se furiosamente alegres...” (ALENCAR, 1981, p. 259).

Já no final do romance, Joaquim José da Silva Xavier – que assumira sozinho

a culpa do crime de lesa-majestade contra a Coroa portuguesa – é condenado à

pena de morte mediante acusação de ser o único inconfidente responsável pela

revolta. O romance registra também os momentos anteriores ao cumprimento da

pena, quando foi realizado um ritual com procissão acompanhada por padres, pela

população, pelo vice-rei, pelos magistrados, e até mesmo pelos soldados da

cavalaria que estavam enfileirados em pontos estratégicos próximo ao patíbulo, no

Largo do Riachuelo, Rio de Janeiro. Tudo isso se realizou para servir de exemplo à

população.

5.3 Desenlace: morte de Tiradentes

Segundo Reis e Lopes (1988, p. 200), o desenlace constitui um “evento ou

conjunto concentrado de eventos que, no termo de uma ação narrativa, resolve

tensões acumuladas ao longo dessa ação e institui uma situação de relativa

estabilidade que em princípio encerra a história”. Na obra Tal dia é o batizado , o

desenlace já transparece no título, visto que o nome próprio Tiradentes já faz parte

da memória coletiva dos brasileiros – no Brasil, desde criança, as pessoas já

conhecem o fim trágico de Joaquim José da Silva Xavier. Por conseguinte, aquela

expectativa criada no leitor de como será o fim do romance não existe, mas, como o

narrador possui competência narrativa para narrar os episódios, exprimindo sua

visão de mundo, subjetivamente, será “exatamente essa coerência interna, a

harmonia e o equilíbrio da condução da intriga que absorvem a leitura (e mesmo a

releitura) de relatos cujos desfechos são conhecidos” (REIS; LOPES, 1988, p. 202).

172 Em documento do Rio de Janeiro, de 2 de maio de 1792, de Frei José Carlos de Jesus Maria do Desterro, Guardião do Convento de Santo Antônio – Memória do êxito que teve a Conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro desde 17 até 26 de abril de 1792, há demonstração de grande alegria por parte dos inconfidentes que, antes, tinham sido condenados à morte, afinal, a vida de cada um lhes foi restituída pela Carta Régia de D. Maria I: “A Cadeia foi onde a alegria produziu os seus primeiros efeitos. (...) Houve aí um alvoroço indizível, como se todos os presos participassem da mesma graça. E muitos deles desafogaram finalmente os seus corações entoando terços e outros cânticos de louvor à Mãe de Deus” (ADIM, 1977, p. 105, v. 9).

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171

No romance, o enforcamento de Tiradentes deveria se realizar no dia 21 de

abril de 1792. A Carta Régia da Rainha D. Maria, de 15 de outubro de 1790,

somente negou clemência a Joaquim José da Silva Xavier173, por ele ter-se

declarado o único culpado da sedição: reclamou para si toda a responsabilidade do

movimento de libertação, tendo sido considerado o cabeça da sublevação.

Tiradentes, por vontade própria, como se lê em Tal dia é o batizado ,

assumiu, diante dos juízes da Alçada, sozinho a culpa da revolta e aceitou a morte,

sereno, com muita naturalidade. Essa demonstração de tranquilidade, diante da

desoladora situação em que se encontrava, pode também ser vista na novela Eu,

Tiradentes , na qual o protagonista, na madrugada de 21de abril, faz um relato aos

frades a respeito de sua morte na forca, que acontecerá horas depois, sem nenhum

medo, sem remorso, sem ressentimento:

Padeço morte na forca, em patíbulo construído na Praça da Lampadosa, aqui nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, antes de bater meio-dia deste vinte e um de abril, ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e noventa e dois, por haver intentado libertar o povo brasileiro da escravidão, igual subseqüente descrevo razão, modo, resultado (MOTTA, 1990, p. 9).

Irei de cabeça erguida, daqui a poucas horas para caminhada ao patíbulo da forca. Nada, ninguém, nenhum remorso treme esta perna, esta mão. Projeto discursar com pelo menos um grito, fortíssimo grito em quanto ainda suportar esta garganta já enrouquecida, antes de correr o baraço nela, gritar no ouvido do poviléu acotovelado, a militar, a religioso, a menino, a menina, a homem, a mulher, quem esteja lá por obrigação, por divertimento do espetáculo, na assistência do enforcamento. Lá de cima, hei de soltar derradeiro grito, uma palavra. Ah, isso apronto com confiança da existência no céu do Criador: solto um grito de berro com tal ímpeto a ir abafar tambores dos regimentos; repetirei a palavra liberdade com violência de não despregar nunca jamais do ouvido de cada um, numa oportunidade de instantes (MOTTA, 1990, p. 134).

Percebe-se, por meio de suas palavras, que, mesmo sabendo que morreria,

Tiradentes não desiste do sonho de liberdade: um grito estonteante sairia de sua

garganta, a fim de atingir o coração de todos que assistiriam ao espetáculo de sua

morte para que aquele momento fosse somente o começo da luta pela libertação do

país do domínio português.

173 O Acórdão da confirmação da pena de morte para Tiradentes, firmado no Rio de Janeiro, em 20 de abril de 1792 – Conclusos – reza a seguinte pena para Joaquim José da Silva Xavier: “(...) Em observância da carta da dita Senhora novamente junta, mandam que se execute inteiramente a pena da sentença no infame réu Joaquim José da Silva Xavier, por ser o único que na forma da dita carta se fez indigno da real piedade da mesma Senhora; (...)” (ADIM, 1982, p. 271, v. 7).

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Em Tal dia é o batizado , o protagonista sente alívio pela não condenação de

seus companheiros à morte e, em linguagem poética, é apresentado de forma altiva,

quando caminha para o patíbulo:

Tiradentes deixou o Oratório às oito horas, vestindo a alva e trazendo o baraço ao pescoço. (...) O condenado, empunhando um crucifixo, seguia sereno e digno entre as alas da soldadesca, acompanhado dos meirinhos e do carrasco (...) (ALENCAR, 1981, p. 261).

O narrador do romance, em linguagem poética, faz uma descrição da

trajetória de Tiradentes para o local do enforcamento como se houvesse uma grande

festa para a população, com muito júbilo, pompa, com grande movimentação do

clero, da nobreza e do povo:

(...) as tropas, montadas e a pé, que se estenderam do edifício da cadeia pública, onde se achava o Oratório, até o lugar do suplício, no largo de S. Domingos, passando pelo Largo da Carioca e Rua do Piolho. Os oficiais, os juízes, o ouvidor, as pessoas de importância cavalgavam magníficos corcéis, ajaezados de prata e enfeitados de plumas. Multidão imensa enchia completamente as ruas e praças por onde deveria passar o cortejo e de todas as sacadas pendiam panos adamascados de vária cor174 (ALENCAR, 1981, p. 261).

Tiradentes saiu do Oratório de manhã, às 8 horas, “(...) vestindo a alva e

trazendo o baraço ao pescoço. Só alcançaria o Largo de S. Domingos às onze, tão

morosa foi a marcha até o patíbulo175” (ALENCAR, 1981, p. 261).

Em Tal dia é o batizado , Tiradentes foi acompanhado de nove frades, além

dos meirinhos e do carrasco176. Houve muitas rezas no trajeto. Capitania era o

174 Essa passagem do romance é confirmada no mesmo documento do Rio de Janeiro, de 2 de maio de 1792, de Frei José Carlos de Jesus Maria do Desterro, do seguinte modo: “Para esta [ação], concorreram no lugar da execução três regimentos: o de Extremós, o Primeiro e o Segundo do Rio – municiados com 12 tiros de bala. Postou-se no Largo de São Francisco de Paula o Regimento de Artilharia comandado por seu coronel José da Silva Santos. (...) Achou-se presente, montado a cavalo com a guarda que lhe convinha, o Exmo. Sr. D. Luís Benedito de Castro. Testemunhou a ação o Des. Francisco Luís Álvares da Rocha, escrivão da Alçada. (...) A concorrência de tanta gente, assim do povo como da milícia, a assistência de tantos homens que singular e distintamente ficam nomeados, trazidos ali em razão de seus postos e empregos (...)” (ADIM, 1977, p. 109-110, v. 9). 175 A passagem do cortejo de Tiradentes constitui um fato real no romance: “O Alferes Xavier, excluído da clemência da Rainha, subiu ao patíbulo ao meio-dia de 21 de abril de 1792, tendo o cortejo saído da Cadeia da Relação às 8 horas da manhã” (ADIM, 1976, p. 30, v. 1). 176 Em documento do Rio de Janeiro, de 2 de maio de 1792, de Frei José Carlos de Jesus Maria do Desterro, Guardião do Convento de Santo Antônio – Memória do êxito que teve a Conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro desde 17 até 26 de abril de 1792, há comprovação de que Tiradentes, no trajeto para sua execução, fora acompanhado pelos eclesiásticos: “Nove religiosos franciscanos acompanharam este padecente. Antes que ele morresse, o Rev. Pe. Mestre Frei José Carlos de Jesus Maria do Desterro, guardião do Convento desta cidade,

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apelido do carrasco que o acompanhava, um negro que havia cometido muitos

crimes. Há um diálogo entre a obra em estudo e a novela Eu, Tiradentes , no que se

refere ao momento do enforcamento de Tiradentes: Joaquim José despede-se da

vida do seguinte modo: “Aí envém o Capitania no preparo de meu corpo para

enforcamento, que a roupa trago esfarrapada, crescido o cabelo, longa a barba.

Adeus. Eu, Tiradentes, beijo a mão a Vossas Mercês e a do carrasco” (MOTTA,

1990, p. 182).

A morte é um evento constitutivo do herói do romance Tal dia é o batizado .

No momento em que caminha para a forca, o protagonista rememora passagens de

sua infância criadas pelo narrador, como preâmbulo do que iria acontecer com ele

no futuro. Agora as imagens reaparecem, confirmando o que o narrador já havia

premeditado antes, na Primeira Parte do romance, quando Joaquim José ainda era

menino na Fazenda do Pombal: “À saída da vila, em frente às últimas casas, num

poste de madeira plantado à margem do córrego do Lenheiro, via-se a cabeça

ensanguentada de um negro, de olhos abertos e língua pendente. Era a cabeça de

um escravo (...)” (ALENCAR, 1981, p. 23-24). Essa imagem deixou o menino

Joaquim José muito assustado, a ponto de ele não querer ir mais para a escola,

como já visto no quarto capítulo desta tese.

Também rememora as seguintes palavras da velha escrava Balbina: “– Eh!

eh! Nhonhô Joaquim vai dar que falar nesse mundão tudo por aí... Nesse mundão

de Nosso Senhor” (ALENCAR, 1981, p. 34). Ele se lembrou ainda do espanhol que

passara pela fazenda – um forasteiro que veio ao Brasil atrás de diamantes. O

espanhol sentiu uma atração por Joaquim José, pegou em sua mão esquerda e

disse à sua mãe, D. Antônia: “– Vai ter uma vida difícil, será célebre, sofrerá

bastante... (...) Morrerá... Não digo como morrerá. Pode ser até que me engane...

Digo só que o seu nome se tornará glorioso, depois que morrer...” (ALENCAR, 1981,

p. 33).

Além dessas imagens, outras vinham à memória de Tiradentes próximo à

hora de sua morte, tais como a do touro bravo na estrada, a boicininga atraindo o

passarinho no cupim, o altiplano de ventos fortes, cenas que se tinham passado

quando ele e os irmãos iam para a escola do mestre Lucas. Tudo ia passando,

ligeiramente, em sua memória como se fosse uma imagem fotográfica de sua vida,

fez uma fervorosa prática segundo as idéias repentinas que lhe oferecia aquele espetáculo” (ADIM, 1977, p. 110, v. 9).

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confirmando as profecias de mãe Balbina e do espanhol. Assim, comprovando as

predições do narrador, apresenta-se a cena da morte do herói177 do romance:

Cortada a cabeça de Tiradentes e dividido o corpo em quatro partes, o escrivão da Alçada lavrou, com o sangue do herói, a certidão de que o réu Joaquim José da Silva Xavier tinha sido levado ao lugar da forca e nesta padecido morte natural. Por ordem do vice-rei, o corpo esquartejado foi metido em salmoura, para no tempo oportuno ser enviado às Minas. Sobreviriam vários dias de regozijo e de graças a Deus na capital do vice-reino178 (ALENCAR, 1981, p. 265-266).

A novela Eu, Tiradentes realiza um jogo intertextual com a passagem da

morte de Joaquim José na obra Tal dia é o batizado , pois ele, em suas confissões

aos frades, já antecipa o que lhe vai ocorrer após o enforcamento. Assim, em

linguagem poética, o protagonista faz menção ao destino que será dado às partes

de seu corpo do seguinte modo:

Igual acima comento, a Lua regressa amanhã com seu cortejo de luz, dela, com a das estrelas, nesta altura, nesta hora, neste exato espaço. Por esse tempo, pedaços, quartos em salmoura deste corpo estão sendo indo espalhados pelo Caminho de Minas, de modo causara apavoramento no povo, com logo em seguida, dias após, minha cabeça se mostrará espetada em alto poste na principal praça pública de minha Villa Rica, com idêntico objetivo de escarmento de vassalos, para eles curvar ainda em mais a cerviz na obediência cega (MOTTA, 1990, p. 91).

Nesse depoimento, nota-se que, apesar de saber que seu fim seria trágico,

suas palavras não transmitem melancolia; a novela, talvez, intencione, com a

tranquilidade do herói, passar a mensagem de que a Inconfidência Mineira

representa importantíssimo capítulo de nosso processo de libertação. A Figura 13, a

seguir, ilustra o momento do enforcamento de Tiradentes:

177 Essa triste passagem do romance, em que ocorre o enforcamento de Tiradentes, seguido de seu corpo esquartejado e exibido nos lugares em que jogava as sementes para ver seu país livre do domínio português, é confirmada por Maxwell (2005, p. 221) do seguinte modo: “A sentença condenou Tiradentes à forca, a ter a cabeça cortada e exibida em sobre uma alta estaca, no centro de Vila Rica e, mais, a ter o corpo esquartejado e suas partes expostas nas vias de acesso à capitania e naqueles lugares por ele mais frequentados”. Registra-se que a informação apresentada por Maxwell a respeito da execução de Tiradentes encontra-se na Certidão assinada por Francisco Luís Álvares da Rocha do seguinte modo: “(...) certifico que o réu Joaquim José da Silva Xavier foi levado ao lugar da forca levantada no Campo São Domingos, e nela padeceu morte natural, e lhe foi cortada a cabeça, e o corpo dividido em quatro quartos (...)” (ADIM, 1982, p. 283, v. 7). 178 Na obra Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (1982, p. 291-292, v. 7), há um documento que mostra as cerimônias religiosas para dar graças a Deus pela descoberta da conjuração: “RIO DE JANEIRO, 26-04-1792 – Cerimônias religiosas em regozijo pelo malogro da Inconfidência”.

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175

Figura 13 – Enforcamento de Tiradentes – quadro de Alberto da Veiga Guignard.

Fonte: ADIM, 1983, p. 81, v. 10.

Segundo o narrador de Tal dia é o batizado , após o enforcamento de

Tiradentes, o corpo foi, pois, esquartejado para, depois, ser enviado a Vila Rica.

Algumas partes foram expostas nos lugares por onde passava pregando as ideias

de libertação do país: Borda do Campo, Fazenda do Registro Velho e das Cebolas.

Em julho de 1792, conforme o romance, a cabeça de Tiradentes chegou a Vila Rica.

O Visconde de Barbacena mandou colocá-la dentro de uma gaiola de ferro e expô-la

em um poste bem alto, erguido no “centro da praça principal, entre o palácio do

governo e a cadeia pública179” (ALENCAR, 1981, p. 267).

A morte rompeu os laços entre Joaquim José da Silva Xavier e a comunidade

da Capitania de Minas Gerais, porquanto, após o episódio de sua execução, “(...) o

179 O Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, formado em leis, foi preso porque tentou avisar os envolvidos na revolta sobre a denúncia de Joaquim Silvério, a fim de que eles se pusessem a salvo. Quando Tiradentes foi executado, ele era o Primeiro Vereador do Senado da Câmara de Vila Rica e coube-lhe recitar “revestido de todo o amor Patrício e das obrigações de vassalo uma interessante Fala a que assistiram o General, o Bispo, Nobreza e Povo da Vila”. Seu discurso versou sobre “o crime horrendo, cujo efeito mostra no centro daquela praça os restos de um pérfido!” (ADIM, 1981, p. 173, v. 4). O Dr. Diogo faz alusão à cabeça de Joaquim José, colocada no alto de um poste em Vila Rica, fato real apresentado em Tal dia é o batizado .

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Visconde de Barbacena ordenara que os habitantes iluminassem durante três noites

consecutivas as fachadas de suas casas, em sinal de regozijo público pela tragédia”

(ALENCAR, 1981, p. 267); as pessoas desapareceram das ruas e não falavam

publicamente sobre o assunto. A cidade foi tomada por um grande temor e pesar

pelos últimos acontecimentos. As famílias dos inconfidentes sentiam-se arrasadas,

emocional e financeiramente, pois ficaram desamparadas, sem recursos, visto que

os bens dos revoltosos foram confiscados pela Coroa portuguesa.

5.4 Epílogo: tradição oral e imaginário presentes n o romance

Segundo Reis e Lopes (1988, p. 203, grifo do autor), o epílogo “é constituído

por um capítulo ou comentário, normalmente breves, aludindo, no final da narrativa,

ao destino das personagens mais destacadas da ação, depois de ocorrido o

desenlace”. Fiel a esse princípio, o narrador reserva a Nona Parte do romance,

composta de sete capítulos, para apresentar o epílogo da narrativa, colocando em

cena, novamente, a ex-noiva de Tiradentes, Isabel Gracinda, e seu escravo

Simplício, personagens que se destacaram na obra.

Nesse momento do romance, o narrador juntou as pontas do início e fim da

obra, trazendo à tona, mais uma vez, o tema do amor na narrativa: surge

novamente, já de cabelos grisalhos e com aproximadamente 40 anos, Isabel

Gracinda, que “NÃO O [Joaquim José] ESQUECERA NUNCA, ao invés do que ele

havia imaginado” (ALENCAR, 1981, p. 283).

Simplício, o escravo que acompanhou Joaquim José ao longo da narrativa e

com quem eram estabelecidos os diálogos, depois que voltou do Rio de Janeiro,

passou a morar próximo das Águas Férreas, em uma casa pequena e simples. Ficou

muito triste com a tragédia ocorrida com seu grande amigo e “irmão”; não quis mais

nem voltar a Vila Rica, sobretudo após a notícia de que a cabeça de Joaquim José

estava exposta lá, dentro de uma gaiola de ferro. Vivia quase em um isolamento

absoluto, quando, um dia, recebeu um escravo em sua casa, trazendo-lhe um papel

com a seguinte mensagem: “Uma pessoa da Vila de S. João del-Rei, sua conhecida

de outros tempos, deseja falar-lhe hoje mesmo sobre um assunto que muito

interessa aos dois. Pede que acompanhe o portador” (ALENCAR, 1981, p. 269).

Para Simplício, esse acontecimento foi motivo de grande espanto e também de

preocupação, pois todos sabiam que ele era o escravo de Tiradentes. Muitas

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dúvidas lhe ocorreram: quem seria aquela pessoa? Por que queria falar com ele?

Por que ela mesma não veio falar-lhe? Mas, enfim, aprontou-se e acompanhou o

escravo da mulher misteriosa.

Conforme Reis e Lopes (1988, p. 203), “(...) com o desenlace há muito

consumado, trata-se então de, num diálogo entre duas personagens, referir fatos

posteriores a esse desenlace”. Ao chegarem a casa, uma mulher esperava Simplício

no patamar da escada. Ela o recebeu com um sorriso emocionado e carregado de

tristeza. Era Isabel Gracinda.

Gracinda queria que Simplício a ajudasse a dar uma sepultura à cabeça de

Tiradentes, embora a cidade estivesse sendo vigiada. Ele perguntou a Gracinda: “–

Quem irá retirá-la lá da praça? Quem terá coragem de enfrentar a gente do capitão-

general e de arriscar a própria vida? (ALENCAR, 1981, p. 274). Calmamente, ela

respondeu que seriam eles dois. Atemorizado, o antigo escravo aceitou participar da

perigosa investida, mas disse que era necessário procurar um coveiro. Ele mesmo

ficou encarregado de fazer isso; então, procurou o coveiro do cemitério S. Francisco

de Paula, João Santiago, que morava na rua do Vira-e-Sai. Era uma noite fria do

mês de julho, quando Simplício e Isabel seguiram rumo ao centro da praça de Vila

Rica. A mulher estava envolvida com um pesado manto que cobria o rosto e todo o

corpo: “O coveiro, vendo-a toda embuçada, não quis aproximar-se dela, por

discrição (...)” (ALENCAR, 1981, p. 282, grifo nosso).

O signo “embuçada” intertextualiza a narrativa com a lenda do Embuçado,

cujo resumo será apresentado mais à frente. Também o nome da rua onde morava o

coveiro, “Rua do Vira-e-Sai” (ALENCAR, 1981, p. 276), estabelece um intertexto com

uma personagem da tradição oral dos ouro-pretanos: a lenda do Vira Sahia, que

também será apresentada mais adiante.

Simplício e Isabel roubaram a cabeça de Joaquim José para ser enterrada no

cemitério São Francisco de Paula:

Dias depois, quem passasse pelo cemitério de São Francisco de Paula, a cavaleiro de Vila Rica, veria, a um dos ângulos do muro de pedra, a cova recentemente aberta por João Tiago. Encimava-a uma pequena cruz de madeira e apresentava-se toda cheia de pés de escabiosa, a flor da saudade (ALENCAR, 1981, p. 283).

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Assim, Isabel Gracinda e Simplício conseguiram dar um pouco de dignidade

àquele herói (e mártir), que morreu pelo grande amor à sua Pátria, pela vontade de

libertá-la de Portugal e torná-la uma República.

Neste final do romance, o narrador realiza, como se vê na passagem

seguinte, um intratexto, ao se referir à escabiosa como a flor da saudade, pois,

quando Joaquim José ainda era menino, ele e Gracinda foram ao cemitério visitar a

sepultura da mãe dele, D. Antônia da Encarnação, que morrera ainda jovem: “A terra

fresca havia sido transformada por ele num pequeno canteiro, muito bem arrumado

e repleto de mudas de escabiosa, a flor da saudade” (ALENCAR, 1981, p. 42).

Nessa parte da obra, o narrador apresenta episódios da tradição oral: uma

das lendas do roubo da cabeça de Tiradentes e as lendas do Embuçado e do Vira

Sahia. Em Ouro Preto, segundo Xavier (2009), há uma obsessão dos moradores por

encontrar a cabeça de Tiradentes. Ouve-se dizer que sempre há alguém com pá na

mão escavando o Pico do Itacolomi ou mergulhando no Lago do Gambá, buscando

encontrar a cabeça de Joaquim José da Silva Xavier. Ouro Preto tem muitas

histórias a contar, pois, em sua memória coletiva, ficaram registrados episódios da

época do ciclo do ouro: as lendas, os fantasmas, as assombrações, que fazem parte

do imaginário dos habitantes e que passam de geração a geração.

Há muitas lendas sobre o roubo da cabeça de Tiradentes. Segundo alguns, a

cabeça, depois de embalsamada, foi posta em uma urna de pedra, fechada, e

depois foi colocado ouro em pó até preenchê-la completamente. Essa urna foi

enterrada em lugar desconhecido (XAVIER, 2009). Outros contam que a cabeça foi

roubada por um monge e ficava guardada em uma caixa, sendo usada nos

momentos de meditação do religioso sobre a vida e a morte (XAVIER, 2009). Ainda

há outra versão da lenda, na qual o narrador de Tal dia é o batizado se inspirou

para escrever o epílogo da obra. Veja-se o resumo, escrito a partir do livro de

Gilberto de Alencar (1971) intitulado Cidade do sonho e da melancolia , publicado

pela primeira vez em 1926.

A cabeça era guardada por sentinelas e houve severas ordens para que se

atirasse em quem tentasse retirá-la do poste. Como a população estava muito

aterrorizada com o que ocorrera, ninguém comentava o assunto. Então a cidade foi

coberta pelo pavor, luto e desânimo. Os dias iam se passando, e a cabeça de

Tiradentes ia se decompondo pendurada no poste. Em uma noite muito escura e

tempestuosa, o vento derrubou a gaiola, apagando a lanterna. O guarda ficou

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assustado, correu com a intenção de apanhar a gaiola com a cabeça, mas, de

repente, surgiu um "vulto mascarado" e desapareceu com ela debaixo de uma forte

chuva; a lenda não esclarece quem era essa pessoa. Mas, segundo Bernardo

Guimarães, citado no livro de Alencar (1971), foi encontrada, muitos anos depois,

uma caveira na casa de um velho do qual se falavam coisas estranhas. Esta cabeça,

segundo a lenda, podia ser de Tiradentes e o velho, o mascarado da noite chuvosa.

A lenda do Embuçado, também presente no livro Cidade do sonho e da

melancolia , conta que, em uma noite, depois de Joaquim Silvério dos Reis ter

denunciado os planos da sublevação ao Visconde de Barbacena, percorreu as ruas

escuras de Vila Rica um vulto negro que bateu em algumas portas com o objetivo de

avisar os envolvidos na Inconfidência Mineira sobre a traição de Joaquim Silvério

dos Reis. Eles foram informados da suspensão da derrama e das prisões que iriam

ser ordenadas pelo governador. Segundo a lenda, o Embuçado esteve na casa de

Cláudio Manoel da Costa, de Marília, de Tomás Antônio Gonzaga, entre outros, e

aos que não encontrou, deixou recados com os empregados os quais ficaram

assustados com o vulto encapuzado e com a estranha notícia. Os inconfidentes,

entretanto, não consideraram a notícia daquela pessoa encapuzada e, no outro dia,

todos foram presos.

Conta-se que o Embuçado, em sua pressa de avisar a todos, acabou batendo

em uma porta errada, gerando o desespero nas mulheres que o atenderam. Ele deu

pelo engano e saiu apressado. Assim, o dono dessa casa, ou um de seus

moradores, também foi preso junto com os inconfidentes e somente depois de

muitas explicações conseguiu sair da prisão. Mesmo tendo-se passado muitos anos,

ninguém sabe quem foi esta pessoa encapuzada. Há quem fale que o Embuçado

era uma mulher; já outros acreditam ter sido um oficial próximo ao Visconde.

A obra Eu, Tiradentes apresenta esclarecimentos importantes a respeito da

Lenda do Embuçado por meio da seguinte confissão de Joaquim José aos frades:

Igual relatava, mandei de volta só com roupa do corpo os dois companheiros negros. Que em Villa Rica procurassem uma mocinha, noiva de um dos confederados, lhe avisasse prestíssimo de minha provável detenção aqui no Rio de Janeiro, e aos demais conjurados. Que corressem atrás dessa moça; ela providenciasse urgente recurso de transmitir minha mensagem aos principais envolvidos, detentores de preciosos documentos, comprometedores de muitos demais aderentes. Que botassem fogo em tudo, fugissem naquela mesma noite para pontos combinados. (...) que se salvassem os cabeças da revolução. A causa não perderia com detenção de apenas um. Triste engano: não puseram fé na mensagem passada por

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aquela verdadeira heroína inconfidente. Anteontem, aqui neste Oratório, depois da leitura das sentenças finais, da alegria de todos de não mais padecerem morte, o Doutor Gonzaga me confessa da recepção dum aviso, tarde da noite, duma pessoa embuçada, de feminino jeito, mandando que ele escapasse imediatamente, com que o dito poeta apenas teve tempo de queimar leis rascunhadas da nova República, passar avisos, que jeito não conseguiu de fugir da Villa; acaba detido, logo em seguida (MOTTA, 1990, p. 90-91).

Segundo o protagonista da novela, a mulher dessa lenda é Maria Doroteia, a

Marília, noiva de Tomás Antônio Gonzaga: o alferes enviou seus dois escravos a

Vila Rica para procurarem a moça e pedir-lhe que avisasse aos outros inconfidentes

a respeito de sua possível prisão no Rio de Janeiro, recomendando-lhes que

rasgassem os papéis comprometedores e fugissem. No depoimento aos frades,

Tiradentes diz que o próprio Gonzaga confessou-lhe ter recebido um aviso de uma

pessoa embuçada, que parecia ser uma mulher, mas a verdadeira identidade de

quem é, realmente, o Embuçado da lenda ainda é uma incógnita, pois Maria

Doroteia pode ter recebido o aviso, mas ter enviado outra pessoa às casas dos

inconfidentes.

Xavier (2009), nas pesquisas realizadas in loco com antigos moradores de

Ouro Preto, dedica um capítulo de seu livro à lenda do Vira Sahia. Veja-se um

resumo do que lhe foi relatado: na Ladeira de Santa Efigênia, há uma casa muito

antiga, construída em 1741. Os moradores dizem que esta é a casa do Vira Sahia.

Há muitos casos de assombração relacionados a essa casa, inclusive relatos de

aparições de padres. Também dizem que aparece um homem bem-vestido, de

bengala na mão, que ouve as conversas da família na hora de rezar o terço.

Acreditam ser o próprio Vira Sahia. Conforme a lenda, Antônio Francisco Alves era o

Vira Sahia; ele mandou construir um oratório em frente a sua casa, com uma

imagem de Nossa Senhora das Almas, mas a santinha era usada como senha para

indicar aos salteadores o caminho por onde o ouro, resultado do quinto, sairia. Os

moradores acreditam que o Vira Sahia era uma pessoa de posses e que tinha

amizade com algum funcionário da Casa de Fundição, que informava o caminho por

onde sairia o ouro. Assim, a santinha apontava, ora para o lado da estrada de

Saramenha, ora para o lado do Passa Dez. Mas as autoridades acabaram

descobrindo o que ocorria. A casa do Vira Sahia foi invadida por soldados; sua

esposa e as filhas foram amarradas, a casa saqueada, os móveis destruídos e

documentos queimados. O Vira Sahia foi morto sem julgamento, e suas filhas foram

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mortas e jogadas em um matagal.

Na cidade de Ouro Preto, muitas lendas são contadas e vão passando de

geração a geração, ficando gravadas na memória coletiva dos ouro-pretanos. Essas

histórias da tradição oral constituem um grande patrimônio dessa cidade, e, para

não o perder, as pessoas simples vão reforçando as narrativas, enfeitando-as,

dando a elas um tom de veracidade para que os que ouvem possam gravá-las em

sua memória e recontá-las, de acordo com a imaginação de cada um. Assim,

percebe-se que as histórias contadas oralmente ainda estão muito presentes na

memória coletiva da população, que vai acrescentando a elas mais mistérios e

poesia.

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6 RESULTADOS DA PESQUISA

A partir da análise do romance Tal dia é o batizado , observou-se que o

narrador mescla fatos históricos, verdadeiros, com episódios fictícios; portanto,

pode-se afirmar que a obra alinha-se com a teoria de Iser (1983, p. 957), segundo o

qual “os textos ficcionais não são de todo isentos de realidade”. A bem dessa

informação, citem-se, entre outros episódios do romance, o amor romântico de

Joaquim José e Isabel Gracinda, episódio fictício, pois, na historiografia, não há

registro desse envolvimento amoroso do protagonista, enquanto que os fatos

históricos representados sobre a Inconfidência Mineira, em sua maioria, estão de

acordo com a realidade presente nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira .

A partir das ideias de Iser (1983), podemos dizer que a construção literária de Tal

dia é o batizado é característica de um “como se”, que não é idêntico nem ao real,

nem ao imaginário, havendo, portanto, simbiose de um fato da realidade com uma

criação do imaginário.

Conforme estudos de Lukacs (1965), para se considerar uma narrativa um

romance histórico, é necessário que escritor e texto apresentem algumas

características próprias desse gênero textual. Segundo o autor, para a produção de

um romance histórico, o escritor precisa ter qualidades específicas quanto ao dom

de escrever, ou seja, ele necessita ter um talento especial para narrar aquilo que é

historicamente autêntico no que se refere aos costumes e aos sentimentos dos

homens. Nesse tipo de narrativa, a história é bem mais que os costumes e o

cenário, uma vez que ela determina realmente a vida, o pensamento, o sentimento e

a conduta de suas personagens; enfim, o escritor deve ser um criador de indivíduos.

No caso do romance Tal dia é o batizado , pode-se afirmar que o escritor

possui as características apontadas por Lukacs, visto que possui o dom de escrever

nato, conforme pode ser verificado em seus dados biográficos e nos trechos das

correspondências de críticos literários e escritores apresentados no segundo

capítulo desta pesquisa. O narrador dessa obra criou personagens, dando-lhes vida

e plasticidade. Enfim, ele criou indivíduos capazes de expressar sentimentos e

emoções; por exemplo, o protagonista Joaquim José passou por momentos de

alegrias e tristezas; ele mesmo, em discurso direto ou indireto livre, expressou, em

diversas passagens do romance, além de suas emoções, sua ideologia libertária em

relação à condição de colônia em que vivia o Brasil.

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Lukacs (1965) acrescenta, ainda, que o romance histórico deve apresentar

uma reprodução artística fiel de uma época histórica concreta, sendo importante

assinalar que a história não pode ser somente o pano de fundo das ações

apresentadas nesse tipo de romance. Também as personagens têm de estar em

sintonia com a especificidade histórica da época focalizada, ou seja, elas devem ser

apresentadas como seres pertencentes a uma época concretamente determinada.

Em Tal dia é o batizado , o referente histórico (a Inconfidência Mineira e a

trajetória de Tiradentes) está bastante presente e de forma declarada. Há uma

evocação precisa do período do Brasil colonial do século XVIII, com a devida

representação do surgimento, das causas e de toda confabulação da revolta

premeditada na Capitania de Minas Gerais até o momento final, ou seja, a morte de

Tiradentes na forca e a extradição dos outros inconfidentes para a África. Além de

uma representação da trajetória do protagonista desde sua infância, aparecem as

personagens históricas dentro da ficção, respeitando-se a cronologia dos eventos,

sendo as datas e os fatos históricos apresentados com muita fidedignidade com o

“real” presente em documentos, biografias e obras históricas que versam sobre o

tema. A história do romance foi escrita com base no que realmente existiu, e isso o

autor atesta já na primeira página do livro, a qual intitula “Personagens”, em que

apresenta uma série de nomes de pessoas reais da História do Brasil, com uma

breve biografia ou uma referência de cada uma, mostrando que as personagens do

romance foram inspiradas, de fato, nos atores envolvidos na Inconfidência Mineira

ou em outras pessoas que viveram na Capitania de Minas Gerais naquela época.

Também os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa são

lembrados quando o autor cita trechos de seus poemas, dando mostra de real na

narrativa.

A partir das considerações apresentadas, pode-se, portanto, afirmar que Tal

dia é o batizado é um romance histórico, como bem o atesta seu editor, em

publicação de 1981: “Dotado de um estilo vibrante e preciso, Gilberto de Alencar,

com TAL DIA É O BATIZADO, coloca-se na primeira linha de nossos modernos

romancistas, recriando a linha brasileira de romance histórico que teve admiráveis

cultores em José de Alencar e Paulo Setúbal”180. Por outro lado, além de apoiar-se

180 ALENCAR, Gilberto de. Orelha da capa. In: ALENCAR, Gilberto de. Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes). 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. (Coleção Cores do Tempo Passado. Série 2 – Grandes Homens da História).

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na história, a obra, como já se frisou neste estudo, fortalece-se pela literariedade

inventiva de seu criador. O autor valeu-se também do imaginário presente na

memória coletiva dos ouro-pretanos, pois, nas viagens realizadas a Ouro Preto e a

São João del-Rei, coletou muitos dados da tradição oral: lendas, relatos sobre

fantasmas, história oral, casos...

Ao valer-se de tais episódios, Gilberto de Alencar estaria também

contribuindo para pesquisas da moderna historiografia, a julgar pelo que diz Le Goff

(2003, p. 7), segundo o qual, na atualidade, os historiadores se interessam cada vez

mais pelas relações entre história e memória, pois a história tem relação não só com

o tempo cronológico, como também “com o tempo vivido e registrado naturalmente

dos indivíduos e das sociedades”.

Esse mesmo autor ainda enfatiza: “O tempo histórico encontra, num nível

muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta”

(LE GOFF, 2003, p. 13), no que é referendado por Halbwachs (2006, p. 5), para

quem “A história não é todo o passado e também não é tudo o que resta do

passado”, pois, paralelamente a uma história escrita, existe uma história viva, que

permanece ou se renova através do tempo.

Segundo Halbwachs (2006), a memória tem como base o passado “vivido”,

que torna possível a composição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de

forma viva e natural, mais do que sobre o “passado apreendido pela história escrita”.

Desse modo, percebe-se a importância do papel que a memória coletiva

desempenha em todas as sociedades, pois funciona como reservatório da história,

rico em documentos e arquivos. O autor apresenta a diferença entre memória e

história: a história de uma nação pode ser compreendida como um resumo dos

episódios mais relevantes para um grupo de indivíduos, mas encontra-se muito

afastada das percepções do indivíduo.

Com base nas citações apresentadas neste estudo de episódios da história

registrados na obra Tal dia é o batizado , constatou-se, nesta pesquisa, que a

história serviu de base para a produção dessa narrativa e que o autor, tal como os

historiadores, fez uma minuciosa pesquisa em documentos concretos para escrever

o romance, mesclando realidade e ficção, sem deturpar a verdade histórica: “Ao

mesmo tempo [Gilberto] documentou-a com as mais modernas pesquisas neste

campo [História], oferecendo-nos uma obra em que a realidade alia-se à ficção, sem

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que entretanto a verdade histórica seja deturpada”181. O romance em estudo, por ter

se apropriado de um fato histórico e das personagens envolvidas, leva o leitor a

fazer uma leitura do presente a partir de acontecimentos históricos.

A obra Tal dia é o batizado parte da história individual de Joaquim José,

desde que ele tinha 7 (sete) anos de idade e morava na Fazenda do Pombal, na

Capitania de Minas Gerais, até a vida adulta e seu trágico desaparecimento. No

processo de criação da obra, o autor conseguiu traçar um panorama da sociedade

da Capitania de Minas Gerais do século XVIII, buscando mostrar os problemas

políticos e sociais daquela época, aguçando o pensamento crítico do leitor,

propiciando uma reflexão sobre questões da atualidade originadas nos governos das

capitanias daquela época, como, por exemplo, a corrupção, tão presente hoje, mas

que já era uma prática na época em que o país era colônia de Portugal.

Estudos de pesquisadores como Jacques Le Goff, Duby, Peter Burke, entre

outros, têm mostrado uma nova abordagem para a pesquisa acadêmica, valorizando

a subjetividade nos textos narrativos e contrapondo-se a velhas tradições do meio

culto.

Assim, estudiosos que percebem uma aproximação dos textos históricos com

os textos literários admitem que a história não se constitui totalmente de verdades,

pois, além de o historiador colocar nos textos sua ideologia, ainda há a subjetividade

em sua escrita. A história é contada por meio de textos e, quando o historiador os

escreve, ele também, tal como um escritor de narrativas ficcionais, coloca neles sua

visão ideológica e subjetividade. Burke (2008, p. 16) afirma que “(...) está implícita a

ideia de que o historiador pinta o ‘retrato de uma época’”. Essa afirmação de Burke

corrobora nossa constatação de que o autor de Tal dia é o batizado , em uma

linguagem poética, pintou o retrato da sociedade mineira do século XVIII,

produzindo, por conseguinte, um romance histórico.

Duby (1986) esclarece que, como as informações estão em forma de textos,

documentos, arquivos, o historiador possui somente vestígios do que aconteceu de

verdade, então ele buscará reproduzir as mensagens daquele material, não se

isentando de sua ideologia e subjetividade, deturpando parcialmente os

acontecimentos históricos. Desse modo, a partir das considerações apresentadas

181 ALENCAR, Gilberto de. Orelha da capa. In: ALENCAR, Gilberto de. Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes). 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. (Coleção Cores do Tempo Passado. Série 2 – Grandes Homens da História).

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por esse estudioso, pode-se afirmar que, como o autor de Tal dia é o batizado , a

exemplo de um historiador, pesquisou em fontes documentais concretas para

escrever seu romance, a obra, tal como uma narrativa histórica, pode ser

considerada uma fonte de conhecimentos históricos. No romance, o autor alia à

ficção a verdade histórica, utilizando-se de estratégias que levam o leitor a acreditar

que se trata de uma verdade histórica a história narrada. Essa é uma forma de fazer

com que o leitor tome consciência da natureza específica do referente histórico.

Dessa forma, pode-se afirmar, a partir de estudos realizados pelos teóricos

citados nesta pesquisa, que obras como Tal dia é o batizado , de Gilberto de

Alencar, entre outras, especulam, abertamente, sobre o deslocamento histórico e

suas consequências ideológicas, sobre o modo como se escreve a respeito da

“realidade” do passado, sobre o que constitui “os fatos conhecidos” de qualquer

acontecimento: “O real existe (e existiu), mas nossa compreensão a seu respeito é

sempre condicionada pelos discursos, por nossas diferentes maneiras de falar sobre

ele” (HUTCHEON, 1991, p. 202). Assim, percebe-se que, na atualidade, aquela

separação entre a história e a ficção, tão difundida entre os historiadores, está se

diluindo cada vez mais, porquanto as novas teorias que estão surgindo, na medida

em que dão crédito ao valor histórico do discurso literário, tendem a derrubar a

concepção muito divulgada de que o discurso histórico traduz objetivamente o real.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, constatou-se que o escritor mineiro Gilberto de Alencar

integra-se ao grupo dos intelectuais de sua época, tendo sido um dos membros

fundadores da Academia Mineira de Letras. Além de Professor e Inspetor de Ensino

da Rede Estadual, o autor exerceu o jornalismo ao longo de sua vida. Foi

reconhecido como um romancista que contribuiu para a cultura mineira, tendo

produzido textos de grande valor literário, notadamente romances e crônicas. A

pesquisa na correspondência do escritor elucidou fatos importantes de sua vida e do

processo de criação de suas obras. Críticos literários e escritores, tais como

Agrippino Grieco e Eduardo Frieiro, entre outros, deixaram registrada, em suas

obras e cartas, uma crítica positiva e elogiosa a respeito de Gilberto de Alencar,

reconhecendo-o como um “ficcionista inteligente” e um “grande prosador criador de

almas”, como apresentado em alguns trechos das missivas no capítulo dedicado ao

estudo da correspondência entre escritores. Cumpre ressaltar que o estudo da obra

Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) originou-se na leitura da

correspondência do escritor e de sua filha, Cosette de Alencar, processo realizado

em diversos arquivos.

A história, há muitos séculos, é ponto de partida para a escrita de narrativas

ficcionais e estas, muitas vezes, retratam a sociedade de uma época. A partir do

Romantismo, a literatura abriu espaço para textos que retomam períodos temporais

históricos de uma determinada época, a fim de relembrar fatos passados que

marcaram a história de um povo. Para escrever o romance Tal dia é o batizado , o

autor realizou uma minuciosa pesquisa em documentos, arquivos, biografias,

sobretudo nos volumes dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira , edição

de 1936; além disso, por meio de inúmeras viagens a Ouro Preto e São João del-

Rei, desde 1926, ou antes, momento em que estabeleceu contato direto com antigos

moradores e com os diversos espaços que contam a história dessas cidades, colheu

dados da tradição oral desses locais, ouvindo suas narrativas, para se inteirar do

que se passa no imaginário de seus habitantes: história oral, lendas, relatos sobre

fantasmas, provérbios populares, entre outros, a fim de registrá-los em seu romance.

Por conseguinte, pode-se afirmar que, além da história e das informações colhidas

em poetas do século XVIII, notadamente Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel

da Costa e Alvarenga Peixoto, os dados da memória coletiva dos habitantes das

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cidades mencionadas, bem como o poder inventivo de Gilberto de Alencar, tiveram

um papel relevante para a produção da obra Tal dia é o batizado , servindo como

base para a representação da narrativa de ficção.

A obra Tal dia é o batizado , por estabelecer um diálogo intertextual com a

história e com a tradição oral, causa um impacto, pois leva a personagem Joaquim

José da Silva Xavier a reviver os momentos de sua grande luta pela emancipação

do Brasil, por meio de uma belíssima representação em linguagem poética, com

imagens que levam o leitor a acreditar que os episódios narrados pertencem ao

mundo real. A narrativa constitui uma construção imaginativa do passado, à qual se

agrega a transmissão de conhecimentos a respeito do fato histórico focalizado – a

Inconfidência Mineira – no século XVIII.

O narrador, por meio de uma linguagem poética, aliando real e fictício, com

sua capacidade de criação, pinta o retrato da sociedade de Vila Rica daquela época:

mostra os hábitos e costumes do povo, as relações políticas e sociais, a falta de

infraestrutura da cidade, a situação de miséria em que vivia a maioria da população,

a exploração do trabalho escravo, entre outros. Utiliza-se de sua criação artística

para fazer com que a narrativa, com todos os episódios, restaure o momento de

grande dominação dos portugueses no Brasil. As vozes das personagens, sobretudo

a de Tiradentes, testemunham a ideologia dos portugueses na época do Brasil

colônia: explorar as riquezas do país e a mão de obra dos negros. Enfim, na obra, o

autor visita um acontecimento passado, ensejando aos leitores se lembrarem de que

muitas vidas foram ceifadas para que o Brasil conseguisse sua liberdade, e o grande

mártir da Inconfidência Mineira foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que

assumiu, sozinho, a responsabilidade da revolta premeditada na Capitania de Minas

Gerais.

Partindo-se das considerações apresentadas neste estudo e levando-se em

conta que os brasileiros, mesmo aqueles que possuem baixo grau de escolaridade,

conhecem a história de Tiradentes, pode-se afirmar que a obra Tal dia é o batizado

é uma narrativa que quer reavivar a memória cultural do Brasil, mostrando as

diferentes nuanças de lugares e de vozes da época em que viveu Joaquim José.

Assim, ao fazer a retrospectiva da vida de Tiradentes e apresentar um fato histórico

tão marcante na vida social e política do país, o autor consegue localizar os marcos

de tempo biográfico desse herói nacional em função do tempo decorrido, mas,

segundo uma visão pessoal, que se vale de inventiva e do imaginário da população.

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Bosi (1994, p. 418) afirma que “cada geração tem, de sua cidade, a memória de

acontecimentos que permanecem como pontos de demarcação em sua história”.

Destarte, ao se falar em Vila Rica, atual Ouro Preto, a memória coletiva é ativada

instantaneamente, surgindo logo a imagem de Tiradentes como o grande herói

nacional, mas essa imagem passa de geração a geração no Brasil, despertando

novas visões.

Cumpre assinalar que, ao pesquisar o material concreto sobre o

acontecimento histórico focalizado, o autor utilizou a mesma estratégia de um

historiador e dividiu a história de Tiradentes em períodos que ficam muito claros na

obra: infância, morte dos pais, paixão amorosa, luta pela independência e morte.

Apesar da subjetividade e da linguagem poética, constatou-se que a verdade

histórica não foi deturpada e o texto de Gilberto de Alencar está afinado com as

informações apresentadas nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira e em

outros livros de História do Brasil pesquisados, como foi mostrado em notas de

rodapé, a partir de passagens do romance citadas no corpus deste trabalho. Os

nomes das personagens já aparecem na primeira página do livro, com uma pequena

biografia de cada uma, mostrando que a representação tem como base um

acontecimento real vivido no passado. Também as datas estão, na maioria das

vezes, de acordo com a historiografia; o autor respeitou a ordem cronológica dos

acontecimentos relatados no romance e teve o cuidado de representar cada

episódio histórico bem detalhado, poetizando um pouco os acontecimentos,

utilizando-se de sua capacidade nata de escritor e de sua subjetividade, aliando a

realidade à ficção em sua bem elaborada narrativa.

Mudanças de pensamento sobre a história entre os próprios historiadores,

filósofos e outros profissionais que atuam nas Ciências Sociais, na Antropologia e

em outras áreas, justificam, na atualidade, uma aproximação dos discursos da

história com os literários, e, como consequência, estão ocorrendo mudanças de

paradigma quanto aos textos que buscam apresentar um acontecimento histórico,

nesse caso, os romances históricos. Os historiadores, por terem consciência de que

os textos da historiografia também são permeados de subjetividade e ideologia de

quem os escreve, estão admitindo a leitura dos acontecimentos históricos em outras

narrativas. Desse modo, a partir do exposto, pode-se afirmar que a narrativa sob

análise, em razão de conter, além da ficção, muito da realidade vivida no século

XVIII, pode ser considerada uma excelente fonte de pesquisa para aqueles que

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querem adquirir conhecimentos sobre a Inconfidência Mineira. Pelo valor histórico da

obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes)182, seria bom pensar em

divulgá-la mais nos meios acadêmicos, a fim de que os estudantes possam aprender

o conteúdo histórico da Inconfidência Mineira por meio dessa bem urdida narrativa

de ficção.

Assim, conclui-se que, por meio do romance histórico Tal dia é o batizado (o

romance de Tiradentes), além do retrato da época pintado pelo narrador, o leitor

aprende muito sobre este acontecimento tão importante da História do Brasil, qual

seja a Inconfidência Mineira, podendo guardar em sua memória outras imagens

belíssimas de seu grande herói (e mártir), Joaquim José da Silva Xavier, tal como a

de sua infância e juventude e de sua vida adulta, contemplando a natureza ou

galopando pelas estradas a cavalo, e não reter somente aquela imagem apreendida

na escola: Tiradentes vestido com uma alva e com um baraço no pescoço.

Percebeu-se, no diálogo intertextual entre as obras Tal dia é o batizado e

Eu, Tiradentes , que as duas narrativas apresentam visões muito pessoais do herói

(e mártir) da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier. A linguagem

poética e o subjetivismo estão presentes nas duas obras, embora os dois autores

tenham se preocupado com a objetividade quanto aos fatos históricos narrados. Na

obra Eu, Tiradentes , talvez pelo fato de ser uma representação de um relato

contado pelo próprio Joaquim José, há um detalhamento muito maior quanto às

particularidades de sua vida e atividades.

Acrescente-se finalmente que os livros de História do Brasil passam a

imagem de Joaquim José da Silva Xavier restrita ao episódio da Inconfidência. Mas

e o momento anterior? Sua meninice, seu jeito de ser, sua juventude, seus amores,

enfim, o ser humano em todas as etapas de sua vida, onde são vistos? Momentos

como esses podem ser encontrados em romances históricos, cujos autores, a partir

de dados da historiografia e da memória coletiva, usam de sua subjetividade e

imaginação para criar as narrativas, com verossimilhança com a realidade. Utilizam

recursos literários como figuras de linguagem, entre outros, poetizando o texto, além

de diversos tipos de discurso, misturando as vozes do narrador às das personagens,

dando plasticidade aos episódios narrados e, paralelamente, trazem os fatos

históricos, que são representados como se fossem verdadeiros, misturando ficção e

182 A obra Tal dia é o batizado (o romance de Tiradentes) continua sendo editada pela editora Itatiaia até a presente data.

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realidade. A essa linhagem pertence a obra Tal dia é o batizado , como se procurou

demonstrar ao longo do presente estudo.

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