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UNIVERSIDADE CATLICA PORTUGUESA

O CASE STUDY JOS MOURINHOUMA INVESTIGAO SOBRE O FENMENO DA LIDERANA E A OPERACIONALIZAO DA PERSPECTIVA PARADIGMTICA DA COMPLEXIDADE

Lus Manuel Guerreiro Dias Alves Loureno

Faculdade de Cincias Humanas

Dezembro 2006

UNIVERSIDADE CATLICA PORTUGUESA

O CASE STUDY JOS MOURINHO: UMA INVESTIGAO SOBRE O FENMENO DA LIDERANA E A OPERACIONALIZAO DA PERSPECTIVA PARADIGMTICA DA COMPLEXIDADE

Dissertao Apresentada para Obteno do Grau de Mestre em Cincias da Comunicao, Organizao e Novas Tecnologias

Por Lus Manuel Guerreiro Dias Alves Loureno

Sob orientao do Prof. Doutor Fernando Ilharco

Faculdade de Cincias Humanas

Dezembro 2006

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Dedico esta dissertao Cludia, que sempre esteve ao meu lado e sempre me apoiou. Pela estabilidade que o seu amor trouxe minha vida. E pelos fins-de-semana e frias que quase nunca teve. Aos meus pais, sempre incondicionalmente comigo. Nunca lhes conseguirei agradecer tudo o que tm feito por mim. A minha gratido e o meu amor sero eternos. Jj, que tanto me tem dado e nada tem pedido. Aos meus irmos, cunhadas e sobrinhos, pela sua imensa compreenso e pacincia. Todos eles so tambm um pilar fundamental da minha vida. Finalmente, Ao meu padrinho, Antnio Jos de Oliveira Anbal, o melhor mdico do mundo. No esquecerei nunca que sem a sua amizade e competncia alguns de ns j c no estariam. E, Ao meu av que j c no est e que tanto amei.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Fernando Ilharco. Esta dissertao a ele lha devo pela competncia, pelos conhecimentos, pela amizade, pela pacincia, pela fora, pelo equilbrio e pelo apoio que sempre me transmitiu ao longo deste ano. Sem ele nada disto seria possvel e tudo isto seria muito diferente. Sem ele eu no era muito do que sou hoje. Ao Professor Doutor Manuel Srgio. Sempre amigo, sempre conselheiro e sempre ao meu lado com vibrante e incansvel apoio. De tudo o que me ensinou retenho a humildade como a mais importante e profunda noo que nos deve guiar na vida. Humilde pensei pensando e fiz fazendo, a nica forma de fazer e ser aquilo que sou e que vou sendo. Obrigado Professor. Ao Z Lameira, ao Gregrio Godinho, ao Carlos Seca, ao Antnio Flix, ao Nuno Calapez, ao Paulo Srgio e ao Mariano Gonalves, amigos de longa data. Todos eles, de uma forma ou de outra, me ajudaram nesta caminhada. Todos eles, de uma forma ou de outra, me ensinaram que a vida se faz de diversas formas e por diferentes caminhos. Todos eles me ensinaram o significado da palavra pacincia. Finalmente Ao Jos Mourinho, companheiro de uma vida, amigo e irmo.

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RESUMO A investigao que se apresenta tem como objecto o case study Jos Mourinho, especificamente na sua dimenso de liderana. Trata-se de uma abordagem interpretivista que analisa o trabalho e a liderana de Jos Mourinho luz de desenvolvimentos tericos vrios, tendo como primeiro fundamento a perspectiva paradigmtica da complexidade, essencialmente tal como ela entendida na obra de Edgar Morin. Apresentamos Jos Mourinho enquanto lder e treinador de futebol, dando a conhecer a sua trajectria profissional desde o anonimato at ao estrelato onde actualmente se move. Esta investigao apela a um corpus terico diversificado e relevante para a compreenso do fenmeno da liderana, especificamente da eficcia da liderana de Jos Mourinho. Assim, sob a perspectiva paradigmtica da complexidade, moldando o progresso da investigao e estabelecendo as relaes entre os diversos blocos tericos, utilizamos para a anlise do nosso objecto de estudo a teoria da inteligncia emocional, um conjunto importante de investigaes sobre a constituio e dinmicas de grupo, bem como um leque importante de teorias consagradas sobre o fenmeno da liderana desde a teoria do grande homem s teorias neo-carismticas, passando pelas anlises comportamentais e contingenciais, entre outras. Apresentamos tambm uma reviso da investigao em curso sobre o fenmeno da liderana no que respeita ao relacionamento entre complexidade e liderana e entre complexidade e emoes. A anlise que fazemos do trabalho e da liderana de Jos Mourinho precedida por duas entrevistas, uma ao prprio Jos Mourinho e a outra a Rui Faria, tcnico-adjunto de Mourinho no Chelsea. Na anlise que apresentamos no Captulo 9, e que ocupa uma parte importante da dissertao, propomos entendimentos, noes e conceitos que nos parecem pertinentes para a compreenso da liderana de Jos Mourinho e da sua eficcia. Entre esses aspectos, e a ttulo de exemplo, propomos uma articulao terica da operacionalizao da complexidade na liderana, tal como levada a cabo por Jos Mourinho; identificamos e caracterizamos a noo de globalidade da aco profissional como uma consequncia da aplicao da perspectiva da complexidade; analisamos a noo de dominante, introduzida pelo prprio Mourinho, propondo um enquadramento conceptual complexo; sugerimos, e exploramos, o conceito lder como indicador de um tipo de comportamento necessrio para a liderana e cuja genuinidade importante; avaliamos a aco concreta de Jos Mourinho luz das diversas teorias introduzidas sobre liderana, e no esquecendo o seu enquadramento paradigmtico na complexidade, sugerimos que os modelos com os quais ele tem mais afinidades so o carismtico e o transformacional. Por fim, consideramos, com a devida modstia, que esta investigao pode tambm abrir caminhos para novos desenvolvimentos, nomeadamente no que respeita transferibilidade da prtica profissional de Jos Mourinho para as organizaes em geral.

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ABSTRACT The research presented in here focuses the work and success of Jos Mourinho, the Portuguese manager of Chelsea FC, specifically its dimension of leadership. Our approach is an interpretive one, using several of the relevant theoretical developments on the field of leadership in order to analyse the work and the leadership of Jos Mourinho. The first ground of this investigation is the complexity paradigmatic perspective, as it is understood in the work of Edgar Morin. We present Jos Mourinho as a soccer coach and a leader, offering an account of his professional course, from anonymity to the stardom where he currently moves. For an understanding of the phenomenon of leadership, specifically the effectiveness of the leadership of Jos Mourinho, this research appeals to a diversified theoretical corpus. Under the paradigmatic perspective of complexity, which shapes the inquiry and establishes the relationships between the diverse theoretical bodies, we use the theory of emotional intelligence, an important set of studies into group dynamics as well as the most recognized theories on the phenomenon of leadership from the theory of the great man to neo-charismatic approaches, situational and contingent analyses, among other theories. We also present an account of the state of the art in research themes directly relevant to this investigation, such as complexity and leadership and complexity and emotions. Our analysis of the work and leadership of Jos Mourinho focuses, among other pieces, two interviews, one with Jos Mourinho himself and the other one with Rui Faria, Mourinhos assistant coach at Chelsea FC. In the analysis presented in Chapter 9, which takes an important part of the dissertation, we put forward arguments, notions and concepts that seem to us relevant and sensible for an in depth understanding of the leadership of Jos Mourinho. Among these, as an example, we describe and analyse the operationalization of the perspective of complexity in leadership, as it is applied by Jos Mourinho; we identify and characterize the notion of globality, a consequence of the application of the complexity perspective to the leadership work by Mourinho; we analyze the notion of dominant, introduced by Mourinho himself, suggesting its complex conceptual framing; we suggest and explore as well the concept of leaders way, as a notion indicating the typical, and necessary, behaviour for leadership to be recognised as such; while accessing the actions of Jos Mourinho at the light of the diverse theories on leadership previously introduced, not forgetting its complexity framing, we suggest that the models with which his leadership has more affinities are the charismatic one and the transformational one. Finally, we consider that this investigation might open new ways for research into leadership, both in communication and organisational fields, namely in what respects the transferability of Jose Mourinho professional approaches and practices to organizations in general.

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NDICE INTRODUO.................................................................................................................. CAPTULO 1 QUEM JOS MOURINHO: BIOGRAFIA E IMAGEM PBLICA............... 1.1. Quem Jos Mourinho?.......................................................................................... 1.1.1. Mourinho: Um Caso Meditico................................................................ 1.1.2. Em Constante Desafio.............................................................................. 1.1.3. S a Vitria Interessa............................................................................... 1.1.4. Estrelas e Annimos: Todos So o Grupo............................................... 1.1.5. Razo e Emoo....................................................................................... 1.1.6. Jos Mourinho, O Carismtico................................................................. 1.2. Jos Mourinho: a Imagem Pblica.......................................................................... 1.2.1. Disciplina ................................................................................................. 1.2.2. Autoridade ............................................................................................... 1.2.3. Motivao ................................................................................................ 1.2.4. Determinao............................................................................................ 1.2.5. Frontalidade ............................................................................................. 1.2.6. Risco ....................................................................................................... 1.2.7. Participao ............................................................................................. 1.2.8. Grupo ....................................................................................................... 1.2.9. Confiana ................................................................................................. 1.2.10. Anlise ................................................................................................... 1.2.11. Valores .................................................................................................. 1.2.12. Comprometimento ................................................................................. 1.2.13. Workahoolic .......................................................................................... 1.2.14. Empatia ................................................................................................. 1.2.15. Envolvimento ........................................................................................ 1.2.16. Humor ................................................................................................... CAPTULO 2 SOB A PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE............................................. 2.1. Para um Novo Paradigma do Conhecimento: Complexidade................................ 2.2. Genoma Humano e Complexidade......................................................................... 2.3. Dois Paradigmas: Reducionismo e Complexidade................................................. 2.4. Complexidade e Ser Humano.................................................................................. 1 5 6 8 9 12 14 15 18 20 20 21 22 22 23 23 24 24 25 26 26 28 28 29 30 31 32 33 37 39 48

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CAPTULO 3 EMOES E INTELIGNCIA EMOCIONAL.............................................. 3.1. Os Estudos de Damsio......................................................................................... 3.2. Liderana Primal ........................................................................ ........................... 3.3. Domnios da Inteligncia Emocional..................................................................... 3.4. Estilos de Liderana Emocional ............................................................................ CAPTULO 4 O GRUPO E O COMPORTAMENTO GRUPAL.......................................... 4.1. O Grupo: o Todo........................................................................ ............................ 4.2. A Cultura do Grupo................................................................................................. 4.3. Tipos de Grupos...................................................................................................... 4.4. Formao e Desenvolvimento do Grupo................................................................. 4.5. Os Papis no Grupo................................................................................................. 4.6. O Conflito no Grupo............................................................................................... CAPTULO 5 TEORIAS SOBRE LIDERANA................................................................. 5.1. Teoria do Grande Homem....................................................................................... 5.2. Teorias Comportamentais....................................................................................... 5.2.1. Os Estudos de Ohio................................................................................. 5.2.1. Os Estudos de Michigan.......................................................................... 5.3. Teorias Contingenciais........................................................................................... 5.3.1. Modelo de Fiedler .................................................................................. 5.3.2. Teoria Situacional de Hersey e Blanchard.............................................. 5.3.3. Teoria da Troca Lder-Membro............................................................... 5.3.4. Teoria do Caminho-Objectivo................................................................. 5.3.5. Modelo do Lder-Participao................................................................. 5.4. Teorias Neocarismticas......................................................................................... 5.4.1. Teoria da Atribuio de Liderana.......................................................... 5.4.2. Teoria da Liderana Carismtica............................................................. 5.5. Liderana Transaccional e Liderana Transformacional....................................... 5.6. Liderana de Nvel 5.............................................................................................. CAPTULO 6 INVESTIGAO EM CURSO EM COMPLEXIDADE E LIDERANA E EMOES E LIDERANA........................................................................

55 57 63 66 67 72 73 75 78 80 86 89 91 97 99 100 102 103 103 105 107 108 109 111 111 111 114 117

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6.1. Panorama da Investigao Actual........................................................................... 6.1.2. Emoes e Liderana............................................................................. 6.1.3. Complexidade e Liderana ...................................................................

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CAPTULO 7 DISCUSSO EXPLORATRIA: ENTREVISTA A JOS MOURINHO........... 130 7.1. Complexidade/Todo ............................................................................................... 131 7.2. Cultura/Grupo ........................................................................................................ 7.3 Aprendizagem/Treino ............................................................................................. 7.4. Lder/Liderana ...................................................................................................... CAPTULO 8 DISCUSSO EXPLORATRIA: ENTREVISTA A RUI FARIA.................... 8.1. Complexidade/Todo .............................................................................................. 8.2. Cultura/Grupo ........................................................................................................ 8.3. Aprendizagem/Treino ............................................................................................ 8.4. Lder/Liderana ...................................................................................................... 137 141 143 149 150 152 155 158

CAPTULO 9 ANLISE ................................................................................................. 162 9.1. A Operacionalizao da Complexidade por Mourinho .......................................... 163 9.2. Emoes, Empatia e Inteligncia na Liderana de Mourinho................................. 171 9.3. Cultura e Dinmica de Grupo no Trabalho de Mourinho....................................... 9.4. Teorias sobre Liderana Aplicadas ao Trabalho de Mourinho .............................. 9.5. Concluses ............................................................................................................. 9.5.1. Ideias Fortes ............................................................................................ 9.5.2. A Anlise como Um Todo....................................................................... CONCLUSO .................................................................................................................. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................... 180 189 211 212 217 231 236

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Introduo

O caso de sucesso que constitui a carreira de Jos Mourinho, actual treinador do Chelsea FC, de Londres, para ser compreendido plenamente no pode ser encarado, ou estudado, apenas na vertente de treinador de futebol. As vitrias que j conquistou e foram muitas num curto espao de tempo colocaram sobre ele os holofotes da fama a nvel mundial. Muitos perguntam hoje quem Jos Mourinho, um homem que para alm de um bem sucedido treinador de futebol igualmente um lder que arrasta e influencia milhes de pessoas por todo o mundo. Jos Mourinho uma figura pblica de expresso mundial. Ele no apenas o treinador da equipa de futebol do Chelsea. Ele o lder que muitos seguem, admiram e respeitam: muitos jovens ambicionam ser como ele, muitos homens gostariam de ser como ele, muitos profissionais gostariam de aprender a ser mais como Jos Mourinho. Mourinho um lder e os seus actos e as suas palavras fazem sonhar legies de admiradores. Na investigao que a seguir apresentamos propusemo-nos estudar a dimenso da liderana no trabalho de Jos Mourinho. Vamos tentar perceber o homem e o profissional, simultaneamente como treinador de futebol e como lder de profissionais de alto rendimento. Nesta dissertao mais do que tentar objectivar factos, estabelecer modelos de liderana, ou determinar relaes de causa-efeito, que supostamente nos conduzam a verdades ou a leis universais, interessa-nos observar atentamente, seguir pistas, descobrir caminhos, estudar detalhadamente e reflectir teoricamente sobre a complexidade do que encontrarmos. Interessa-nos compreender melhor o fenmeno que investigamos, o qual, estudado desde h muito, no temos dvidas que imensamente complexo, subtil e de enormes desafios. Nesta investigao interessa-nos, tambm, promover o desenvolvimento de um tipo de conhecimento que aceita a complexidade do mundo e a mudana em que a aco humana sempre est envolvida e se envolve. Deste ponto de vista interpretivista, procuramos descrever e entender a eficcia da liderana de Jos Mourinho a partir de teorias e perspectivas vrias, capazes de nos proporcionarem um entendimento coerente, profundo e detalhado do fenmeno em causa. Desta forma, conforme prtica estabelecida nas cincias sociais e humanas, optmos por levar a cabo uma investigao interpretivista, assente num corpo terico considerado apropriado para o objecto em estudo e numa

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recolha qualitativa de dados, fundamentalmente constituda mas no apenas pelas entrevistas apresentadas nos captulos 7 e 8. A presente dissertao est organizada em nove captulos. No Captulo 1 faremos uma apresentao de Jos Mourinho. Traaremos o seu percurso e mostraremos Mourinho atravs de Mourinho, ou seja, pelas suas aces e pelas suas palavras iremos oferecer uma imagem global daquilo que fez de Mourinho aquilo que ele hoje e que justifica a sua ascenso ao mais alto patamar do mundo do futebol e que, por simpatia, acabou por fazer dele um homem conhecido em todo o planeta. No Captulo 2 iniciaremos a fase terica da dissertao. O objecto desta investigao a liderana de Jos Mourinho. A perspectiva de fundo que modelar o nosso trabalho a da complexidade. tambm esta perspectiva paradigmtica que h muitos anos influencia o trabalho de Jos Mourinho. Assim, referiremos vrias teorias e noes no seio da perspectiva da complexidade, nomeadamente, os estudos desenvolvidos por Edgar Morin e por Ilie Prigogine. Tentaremos ir um pouco mais alm, apresentando trabalho de outros pensadores, filsofos e tericos sociais, que tanto tiveram influncia no estudo e no trabalho de Mourinho, como o caso Manuel Srgio, como recorrentemente tm tido influncia em estudos de cincias sociais sobre a perspectiva da complexidade, como, por exemplo, o caso do alemo Martin Heidegger (1889-1976). O projecto do mapeamento do genoma humano servir-nos- como ilustrao da necessidade de um pensamento complexo para o estudo do homem, bem como das implicaes da aco humana. Procuramos nesta dissertao apresentar um texto integrado na sequncia do nosso propsito de realizar um estudo integrado onde desde o seu inicio, e medida que formos apresentando as teorias que iremos utilizar, faremos aproximaes ilustrativas ao trabalho de Mourinho. Trata-se de uma prtica que iremos seguir ao longo do nosso estudo. O Captulo 3 apresenta um dos blocos de teorias que constituir um dos fundamentos da anlise do trabalho de Jos Mourinho. Trata-se da teoria da inteligncia emocional, tal como foi desenvolvida e proposta por Daniel Goleman. Nesse captulo faremos uma primeira aproximao a Mourinho como lder emocionalmente inteligente. No Captulo 4 apresentaremos uma reviso sobre a investigao levada a cabo nas ltimas dcadas sobre o fenmeno dos grupos. Pode, de resto, dizer-se que no possvel falar da perspectiva da complexidade sem se falar no todo, como um grupo constitudo por partes.

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O trabalho de Jos Mourinho decorre no seio de um grupo de profissionais de alta competio que ele lidera. desta forma que neste captulo iremos introduzir o conceito de grupo e rever a investigao que sobre ele tem recado numa perspectiva de cincias sociais. Apresentaremos os fundamentos do conceito de grupo, bem como noes sobre o seu desenvolvimento e maturidade, as formas como nasce, se desenvolve e se mantm, e ainda diversas tipologias que tm sido propostas para o seu estudo. No Captulo 5 focaremos as teorias que descrevem e explicam o fenmeno da liderana. Ser um olhar simultaneamente histrico e evolutivo, j que iremos apresentar as diversas teorias sobre a liderana desde os primeiros estudos propostos, em meados do sculo passado, at aos dias de hoje, sob critrios que se prendem com o seu prprio desenvolvimento, na medida em que aqueles estudos se foram tornando relevantes e respondendo s necessidades da sociedade. No Captulo 6 procuramos apresentar um ponto de situao em termos da investigao actual sobre o fenmeno da liderana. Porque Jos Mourinho assenta o seu trabalho e a sua liderana nas teorias da complexidade, com um forte apelo inteligncia emocional, procurmos essencialmente papers recentes que ligassem a liderana complexidade, bem como a liderana s emoes. No Captulo 7 reentramos no caso de estudo da nossa dissertao. No captulo 1 fizemos uma primeira apresentao de Jos Mourinho e do seu trabalho. Este captulo inteiramente constitudo por uma entrevista a Jos Mourinho, na qual, pretendemos ouvir na primeira pessoa as razes das suas escolhas e decises, da sua prtica e da sua sistematizao. Procurmos discutir exploratoriamente os principais aspectos do trabalho de Mourinho sobre os quais recai a nossa investigao: a complexidade e o seu trabalho; a forma como lida emocionalmente com os seus liderados; a sua noo de grupo e o funcionamento dos seus grupos; e o seu estilo de liderana. O Captulo 8 prossegue a discusso exploratria acima iniciada. Se no captulo anterior obtivemos o olhar do lder sobre as questes acima enunciadas, j neste captulo, seguindo a mesma metodologia a de discutir exploratoriamente os temas referidos pretendemos obter uma viso de liderado, de um dos seguidores de Jos Mourinho. Apresentamos assim a entrevista que realizmos a Rui Faria, adjunto no Chelsea FC, o brao direito de Mourinho na equipa tcnica.

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Finalmente no Captulo 9 apresentamos a nossa anlise do fenmeno em estudo: a liderana de Jos Mourinho. Sob a perspectiva da complexidade, com base nas teorias introduzidas, sobre as emoes, o funcionamento dos grupos e a liderana, analisaremos a aco e o trabalho concreto de Jos Mourinho, focando principalmente o material introduzido no captulo 1 e nas entrevistas apresentadas nos captulos 7 e 8. Gostaramos de salientar que sendo a perspectiva da complexidade a nossa primeira base terica, a que por isso modela toda a investigao, termos procurado ao longo da dissertao nada separar em demasia, no separar perdendo a noo do todo, e tudo pensar em conjunto nas suas relaes e complementaridade, nada por isso descontextualizando. Desta forma se devero entender as ligaes, as conexes e os enquadramentos que formos tentando fazer e apontar ao longo da dissertao, porque como adiante mencionaremos, citando Hegel no contexto da epistemologia em que assentamos esta investigao, a verdade o todo.

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CAPTULO 1 QUEM JOS MOURINHO: BIOGRAFIA E IMAGEM PBLICA

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1.1. Quem Jos Mourinho? Parece ser hoje consensual que Jos Mourinho, o treinador de futebol do Chelsea FC, se tornou, num curto espao de tempo, num case study um pouco por todo o mundo. Com 43 anos de idade e apenas 6 anos como treinador principal de futebol conta j com um currculo invejvel e talvez no menos surpreendente. Nas seis temporadas que j efectuou apenas em quatro delas escolheu, preparou e conduziu equipas do princpio ao fim da poca, j que nas duas primeiras esteve apenas dois meses no Benfica e seis meses na Unio de Leiria. Nas restantes quatro pocas liderou as equipas de futebol profissional do FC Porto e do Chelsea FC e se s estas levarmos em conta, pelos motivos apontados, pode afirmar-se que Jos Mourinho o treinador de maior sucesso da actualidade em todo o mundo. O seu currculo s pode mesmo ser comparado a alguns treinadores com largos anos de experincia em grandes clubes europeus. Assim, em termos curriculares e no contando aqui com os numeros prmios pessoais j ganhos Jos Mourinho colecciona, na sua sala de trofus, dois Campeonatos nacionais de Portugal, uma Taa de Portugal, duas Supertaas portuguesas, uma Taa UEFA e uma Taa da Liga dos Campees e chegado h duas pocas a Inglaterra j conquistou a Taa da Liga inglesa e tambm dois campeonatos. O velho mito britnico segundo o qual ningum no primeiro ano naquele pas consegue vencer a sua mais importante prova acabou com Jos Mourinho. Vamos, pois, neste captulo introduzir Jos Mourinho. Iremos traar em termos genricos o seu percurso enquanto treinador principal de uma equipa de futebol. Como se lanou e como se afirmou na rota do sucesso so introdues que importa fazer para um entendimento do que se pretende nesta dissertao: o estudo, de um ponto de vista de cincias da comunicao, das prticas de interaco grupal e de liderana de Jos Mourinho. O sucesso do actual tcnico do Chelsea no passa, de facto, despercebido a ningum. Nas televises hoje um lder de audincias, os jornais aumentam as tiragens sempre que Mourinho noticia de primeira pgina e os produtos aos quais o treinador empresta a sua imagem so sucessos de venda. A constatao que, por agora, se faz que a imagem de Jos Mourinho extravasou, em larga escala, o campo desportivo. Ele transformou-se num fenmeno global a ponto de ser hoje o rosto promocional de vrias marcas de nome mundial, como sejam os casos da Adidas, da American Express e da Samsung, entre

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outras. Portanto, no desporto ou nos negcios, Mourinho uma referncia mundial seja no plano estrito da liderana seja no campo comunicacional mais vasto. The million dollar question: a que se deve este impacto comunicacional? Apenas aos resultados conseguidos nos jogos de futebol? Parece-nos que a resposta ter de ser dada pela negativa. Tanto mais que se nos afigura pacifico que Jos Mourinho no apenas visto como um treinador de futebol de sucesso. Eventualmente, ser assim no mundo do futebol mas fora dele profissionais de todo o mundo tm os olhos postos nos seus modelos de interaco, de gesto e de liderana, o que o torna, tambm, um gestor e um lder de sucesso. Deste modo, Mourinho, objecto de estudo e de apetncia pelas empresas de marketing e publicidade e a sua imagem utilizada no apenas como um treinador de sucesso mas como um homem de sucesso. Nos spots publicitrios da American Express reala-se a segurana e a determinao do profissional, bem como a sua capacidade de antecipao; na campanha publicitria da Samsung compara-se Jos Mourinho ao famoso agente secreto James Bond 007, sugerindo vertentes comuns no carcter de ambos: homens destemidos, arrojados e decididos. Desta forma, parece-nos claro que hoje em dia existe um convencimento geral de que o sucesso de Jos Mourinho no se deve apenas aos seus conhecimentos tcnicos sobre futebol. A forma como comanda e gere uma equipa de futebol considerada, igualmente, determinante para os resultados que vai obtendo. A revista Exame, na sua edio de Abril de 2005, dedica um artigo a Jos Mourinho com o ttulo: 18 Lies de Campeo. No ante-ttulo podemos ler: Pode o modelo de gesto de Jos Mourinho ser aplicado em empresas fora do mundo do futebol? Sim. O seu livro tem ensinamentos para todo o tipo de gestores. No procurando, por agora, abordar a prtica profissional de Jos Mourinho em toda a sua extenso, pretendemos neste captulo introdutrio apontar de uma forma clara o que se considera serem os principais pontos fortes do treinador do Chelsea enquanto lder e comunicador, ou seja, aquilo que lhe d fora para o exterior bem como a fora interior que consegue transmitir aos seus jogadores. A forma como Jos Mourinho se relaciona com estes ltimos, enquanto catalizador de motivaes, sejam elas de grupo ou individuais, e como interage emocionalmente, gerindo as fraquezas e os pontos fortes do grupo, so elementos que tm levado, no poucas vezes, as suas equipas a superarem-se. Emerge aqui

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a inteligncia emocional de Jos Mourinho, a qual aliada sua organizao profissional e sua eficcia comunicacional tem conduzido a uma concluso generalizada: Mourinho consegue transformar jogadores quase banais em super campees e grupos quase banais em super grupos.

1.1.1. Mourinho: Um Caso Meditico O treinador de futebol Jos Mourinho hoje um caso raro de popularidade no mundo inteiro. A razo que justifica esta constatao assenta nos resultados atingidos em seis anos de actividade profissional como treinador principal de futebol, bem como na sua imagem de liderana. O que Mourinho ganhou catapultou-o para o estrelato e fez dele um dos maiores protagonistas do futebol da actualidade. Mourinho conseguiu aliar sua performance desportiva uma forma diferente de estar no futebol, com uma linguagem diferente e uma imagem diferente. Os resultados desportivos, a sua aco enquanto lder e o seu discurso conjugados com o marketing fazem de Jos Mourinho o que ele hoje, ou seja, um homem de sucesso reconhecido internacionalmente. Como profissional do futebol, Mourinho joga em todos os campos: dentro e fora das quatro linhas. Joga tambm de formas diversas: com a razo e com a emoo. Num e noutro caso Jos Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem do fenmeno futebolstico e tenta colmatar os seus pontos fracos e, no caso dos adversrios, tenta anular os respectivos pontos fortes e explorar as suas fraquezas. A chave do seu sucesso tem sido, tambm, atribuda sua capacidade de criar grupos coesos e motivados, capazes de ir buscar foras aos prprios antagonistas e de descobrir em si foras desconhecidas explorando-as at ao limite. Tambm a empatia com todos os que consigo trabalham algo de muito importante e com certeza determinante. Desta forma, fcil de entender que o trabalho de Jos Mourinho junto do seu grupo no se resume s componentes fsico-tcticas dos atletas. Mourinho , tambm, um condutor de homens e, como tal, um comunicador nato, um gestor de emoes e um explorador de recursos. O trabalho mental uma das suas maiores armas. A comunicao eficaz com o grupo bem como as relaes interpessoais constituem algumas das ferramentas essenciais do seu trabalho.

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1.1.2. Em Constante Desafio Jos Mourinho era aos 36 anos um profissional bem instalado na vida. Era treinador adjunto de um dos maiores e mais conceituados clubes do mundo, o Barcelona FC, e gozava de prestgio reconhecido no seu pas e em Espanha, o pas onde trabalhava. Em grande parte pela visibilidade que o clube naturalmente lhe dava, Mourinho ia aos poucos sendo reconhecido na Europa do futebol. No final da temporada de 1999/2000 quase que abruptamente e com mais um ano de contrato, Jos Mourinho decidiu rescindir com o Barcelona. Para trs deixava um salrio que, pela sua idade e experincia reduzidas, seria difcil de igualar em qualquer outro clube. Deixava tambm uma posio cmoda e estvel como treinador adjunto, cujo trabalho sem presses lhe permitiria continuar a desenvolver as suas ideias e a sua aprendizagem. S que, a avaliar pela sua deciso, dinheiro e estabilidade no so tudo. Mesmo com mulher e dois filhos menores um deles com menos de um ano de idade Jos Mourinho optou por desafiar o futuro. No tenho medo nenhum do futuro. Tenho uma grande confiana em mim e nos meus conhecimentos. Sei que posso fazer a diferena e que posso vencer (Mourinho in Loureno 2004: 25), e desta forma Jos Mourinho fez as malas e saiu de Barcelona. Nessa altura a sua mente era dominada por um sentimento nico: ser treinador principal numa equipa de futebol. Mesmo que calculados, correu riscos, mas estava absolutamente determinado conforme o comprovam as palavras da altura na sua biografia autorizada:Julgo que possvel, mais tarde ou mais cedo, encontrar um clube de segunda linha. () Tenho um projecto para entregar a quem me quiser contratar, tenho ambies e objectivos bem definidos. Levo comigo um documento orientador que ser a garantia do meu trabalho. Por outro lado, se o Barcelona me deu algo e muito me deu, com toda a certeza foi visibilidade no meu prprio pas. () Quem me quiser contratar j est familiarizado com o meu trabalho, pelo que no sou um completo desconhecido. No far, pois, uma aposta totalmente no escuro porque sabe o que eu quero, s no sabe se eu vou ou no conseguir colocar em prtica as minhas ideias. De qualquer forma no quero pensar nisso agora (Mourinho in Loureno 2004: 27).

E desta forma Mourinho entrou para as estatsticas do desemprego em Portugal. De uma vida de sonho em Barcelona, num pice, passou a desempregado em Setbal. Est bom de ver que a questo econmica no se lhe colocava com especial acutilncia. Antes, era na questo profissional que mais e maiores riscos corria. Jos Mourinho estava, na altura,

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longe de ser a figura pblica que hoje. Por outro lado ainda no tinha dado provas a ningum de que poderia, com algum sucesso, ser treinador principal numa equipa de futebol. Por fim, constatando que no mundo do futebol vale bem o ditado quem no aparece esquece, Jos Mourinho no se podia dar ao luxo de estar muito tempo afastado. Pelas razes apontadas, Mourinho correu alguns riscos profissionais. Porm, a sua forte determinao, no temendo o futuro em nome de algo em que acreditava profundamente, fizeram-no dar, talvez, o primeiro grande passo para conquistar tudo o que conquistou at hoje. E de facto, volvidos quatro meses da sua sada de Barcelona, Jos Mourinho encontrava-se no relvado do estdio da Luz a treinar, como tcnico principal pela primeira vez na sua vida, o Benfica. Sobre a forma como Jos Mourinho encara o futuro, sem receios de maior, uma outra situao, ocorrida cerca de ano e meio depois de se ter iniciado no Benfica e que tanta tinta fez correr nos jornais portugueses ajuda a conhecer o seu carcter. Depois de uma disputa acesa entre Benfica e FC Porto para a sua contratao, em Janeiro de 2002, foi a equipa do norte que levou a melhor. O FC Porto estava longe dos seus tempos ureos e o presidente do clube portista, Jorge Nuno Pinto da Costa, tentava devolver ao clube o passado recente, ou seja, tentava voltar s vitrias. Pinto da Costa optou ento por demitir o treinador, Octvio Machado, que no conseguira mais do que um desesperante 6 lugar ao iniciar-se a segunda volta do campeonato. Para alm disso o clube no conseguia ser campeo ia para trs anos consecutivos, performance de que s havia registo semelhante nos idos anos 70. Pela primeira vez, em cerca de 20 anos como dirigente portista, Pinto da Costa comeava tambm a ser contestado pela massa associativa. Pinto da Costa apostou ento em Jos Mourinho, com a certeza de que aquela temporada, em termos de uma vitria no campeonato, estava definitivamente comprometida, mas com a esperana que melhores pocas viriam. A debilidade desportiva que o clube vivia na altura pareceu, tambm, no ter atemorizado Jos Mourinho, o novo treinador do clube do Porto. No dia de apresentao imprensa Jos Mourinho deixou o pas desportivo atnito com tanta sobranceria... Estvamos, no dia 23 de Janeiro de 2002 quando, numa sala cheia de jornalistas, Jos Mourinho disse o seguinte: para o ano vamos ser campees. O que o levava Mourinho, logo no primeiro dia no clube, a desafiar os adversrios com a certeza de que o FC Porto at j podia, com ano e meio de antecedncia, encomendar as faixas de

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campeo? Uma razo muito simples: tratava-se de comunicar com eficcia para todo o clube, desde os jogadores aos adeptos.Jos Mourinho quis dar a entender aos portistas, logo no primeiro dia, que estava no clube para ganhar. () Ficou, desta maneira, iada a bandeira portista no mastro principal das Antas e Mourinho quis, desde logo, toda a nao azul e branca unida volta da nova bandeira (Loureno 2004: 99).

E no ano seguinte o FC Porto ganhou o Campeonato Nacional, a Taa de Portugal e a Taa UEFA. Mourinho prometeu menos do que aquilo que conseguiu. Parece claro que Jos Mourinho no teme comprometimentos. Parece tambm correcto afirmar que o faz em prol do seu grupo de trabalho. Manter um grupo unido, com uma misso de futuro e, principalmente, sem presses, parece ser a sua forma de actuao. Nem que para isso tenha de chamar a si todas as presses exteriores. Mas Jos Mourinho tambm gosta disso. Por exemplo, Mourinho sabia que o seu regresso ao Estdio da Luz, enquanto treinador de uma equipa adversria do Benfica, justamente o FC Porto, no seria pacfico. Estava agora do lado do inimigo n1 e os adeptos benfiquistas no lhe perdoavam a traio. Por isso afirmou:[S]abia claramente que quando entrasse em campo teria, a sim, uma estrondosa recepo pela negativa, claro est. Por isso fiz questo de entrar sozinho, antes da equipa. O estdio estava cheio quando pisei a relva da Luz pela primeira vez no dia 4 de Maro de 2003. Faltava ainda cerca de hora e meia para o incio do jogo. Foi fantstico. Vivi uma sensao linda. Nunca fui um jogador de primeiro nvel para sentir, por exemplo, o que o Figo sentiu quando regressou a Barcelona e portanto no tinha bem a noo do que seria 80 mil pessoas a assobiar-me e a apupar-me. Julgo que quando somos mentalmente fortes o efeito que as pessoas buscam, de intimidar e perturbar, sai completamente furado. Ao invs, do fora e alento para prosseguir o caminho. Senti-me a pessoa mais importante do mundo ao ouvir em unssono o coro de assobios e vaias com que os adeptos benfiquistas me receberam no Estdio da Luz. Ao mesmo tempo, ao descarregarem em cima de mim, acabaram por poupar a equipa, o que tambm foi importante (Mourinho in Loureno 2004: 149).

Tal como j referimos, a liderana de Jos Mourinho no se esgota na vertente interna da sua organizao. Ela passa para o exterior e muitas vezes produz um efeito boomerang, ou

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seja, a mensagem passada para o exterior de forma a muito claramente ser eficaz no interior. Atente-se na conferncia de imprensa em Barcelona, em Fevereiro de 2005, na vspera do encontro da primeira-mo dos oitavos de final da Liga dos Campees Europeus. Os jornalistas, ingleses e espanhis, estavam ansiosos por saber qual a equipa que Jos Mourinho faria alinhar. O tcnico portugus queria fazer passar a mensagem de que o Barcelona, para ele, no tinha segredos e isso era uma arma poderosa com que os seus jogadores poderiam contar. Era uma forma de os motivar ao saberem que o lder tinha tudo previsto, com base em total informao sobre o seu opositor. Ao mesmo tempo, o adversrio tambm se desmotivaria ou amedrontaria ao saber que no poderia contar com o factor surpresa. Mourinho aproveitou a pergunta dos jornalistas sobre a constituio da sua equipa para fazer a sua jogada. A resposta apanhou todos os jornalistas de surpresa de tal modo que ela correu mundo. Jos Mourinho nomeou ento todos os jogadores do Chelsea que iriam entrar em campo no dia seguinte frente ao Barcelona. E quando os jornalistas pensaram que a resposta estava dada, enganaram-se. Mourinho disselhes ainda que lhes ia poupar trabalho Sem se deter disse de imediato a constituio da equipa que Frank Riijkard, treinador do Barcelona, iria fazer jogar contra si no dia seguinte. E quando os jogadores entraram em campo pde constatar-se que nem num s nome Jos Mourinho se havia enganado.

1.1.3. S a Vitria Interessa Nos nossos dias, com especial e compreensvel acutilncia no mundo do desporto, o instinto competitivo fundamental para se vencer. Um exemplo, de um passado j algo distante, pode ilustrar o sentido competitivo de Jos Mourinho, para quem s a vitria interessa. O autor desta dissertao amigo de Jos Mourinho desde a infncia. Na nossa terra natal, Setbal, todos os anos se realiza um torneio de futebol de salo que faz sonhar os jovens que praticam a modalidade. o maior e mais visvel torneio da cidade e disputa-se em Junho. Quis o sorteio que, nas meias-finais se defrontassem Jos Mourinho e eu prprio, naquela que, consideravam os observadores, seria a final antecipada do torneio. A cinco minutos do fim do jogo ainda se mantinha o empate a zero. Mourinho pega ento na bola

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e arranca num sprint a alta velocidade. O ltimo dos jogadores adversrios, at chegar ao guarda-redes, era eu, ironia do destino, o seu amigo em campo. Jos Mourinho em velocidade passou por mim, saltando-me por cima das pernas que tentavam cortar a bola. Um simples toque t-lo-ia desequilibrado e feito cair. Teria sido falta, mas no teria sido como foi golo. S que um simples toque, velocidade a que Mourinho seguia, poderia t-lo magoado seriamente. A minha deciso, instintiva obviamente, foi no fazer falta, no correndo assim o risco de o lesionar. No final, j depois do banho tomado, encontrmo-nos para seguir juntos para casa. Jos Mourinho no perdoou a minha deciso... Para ele, ali dentro do campo, no havia amigos mas sim adversrios. Por uma m deciso minha, todo um grupo havia sido prejudicado e todo um outro grupo, neste caso o dele, havia sido beneficiado. O grupo que foi prejudicado o meu no tinha nada a ver com as relaes entre ns, argumentava Mourinho. Se a situao ocorrida durante o jogo fosse inversa ele teria tomado a deciso de fazer falta, confidenciou-me. O caso aconteceu tnhamos ambos 22 anos. Na altura passou-me despercebido... Hoje ajuda-nos a compreender que a competitividade de Mourinho no nasceu ontem Passadas cerca de duas dcadas a situao, repetiu-se. Mourinho continuou a ser um dos protagonistas, o outro que mudou. Nas meias-finais da Taa UEFA, na poca de 2002/2003, o FC Porto defrontou a Lazio de Roma, considerado, ento, o grande favorito vitria naquela competio. Quis o sorteio que o primeiro jogo fosse no Estdio das Antas, no Porto. Naquele que Mourinho considerou o melhor jogo da poca do FC Porto, a dois minutos do final os portistas venciam por 4-1, um resultado excelente no fosse o adversrio marcar ainda um golo, o que j no seria to positivo. Ir a Roma com uma diferena de trs golos seria fantstico, com uma diferena de dois seria apenas bom.Faltava um ou dois minutos para o final quando, numa jogada de contra-ataque, a bola sai pela linha lateral mesmo junto a mim. De imediato o argentino Castroman apanha a bola e prepara-se para servir um companheiro seu. Estava no enfiamento da linha limite da nossa grande rea e apercebi-me do perigo. A nossa defesa estava descompensada, ou seja, dois avanados italianos para dois defesas meus, pelo que sobrava, de imediato, o Castroman, que logo se integraria na manobra ofensiva. O 4-1 era um resultado excelente mas o 4-2 j no era assim to bom. Ele (Castroman) estava mesmo junto a mim e eu puxei-o para que no fizesse de imediato a reposio da bola em jogo. O argentino reagiu, o rbitro viu e fez o que tinha de fazer: expulsoume e mostrou um carto amarelo ao jogador da Lazio. evidente que foi feio. No foi

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uma situao instintiva da minha parte, por isso, reconheo a justia da minha expulso. No tive fair play, para alm de ter intervido directamente no jogo. Logo na altura eu pedi desculpa ao Castroman e ele a sorrir respondeu-me apenas: Mister, futebol (Mourinho in Loureno 2004: 156).

1.1.4. Estrelas e Annimos: Todos So o Grupo Uma equipa de futebol da dimenso do Chelsea FC composta por numeras estrelas. No h um nico jogador do Chelsea excepo do guarda-redes suplente, Carlo Cudiccini que no seja internacional pelo seu pas. Sob o comando de Jos Mourinho esto nomes famosos do futebol mundial como Frank Lampard, John Terry, Didier Drogba, Michael Ballack ou Andrei Schevschenko, entre outros. Para Jos Mourinho so nomes importantes no mundo do futebol, mas o nome mais importante mesmo Chelsea FC. S em torno deste emblema acontece o xito, justamente, porque para o treinador o importante, a verdadeira estrela, mesmo o grupo. E o grupo enquanto todo vale mais que a soma das partes. O grupo supera-se na soma de todas as partes. No entanto o grupo no comea nem acaba nos jogadores da sua equipa. Ele vai muito para alm disso. Todos os que fazem parte da estrutura profissional de futebol constituem o grupo de Jos Mourinho, e todos eles, nos seus respectivos lugares, so importantes para o sucesso final do grupo. Esta uma imagem que Mourinho no prescinde de fazer passar a todos os que trabalham com ele. No nos poderemos, pois, admirar com episdio a seguir descrito. Estvamos no incio da temporada de 2004/2005. Jos Mourinho tinha chegado ao clube ingls h cerca de um ms. O clube encontrava-se na pr-temporada e os primeiros 30 dias foram de trabalho em Stamford Bridge, o estdio do Chelsea. Cedo o tcnico portugus percebeu que a relva se encontrava em condies magnficas. Essas condies permitiramlhe excelentes treinos, que tiveram como prmio a primeira vitria num torneio realizado nos Estados Unidos, onde o cabea de cartaz era o AC Milan, recentemente coroado Campeo Europeu. A taa foi levantada, em campo pelo capito John Terry, mas o seu destino j estava traado. Em reconhecimento ao trabalho do tratador da relva de Stamford Bridge, pelos treinos proporcionados equipa, e que Jos Mourinho considerou um dos obreiros da vitria, a Taa, uma vez chegada a Londres, foi directa para a casa daquele profissional do Chelsea. Aquele homem, de quem ningum, excepo de Mourinho, se

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havia lembrado quando o Chelsea conquistou o trofu, teve nos dias seguintes os seus merecidos momentos de glria. Os jornais britnicos no deixaram passar em claro o destino do trofu. Nunca um tratador de relva havia dado tantas entrevistas, havia visto tantas fotografias suas nos jornais e, muito provavelmente e mais importante, nunca havia sentido o seu trabalho to reconhecido. Estas histrias servem, numa anlise necessariamente breve, para que se possa compreender a dimenso do profissional em questo. Trata-se de episdios escolhidos para de uma forma abrangente ilustrar o carcter do profissional, evidentemente intimamente ligado ao carcter do ser humano Jos Mourinho.

1.1.5. Razo e Emoo Os jogadores foram fantsticos e mostraram o grupo que somos, mostraram o quanto crescemos como organizao; os adjuntos so unidos, no h ciumeiras, sabem para quem trabalham e o que devem fazer, tm carcter moldado ao do lder, foram a minha voz, disse Jos Mourinho depois de se ter sagrado campeo ingls, pelo segundo ano consecutivo ao servio do Chelsea.1 Jos Mourinho um treinador especial, e os seus resultados comprovam isso mesmo. Enquanto tcnico est em permanente actualizao, em estudo constante. Como profissional tem aquilo a que na gria futebolstica se chama instinto de treinador. Alm disso, ou talvez relacionado com isso mesmo, Jos Mourinho um excelente comunicador e um lder eficaz. Quando concebe de raiz uma equipa, o treinador do Chelsea tem um perfil traado para os profissionais que pretende. Quer jogadores jovens, pobres e sem ttulos ganhos. Pretende, desta forma, motivao e ambio. No conceito de grupo de Mourinho o individual tem pouco valor se no trabalhar em prol do colectivo. O grupo o que mais conta e o individual entendido na perspectiva de melhorar a actividade do grupo.

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In revista DEZ, de 16 de Abril de 2005.

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Na sua liderana Mourinho centralizador, mas no dispensa as opinies dos diversos elementos do seu grupo de trabalho. frontal e preconiza a justia como o caminho para atingir a lealdade e disciplina nos vrios graus hierrquicos. Jos Mourinho motiva os membros das suas equipas ao discutir com eles o seu desempenho; vai de encontro natural necessidade de afiliao; e informa-os sempre que toma decises. Desta forma, Mourinho comunica com eficcia com os jogadores e com os outros profissionais do seu grupo. Qualquer jogador tem sempre a porta do gabinete de Jos Mourinho aberta. A este nvel de comunicao interpessoal, Jos Mourinho um lder particularmente atento. Nos casos de indisciplina Jos Mourinho parece igualmente gerir o seu grupo com mestria. Em dois casos, tratou os envolvidos de formas eficazes, mas totalmente diferentes. Num caso a que adiante nos referiremos com maior detalhe, o benfiquista Maniche, em 2000, foi relegado para a equipa B depois de ter sido expulso num encontro do campeonato portugus e posteriormente ter mostrado um evidente desinteresse nos treinos. Num outro caso passado com Vtor Baa, guarda-redes do FC Porto, levantou um processo disciplinar e afastou-o, sumariamente, do grupo depois de uma violenta discusso no balnerio, onde Mourinho achou ter havido desrespeito para com o lder do grupo. A comunicao, no caso de Maniche, foi informal e, de certa forma, paternal. No caso de Baa foi autoritria, sem margem para discusses, porque o papel que cada um desempenha no grupo e as suas prprias personalidades so diferentes e Mourinho sabia muito bem disso. Contudo, em ambos os casos, ao fim de relativamente pouco tempo, aqueles jogadores estavam de volta equipa, e com resultados excepcionais. Servem estes dois exemplos para apontar a importncia e a influncia de Jos Mourinho, quer ao nvel do desempenho do grupo e da motivao individual, quer no plano do exerccio da sua autoridade. Talvez por estes motivos, Jos Mourinho s contrata para as suas equipas jogadores evoludos culturalmente e com opinies prprias (Loureno 2004: 27), para assim poder levar a cabo o seu mtodo de treino, aprendizagem e motivao a que chamou descoberta guiada e que mais adiante descreveremos com algum detalhe. Importa, por agora, destacar a importncia da comunicao interpessoal e intra-grupal a sua coerncia e consistncia interna, mesmo na diversidade que muitas vezes apresenta na forma como Jos Mourinho lidera o seu grupo de trabalho.

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A maneira como Jos Mourinho usa a razo para compreender as suas emoes e as do seu grupo de trabalho, e assim tomar decises racionais em ambientes muitas vezes intensamente emocionais, faz com que muitos o apontem como um mestre na difcil tarefa de conduzir e motivar um grupo de profissionais. Nos exemplos anteriormente apontados nota-se a conjugao de uma comunicao constante e frontal com os seus jogadores, bem como um equilbrio constante entre razo, isto , competncia e capacidade de anlise, e emoo, isto , relaes humanas e motivao pessoal. Atente-se na carta escrita por Mourinho, no incio da poca de 2002/2003, aos jogadores do FC Porto.[E]spero que as frias te tenham oferecido o que delas esperavas e que te tenham recarregado as baterias da motivao e da ambio. Ser campees tem de ser sempre o nosso objectivo. Um objectivo dirio, uma motivao consistente e permanente uma luz que tem de guiar o nosso trajecto a partir de agora. () A nossa relao pessoal, no tenho dvidas, vai crescer rapidamente e a nossa equipa vai continuar a evoluir. () Eu e a Administrao acreditamos em ti. precisamente por isso que aqui ests. () Ser titular nunca ser uma palavra correcta, porque o equilbrio qualitativo enorme. Preciso de todos porque o trabalho longo e difcil. Todos sero opo e todos sero um contributo para a equipa. Todos vs precisam uns dos outros. Somos uma EQUIPA. S h esprito de equipa, diz o Andr numa frase que considero fantstica, quando um atleta no convocado est a ver o jogo no camarote e no aceita que algum critique um colega seu. Eu acrescento: motivao + ambio + esprito de equipa = sucesso (Loureno 2003: 128).

Por estas palavras se pode entender a preparao psicolgica que Jos Mourinho exerce sobre os seus jogadores logo desde o primeiro dia de trabalho. Tambm se entende facilmente o rumo do seu pensamento ao fazer depender o sucesso da conjugao de trs premissas: motivao, ambio e esprito de equipa. Sublinha-se ainda a interdependncia dos elementos perante o grupo (incluindo-se aqui a ele prprio) quando afirma que todos os elementos dependem uns dos outros. Por fim deixa bem vincada a sua liderana, ainda que duma forma indirecta, ao dizer que acredita no jogador, por isso ele faz parte do grupo por si escolhido. Para alm de recursos humanos, Mourinho gere tambm de uma forma muito interessante a sua imagem. Quer para dentro do grupo quer para a opinio pblica, o tipo de comunicao que efectua obriga reaco. Para o exterior Mourinho passa a imagem de arrogante, compra ou provoca guerras e em caso algum se atemoriza. Jos Mourinho aprendeu

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que a indiferena dos outros no lhe til. Desta forma um estudioso das reaces humanas e procura nos outros foras para si mesmo e para o seu grupo. Desencadeada esta espcie de processo de guerrilha, Mourinho controla as suas emoes e explora as do adversrio em seu proveito. Pode bem dizer-se que transforma fraquezas alheias em foras suas. Alm disso, e como amigo de longa data do treinador actual do Chelsea e conforme ao esprito descritivo deste captulo devemos acrescentar que desde h muito para mim pacifico que Jos Mourinho tem uma especial, e talvez rara, capacidade para lidar com a presso. Ser mesmo talvez de dizer, possivelmente sem exagerar por a alm, que a presso exterior no o atinge; que 80 mil pessoas vaiando-o no Estdio da Luz, antes do encontro com o Benfica, no s no o incomodaram como o motivaram e fizeram-no entrar em campo primeiro que os seus jogadores, poupando-os assim ao rudo ensurdecedor das primeiras vaias dos adeptos benfiquistas. Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem dos seus jogadores, gere as suas emoes e utiliza-as em proveito do grupo. Busca, de igual modo, toda a informao possvel sobre os seus adversrios, atravs de um estudo exaustivo, transmite-a ao grupo e com a colaborao dos que consigo trabalham estuda as melhores formas de anular os pontos fortes e explorar as fraquezas dos adversrios. Mourinho muito mais do que um tcnico de futebol. Se o , ento como Manuel Srgio referiu (in Loureno 2004: prefcio), ele um novo treinador e no apenas um treinador novo. Ele um lder, um visionrio, e um comunicador nato. Sabe qual o caminho a seguir para fazer a diferena. Enquanto gestor de pessoas, de emoes, de afectos e interaces, o cunho pessoal de Mourinho parece de facto ter um lugar nico no mundo do futebol.

1.1.6. Jos Mourinho, O Carismtico A revista Viso, edio de 4 de Abril de 2005, escrevia como subttulo de uma reportagem sobre o treinador do Chelsea: beira de ser campeo, no primeiro ano em Inglaterra, Sir Mourinho tem o mundo a seus ps. Em Londres amado e odiado. Seja pelas vitrias do Chelsea, a arrogncia, o sobretudo ou a barba de trs dias. assim Jos Mourinho, uma figura pblica que no deixa ningum indiferente. Para isso o treinador rene vrias caractersticas que o tornam nico na sua profisso.

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Na sociedade meditica em que vivemos, cada vez mais os membros das diversas comunidades tendem a identificar-se, a seguir e at a apaixonar-se por aqueles que se apresentam como lderes, nos mais diversos sectores das sociedades. Alis, esta linha de identificao e de paixo com e pelo lder, foi h muito indicada por Sigmund Freud (1856-1939), como o substrato mais profundo do fenmeno grupal. O carisma, lato sensu, pode indicar-se como uma atraco irracional, isto , sem necessidade de uma explicao racional, por parte das massas por algum que lhes inspira poder e confiana, amor ou dio. Ora Jos Mourinho hoje um homem carismtico, gostese ou no dele. Ele gera sonhos, imitaes e inspiraes, provoca dios e paixes como poucos. Seja pelas suas vitrias, pela sua arrogncia aparente, pela barba geralmente com 3 dias por fazer... ou pelo seu sobretudo cinzento que tanta tinta fez correr nos jornais ingleses , pelas suas declaraes frontais e por vezes provocatrias, Mourinho est sempre nas luzes da ribalta. Jos como conhecido em Inglaterra , em tantos cantos do mundo, o homem que adolescentes e adultos gostariam de ser. Porqu? Talvez porque conseguiu um sucesso mundial aos 40 anos de idade, porque famoso, porque tem bom porte, uma personalidade vincada e porque sabe o que quer e para onde vai. Depois, desde a sua imagem s suas palavras e actos, Mourinho comunica de uma forma mpar todo este manancial de virtudes para o mundo exterior. Desta forma, parece-nos apropriado fechar esta subseco com a histria que, por ventura, mais celebrizou Jos Mourinho em todo o mundo. A histria que o baptizou como The Special One. No dia da sua apresentao como treinador do Chelsea FC, Jos Mourinho compareceu aos jornalistas ingleses, em Londres, para a habitual conferncia de imprensa. Todos queriam saber como que um portugus de 41 anos iria gerir, comandar e treinar uma das maiores e mais mediticas equipas de futebol do mundo. Quem era Jos Mourinho? Como chegara ali? O que pretendia? Como iria adaptar-se a uma realidade nova e seguramente difcil? Como reagiria presso? Enfim, muitas e pertinentes questes teriam de ser colocadas a este portugus com fama de arrogante, aparentemente muito seguro de si, mas que sem dvida pouco ou nada conhecia da realidade britnica. Todas as perguntas foram feitas e uma resposta teve dimenso mundial: Because Im a Special One. Esta resposta foi dada por Jos Mourinho com base nos resultados conseguidos pelo FC Porto, sob o seu comando, nas duas temporadas anteriores, conquistando a Taa UEFA e a Liga dos Campees. Jos Mourinho afirmou, ento, que se o futebol ingls, o Chelsea e

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os seus jogadores eram especiais, ele, com toda a certeza tambm o era, por aquilo que tinha ganho, pela forma como tinha ganho e, acima de tudo, no clube onde tinha ganho, seguramente, um clube com pouca dimenso econmica quando comparado com os grandes da Europa. Ainda assim, em dois anos seguidos, ele rivalizou com os grandes da Europa e ganhou. Isso tornava-o diferente, special, de tal forma que no teve qualquer hesitao em admiti-lo perante uma plateia de jornalistas ingleses. No dia seguinte as primeiras pginas dos jornais britnicos fizeram-se em unssono: Im a Special One. Hoje, em toda a Inglaterra e, provavelmente, grande parte do mundo pelo menos desportivo , quando se fala no The Special One todos sabem que se est a falar de Jos Mourinho.

1.2. Jos Mourinho: a Imagem Pblica Entramos assim na sua segunda parte deste captulo, dedicada imagem pblica de Jos Mourinho. Caracterizado que est ainda que em traos largos o percurso e o sucesso de Jos Mourinho, passamos agora a outra fase deste captulo. Procuraremos nas pginas seguintes enquadrar Jos Mourinho face ao que dele se comenta com mais regularidade. Ao olharmos os jornais, ao vermos a televiso, ao ouvirmos a rdio, ou at mesmo nas conversas de rua, quando se fala de Mourinho existem sempre algumas ideias que se sobrepem e que so, de certa forma, consensuais para a generalidade das pessoas, quer se goste ou no da figura em causa. Da nossa experincia pessoal, e como bigrafo de Jos Mourinho, recolhemos aqui alguns dos traos que geralmente lhe so atribudos.

1.2.1. Disciplina Reconhecidamente, Jos Mourinho conduz os seus grupos de trabalho com mestria. Numa equipa de futebol, recheada de estrelas, no fcil gerir ambies, emoes e motivaes, e torna-se problemtico resolver conflitos. O treinador portugus enfrenta-os com autoridade e disciplina. Num caso que acima j fizemos referncia, quando treinava o Benfica, aps Maniche ser expulso num jogo com o Boavista, e depois de outros incidentes, Mourinho interpelou o jogador com frontalidade:

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Das duas uma: ou tens um problema de cabea e precisas de o resolver ou tens um problema fsico e precisas, na mesma, de arranjar soluo. Por isso vais treinar para a equipa B e quando achares que ou a cabea ou o fsico j no tm problemas vens ter comigo (Loureno 2004: 44).

Passados quatro dias Maniche dirigiu-se ao tcnico, pediu-lhe desculpas e depois de pagar uma multa de 1000 euros foi reintegrado na equipa principal do Benfica. Poucas semanas depois Maniche era o capito benfiquista e foi, posteriormente, um dos elementos essenciais na equipa do FC Porto com Jos Mourinho e da seleco nacional. Chegou ainda a jogar pelo Chelsea sob o comando do treinador portugus.

1.2.2. Autoridade Depois de passar pelo Benfica, Jos Mourinho assumiu o comando tcnico da Unio de Leiria. No estgio de pr-temporada, na localidade de Tbua, quando todos os elementos do grupo ainda se estavam a conhecer surgiu uma situao que, para os jogadores, esclareceu cabalmente o papel de cada entidade e de cada profissional na estrutura leiriense. Num sbado de sol os administradores do clube marcaram um encontro de futebol com os jornalistas que acompanhavam a equipa. No tinha acabado o treino da equipa de Mourinho e j alguns patres da Unio de Leiria realizavam, do outro lado do campo, exerccios de aquecimento com vista ao amigvel que se seguiria.Mourinho parou imediatamente a sesso e, gritando para os atletas que iniciavam o aquecimento, mandou-os abandonar o campo. A surpresa foi geral, tanto de um lado como de outro. Os jogadores e restante equipa tcnica ficaram mudos espera que a bronca estalasse. Os elementos da SAD da Unio de Leiria entreolharam-se sem acreditar muito bem que estavam a ser expulsos por um seu subordinado. Por mais trs vezes, com voz firme e grossa, Jos Mourinho gritou para o outro lado do campo a palavra RUA. Um deles ainda retorquiu: Mas porqu Mister? Voc est a treinar a e ns estamos aqui, qual o problema?. Mourinho manteve-se inaltervel no seu propsito: Eu depois explico-vos. Agora, rua!!!. A indeciso deu lugar obedincia e o campo ficou totalmente livre para a Unio de Leiria continuar a treinar (Loureno 2004: 82).

Mais tarde Mourinho explicou aos administradores as razes da sua atitude: aquele era, na altura, um local de trabalho, no de diverso e por esse motivo s o seu grupo de trabalho

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poderia estar ali; tudo o resto s ajudava desconcentrao, algo que Mourinho no permite. Deram-lhe razo e prometeram que no se repetiria uma cena idntica.

1.2.3. Motivao Ao servio do FC Porto, em vsperas de um importante Porto/Benfica, Jos Mourinho deparou-se com uma entrevista do ento Presidente do Benfica, Manuel Vilarinho, na qual afirmava ter sonhado que a sua equipa iria ganhar, por 3-0, no Estdio das Antas.Quando Vilarinho tornou pblico o seu sonho de imediato pensei: a est a provocao que eu preciso para agitar o orgulho dos meus jogadores. De imediato mandei fazer uma fotocpia da entrevista do presidente do Benfica e coloquei-a na parede do balnerio das Antas durante toda a semana, para que ningum se esquecesse do sonho de Vilarinho. Aos jornais disse apenas que na nossa casa ningum nos ganha por 3-0. E fomos para o jogo de alguma forma espicaados (Loureno 2004: 105).

A verdade que o jogo terminou com uma vitria do FC Porto por 3-2.

1.2.4. Determinao Com apenas dois meses de treinador principal, Jos Mourinho sentiu que o seu futuro poderia no passar pelo Benfica. Em incio de carreira, a vida no clube da Luz no foi fcil. Face a mudana de um presidente que lhe dava toda a confiana (Vale e Azevedo) para outro que lhe retirava toda a confiana (Manuel Vilarinho), Mourinho no temeu o futuro e arriscou. Devia ou no continuar no Benfica? Devia ou no definir de uma vez por todas o seu futuro com a direco do clube? Devia ou no esperar que o despedissem? Devia ou no, simplesmente, bater com a porta? A caminho de casa, na auto-estrada que liga Lisboa a Setbal, Mourinho tomou a deciso que iria abalar o pas desportivo. Agora vai ser o tudo ou nada, referiu. Manuel Vilarinho recebeu Jos Mourinho no gabinete presidencial do Estdio da Luz. O presidente j sabia do que se tratava pelo que no era necessria qualquer introduo prvia ao assunto. Na reunio valeu o pragmatismo. Jos Mourinho no se deixou tentar pelas palavras de Vilarinho. Estava demasiado fragilizado por tudo o que lhe tinha acontecido at ento na Luz. Agora ou era preto no branco ou era nada.

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E deu nada! (Loureno 2004:64). Nesse mesmo dia Jos Mourinho rescindiu contrato com o Benfica e no mais voltou a treinar a equipa da Luz.

1.2.5. Frontalidade Na gesto de Mourinho no tm lugar jogadas subterrneas. A comunicao frontal vista como algo imprescindvel ao bom funcionamento do grupo. Um exemplo de frontalidade o caso da dispensa de Maniche da equipa principal do Benfica, acima referido. Nos grupos de Jos Mourinho todos devem comunicar entre si e dizer o que tm a dizer, sem constrangimentos e com total lealdade. Assim, nos minutos que antecederam o seu primeiro treino ao servio do Benfica, Mourinho prometeu aos seus jogadores que o mote era olhos nos olhos: ofereci-lhes frontalidade total. Quis, assim, que todos tivessem a certeza de que quando o treinador tomasse decises sobre os jogadores do Benfica, fossem elas quais fossem, eles seriam sempre os primeiros a saber e por meu intermdio (Loureno 2004: 39). Ainda no Benfica um outro exemplo ilustra de forma cabal a frontalidade da actuao de Jos Mourinho. No incio do ano de 2001, Mourinho treinava a Unio de Leiria quando surgiu o interesse do Benfica em contrat-lo. Toni havia sido despedido e o clube de Lisboa necessitava de um novo tcnico. Mourinho foi o escolhido e iniciaram-se as negociaes. Existia, no entanto, um entrave. Jesualdo Ferreira estava no clube como treinador adjunto e Mourinho no contava com ele na sua equipa de trabalho. Os dirigentes do Benfica insistiam, porm, na integrao do tcnico na equipa de adjuntos de Mourinho. Na reunio a posio de Jos Mourinho ficou bem clara: Das duas uma: ou digo directamente, olhos-nos-olhos, a Jesualdo Ferreira que no quero trabalhar com ele, para que, claramente, entenda que sou eu que no quero trabalhar com ele, ou ento nada feito e no vou para o Benfica (Mourinho in Loureno 2004: 93). E por esta e outras razes Mourinho acabou mesmo por no chegar a acordo com o Benfica.

1.2.6. Risco Jos Mourinho no tem medo de desafiar o futuro. Para isso arrisca, provoca e compromete-se. No ano de 2003, ao servio do FC Porto, a sua equipa perdeu, em casa,

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nos quartos de final da Taa UEFA, por 1-0, com o Panathinaikos da Grcia. No final do encontro, Mourinho viu o treinador adversrio, Srgio Markarian, a festejar como se j tivesse vencido a eliminatria. No gostou e de imediato se dirigiu ao seu opositor:No estejas aos saltos que isto ainda no acabou. Logo de seguida passou pelos adeptos portistas, nas bancadas do Estdio das Antas e fez-lhes um sinal como que a dizer tenham calma, ainda temos uma palavra a dizer... () Quando chegou aos balnerios, depois de ter visto a festa grega, deparou-se com o inverso. Os seus jogadores estavam tristes, frustrados e de cabea baixa. Logo ali Jos Mourinho quis deixar as coisas bem claras. Isto no acabou e eu disse isso, mesmo agora, ao treinador deles. Ns vamos l dar a volta eliminatria e se algum aqui no acredita que possvel ganhar l e passar s meias-finais que o diga j, porque fica c e eu vou para a Grcia com outro (Loureno 2004: 151).

Quinze dias depois o FC Porto ganhou o jogo por 2-0, qualificando-se para a meia-final da Taa UEFA, competio cuja edio desse ano havia de ganhar.

1.2.7. Participao Para o actual treinador do Chelsea FC todas as opinies contam. O lder, para ele, s adquire a liderana de facto e de direito se esta for conquistada racional e emocionalmente. Da que nos seus mtodos de trabalho todos sejam chamados a participar e todos fiquem com a certeza de que contriburam para as decises finais que envolvem o grupo. Desta forma, os jogadores so responsabilizados quer pelas vitrias quer pelas derrotas.O trabalho tctico que promovo no um trabalho em que de um lado est o emissor e do outro o receptor. Eu chamo-lhe a descoberta guiada, ou seja, eles descobrem segundo as minhas pistas. Construo situaes de treino para os levar por um determinado caminho. Eles comeam a sentir isso, falamos, discutimos e chegamos a concluses (Mourinho in Loureno 2004: 26).

1.2.8. Grupo Um conceito de grupo coeso e solidrio algo de que Jos Mourinho no prescinde. A ideia de imediato transmitida a todos os seus colaboradores: ningum est acima do grupo. Assim, no estgio de pr-temporada do FC Porto, em 2002, ao fim de alguns dias, o

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treinador portista deu, finalmente, uma noite de folga aos seus jogadores. Marcou-lhes a hora de regresso ao hotel e esperou por eles.Fiquei completamente surpreendido, no s por terem aparecido muito antes da hora marcada, mas tambm por terem chegado todos ao mesmo tempo. Perguntei, ento, ao Jorge Costa, que ia a passar por mim: - Jorge, o que que se passou aqui? - Fomos todos juntos e temos aqui um grande grupo Mister. difcil exprimir o que sente um treinador ao ouvir o capito falar assim. Vinte e tal homens que estavam juntos h cinco dias, na sua primeira folga optaram por estar juntos, jantar juntos e confraternizar juntos. Era o meu grupo que estava a nascer (Mourinho in Loureno 2004: 123).

E nasceu, de tal forma, que nesse ano o FC Porto ganhou tudo o que tinha para ganhar: Campeonato, Taa de Portugal e Taa UEFA.

1.2.9. Confiana Jos Mourinho naturalmente um homem confiante. Acredita sempre na vitria e faz questo de passar esse estado de esprito para os que consigo trabalham. S acreditando na vitria se pode ganhar. Na temporada de 2002/2003 o jogo que decidia a vitria portista no campeonato estava agendado para o Estdio na Luz, com o Benfica. Na preparao do encontro Mourinho, treinador do Porto, surpreendeu os seus jogadores.Para moralizar os meus jogadores no sou um treinador que opte pelos gritos de ordem tipo: vamos a eles, at os comemos, somos os melhores, etc., etc., . Nada disso. No que respeita ao jogo com o Benfica fiz passar a mensagem de superioridade total sobre o adversrio. Eu sabia que o Camacho treinador benfiquista -, sempre que estava a perder, trocava o Zahovic pelo Sokota. Ora, quando iniciei os treinos fi-lo exactamente no sentido de preparar a minha equipa contra as investidas atacantes do Sokota. At que um jogador, meio surpreendido me disse: Mas, Mister, eles no jogam com o Sokota, jogam com o Zahovic!!!. Era o que eu queria ouvir para de imediato responder: Jogam com o Zahovic quando esto a ganhar. Contra ns vo ter

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de jogar com o Sokota, que a opo de Camacho quando esto a perder (Mourinho in Loureno 2004: 147-8).

O facto que o FC Porto chegou Luz e ganhou o encontro por 1-0. Camacho, o treinador benfiquista, foi mesmo obrigado a colocar Sokota em campo.

1.2.10. Anlise Nada no seu trabalho Jos Mourinho quer deixar ao acaso. Mourinho no parte para um jogo sem conhecer ao pormenor o adversrio. Saber os terrenos que pisa essencial ao bom desempenho do seu grupo. Na final da Liga dos Campees, contra o Mnaco, na Alemanha, em 2004, a anlise do adversrio foi mais longe que nunca.Na preparao do jogo comemos pelo visionamento de muitos jogos efectuados pelo nosso adversrio. Eu j sabia tudo sobre o Mnaco mas queria que os meus jogadores tambm soubessem e sobretudo que eles vissem com os prprios olhos (). Para alm destas informaes globais, fizemos algo que nunca tnhamos feito. Cada jogador ficou com um DVD individualizado para ver e analisar. A ttulo de exemplo dei ao Paulo Ferreira um DVD com todas as aces individuais e colectivas do Rothen, que era o ala do Mnaco que iria jogar em cima dele. Os centrais tinham informaes sobre o Morientes e o Prso. Enfim, cada jogador tinha o seu DVD para estudar. Depois discutimos em conjunto a informao individual de cada um. Foi desta forma que ficmos a conhecer o Mnaco e considero que a equipa francesa no tinha segredos para ns (Mourinho in Loureno 2004: 221).

O FC Porto venceu a final da Liga dos Campees por 3-0.

1.2.11. Valores Mourinho tem regras, assentes em valores, permanentemente definidas. Um dos seus exerccios, quase dirio, no deixar que essas regras e por consequncia, os valores nos quais elas assentam resvalem por caminhos que podero desviar o grupo dos objectivos pretendidos.

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No final da poca de 2002/2003, depois da equipa do FC Porto ter ganho tudo, ou seja, a Liga portuguesa, a Taa de Portugal e a Taa UEFA, Jos Mourinho temeu uma mudana de atitude por parte dos seus jogadores:[A]ps o sucesso da primeira poca, em que ganhmos tudo o que havia para ganhar, tive medo da segunda [poca]. Tive medo relativamente abordagem da poca por parte dos jogadores, sobretudo a nvel mental, psicolgico, ao nvel da motivao, do comportamento, do crescimento no bom ou mau caminho, no estatuto de alguns jogadores. () No era com medo que se deitassem mais tarde ou que bebessem mais copos, era dentro do prprio jogo. () Ento decidi que aquela disciplina que nos caracterizava na primeira poca, dentro daquele padro de jogo, no se podia perder e que o rigor tctico devia aumentar. () Assim, aproveitei o seu maior rigor em termos de disciplina tctica, em termos de posies e de funes, para trabalhar muito mais volta do 1x4x4x22. Porque esta estrutura, da forma como eu a concebo, muito mais tctica que o 1x4x3x33. Muito mais tctica! () um sistema partida desequilibrador () um sistema que tem coisas ms. E, ao obrigar os meus jogadores a jogar neste sistema tctico, obrigo-os a ser naturalmente disciplinados, rigorosos e concentrados (Mourinho in Oliveira et al 2006: 177-8).

E de seguida para melhor se compreender o raciocnio do treinador Mourinho concluiu: [A]cho que quem sentir que precisa de disciplina na sua equipa, em vez de ir procura dos aspectos disciplinares nus e crus (pontualidade, rigor, etc.), deve ir antes pelo rigor tctico, pela procura de uma determinada disciplina tctica. assim que eu consigo uma disciplina global. L est, a partir da minha ideia de jogo e da sua operacionalizao, consigo atingir os outros objectivos todos. Contextualizando todas as minhas preocupaes (Mourinho in Oliveira et al 2006: 178).

Nessa temporada, com um modelo de jogo mais rigoroso, mais difcil e de menor qualidade (pelo menos na opinio de Jos Mourinho), o FC Porto conquistou a Liga portuguesa e a Liga dos Campees Europeus.

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Esquema tctico utilizado no futebol que traduz a disposio dos jogadores dentro do campo. No caso a equipa joga com o guarda-redes, 4 defesas, 4 mdios e 2 avanados. Aqui a equipa joga estruturada com o guarda-redes, 4 defesas, 3 mdios e 3 avanados.

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1.2.12. Comprometimento A temporada de 2001/2002 trouxe a Jos Mourinho uma realidade nova. Pela primeira vez na sua carreira escolheu e preparou, de incio, uma equipa. Foi ela, justamente, a Unio de Leiria. Desconhecendo quase por completo a maioria dos seus jogadores tentou, logo na fase inicial, criar empatia com o seu grupo e ao mesmo tempo motiv-lo. Para atingir os seus fins comprometeu-se, deixando claro que a sua motivao era elevada: No tenho dvidas que mais tarde ou mais cedo eu vou para um grande. Quando eu for, alguns de vocs vm comigo (Mourinho in Loureno 2004: 86). Ficou a promessa e tambm a esperana que a todos atingiu, porque a qualquer um poderia tocar.Nunca especifiquei quem ia comigo porque dependeria sempre do clube para onde eu fosse. Sabia, por exemplo, que o Benfica precisava de um defesa esquerdo e, portanto, o Nuno Valente estava certo que iria comigo. O Benfica precisava igualmente de um extremo e o Maciel tambm sabia que se eu fosse para a Luz ele iria comigo, enfim, eles sabiam que mais tarde iriam comigo. Esta situao constituiu um factor de motivao para os jogadores e, ao mesmo tempo, criou uma certa cumplicidade entre ns. Do tipo vocs ajudam-me a chegar l que eu depois levarei alguns de vs. Foi desta forma que eu me comprometi perante o grupo. Assim mesmo (Mourinho in Loureno 2004: 86-7).

Alguns meses depois Mourinho saiu da Unio de Leiria para ir treinar um grande, o FC Porto. No final da poca contratou dois jogadores do seu anterior clube: Nuno Valente e Derlei. Mais tarde foi a vez de Maciel seguir os passos dos seus companheiros.

1.2.13. Workahoolic Jos Mourinho s desliga do trabalho quando est em frias. Durante um ms em todo o ano no se pensa nem se fala sobre futebol. Sai de frias, desliga o telefone e fica inacessvel. No que toca aos restantes onze meses do ano, Jos Mourinho s vive para a sua profisso e s no pensa nela quando dorme... A este respeito, ilustrativo um comentrio da sua mulher:Mesmo em casa ele est sempre a falar ou a pensar no futebol. O jogo nunca lhe sai da cabea. Depois dos jogos, nas Antas vamos geralmente os dois jantar fora. No incio do jantar comea por me perguntar como foi o meu dia e o dia dos filhos. A

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meio do jantar j est a falar de futebol e na sobremesa pega num pedao de papel e comea a fazer a equipa e a escrever a tctica para o jogo seguinte. Ele assim e no h volta a dar-lhe. Vai ser sempre assim (Matilde Mourinho in Loureno 2004: 166-7).

1.2.14. Empatia O mundo do futebol um mundo de crenas e supersties. Se a crena positiva o mesmo j no se poder dizer da superstio. Jos Mourinho no e no se cansa de o repetir supersticioso. Diz mesmo que a superstio prejudicial ao ambiente de trabalho e, por consequncia, ao desempenho do grupo. Ao combat-la no s tenta resolver o problema em si como pretende ir mais longe. No caso concreto que a seguir se descreve, Jos Mourinho criou novas e mais fortes empatias, especialmente com as vtimas da superstio...Tnhamos, ento, o embate FC Porto Denislizpor para fazer esquecer o Funchal4. Mas outro desafio esperava o grupo. Vencer Silvino5, o p frio6. Tratou-se de mais uma provocao de Jos Mourinho, tal era a confiana na recuperao da equipa e num resultado positivo contra a equipa turca. Normalmente Silvino Louro no vai para o banco a no ser nas competies europeias onde permitida a presena de mais um elemento tcnico. Assim, Silvino acompanhou muito poucas vezes Jos Mourinho no banco, sendo que, nas duas ltimas que o tinha feito com o Sparta de Praga para a Liga dos Campees, em 2001/02 e com o Polnia Varsvia para a Taa UEFA, j na temporada 2002/03 a equipa perdeu sempre. Silvino ficou logo com a alcunha de p frio e dela custou a livrar-se. No dia antes do jogo o treinador do FC Porto fez o anncio: Silvino vai estar no banco a meu lado. Logo algumas almas mais tementes comearam a assobiar para o ar, desconfiadas e assustadas com a reaco que os deuses do infortnio poderiam provocar dada a presena do treinador de guarda-redes do FC Porto no banco. Jos Mourinho sorriu e manteve-se firme na sua posio: tenho tanta certeza que vou ganhar amanh que o p frio vai para o banco. O prprio Silvino mostrou-se assustado com a situao, at por saber que existiam pessoas

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O jogo do Funchal, com o Martimo, tinha constitudo a primeira derrota da poca 2002/2003 de Jos Mourinho no FC Porto. Quatro dias depois jogaria com a equipa turca do Denislizpor, em jogo referente primeira-mo dos oitavos-de-final da Taa UEFA. 5 Treinador de guarda-redes do FC Porto na equipa tcnica comandada por Jos Mourinho. 6 Na gria futebolstica significa azarado.

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desagradadas com a ideia. Jos Mourinho manteve-se inabalvel na deciso. Ganhmos por 6-1 e o p frio, a cada golo que marcvamos, dava-me toques no brao e fazia um sorriso sarcstico como que a dizer: v, agora sempre quero ver quem que vai ter coragem de me continuar a chamar p frio. E a alcunha de Silvino ficou por a (Loureno 2004: 145-6).

Silvino Louro mantm-se na equipa tcnica de Jos Mourinho no Chelsea FC.

1.2.15. Envolvimento A poca de 2003/2004 ficou marcada, logo em Outubro, por uma grave leso de um jogador recm-chegado s Antas. Tratou-se de Csar Peixoto que, em Frana, frente ao Olympique de Marselha havia contrado a pior leso que se pode ter enquanto jogador profissional de futebol7. A nica sada, nestes casos, a sala de operaes. Pela importncia do processo, pela unio do grupo e talvez acima de tudo pelo homem, Jos Mourinho tomou uma atitude indita na sua vida. Vestiu a bata de mdico e foi para a sala de operaes.Enchi-me de coragem e estive presente. Achei que, tendo essa oportunidade, era importante para mim e para o Csar Peixoto estar presente. Pela minha parte, para perceber o contedo da operao e para poder ter uma aco mais activa na recuperao. Pela parte do Csar, porque julgo que importante para um jogador saber que tem a seu lado, numa altura muito difcil da sua vida, o treinador. No fundo estar ali significava dizer-lhe: cura-te que estamos tua espera. () Esta interveno cirrgica fez-me entender a dimenso daquele tipo de leso e ao mesmo tempo acabou por condicionar algumas das minhas atitudes futuras. Percebi que a presso que os treinadores sempre fazem, quer aos jogadores quer aos departamentos mdicos dos clubes, para acelerar as recuperaes, afinal, na maior parte das vezes, no faz sentido. A partir daquele momento passei a ser mais condescendente com as queixas dos jogadores e com as preocupaes dos mdicos (Mourinho in Loureno 2004: 197).

Infelizmente, poucos meses depois e pelo mesmo motivo, Mourinho voltaria sala de operaes. Desta vez com Derlei8.

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Csar Peixoto fez uma ruptura do ligamento cruzado anterior da perna esquerda. Em mdia este tipo de leso demora entre 6 a 8 meses a debelar o que equivale ao jogador no jogar mais na temporada. 8 Avanado do FC Porto na altura.

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1.2.16. Humor Pode a sua aparncia pblica sugerir o contrrio, mas para quem o conhece bem, como a famlia e os amigos mais chegados, no existem dvidas de que Jos Mourinho um homem com sentido de humor. Esta sua faceta espelhada em vrios campos da sua vida. O CD editado no final de 2005, no qual um artista irlands imita Jos Mourinho a falar no balnerio aos seus jogadores, terminando com o treinador do Chelsea a cantar, disso uma boa prova. Jos Mourinho no s afirmou publicamente ter gostado do trabalho como fez questo de conhecer pessoalmente o seu autor para lhe dar os parabns. Tambm no seu grupo Jos Mourinho aprecia a boa disposio. No final de um encontro entre a Unio de Leiria e o Benfica, estando Mourinho ao servio do clube da cidade do Liz, o seu adjunto Baltemar Brito foi motivo de muitos risos na viagem de regresso a Leiria. Mourinho fez questo de contar o episdio na sua biografia:No parque automvel os autocarros dos dois clubes estavam estacionados lado a lado. Como tm as mesmas cores prestavam-se a confuses. O Brito foi o primeiro a sair dos balnerios e entrou no autocarro que estava mais mo. Sentou-se logo no lugar do Jesualdo Ferreira9 e no se fez rogado quanto aos lanches que estavam em cima dos assentos. Comeou a comer o lanche que, por acaso, at devia ser o de Jesualdo Ferreira quando, de repente, comea a ver entrar a malta do Benfica. S teve tempo de baixar a cabea, pensar grande barraca e abandonar o autocarro em passo acelerado. evidente que viemos a rir e a brincar com o Brito de Torres10 at chegada a Leiria. Uma das frases era: J queres vir nesse autocarro, ?!! Tem calma Brito, no podes dar tanto nas vistas (Mourinho in Loureno 2004: 87).

Alguns meses depois Baltemar Brito e Jos Mourinho entrariam num outro autocarro para nele viajar durante dois anos e meio. O autocarro azul e branco do FC Porto. Neste captulo procurmos caracterizar e enquadrar o trabalho de Jos Mourinho, bem como traar em termos gerais, consensualmente aceites, a imagem pblica do actual treinador do Chelsea.

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Ao tempo Jesualdo Ferreira era o treinador principal do Benfica. Na poca de 2001/2002 a Unio de Leiria realizou os jogos em casa emprestada, em Torres Novas, devido ao facto de estar a construir um novo estdio em Leiria.

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CAPTULO 2 SOB A PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE

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Em bom rigor no podemos determinar com exactido quando comeou esta investigao. O autor desta dissertao conhece Jos Mourinho desde a infncia, o seu bigrafo oficial e tem um profundo conhecimento da sua maneira de ser e de pensar. Daqui resulta que partida para esta investigao j conhecamos, de alguma forma, alguns dos fundamentos tericos em que assentava o trabalho de Mourinho. De resto, Manuel Srgio, seu antigo professor e um dos tericos que mais influenciou Mourinho no caminho profissional por si seguido, em conversas prvias, j nos havia alertado para a perspectiva de trabalho que decidimos adoptar nesta dissertao. Desta forma, de um ponto de vista epistemolgico e metodolgico, o principal desafio que nos surgiu passou pelo enquadramento do estudo do trabalho de Jos Mourinho na perspectiva da complexidade. Em suma, so duas as razes que justificam o percurso escolhido e desenvolvido nesta dissertao: (i) a perspectiva da complexidade, nomeadamente no que respeita sua aplicao na motricidade humana (Srgio 2003, 2004), o ponto de partida do trabalho desenvolvido por Jos Mourinho; e (ii) a nossa intuio, que se foi tornado cada vez mais forte nestes ltimos anos, de que a perspectiva da complexidade seria a melhor forma para explicar o trabalho e o sucesso de Jos Mourinho.

2.1. Para um Novo Paradigma do Conhecimento: Complexidade So vrios os pensadores contemporneos que defendem podermos estar no final do sc. XX e incio do sc. XXI perante e emergncia de um novo paradigma cientfico: a complexidade ou, se quisermos, o pensamento complexo. O pensamento cientfico que dominou o sc. XX e que encontra no sc. XVII, com Descartes, o seu fundamento assenta em bases reducionistas, ou seja, num esquema de pensamento que preconiza a separao e a diviso das partes para, a partir do entendimento detalhado destas e da sua posterior juno, tentar explicar o todo. Edgar Morin (1921- ), pensador contemporneo cuja tese sobre pensamento complexo servir de perspectiva de fundo a esta investigao, chamou quele modelo de pensamento o paradigma da simplicidade. Para Morin este paradigma sustentado por trs princpios: disjuno, reduo e abstraco. No que disjuno diz respeito, Descartes fez a separao entre o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa extensa (res extensa) e ao faz-lo formulou o paradigma que iria

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dominar o pensamento europeu at aos nossos dias: o modelo sujeito/objecto. Deste raciocnio resultou a diferenciao entre filosofia e cincia. A partir de ento ficou clara a existncia de dois mundos: o mundo das ideias e o mundo das coisas, sendo que ambos no se tocariam e s aparentemente se poderiam complementar. neste contexto que Morin sugere a disjuno entre o conhecimento cientfico e a reflexo filosfica. Embora este pensamento modelo tenha permitido grandes avanos, no s do conhecimento cientfico como da reflexo filosfica, desde o sc. XVII at aos nossos dias, Morin no o isenta de graves deficincias:[U]ma tal disjuno, rareando as comunicaes entre o conhecimento cientfico e a reflexo filosfica, devia finalmente privar a cincia de se conhecer, de se reflectir e mesmo de se conceber a si prpria cientificamente. Mais ainda, o princpio da disjuno isolou radicalmente uns dos outros os trs grandes campos do conhecimento cientfico: a fsica, a biologia, a cincia do homem (Morin 2003: 17).

desta forma que enquadramos a reduo que decorre do trajecto inevitvel do complexo para o simples. Ao dividir, ou separar, o conhecimento cientfico retalhou o tecido complexo das realidades ao mesmo tempo que se tentava, como ideal do conhecimento cientfico descobrir, por detrs da complexidade aparente