Tese VERSÃO final Leandro Pinheiro

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Leandro Rogrio Pinheiro

FORMAO E PRTICAS DE GESTO:

Narrativa sobre o trabalho dos gestores no Centro de Promoo da Criana e do Adolescente

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade do Vale do Rio dos Sinos como requisito parcial para a obteno do ttulo de doutor em Educao.

Orient.: Profa. Dra. Maria Clara Bueno Fischer

So Leopoldo 2008

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Leandro Rogrio Pinheiro

FORMAO E PRTICAS DE GESTO:

Narrativa sobre o trabalho dos gestores no Centro de Promoo da Criana e do Adolescente

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade do Vale do Rio dos Sinos como requisito parcial para a obteno do ttulo de doutor em Educao.

Aprovado em

de

de

.

BANCA EXAMINADORA

Dr. Danilo Romeu Streck - UNISINOS

Dr. Evaldo Luis Pauly - UNILASALLE

Dra. Maria Clara Bueno Fischer UNISINOS

Dr. Nilton Bueno Fischer UFRGS

Dra. Rosngela Fritsch UNISINOS

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AGRADECIMENTOS

A realizao deste trabalho, em cada etapa de sua elaborao, alimenta em minha memria a lembrana de momentos especiais que pude compartilhar durante a formao no doutorado. Agradeo s entidades que oportunizaram condies de efetivao deste projeto. Ao Programa de Ps-Graduao em Educao (PPGEdu/UNISINOS), no s pelos saberes compartilhados, mas pelo espao solidrio e democrtico que vm construindo no mbito da educao. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) por propiciar a realizao desta pesquisa, qualificada ademais por um Estgio de Doutorando na Universidad Complutense de Madrid, valorizando a prtica de investigao cientfica. Aos professores integrantes da banca, Dr. Evaldo Luis Pauly, Dr. Nilton Bueno Fischer, Dra. Rosngela Fritsch, Dr. Danilo Streck e Dra. Rute Baquero, pelas preciosas consideraes quando da qualificao do projeto e, tambm, pela disponibilidade em colaborar com esta pesquisa. Aos meus queridos colegas de doutorado. Foram vrios encontros, debates e reflexes que me mostraram formas novas de problematizar, de questionar. Foram tambm em algumas confraternizaes que encontrei pessoas dispostas a compartilhar saberes, ansiedades, medos e confiana. minha orientadora, professora Dra. Maria Clara Bueno Fischer, por seu olhar atento e pelo apoio sensvel e democrtico em meu aprendizado. amiga Clara, pelas conversas instigantes sobre projetos, trabalho, educao... s minhas queridas colegas Angela, Euli, Neusa, Vera e Rosngela, com quem tive intensos, frutferos e instigantes encontros de orientao coletiva. Foram diversos momentos de aprendizagem e problematizao que, sem dvida, compem este trabalho. Aos companheiros de caminhada, trabalhadores do Centro de Promoo da Criana e do Adolescente, pela colaborao em nossos dilogos. Josiane, pela acolhida generosa e pelas conversas divertidas e interessantes. Foram momentos nicos de aprendizagem. minha famlia, que sempre me surpreende pela intensa capacidade de estar ao meu lado mesmo quando minhas atividades profissionais fogem sua realidade de ao. Pelo companheirismo da mo no ombro de meu pai e da pergunta acanhada de minha me sobre

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como esto as coisas no trabalho?. Pela disponibilidade e amor de meus irmos e de meus cunhados nos momentos em que precisava de apoio. Ana, amiga e companheira, pelo amor e dedicao com que participou desta e de outras iniciativas, apoiando-me em momentos de desnimo, comemorando minhas vitrias. Fica meu carinho e reconhecimento a estes companheiros, por participarem de meu projeto de vida. Sua presena , para mim, o mais importante nisso tudo.

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Se as coisas so inatingveis, ora! No motivo para no quer-las, que tristes os caminhos no fora a mgica presena das estrelas. (Mario Quintana)

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RESUMO

Este trabalho problematiza as contribuies das atividades de gesto para a formao dos gestores de uma organizao no governamental, o Centro de Promoo da Criana e do Adolescente (CPCA). Atento atual valorizao social das ONGs no atendimento de demandas sociais comunitrias e na execuo de polticas pblicas no Brasil, o texto procura trazer reflexes a partir da seguinte questo: como se organiza a formao dos sujeitos nas prticas de gesto construdas no CPCA, em Porto Alegre? Apoiando-me

epistemologicamente na noo de 'auto-eco-organizao', numa aproximao s premissas do pensamento complexo elaboradas por Morin (1999; 2001), desenvolvi a pesquisa a partir de uma interao de inspirao etnogrfica, de modo a construirmos, gestores e pesquisador, uma narrativa que enunciasse: as caractersticas do cotidiano de trabalho e do contexto de atuao da entidade; os domnios explicativos e as tomadas de posio dos sujeitos de dilogo; e, por fim, as repercusses do trabalho de gesto para a formao dos gestores. E, neste sentido, as elaboraes de Josso (2004), Maturana (2001), Melucci (2001) e Bourdieu (1999; 2000), alm do aporte de Morin, foram referentes importantes para que pudesse co-construir reflexes sobre a relao entre trabalho e educao. Os resultados da investigao esboam a formao dos trabalhadores constituda em meio a prticas, tenses e discursos sociais relativos produo histrica do campo de educao-assistncia, onde atua o CPCA, sendo configurada, ademais, na construo de organizaes subjetivas singulares, num exerccio de autonomia relativa. A pesquisa proporcionou, ainda, inferncias sobre as caractersticas de um processo formativo quando consideradas as referncias construdas aqui, aventando uma hiptese de trabalho para espaos educativos-assistenciais quando contemplada uma perspectiva auto-ecoorganizativa.

Palavras-chave: Formao. Trabalho de gesto. Auto-eco-organizao.

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ABSTRACT

This study argues the contributions of managing activities in managers training at CPCA (Portuguese abbreviation for Children and Adolescents Care Center), a NGO (NonGovernmental Organization). The text is attentive to the social valorization of the NGOs nowadays when dealing with social community demanding and executing public politics in Brazil. Therefore, it aims to raise impressions and thoughts from the following question: how subjects education is organized in managing practices built up at CPCA, in Porto Alegre City (Brazil)? Taking the idea of auto-eco-organization as an epistemological support, altogether with Morins (1999; 2001) complex thought premises, I developed this research study from an ethnographic inspiration interaction that could provide us (managers and researcher) a narrative that could show: day by day working characteristics and the entitys acting context; the explanation domains and the subjects of the dialogue position taking; and, finally, the repercussions of the managing work in managers training. In this direction, the ideas of Josso (2004), Maturana (2001), Melucci (2001),Bourdieu (1999; 2000) and also the theorectical contributions from Morin, consisted in important references that helped me in building reflections about the relationship between Work and Education (training). The results of this investigation draw the workers training, which was constituted among practices, tensions and social discourses linked to the historical production in education-assistance area, where CPCA acts. Moreover, this training is configured in the building of singular subjective organizations, representing an exercise of relative autonomy. The research also proposed inferences about the characteristics of a educative process when the references built up in this study were considered, promoting a work hypothesis planned for education-assistance places since an auto-eco-organized perspective.

Key words: Training. Managing work. Auto-eco-organization.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Fotografia da entrada do ptio do CPCA............................................................82 FIGURA 2 Fotografias do prdio intermedirio: secretaria, direo e coordenao pedaggica..............................................................................................................................83 FIGURA 3 Fotografias da sala de coordenao pedaggica..................................................84 FIGURA 4 Fotografias do refeitrio e da sala dos educadores..............................................85 FIGURA 5 Esquema representativo do organograma do CPCA.........................................112

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LISTA DE SIGLASABONG Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais AIDS Sndrome da Imunodeficincia Adquirida (em ingls) AMENCAR Associao de Apoio Criana e ao Adolescente ASAFOM Associao de Apoio ao Frum Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CEAT/USP Centro de Estudos sobre o Terceiro Setor/Universidade de So Paulo CEB Comunidades Eclesiais de Base CEPP Centro de Educao e Promoo Popular CLT Consolidao das Leis do Trabalho CMAS Conselho Municipal de Assistncia Social CMDCA Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente CPCA Centro de Promoo da Criana e do Adolescente CPM Centro de Proteo do Menor ECA Estatuto da Criana e do Adolescente FASC Fundao de Assistncia Social e Cidadania FEBEM Fundao Estadual de Bem-Estar do Menor FESC Fundao de Educao Scio Comunitria FFCHA/PUCRS Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul FMAS Fundo Municipal de Assistncia Social FMDCA Fundo Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente FNAS Fundo Nacional de Assistncia Social FORTE Frum de Organizaes do Trabalho Educativo FUNABEM Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor GIFE Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IPEA Instituto de Pesquisas Aplicadas LBA Legio Brasileira de Assistncia LOAS Lei Orgnica de Assistncia Social

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NASF Ncleo de Apoio Scio-Familiar ONG Organizao No-Governamental ONU Organizao das Naes Unidas PEMSE Programa Municipal de Execuo de Medidas Scio-Educativas em Meio Aberto PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil PPGEdu/UNISINOS Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade do Vale do Rio dos Sinos PROCEMPA Companhia de Processamento de Dados do Municpio de Porto Alegre RITS Rede Integrada do Terceiro Setor SAM Servio de Assistncia ao Menor SASE Servio de Apoio Scio-Educativo SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas SENAC - Servio Nacional de Aprendizagem Comercial SENAI Servio Nacional de Aprendizagem Industrial TE Trabalho Educativo UCM Universidad Complutense de Madrid UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UERGS Universidade Estadual do Rio Grande do Sul UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia (em ingls)

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SUMRIO1 INTRODUO..........................................................................................................................13 2 REFERNCIASMETODOLGICAS: CAMINHOS PRTICOS NUMA REFLEXO

TERICA....................................................................................................................................24

2.1 COMO CHEGUEI AO TEMA......................................................................................................25 2.2 COMO CHEGUEI AO REFERENCIAL: FORMAO E TEORIAS....................................................29 2.3 REFERENCIAIS E TOMADAS DE POSIO...............................................................................31 2.3.1 Auto-eco-organizao, formao e gesto....................................................................31 2.3.1.1 Sobre auto-eco-organizao..........................................................................................32 2.3.1.2 A formao....................................................................................................................35 2.3.1.3 A prtica de gesto........................................................................................................42 2.4 COMO CONSTRU O PROBLEMA: EXPERINCIAS E MTODO....................................................51 2.4.1 Sobre o problema de pesquisa.......................................................................................52 2.4.2 Sobre o mtodo...............................................................................................................54 2.4.2.1 Escolhas e caminhos trilhados......................................................................................56 2.5 PASSOS NA CAMINHADA.......................................................................................................59 2.5.1 A elaborao do projeto................................................................................................60 2.5.2 A primeira fase em campo.............................................................................................62 2.5.3 Madri e o Estgio de doutorando.................................................................................65 2.5.4 De volta a campo: a segunda etapa...............................................................................69 2.5.5 O retorno ao CPCA: devoluo....................................................................................71 2.5.6 A escrita..........................................................................................................................73 2.5.7 "Descobertas" da caminhada.......................................................................................74 3 COMUNIDADE,HISTRIA E GESTO: PRTICAS CONSTRUDAS NO

CPCA........................................................................................................................................81 3.1 SOBRE O CPCA: PARA INICIAR A ANLISE...........................................................................81 3.2 ENTORNO E HISTRIA DO CPCA..........................................................................................93 3.2.1 Histria do CPCA: narrativa sobre seu trabalho.....................................................100 3.3 GESTO E TENSES: TODOS E CADA UM..............................................................................111 3.3.1 Sobre o trabalho de cada gestor..................................................................................111 3.3.2 A prtica de gesto e seus tensionamentos.................................................................115 4 OCONTEXTO DE ATUAO DO

CPCA

E

A

PRTICA

DE

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GESTO....................................................................................................................................139

4.1 A REDE DE ASSISTNCIA DE PORTO ALEGRE E ALGUNS TENSIONAMENTOS........................139 4.2 O LUGAR OCUPADO PELAS ONGS.......................................................................................145 4.3 SOBRE CERTO PODER SIMBLICO........................................................................................154 4.4 CRTICA A UM APARATO DE GESTO DA POBREZA..............................................................157 5 NARRATIVAS,DOMNIOS EXPLICATIVOS E TOMADAS DE POSIO: A AUTO-ECO-

ORGANIZAO DOS GESTORES E A FORMAO NO TRABALHO.............................................165

5.1 SUJEITOS, NARRATIVAS E DOMNIOS EXPLICATIVOS...........................................................165 5.2 TOMADASDE POSIO E DOMNIOS EXPLICATIVOS: PARA NARRAR A FORMAO DOS

SUJEITOS..................................................................................................................................166

5.3 CONTRIBUIES DAS PRTICAS DE GESTO: SOBRE O TRABALHO E A FORMAO.......188 7 CONSIDERAES FINAIS: GESTO, FORMAO E PARTICIPAO......................................197 REFERNCIAS.........................................................................................................................216 APNDICE A Roteiro para entrevistas exploratrias as ONG e a FASC.............................226 APNDICE B Esquemas-sntese dos referenciais tericos e das opes metodolgicas apresentados no projeto...........................................................................................................231 APNDICE C Planilhas-sntese da rotina de oficinas de aprendizagem no CPCA...............233 APNDICE D Roteiros da primeira etapa de entrevistas com gestores do CPCA................236 APNDICE E Sociogramas elaborados junto aos gestores da ONG.....................................240 APNDICE F Plano de continuidade da pesquisa (2006/02)................................................242 APNDICE G Roteiros da segunda etapa de entrevistas com gestores do CPCA................248 APNDICE H Pauta de trabalho da reunio realizada com educandos da ONG..................258 APNDICE I Roteiros utilizados para entrevistas com educadores do CPCA, excolaboradores da ONG, tcnicos de assistncia e lideranas comunitrias da Lomba do Pinheiro...................................................................................................................................259 APNDICE J Fluxogramas individuais e coletivo elaborados pelos gestores do CPCA......267 APNDICE L Pauta de trabalho e subsdios da devoluo realizada com gestores..............272 APNDICE M 'Organogramas' elaborados pelos gestores do CPCA....................................274 APNDICE N Cartas de consentimento pesquisa (gestores e organizao).......................278 ANEXO A Cpia dos folders do CPCA (2005 e 2007).........................................................283 ANEXO B Plano operacional CPCA - 2006..........................................................................285 ANEXO C Plano institucional CPCA - 2004-2008...............................................................306 ANEXO D Cpia da 'Conveno de Direitos de Crianas e Adolescentes UNICEF.........335 ANEXO E Mapas da distribuio de infra-estrutura urbana Lomba do Pinheiro..............352

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1 INTRODUO

Esta narrativa est organizada com vistas a compreender o trabalho de gesto em organizaes no-governamentais (ONGs) como lcus de formao dos gestores. As questes que proponho so oriundas de experincias de pesquisa e de atividades desenvolvidas como coordenador de iniciativas na rea social, que me propiciaram visualizar disputas pela valorizao das ONG na conduo de polticas pblicas e, tambm, na promoo de tal espao organizacional como mercado de trabalho. Falamos de um segmento com expressivo crescimento nos ltimos 15 anos, perodo de constituio e formalizao de aproximadamente 60% das entidades registradas no Brasil (IBGE, 2004). Segundo Soczek (2003), vem aumentando o nmero de pesquisas sobre os temas de movimentos sociais, ONG e terceiro setor. Alm disso, desde meados dos anos 1990, possvel verificar em peridicos impressos e eletrnicos o aumento do nmero de citaes sobre as temticas: solidariedade social, organizaes sem fins lucrativos, iniciativas privadas de ao social e ao voluntria1. As abordagens condensadas em tais registros associam, de maneira relativamente recorrente, menes s repercusses e/ou vantagens do atendimento local de demandas sociais, situando as ONGs, muitas vezes, na condio de estratgia complementar para a concretizao de polticas pblicas. Neste caso, so articuladas, ainda, referncias s oportunidades de emprego na rea e/ou necessidade de qualificar a gesto de organizaes no governamentais. Essas organizaes vm sendo requisitadas em intensidade crescente para parcerias no desenvolvimento de aes sociais, atravs de convnios e parcerias com rgos estatais, organismos supranacionais, agncias financiadoras internacionais, ou mesmo iniciativas empresariais, sob o argumento de barateamento de custos e flexibilidade no atendimento de demandas locais (comparativamente mquina estatal). Este processo no novo se considerarmos as articulaes estabelecidas com agncias de financiamento internacional desde a dcada de 1970 no Brasil, embora tenha sido intensificado nos ltimos anos (MONTENEGRO, 1994; THOMPSON, 1997). Gostaria de situar esta pesquisa no processo de valorizao social das ONGs, em curso nos ltimos anos, para que possam ser traados questionamentos sobre as caractersticas do

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trabalho de gesto realizado e suas repercusses para a formao dos gestores. Assim, possvel esboar uma narrativa que contribua com os trabalhadores das ONGs e com os servios que estes realizam. Para tanto, procurarei caracterizar brevemente o espao de atuao da organizao onde realizei a investigao, no intuito de desenhar a problemtica construda em ateno ao contexto apresentado acima.

Sobre a emergncia do terceiro setor: para uma contextualizao J a partir da dcada de 1980, possvel visualizarmos a ampliao e diversificao das formas e contedos de manifestao poltico-social, durante o perodo de redemocratizao institucional brasileiro. Temos, desde esta dcada, a multiplicao de iniciativas sociais voltadas a segmentos empobrecidos, expressas na criao de organizaes no-governamentais de assessoramento aos movimentos sociais (ARMANI, 1991; COSTA, 2001; PALUDO, 2001), na constituio e/ou manuteno de entidades beneficentes religiosas e na expanso do nmero de fundaes empresariais. Muitas vezes falamos de projetos j em curso que viabilizaram sua formalizao jurdica. Em alguns casos, propostas associadas organizao popular; noutros, iniciativas vinculadas a representaes empresariais, que fortaleciam seus laos com a rea social. De outro lado, tambm encontramos novas mobilizaes sociais nesse perodo, articuladas defesa de direitos de mulheres, indgenas, crianas e adolescentes, dentre outros. Este conjunto de aes sofrer reconfiguraes nos anos 1990, mediante alteraes estruturais do sistema capitalista, concernentes fragilizao do embate poltico-ideolgico hegemnico (socialismo-capitalismo), desregulamentao dos mercados, globalizao da economia e utilizao intensa das tecnologias de informao e comunicao (CASTELLS, 1999). Na dcada de 1990, amplia-se o nmero de ONGs registradas no Brasil e, neste contexto, a mobilizao social passa por um processo de diversificao de temticas e pela reorganizao de propsitos. Maria da Glria Gohn (1995; 1997) destaca que a organizao poltico-partidria, sindical e/ou religiosa, teria sido relativizada na constituio de reivindicaes pluriclassistas e suprapartidrias, voltadas a temas que afetam o conjunto da populao (violncia, preservao do meio ambiente, menores abandonados, preveno a SIDA, entre outros). Tais iniciativas teriam passado tambm a privilegiar aes comunitrias diretas, em1

Inferncia pautada no acompanhamento de notcias veiculadas nos peridicos Folha de So Paulo, Zero Hora e RITS (Rede Integrada do Terceiro Setor informativo eletrnico), no perodo de 1997 a 2007.

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detrimento da intermediao poltico-partidria ou da adeso a projetos de transformao social futura, e teriam construdo, ademais, a possibilidade de interao e pertencimento planetrio (IANNI, 2001). Alm disso, neste nterim, emerge a noo de terceiro setor no Brasil, visando condensar formas de atuao de origens e propostas poltico-sociais distintas. Porm, esta categoria carece ainda de problematizao quanto a sua emergncia e aplicabilidade na realidade brasileira, tendo em vista o contexto plural retratado, cujas distintas tomadas de posio dificultam uma categorizao unitria. Proponho, ento, que analisemos a proposio da noo de terceiro setor como um caminho possvel na compreenso das disputas por enunciao das caractersticas do campo de ao de organizaes no-governamentais. Salamon (1998) avalia que estaria havendo um movimento crescente de associativismo no mundo, considerando o nmero de organizaes sem fins lucrativos criadas a partir dos anos 1970 e 80. O autor relaciona o crescimento do associativismo a algumas condies estruturais integradas: 1) a crise de atuao do Estado no bem-estar social; 2) as quedas dos ndices de crescimento econmico desencadeadas pelos choques do petrleo; 3) organizao comunitria popular por meio de movimentos e organizaes nogovernamentais; 4) crise ambiental global e, em decorrncia, a organizao de iniciativas prpreservao; 5) a fragilizao do socialismo real; 6) a revoluo nas tecnologias de comunicao; 7) a elevao das taxas de alfabetizao e escolarizao, que teriam ampliado a capacidade de organizao associativa; e, para o caso especfico da Amrica Latina, 8) o processo de urbanizao e ampliao do contingente populacional de classe mdia. Tais condies teriam ampliado as possibilidades de participao e a capacidade associativa em vrias partes do globo. Neste contexto, segundo a perspectiva de Salamon (1998), mediante as crises de atuao estatal e o crescimento do nmero de organizaes sem fins lucrativos constitui-se [...] um consenso a respeito das limitaes do Estado como agente de desenvolvimento e das vantagens do envolvimento de instituies do terceiro setor para superar esta deficincia. (p. 08). O terceiro setor seria, aqui, um conjunto de iniciativas no-estatais, nogovernamentais e sem fins de lucro, voltadas prestao de servios sociais. Salamon (1998) fala de um setor cuja atuao est em funcionalidade com o Estado; uma alternativa associativa ao atendimento de demandas pblicas, construda mediante conhecidas mudanas no sistema capitalista. O autor no assinala, porm, qualquer situao de conflito e/ou antagonismo na constituio deste campo de ao, como se todas as mobilizaes sociais em

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jogo apresentassem homogeneidade poltico-ideolgica. Essa noo assinala uma leitura de integrao orgnica com o Estado e o mercado, marcada em sua origem cultural norte-americana nos anos 70 e, tambm, por seus usos no Brasil, o que ocorreu mais enfaticamente a partir de meados dos anos 1990. A denominao terceiro setor tem sua utilizao intensamente absorvida por iniciativas filantrpicas empresariais (IOCHPE, 1997; PINHEIRO, 1999), o que, muitas vezes, refora sua vertente funcional, em meio a crticas burocratizao estatal. Fernandes (1997) afirma que

[...] o Terceiro Setor composto de organizaes sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela nfase na participao voluntria, num mbito no-governamental, dando continuidade s prticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para outros domnios, graas, sobretudo, incorporao do conceito de cidadania e de suas mltiplas manifestaes na sociedade civil. (p. 27)

Este conceito demonstra o esforo do autor em agrupar iniciativas bastante distintas em suas origens scio-histricas, formas de atuao e contedo das reivindicaes/aes. Landim (2003) enfatiza que a este campo de atuao atribuda a possibilidade de expresso de valores como altrusmo, compromisso social e solidariedade, supostamente inviabilizados no terreno do mercado (competitivo). Para Montao (2002), a noo de terceiro setor desenvolve um papel ideolgico claramente funcional aos interesses do capital no processo de reestruturao neoliberal... (p. 19), ao negligenciar as diferenas que compem o campo de atuao das organizaes no governamentais e negar os antagonismos que o constituem, construindo uma interpretao que privilegia a prestao de servios entre entidades assistenciais e Estado, ao invs da conquista de direitos sociais. Sobottka (1998) assinala que alguns representantes de ONGs, defensores do terceiro setor, acabam por carregar seus argumentos de certo pragmatismo ao enfocar a capacidade de prestao de servios de tais organizaes na condio de mediadores entre Estado e populaes- alvo. Isso se d atravs da disposio dos movimentos sociais como clientes das organizaes no-governamentais, diluindo distines polticas ideolgicas. As disputas que constituem a delimitao do campo de ao das ONGs, a exemplo das argumentaes concernentes ao terceiro setor, compem a valorizao social das organizaes no-governamentais que referi de incio. Se observarmos os sujeitos sociais que a postulam hoje, verificaremos que a busca por profissionalizao administrativa e pela consolidao de

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tais organizaes como parceiras na execuo de polticas pblicas, em geral, esto entrelaadas ao discurso que concebe funcionalidade com o Estado e o mercado, concepo esta que homogeneza projetos sociais desde sua dimenso econmico-administrativa. Todavia, a emergncia do terceiro setor como resultado de disputas sociais acompanha algumas mudanas ocorridas no campo, como a disseminao de algumas noes cujos sentidos originais vo sendo reconstrudos. As iniciativas de organizao popular, tradicionalmente contestatrias e combativas no Brasil, passam, em alguns casos, por um gradativo distanciamento de suas bases (movimentos sociais), rumo a um processo de institucionalizao, passando, inclusive, articulao de parcerias com a mquina estatal. A prpria denominao ONG, adotada primeiramente por projetos de organizao popular, difunde-se de tal forma que passa a ser usada por entidades filantrpicas empresariais e instituies religiosas, cujos propsitos aproximam-se mais da assistncia do que da reivindicao (THOMPSON, 1997).

Para efeito de delimitao As diversidades e disputas que constituem esse lcus compem o contexto para pesquisa. Como base para a investigao, procurei considerar as mudanas assinaladas, mas tambm reconhecer a variedade de tenses que seguem na construo do campo. As organizaes que conheo e, neste sentido, a ONG que escolhi para dilogo, situam-se na rea de assistncia social. A rea de assistncia social permeada por tenses relativas busca por profissionalizao da gesto e vinculao com programas sociais governamentais, alm de agregar, ainda, a influncia de saberes religiosos e a interao com demandas comunitrias urgentes. De forma geral, as ONGs assistenciais prestam uma diversidade considervel de servios, atendendo de crianas a adultos e respondendo a uma rede municipal formada por conselhos deliberativos e organizaes estatais. A gesto vem se configurando como espao entrelaado por uma rede de articulaes onde esto representados a administrao pblica municipal, saberes religiosos, demandas da comunidade e possveis interferncias da filantropia empresarial. Considerando o ambiente de diversificao e reconfigurao referido s dcadas de 80 e 90 e os tensionamentos prprios rea de assistncia, efetuei um recorte condizente com as investigaes que j havia realizado, focando na defesa dos direitos da criana e do adolescente. Esta causa social conquista expresso significativa neste mesmo perodo

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histrico, agregando vrias entidades e segmentos sociais numa mobilizao cujo resultado mais marcante foi a promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) em 1990. Assim, foram concebidos e legitimados uma srie de fruns e conselhos de deliberao e fiscalizao da assistncia a crianas e adolescentes2. O sistema de assistncia social em Porto Alegre (universo considerado nesta proposta) composto pela Fundao de Assistncia Social e Cidadania (FASC rgo pblico municipal) e por um conjunto de organizaes no-governamentais. Segundo Guimares (2002), 88% das organizaes voltadas assistncia social na capital gacha so privadas, sendo que, no universo pesquisado pela mesma autora, 14% destinam seus servios ao atendimento de crianas e adolescentes advindos de situao de risco. Numa caracterizao inicial, as organizaes que assistem crianas e adolescentes em Porto Alegre atendem pessoas com at 18 anos de idade, sendo que as principais atividades esto alocadas junto aos programas Servio de Apoio Scio-Educativo (SASE), para beneficirios entre 7 e 14 anos, e Trabalho Educativo (TE), para pessoas entre 14 e 18 anos. No primeiro, so oferecidas oficinas ldicas de aprendizagem; no segundo, so desenvolvidas atividades de iniciao ao mundo do trabalho (sem objetivo de profissionalizao). Ambos os servios ocorrem em turno inverso ao da escola (GUIMARES, 2002). Quanto origem, definem-se de forma mais recorrente como religiosas, comunitrias e empresariais, o que delimita tambm a fonte de arrecadao de recursos financeiros. Ainda sobre a manuteno de tais entidades, comum a existncia de convnios com a prefeitura municipal e a recepo de doaes e trabalho voluntrio (sistemticos ou no)3. Cabe enfatizar que tais organizaes assistenciais, muitas vezes, efetivam inmeras atividades, direcionadas a diversos beneficirios, estruturando-se a partir do atendimento de necessidades da comunidade prxima, conforme sua situao de origem e proposta organizacional, formando uma variada gama de trabalhos na localidade. Ademais, a prtica educativa-assistencial com crianas e adolescentes , muitas vezes, integrada outras iniciativas como atendimento mdico e fonoaudiolgico, re-integrao familiar, entre outros. No intento de encontrar uma organizao que pudesse simbolizar o universo de pesquisa e tambm o contexto narrado, solicitei ao Centro de Promoo da Criana e do Adolescente (CPCA) que permitisse minha pesquisa junto a suas atividades. O recorte realizado pautou-se nas experincias j acumuladas, no intuito no s de consolidar resultados

So exemplos o Conselho Municipal de Direitos da Criana e do Adolescente (CMDCA), o Conselho Tutelar e o Frum Municipal de Direitos da Criana e do Adolescente (FMDCA). 3 Informaes elaboradas a partir da anlise dos registros cedidos pela FASC e pela ONG Parceiros Voluntrios.

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de pesquisa, mas tambm construir parmetros de escolha da comunidade de dilogo. Almejava que estivessem presentes no trabalho de gesto analisado os discursos sociais, tenses e sujeitos sociais que eu conseguia visualizar na caracterizao da assistncia realizada a crianas e adolescentes por organizaes no governamentais. O CPCA est localizado no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, uma regio composta de inmeras vilas, constitudas de pequenas propriedades rurais e trechos urbanizados. Neste contexto, so recorrentes os casos de ocupaes fundirias ainda no regularizadas, dificuldades de acesso sade e educao e elevado ndice de violncia. Mantido pelo Instituto Cultural So Francisco de Assis, o Centro foi fundado em 1979, com a perspectiva de se criar um espao de expresso e participao comunitria. Na poca, iniciou os trabalhos na condio de creche para os filhos dos trabalhadores, que, em muitos casos, eram provenientes do xodo rural. Na dcada de 80, o CPCA acrescentou entre suas atividades a prtica de reforo escolar e a profissionalizao. Nos anos 90, passou por um reordenamento institucional condizente regulamentao do ECA, recebendo a atual denominao. Ao longo da trajetria do CPCA, os recursos de manuteno advieram do Instituto Cultural So Francisco de Assis, de convnios com a FASC e de parceria com a Associao de Apoio Criana e ao Adolescente (AMENCAR). A busca por recursos est vinculada prestao de contas e participao em fruns e conselhos locais, onde so definidas diretrizes de funcionamento organizacional. Embora se direcione assistncia de crianas e adolescentes, a entidade tem desenvolvido tambm programas orientados s famlias, diversificando atividades conforme interao com a comunidade. Hoje, entre o SASE e o Trabalho Educativo, so administrados, aproximadamente, 340 atendimentos. Ademais, o CPCA desenvolve o Consrcio da Juventude4, o Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI) e o Ncleo de Apoio Scio-Familiar (NASF), alm de estimular a formao de associaes cooperativas de trabalho na comunidade da Lomba do Pinheiro. Entre crianas, adolescentes e adultos, os servios alcanam aproximadamente 500 beneficirios diretos, advindos da comunidade prxima, onde a organizao bastante conhecida. No que concerne gesto, a entidade distribui as atividades entre quatro4

Cabe salientar que o Consrcio Social da Juventude foi realizado pela ONG durante o ano de 2006. No Estado, as metas previstas para insero no mercado de trabalho, da ordem de 30% dos participantes, foram atingidas.

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trabalhadores: direo geral, conduzida desde a fundao por freis franciscanos; seguida da administrao financeira-patrimonial e das duas coordenaes pedaggicas, realizadas por leigos. Estes administram o trabalho de 57 trabalhadores contratados.

O problema de pesquisa O trabalho de gesto em organizaes no-governamentais, conforme procuro problematizar, tensionado tambm pelos trabalhadores que a constituem, buscando objetivos da organizao, mas tambm realizando desejos articulados no convvio dirio na entidade: o trabalho, neste sentido, espao de produo de prticas, de tomadas de posio e de sociabilidades. Na relao entre contexto de trabalho e produes subjetivas, observei o cotidiano de gestores para que pudesse narrar, posteriormente, a relao que estabeleciam com o seu trabalho. Neste nterim, procurei identificar as contribuies desta prtica para a formao dos sujeitos atuantes. Na construo desta pesquisa, busquei inspirao nas obras de Edgar Morin, complementadas por contribuies de Bourdieu, Josso, Maturana e Melucci. Mais especificamente, produzi este trabalho a partir das problematizaes de Morin (2001) desde a noo de auto-eco-organizao, que procurarei detalhar junto aos referenciais tericos, numa aproximao ao pensamento complexo. Desta maneira, procurei observar como se organiza a formao dos sujeitos nas prticas de gesto construdas no CPCA, em Porto Alegre? Centrei a pesquisa na formao dos sujeitos, concebendo-a com uma constituio relativamente autnoma. Contudo, busquei faz-lo caracterizando o contexto de ao dos gestores, para que pudesse compreender a atuao do trabalhador desde as condies objetivas com as quais lida e reorganiza na construo de si. Nesse sentido, ao estimular que narrassem suas trajetrias, seus espaos de labuta e o contexto de insero da ONG, objetivava analisar singularidades de interpretao e tomadas de posio dos sujeitos, imersos entre prticas e discursos sociais coletivos. Assim, a relao entre formao e trabalho de gesto foi refletiva numa perspectiva auto-eco-organizativa, como pretendo detalhar mais adiante. Desejava construir uma narrativa sobre a formao no trabalho; de um lado, contribuindo com os gestores do CPCA ao proporcionar que narrassem suas prticas educativas-assistenciais, de modo a fazer da investigao um processo autoreflexivo e formativo; de outro, trazendo reflexes ao campo de pesquisa Trabalho eNo momento, o Programa est em processo de avaliao com vistas realizao de novas edies (conforme informaes cedidas pelos sujeitos de dilogo desta pesquisa).

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Educao, no qual situo este texto. Vivemos um perodo de considervel insegurana no mundo do emprego e de fragilizao da mobilizao oriunda da organizao sindical, dados os elevados ndices de desemprego e o fortalecimento de corporaes capitalistas, o que tem redimensionado e precarizado as relaes que construmos no trabalho. Neste contexto, problematizar as condies de autonomia e expresso dos trabalhadores, refletindo as possibilidades de participao e criao dos sujeitos, parece-me uma prtica investigativa instigante, uma tarefa poltica pertinente e um exerccio de esperana necessrio. Assim, entendo que estender as reflexes sobre trabalho e educao para alm do tradicional espao das empresas e dos sindicatos (e suas respectivas escolas), proporciona que visualizemos novas configuraes relacionais, mais ou menos imersas nas arbitrariedades do sistema, mais ou menos autnomas, mas, sobretudo, diferenciadas. A maneira de interpretar o pertencimento ao trabalho, ou a forma como os sujeitos produzem suas interaes podem ser contempladas naquilo em que se distinguem, proporcionando questes provocativas.

Sobre a seqncia do texto No intento de salientar a condio de narrativa e explicitar minhas referncias, organizei o texto enunciando, j de incio, as delimitaes que regem a problematizao. A tese est divida em 5 captulos, seguidos das consideraes finais. Farei, agora, uma exposio sinttica de cada um dos itens, descrevendo os argumentos que os compem. O primeiro captulo, Referncias metodolgicas: caminhos prticos numa reflexo terica, explica as bases e inspiraes da leitura terico-metodolgica que venho construindo. Escrevo sobre minhas elaboraes tericas, numa aproximao ao pensamento complexo, e sobre as noes centrais para a pesquisa: auto-eco-organizao, formao e trabalho de gesto. Chegando ao mtodo propriamente dito, retomo o problema de pesquisa, explicitando na seqncia, algumas hipteses de trabalho, com base nos referenciais tericos abordados. Proponho tambm trs questes auxiliares pergunta central, direcionando meu olhar para elementos contextuais. Em suma, trato de aspectos como: prticas administrativas e sua relao com a proposta assistencial-educativa e a comunidade prxima; tomadas de posio dos gestores e sua interpretao do cotidiano de trabalho; prticas de gesto e contribuies para a formao dos gestores. E ainda neste item que relato minha caminhada em campo, destacando passos e descobertas elaborados. No item Comunidade, histria e o trabalho da gesto: prticas construdas no

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CPCA so abordadas as caractersticas do espao de trabalho do Centro, integradas ao processo recursivo de sua constituio. Procuro retratar as condies materiais e scioculturais do trabalho, para, depois, retomar as relaes histricas que constituram e constituem o CPCA. Em seguida, apresento os sujeitos de dilogo desta pesquisa, os gestores da entidade, e analiso os discursos e tensionamentos que entrelaam o seu trabalho de gesto. No terceiro captulo, O contexto de atuao do CPCA e o trabalho da gesto, esboo uma anlise do contexto de insero da ONG, estabelecendo crticas ao formato de ao produzido pela atividade educativa-assistencial. Considero a atual estrutura de assistncia social em Porto Alegre e o lugar ocupado pelas organizaes no-governamentais no desenvolvimento de programas sociais para analisar as tomadas de posio e as relaes de poder fomentadas pelos trabalhadores em questo. Assim, desenhei a ambincia que permeava as prticas de gesto, de forma a resumir, junto ao item anterior, as condies influenciadoras da formao dos sujeitos no trabalho. Em Sobre narrativas, domnios explicativos e tomadas de posio: a auto-ecoorganizao dos gestores, passo a expor as elaboraes dos sujeitos de dilogo. Resumo suas narrativas sobre as trajetrias pessoais, as atividades que desenvolvem e o contexto onde trabalham. Considerando individualmente cada gestor, trabalho com categorias empricas que ora observei em campo, ora me foram contadas, de forma que pudesse contemplar as singularidades na reconstruo de discursos coletivos. Apoiado nos referentes que elaboro no primeiro captulo, esboo domnios explicativos e tomadas de posio que constituem e distinguem os trabalhadores da gesto do CPCA. O ltimo captulo, Trabalho e formao: contribuies das prticas de gesto, decorre das inferncias dos tpicos anteriores, visando uma contribuio terica sobre o problema central da pesquisa. Desta maneira, resgato consideraes acerca dos intervenientes na associao trabalho-formao: as mudanas histricas da prtica de educao-assistncia; as caractersticas especficas do exerccio da gesto no CPCA; as tenses e discursos construdos nas interaes entre os trabalhadores; as relaes de poder e as mediaes simblicas que perfazem o trabalho da assistncia social. A partir da, sintetizo algumas proposies sobre as contribuies do trabalho de gesto para a formao dos sujeitos, inspirado pela noo de auto-eco-organizao. Nas Consideraes finais retomo o problema proposto com vistas a uma sntese das concluses da pesquisa. Neste nterim, resgato as questes propostas na problemtica, numa anlise terica que se encaminhar para a hiptese terico-educacional que encerra muito dos resultados deste processo investigativo. Com o propsito, alm disso, de colaborar s

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atividades realizadas no CPCA e prtica de investigao acadmica, encaminho provocaes oriundas deste trabalho, aproximando formao e gesto noo de participao.

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2 REFERNCIASTERICA

METODOLGICAS: CAMINHOS PRTICOS NUMA REFLEXO

[...] seja ela ensastica ou monogrfica, realista ou idealista, naturalista ou impressionista, romntica ou expressionista, lrica, dramtica ou pica, a narrativa confere ao leitor uma viso de conjunto ou os fragmentos de uma viso de conjunto, seja o seu tema um indivduo ou um grupo, situao ou tenso, estado de esprito ou alucinao, processo de ruptura, modo de ser ou devir. Sim, alm do que afirma Lucien Goldmann, a propsito da obra literria ou artstica, tambm a obra filosfica ou cientfica pode expressar algo ou muito de uma viso de mundo. (IANNI, 2004, p. 13)

Decidi conceber este trabalho como uma narrativa. Nomeio-o assim porque percebo que os dilogos em campo ou as reflexes tericas assumem nesta escrita uma forma particular, congruente com o recorte epistemolgico e scio-poltico que explicito em minhas tomadas de posio. Quando se analisam narrativas como base de informaes para pesquisa, Cunha (1997) salienta a necessidade de reconhecermos que os depoimentos no so "verdade literal dos fatos, mas antes representaes que deles faz o sujeito" s quais so articuladas reinterpretaes e novos significados. Alm disso, a autora acrescenta que, na investigao, so agregadas tambm as interpretaes do prprio pesquisador, numa construo que, desta forma, dialgica e coletiva. Creio que podemos visualizar este texto como uma narrativa no s porque condensa um recorte investigativo arbitrrio ou porque influenciado pelas contingncias do dilogo com os sujeitos, mas tambm por conter nestas duas condicionantes minha relao pessoal com o tema, em cuja anlise deposito afetos, inquietaes, pressupostos. Proponho observarmos os resultados desta pesquisa desde a influncia dialtica entre discurso e experincia afirmada por Cunha (1997), tendo em vista minha trajetria de gesto em organizaes no-governamentais. Tal condio no significa ausncia de rigor tericometodolgico. Pelo contrrio, afirmar esta investigao como narrativa a primeira medida para salientar as limitaes e interesses que a constituem, ainda que utilize diversas tcnicas na busca de uma explicao relacional, abrangente e crtica. Embora fale de um lugar especfico, fao-o constitudo por prticas produzidas socialmente. A narrativa precisa ser observada, aqui, no como um texto estritamente pessoal,

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mas como um 'contar' integrado ao discurso acadmico-cientfico, cujas ferramentas e rigores o distinguem. Por isso, pode ter seus resultados dispostos num dilogo crtico e criativo, seja com pares do campo acadmico, seja com sujeitos atuantes na rea pesquisada. Neste sentido, escrevo este captulo na forma de uma narrativa para explicitar, at onde permite minha compreenso, a relao que estabeleo com o tema pesquisado. Escrevendo sobre a trajetria profissional, os dilogos terico-metodolgicos e a reflexo sobre trabalho e formao que desenvolvo, desejo narrar o processo constituinte do objeto de pesquisa. Procurarei esboar meu entedimento sobre a relao que venho estabelecendo com o trabalho e a educao e, por conseguinte, com as noes de formao e gesto na atividade de pesquisa.

2.1 COMO CHEGUEI AO TEMA

[...] ir ao encontro de si visa a descoberta e a compreenso de que viagem e viajante so apenas um. (JOSSO, 2004, p. 58)

Para iniciar, gostaria de assinalar que o trabalho possui importncia considervel em minha formao por uma condio familiar, como base de realizao moral e necessria fonte de subsistncia. Meus pais, trabalhadores do ramo fabril metalrgico h mais de 30 anos, concluram sua escolarizao por volta dos 40 anos de idade, realizando cursos supletivos. Neste entremeio, era discurso recorrente o incentivo ao estudo. Numa expresso freqente, costumavam dizer que a "educao era o que poderiam deixar para ns, seus filhos.

[...] os limites da autonomia escolar na produo de suas hierarquias coincidem rigorosamente com os limites objetivamente atribudos a seu poder de garantir fora do mercado escolar o valor econmico e simblico dos ttulos que outorga. Ttulos escolares semelhantes recebem valores e funes bastante varaveis conforme o capital econmico e social (sobre o capital de relaes legadas pela famlia) de que dispem seus detentores e de acordo com os mercados em que so utilizados [...] o diploma tanto mais indispensvel quando se originrio de uma famlia desprovida de capital econmico e social. Assim, o sistema escolar s pode garantir completamente o valor dos ttulos que outorga em sua prpria esfera de reproduo [...] (BOURDIEU, 1999, p. 332-333)

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A exemplo de primos e tios de minha famlia, o estudar era citado quase que estritamente com vistas constituio da carreira profissional. Em minhas relaes, as atividades laboriosas na indstria se configuravam como um futuro possvel, quase previsvel, como se materializassem a oportunidade de melhoria das condies materiais de vida. Ousaria considerar que os segmentos empobrecidos da populao de Gravata5, entre as dcadas de 1960 e 1990, passaram a vislumbrar a fbrica como horizonte profissional, dadas as iniciativas das elites econmicas e polticas do municpio para o fortalecimento de atividades industriais6. O trabalho uma prtica social fortemente organizadora em minha famlia. Meus pais trabalhavam extensivamente, mesmo fora do ambiente convencional de labuta, e costumavam envolver os filhos nas lidas domsticas (na limpeza da casa, na construo da prpria moradia, etc.). Trabalhar, no entanto, no era uma atividade vivida sem tenses: a rigidez dos horrios das jornadas de trabalho, a presso por resultados e a conscincia da descartabilidade do empregado expressavam conflitos freqentes no pertencimento prtica social do trabalho. Seguindo o caminho mais usual em minha famlia, realizei, ento, um curso tcnico a nvel de ensino mdio numa das escolas profissionalizantes do Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). A proposio discursiva que fundamentava esta escolha pressupunha a seguinte ordem: estudaria e me preparia para o trabalho para, depois, trabalhar e seguir nos estudos com vistas a fazer uma faculdade e, ento, ter uma carreira supostamente mais promissora - logo, condies de vida mais confortveis. Tudo estaria devidamente encaminhado, no fossem algumas dificuldades. No me adaptei realidade do curso tcnico e tampouco ao ambiente fabril. Conclu o curso preocupando-me em manter notas elevadas e demonstrar o desempenho que entendia satisfatrio. No desejava seguir a rea na qual realizei curso, mas, moralmente, no admitia descumprir os nveis de exigncia aprendidos com minha famlia e atualizados pelo espao social competitivo que vivia na formao profissionalizante. A mesma formao que valorizava a vinculao ao mundo do emprego que conhecamos na poca provocou-me tenses em funo da competitividade e do controle ostensivos do ambiente fabril. As experincias de vida que me apoiaram na organizao para5 6

Minha famlia oriunda desta cidade e reside at hoje no municpio. Nos anos 1960, comeam a se instalar empresas de grande porte no municpio de Gravata. Neste sentido, na dcada de 1970, foi criado o distrito industrial da cidade, seguindo uma poltica de incentivo ao crescimento econmico comum ao pas. Em 1997, fundada uma montadora da General Motors, o que insuflou, mais recentemente, certo desenvolvimento econmico (ver www.gravatai.rs.gov.br/historia.php).

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o estudo e para o trabalho parecem ter constitudo tambm elementos desconstrutores de meu pertencimento ao espao da fbrica. Ponto de tensionamento, a esfera do trabalho tem sido uma dimenso socialmente central para mim e um horizonte emprico que orienta meus questionamentos de pesquisa, por organizar muitos de meus interesses e inquietaes. Passadas algumas experincias pessoalmente desgastantes em empresas metalrgicas situadas em Gravata, ingressei no curso de Cincias Sociais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS). No conhecia a profisso; entre minhas relaes sociais no havia nenhum cientista social, mas meu ingresso ao mundo acadmico, na Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas (FFCH/PUCRS), em 1995, oportunizou-me conhecer referenciais tericos que continham explicaes e crticas da sociedade com as quais mantive um dilogo bastante prazeroso. Eis que parecia encontrar um espao de trabalho e convvio que me satisfazia, mas permanecia a pergunta pela subsistncia. Havia uma orientao scio-formativa que projetava permanentemente minha sobrevivncia futura, embora realizasse o curso com auxlio de uma bolsa de custeio da ordem de 70%, paga pela empresa onde trabalhava meu pai e fruto, portanto, de sua insero ao mundo do trabalho assalariado formal. Entendia que precisava trabalhar e decidi realizar pesquisa acadmica. Eis que com a investigao "descobri" um trabalho diferenciado, muito prximo do que minha famlia costumava chamar de "estudo". Alis, o mundo acadmico no era uma realidade conhecida das pessoas de minhas relaes e, neste sentido, horas de labuta em casa (lendo, pesquisando, escrevendo), no incio, eram classificadas como gosto pelo estudar. Quando no final da graduao, optei por elaborar uma monografia sobre voluntariado, considerando o trabalho como tema de problematizao. Procurei concentrar ali minhas experincias de pesquisa7, observando a ao voluntria como discurso simblico de valorizao do trabalho: simplesmente me impressionava a possibilidade das pessoas trabalharem sem remunerao. Acabei me envolvendo com o tema pesquisado e, impulsionado pelo interesse em trabalhar (ter emprego, jornada de trabalho, salrio), passei a atuar numa organizao nogovernamental8. Logo em seguida, iniciei o mestrado em Administrao na Universidade7

Assim, articulava as investigaes que j vinha desenvolvendo junto a organizaes no-governamentais e terceiro setor (tema designado por minha orientadora na poca) e a possibilidade de problematizar as atividades de trabalho (voluntrio). 8 Devo ressaltar que as oportunidades de trabalho formal na rea de Cincias Sociais eram e so ainda diminutas no mercado. Boa parte dos colegas egressos do curso no trabalham na rea atualmente. Desta forma, a

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Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS 2000/2001), efetivando uma imerso e sendo parte do que pesquisava: mantive o tema do trabalho voluntrio, enfatizando, neste caso, a gesto, atividade que eu efetuava na ONG. Naquele momento, problematizava uma gesto participativa, que atribusse poder decisrio aos voluntrios: visualizava e almejava que o voluntariado inspirasse a criao de laos de solidariedade e cooperao no trabalho. Aps o mestrado e depois de reler a dissertao, fiquei impressionado com a instrumentalizao dos sujeitos contida em minha escrita. No havia passado pelo campo de conhecimento da administrao sem repercusses para minha formao. As abordagens da rea tm por premissa preconizar como deve ser, como deve funcionar, prescrevendo rotinas e relaes. Por outro lado, o espao de prescrio oportunizou-me, tambm, o contato com obras lidas no campo da Educao; referenciais que retomavam a noo de formao e instigavam o cuidado e o respeito autonomia das subjetividades, que sentia bastante solapados entre as atividades de gesto organizacional. As leituras em sociologia, inicialmente, e, posteriormente, no campo da educao9 pautaram-se pela formao fora do ambiente escolar. A importncia do trabalho entre as problematizaes desenvolvidas at aqui parecia orientar meu interesse neste sentido. Se a relao entre trabalho e educao compem a narrativa de experincias desde as vinculaes familiares, acredito que as noes de formao e gesto constituem a materializao epistemolgica e terica construda na trajetria de pesquisa: desejante de compreender as prticas sociais dos sujeitos, interessei-me pela categoria terica apresentada pela vivncia investigativa; e instigado pelas atividades que praticava passei a pesquisar a formao no trabalho da gesto de ONGs. Problematizando a gesto, reflito sobre o trabalho. E, hoje, almejo faz-lo entrelaando a atividade produtiva com outras dimenses sociais. Assim, imagino a organizao de trabalho como um encontro de pessoas que carregam saberes e desejos, fazendo do espao organizacional um ambiente produtivo, ldico, alienante, prosaico, afetivo, autonomizante, sagrado. Ainda sobre minha aproximao ao tema, gostaria de situar a manuteno da pesquisa com organizaes no-governamentais e, em especial, com entidades da rea de assistncia social. Minhas pesquisas, por fora de resultados de investigaes j realizadas, iniciaram pelo estudo dos servios prestados em escolas de ofcio catlicas. Creio que constru com os

possibilidade de atuar em organizaes no-governamentais, setor em crescimento desde os anos 1990 (IBGE, 2004), desenhava-se como uma alternativa significativa. 9 Iniciei o doutorado em Educao na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) no ano de 2004.

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beneficirios de iniciativas assistenciais certa identificao virtual. No raro, encontro entre crianas, adolescentes e seus educadores sociais vivncias semelhantes s que compartilhei com amigos e familiares. Talvez tenha exagerado no uso de depoimentos pessoais neste relato, mas almejava narrar as relaes que enxergo entre tema de pesquisa e experincias vividas, assinalando escolhas e delimitaes arbitrrias da caminhada. Trata-se, para mim, de uma trilha em meio s variadas potencialidades de vida, esboando uma construo de autonomia relativa.

2.2 COMO CHEGUEI AO REFERENCIAL: FORMAO E TEORIAS

Seguindo nesta narrativa, posso afirmar que as problematizaes que tenho realizado acerca das relaes de trabalho e sua interao com a formao foram perpassadas por referenciais tericos dos campos de cincias sociais e educao, mesmo quando fazia mestrado em Administrao. Eu diria que uma ruptura significativa foi organizada na opo pela sociologia, por alterar a relao que estabelecia com o trabalho, ampliando meus horizontes para novas realidades e, alm disso, apresentado-me o trabalhar como tema de problematizao. Durante o perodo como bolsista de iniciao cientfica, na graduao, comecei a ler sobre a categoria formao, e acredito que ela passou a condensar e enunciar um desejo latente de compreender as prticas das pessoas e as compreenses que explicitavam para que as mesmas agissem como agiam. O trabalho voluntrio, possivelmente, foi o primeiro tema em que expressei meu desejo de compreender os interesses das pessoas, numa articulao com a categoria formao e apoiado nas contribuies terico-metodolgicas de Pierre Bourdieu: opo dada pela linha de pesquisa na qual me integrei, mas tambm um dilogo de muito gosto para mim, numa adeso muito mais ideolgica do que terica. poca, perguntava como as pessoas constrem uma compreenso desde sua trajetria formativa. Durante o mestrado, alm do tema de investigao, mantive a obra de Bourdieu como referente principal, associando-o a leituras do campo da administrao. Esse autor era conhecido na rea, mas numa leitura que me parecia demasiado estruturalista e reprodutivista. Mais tarde, em contraste com os olhares da rea de educao, percebi que minha abordagem compartilhava boa dose de estruturalismo, observando que no estaria to distante assim das interpretaes tericas da administrao.

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Ao mesmo tempo que compartilhava de intuitos de instrumentalizao dos saberes individuais, sentia-me tensionado a contribuir com a promoo dos trabalhadores. E esta tenso, paradoxalmente, povoava os discursos da rea de administrao de recursos humanos, mas com limitaes impostas pelo ofcio administrativo: em ltima instncia, haveria que se atender aos objetivos organizacionais. Minha aproximao ao campo da educao acabou oportunizando uma nova ruptura: a busca por referenciais que retomassem a categoria formao de pontos de vista voltados ao desenvolvimento de autonomia. Neste caso, ainda durante o mestrado, iniciei a leitura das obras de Maturana e Morin, insuflado a encontrar espaos de expresso dos sujeitos que a gesto organizacional no me possibilitava. Na abordagem da educao no-formal, no identificava as delimitaes teleolgicas da administrao, sendo que a rea de Trabalho e Educao, alm disso, viabilizava minha integrao pelo dilogo com referenciais comuns com a sociologia. Para falar especificamente dos referenciais centrais nesta trajetria, posso dizer que me identifiquei inicialmente com a obra de Bourdieu. O meu interesse primeiro voltou-se para a formao, compreendida particularmente nas disputas do cotidiano, que na obra deste autor, aos meus olhos, encontravam anlise e crtica. Sentia-me instigado a refletir sobre as potencialidades formativas do poder simblico. Para exemplificaro, quando comecei a realizar pesquisas no Colgio Po dos Pobres (uma das escolas de ofcio catlicas em Porto Alegre), desejava entender porque as pessoas acreditavam no que acreditavam, sentindo-se mobilizadas a trabalhar e contribuir para a entidade. J em Morin e Maturana, a busca foi motivada pelo desejo de romper com a leitura unvoca de um s referencial terico. Temia ficar "preso" a uma abordagem, tornando-a uma crena totalizante e, neste sentido, procurei realizar certa imerso nas obras destes autores, imaginando que, assim, teria condies de promover rupturas epistemolgicas e relativizar minha interpretao de mundo e das contribuies de Pierre Bourdieu. As leituras de Morin e Maturana, associadas ao encontro com outros autores lidos na rea de educao (Freire, Arroyo, Schwartz, Josso, dentre outros) possibilitaram que reconhecesse o estruturalismo de minha abordagem e de minha compreenso de Bourdieu, e, ademais, ajudaram a visualizar as limitaes deste referencial para que pensasse a autonomia dos sujeitos sociais e as possibilidades de relaes cooperativas. Morin simboliza uma escrita com esperana de liberdade e mudana social que Bourdieu expressa, para mim, com menos veemncia.

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A possibilidade de transitar por referenciais diferentes foi, para mim, um caminho mais criativo e autonomizante, falando mais alto tambm ao meu "arrogante" e ambicioso mpeto de inovao, ansiedade por mudana, e ao desejo e curiosidade de entender porque acreditamos no que acreditamos e, particularmente, movemo-nos a fazer o que fazemos.

Los caminos hacia la complejidad son, al mismo tiempo, los de un conocimiento que intenta conocerse a s mismo, es decir, los de una ciencia con consciencia. (MORIN, 1982, p. 28)

2.3 REFERENCIAIS E TOMADAS DE POSIO

Depois de relatar minha aproximao com o tema e com os referenciais tericos, farei a apresentao dos referentes que guiam esta proposta, compondo escolhas dispostas j no projeto e alteraes construdas em campo. Como enunciam as experincias citadas anteriormente, as problematizaes da pesquisa abordam as contribuies do trabalho de gesto formao de gestores, configurada junto s atividades de uma ONG. Mais adiante, detalharei as condies e intenes esboadas para o dilogo com os sujeitos nesta pesquisa. Antes, procurarei apresentar minhas opes tericas.

Que fique bem claro: eu no procuro nem o saber geral nem a teoria unitria. preciso, ao contrrio e por princpio, recusar um conhecimento geral: este ltimo escamoteia sempre as dificuldades do saber, ou seja, a resistncia que o real impe idia [...] da mesma forma, a teoria unitria, para evitar a disjuno entre os saberes separados, obedece a uma simplificao redutora que prende todo o universo a uma frmula lgica [...] (MORIN, 2003, p. 28)

2.3.1 Auto-eco-organizao, formao e gesto As noes de 'formao' e 'gesto' so centrais nesta abordagem. Esta por designar o lugar e as prticas de trabalho dos sujeitos de dilogo; aquela por representar o processo e os resultados scio-educativos para os sujeitos atuantes. J a expresso 'auto-eco-organizao' resume opes epistemolgicas, inspirando o tensionamento da relao formao-gesto em

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bases que concebam possibilidades autonomia dos indivduos, na mesma medida que a entrelaa s condies sociais de convvio.

2.3.1.1 Sobre auto-eco-organizao

[...] el pensamiento complejo debe cumplimentar condiciones muy numerosas para ser complejo: debe unir el objeto al sujeto y a su entorno; no debe considerar al objeto como objeto, sino como sistema/organizacin que plantea los problemas complejos de la organizacin. Debe respetar la multidimensionalidad de los seres y de las cosas. Debe trabajar/dialogar con la incertidumbre, con lo irracionalizable. Tampoco debe desintegrar el mundo de los fenmenos, sino intentar dar cuenta de l mutilndolo lo menos posible. (MORIN, 1982, p. 354)

A noo de auto-eco-organizao , aqui, o principal artifcio de aproximao s proposies de Edgar Morin (1996; 2001) ao pensamento complexo, assinalando a provisoriedade e as incertezas que compem o discurso cientfico. Procurarei caracterizar, ento, meu entendimento a respeito, mencionando repercusses para a investigao realizada. Primeiramente, gostaria de sinalizar que a pesquisa procurou dar centralidade relao, produo social na interdependncia. Conforme sugere Morin (1996), neste sentido importante evitarmos a conotao de objeto em favor da noo de sistema que (...) dotado de algum tipo de organizao (p. 278) estrutura-se relacionalmente. O pensamento complexo preconiza que pensemos a pesquisa como movimento de busca, no qual o dilogo com a incerteza seja parte atuante. Assim, o "observar a realidade" configura-se como visualizao dos entrelaamentos entre os elementos que a constroem, como se o lcus analisado apresentasse uma organizao10 especfica, que o caracteriza sem, no entanto, encerrar possibilidades de mudana. Hoje, concebo esta formulao como uma provocao para que reflitamos a articulao entre partes, repensemos limites e categorizaes prvias, procurando narrativas sobre complementaridades e contradies que movimentam o real, interpondo a provisoriedade de nossas inferncias.

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Por uma medida de diferenciao e esclarecimento, procurarei destacar em itlico a palavra organizao quando estiver me referindo emergncia sistmica de uma teia de relaes, distinta da organizao entendida estritamente como criao deliberada dos sujeitos, como so exemplos as entidades assistenciais. Poderamos compreender estas ltimas tambm como organizaes, porm, para tanto, seria necessrio construir uma narrativa que considere no s os registros formais de documentos que descrevem e definem a entidade, concebendo trajetrias histricas, circunstncias de contexto, etc.

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No caso das relaes entre os trabalhadores da ONG investigada, penso que se trata no somente de reconhecer as complementaridades entre as interpretaes e prticas, mas tambm as disputas e antagonismos rupturantes no trabalho dos sujeitos. No termos de Morin (2003), significa observar o espao social na sua ordem, mas em conjunto com a desordem que a contrape e transforma, gerando uma nova organizao. E, neste caso, poderamos pensar tanto nas disputas e interaes entre os gestores da entidade, quanto suas interretroaes com a comunidade local.

[...] la complejidad es un orden cuyo cdigo no se conoce. Es decir, que an no se conoce, y que posiblemente no vamos a conocer en toda su complejidad, pero que s nos va a permitir poder navegar por sus turbulencias con ciertos resultados. As pues situar el contexto en que se dicen las cosas, sus orgenes, sus mtodos en relacin a sus objetivos, nos ayuda a sacar de la abstraccin las teoras e los conceptos. Estos problemas de la auto-eco-organizacin, y otros similares, necesitan bajar a la vida cotidiana [...] (VILLASANTE, 2004, p. 04).

Para efeito da problematizao desta pesquisa, a organizao enfatizada como autoeco-organizao, que nas palavras de Morin (2001) seria ...vlida especificamente para os humanos que desenvolvem sua autonomia na dependncia de sua cultura e para as sociedades que se desenvolvem na dependncia de seu meio... (p. 95). Desta forma, procuro refletir a constituio das relaes na organizao e, tambm, as contribuies formao dos sujeitos de dilogo construdas no trabalho de gesto. O dilogo com os sujeitos passa pelo reconhecimento da singularidade de suas interpretaes sobre as atividades, sobre a entidade e sobre o contexto local, integrada, porm, s elaboraes coletivas e histricas no trabalho: contemplar o conjunto das relaes que constituem a gesto, mas reconhecendo as subjetidades auto-referentes que as produzem. Assim, a noo de auto-eco-organizao base para minha compreenso das categorias de formao e gesto. Minha interpretao da auto-eco-organizao foi elaborada junto ao estudo dos princpios propostos por Morin. O autor refere sete diretivas interdependentes para um pensamento complexo (MORIN, 2001, p. 93-97), que reproduzo aqui: 1. O princpio sistmico ou organizacional, que liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, de forma que a organizao de um todo produz qualidades ou propriedades novas em relao s partes consideradas isoladamente: as emergncias.

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2. O princpio hologramtico pe em evidncia este aparente paradoxo das organizaes complexas, em que no apenas a parte est no todo, como o todo est (de alguma forma) inscrito na parte. Morin (1996) cita exemplos como a presena do patrimnio gentico em cada clula de nosso corpo, ou a existncia da cultura (crenas, normas, linguagem, etc.) em cada sujeito. 3. O princpio do circuito retroativo, introduzido por Norbert Wiener, permite o conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele rompe com o princpio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e o efeito age sobre a causa. 4. O princpio do circuito recursivo ultrapassa a noo de regulao com as de autoproduo e auto-organizao. um circuito gerador onde os produtos e os efeitos so, eles mesmos, produtores e causadores daquilo que os produz. Neste nterim, seriam exemplos os indivduos humanos, produtores da sociedade nas interaes e pelas interaes, sendo que a sociedade, medida que emerge, produz a humanidade desses indivduos, fornecendo-lhes a linguagem e a cultura. 5. Princpio da autonomia/dependncia (auto-organizao): os seres vivos so seres auto-organizadores, que no param de se autoproduzirem e, por isso mesmo, despendem energia para manter sua autonomia. Como tm necessidade de retirar energia, informao e organizao de seu meio ambiente, sua autonomia inseparvel dessa dependncia; por isso que precisam ser concebidos como seres auto-ecoorganizadores. 6. Princpio dialgico [...] Ele une dois princpios ou noes que deviam excluir-se reciprocamente, mas so indissociveis em uma mesma realidade. Esta diretiva procura reconhecer antagonismos como termos tambm complementares, sem considerar necessria a sntese dialtica. As contradies poderiam, ento, conviver, sem obrigatoriamente encontrar uma superao (MORIN, 1995). 7. O princpio da reintroduo do conhecimento em todo conhecimento. Essa diretriz opera a restaurao do sujeito e revela um problema cognitivo central: da percepo teoria cientfica, todo conhecimento uma reconstruo/traduo feita por uma mente/crebro, em uma cultura e poca determinadas. Esta diretiva enfatiza a necessidade de explicitar e conhecer no s os sistemas observados, mas tambm os sistemas observadores (MORIN, 1999). Os princpios enunciados por Morin (2001) inspiraram a pesquisa, como bases para o dilogo em campo, para a sistematizao das informaes obtidas e para a leitura que fiz das teorias nas quais me apoiei. De incio, havia assumido o compromisso de t-los como

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referente principal, mas o caminhar investigativo levou-me a reconsiderar e buscar outros autores que pudessem colaborar em minhas problematizaes. Assim, procuro situar a noo de auto-eco-organizao e as demais diretrizes que a permeiam como instigadores, questionadores de minha leitura da realidade, entrelaando os aportes tericos que apresentarei a seguir.

2.3.1.2 A formao Neste tpico, procurarei delimitar o que entendo por formao, resgatando as contribuies de alguns autores que encontrei em minha trajetria. Apresento abordagens sobre esta noo para que possa expressar definies s quais me filio na investigao, trazendo, ao final, as articulaes que produzi com o princpio da auto-eco-organizao. Inspirado por Batista (2001), poderia afirmar que as leituras realizadas e as argumentaes que encontrei apresentavam, em muitos casos, a categoria formao com um direcionamento, isto , como "formao para", explicitando uma intencionalidade ou uma aplicabilidade prtica (formao humana, formao religiosa, formao profissional, dentre outras). Carr e seus colaboradores (1999), por exemplo, trazem uma srie de circunstncias de formao marcadamente direcionadas, reunindo abordagens de vrios profissionais e reas de conhecimento (sociologia, economia, psicologia, neurologia, ergonomia, administrao), que, de certa forma, expunham indicativos de exigncias e procedimentos adotados por vrios contextos, configurando formaes desejadas. Numa abordagem no to aplicada, mas igualmente permeada por uma intencionalidade, Pinto (1996) expe as concepes de formao humana da modernidade. Poderia sintetizar as contribuies deste autor caracterizando a formao do projeto da modernidade como busca da liberdade individual, sendo seu contrrio uma deformao, um desvio, uma subjugao. Afirmaria, ainda, que h, para o mesmo autor, uma relao entre formao e humanizao, a ser entendida como liberao das potencialidades subjetivas via abolio das injustias sociais. Aqui, poderamos situar tambm a categoria de emancipao, representante do desvanecimento das opresses produzidas socialmente. J Tanguy (1997) traz uma caracterizao conjuntural concepo de formao, afirmando a criao de um novo mercado, organizado por instituies de estatutos diversos, incluindo [...] no apenas aes que visam a transmisso de conhecimentos gerais ou especializados, mas tambm um conjunto de aes de orientao e de integrao no meio

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social, ou at mesmo aes de tipo psicolgico junto a pblicos desempregados. (p. 390). A intencionalidade (formativa) estaria presente em tais prticas, mas a autora as analisa como expresses de determinada situao contextual. As contribuies de Tanguy (1997) ensejam o tensionamento da formao como prtica construda social e historicamente, em diversas modalidades e intencionalidades, ou seja, [...] implica o reconhecimento das trajetrias dos homens e mulheres, bem como exige a contextualizao histrica destas trajetrias, assumindo a provisoriedade das propostas de determinada sociedade (BATISTA, 2001, p. 136). A intencionalidade e as caractersticas do processo de formao tm sua contingencialidade reconhecida na medida em que concebemos, ento, sua articulao prticas e relaes socialmente datadas, historicamente provisrias. Assim, a formao pode ser contemplada na sua intencionalidade expressa, mas tambm nas repercusses noplanejadas, resultantes do movimento relativamente aberto que so as relaes sociais, nem sempre restritas disciplina prescrita por quem exerce preponderantemente o poder. Na seqncia, procurarei manter esta problematizao, apresentando algumas definies pertinentes.

Para efeito de uma definio Maturana (2000) procura distinguir as circunstncias do que compreende como formao humana e capacitao. A primeira seria a constituio de condies gerais, uma ambincia que oportunize ao sujeito o respeito por si e pelo outro. Desta forma, o autor caracteriza a formao como uma prtica de repercusses integrais (tomando a pessoa por inteiro, em valores, crenas, conhecimentos), podendo ser organizada por inmeros caminhos diferentes. A capacitao mais especfica e [...] tem a ver com a aquisio de habilidades e capacidades de ao no mundo no qual se vive, como recursos operacionais [...] (p. 11). O termo formao deriva do termo forma, que em latim significa molde, ou meio pelo qual se d forma a algo. Neste sentido, formar e ser formado expressa um conjunto de aes passveis de produzir um formato habitual, um jeito de ser. Estaramos falando de um processo totalizante que estrutura princpios, valores, hbitos, conhecimentos, habilidades, atitudes: um conjunto de saberes integrados (aplicados/aplicveis) ao cotidiano do formado (DESAULNIERS, 1993). Estaramos considerando prticas de integrao, ajustamento s vrias instncias possveis da realidade do sujeito em formao.

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[...] toda formao supe uma reflexo sobre o sistema de valores que fundamenta e requer que se coloque em ao aquilo que foi adquirido, de maneira terica e prtica. a pessoa inteira, nos fundamentos da sua prpria personalidade, que envolvida pelo ato de formao. (MIALARET, 1979 apud DESAULNIERS, 1997, p. 191)

Contudo, gostaria de problematizar as condies de ajustamento ou adaptao que possamos atribuir noo de formao, restringindo-a aos processos de socializao, numa nfase estruturao e integrao social. Concebo a prtica formativa como o proporcionar uma forma, mas no modelar uma frma. Ao formar, estamos oferecendo um continente e uma matriz a partir dos quais algo possa vir-a-ser. (BATISTA, 2001, p. 136). Acredito que podemos relativizar as possibilidades de uma formao estritamente adaptativa ou reprodutiva reconhecendo os antagonismos que transpassam seu processo, quando temos sujeitos sociais em interao, produzindo divergncias, instigando reinterpretaes e redirecionamentos, instaurando mudanas. Procuro conceber a prtica formadora como um espao de relaes relativamente circunscrito, que comporta uma condio inacabada e lacunar, em funo de sua provisoriedade histrica, do "trnsito" dos sujeitos por espaos diferentes e da pluralidade social das subjetividades (BATISTA, 2001). Atualmente, a questo da diferenciao, ou da reivindicao da diferena (Stoer, 2004) pode nos instigar a refletir a contextualidade da formao. Melucci (2001) menciona que a sociedade contempornea vive o paradoxo de intensificar simultaneamente o estmulo s prticas autonomizantes e a ampliao dos artifcios de controle, de maneira que os sujeitos vivem suas experincias na disputa por caracterizarem sentidos para suas prticas, narrando sistematicamente suas identidades.

Parece que los sistemas contemporneos contienen un impulso muy fuerte hacia la autonoma de los individuos y, al mismo tiempo, tendencias hacia la masificacin de los procesos sociales basados en la exclusin, la despersonalizacin, la manipulacin de la informacin, el consumo estandarizado, el conformismo e la apata. stas son en realidad las dos caras contradictorias de un mismo proceso: en sociedades con alta diferenciacin y basadas en la informacin resulta cada vez ms complicado asegurar la integracin e el control [...] (MELUCCI, 2001, p. 45).

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A formao desde uma perspectiva auto-eco-organizativa: um olhar, uma narrativa[...] os compromissos da formao aludem, necessariamente, a contextos sociais, culturais, pessoais que se imbricam, estabelecendo relaes de recproca influncia e determinao, superando-se a iluso tanto do subjetivismo estril como da onipotncia do social. (BATISTA, 2001, p. 136-137)

A noo de auto-eco-organizao me instiga a relativizar leituras reprodutivistas da formao, concebendo a interao entre sujeito e organizao num movimento de estruturao e reconstruo, capaz de fazer pessoas e entidade assistencial reorganizarem seus saberes, conforme a distribuio de poder circunstancial: esforo de conhecer os sujeitos, para compreend-los nas suas interpretaes do mundo e do cotidiano de trabalho que os rodeia. Resgatando proposies descritas anteriormente, assinalo que investigar a formao [...] implica o reconhecimento das trajetrias dos homens e mulheres, bem como exige a contextualizao histrica destas trajetrias, assumindo a provisoriedade das propostas de determinada sociedade (BATISTA, 2001, p. 136), e, acrescento, a provisoriedade da narrativa que relata a trajetria. Entre os autores lidos, comum a relao entre formao e trajetria. Porm, gostaria de destacar um aspecto que me parece importante nesta argumentao: a formao atribuda a algum atribuda desde um lugar e, ademais, narrativa construda desde o presente dos sujeitos em dilogo. A noo de auto-eco-organizao provoca a considerar as vivncias construdas pelo sujeito como parte histrica de si e como auto-delimitadores da interpretao: o que se conta agora parte de uma forma de estar na relao com os outros, constituinte/construtor da forma como me auto-eco-organizo no presente.

[...] a interpretao narrativa e espontnea do itinerrio de vida comporta uma dimenso imaginria, porque se trata de uma releitura do passado na tica do questionamento, dos projetos, dos desejos e das perspectivas de vida inscritas no presente, no passado e nas projees, mais ou menos conscientes de um futuro prximo ou longnquo [...] (JOSSO, 2004, p. 253)

Neste sentido, Josso (2004) prope que a impermanncia nos obriga a nos deslocar durante a nossa vida. Este eu aparentemente permanente, muda de identidade e nele habitam vrios ao mesmo tempo. O que narramos sobre ns seria resultado de um tensionamento entre

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o que aprendemos em nossas circunstncias de vida e o esforo de afirmao de nossa identidade, numa produo auto-referente. Agir, refletir, contar so construes de um sujeito que vive conhecendo-se e reconstruindo-se, de maneira que sua formao reorganizaria seus pressupostos, valores de conduta, discursos sociais.

[...] ir ao encontro de si visa a descoberta e a compreenso de que viagem e viajante so apenas um. (p. 58) [...] As lendas familiares que inspiram nosso lugar na descendncia, as lendas dos nossos heris, as histrias que contamos para ns mesmos a respeito de nossa vida, tudo isso mobilizado no processo de formao e de conhecimento. (JOSSO, 2004, p. 205)

Precisamos

considerar

as

vivncias

narradas

como

significativas,

como

momentaneamente desafiadoras, pois estas tero exigido certa organizao dos jeitos de ser, dos hbitos e, alm disso, podero ter instaurado rupturas na forma de interagir com as pessoas, com o mundo: rotina e mudana so opostos-complementares da narrativa da formao. Nas palavras de Josso (2004):

[...] a recordao-referncia pode ser qualificada de experincia formadora, porque o que foi aprendido (saber-fazer e conhecimentos) serve, da para frente, quer de referncia a numerosssimas situaes do gnero, quer de acontecimento existencial nico e decisivo na simblica orientadora de uma vida (p. 40)

Estaria, de um lado, considerando a observao de prticas de integrao, "ajustamento" s instncias objetivas de pertencimento do sujeito em formao. Neste sentido, gostaria de integrar contribuies de Bourdieu (1996; 2000) acerca das condies objetivas e das relaes de poder que constituem o processo formativo. Este autor nos fala de certa relao encantada com um jogo que o produto de uma relao de cumplicidade ontolgica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espao social (BOURDIEU, 1996, p. 139-140), referindo a ligao entre sujeitos e campo de ao. Assim, Bourdieu prope que o espao social se reconstri em ns, gerando instrumentos para a naturalizao e, tambm, para a reflexo do convvio, de forma que nos configuramos como estruturas estruturadas e estruturantes das relaes sociais: seramos, em parte, resultado das relaes objetivas que vivemos, compartilhando socialmente prticas e interesses. Assim, nossa participao no espao social e nas prticas formativas que este instaura

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se dariam a partir de relaes de disputa, conforme o quantum de poder sobre o campo (num dado momento) e, mais precisamente sobre o produto acumulado do trabalho passado, logo sobre os mecanismos que contribuem para assegurar a produo de uma categoria de bens (BOURDIEU, 2000, p. 134). Estruturalmente articulados ao campo11, estabelecemos estratgias de disputa pelos recursos disponveis no locus de atuao. Assim, o autor fundamenta uma perspectiva que salienta a interdependncia de nossa formao s condies objetivas que nos envolvem, de modo que possamos conceber a narrativa para alm do depoimento pessoal, como fonte de caracterizaes coletivas e sociais, incluindo a as condies de poder. Mas, de outro lado, creio ser importante salientar as potencialidades de autoconstruo da formao, concebendo o formar como processo de produo auto-referente mediante as condies disponibilizadas. Ao que parece-me, Melucci (2001) traz consideraes importantes sobre tal processo quando nos comenta a situao contraditria dos sujeitos contemporneos ao convivermos com muito mais possibilidades existenciais do que de fato comportariam nossas condies de vida, promovendo incerteza, insegurana e angstia pelas frequentes escolhas e renncias. Assim, a identidade precisaria ser narrada de maneira mais ou menos constante, como que reorganizando mudanas, afirmando unidade.

[...] sigue sin embargo siendo evidente que la identidad se configura cada vez ms como un campo, ms bien que como una realidad esencial, como un sistema de coordenadas o de vetores de significado, definido por las posibilidades y lmites que pueden reconocerse: sistema y proceso al mismo tiempo, segn se ponga el acento sobre el conjunto de relaciones que estructuran el campo o sobre las variaciones del campo mismo. (p. 90)

[...] narrar significa establecer unas fronteras y al mismo tiempo superarlas; significa tambin establecer una continuidad, no como nexo unvoco de causa-efecto, sino como posibilidad de reconocer el hilo que nos ata al pasado y al futuro. (MELUCCI, 2001, p. 94-95)

Concebo a formao no como prtica de efeitos totalizantes e determinsticos, mas sim como um campo de resultados relativos. Em contextos nos quais no necessariamente11

[...] Espao onde as posies dos agentes se encontram a priori fixadas, o campo se define como o lcus onde se trava uma luta concorrencial entre os atores em torno de interesses especficos que caracterizam a rea em questo. (Ortiz, 1983, p. 19). Para efeito desta tese, a noo de 'campo' ser utilizada algumas vezes em referncia ao espao social de atuao do CPCA e seus gestores, nas relaes com a rede municipal de assistncia e com a comunidade prxima, sem, com isso, pretender uma delimitao da rea de assistncia social.

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existe pretenso formadora (como o trabalho), a formao poderia ser contemplada como um jogo de interaes organizadoras: uma tenso entre caractersticas estruturadas nas relaes e condutas novas dos sujeitos, entre normas institucionais e reinterpretaes subjetivas e grupais.

[...] toda teoria da organizao j uma teoria da autonomia, pois a organizao assegura ao sistema uma relativa autonomia em relao aos fatores deterministas e aleatrios do exterior. A noo de autonomia no antinmica, mas complementar idia de dependncia. (MORIN apud PESSIS-PASTERNAK, 1996, p. 90)

[...] ao mesmo tempo, preciso reconhecer que, potencialmente, todo sujeito no apenas ator, mas autor, capaz de cognio/escolha/deciso. A sociedade no est entregue somente, sequer principalmente, a determinismos materiais; ela um mecanismo de confronto/cooperao entre indivduos sujeitos, entre ns e os Eu. (MORIN, 2001, p. 127-128)

Neste nterim, devo referir as contribuies de Maturana (2001) no que concerne a constituio de domnios explicativos, por entender que, de um lado, articula-se com as proposies sobre auto-eco-organizao e elaborao de narrativas e, de outro, apresenta uma interessante inspirao para problematizarmos os depoimentos em anlise nesta investigao. Para Maturana (2001), a cognio e a ao do sujeito so parte de uma construo prpria a partir do que o mesmo apreende da comunidade onde est situado. Uma autonomia relativa incrustada numa dependncia relativa; nem puramente reproduo social, nem exclusivamente liberdade individual. Este mesmo autor afirma que construmos realidades a partir do que percebemos no meio. No se trataria da captao de informaes, mas de uma cognio que constitui e reconstitui domnios explicativos com base em correlaes internas. Assim, elaboramos explicaes prprias, como um conjunto articulado de saberes, visando uma explicao significativa, fundante e total. Maturana (1998), neste sentido, menciona que somos determinados em nossa estrutura, de forma que uma incidncia externa sobre ns ter efeitos variveis, dependendo de nossa estrutura no momento. Qualquer histria individual humana seria uma epignese na convivncia, ou seja, uma transformao auto-referente de uma estrutura inicial.

No somos meros reprodutores passivos de uma realidade independente de nossa observao, assim como no temos liberdade absoluta para eleger de forma irrestrita a construo da realidade que levaremos a cabo. A operao ativa de

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construo/desconstruo (no contexto) que os grupos humanos fazem sobre o que ser seu universo objeto de conhecimento coincide com a emergncia simultnea como sujeitos no mesmo processo de construo. (SCHNITMAN, 1996, p. 16)

O domnio explicativo no seria, ento, uma elaborao que possamos observar com total objetividade. mais uma compreenso que, embora vinculada s condies do meio, constituinte de nosso jeito singular de estar no mundo. Assim, mudar um domnio explicativo significa mudar a formao de quem o postula; caracterizar as interpretaes de um sujeito sobre si e seu entorno narrar parte de sua identidade. Buscando articular as contribuies dos autores que referi acima, a pesquisa sobre a formao se concretizou na anlise das relaes e prticas de trabalho e, tambm, das narrativas elaboradas pelos sujeitos. No constraste entre as singularidades e entre estas e as produes coletivas, creio ter esboado o processo formativo de cada gestor. Ademais, acrescentando investigao a noo de 'tomada de posio', usada por Bourdieu (1999), procuro trazer anlise do processo formativo as condies relacionais de poder que constituem o contexto de atuao. Desta forma, a formao foi contemplada nos domnios explicativos construdos e constituintes dos trabalhadores12, considerando que tais interpretaes, permeadas por discursos sociais, articulam-se s tomadas de posio dos sujeitos, influenciando sua participao nas interaes sociais - incluindo a as relaes de poder no lcus. Desta maneira, penso observar a formao na recursividade entre a ao dos gestores e as condies objetivas de trabalho, visualizada no que narram, praticam e postulam junto ao Outro13.

2.3.1.3 A prtica de gesto A partir deste ponto, procurarei analisar o campo de ao dos sujeitos de dilogo desde abordagens tericas sobre o trabalho e a