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0 Universidade de São Paulo Faculdade de Direito SILVIO LUIZ DE ALMEIDA SARTRE: DIREITO E POLÍTICA Ontologia, Liberdade e Revolução Tese de Doutorado São Paulo 2011

Tese Silvio Luiz de Almeida Integral

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Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudónimo de Le Corbusier (La Chaux-de-Fonds, 6 de Outubro de 1887 — Roquebrune-Cap-Martin, 27 de Agosto de 1965), foi um arquiteto, urbanista, escultor e pintor de origem suíça e naturalizado francês em 1930

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    Universidade de So Paulo

    Faculdade de Direito

    SILVIO LUIZ DE ALMEIDA

    SARTRE: DIREITO E POLTICA

    Ontologia, Liberdade e Revoluo

    Tese de Doutorado

    So Paulo

    2011

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    SILVIO LUIZ DE ALMEIDA

    SARTRE: DIREITO E POLTICA

    Ontologia, Liberdade e Revoluo

    Tese de Doutorado apresentada Universidade

    de So Paulo, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Doutor em Direito.

    Orientadora: Profa. Dra. Jeannette Antonios

    Maman

    So Paulo

    2011

  • 2

    SILVIO LUIZ DE ALMEIDA

    SARTRE: DIREITO E POLTICA

    Ontologia, Liberdade e Revoluo

    Tese de Doutorado apresentada Universidade de

    So Paulo, como requisito parcial para a obteno

    do ttulo de Doutor em Direito.

    Banca Examinadora

    ______________________________________________________

    PROFa. DRa. JEANNETTE ANTONIOS MAMAN

    Universidade de So Paulo

    _____________________________________________________

    PROF. DR. ALYSSON LEANDRO BARBATE MASCARO

    Universidade de So Paulo

    ______________________________________________________

    PROF. DR. ALESSANDRO SERAFIM OCTAVIANI LUIS

    Universidade de So Paulo

    _____________________________________________________

    PROF. DR. FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

    Universidade de So Paulo

    ____________________________________________________

    PROFa. DRa. THANA MARA DE SOUZA

    Universidade Federal do Esprito Santo

  • 3

    minha esposa e companheira Ednia

    A meus pais, Lourival e Vernica e minha irm Quelli

    s minhas tias Eunice (in memorian) e Cleonice

    A todos os que tombaram lutando pela liberdade.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Foram muitas as pessoas que contriburam para que este caminho fosse percorrido.

    No entanto, h pessoas a quem preciso especialmente agradecer, pois sem elas eu

    dificilmente teria concludo essa tese.

    Profa. Dra. Jeannette Antonios Maman, minha orientadora. Exemplo raro de jurista que

    verdadeiramente assumiu um compromisso com a justia. Professora, para mim um

    imenso orgulho ser seu orientando. Muito obrigado pela confiana.

    Ao Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro, meu orientador de mestrado e querido amigo, a

    quem devo o despertar para o pensamento crtico.

    Ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, pelas valiosssimas observaes na banca de

    qualificao e pelas sempre maravilhosas lies.

    Profa. Dra. Thana Mara de Souza, pela ateno que sempre dispensou a mim e pelas

    indicaes de leitura que se mostraram essenciais.

    Aos professores Dr. Mrcio Bilharinho Naves e Dr. Alessandro Serafim Octaviani Luis,

    por me fazerem acreditar que chegar aqui era possvel.

    Aos professores Camilo Onoda Caldas e Renato Aparecido Gomes, que mais do que

    amigos, so meus irmos.

    Fernanda Gabriela Carvalho, Priscila Sissi Lima, Thays Sissy Lima e Aline de Melo

    Martins, queridas amigas e colegas de escritrio.

    Ao meu amigo e ex-aluno Luiz Antnio Caetano Jr, pela grande ajuda com os textos da

    tese.

    Ao mestre Joo Bosco Coelho.

    s professoras Paula Loureiro da Cruz e Alessandra Devulsky da Silva Tizescu, pelas

    grandes demonstraes de carinho e amizade.

    Cristiana Hoffman Pavan, querida amiga, que muito me ajudou na reviso dos textos.

    Aos meus amigos Lucyla Tellez Merino, Sofia Manzano e Silvio Moreira Barbosa Jr. pelo

    apoio nas horas certas.

    Ao professor Dr. Fernando Herren Aguillar, pelo estmulo e pela confiana.

  • 5

    RESUMO

    O presente trabalho tem como proposta discutir as repercusses da filosofia de Jean-Paul

    Sartre (1905-1980) nos campos do direito e da poltica. A busca de Sartre por uma

    concepo concreta da liberdade o fio condutor de sua trajetria filosfica. Ao constituir

    as bases de seu pensamento sobre o tema da liberdade, Sartre evidencia a vocao poltica

    de sua filosofa. Com isso, procuramos demonstrar que o desenvolvimento filosfico de

    Sartre marcado pelo aprofundamento das noes de liberdade e projeto, no havendo,

    portanto, ruptura, mas continuidade entre as obras de Sartre. Sendo assim, desde suas

    primeiras obras (em especial em O Ser e o Nada), Sartre aponta para a construo de uma

    tica. medida que o tema das possibilidades concretas da realizao da liberdade se

    desenvolve, as reflexes de Sartre voltam-se mais e mais para o direito e a poltica. Assim,

    a tese foi estruturada em trs unidades. A primeira prope-se a estabelecer as bases do

    existencialismo e de as primeiras reflexes sobre a tica e o direito presentes em O Ser e o

    Nada e os Cadernos para uma moral; a segunda dedicada ao estudo do pensamento de

    Sartre acerca da constituio das estruturas scio-polticas. Neste ponto, em que a nfase

    na Histria e o dilogo com o marxismo so cruciais, procuramos demonstrar como Crtica

    da razo dialtica inicia amplas discusses sobre o problema da forma jurdica e de sua

    especificidade histrica. A terceira ltima unidade voltada discusso da poltica em

    Sartre, com destaque para as relaes entre legalidade e violncia e a questo da

    democracia.

    Palavras-chave: Filosofia do Direito; Sartre; Existencialismo; Marxismo; Poltica.

  • 6

    ABSTRACT

    The present work has the purpose to discuss the repercussions of the philosophy of Jean-

    Paul Sartre (1905-1980) in the Law and politic areas. The search of Sartre for a concrete

    conception of liberty is the conducting line of its philosophical trajectory. By constituting

    the basis of its thought on the subject of liberty, Sartre evidences the politic vocation of its

    philosophy. In this sense, we seek to demonstrate that the philosophical development of

    Sartre is marked by deepening the notions of liberty and project, thus, not having rupture,

    but continuity between the work of Sartre. Therefore, since its first work (in special in

    Being and Nothingness), Sartre aims the construction of an ethic. To the extent that the

    theme of the concrete possibilities of achievement of liberty develops itself, the thoughts of

    Sartre become more and more directed to the Law and politics. Thus, the thesis was

    structured in three unities. The first intends to establish the basis of the existentialism and

    the prime reflections on ethic and Law provided in Being and Nothingness and Notebooks

    for an Ethics; the second is dedicated to the study of Sartres though regarding the

    constitution of social-political structures. On this point, in which the emphasis in the

    History and the dialogue with the Marxism is crucial, we seek to demonstrate how Critique

    of Dialectical Reason begins wide discussions on the problem of the legal form and its

    historical specificity. The third and last unity is oriented to the discussion of politics in

    Sartre, with notability on the relations between legality and violence and the matter of the

    democracy.

    Keywords: Philosophy of Law; Sartre; Existentialism; Marxism; Politics.

  • 7

    RESUM

    Le prsent travail a comme proposition de dbattre les rpercussions de la philosophie de

    Jean-Paul Sartre (1905-1980) aux champs du droit et de la politique. La recherche de

    Sartre pour une concption concrte de la libert cest le fil conducteur de sa trajectoir

    philosophique. Pendant la constituition des bases de sa pense a propos du thme de la

    libert, Sartre demontre la vocation politique de sa philosophie. Le but cetait de demontrer

    que le dveloppement philosophique de Sartre est marqu par lapprofondissement des

    notions de la libert et projet, o il ny a pas une rupture, au contraire, une continuite se fait

    prsent entre les ouvres de Sartre. Donc, ds les premires oeuvres (en spcial dans le

    Ltre et le Nant), Sartre pointe la construction d une thique. Autant que le thme des

    possibilits concrte de la realisation de la libert se developpe, plus les reflxions de

    Sartre ont tournes au droit et la politique. De cette manire, la thse a et structur en

    trois units. La premire propose a tablir les bases du existentialisme et des premires

    reflxions sur lthique et le droit au Ltre et le Nant et les Cahiers pour une morale ; la

    deuxime est ddie ltude de la pense de Sartre autour de la constituition des

    structures sociopolitiques. ce point, o lemphase dans lhistoire et le dialogue avec le

    marxisme sont cruciaux, le but cetait de demontrer comment la critique de la raison

    dialectique commnce des larges discussions sur le problme de la forme juridique et de sa

    spcificit historique. La troisime et dernire unite rentre dans la discussion de la

    politique dans Sartre, avec une emphase des relations entre la legalit et la violnce, bien

    comme la question de la democratie.

    Mots-cle : Philosophie du Droit ; Sartre ; Existentialisme ; Marxisme ; Politique.

  • 8

    RIASSUNTO

    Questo lavoro si propone di discutere le implicazioni della filosofia di Jean-Paul Sartre

    (1905-1980) nei settori del diritto e della politica. La ricerca di Sartre per una specifica

    concezione della libert lo punto de partezza della sua traiettoria. Per formare la base del

    suo pensiero sul tema della libert, Sartre sottolinea lo scopo politico della sua

    filosofia. Con questo, si dimostra che lo sviluppo filosofico di Sartre segnata da un

    approfondimento delle nozioni di libert e di progetto, quindi non c' nessuna rottura, ma

    la continuit tra le opere di Sartre. Pertanto, dalle sue prime opere (soprattutto in Essere e il

    Nulla), i punti Sartre alla costruzione di un'etica. Come il tema delle concrete possibilit di

    realizzazione della libert cresce, le riflessioni di Sartre si sta trasformando sempre di pi

    alla legge e della politica. L'argomento stato strutturato in tre unit. Il primo propone di

    istituire le basi dell'esistenzialismo e prime riflessioni su etica e presente legge in essere e

    il nulla e il Quaderni per una morale, la seconda dedicata allo studio del pensiero di

    Sartre riguardo la costituzione del socio -politiche. A questo punto, dove l'enfasi nella

    storia e il dialogo con il marxismo sono cruciali per dimostrare come la Critica della

    ragione dialettica comincia ampie discussioni sulla questione della forma giuridica e la sua

    specificit storica. Il terzo l'ultima unit dedicata alla discussione della politica in

    Sartre, sottolineando il rapporto tra legge e la violenza e la questione della democrazia.

    Parole chiave: Filosofia del Diritto, Sartre-L'esistenzialismo, Marxismo, Politica.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................... 1

    Unidade I: LIBERDADE, DIREITO E JUSTIA ..................................................... 6

    Captulo 1. Sartre e a Ontologia Fenomenolgica da Liberdade .................................. 6

    A construo do mtodo ......................................................................................... 8

    Os motivos centrais da filosofia de Sartre ............................................................. 10

    A conscincia ....................................................................................................... 11

    O Ser-Em-si ......................................................................................................... 13

    O Ser-Para-si ........................................................................................................ 15

    A dialtica do Em-si e do Para-si .......................................................................... 16

    Captulo 2. A liberdade ............................................................................................ 18

    Liberdade e situao ............................................................................................. 18

    Liberdade e temporalidade ................................................................................... 21

    Liberdade e projeto .............................................................................................. 25

    Liberdade e valor ................................................................................................. 27

    Liberdade e responsabilidade ............................................................................... 29

    Captulo 3. A dimenso tica ................................................................................... 34

    Por uma tica existencialista ................................................................................. 34

    A tica em O existencialismo um humanismo e nos Cadernos para uma moral .. 36

    A tica em Determinao e liberdade e em Moral e Histria .............................. 41

    Captulo 4. Direito e Justia nas obras iniciais de Sartre ........................................... 49

    O direito nos Cadernos para uma moral ................................................................ 49

    Justia e engajamento ........................................................................................... 54

    Unidade II: SARTRE E O MARXISMO ................................................................. 60

    Captulo 1. Sartre e a tradio da filosofia do direito ................................................ 60

    Desvendar a Histria, realizar a liberdade ............................................................. 60

    Razo dialtica e razo jurdica ............................................................................ 60

    Descartes e Locke ................................................................................................ 62

    Kant e Hegel ........................................................................................................ 65

    Direito e Liberdade em Kant ................................................................................ 65

    Hegel: a liberdade do esprito, o direito e o Estado ............................................... 68

    Captulo 2. Sartre e o marxismo ............................................................................... 72

  • 10

    Marxismo e existencialismo ................................................................................. 72

    Entre o indivduo e a Histria ............................................................................... 80

    Conhecimento e prxis ......................................................................................... 82

    As mediaes ....................................................................................................... 89

    A unidade pluridimensional do ato ....................................................................... 91

    Captulo 3. A descrio formal dos modos de sociabilidade ..................................... 95

    O prtico-inerte .................................................................................................... 96

    Serialidade e regulao ......................................................................................... 98

    Os grupos ........................................................................................................... 101

    O juramento ....................................................................................................... 103

    O grupo organizado ............................................................................................ 109

    O grupo institucionalizado: o Estado .................................................................. 111

    Captulo 4. Direito e razo dialtica ....................................................................... 118

    Em busca da especificidade histrica do direito .................................................. 118

    Forma jurdica e liberdade .................................................................................. 122

    Unidade III: DIREITO E POLTICA .................................................................... 130

    Captulo 1. Legalidade e violncia ......................................................................... 130

    Legalidade e violncia nos Cadernos para uma moral ........................................ 131

    Violncia e tolerncia ......................................................................................... 138

    Violncia e direito na Crtica da Razo Dialtica ............................................... 147

    Captulo 2. Poltica e Legalidade ............................................................................ 164

    Relao de fora, relao jurdica ....................................................................... 164

    Justia e Estado .................................................................................................. 171

    Justia e cultura burguesa ................................................................................... 174

    Captulo 3. Os horizontes da filosofia e os limites da poltica ................................. 180

    Sartre, Merleau-Ponty e a teoria da revoluo ..................................................... 180

    Sartre e a crtica da democracia burguesa ........................................................... 189

    Sartre: sobre o direito e a democracia no Brasil .................................................. 197

    CONCLUSO ......................................................................................................... 201

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 204

  • 11

    Fica proibido o uso da palavra liberdade,

    a qual ser suprimida dos dicionrios

    e do pntano enganoso das bocas.

    A partir deste instante

    a liberdade ser algo vivo e transparente

    como um fogo ou um rio,

    e a sua morada ser sempre

    o corao do homem.

    Thiago de Melo, Os Estatutos do homem

  • 12

    INTRODUO

    Durante muito tempo tomei minha pena por uma espada: agora, conheo nossa impotncia. No importa: fao e farei livros; so necessrios; sempre

    servem, apesar de tudo. A cultura no salva nada nem ningum, ela no justifica. Mas um produto do homem: ele se projeta, se reconhece nela; s

    este espelho crtico lhe oferece a prpria imagem. (Jean-Paul Sartre, As palavras)

    Estudar um tema como o direito, tomando como ponto de partida uma obra

    to vasta, to difusa e vazada por complexas tramas conceituais como a de Jean-Paul Sartre

    (1905-1980) nos traz, logo de incio, dois problemas. O primeiro o fato de Sartre no ser

    jurista1. Suas preocupaes sempre estiveram muito alm do direito. As menes sobre o

    direito so breves e, em geral, inseridas no contexto de assuntos bem mais amplos, como a

    tica, a poltica ou mesmo a arte. Mas esse um problema solucionvel: se h menes,

    ainda que breves, ao direito, basta que se as recolha e que se verifique em que

    circunstncia, no interior da unidade temtica da obra do autor, cada uma delas aparece.

    Assim, encontrar uma concepo jurdica do autor, com toda sua fora ou insuficincia,

    tornar-se-ia possvel.

    No limiar da primeira soluo encontramos o segundo problema que, ao que

    parece, de resoluo bem mais difcil: o que poderia permanecer em uma obra que,

    alm de volumosa, tomou diversas formas, desde o que se pode chamar de teoria

    filosfica, at a literatura, passando pelo texto jornalstico e pelo roteiro cinematogrfico?

    Haveria algo capaz de expressar uma unidade entre o Jean-Paul Sartre filsofo,

    romancista, teatrlogo e ativista poltico que pudesse servir de base para se compreender a

    especificidade do direito?

    Uma resposta a essa difcil indagao requer que a obra de Sartre seja

    entendida como um prolongamento da vida do indivduo Jean-Paul Sartre. O homem Sartre

    tambm o literato, o filsofo, o dramaturgo e o ativista poltico, algo que por si j revela

    1 Apesar de no ser um jurista de formao, desde jovem Sartre demonstrava grande inclinao para a

    poltica. Em 1926, aos 21 anos de idade, Sartre publicou seu primeiro artigo sobre poltica intitulado LEtat dans le pense franais daujourdhui. Neste artigo Sartre fazia apresenta o debate sobre os conceitos de soberania e direito natural do indivduo travado entre os juristas franceses no ps-guerra. O citado artigo teve

    pouca divulgao, e sua publicao mais recente foi feita por Jeniffer Mergy, em 1997 na Revista Francesa

    de Cincia Poltica. CF. MERGY, Jennifer ; SARTRE, Jean-Paul. Quand le jeune Sartre rflchissait la

    thorie de l'tat dans la pense franaise : Prsentation du texte de Sartre : La thorie de l'tat dans la pense franaise d'aujourd'hui . In: Revue franaise de science politique, 47e anne, n1, 1997. pp. 89-106.

  • 13

    muito de seu projeto filosfico que consiste em captar a existncia em sua multiplicidade

    de modos. Assim, com Sartre a literatura no mais poderia separar-se da filosofia, tal como

    a poltica revelar-se-ia com toda sua fora na dramaturgia.

    Mas o que Sartre teria a nos dizer sobre o direito? O que este homem, morto

    h trinta anos, pode nos ensinar? Sua ideias radicais - como vociferam seus detratores -

    no estariam superadas pela nova conjuntura mundial? No seria mais relevante render-se

    a to falada "realidade dos fatos" e voltar energias para a compreenso de mecanismos

    jurdicos de aperfeioamento da democracia ou da promoo dos direitos humanos? Afinal,

    porque dirigir-se Sartre neste momento?

    Com o liberalismo surgiu a ideia de que o direito seria a garantia da

    liberdade, e que o respeito s leis e s instituies democrticas daria a medida do respeito

    dignidade humana. Mas no isso que a experincia histrica nos mostra. O direito a

    garantia de uma liberdade abstrata. Em defesa dessa liberdade-fetiche o direito legitima a

    opresso que se abate sobre grande parte dos homens e das mulheres.

    Vamos Sartre porque sua filosofia da liberdade nos convida a pensar um

    mundo alm do conformismo das normas jurdicas. Desde o incio de sua trajetria

    intelectual, Sartre props que a liberdade seja concebida em sua dimenso concreta, como

    ato de libertao, ou seja, como ao poltica. Diante da indeterminao da liberdade,

    agindo a partir de seu projeto que o homem dar sentido ao mundo. No h, portanto,

    normas ou instituies acima dos homens e de sua possibilidade de projetar-se no futuro. A

    retomada dessa lio fundamental num mundo em que os juristas substituram a busca

    pela justia pela manuteno da legalidade opressora.

    Assim sendo, voltar Sartre no pensar o presente com os olhos do passado,

    mas pensar o futuro como obra aberta. desse modo que a leitura jurdica de Sartre

    imprescindvel, pois sua filosofia abre uma senda importantssima que nos permite pensar a

    liberdade e o justia como modos de superao da forma jurdica e dos demais mecanismos de

    opresso.

    Em As palavras, Sartre diz:

    [...] que meus congneres me esqueam no dia seguinte ao meu enterro pouco me importa; enquanto viverem hei de persegui-los; inapreensvel,

    inominado, presente em cada um, como em mim esto milhares de

  • 14

    falecidos que ignoro e que preservo do aniquilamento; mas se a

    humanidade vier a desaparecer, ela matar seus mortos de verdade.2

    Portanto, aqueles que declaram Sartre morto, na verdade no se referem ao

    homem Jean-Paul Sartre, pois um homem no morre duas vezes. O que os conservadores e

    reacionrios querem matar o que Sartre representa em termos de contestao, de

    inconformismo e de luta contra a opresso.

    Enquanto houver opresso haver quem lute contra ela, pois sem o projeto

    de um mundo justo, a opresso no poderia ser reconhecida. Enquanto existir quem clame

    por justia, homens como Sartre e todos os que anonimamente morreram na luta por um

    mundo justo continuaro vivos e encarnados em cada ato de libertao.

    Que venham as leis, pois a verdade est com os homens.

    Sobre o trabalho

    Antes de apresentarmos a estrutura deste trabalho, alguns esclarecimentos

    so fundamentais.

    Nossas anlises sobre o direito e a poltica em Sartre partem da premissa de

    que h uma continuidade entre suas obras. Certamente, possvel encontrar distines

    entre O Ser e o Nada (1943) e Crtica da Razo Dialtica (1960). Entendemos, no entanto,

    que tais distines no sinalizam uma ruptura, e sim um movimento em que Sartre vai de

    um acento predominantemente ontolgico-existencial para a um acento histrico. Apesar

    disso, percebe-se que a questo fundamental da filosofia sartreana permanece l, com toda

    sua fora: a liberdade.

    medida que Sartre avana, o desenvolvimento do tema da liberdade o

    impulsiona a um questionamento mais profundo sobre as possibilidades de realizao do

    projeto de libertao no seio das estruturas scio-politicas. nesse contexto que se opera a

    sntese sartreana entre o marxismo e o existencialismo.

    2 SARTRE, Jean-Paul. As palavras. So Paulo: Nova Fronteira, 2005.

  • 15

    Sartre jamais abandonou o existencialismo em prol do marxismo, assim

    como nunca deixou de considerar o problema da Histria.3 Se houvesse, portanto, uma

    ruptura entre as obras de Sartre, seria possvel ler Questo de mtodo ou a Crtica da

    Razo Dialtica sem a apreenso dos conceitos de O Ser e o Nada, algo que,

    absolutamente, no verdade. Liberdade, projeto, situao, alteridade so exemplos de

    conceitos presentes em O Ser e o Nada e que so levados para o interior do dilogo com o

    marxismo e poltica.

    No caso do direito, esta continuidade tambm deve ser considerada. Desde

    os Cadernos para uma moral, obra em que a nfase na existncia mais forte, Sartre

    demonstra-se um crtico feroz do direito e das instituies em geral, que acusa de

    promoverem uma liberdade abstrata que se realiza contra o homem concreto. As relaes

    entre o direito e a violncia apresentados ali pela primeira vez, sero retomados na Crtica

    da Razo Dialtica e em outros textos. Porm, as anlises jurdicas de Sartre so

    predominantemente sobre o problema da ideologia jurdica. Apenas com o marxismo e a

    nfase na Histria que Sartre passa a expor com profundidade os laos concretos que

    ligam o direito s estruturas sociais.

    Por isso, o presente trabalho apresenta o direito em Sartre sob duas

    perspectivas ou fases (denominao que utilizamos apenas para fins didticos): 1) a

    primeira, marcada pela nfase existencial-ontolgica e scio-psicolgica, em que a

    filosofia do direito se apresenta enquanto crtica da ideologia jurdica; 2) a segunda,

    caracterizada pela nfase na Histria em que, sob a influncia de Marx, a crtica do direito

    ir alm do vis ideolgico e levar em conta o problema da legalidade ou, em outros

    termos, da forma jurdica.

    Assim sendo, optamos por dividir o trabalho em trs unidades.

    Na unidade I, em rpidas pinceladas, iremos reconstituir os passos

    fundamentais da ontologia de Sartre. Nos captulos 01 e 02, o esforo ser no sentido de

    demonstrar como Sartre constri seu mtodo fenomenolgico e como o tema da liberdade

    3 SILVA, Franklin Leopoldo e. Para a compreenso da Histria em Sartre. Revista Tempo da Cincia, vol.

    22, p. 34-35, 2 sem, 2004.

  • 16

    aparece como ponto fulcral de sua filosofia. No captulo 03, veremos como o

    existencialismo sartreano desemboca no problema tico. No captulo 04, as primeiras

    reflexes de Sartre sobre o direito e a justia (em especial nos Cadernos para uma moral)

    sero apresentadas.

    Na unidade II, a ateno ser voltada para as relaes estabelecidas por

    Sartre entre o existencialismo e o marxismo. Aqui a questo fundamental compreender

    como Sartre entende o direito relacionado s estruturas sociais, econmicas e polticas.

    Nos dois primeiros captulos apresentaremos uma leitura do marxismo de Sartre. Como

    o foco principal deste trabalho o direito, resolvemos posicionar o pensamento de Sartre

    em relao filosofia do direito moderna e contempornea. Este posicionamento tem por

    base a afirmao sartreana de que desde o sculo XVII a filosofia teve trs momentos de

    totalizao histrica: o de Descartes e Locke; o de Kant e Hegel; o de Marx.4 No por

    acaso estes filsofos so os mais influentes no pensamento jurdico. Consideramos esta

    empreitada importante para que a leitura de Sartre sobre o direito a partir do marxismo

    possa ser corretamente entendida.

    Ainda na unidade II, o captulo 03 apresentar a descrio dos modos de

    sociabilidade (grupos e sries) contida na Crtica da Razo Dialtica, circunstncia em que

    as reflexes sartreanas sobre o direito e o Estado ganham uma feio mais ntida. No

    captulo 04, analisaremos o problema da forma jurdica e da liberdade no interior da

    Histria.

    Na unidade III, o tema ser a ao poltica. Assim, captulo 01 dedicar-se-

    ao tratamento dado por Sartre ambgua relao entre o direito e a violncia. J o captulo

    02 trar um estudo sobre os textos Justia e Estado e os Maostas em Frana, em que

    Sartre coloca seus pontos de vista sobre a relao entre legalidade, justia e Estado. Por

    fim, no captulo 03 discutiremos o teor das crticas de Sartre democracia representativa,

    bem como revisitaremos a polmica com Merleau-Ponty em torno da teoria marxista da

    revoluo, que muito tem a nos dizer sobre a poltica e o direito em Sartre. O trabalho se

    encerra com uma anlise sobre a democracia no Brasil luz do pensamento de Sartre.

    4 SARTRE, Jean-Paul. Questo de Mtodo. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 19

  • 17

    UNIDADE I

    LIBERDADE, DIREITO E JUSTIA

    CAPTULO 1.

    SARTRE E ONTOLOGIA FENOMENOLGICA DA LIBERDADE

    A adoo do tema da liberdade como pedra angular de seu sistema

    filosfico no deixa dvidas acerca da vocao tico-poltica da filosofia de Sartre. A

    busca por uma compreenso das condutas humanas em seu nvel mais concreto conduzir

    Sartre por um percurso marcado por tenso dilogo com a fenomenologia de Husserl5, com

    a analtica existencial de Heidegger e com as dialticas de Hegel e Marx. 6

    Assim como Heidegger7, Sartre volta-se ao problema ontolgico,

    compreenso do Ser. A filosofia de Heidegger prope a retomada do sentido do Ser, o que

    de acordo com o filsofo, foi abandonado pela filosofia quando esta se rendeu

    metafsica.8 O lema de Husserl que prega a volta s coisas mesmas ser retomado por

    5 [...] A fenomenologia o estudo das essncias e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essncias: a essncia da percepo, a essncia da conscincia, por exemplo. Mas a fenomenologia tambm

    uma filosofia que repe as essncias na existncia, e no pensa que se possa compreender o homem e o

    mundo de outra maneira seno a partir de sua facticidade. uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreend-las, as afirmaes da atitude natural, mas tambm uma filosofia para a qual o

    mundo j est sempre ali, antes da reflexo, como uma presena inalienvel, e cujo esforo todo consiste em reencontrar este contato ingnuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosfico. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepo. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 01. 6 Gerhard Seel adotando o ponto de vista que privilegia a anlise da lgica interna que conduz o pensamento de Sartre do cogito husserliano ao marxismo, assim se manifesta sobre a evoluo filosfica do

    pensador francs: A la fin de notre examen, nous pouvons constater que lhypothse dont nous tions partis sest trouve confirme. Il sest avr que la philosophie de Sartre vise la solution dum problme central, celui dune thorie du sujet concret dans son rapport au monde concret. Levolution de cette pense reflte leffort de Sartre pour raliser cette ide en des formes systmatiquement toujours plus mries et plus diffrencies dans leur contenu. Ce faisant, Sartre prend chaque fois comme repres de orientations

    philosophiques dtermines, comme la phnomnologie de Husserl, lanalyse existentielle de Heidegger, la dialectique hgelienne ou le marxisme. SEEL, Gerhard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: Lage dhomme, 1995, p. 61. 7 Lanalyse existentielle de Heidegger (cf. LEtre et le Temps) donne une premire rponse la question que Sartre a pose la suite de sa critique de Husserl (celle de savoir comment il faut dterminer le sujet concret sil doit, en tant que fini et condition, possder nemoins la libert et labsoluit). Les categories (les existentiaux), en termes desquelles Heidegger pense le sujet concret, se caractrisent toutes par une double

    dtermination la Janus qui est cense exprimer limplication rciproque de deux moments fondamentaux de la realit humaine, la libert et la finitude, labsoluit et le fait dtre conditione. Id., Ibid., p. 44 8 Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a metafisica, a questo aqui evocada caiu no esquecimento [...] A questo referida [a questo do ser] no na verdade, uma questo qualquer. Foi

    ela que deu flego s pesquisas de Plato e Aristteles para depois emudecer como questo temtica de uma

    real investigao. O que ambos conquistaram manteve-se, em muitas distores e recauchutagens, at Lgica de Hegel. E o que outrora, num supremo esforo de pensamento, se arrancou aos fenmenos,

  • 18

    Heidegger na medida em que a via de acesso ao Ser no ser a representao conceitual,

    mas sim o que o filsofo denomina de analtica do Dasein9, ou seja, a anlise das estruturas

    existenciais pelas quais o Ser se manifesta.

    Sartre concorda com Heidegger no tocante necessidade da retomada do

    problema ontolgico fora dos padres da tradio filosfica, o que implicaria o

    rompimento de dualismos como sensvel-inteligvel, ato-potncia, sujeito-objeto e essncia

    e aparncia. Para ambos os filsofos, vale o princpio de Husserl segundo o qual os

    fenmenos - que devem ser entendidos em sentido amplo como coisas, sentimentos e atos -

    so manifestaes do Ser e no carregam uma natureza oculta. Mas isso no significa

    dizer que o Ser se reduza sua apario ou a uma srie de aparies: a apario to-

    somente revela o Ser. O Ser no produto do conhecimento ou das ideias, ele .

    Entretanto, ao Dasein, nico ente capaz de perguntar sobre o sentido do Ser, que ele se

    revela.

    Mas no irrelevante a distncia que separa os dois filsofos. A mais

    marcante distino que a filosofia da existncia de Heidegger se forma em oposio

    radical tradio metafsica; sua ontologia constitui-se como proposta de superao da

    dicotomia sujeito-objeto. Sartre, em oposio, considera o cogito como o incontornvel

    ponto de partida da filosofia, em bases que veremos mais adiante. Ademais, diferentemente

    de Heidegger, em Sartre a analtica existencial no se d apenas como abertura para o

    mistrio do Ser. Heidegger, inclusive, negou ser existencialista, pois seu pensamento

    visava passagem do existente ao Ser, e no mera descrio do existente10

    . J Sartre, que

    encontra-se, de h muito, trivializado. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis, RJ: Vozes, Universidade So Francisco, 2005, p. 27. 9 Chamamos existncia ao prprio ser com o qual a pre-sena [Dasein] pode ser comportar pode se comportar dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se comporta de alguma maneira. Como a

    determinao essencial desse ente no pode ser efetuada mediante a indicao de um contedo quididativo, j

    que sua essncia reside, ao contrrio, no fato de dever sempre assumir o prprio ser como seu, escolheu-se o

    termo pre-sena [Dasein] para design-lo enquanto pura expresso de ser. Id., Ibid., p. 38 10 A frase principal de Sartre sobre a procedncia da existentia sobre a essentia justifica, entretanto, o nome Existencialismo como um ttulo adequado para esta filosofia. Mas a frase capital do Existencialismo no tem o mnimo em comum com aquela frase em Ser e Tempo; isto, no tomando em considerao que em Ser

    e Tempo nem se podia ainda pronunciar uma frase sobre a relao de essentia e existentia; pois, trata-se, ali,

    de preparar algo pr-cursor. Pelo que dissemos, isto ainda se faz de um modo bastante desajeitado. Talvez o

    que ainda fica para dizer poderia eventualmente transformar-se num estmulo para levar a essncia do

    homem a atentar, com seu pensar, para a dimenso da verdade do ser que o perpassa com seu domnio.

    Todavia, tambm isto s poderia acontecer em favor da dignidade do ser e em benefcio do ser-a, que o

    homem, ec-sistindo, sustenta, e no por causa do homem, para que atravs de sua obra se afirmem a

    civilizao e a cultura. Id. Sobre o humanismo. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 355 (col. Os Pensadores)

  • 19

    acusaria Heidegger de certo misticismo por trabalhar com uma noo transcendental de

    Ser, entende que o processo de descrio dos existentes a grande tarefa de uma ontologia.

    A descrio dos existentes no apenas um caminho rumo ao Ser, mas sim o que uma

    filosofia que se pretende concreta deve fazer.

    A Construo do Mtodo

    A filosofia de Sartre mostra-se como um movimento em que cada etapa

    uma tentativa de superar as contradies da etapa anterior e integr-las em uma posio

    mais complexa, a fim de manter e consolidar a validade das convices fundamentais

    inicialmente assumidas11

    . Cria-se uma trama filosfica complexa em que a superao de

    contradies feita mediante a insero de novos conceitos e da manuteno de conceitos

    fundamentais. Com isso, possvel afirmar que entre os dois principais textos filosficos

    de Sartre - O Ser e o Nada e a Crtica da Razo Dialtica - h uma continuidade, no

    sentido de que noes fundamentais, como as de liberdade e projeto permanecem e

    aprofundam-se medida que o autor desenvolve seu trajeto intelectual. o que pensa

    Franois Noudelmann, para quem a passagem de uma filosofia do sujeito individual -

    contida em O Ser e o Nada -, a uma crtica do sujeito coletivo - vista na Crtica da Razo

    Dialtica -, se opera a partir de esquemas comuns:

    Cepedant, malgr cette rupture dclre le passage dune philosophie du sujet individuel une critique du sujet collectif sopre partir de schmes communs. La problmatique de lindividu inser dans lhistoire sappuie sur un ensemble dimages dont il convient danalyser le fonctionnement. Dix-sept ans aprs L Etre et le Nant, Sartre reprend une trame figurative qui informe les concepts, au prix dadapatations et dajustaments aux nouvelles donns thoriques. La dfinition dune intelligibilit de LHistoire passe par la cration dun dispositif qui dplace les anciens concepts. Comprendre la situation de lhomme dans la realit collective et ses perspectives daction, cest aussi mettre en place les cadres thoriques de son activit. Il semble que, loin dillutrer la raison dialectique, la reprise de certaines images contienne dj, en

    quelles assurent leur mise en relation. La prise en compte des collectifs, de lois de levolution historique sadapte au tissu imaginaire qui faonne

    la rflexion sartrienne et lui confre une extesion. [...].12

    Na mesma direo, Franklin Leopoldo e Silva destaca que uma leitura de O

    Ser e o Nada e de Crtica da razo dialtica demonstraria haver continuidade entre as duas

    11 SEEL, Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995, p. 21 12 NOUDELMANN, Franois. Sartre: Lincarnation imaginaire. Paris: LHarmattan,1996, p. 83.

  • 20

    obras, "com uma diferena de nfase em certos aspectos". Esta diferena de nfase, ainda

    que significativa, no autoriza a identificao de um segundo Sartre, como se houvesse o

    abandono de teses fundamentais entre uma obra e outra. Para Franklin Leopoldo e Silva, as

    noes de liberdade em situao, "pea-chave da ontologia da subjetividade", e de

    facticidade, j trazem, desde seu surgimento, perspectivas histricas que posteriormente,

    em Crtica da razo dialtica, s viriam a ser desenvolvidas e aprofundadas. Alm disso, o

    conflito de liberdades que caracteriza o tema da intersubjetividade concebido "num

    cenrio concreto e definido, ainda que esta determinao histrica e poltica no seja

    explicitamente focalizada em O Ser e o Nada.

    Adotando a perspectiva da continuidade e da unidade do legado de Sartre,

    podemos identificar a evoluo histrica da filosofia de Sartre em trs estgios, que

    representam a tentativa de superao de impasses tericos que ameaam a consistncia do

    tratamento dado s convices fundamentais que penetram o conjunto da obra. Cada

    estgio desta evoluo pode ser identificado pelas obras mais significativas da produo

    filosfica de Sartre13

    .

    A primeira a fase de A transcendncia do ego, em que despontam a

    recepo crtica da filosofia de Husserl e o primeiro encontro com o problema fundamental

    da filosofia sartreana: a liberdade.

    A segunda a fase de O Ser e o Nada, em que o esforo de superao das

    contradies da fase anterior introduz a antinomia ontolgica fundamental do Em-si e do

    Para-si, o que feito mediante uma releitura da dialtica hegeliana e da ontologia de

    Heidegger.

    A terceira fase a da Crtica da Razo Dialtica em que Sartre empreender

    a mediao entre marxismo e existencialismo e de uma deduo dialtica das categorias

    histricas sociais a partir das estruturas antropolgicas fundamentais j elaboradas em O

    Ser e o Nada.

    Estas fases da filosofia de Sartre so perpassadas por preocupaes

    anteriores formulao de seu sistema terico. A exposio destas preocupaes fundantes

    ou motivos centrais possibilitar a compreenso dos caminhos percorridos por Sartre rumo

    construo do tema da liberdade.

    13 SEEL, Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995, p. 21

  • 21

    Os motivos centrais da filosofia de Sartre

    No livro La dialectique de Sartre14

    , Gerhard Seel menciona o que considera

    como os trs motivos centrais em torno dos quais Sartre construiu os fundamentos de sua

    filosofia.

    O primeiro motivo central que anima a filosofia de Sartre a busca pelo

    concreto, o que levar suas teorias a uma rejeio do idealismo e de todo pensamento

    abstrato decorrente de leis ou conceitos universais. Por isso, tem-se a recorrente descrio

    da existncia como totalidade concreta criada, recriada e captada pela conduta subjetiva.

    Esta aspirao ao concreto, presente em vrias tendncias intelectuais surgidas aps a

    primeira guerra mundial, levaria a filosofia de Sartre a adotar a fenomenologia, postular a

    criao de tica materialista15

    e, posteriormente, a incorporar o marxismo.

    Ao amor do concreto e o anti-idealismo junta-se a convico do carter

    ontologicamente indeterminado da liberdade humana. Esta convico que acompanhar

    Sartre durante toda a sua trajetria no puramente terica, mas fruto de uma experincia

    vital e original 16. A convico ontolgica da liberdade d sentido para a compreenso das

    opes tericas de Sartre, em especial no que tange reconstruo filosfica da ideia da

    conscincia como entidade primordial e independente17

    .

    O terceiro motivo evoca a absurdidade, o acaso da existncia. O romance A

    Nusea tem como tema principal exatamente esta impossibilidade de deduzir ou justificar a

    existncia, algo que j nos alerta acerca das posies que Sartre manifestaria sobre a

    transcendncia dos valores, como veremos posteriormente. Do ponto de vista terico, este

    motivo resultar nas temticas da contingncia e da facticidade.

    Na viso de Gehard Seel18

    , a ligao terica entre os trs motivos

    fundamentais conduziram Sartre a uma srie de contradies, mas que ao mesmo tempo

    14 Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995 15 Ce motif fondamental pourrait aisment tre mis en relation avec tendances intellectuelles du temps aprs

    la premire guerre mondiale, marqu, selon le mot de Landgrebe, par une faim de ralit. La philosophie du temps de Sartre prouve de son cot, comme une mode, cette aspiration au concret quon constate par exemple dans lethique matriale des valeurs, dans la psychologie de Gestalt et dans la phnomnologie. Id., Ibid., 1995, p. 25-26. 16

    Id., Ibid., p. 26 17 Id., Ibid. 18 Id., Ibid., p. 27

  • 22

    forneceram a originalidade de sua obra. Para Seel, em concordncia com Simone de

    Beauvoir, a obra filosfica de Sartre pode ser lida como uma tentativa de apreender e

    ultrapassar por meios tericos as contradies inerentes s suas convices pr-tericas 19.

    A Conscincia

    A filosofia de Sartre tem com ponto de partida a subjetividade, a

    conscincia, o que segundo o prprio autor atende a razes estritamente filosficas 20.

    Sartre considera que a formao do cogito est historicamente ligada ao processo de

    constituio ideolgica da burguesia, por isso trata de afirmar que sua opo pelo cogito

    no se deve ao fato de ser burgus, mas ao fato de querer uma doutrina baseada na

    verdade e, para ele, no pode haver outra verdade, no ponto de partida, seno esta:

    penso, logo existo; a que se atinge a si prpria a verdade absoluta da conscincia. 21 A

    adoo de outro fundamento que no o cogito seria admitir a supresso da verdade, haja

    vista que, sem o homem, todos os objetos so apenas provveis. 22

    A escolha da conscincia como ponto de partida tem como objetivo a

    construo de uma ideia de liberdade vinculada a um processo existencial de constituio

    da subjetividade humana. Deste modo, a realidade ganha um carter de indeterminao,

    uma vez que a liberdade, mais que mera faculdade ou predicado, o modo de ser do

    homem que se realiza como processo existencial23

    . Com Sartre, no possvel afirmar a

    realidade humana e tudo o que dela deriva a partir de uma essncia ou de outras formas de

    determinao, a exemplo do que se retira das tradies filosficas idealistas e do

    materialismo vulgar que reduz a realidade humana a um conjunto de fatos; a realidade

    humana existncia que se constitui no exerccio da liberdade. Neste sentido, a

    19Gehard. La dialectique de Sartre. Lausanne, Suia: LAge dHomme, 1995Id., Ibid. 20 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo um humanismo. So Paulo: Abril, 1975, p. 20. 21Id., Ibid. 22 Id., Ibid. E ainda: Essa captao do ser por si mesmo como no sendo seu prprio fundamento acha-se no fundo de todo cogito. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 128. 23 O homem liberdade em seu prprio ser. Por isso, o estudo da liberdade resume e conclui todas as anlises anteriores; quando Sartre define a realidade humana o para-si dever o que ele , ele o que no e no o que , a existncia precede a essncia -, com essas frmulas define a prpria liberdade. BORNHEIN, Gerd. Sartre: metafsica e existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 2007, p. 110.

  • 23

    constituio da subjetividade deve ser entendida processualmente, vale dizer, a conscincia

    no produto da intuio pura, mas do devir existencial.

    A realidade humana movimento de existir que se revela como processo

    indeterminado de busca do ser. Se a apreenso da realidade humana tem incio na

    subjetividade, a conscincia tambm movimento e indeterminao. Ora, caso as

    concepes anteriores de conscincia fossem absolutamente preservadas, a filosofia

    sartreana cairia em contradies insuperveis, haja vista que o substancialismo ou o

    formalismo das noes sobre a conscincia se chocaria com seu propsito de descrever a

    existncia concreta pelas condutas subjetivas. Neste sentido, o aporte metodolgico da

    fenomenologia de Husserl fundamental. Com Husserl, Sartre ganha novos horizontes

    conceituais para a compreenso da subjetividade, que agora se afasta do naturalismo

    psicolgico e da metafsica do sujeito de Descartes e Kant. A fenomenologia permitir uma

    descrio das condutas subjetivas que no entenda a conscincia to-somente como coisa

    pensante ou apercepo sinttica do objeto em geral,24 mas como movimento

    intencional para alm de si.

    A conscincia sempre conscincia de alguma coisa. Desse modo, a

    transcendncia estrutura constitutiva da conscincia, vale dizer, a conscincia nasce

    tendo por objeto aquilo que ela no 25. A conscincia intencional e se lana sempre em

    direo ao mundo que est fora dela. Essa intencionalidade, nas palavras de Gerd

    Bornhein26, apresenta em sua essncia, a tessitura ontolgica da conscincia. Toda

    conscincia posicional, na medida em que se transcende para alcanar um objeto, e ela

    esgota-se nesta posio mesma: tudo quando h de inteno na minha conscincia atual

    est dirigido para o exterior 27. Da dizer que a conscincia, mais do que um exemplar

    24 SILVA, Franklin Leopoldo. Sartre. In PECORARO, Rossano. Os filsofos: clssicos da filosofia. Petrpolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009, Vozes, p. 107 25 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 34 26 BORNHEIN, Gerd. Sartre: metafsica e existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 2007, p. 110. 27 SARTRE, Jean-Paul. Loc. cit., p. 22

  • 24

    singular de uma possibilidade abstrata, surge do bojo do ser, ordenando sinteticamente

    suas possibilidades ou ainda, criando e sustentado sua essncia 28.

    A conscincia puro movimento intencional para fora de si. Se a

    conscincia persegue o ser, significa dizer que a conscincia anterior ao nada e se

    extrai do ser. 29, ou seja, que absolutamente indeterminada e sem substancialidade.

    Isso torna a conscincia pura ao, puro lanar-se em direo aos objetos que esto fora

    dela, no podendo ser depositria de ideias inatas ou estruturas pr-concebidas. A

    conscincia uma descompresso30 de ser, sendo impossvel defini-la como

    coincidncia consigo mesma.31

    Toda conscincia conscincia de alguma coisa. [...] ser conscincia de

    alguma coisa estar diante de uma presena concreta e plena que no a

    conscincia. Sem dvida, pode-se ter conscincia de uma ausncia. Mas esta ausncia aparece necessariamente sobre um fundo de presena. Pois

    bem: como vimos a conscincia uma subjetividade real, e a impresso

    uma plenitude subjetiva. Mas esta subjetividade no pode sair de si para

    colocar um objeto transcendente conferindo-lhe a plenitude impressionvel. Assim, se quisermos, a qualquer preo, que o ser do

    fenmeno dependa da conscincia, ser preciso que o objeto se distinga

    da conscincia, no pela presena, mas pelo seu nada. Se o ser pertence conscincia, o objeto no a conscincia, no na medida em que outro

    ser, mas enquanto um no ser.

    O Ser-Em-si

    A exposio feita at este momento sobre a ontologia sartreana demonstra

    que a assuno do ponto de partida da conscincia no significa que a existncia seja uma

    espcie de impresso cravada na subjetividade, e muito menos de que seja algo oculto por

    detrs dos fenmenos. claro que o Ser se manifesta como fenmeno, uma vez que o ser

    um fundamento sempre presente do existente. o fenmeno de ser que, como todo

    28 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, ,

    p. 22 29 SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p.

    27. 30 O Para-si corresponde, portanto, a uma destruio descompressora do Em-si, e o Em-si se nadifica e se

    absorve em sua tentativa de se fundamentar. No , pois, uma substncia que tivesse por atributo o Para-si e

    produzisse o pensamento sem esgotar-se nessa produo. Permanece simplesmente no Para-si como uma

    lembrana do ser, como sua injustificvel presena ao mundo. O Ser-Em-si pode fundamentar seu nada, mas

    no o seu ser; em sua descompreenso, nadifica-se em um Para-si que se torna, enquanto Para-si, seu prprio

    fundamento; mas sua contingncia de Em-si permanece inalcanvel. Id., Ibid., p. 134 31 Id., Ibid., p. 122.

  • 25

    fenmeno, revela-se imediatamente conscincia, sem as determinaes conceituais da

    filosofia tradicional.

    Mas dizer isso no o mesmo que dizer que o Ser se reduz ao fenmeno.

    Para Sartre32, a conscincia exige apenas que o ser do que aparece no exista somente

    enquanto aparece. conscincia sempre ser possvel ultrapassar o existente no em

    direo ao ser, mas ao sentido do ser. Assim, a conscincia revelao-revelada de um

    ser que ela no e que se d como j existente quando ela o revela.

    O que Sartre nos explica que h um ser transfenomenal, ou seja, alm do

    fenmeno cujo sentido pode ser captado pela conscincia. Este ser em-si, pois no existe

    apenas quando se d conscincia, mas que pode ser apreendido em seu sentido, no bojo

    do fenmeno que o manifesta.

    O Ser-Em-si ou Em-si simplesmente . No ativo nem passivo, no possui

    um dentro nem fora, um antes ou depois e nem conhece a alteridade, pois no se

    coloca jamais com outro a no ser a si mesmo. , nas palavras de Sartre, a mais

    indissolvel de todas as snteses, pois a sntese de si consigo mesmo.

    Colocado nesses termos, podemos concluir que o Ser regido pelo

    princpio de identidade: ele somente aquilo que . Como se existisse em

    repouso, indolentemente, em uma espcie de frouxido, o Ser nos surge

    tal qual uma matria opaca e plena de si mesma, densa e macia, algo plenamente constitudo e sem rachaduras, esgotando-se nesse no-ser-outra coisa-seno-si-mesmo. Uno e macio, o Ser est fechado em si, sendo incapaz de estabelecer qualquer relao consigo mesmo. Devemos compreende-lo como pura positividade: o Ser o que , nada alm disso.

    O Ser aparece como algo que est a, sem que saibamos por que, algo

    cujo existir s podemos entender como absoluta contingncia. Contingente no sentido de no necessrio: nada parece impor ou justificar

    o aparecimento do Ser, nenhum sinal nos indica qualquer razo para que

    o Ser exista e seja o que , e no de outra maneira. Contingncia no sentido de que este Ser o mundo que existe, e no outro poderia ser diferente. A existncia das coisas acontece desse modo, como poderia

    acontecer de outro, ou mesmo no acontecer.33

    32 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 35 33 PERDIGO, Paulo. Existncia e Liberdade: uma introduo filosofia de Sartre. Porto Alegre: LP&M,

    1995, p. 37

  • 26

    Tais palavras poderiam soar como um mistrio do ser, mas Sartre quer

    justamente o contrrio: demonstrar que o Ser-Em-si nada tem de misterioso, pois opaco e

    macio. O mistrio poderia levar a uma reflexo sobre uma razo de ser. Mas o Em-si

    no tem razo de ser. Ele suprfluo, gratuito, e no se pode afirmar sua origem. Deste

    modo, as trs caractersticas do Ser-Em-si seriam: 1) o ser ; 2) o ser em si; 3) o ser o

    que .

    Com esta exposio to crua do que denomina Ser-Em-si, Sartre aponta

    para a questo crucial de sua filosofia: o que chamamos de realidade resultado das

    significaes, ou do sentido que a conscincia atribui ao ser. Ativo e passivo, certo e

    errado, justo e injusto, possvel e impossvel so qualidades que implicam a negao da

    facticidade do Em-si. Ao dizer que algo injusto, estou ao mesmo tempo dizendo que algo

    no justo. Por conseguinte, para atribuir uma qualidade ao ser tive que neg-lo, tive que

    me referir ao no-ser, outra possibilidade negada. Desta forma, todas as qualidades

    atribuveis ao ser aparecem como uma fissura na opacidade prpria do ser, que nega este

    ser e se coloca como no ser. Se o Ser-Em-si pura positividade, s um ser que no tem

    ser pode efetuar a negao34

    .

    Este ser o Para-si.

    O Ser-Para-si

    Este processo de constituio da realidade humana, que a existncia,

    reflete-se na conscincia. A constituio da subjetividade um caminhar na direo de si, e

    o si aquilo que est fora da subjetividade, haja vista que a conscincia s quando

    34 [...] o ser que possui em si a ideia de perfeio no pode ser seu prprio fundamento, pois, se o fosse, teria

    se produzido em conformidade com essa ideia. Em outras palavras: um ser que fosse seu prprio fundamento

    no poderia sofrer o menor desnvel entre o que ele e o que ele concebe, pois se produziria a si conforme

    sua compreenso do ser e s poderia conceber-se como ele . Mas esta apreenso do ser como falta de ser

    frente ao ser , antes de tudo, uma captao pelo cogito de sua prpria contingncia. SARTRE, Jean Paul. O

    Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 129

  • 27

    lanada ao mundo35

    . Assim, Sartre denomina Para-si a constituio da subjetividade como

    movimento intencional da conscincia.

    O Para-si no tem ser, porque o seu ser est sempre distncia: est l longe, no refletidor, o qual s em si pura funo de refletir esse reflexo.

    Mas alm disso, em si mesmo, o Para-si no o ser, porque faz-se ser

    explicitamente para si, como no sendo o ser. O Para-si conscincia de ...como negao ntima de ...A estrutura de base da intencionalidade e da

    ipseidade a negao, como relao interna entre o Para-si e a coisa; o

    Para-si constitui-se fora, a partir da coisa, como negao desta coisa;

    assim, sua primeira relao com o Ser-Em-si a negao; ele maneira do Para-si, ou seja, como existente disperso, na medida em que

    se revela a si mesmo como no sendo o ser.36

    Como nos ensina Franklin Leopoldo e Silva37

    , o termo Para-si possui em

    Sartre dois significados convergentes: 1) Reflexividade, em que o sujeito, voltado para si,

    toma-se como a primeira verdade, como a primeira instancia da realidade que lhe

    dada; 2) Processo, o que tem o sentido de ir em direo a si mesmo. O sujeito se

    constitui medida que se lana em direo ao que est fora de si, ao que est alm de si, o

    que faz com que a existncia seja o prprio processo de existir.38

    A dialtica do Em-si e do Para-si

    A realidade humana constituda na relao que integra dialeticamente a

    negatividade do Para-si e a pura positividade do Em-si, forjando essa dade indissolvel

    entre o Ser e o Nada. Neste sentido, a ontologia de Sartre afirma a impossibilidade de que

    a realidade possa ser concebida como a descrio de um conjunto de fatos objetivos, tal

    como pensam, grosso modo, os positivistas, ou como pura projeo da conscincia

    subjetiva, como querem os idealistas. Porm, tambm h na ontologia sartreana a

    afirmao da realidade como construo, medida que o Para-si, em sua indeterminao,

    35 [...] logo, o ser da conscincia, na medida em que este ser para se nadificar em Para-si, permanece contingente; ou seja, no pertence conscincia o direito de conferir o ser a si mesma, nem o de receb-lo de

    outros. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes,

    2007Id., Ibid., p. 130 36SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 177 37SILVA, Franklin Leopoldo. Sartre. In PECORARO, Rossano. Os filsofos: clssicos da filosofia. Petrpolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009, Vozes, p. 109 38De fato, sou o sujeito na medida em que vivo o contnuo processo de me constituir como tal. Assim se deve entender a definio de realidade humana: aquela em que o ser consiste em existir. Id., Ibid., p. 109

  • 28

    que atribui sentido ao ser objetivo. Os fatos so significaes que surgem da negao do

    Em-si pelo Para-si.

    [...] o Para-si o Em-si que se perde como Em-si para fundamentar-se como conscincia. Assim, a conscincia obtm de si prpria seu ser

    consciente e s pode remeter a si mesma, na medida em que sua prpria

    nadificaao: mas o que se nadifica em conscincia, sem que possamos consider-lo fundamento da conscincia, o Em-si contingente. O Emsi no pode fundamentar nada; ele se fundamenta a si conferindo a si a

    modificao do Para-si. fundamento de si na medida que j no Em-

    si; e deparamos aqui com a origem de todo fundamento. Se o Ser-Em-si no pode ser seu prprio fundamento nem o dos outros seres, o

    fundamento em geral vem ao mundo pelo Para-si. No apenas o Para-si,

    como Em-si nadificado, fundamenta a si mesmo, como tambm surge dele, pela primeira vez, o fundamento.

    39

    Ora, se no tem fundamento prvio, se determinao originria, se nada,

    o Para-si livre para atribuir sentido situao em que se encontra. A conscincia

    concreta surge em situao, e conscincia singular e individualizada desta situao e (de)

    si mesmo em situao, diz Sartre40.

    39

    SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p.141 40 Id., Ibid., p. 142

  • 29

    CAPTULO 2.

    A LIBERDADE

    Liberdade e Situao

    A liberdade o modo de constituio da conscincia, textura do meu

    ser, nos termos empregados por Sartre41. Sendo a conscincia pura intencionalidade,

    pode-se concluir que a ao humana tambm intencional e determinada pelo nada 42. A

    liberdade ato, e o ato no possui outro fundamento seno a prpria liberdade43

    , que, como

    j se viu, no tem fundamentos ou essncias. importante que se diga que Sartre no

    pretende apresentar o Para-si como fundamento de si mesmo, como liberdade. Para ele, o

    Para-si livre em situao, ou seja, a liberdade se revela diante das possibilidades

    surgidas quando o Para-si nega a pura positividade do Em-si quando do ato de significao

    do mundo.

    Assim, comeamos a entrever o paradoxo da liberdade: no h liberdade

    a no ser em situao, e no h situao a no ser pela liberdade. A

    realidade humana encontra por toda parte resistncia e obstculos que ela no criou; mas essas resistncias e obstculos s tem sentido na e pela

    41 Assim, minha liberdade est perpetuamente em questo em meu ser; no se trata de uma qualidade

    sobreposta ou uma propriedade de minha natureza; bem precisamente a textura de meu ser; e, como meu

    ser est em questo em meu ser, devo necessariamente possuir certa compreenso de liberdade. esta

    compreenso que tentaremos explicitar agora. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e

    fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 543 42 A liberdade e a conscincia se circunscrevem reciprocamente. E a conscincia sendo um poder nadificador, repele toda e qualquer modalidade de determinismo. Nenhum estado de fato suscetvel de motivar por si mesmo qualquer ato, nenhum pode levar a conscincia a se definir e a se determinar. E isso porque todo estado de fato s , s vem a ser, atravs do poder nadificador do para-si. Posta a conscincia,

    abandona-se o ser para invadir o terreno do no-ser. [...] Sem dvida, todo ato supe motivos e mveis. Mas

    disso no se deve inferir que eles seja a causa do ato, porquanto, muito pelo contrrio, o ato que decide de seus fins e de seus mveis, e o ato expresso de liberdade SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 26. Gerd Bornhein acrescenta: Em outras palavras, a liberdade no tem essncia, instaura-se desprovida de qualquer necessidade lgica. J nesse

    sentido, a existncia precede e comanda a essncia, e todo empenho em demarcar a liberdade torna-se

    fundamentalmente contraditrio, pois a liberdade se explica como fundamento de todas as essncias. No se

    trata, portanto, de uma propriedade ou de uma tendncia acrescida minha natureza; trata-se do estofo

    mesmo do meu ser, e analogamente conscincia, deve ver nela uma simples necessidade de fato, uma

    contingncia radical. [...] Por ser o homem livre, escapa ao seu prprio ser, faz-se sempre outra coisa do que aquilo que se pode dele dizer. BORNHEIN, Gerd. Sartre: metafsica e existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 2007, p.111. 43 1) Nenhum estado de fato, qualquer que seja (estrutura poltica ou econmica da sociedade, estado psicolgico, etc.) capaz de motivar por si mesmo qualquer ato. Pois um ato uma projeo do Para-si rumo

    a algo que no , e aquilo que no pode absolutamente, por si mesmo, determinar o que no . 2) Nenhum

    estado de fato pode determinar a conscincia a capt-lo como negatividade ou como falta. Melhor ainda:

    nenhum estado de fato pode determinar a conscincia a defini-lo e circunscrev-lo, pois, como vimos,

    continua sendo profundamente verdadeira a frmula de Spinoza: Omnis determinatio est negatio. Loc. cit., p. 539

  • 30

    livre escolha que a realidade humana . Mas, de modo a captar melhor o

    sentido dessas observaes e dela extrair o proveito que oferecem,

    convm agora analisar sua luz alguns exemplos precisos. O que temos denominado facticidade da liberdade o dado que ela tem-de-ser e

    ilumina pelo seu projeto. Esse dado se manifesta de diversas maneiras,

    ainda que na unidade absoluta de uma s iluminao. meu lugar, meu

    corpo, meu passado, meus arredores, na medida em que j determinados pelas indicaes dos Outros, e, por fim, minha relao fundamental com

    o Outro.44

    Neste sentido, a liberdade liberdade situada, ou seja, que se revela diante

    de circunstncias concretas da vivncia humana. Sartre pretende romper com as

    concepes abstratas da liberdade - inclusive jurdicas que colocam a liberdade como

    uma propriedade metafsica do homem.45

    A liberdade realiza-se no interior de um mundo

    em que os fatos e os Outros se colocam como condicionantes das escolhas do sujeito. A

    situao possui dois aspectos relevantes compreenso da liberdade: a facticidade46

    e a

    alteridade.

    A facticidade o conjunto de fatos, naturais ou sociais, que constituem o

    cenrio em que a liberdade ser exercida pelo sujeito. A facticidade impe ao sujeito

    contextos como caractersticas fsicas, a famlia, a classe social, sobre os quais no houve

    deliberao. O que se coloca que a facticidade Em-si, ou seja, no tem uma

    significao prpria. E justamente a liberdade que atribuir significao aos fatos que

    compem a situao. Neste sentido, a negao da facticidade abertura de possibilidades

    constitudas pelo projetar do Para-si para alm de si. Como ensina Franklin Leopoldo e

    Silva47, a construo da existncia feita atravs da liberdade, da qual dispomos mesmo

    44 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 602 45 O que Sartre deseja no nem apenas a garantia ontolgica e abstrata da liberdade e nem somente a prtica dela. preciso que ambas se interpenetrem: Sartre pretende estabelecer um vnculo estreito e

    intrnseco entre a liberdade absoluta e a liberdade de fato; entre o universal abstrato e o particular concreto;

    entre a metafsica e a histria; Se compararmos com as concepes clssicas, podemos dizer que no h

    propriamente uma metafsica e uma histria, separadas e independentes: assim como no h um geral

    abstrato totalmente distinto de um individual particular, a metafsica no se d sem histria. Para Sartre h

    um universal concreto e uma metafsica que mergulha profundamente na existncia humana, e portanto, uma

    metafsica que se d e se encontra na histria. SOUZA, Thana Mara de. A literatura em Sartre: a compreenso da realidade humana. In: ALVES, Igor et alii. (Org.). O drama da existncia: estudos sobre o pensamento de Sartre. So Paulo: Humanistas, 2003, p. 159. 46 [...] o Para-si acha-se sustentado por uma perptua contingncia, que ele retoma por sua conta e assimila

    sem poder suprimi-la jamais. Esta contingncia perpetuamente evanescente do Em-si que infesta o Para-si e o

    une ao Ser-Em-si, sem se deixar captar jamais, o que chamaremos de facticidade do Para-si. esta

    facticidade que nos permite dizer que ele , que ele existe, embora no possamos jamais alcan-la e a

    captemos sempre atravs do Para-si. Id, Ibid., p. 132 47 SILVA, Franklin Leopoldo. Sartre. In PECORARO, Rossano. Os filsofos: clssicos da filosofia. Petrpolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009, Vozes, p. 111

  • 31

    em relao ao que no podemos mudar. Isso torna o ser humano portador de uma

    condio, mas no de uma natureza, medida que a condio o que construmos no

    processo de existir como conscincia de ns mesmos e do mundo em que vivemos. No

    h, portanto, uma essncia definidora do ser humano, mas um modo de ser singular forjado

    no processo existencial.

    [...] o Para-si, ao mesmo tempo que escolhe o sentido de sua significao

    e se constitui como fundamento de si em situao, no escolha sua posio. o que faz com que eu me apreenda ao mesmo tempo como

    totalmente responsvel por meu ser, na medida que sou seu fundamento,

    e, ao mesmo tempo, como totalmente injustificvel. Sem a factidade, a conscincia poderia escolher suas vinculaes com o mundo, da mesma

    forma como, na Repblica de Plato, as almas escolhem sua condio: eu

    poderia me determinar a nascer operrio ou nascer burgus. Mas, por outro lado, a facticidade no poderia me constituir como sendo burgus

    ou sendo operrio. Ela sequer , propriamente falando, uma resistncia

    do fato, porque eu lhe conferiria seu sentido e sua resistncia ao retom-la

    na infra-estrutura do cogito pr-reflexivo. A facticidade apenas uma indicao que dou a mim mesmo do ser que devo alcanar para ser o que

    sou. Impossvel capt-la em sua bruta nudez, pois tudo que acharemos

    dela j se acha resumido e livremente construdo.48

    Junto facticidade, compe a situao existencial a alteridade. Trata-se do

    problema da intersubjetividade, da relao com o Outro. Em Sartre, ao contrrio do

    tratamento tradicionalmente dado ao problema da intersubjetividade, em que se tem

    primeiramente uma intuio de si e depois a representao do outro, o Para-si e o chamado

    Para-outro so parte da mesma estrutura existencial. O olhar do Outro fornece a

    objetividade da minha existncia.49

    Na impossibilidade de captar o Outro em sua singularidade subjetiva, torno-

    o objeto da minha conscincia, constituindo-o como uma essncia que ele no . Minha

    ao no mundo feita mediante a atribuio de uma identidade ao Outro, o que na verdade

    refere-se apenas a um momento do processo existencial, j que a realidade humana jamais

    ser uma totalidade idntica a si, mas sempre um processo de totalizao em curso. O

    olhar do Outro me ameaa, me faz sentir vergonha, raiva, medo, faz-me exigncias. Por

    isso a to famosa afirmao contida em Huis Clos de que o inferno so os outros. Ao

    48 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 132 49 Tout dabord, le regard dautrui, comme condition ncessaire de mon objectivit, est destruction de toute objectivit pour moi. Le regard dautrui matteint travers le monde et nest pas seulement transformation de moi mme, mais mtamorphose totale du monde. Je suis regard dans un monde regard. SARTRE, Jean Paul. LEtre et le Nant: Essai dontologie phnomnologique. Paris: Gallimard, 1943, p. 308

  • 32

    congelar minhas possibilidades, o Outro tambm me revela a impossibilidade do homem

    tornar-se um objeto, a no ser pela ao de outra liberdade.50

    Sobre este aspecto da

    liberdade em Sartre, ensina Thana Mara de Souza:

    Mas o homem precisa nascer livre para saber o que a liberdade: ela

    inerente sua conscincia, mas o homem no conhece a liberdade do

    outro, tenta oprimi-lo e transform-lo em objeto. E justamente o paradoxo entre a garantia ontolgica da liberdade e sua no realizao

    efetiva que leva esse homem oprimido a se voltar contra os outros, a

    buscar a revoluo.51

    Por esta descrio do carter conflituoso das relaes intersubjetivas,

    podemos antever que a tica de Sartre se afastar sensivelmente das ticas tradicionais

    pensadas a partir do consenso.

    Liberdade e Temporalidade

    Uma descrio fenomenolgica da realidade humana implica a descrio da

    temporalidade. Tanto para Heidegger como para Sartre, o tempo pertence realidade

    humana, e no pode ser considerado como uma realidade objetiva, cuja existncia dar-se-ia

    ao conhecimento.

    O Em-si, em sua positividade e opacidade, no poderia albergar a noo de

    tempo, pois ao tempo pertencem as caractersticas de dialticas da permanncia dos

    instantes e da mudana de um fluir continuado. O tempo concomitantemente

    permanncia e mudana, uma contradio que a pura facticidade do Em-si no pode

    suportar. O Em-si no dispe de temporalidade precisamente porque Em-si, e a

    temporalidade o modo de ser unitrio de um ser que est perpetuamente distncia de si

    para si, diz Sartre52. Se a dinmica temporal se desvela em presente, passado e futuro, o

    tempo deve ser estudado como uma totalidade, que domina suas estruturas secundrias e

    lhes confere significao, caso contrrio deparar-se-ia com o paradoxo de um passado,

    que no mais, de um presente, que no existe: o limite de uma diviso infinita, como 50 SARTRE, Jean Paul. LEtre et le Nant: Essai dontologie phnomnologique. Paris: Gallimard, 1943, p. 308, p. 309 51 SOUZA, Thana Mara de. A literatura em Sartre: a compreenso da realidade humana. In: ALVES, Igor et alii. (Org.). O drama da existncia: estudos sobre o pensamento de Sartre. So Paulo: Humanistas, 2003,

    p. 159. 52 SARTRE, Jean-Paul. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica.

    Petrpolis, RJ: Vozes, 2007, p. 269

  • 33

    o ponto sem dimenso, e de um futuro, que ainda no . Deste modo, a temporalidade

    uma intra-estrutura prpria do Para-si.

    A temporalidade no . S um ser com certa estrutura de ser pode ser

    temporal na unidade de seu ser. [...] a temporalidade s pode designar o

    modo de ser de um ser que si-mesmo fora de si. [...] Com efeito somente porque o si si l adiante, fora de si, em seu ser, pode ser antes

    ou depois de si, pode ter em geral, um antes e um depois. No h

    temporalidade salvo como intra-estrutura de um ser que tem-de-ser o seu ser, ou seja, como intra-estrutura do Para-si. No que o Para-si tenha

    prioridade ontolgica sobre a Temporalidade. Mas a Temporalidade o

    ser do Para-si na medida em que este tem-de-s-lo ek-staticamente. A temporalidade no , mas o Para-si se temporaliza existindo.

    A Temporalidade aparece sobre o fundamento de uma negao originria,

    negao que s possvel pelo Para-si. Falar da Temporalidade no falar de um tempo

    universal que contenha todas as realidades, de uma lei de desenvolvimento imposta de fora

    do ser ou do ser em si; a temporalidade constitui-se como negatividade, como o modo de

    ser do Para-si, este ser que tem-de-ser seu ser na forma diasprica da Temporalidade.

    Mas o presente no somente no-ser presente do Para-si. Enquanto

    Para-si, este tem seu ser fora de si, adiante e atrs. Atrs, era seu passado;

    adiante, ser seu futuro. fuga fora do ser co-presente e do ser que era, rumo ao ser que ser. Enquanto presente, no o que (passado) e o

    que no (futuro).53

    O Para-si s pode ser sob a forma temporal, diz Sartre. Isso porque a

    nadificao54

    do Em-si promovida pelo Para-si coloca a multiplicidade no interior na

    unidimensionalidade do Ser. o efeito diasprico, termo que Sartre utiliza para designar

    o modo de ser do Para-si caracterizado pela coeso e disperso que instaura uma quase-

    multiplicidade no interior do Em-si55. A realidade humana faz com que a multiplicidade

    se instaure no mundo, fazendo surgir diferentes maneiras de ser que nunca coincidem com

    o Ser-Em-si assim, portanto, que o Para-si se temporaliza existindo, projetando-se em

    53 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 177 54 O Para-si no pode manter a nadificao sem se determinar como falta de ser. Significa que a nadificao

    no coincide com uma simples introduo do vazio na conscincia. No foi um ser exterior que expulsou o

    Em-si da conscincia, mas o prprio Para-si que se determina perpetuamente a no ser Em-si. Significa que

    s pode fundamentar-se a partir do Em-si e contra o Em-si. Deste modo, a nadificao, sendo nadificao do

    ser, representa a vinculao original entre o ser do Para-si e o ser do Em-si. Id., Ibid., p. 135 55 No mundo antigo, a profunda coeso e disperso do povo judeu era designada como dispora. a palavra que nos servir para designar o modo de ser do Para-si: diasprico (diasporique). O Em-si s tem

    uma dimenso de ser; mas a apario do nada com aquilo que tendo sido no corao do ser complica a

    estrutura existencial, fazendo surgir a miragem ontolgica do Si. Id., Ibid., p. 192

  • 34

    vo para o si, no af de ser o que se para-alm de nada.56 da nadificao realizada

    pelo Para-si que surge a distncia que caracteriza as dimenses da temporalidade ou ek-

    stases temporais: passado, presente e futuro.

    Com efeito, o passado o no mais. Sou o meu passado, pois somente no

    passado sou o que sou.57 E justamente por ser o meu passado que tenho a possibilidade

    de no s-lo. Explica-nos Sartre que o passado uma estrutura ontolgica que obriga o

    Para-si a assumir o seu ser, e o ser do Para-si sempre para alm daquilo que pelo fato

    de ser Para-si e ter-de-s-lo58. Ora, a marca do Para-si a transcendncia. Portanto, o

    Para-si a negao constante daquilo que , mas sem poder deixar de s-lo, o que permite

    dizer que o passado o Em-si que sou ultrapassado.59

    O que Sartre pretende explicar em relao ao passado sua ligao com a

    facticidade. O Em-si, mesmo ultrapassado, Em-si e permanece impregnando o Para-si

    com sua contingncia original. um peso distncia que o Para-si, embora no o

    sendo, tem de s-lo, conservando-o na prpria ultrapassagem. Assim, como a facticidade,

    esta contingncia invulnervel do passado o inevitvel, mas um inevitvel que se

    carrega para evitar; aquilo que se conserva para ultrapassar, e o que para no mais ser60

    .

    O passado, esse Para-si convertido em Em-si, assemelha-se ao valor, pois

    este representa uma sntese entre o ser que o que no e no o que e o se que o

    que . A diferena entre o passado e o valor que no valor o Para-si realiza a retomada do

    Em-si para fundamentar o seu ser, transformando a contingncia em necessidade. J o

    passado desde o incio Em-si, aparece-nos como contingncia. Para Sartre, no h

    qualquer razo para que nosso passado seja esse ou aquele: aparece na totalidade de sua

    srie, como fato puro que preciso levar em conta enquanto fato, como gratuito.

    Entretanto, o passado pode ser utilizado pelo Para-si como objeto para a realizao do

    valor, o que na verdade corresponde a uma tentativa de escapar angstia que decorre da

    56 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 192 57 Id., Ibid., p.171 58 Id., Ibid., p.171 59

    Id., Ibid., p.171 60 O passado o que sou sem poder viv-lo. O passado a substancia, Nesse sentido o cogito cartesiano deveria ser formulado assim: Penso, logo era. Id., Ibid., p. 172

  • 35

    ausncia de ser. isso o que fazem aqueles que, por exemplo, vinculam a realizao da

    justia ou da moral a uma volta ao passado.

    O estudo da dimenso do presente, por sua vez, indica como ocorre o

    trnsito ao passado. Nos termos de Sartre, como um Para-si que era seu passado se

    converte no passado que um novo Para-si tem-de-ser. O Para-si presena para o Em-si,

    o ser pelo qual o presente entra no mundo, revelando os seres como co-presentes. O

    presente que falsamente denomina-se presente, para Sartre no , vez que o presente

    faz-se presente em forma de fuga; o presente uma fuga perptua frente ao ser 61. Sobre

    o presente, Sartre afirma:

    Sendo o Presente, Passado e Futuro ao mesmo tempo, dispersando seu ser

    em trs dimenses, o Para-si, apenas pelo fato de se nadificar , temporal. Nenhuma dessa dimenses tm prioridade ontolgica sobre as

    demais, nenhuma pode existir sem as outras duas. Contudo, apesar de

    tudo, convm colocar acento no ek-stase presente e no como Heidegger, no eks-tase futuro porque o Para-si, enquanto revelao a si mesmo, seu futuro como aquilo que tem-de-ser-para-si em um

    transcender nadificador, e, como revelao a si, falta e est impregnado

    por seu futuro, sou seja, aquilo que Para-si l adiante, distncia. O Presente no ontologicamente anterior ao Passado e ao Futuro: condicionado por eles na mesma medida que os condiciona, mas o vo

    de no-ser indispensvel forma sinttica da Temporalidade.

    J o futuro revela-se ao Para-si como aquilo que o Para-si ainda no , e

    faz-se ser como um projeto de si mesmo fora do Presente rumo ao que no ainda. 62 O

    Para-si, como vimos, o ser que busca seu complemento de ser para alm de si. Somente

    um ser que para alm de si , que pode ter um futuro.

    a dimenso do futuro que revela ao Para-si o seu Ser faltante, que s pode

    estar alm de si. na direo do futuro que o Para-si perseguir inutilmente uma sntese

    com o Em-si. A totalidade nunca ser alcanada, e o Para-si ser relanado a um novo

    futuro, uma nova distncia do Ser em si (da Sartre referir-se a uma decepo ontolgica

    que aguarda o Para-si toda vez que desemboca no futuro). A realidade humana, portanto,

    constitui-se como projeto, na medida em que o Para-si projeta-se rumo ao futuro, negando

    o que em direo ao que ainda no . Para Sartre o futuro constitui o sentido de meu

    61

    SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    p. 177 62 Id., Ibid., p. 180.

  • 36

    Para-si, como projeto de sua possibilidade, mas no determina de modo algum meu Para-si

    por-vir, j que o Para-si est sempre abandonado nesta obrigao nadificadora de ser o

    fundamento de seu nada63. Assim sendo, projeto o futuro, mas no sou por ele

    determinado; sou livre exatamente porque posso no ser esse futuro projetado64

    . Ainda que

    se possa afirma que o Para-si o seu futuro, ele problematicamente seu futuro, pois dele

    se acha separado por um Nada que ele . O futuro o sentido do Para-si, constituindo-se,

    portanto, na contnua possibilizao dos possveis como sentido do Para-si presente, na

    medida em que esse sentido problemtico e escapa radicalmente, como tal, ao Para-si

    presente.65

    Liberdade e Projeto

    Ao eleger um determinado projeto, decido sobre o modo e o sentido de

    minha prpria existncia.

    O Para-si no o primeiro homem para ser si mesmo depois, e no se

    constitui como si mesmo a partir de uma essncia humana dada a

    priori; mas, muito pelo contrrio, em seu esforo para escolher-se

    como si mesmo pessoal que o Para-si mantm em existncia certas caractersticas sociais e abstratas que fazem dele um homem; as

    conexes necessrias que acompanham os elementos da essncia

    humana s aparecem sobre o fundamento de uma livre escolha: nesse sentido, cada Para-si responsvel em seu ser pela existncia da

    espcie humana. Mas precisamos esclarecer ainda o fato inegvel de

    que o Para-si s pode escolher-se para-alm de certas significaes

    das quais ele no a origem.66

    Ora, ento o obstculo s me aparece como tal, porque no uso de minha

    liberdade projetei ultrapass-lo. Minha liberdade projeta-se como negao da facticidade67

    ,

    vai em direo ao que ainda no . Se meu projeto participar da luta poltica clamando

    por uma sociedade justa, exatamente porque minha conscincia nega a sociedade tal

    como ela . As injustias do mundo s se apresentaro a mim porque elegi como projeto

    63 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia e fenomenolgica. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,

    183 64 Em suma, sou meu futuro na perspectiva constante da possibilidade de no s-lo. Id., Ibid., p. 183 65 Id., Ibid., p. 183 66 Id., Ibid., p. 638 67 Heidegger chama por facticidade o carter fatual do fato da pre-sena [Dasein] em que, como tal, cada presena sempre . luz da elaborao das constituies existenciais bsicas da pr-sena, a estrutura

    complexa desta determinao ontolgica s poder ser apreendida em si mesma como problema. O conceito

    de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente intramundano, de maneira que este possa ser compreendido como algo que, em seu destino, est ligado ao se daquele entre que lhe vem ao encontro dentro de seu prprio mundo. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrpolis, RJ: Vozes, 2005, p. 94.

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    inicial a negao da facticidade do mundo68. No h, portanto, que se falar de um justo

    natural, seja racional, divino ou provindo da natureza das coisas e que condicione

    minha ao. Nas palavras de Sartre, impossvel decretar a priori o que procede do

    existente em bruto ou da liberdade no carter de obstculo deste ou daquele existente em

    particular 69. o mundo que me faz livre, e o mundo s faz sentido diante da minha

    liberdade; como j se viu, s se livre em situao, o que em Sartre remete relao entre

    a condio e a liberdade70. Assim, o homem s encontra obstculo no campo de sua

    liberdade. 71

    A liberdade manifesta-se em condies existenciais determinadas. Deste

    modo, para ser realmente livre, o homem deve reconhecer sua situao. com relao a

    ela que ele ter liberdade de transformar a realidade ou no, de aceit-la ou no. Assim,

    chega-se ao aparente paradoxo de afirmar que o homem liv