Tesser,GelsonJoão

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

TESE DE DOUTORADO

TICA E EDUCAO: UMA REFLEXO FILOSFICA A PARTIR DA TEORIA CRTICA DE JRGEN HABERMAS

GELSON JOO TESSER

CAMPINAS SP 2001

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO TESE DE DOUTORADO

TICA E EDUCAO: UMA REFLEXO FILOSFICA A PARTIR DA TEORIA CRTICA DE JRGEN HABERMAS AUTOR: GELSON JOO TESSER ORIENTADOR: PEDRO L. GOERGEN

Este exemplar corresponde redao final da tese defendida por Gelson Joo Tesser e aprovada pela Comisso Julgadora.

Data: _____/_____/_____ Assinatura:____________________________Professor Doutor Pedro L. Goergen

Comisso Julgadora: _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________

2001

Catalogao na publicao elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educao/UNICAMP Bibliotecrio: Gildenir Carolino Santos CRB-8/5447

Tesser, Gelson Joo.T285e tica e educao: uma reflexo filosfica a partir da teoria crtica de Jrgen Habermas/Gelson Joo Tesser. Campinas, SP: [s.n.], 2001.

Orientador: Pedro L. Georgen. Dissertao (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao. 1. Habermas, Jrgen, 1929- 2. tica. 3. Educao. 4. Teoria crtica. 5. Filosofia. Georgen, Pedro L. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo. 01-0128-BFE

AGRADECIMENTOS Universidade Federal do Paran e Universidade Estadual de Campinas, pela oportunidade de realizao do curso.

Aos professores doutores Newton Aquiles Von Zuben e Dermeval Saviani, pelas sbias lies proferidas no decorrer das aulas do curso.

Ao professor doutor Pedro L. Goergen, pela dedicao, magnificncia nas aulas e orientao deste trabalho.

Aos colegas do curso, pela partilha do saber e pela convivncia acadmica.

A todos aqueles que, de alguma forma, contriburam para a elaborao deste trabalho.

Os filsofos no so capazes de transformar o mundo. O que ns necessitamos de um pouco mais de prticas solidrias; sem isso, o prprio agir inteligente permanece sem consistncia e sem conseqncias. No entanto, tais prticas necessitam de instituies racionais, de regras e formas de comunicao, que no sobrecarreguem moralmente os cidados e, sim, elevem em pequenas doses a virtude de se orientar pelo bem comum. O resto de utopia que eu consegui manter simplesmente a idia de que a democracia e a disputa livre por suas melhores formas capaz de cortar o n grdio dos problemas simplesmente insolveis. Eu no pretendo afirmar que iremos ser bem-sucedidos nesse empreendimento. Ns nem ao menos sabemos se dada a possibilidade desse sucesso. Porm, pelo fato de no sabermos nada a esse respeito, devemos ao menos tentar. Sentimentos apocalpticos no traduzem nada, alm de consumir as energias que alimentam nossas iniciativas. O otimismo e o pessimismo no so as categorias apropriadas a esse contexto.

HABERMAS, Jrgen. Passado como futuro. p. 94.

SUMRIO

RESUMO................................................................................................................... XI ABSTRACT............................................................................................................. XIII INTRODUO ............................................................................................................1 1 HABERMAS E SEU CONTEXTO HISTRICO ......................................................7 1.1 O FILSOFO HABERMAS ..................................................................................7 1.2 OBRAS...............................................................................................................14 1.2.1 A Repercusso da Obra de Habermas no Brasil.............................................21 1.3 HABERMAS VISTO POR ELE MESMO.............................................................23 1.4 CARACTERSTICAS GERAIS DA CONTEMPORANEIDADE...........................29 1.5 TENTATIVAS DE INTERPRETAO DA SOCIEDADE CONTEMPORNEA A PARTIR DA TICA HABERMASIANA................................................................36 2 A FILOSOFIA, A TEORIA CRTICA E A HERMENUTICA DE HABERMAS: PRIMEIRAS APROXIMAES............................................................................43 2.1 A FILOSOFIA .....................................................................................................43 2.2 A TEORIA CRTICA ...........................................................................................47 2.3 A HERMENUTICA ...........................................................................................49 3 FUNDAMENTOS A PRIORI DA TICA COMUNICATIVODISCURSIVA...........57 3.1 A FUNDAMENTAO IDEAL TRANSCENDENTAL PROPOSTA POR KARL-OTTO APEL....................................................................................................59 3.2 A FUNDAMENTAO DA TICA DO DISCURSO PROPOSTA POR JRGEN HABERMAS........................................................................................................64 4 A TICA DO PONTO DE VISTA HABERMASIANO ............................................73 4.1 CONCEITO GERAL DE TICA..........................................................................73 4.2 O PRINCPIO DA TEORIA DO DISCURSO.......................................................77 4.3 A FUNDAMENTAO DO PRINCPIO DA UNIVERSALIZAO DA TICA DO DISCURSO .........................................................................................................79 4.4 SIGNIFICADO E UTILIDADE DA TICA DO DISCURSOPARA A EMANCIPAO DO SUJEITO ...........................................................................85

4.5 O DESENVOLVIMENTO DA CAPACIDADE DE JULGAR MORALMENTE ....... 89 5 A EDUCAO NA PERSPECTIVA DA TEORIA DA COMUNICAO .............. 91 5.1 CONCEITO DE EDUCAO E PEDAGOGIA ................................................... 91 5.2 TPICOS E CONTRIBUIES DA TEORIA CRTICA DE HABERMAS PARA A EDUCAO .................................................................................................... 99 5.2.1 A Formao Humana O Desenvolvimento das Competncias .................. 104 6 A TEORIA DA AO COMUNICATIVA............................................................. 107 6.1 A GUINADA LINGSTICA .............................................................................. 107 6.2 O AGIR COMUNICATIVO................................................................................ 109 6.3 AGIR COMUNICATIVO VERSUS AGIR ESTRATGICOINSTRUMENTAL... 116 6.4 A LINGUAGEM DENTRO DO PARADIGMA DO AGIR COMUNICATIVO........ 122 6.5 A COMUNIDADE IDEAL DE FALA E/OU A SITUAO IDEAL DE FALA NO CONTEXTO DO AGIR COMUNICATIVO ....................................................... 124 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................... 129 GLOSSRIO........................................................................................................... 139 REFERNCIAS ...................................................................................................... 147 OUTRAS OBRAS CONSULTADAS....................................................................... 151

RESUMOO presente trabalho procura trazer tona tpicos da Teoria Crtica de Jrgen Habermas, que julgamos relevantes e significativos para a evoluo cultural dos sujeitos, que participam de argumentaes intersubjetivas processuais. O mundo globalizado exige o livre intercmbio das informaes cientficas, epistmicas e filosficas, com base numa comunicao livre em todas as direes entre os saberes e a opinio pblica. Deste modo, os conceitos de Teoria da Ao Comunicativa e o de tica Discursiva podem ser levados em considerao pelos membros de uma comunidade de comunicao para orientar suas aes com pretenses de validez. A sociedade deve constituir-se como sociedade civil num quadro constitudo de liberdades de comunicao. Face aos sistemas dos saberes diferenciados, o pensamento filosfico de Habermas, representa o interesse do mundo da vida emancipado, por intermdio das estruturas, as quais so reunidas e articuladas no mbito do agir comunicacional. No agir orientado para o acordo, apresentam-se, implicitamente, desde sempre, as pretenses de validade universais. O paradigma do entendimento forma atravs da linguagem o pano de fundo dos processos de aprendizagem, onde o sujeito no mais mero observador, mas assume a condio de ator, participante. Portanto, o agir comunicativo aponta para uma argumentao na qual os participantes justificam suas pretenses de validade perante um auditrio sem fronteiras.

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ABSTRACTIn the present work, some relevant and meaningful topics of the CRITICAL THEORY of JRGEN HABERMAS are being exposed of those subjects who engage themselves in intersubjective process arguings and in continuous discussions. A Global world asks for an open exchange of cientific, epistemic, philosophical information's and a "lifeworld" based on an all-directions moving, free communication between learning and the public opinion. As stated, the members of "Community of Communication" could be led to consider concepts such as "the theory of communicative action" and "speech ethics", in order to guide validity intended actions. Society is to established as "civil society" framed by liberties having their roots on political communication. Against differentiated learning Habermas' philosophical thought points out, through functions and structures, to an emancipated "life-world" built in and articulated with the communicative action. There are ever since implied universal aims for validity in the action directed towards an agreement. The paradigm of understanding through language makes up the background of the learning process, while the subject is not just an observer but undertaking the role of a participant actor, where the "telos" of understanding lives in through the language. "Communicative Action", therefore, argues towards a borderless audience where those who share in, justify their validity intentions.

INTRODUO Este estudo prope-se a refletir sobre a tica e a educao tendo como fundamento a Teoria Crtica de Jrgen Habermas. Faz-se, habitualmente, referncia s idias da Escola de Frankfurt recorrendo-se expresso teoria crtica Mas a teoria crtica no constitui uma . unidade; no significa a mesma coisa para todos os seus seguidores. Ela no um sistema nem redutvel a qualquer conjunto fixo de prescries, mas deve ser entendida no contexto histrico. A tradio de pensamento a que se pode fazer referncia, de maneira bastante genrica, com a ajuda dessa expresso divide-se em duas vertentes fundamentais. A primeira organizou-se em torno do Instituto de Pesquisa Social (Institut fr Sozialforschung), criado em Frankfurt em 1923, fechado em 1933, transferido para Genebra e depois instalado nos Estados Unidos para, finalmente, ser restabelecido em Frankfurt em princpios da dcada de 1950. Seus principais intelectuais foram Max Horkheimer (filsofo, socilogo e psiclogo social), Friedrich Pollock (economista e especialista em problemas de planejamento nacional, Theodor Adorno (filsofo, socilogo e musiclogo), Erich Fromm (psicanalista e psiclogo social), Herbert Marcuse (filsofo), Franz Neumann (cientista poltico, particularmente voltado para estudos sobre o direito), Otto Kirchheimer (cientista poltico, tambm voltado para estudos sobre o direito), Leo Lwenthal (estudioso da cultura popular e da literatura), Henryk Grosman (economista poltico), Arkadij Gurland (economista e socilogo) e, como membro do crculo externo do Instituto, Walter Benjamin (ensasta e crtico literrio). comum fazer-se referncia s pessoas que pertenciam ao Instituto como sendo a Escola de Frankfurt O rtulo, porm, enganoso, pois o trabalho dos . membros do Instituto nem sempre constituiu uma srie de projetos complementares, intimamente ligados entre si. Na medida em que se pode falar de uma escola a , referncia deve compreender apenas Horkheimer, Adorno, Marcuse, Lwenthal, Pollock

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e (nos primeiros anos do Instituto) Fromm; e mesmo entre esses havia importantes diferenas de concepes. A segunda vertente nasce da recente obra filosfica e sociolgica de Jrgen Habermas, que reformula a noo de teoria crtica. a esta vertente que dedicaremos nosso estudo, na tentativa de elaborar uma reflexo de carter filosfico sobre a contribuio deste pensador para a filosofia da educao. Para Habermas, o pensamento contemporneo supe, com efeito, uma reviravolta, uma guinada, uma mudana de paradigma, uma passagem: o de uma filosofia da conscincia a uma teoria centrada na linguagem e nos signos lingsticos. Ou seja, a passagem do paradigma subjetivo para o intersubjetivo. , pois, em direo comunicao e interpretao dos signos que o pensador deveria dirigir-se hoje. Nem o cogito nem o cu inacessvel da essncia poderiam nos guiar: a linguagem o caminho mais verdadeiro. A prpria linguagem remete ao consenso, ao acordo, comunicao transparente, escolha esclarecida de um conjunto de indivduos que dialogam. Ento, a idia de consenso vai marcar a investigao tico-moral-filosfica do pensamento habermasiano. As investigaes filosfico-epistemolgicas e interdisciplinares de

Habermas conduziram idia da Teoria da Ao Comunicativa, como projeto de grande vitalidade para um processo de esclarecimento (Aufklrung), que um reflexo de autoexperincia no decurso de processos de aprendizagem. Emancipao tem a ver com libertao em relao a parcialidades que, pelo fato de no resultarem da causalidade da natureza ou das limitaes do prprio entendimento, derivam, de certa forma, de nossa responsabilidade, mesmo que tenhamos cadonelas por pura iluso. A emancipao um tipo especial de auto-experincia porque nela os processos de auto-entendimento se entrecruzam com um ganho de autonomia. Nela se ligam idias ticas e morais Se for verdade que nas questes . ticas ns procuramos obter clareza sobre quem ns somos e quem ns gostaramos de ser, e que nas questes morais ns gostaramos de saber o que igualmente bom para todos, ento possvel afirmar que na conscientizao emancipatria as idias morais esto conectadas a uma nova autocompreenso tica. Ns descobrimos quem ns

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somos porque aprendemos, ao mesmo tempo, a nos ver numa relao com os outros sujeitos. Segundo HABERMAS: sujeitos dotados da capacidade de linguagem e de Os ao s se constituem como indivduos na medida em que, enquanto elementos de determinada comunidade lingstica, crescem num universo partilhado intersubjetivamente1 . A teoria proposta por Habermas, por estar apoiada numa teoria hermenutica macroscpica, tem a vantagem de apresentar uma perspectiva centrada num conceito de razo comunicativa, que permite interpretar a sociedade como um complexo simultneo de valores culturais do qual fazemos parte. A Teoria Crtica de Habermas possibilita a auto-reflexo dos grupos sociais nos contextos histricos para o desembaraamento das questes, da construo e reconstruo dos processos argumentativos. A Teoria Crtica se sedimenta na Teoria do Discurso de pretenses de validez, culminando na Teoria da Ao Comunicativa, sendo que, neste sentido, o agir comunicativo aponta para uma argumentao, na qual os participantes justificam suas pretenses de validade perante um auditrio ideal sem fronteiras.A partir dos pressupostos gerais de argumentao, a estratgia do discurso tico revela-se promissora, uma vez que o discurso oferece precisamente uma forma de comunicao mais exigente e que transcende as formas concretas de vida, pela qual as pressuposies da ao orientada para a comunicao so generalizadas, abstradas e ampliadas, no sentido do seu alargamento a uma comunidade de comunicao ideal e inclusiva de todos os sujeitos dotados da capacidade de 2 linguagem e de ao.

Fica claro aqui que a comunicao, a argumentao, o discurso e a linguagem so os pressupostos fundamentais da tica habermasiana. Nas palavras do prprio autor:

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HABERMAS, J. Comentrios tica do discurso. Traduo de: Gilda Lopes Encarnao. Lisboa: Instituto Piaget, 1987. p. 18.2

Id. ibid., p. 21.

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Esta tese torna-se surpreendente quando nos apercebemos de que os discursos, em que as pretenses problemticas de validade so tratadas como hipteses, traduzem uma espcie de ao comunicativa tornada reflexiva. O teor normativo dos pressupostos argumentativos deriva, assim, meramente das pressuposies da ao orientada para a comunicao, sobre as quais esto fundados, por assim 3 dizer, os discursos.

Pretendemos, com esta tese, configurar a dimenso tica, do ponto de vista habermasiano, denominada tica do Discurso, basicamente ancorada na Teoria da Ao Comunicativa, procurando destacar tpicos e possveis contribuies da Teoria Crtica de Jrgen Habermas que possam servir de base referencial para uma reflexo filosfica sobre o fenmeno pedaggico e educacional. O primeiro captulo destaca a vida do autor e suas obras que servem de referncia ao nosso trabalho, contendo um breve e sucinto comentrio a respeito de cada uma delas. Inclui, ainda, um tpico denominado Habermas visto por ele mesmo e as caractersticas da poca contempornea e a tentativa de interpretao a partir da tica habermasiana. No captulo dois tratamos de definir conceitualmente o que Habermas entende por filosofia, teoria crtica e hermenutica. O captulo trs apresenta os fundamentos a priori da tica ComunicativoDiscursiva, postulados por Karl-Otto Apel e Jrgen Habermas, como possveis pressupostos de validao da tica discursiva. O quarto captulo compreende a tica como o princpio da comunicao transparente, orientada pela teoria do discurso para se chegar aos entendimentos mediados lingisticamente, argumentativamente e com pretenses de validez do agir dos agentes pertencentes a uma comunidade de comunicao. O captulo cinco destaca as contribuies da Teoria Crtica de Jrgen Habermas para a pedagogia e a educao. A ao comunicativa oferece a possibilidade da renovao do saber, a integrao social e a formao da

3

Id. ibid, p. 20.

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personalidade

das

pessoas

e

do

desenvolvimento

das

potencialidades

e

capacidades humanas. O sexto captulo aborda a Teoria da Ao Comunicativa, que destaca a passagem da filosofia da conscincia para a filosofia da linguagem, como referncia dos entendimentos intersubjetivos e consensos alcanados racionalmente e

discursivamente. Neste processo, a linguagem o principal meio de integrao social e a situao ideal de fala se reveste de um telos das aes de fala. A incluso, na parte final do trabalho, de um glossrio tem como finalidade facilitar o acesso rpido ao sentido de alguns conceitos bsicos de Habermas e que ocupam lugar importante no presente trabalho.

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1 HABERMAS E SEU CONTEXTO HISTRICO 1.1 O FILSOFO HABERMAS Jrgen Habermas nasceu em 18 de junho de 1929, em Dsseldorf e cresceu na Alemanha nazista. De 1949 a 1954, estudou filosofia, histria, psicologia e literatura alem nas universidades de Gttigen, Zurique e Bonn. Doutorou-se em Bonn em 1954, com a tese intitulada O Absoluto na Histria: um estudo sobre a filosofia das Idades do Mundo, de Schelling. Em 1961, fez a livre-docncia pela Universidade de Marburg, com o trabalho Mudana estrutural do esfera pblica. Sob a influncia de Adorno, de quem foi assistente, descobriu a importncia fundamental da relao entre Marx e Freud para a poltica e as cincias sociais.4 A partir do momento em que assume o cargo de assistente de pesquisa no Instituto para Pesquisas Sociais de Frankfurt (1956-59), Habermas dedica-se, intensamente, s atividades acadmicas. Depois de ensinar filosofia em Heidelberg, entre 1961 e 1964, passa a ministrar as aulas de Filosofia e Sociologia na Universidade de Frankfurt. Em 1971, exerce as funes de professor visitante da Universidade de Princeton. Um ano depois, transfere-se para o Instituto Max Planck, em Starnberg, onde se realizam pesquisas sobre as condies da vida do homem na civilizao tcnica e industrial.5 Na poca em que Habermas fez seus estudos de filosofia, nos anos que se seguiram guerra, as idias nacional-socialistas estavam longe de desaparecer da universidade alem. Mesmo assim, elas no eram nem mesmo objeto de nenhum trabalho de reflexo crtica. Sua primeira reao, provando um interesse precoce pela sociologia e pela poltica, romper com esse pesado silncio. Quando Heidegger publica (1953), sem nenhum comentrio sobre esta questo, o curso de Introduo metafsica, ministrado em 1935, o jovem Habermas, ento com 24 anos, publica no Frankfurter Allgemeine Zeitung (25 de julho de 1953) um artigo impressionante: Pensar4

CAMPAGNE, Cristian Dela. Histria da Filosofia no sc. XX. Rio de Janeiro: Zanhor, 1997, p. 273. Id. ibid., p. 274.

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com Heidegger contra Heidegger. O lao profundo que une a metafsica heideggeriana s convices polticas do ex-reitor de Freiburg posto em evidncia, e o carter inaceitvel do seu silncio sobre os crimes nazistas sublinhado. Inicialmente, Habermas adverte os seus compatriotas a respeito do perigo que haveria para eles identificarem-se mesmo passivamente com as tendncias mais regressivas da cultura germnica (fascismo e capitalismo)6. Em 1961, Habermas volta carga lembrando o eminente papel desempenhado pelos pensadores judeus na filosofia alem desde o sculo XVIII. Em 1968, participa ativamente do movimento estudantil, criticando alguns dos seus excessos. A partir de ento, no cessa de manifestar, atravs de intervenes, a sua presena vigilante na cena poltico-intelectual alem. Combate a corrente hermenutica, representada por Gadamer, que acusado de adotar, diante do real, uma atitude neutra e estetizante. Toma partido, na querela dos historiadores (1986), contra o revisionismo de Ernst Nolte, historiador conservador (e discpulo de Heidegger), que pretende explicar o nazismo pela necessidade de combater o comunismo, afirmando que o extermnio dos judeus havia sido apenas uma cpia dos expurgos estalinistas. O fato de Nolte reduzir Auschwitz dimenso de uma inovao tcnica a tcnica das cmaras de gs , suscitada pelo temor dos nazistas de serem vtimas de uma agresso vinda do leste, leva Habermas a retomar os pressupostos poltico-ideolgicos do pensamento heideggeriano. Mais recentemente, a reunificao da Alemanha, o debate que se segue sobre o papel desta na Europa do futuro e o retorno simultneo da xenofobia e do racismo so temas que atraem a ateno de Habermas. O racionalismo habermasiano se expressa tambm, claro, na sua obra propriamente terica. Esta repousa sobre a idia de que importa superar no a prpria filosofia, mas a oposio tradicional entre filosofia e cincia. Embora, como ocorreu entre 1933 e 1945, a filosofia no possa continuar como se nada tivesse acontecido, ela tem que prosseguir a sua misso crtica. E s pode fazer isso aproximando-se das cincias sociais, trabalhando com elas em um esprito interdisciplinar e utilizando todos6

SLATER, Phil. Origem e significado da Escola de Frankfurt. Traduo de: Alberto Oliva. Rio de

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os seus recursos (lingstica, psicanlise, sociologia) para dar um contedo novo ao projeto do Iluminismo. Em suma, analisando sem complacncia o no-dito das relaes humanas, essa parte de sombra sobre a qual se apia o conservadorismo para impedir qualquer progresso social. Em 1975, Habermas recebeu o ttulo de professor honorrio da Universidade de Frankfurt, fato que o estimulou a retomar as atividades acadmicas na Alemanha. Em 1981, renunciou ao posto de Diretor do Instituto Max Planck em Starnberg para dedicar-se, novamente, s atividades de professor de filosofia e sociologia em Frankfurt, de onde parte com freqncia para novos cursos no exterior.7 interessante notar que no perodo de Starnberg (1975 a 1985) foram redigidos os trabalhos mais significativos sobre a teoria da comunicao, como por exemplo A teoria da ao comunicativa. Habermas recebeu vrias distines acadmicas: em 1973, o Prmio Hegel, conferido pela cidade de Stuttgart por ter conseguido atualizar a maneira de argumentar de Hegel (Dieter Henrich, Laudatio); em 1976, Prmio Sigmund Freud, da Academia para a Linguagem e Poesia da cidade de Darmstadt; em 1980, o Prmio Adorno, da cidade de Frankfurt; em 1985, o Prmio Irmos Schol, pelo seu livro A nova intransparncia. Em 1999, foi agraciado com o Prmio Theodor Heuss, em Stuttgart, por estimular uma sociedade civil democrtica. Atualmente, continua a aperfeioar e complementar incansavelmente sua obra, na qual combinam-se duas das mais decisivas virtudes do pensamento: 1) a paixo pelo rigor analtico em torno do discurso filosfico da modernidade, que dinamiza sua apropriao da tradio filosfica e se lana para a compreenso de seu tempo e 2) a paixo pelo exerccio indeclinvel da Teoria Crtica, legado indisfarvel dos epgonos da Escola de Frankfurt, sem deixar de ser um de seus crticos mais exigentes, e pelo desenvolvimento do paradigma da Teoria da Ao Comunicativa e da tica do Discurso.

Janeiro: Zahar Editores, 1978, p. 39.7

CAMPAGNE, p. 274.

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Logicamente, essa orientao inscreve Habermas na esteira da Escola de Frankfurt. Com efeito, depois de defender sua tese de doutorado (1954) sobre a filosofia da histria de Schelling, ele se torna assistente de Adorno em Frankfurt (1956). Seu talento de escritor apreciado por Adorno. Mas, em contrapartida, a inspirao do seu primeiro livro uma pesquisa sobre a conscincia poltica dos estudantes da Alemanha Ocidental julgada demasiado esquerda por Horkheimer. Querendo afast-lo, Horkheimer impe a Habermas condies to draconianas para lhe conceder a livredocncia, que este decidiu obt-la na Universidade de Marburg, com um trabalho sobre a mudana estrutural da esfera pblica, publicado em 1962. Depois de uma passagem por Heidelberg, onde convive com Gadamer e Lwith, Habermas volta Universidade de Frankfurt (1964). Retoma a ctedra de Horkheimer e ensina at 1971, data em que aceita a direo do Instituto Max Planck em Starnberg. Exerce essa funo durante dez anos, depois pede demisso (1981) para voltar a Frankfurt. Apesar de uma certa identidade de interesses e preocupaes com a Escola de Frankfurt, ele desenvolveu suas idias dentro de um quadro

significativamente diferente da perspectiva de seus principais representantes, em especial, Adorno, Horkheimer e Marcuse. Habermas defende o ponto de vista de que o problema dos fundamentos o problema de construir uma base normativa bem fundamentada para a teoria crtica tem soluo e procurou desenvolver os alicerces filosficos da Modernidade. Esse projeto envolve a reconstruo filosfica, a inseparabilidade entre a teoria e a prtica. O seu objetivo ltimo criar um quadro geral dentro do qual um grande nmero de abordagens aparentemente competitivas das cincias sociais se possam integrar: entre elas esto a crtica da ideologia, a teoria da ao, a anlise dos sistemas e a teoria da evoluo social. Habermas no pertence mesma gerao de Adorno e Hokheimer. No partilhou a experincia do exlio em Genebra, Paris e Nova York que havia deixado marcas indelveis na atividade intelectual dos seus fundadores. Seu primeiro contato pessoal com eles foi depois da guerra, quando retornaram Alemanha. O imperativo de reformular a teoria crtica nasce para ele dos rumos da histria do sculo XX. A

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degradao da revoluo russa com o Stalinismo e a gesto social tecnocrtica, a inexistncia, at ento, de uma revoluo das massas no Ocidente, a ausncia de uma conscincia de classe proletria revolucionria entre as massas, a freqncia com que a teoria marxista se degrada em uma cincia determinista, objetivista, ou em uma crtica cultural pessimista, tudo isso so elementos importantes para a necessidade de renovao de conceitos e valores. Habermas tido hoje como um dos mais importantes pensadores alemes do ps-guerra. Ele continua com seu objetivo de analisar a estrutura das sociedades tardocapitalistas e das formas de atuao poltica nelas previstas. Esta inteno permanece ativa, mesmo ali onde o raciocnio habermasiano se volta diretamente para a discusso de questes epistemolgicas, notadamente, quando seu trabalho reintroduz a discusso acerca do estatuto da cincia na dinmica de organizao da sociedade contempornea. Esse principal herdeiro da Escola de Frankfurt o maior crtico do irracionalismo da filosofia contempornea, o positivismo.8 ltimo representante da Escola de Frankfurt, Habermas pertence plenamente a ela na medida em que, como os seus fundadores, relaciona-se com o marxismo e retoma a crtica do positivismo Entretanto, interpreta essas posies em . um sentido muito peculiar, o que no tarda a afast-lo daquilo que se poderia chamar a verso clssica da teoria crtica. Mais interessado, a exemplo de Marcuse, no jovem Marx do que n O Capital, Habermas estima que o marxismo precisa seriamente ser renovado para adaptar-se anlise do capitalismo tardio (Sptkapitalismus), isto , o capitalismo das sociedades industriais na era tecnocrtica. Essa renovao, empreendida primeiro por Marcuse, continuada por Habermas, que sublinha a inadequao da noo de proletariado. Os operrios tiveram seu padro de vida melhorado e gozam hoje de todas as vantagens do Estado de bem-estar-social (Welfare State). Com isso, a luta de classes tornou-se latente e o modelo socialista de revoluo no mais atual. Em contrapartida, o sistema administrativo instalado pela tecnocracia impe ao conjunto

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CAMPAGNE, p. 274-275.

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dos trabalhadores limitaes que esvaziaram progressivamente o sentido da palavra democracia enquanto um nmero crescente de jovens e de desempregados se vem , abandonados margem do sistema. Para reintegr-los, para tornar o sistema mais aberto preciso dar novo alento ao debate democrtico. Como instalar, para salv-lo, , novas estruturas de comunicao no seio do espao pblico? Esse , doravante, um dos grandes eixos do pensamento habermasiano. Quanto crtica feita pelos frankfurtianos ao positivismo Habermas, , como vimos, adere a ela por ocasio dos encontros de Tbingen (1961), durante os quais acusa Popper de ausentar-se da reflexo sobre os pressupostos da atividade cientfica. Popper julga que o projeto de uma crtica da sociedade no tem lugar entre as cincias sociais. Essa tese fruto, segundo Habermas, de um puro decisionismo e no repousa sobre nenhuma justificativa verdadeira. Partidrio de no impor, a priori, nenhum limite atividade do pesquisador, Habermas observa que no se poderiam manter separados a exigncia propriamente filosfica de uma crtica e o trabalho de pesquisa emprica. Mas no condena pura e simplesmente a cincia positivista Seu . procedimento , nesse sentido, mais verdadeiramente sociolgico do que o de Horkheimer e Adorno. Ele no s integra os resultados da antropologia positiva mas , interessa-se de perto pela filosofia da linguagem e, particularmente, pela filosofia analtica Interesse esse que se desenvolve sob a influncia de um dos seus colegas . na Universidade de Frankfurt, o filsofo Karl-Otto Apel. Habermas desloca a problemtica de Apel para uma perspectiva ao mesmo tempo menos ambiciosa e mais materialista. A comunidade de comunicao , segundo ele, um dado objetivo. Longe de ser uma dimenso da subjetividade transcedental, ela no poderia ser separada da existncia social emprica. Esse o ponto de partida das pesquisas que ele realiza nos anos 70, e cujos resultados esto expostos na Teoria do agir comunicativo (1981) e, depois, em Conscincia moral e agir comunicativo (1983). Como pano de fundo desses dois livros, encontra-se a vontade de arrancar a teoria crtica das suas origens idealistas, a fim de lhe dar um fundamento mais slido. Efetivamente, Horkheimer e Adorno ficam prisioneiros de uma filosofia da

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histria herdada de Hegel, isto , de uma dialtica da cultura. Para Habermas, ao contrrio, como para Marx e a maioria dos socilogos, a histria deve ser compreendida, antes de tudo, como um conjunto de interaes sociais. , pois, a lgica dessas interaes e, primeiramente, a sua lgica discursiva, j que toda interao passa por uma comunicao verbal que preciso reconstituir. Para isso, Habermas comea lembrando que, a partir de Marx, os filsofos j percorreram um longo caminho para sair da metafsica. No mais necessrio dramatizar essa sada ao modo heideggeriano. A superao da metafsica foi largamente efetuada por Peirce (a que Apel consagrou, em 1975, uma obra importante) e, mais ainda, pela filosofia lgico-lingstica elaborada por Frege e Russell. Trata-se de introduzir, nos fundamentos de uma nova definio de razo cientfica e crtica, o conceito de atividade comunicativa ligado, por sua vez, ao de , mundo vivido Em . outras palavras, trata-se de pr a razo em situao como queriam Sartre e Heidegger , mas sem coloc-la na dependncia de uma filosofia da conscincia ou do Dasein, pois tambm a situao comunicacional se identifica com a realidade da vida em sociedade, por definio intersubjetiva. A proposta habermasiana envolve, pois, uma descrio pragmtica da linguagem como instrumento de comunicao, que repousa, por sua vez, sobre uma anlise da integrao social, a partir da linguagem consensual. A contribuio especfica de Habermas consiste em mostrar, sobre essa base emprica, como a situao comunicacional cria, s pela sua existncia, as condies de um debate autntico. Neste processo, linguagem tida como meio para se alcanar (obter) o a consenso, o entendimento, a integrao social e as pretenses universais de validez9 . A obra da Habermas, desse modo, pode ser entendida como uma obra filosfica que se concentra sobre questes da comunicao.

HABERMAS, J. Teoria de la accin comunicativa: crtica de la razn tencionalista. Versin castelana de: Manuel Jimnez Redondo. Madrid: Taurus Ediciones, 1987. v. 2, p. 124.

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1.2 OBRAS Os pensadores da Escola de Frankfurt buscam desenvolver uma perspectiva crtica na anlise de todas as prticas sociais, questionando a maneira como os interesses, conflitos e contradies sociais se expressam no pensamento. De modo geral, o objetivo da teoria crtica da Escola de Frankfurt o de romper com os grilhes de todos os sistemas fechados e combater as tradies que bloqueiam o desenvolvimento do projeto emancipador. Habermas pensa que o processo de libertao implica na

autodeterminao e autocriao dos sujeitos. Posiciona-se como crtico feroz e intransigente de todas as formas tidas como irracionais, desde o primitivismo era denominada ps-modernidade. Suas obras procuram mostrar as razes mais profundas do trabalho filosfico-cientfico, trazendo tona os interesses que subjazem ao desenvolvimento das cincias, bem como da formao humana. Seu projeto, em constante evoluo desde o incio, ainda continua sendo elaborado. Seu empenho centra-se na elaborao de uma teoria crtica da sociedade que, na sua opinio, foi uma promessa no cumprida pelos seus mestres Adorno e Horkheimer. A sua obra Mudana estrutural da esfera pblica trata da formao do espao e da opinio pblica na sociedade burguesa europia, por meio de livros, jornais, mdia e imprensa, a partir do sculo XVIII. Em Conhecimento e interesse, o autor investiga os interesses cognitivos das cincias. Segundo ele, Todo conhecimento posto em movimento por interesses que o orientam, que o dirigem, que o comandam. nesses interesses, e no na suposta imparcialidade do chamado mtodo cientfico, que a pretenso da universalidade do saber pode ser avaliada. Em Tcnica e cincia como ideologia e Problema de legitimao no capitalismo tardio, critica a ideologia tecnocrtica e a razo instrumental pela imposio autoritria de regras desprovidas de justificao, que provoca a despolitilizao das massas e a estilizao de tecnocratas.

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Habermas tenta, na obra Para a reconstruo do materialismo histrico, de diversas maneiras encaminhar a elaborao de uma formulao terica em que o marxismo desmontado e recomposto de modo novo, a fim de melhor atingir a sua meta que ele prprio estabeleceu. J Teoria e prxis faz uma investigao sistemtica sobre a relao entre a teoria e a prxis, e desenvolve a idia de teoria da sociedade concebida com inteno prtica. Perfis filosfico-polticos e Sobre Nietzsche e outros ensaios apresentam o esboo da filosofia alem, num esforo de refletir a crise atual da prpria filosofia e a crise geral que se abate sobre o mundo moderno e que atinge quase todas as reas da vida humana. Ensaios polticos vincula-se histria das idias modernas no discurso filosfico dos modernismos diagnosticando o neoconservadorismo da poca atual. , A lgica das Cincias Sociais trata das correntes fundamentais da filosofia e da sociologia contempornea, uma espcie de histria interna dos problemas do conhecimento. A obra procura esclarecer as contradies do pensamento nos ltimos trinta anos. Na Teoria da ao comunicativa, so discutidas as condies universais para a produo de enunciados, a partir do paradigma de uma situao lingstica ideal, em que os interlocutores resolvem seus impasses pela argumentao racional, livre de distores ideolgicas ou coercitivas. Nesse trabalho, o autor procura desenvolver um conceito de racionalidade capaz de emancipao e esclarecimento. O discurso filosfico da modernidade versa sobre a compreenso do mundo moderno, reportando-se histria da discusso acerca da modernidade. Aqui, Habermas abrange desde as matrizes do pensamento moderno (Kant, Hegel e Weber) at seus crticos (Nietzsche, Derrida e Foucault) e procura explicar o contedo normativo da modernidade como projeto inacabado , no superado em discrdia , consigo mesma, problema para si mesma. A crtica da modernidade vive dos padres dessa mesma modernidade.

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Em A tica do discurso, Habermas levanta a discusso dos objetivos universais da tica, da validade das normas do processo de argumentao e pleiteia uma moral deontolgica, cognitiva, formalista e universal. O autor estabelece, em Conscincia moral e agir comunicativo, uma diviso de trabalho entre as investigaes filosficas e as investigaes empricas, e aclara o entrosamento entre explicaes causais e reconstrues hipotticas, bem como torna mais claro o ponto de partida da tica do Discurso. O livro Direito e democracia entre facticidade e validade trata da questo da Teoria do Discurso e do Agir Comunicativo averiguando que ponto pode contribuir efetivamente para o esclarecimento e a compreenso das atuais possibilidades de associao poltica no mbito do Estado democrtico. Para que isto seja possvel, Habermas acentua o aspecto interdisciplinar e poliglota da razo comunicativa, o qual permite incrementar o dilogo crtico entre os princpios tericos que afloram na atualidade, bem como delinear os contornos de uma reconstruo do direito e do sistema dos direitos, da cidadania e da poltica deliberativa, da esfera pblica, da formao da opinio e da vontade poltica dos cidados. Com a obra Comentrios tica do discurso, Habermas prossegue as suas investigaes sobre moral e ao comunicao. Procura defender a proeminncia do justo, compreendido num sentido deontolgico, sobre o bem. Mas isto no significa que as questes ticas devam ser excludas do questionamento racional. Nesta perspectiva, a questo moral central no mais saber como levar uma boa vida, mas saber em que condies uma norma pode ser afirmada como vlida. O problema desloca-se da questo do bem para a questo do justo, da felicidade para a da validade prescrita das normas. As questes morais sobre o justo, em termos de um procedimento argumentativo, passam a partir de Habermas a distinguir questes ticas, que dizem respeito s questes axiolgicas preferenciais de cada um por natureza intersubjetiva. A tica do Discurso amplia o conceito deontolgico de justia, incluindo aqueles aspectos estruturais do bem viver que, do ponto de vista geral da socializao comunicativa, destacam-se completamente da totalidade de formas de vida particulares, sem que, com isso, incorra nos dilemas metafsicos.

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Duas conferncias sobre a relao entre direito e moral, discutidas em sua obra Direito e moral, inscrevem-se no contexto de um debate sobre a sociedade moderna. O autor procura demonstrar que a legalidade do direito deve, sempre, a sua legalidade ao fato de as normas jurdicas serem racionais, sobretudo devido ao seu fundamento moral. A idia de Estado de Direito no perde o seu sentido normativo e os argumentos morais so institucionalizados atravs de meios jurdicos. Para Habermas, as questes do Direito e da Moral passam pelo processo discursivo racional. O novo paradigma proposto por Habermas submete-se s condies da discusso contnua. Os homens agem como sujeitos livres na medida em que obedecem s leis que eles mesmos estabeleceram, servindo-se de noes adquiridas num processo intersubjetivo de comunicao. Na obra Pensamento ps-metafsico, o autor procura descrever uma viso original da filosofia contempornea que se dilacera frente a uma srie de interrogaes e dilemas, quais sejam: Continuar seu trabalho numa linha kantiana ou hegeliana? Escolher um novo paradigma de pensamento? Retornar metafsica platnica, aristotlica ou cartesiana? Exaurir-se em anlise da linguagem ou em metodologia da cincia? Abandonar o caminho da razo, fixando-se numa ou mais variantes do contextualismo ps-moderno? Ou simplesmente transformar-se em literatura?

Habermas vai fazer com que a filosofia culmine no conceito de razo comunicativa, estimulando a reflexo sobre o pensamento ps-metafsico. Em Textos e contextos, ele procura articular suas teses com as de outros filsofos contemporneos, como Husserl, Heidegger, Wittgenstein, Horkheimer e Mitscherlich, levando-nos para dentro das categorias de linguagem e comunicao, que so o centro da sua obra produzida no contexto da intelectualidade alem e dos contextos histricos em que se desenvolvem. Passado como futuro faz emergir alguns problemas filosficos dotados de relevncia poltica imediata. Sua posio a do intelectual cujo trabalho precpuo

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consiste em tomar conceitos do mbito da filosofia e das cincias polticas e histrias e coloc-los em contato com os fatos contingentes, com as experincias biogrficas efmeras, com as voltas do esprito do tempo. O estudo do passado serve como medida para a interpretao do futuro, a da democracia radical inspirada na Teoria do Agir Comunicativo. Dialtica e Hermenutica um dilogo filosfico entre Habermas e Apel. Ambos buscam apresentar os melhores argumentos, sem a iluso de que um dos dois possa ter a ltima palavra. Habermas insiste na tese da Competncia Comunicativa , adquirida no processo discursivo intersubjetivo no qual o discurso competente produz um consenso, bem como no pensamento crtico dialtico reflexivo emancipatrio. Habermas busca mostrar que a filosofia como Crtica da ideologia possvel e necessria. Apel renova os fundamentos filosficos de um projeto de transformao da filosofia transcendental baseada no conceito de comunidade de comunicao. A Teoria Crtica de Habermas um esforo de criar um mundo que satisfaa as necessidades e vontades humanas libertando os homens de situaes escravizadoras. Ele prope uma reflexo radical, coletiva e democrtica, da qual todos deveriam participar. Desta forma, contribui, significativamente, para a permanente revalorizao do pensamento crtico, sem fronteiras, propondo um novo paradigma, mais democrtico e mais participativo, no qual emancipao no resulta de modo a nenhum do paradigma da produo, mas sim do paradigma do agir orientado no sentido do entendimento mtuo10 . Habermas sugere, nestas passagens, que o paradigma do conhecimento de objetos tem de ser substitudo pelo paradigma da compreenso mtua entre sujeitos capazes de falar e agir. No paradigma de intercompreenso , antes, a atitude performativa dos participantes da interao que coordena os seus planos de ao atravs de um acordo entre si sobre qualquer coisa no mundo11 .

HABERMAS, J. O discurso filosfico da modernidade. Traduo de: Ana Maria Bernardo e outros. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1998. p. 87.11

10

Id. Ibid., p. 276-277.

19

Neste paradigma, a linguagem a conscincia prtica e efetiva do mundo, a nossa emancipao depende do discurso, assim como todos os entendimentos. O meio do entendimento discursivo o nico mecanismo de auto-organizao que se encontra disposio dessa comunidade12 . O paradigma habermasiano construdo procedimentalmente no discurso continuado. Em Direito e democracia afirma que novo paradigma submete-se s O condies de discusso contnua, cuja formulao a seguinte: na medida em que ele conseguisse cunhar o horizonte da pr-compreenso de todos os que participam, de algum modo e sua maneira, da interpretao da constituio, toda transformao histrica do contexto social poderia ser entendida como um desafio para um reexame da compreenso paradigmtica do direito.13 Este paradigma procedural do discurso vem sendo construdo ao longo da Histria.H quase cem anos comeou-se a juntar argumentos de diferentes tipos, que sugeriram a passagem da clssica lgica do raciocnio para a lgica dos enunciados, a passagem da interpretao do conhecimento como teoria dos objetos para a teoria dos estados de coisas, a passagem da explicao intencionalista das realizaes da compreenso e da comunicao para a explicao no mbito de uma teoria da linguagem, ou seja, em geral, a passagem da anlise introspectiva dos dados de conscincia para a anlise reconstrutiva de 14 realidades gramaticais publicamente acessveis.

A linguagem o meio o elemento no qual tudo pode ser pensado no , mundo. possvel que a linguagem e a conscincia faam o mundo. A linguagem, neste processo, especificamente o meio de integrao social e de entendimento para a discusso pblica, aberta, livre, democrtica em todas as esferas da vida.

12

HABERMAS, J. Direito e democracia entre facticidade e validade. Traduo de: Flvio Beno Siebenichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2, p. 50-51.13

Id. Ibid., p. 190.

HABERMAS, J. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos. Traduo de Flvio Beno Siebenichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 32.

14

20

A discusso pblica, sem restries e sem coaces, sobre a adequao e a desiderabilidade dos princpios e normas orientadoras da aco, luz das ressonncias socioculturais do progresso dos subsistemas de aco racional dirigida a fins uma comunicao deste tipo em todos os nveis dos processos polticos e dos processos novamente politizados e formao da vontade, o nico 15 meio no qual possvel algo assim como a racionalizao .

Hoje, mais do que em outros tempos, temos a necessidade de levarmos em considerao a tica do Discurso, que envolve os sujeitos no contexto da ao comunicativa.O programa de um mundo aberto exige portanto, em primeiro lugar, o livre intercmbio das informaes cientficas. Existem, pois, pelo menos certos pontos de apoio em prol da suspeita de que a monopolizao estatal das cincias tecnicamente mais fecundadas, de que hoje nos aproximamos justamente sobre o signo de uma corrida geral aos armamentos, se possa considerar como um estdio de passagem, que leve por fim utilizao coletiva das informaes com base numa comunicao, livre em todas as direes, entre a cincia e a opinio 16 pblica.

Portanto, o conceito de razo comunicativa ou racionalidade comunicativa ou ao comunicativa pode ser tomado como processo que visa ao estabelecimento racional entre os participantes da interao que se d sempre atravs da linguagem, por consenso argumentativo que pode ser considerado como critrio de verdade um , onde verdade define-se pois por referncia argumentativa17 nos contextos da a . ao comunicativa e do mundo da vida que os membros de uma comunidade de comunicao orientam suas aes por pretenses de validez, intersubjetivamente reconhecidas pelos participantes.

HABERMAS, J. Tcnica e cincia como ideologia. Traduo de: Artur Moro. Lisboa: Edies 70, s.d. p. 88.16

15

Id. Ibid., p. 126.

17

HABERMAS, J. Teoria de la accin comunicativa: complementos y estudios previos. Traduccin de: Manuel Jimnez Redondo. Madrid: Ediciones Ctedra, 1989. p. 148.

21

1.2.1 A Repercusso da Obra de Habermas no Brasil Habermas passou a ser estudado no Brasil aps os anos 60 e incio da dcada de 70 por diversos pensadores e educadores das universidades brasileiras. Neste contexto, a leitura de sua obra tem funcionado como uma espcie de contraponto (no confronto) a outras fortes influncias de pensamento no Brasil por parte de pensadores franceses e italianos.Habermas hoje no Brasil um nome cuja ressonncia ultrapassa as fronteiras acadmicas. Qualquer passo seu, atitude, entrevista, artigo, declarao, livro novo, etc., no escapar ao noticirio de uma imprensa mais atenta. Justia seja feita, a Folha de So Paulo tem sido regularmente uma fonte de eco para idias habermasianas, especialmente o Caderno Dominical MAIS que no mesmo nvel , substituiu o artigo Folhetim Ambos dedicaram a Habermas atenes s dignas . 18 de grandes nomes do pensamento universal.

Nestas ltimas dcadas, Habermas vem sendo referenciado em vrios trabalhos acadmicos19, teses de mestrado e doutorado. A tese de Nilton de Freitas MONTEIRO, intitulada Problema dos sentidos da norma jurdica: criao do direito no contexto da modernidade, assinala a necessidade de entender os impasses filosficos na sociedade moderna. Faz-se a tentativa de criar novos paradigmas para a hermenutica, atravs da perspectiva de uma verdade que leve em conta a situao dos envolvidos no processo, conforme os ensinamentos de Habermas.20

18

SILVA, Luiz Martins da. A teoria da ao comunicativa e o ensino de comunicao. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n. 38, jul.-set. 1999.19

Diversos pensadores e educadores brasileiros esto voltados a explorar o potencial da Teoria Crtica da Escola de Frankfurt, como o caso de Pedro L. Goergen, Bruno Pucci, Antnio lvaro S. Zuin, Belarmino Csar G. da Costa, Newton Ramos de Oliveira, Wolfgang Leo Maar, Brbara Freitag, Olgria C. F. Mattos, Nadja H. Prestes, Ira Carone, Jeanne Marie Gagnebin, Henrique G. Sobreira, Wagner L. Weber, Rodrigo Duarte, Douglas A. Jnior, Luiz Nabuco, Werner Markert, Rosa M. Martini, Jos M. de Rezende Pinto e Angela P. R. Mazzi, Jos Pedro Boufleuer, Mrio Osrio Marques, Pedro Demo, dentre outros MHL, Eldon Henrique. Racionalidade comunicativa e educao emancipatria. Campinas, . 1999. Tese (Doutorado) Faculdade de Educao, da Unicamp. p. 29.20

MONTEIRO, Nilton de Freitas. Problema dos sentidos da norma jurdica: criao do direito do contexto da modernidade. So Paulo, 1990. Tese (Doutorado) Faculdade de Direito, da USP.

22

H, tambm, a dissertao de Joo Bosco da Encarnao, intitulada Filosofia do direito em Habermas: a hermenutica. Trata-se de um estudo da extensa obra de Jrgen Habermas, a fim de detectar qual a posio desse autor em relao ao direito, mais propriamente quanto a sua aplicao.21 Na dissertao de Luis Milman, intitulada Habermas e a metacrtica da cincia: um estudo sobre a teoria dos interesses cognoscitivos, feita uma abordagem da hiptese de Jrgen Habermas relativa conexo entre conhecimento cientfico e estruturas de ao orientadas por interesses universais da espcie humana.22 Mais recentemente, no ano de 1999, foi defendida a tese de Eldon Henrique Mhl, Racionalidade comunicativa e educao emancipadora, na Faculdade de Educao da UNICAMP. O autor examina os principais pressupostos que fundamentam o projeto de reconstruo da Teoria Crtica empreendida por Habermas e analisa a proficuidade dessa proposta para a educao.23 Como vemos, Habermas um filsofo que est comeando a ser referncia no universo das discusses contemporneas, talvez porque, segundo Giannotti, Provavelmente Habermas o filsofo contemporneo que mais se tenha dedicado a traar um diagnstico completo de nosso tempo: como se estivesse pintando um vasto afresco onde tudo pode ser pensado24 Este afresco que Habermas . est desenvolvendo o paradigma da linguagem, da razo comunicativa, centrada no livre dilogo, discurso democrtico.

ENCARNAO, Joo Bosco da. Filosofia do direito em Habermas: a hermenutica. Taubat: Cabral Editora Universitria, 1994.22

21

MILMAN, Luis. Habermas e a meta crtica da cincia: um estudo sobre a teoria dos interesses cognoscitivos. Porto Alegre: 1989. Dissertao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, da PUC-RS.23

MHL, Eldon Henrique. Racionalidade comunicativa e educao emancipatria. Campinas, 1999. Tese (Doutorado) Faculdade de Educao, da Unicamp.24

GIANNOTTI, Jos Arthur. Habermas na mo e contramo. Racionalidade e ao e evoluo atual da filosofia prtica alem. Poa: EDUFRGS e Instituto Goethe, 1992, p. 60.

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1.3 HABERMAS VISTO POR ELE MESMO Para dirimir dvidas a respeito do autor e para melhor conhec-lo, destacaremos a seguir alguns tpicos do seu perfil filosfico visto a partir dele mesmo sua prpria obra. Habermas, dentro da tradio filosfica, no se considera um pensador transcendental-metafsico-tradiciona.25 forma nenhuma eu correspondo imagem De26 tradicional do filsofo o qual explica o mundo a partir de um nico ponto. A ,

formao de Habermas se processa no contexto da tradio interdisciplinar e intersubjetiva, compartilhada.Meu processo de formao completa-se num contexto de tradies que partilho com outras pessoas; minha identidade tambm marcada pelas identidades coletivas, e a minha histria de vida est inserida em contexto de histrias de vida que se entremeiam. Nesta medida a vida que boa para mim toca tambm as 27 formas de vida que nos so comuns.

Habermas pertence a uma gerao de pensadores argutos, cautelosos crticos, profundos, cultos; porm, peculiar, na sua cosmoviso-filosfica, a dimenso do discurso interdisciplinar.Eu no espremo (sic) tudo no mesmo quadro terico, como tambm no assimilo tudo aos mesmos conceitos bsicos de uma grande teoria holstica. Naturalmente, minhas contribuies so feitas a partir da minha perspectiva; no entanto, sobre questes filosficas preciso falar de modo filosfico, sobre questes sociolgicas, de modo sociolgico e sobre questes polticas, de modo poltico. Temos que saber qual o discurso no qual nos movemos respectivamente, em

HABERMAS, J. Ensayos polticos. Traduccin de Ramn Garcia Cotarelo. Barcelona: Impreso em Horope S/A Recared, 1997. p. 219.26

25

HABERMAS, J. Passado como futuro. Traduo de Flvio Beno Siebenichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 107.27

HABERMAS, J. Para o uso pragmtico, tico e moral da razo prtica. Petrpolis: Vozes, 1993. p. 292-293.

24

que nvel de generalidade nos encontramos e com que instrumentos estamos 28 agindo no momento.

Habermas apresenta uma enorme gama de conhecimentos no mbito da prpria filosofia, sociologia, poltica, direito, economia, histria, por isso quem ler os seus textos perceber esta faceta multicultural que faz dele um dos mais abrangentes pensadores e escritores da atualidade.Trabalho como filsofo e socilogo, e por isto as pessoas a quem meu trabalho se dirige, em primeiro lugar, ocupam cargos nos sistemas cientfico e educacional; de vez em quando eu atuo no jornalismo poltico, e escrevo em jornais e seminrios ou nas chamadas revistas culturais. Em ambos os casos, quem est interessado no que escrevo devem ser os intelectuais de esquerda e, evidentemente, os 29 especialistas do outro lado.

Os textos de Habermas vo alm das faces poltico-ideolgicas; eles refletem o contexto do mundo da vida, do qual todos ns fazemos parte, independentemente de rtulos e legendas. Me dirijo a escritores, crticos, artistas, cientistas sociais e filsofos alemes30 Ele dirige-se para as pessoas que apreciam a . boa filosofia que permanece ligada reflexividade, crtica, retificao e , emancipao dos indivduos de toda forma de dominao.Eu procuro os problemas particulares em seu respectivo lugar, isto , nos discursos cientficos que encontro diante de mim. A seguir, eu desenvolvo uma contribuio sobre um tema ou outro, digamos, por exemplo, na teoria das aes de fala ou na teoria moral, na filosofia do direito, na discusso sociolgica sobre a racionalizao social, na discusso filosfica sobre o conceito da modernidade, 31 sobre o pensamento ps-metafsico, etc.

28

HABERMAS, Passado como futuro, p. 108. HABERMAS, Um perfil filosfico-poltico, p. 101-102. HABERMAS, Ensayos polticos, p. 236. HABERMAS, Passado como futuro, p. 107.

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Habermas tem um compromisso com o projeto filosfico ps-metafsico da guinada lingstica e com a elaborao de uma tica do discurso ainda em andamento; alm disso, como parte de seus esforos de trabalho intelectual, vem dando um impulso democrtico para a filosofia da linguagem atual. Eu, como os outros, fao parte de uma gerao mais nova [...], eu estou esgaravatando, um pouco aqui, um pouco acol, procura dos vestgios de uma razo que reconduza, sem apagar as distncias, que una, sem reduzir o que distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne32 reconhecvel o que comum, mas deixe ao outro sua alteridade.

A nosso ver, o interesse fundamental de Habermas, neste momento, est focado no discurso ilimitado com base na linguagem, na inteno de promover a autarquia do sujeito. meu interesse fundamental est voltado primordialmente para a O reconstruo das condies realmente existentes, na verdade sob a premissa de que os indivduos socializados, quando, no seu dia-a-dia se comunicam entre si atravs da linguagem comum, no tm como evitar que se empregue essa linguagem tambm33 num sentido voltado ao entendimento.

Habermas concentra-se na linguagem, na comunicao, no discurso como que fazendo emergir dessa esfera o fundamento, a base para a liberdade, a verdade, a emancipao, a justia e a democratizao na prpria estrutura da Teoria da Ao Comunicativa.Falo em agir comunicativo quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ao e de s perseguir suas respectivas metas sob a condio de um acordo 34 existente ou a se negociar sobre a situao e as conseqncias esperadas. Eu resolvi encetar um caminho diferente, lanando mo da teoria do agir comunicativo: substituo a razo prtica, pela comunicativa. E tal mudana vai muito alm de uma 35 simples troca de etiqueta .

32

Id. Ibid., p. 112. Id. Ibid., p. 98.

33

34

HABERMAS, J. Conscincia moral e agir comunicativo. Traduo de: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 165.35

HABERMAS, Direito e democracia..., v. 1, p. 19.

26

A Teoria da Ao Comunicativa ou a Razo Comunicativa opera na histria como uma fora redentora, por isso coloquei os conceitos eu entendimentoe agir comunicativo que passaram a ocupar o centro de minhas reflexes.36 , Habermas defende o postulado da linguagem que revigora, regenera a razo. O discurso torna-se o terreno da crtica e assume o compromisso com a verdade consensual argumentativa.O aspecto filosfico disso tudo est somente na tentativa de no perder a viso de conjunto ao se passar de um discurso para o outro, de impedir que as categorias se congelem, de manter as linguagens das teorias liquefeitas e, finalmente, na tentativa de saber onde, por exemplo, devemos aplicar conceitos tais como autopoiesis ou autoconscincia ou , , racionalidade e, principalmente, onde 37 no podemos aplic-los.

Habermas elabora a Teoria da Ao Comunicativa, que serve como suporte para a tica do Discurso e se fundamenta na razo comunicativa processualmente construda entre os sujeitos que buscam cooperadamente a verdade. Ele configura o postulado de que todas as aes humanas como preparar aulas, conferncias, lies, etc. devem se referir a um processo de aprendizagem compartilhadainterdisciplinarmente.Sou uma pessoa que preparo as minhas aulas conferenciais, lies, com outros colegas de outros campos de conhecimento, eu gostaria de praticar, alis sempre 38 que posso, a cooperao da filosofia com outras disciplinas. Eu jamais tive a pretenso de meus famosos colegas americanos Rawls e Nozick de desenvolver uma teoria poltica normativa. Eu no contesto a validade de tal projeto, porm eu no tento construir na escrivaninha as normas 39 fundamentais de uma sociedade bem organizada .

36

HABERMAS, Passado como futuro, p. 100. Id. Ibid., p. 108. HABERMAS, Ensayos polticos, p. 176. Id. Ibid., p. 98.

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O autor vem procurando desenvolver uma filosofia que implica a participao ativa dos sujeitos atravs da forma comunicativa, da formao discursiva da vontade e da opinio, mediados pela linguagem, circunscrita no mundo da vida, constituda democraticamente no processo participativo. Contudo eu perteno a um tipo mais inflexvel, duro, a quem se atribui uma identidade burguesa rgida. Por isto no creio que, em relao s minhas concepes bsicas, tenha mudado mais do que foi necessrio para sustent-las em circunstncias histricas diferentes40 . Habermas um filsofo radical, ao enfatizar a relevncia da Teoria Crtica emancipatria ancorada na Teoria da Ao Comunicativa, que o incio de uma teoria social com potencial de autocrtica e de validao da verdade. Abrigo a esperana da publicidade do dilogo e das controvrsias acadmicas que se pratiquem com freqncia e liberdade41 . Em Habermas, a comunicao est na base do processo para se chegar a um entendimento, pois a emancipao e a qualidade de vida de uma sociedade dependem da capacidade de dilogo (linguagem e ao) dos sujeitos que se comunicam intersubjetivamente e democraticamente. Quando se tem em mente que a implementao do direito dos povos precisa ser conseguida atravs da cooperao organizada da comunidade dos povos42 . Habermas no se considera um filsofo vanguardista, apenas est tentando argumentar reflexivamente sobre a construo da Teoria Crtica, que implica na democratizao dos processos via racionalidade comunicativa como tentativa de , sada do neoconservadorismo atual. Minhas observaes tm preferentemente o carter de um pr-entendimento sobre o empreendimento comum e os impulsos do filosofar43 .

40

HABERMAS, Um perfil filosfico-poltico, p. 101-102. HABERMAS, Ensayos polticos, p. 176. HABERMAS, Passado como futuro, p. 24. HABERMAS, Pensamento ps-metafsico..., p. 19.

41

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Para Habermas, a linguagem poder impulsionar o filosofar atual e ao mesmo tempo servir para reabilitar um novo sujeito universal da filosofia que a razo comunicativa-discursiva-argumentativa. Ele tem a cosmoviso de que a sociedade pode melhorar, sendo que na base dessa tese est a sua filosofia da Teoria da Ao Comunicativa e da tica do Discurso, uma vez que o meio lingstico o pressuposto fundamental de toda a integrao social pelo fato de enquanto pudermos dialogar livremente, sempre haver a esperana de um mundo melhor. Minha convico sempre foi a seguinte: se as coisas devem melhorar, elas melhoraro l onde as foras produtivas e as democracias de Estado esto mais desenvolvidas, ou seja, no Ocidente44 . A preocupao dele est voltada para a questo da razo comunicativa como um poder que no s diferencia e desmembra o sistema das relaes vitais como tambm, por sua vez, unifica os antagonismos que a razo tem de analisar discursivamente. Porque o contedo normativista da razo permite modernidade oferecer ao indivduo uma alternativa aos problemas que afetam sua vida e sua comunidade.Eu no quero endeusar a razo e sim, ao contrrio, dizer que ns s poderemos ter clareza sobre os limites de nossa razo, se agirmos de modo racional. No podemos lanar fora a modernidade, que determinada por esta figura bsica do pensamento kantiano, como se ela fosse uma camisa suja. As condies de vida moderna, que ns no escolhemos por ns mesmos, e sob as quais nos encontramos, so inevitveis do ponto de vista existencial; mesmo assim, aos olhos despertos da modernidade, elas significam um desafio a mais, no uma 45 simples fatalidade.

Habermas defende a posio da construo da validade de argumentos universais necessrios como parte do agir comunicativo orientado para o entendimento mtuo. Habermas v-se a si prprio como um continuador do programa da Escola de

44

Id. Ibid., p. 77. Id. Ibid., p. 92.

45

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Frankfurt sem, no entanto, partilhar dos pressupostos quer serviram de base para a construo terica dessa escola46 . Ele apresenta o princpio fundamental do discurso segundo o qual so vlidas, legtimas ou aceitveis racionalmente todas as normas e modos de agir nos quais todos os envolvidos podem consentir enquanto participantes de discursos racionais-universais. Nestes ltimos anos, o autor tem se dedicado a reformular a teoria kantiana da moral: Empreendi nos ltimos anos, juntamente com K.O. Apel, a tentativa de reformular a teoria kantiana da moral, tendo em vista a questo da fundamentao de normas atravs de meios da teoria da comunicao47 . Portanto, Habermas defende o paradigma comunicativo-lingstico

democrtico, partilhado intersubjetivamente e interdisciplinarmente, que reflete o contexto do mundo da vida e assume o compromisso com a verdade consensual argumentativa e da publicidade do dilogo como meio para se chegar ao entendimento.

1.4 CARACTERSTICAS DA CONTEMPORANEIDADE A poca contempornea marcada por profundas transformaes econmicas, sociais, polticas e culturais que culminam em crises atingindo todos os setores da vida.A crise da utopia marxista e a derrubada do campo socialista abrem caminho para a hegemonia do neoliberalismo e a exaltao do mercado como non plus ultra em um , mundo globalizado, onde a bipolaridade foi substituda por guerras entre naes e etnias, alm de fundamentalismos de signos distintos. O atual modelo de civilizao aprofunda as contradies entre Norte e Sul, capital e trabalho, homem e mulher, branco e de cor,

SOUZA, Jess. Patologias da modernidade: um dilogo entre Habermas e Weber. So Paulo: Annablume, 1997, p. 83.47

46

HABERMAS, Comentrios tica do discurso, p. 13.

30

crescimento econmico e natureza, geraes presente e futura, consumo e felicidade, 48 excluso e integrao, cultura blica e cultura de paz.

A expanso do capitalismo industrial e financeiro obteve supremacia sobre o comercial, reforando a poltica dos monoplios de dominao de mercado pelas mega-empresas. A poderosa burguesia industrial e financeira tem seus interesses representados nos governos das grandes potncias. A necessidade da expanso dos investimentos de capitais e de ampliaes dos mercados consumidores traduziu-se nas ambies imperialistas das potncias capitalistas. Com o objetivo de assegurar fontes de matrias-primas e mercados consumidores para os poderosos conglomerados monopolistas industriais. As ambies imperialistas das grandes potncias figuram entre os principais fatores responsveis pelo clima de rivalidade internacional, marcando o sculo XX com a exploso da primeira e segunda guerras mundiais. Segundo Adam SCHAFF, todas as pessoas pensantes do mundo percebem que nos encontramos diante de uma mudana profunda, que no apenas tecnolgica, mas abrange todas as esferas da vida social. Em vista das alarmantes manifestaes deste processo, persiste o perigo da guerra49 A poca contempornea caracterizava-se pela . consolidao do poder poltico da burguesia que, no mundo capitalista, tornou-se classe dominante, tanto nos pases ricos (Primeiro Mundo) como nos pases pobres (Terceiro Mundo). Para Eric HOBSBAWM, vivemos num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titnico processo econmico e tecnocientfico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois ou trs ltimos sculos50 Na condio de classe . dominante, a burguesia promoveu a difuso ideolgica de sua viso de mundo, que48

SEGRERA, Francisco Lpes. Alternativas para a Amrica Latina s vsperas do sculo XXI. In: SEGRERA, Franciso L. A crise dos paradigmas em cincias sociais para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 251-252.49

SCHAFF, Adam. A sociedade informtica as conseqncias sociais da segunda Revoluo Industriial. 4.ed. So Paulo: Universidade Paulista; Brasiliense, 1995, p. 15. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. 2.ed. Traduo de: Marcos Santarita. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 562.50

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corresponde, fundamentalmente, ao liberalismo. Esse sistema de idias est vinculado s principais atividades econmicas, comerciais e industriais, de mercado, hoje globalizado. O desenvolvimento tecnolgico e cientfico ligado expanso industrial capitalista teve um carter revolucionrio, promovendo alteraes no modo de vida dos povos, sobretudo no campo dos transportes, comunicao, armamentos e trabalho.A cincia tornar-se- a fora produtiva primria e a produo ter necessidade, alm dos autmatos, de tcnicos e de engenheiros. O desaparecimento do trabalho manual na produo acarretar a eliminao de toda diferena entre trabalho manual e intelectual. Este fenmeno implicar tambm o desaparecimento da classe operria, gerando assim diversos problemas e preocupaes para os partidos e movimentos polticos que ainda hoje querem 51 conservar de modo doutrinrio sua posio de partidos da classe operria.

Neste contexto, as foras so ampliadas por robs (automao), aumentando consideravelmente a produo. Por outro lado, estamos assistindo a substituio do homem pela mquina no interior da esfera produtiva, acentuando o fenmeno social da excludncia. Apesar dos avanos tcnicos e cientficos, os movimentos intelectuais refletem a imagem de uma sociedade perturbada e instvel, abalada pela depresso econmica. Persistem, em nossos dias, dvidas e questionamentos sobre os rumos da civilizao industrial e a situao do homem nesse mundo de acentuada sofisticao tecnolgica.

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SCHAFF, p. 126.

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O preo a ser pago pela introduo da economia de mercado inclui: desigualdade social, novas divises, e uma porcentagem elevada, no passageira, de desempregados. Haver um nmero relativamente elevado de desempregados nos novos Estados da Alemanha porque uma parte da populao idosa e a outra mal preparada para suportar a considervel presso de mudana: para isso necessria robustez de esprito e preparo cognitivo. Como sempre acontece nos casos de uma transformao social alterada, as crises so descarregadas sobre a 52 vida, a sade fsica e psquica dos indivduos mais fortemente atingidos.

Atualmente, o processo histrico universal da emancipao do homem assume tanto a forma da luta pela soluo dos problemas vitais e globais do nosso tempo, como a explorao da classe operria e das massas trabalhadoras, e tambm o desafio de vencer as desigualdades sociais dos extremos contrastes entre pobres e ricos. O mundo atravessa uma crise que se estende a todas as esferas: poltica, ideologia, cultura e ao mundo da vida. Estamos no incio de uma nova era, caracterizada por grande insegurana, crise permanente e ausncia de qualquer tipo de status quo. O Breve Sculo XX acabou em problemas para os quais ningum tinha, nem dizia ter, solues53 . No momento, agrava-se o fenmeno denominado crise da estrutura e que abarca as crises prolongadas de superproduo em determinados setores,

(nomeadamente na siderurgia, nas indstrias txtil, automobilstica e naval), as de subproduo das indstrias extrativas (a crise energtica, de matrias-primas, de alimentao), aquelas, no sistema financeiro, de crdito e monetrio, assim como as tendncias duradouras da recesso de produo e de rendimento do trabalho. So crises cada vez mais agudas, como a perda do valor aquisitivo, o desemprego sem precedentes, inanio das dezenas de milhes de pessoas condenadas ao a54 desemprego estrutural , a recesso, a utilizao incompleta das capacidades de

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HABERMAS, Passado como futuro, p. 60. HOBSBAWM, p. 537. SCHAFF, p. 36.

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produo, a militarizao da economia, da cincia e da tecnologia a servio do capital, e da razo instrumental. No Brasil, podemos dizer que ainda persiste este quadro no qual os ricos tornaram-se mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Conforme a anlise de Habermas,A distribuio da riqueza na Amrica Latina concentracionista, grande parte da populao vive em absoluta misria. Enquanto os ricos se tornam mais ricos, no somente os pobres se tornam mais pobres, mas tambm cada vez mais pobres so expulsos do sistema e lanados nas subclasses daqueles que no dispem de fora de veto, ou seja, daqueles que no conseguem mais melhorar a sua situao atravs dos prprios esforos. Numa palavra: o clima social ir esfriar 55 consideravelmente.

alarmante o crescimento da pobreza num momento em que a automao substitui a mo-de-obra, em que os membros da terceira idade aumentam e num contexto em que quase no existem planos adequados para canalizar o cio de forma criadora e produtiva. Segundo Francisco Lpez SEGRERA,O surgimento de uma nova dimenso da pobreza como excluso social (como marginalizao da economia, da sociedade formal e do circuito de produodistribuio-consumo) e no mais como explorao stricto sensu. Em 1960, a Amrica Latina tinha 114 milhes de pobres; na dcada de 1980, esse nmero chegou a alcanar 196 milhes, e em 1997, em termos absolutos, o nmero de latino-americanos e caribenhos em situao de pobreza ascendia a 210 milhes , 56 a quantidade mais elevada de todos os tempos.

Esse fenmeno da excluso social no contexto da Amrica Latina a conseqncia de uma opo poltica pelo predomnio de uso da racionalidade instrumental como coordenadora das aes humanas. Os traos patolgicos das sociedades modernas condensam-se em figuras na medida em que se torna visvel uma preponderncia das formas econmicas e burocrticas ou, em geral, cognitivo55

HABERMAS, Passado como futuro, p. 61. SEGRERA, p. 225.

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instrumentais da racionalidade, determinadas pela lgica de uma poltica dirigida por imperativos econmicos e estatais do sistema57 Podemos entender aqui como os . interesses sistmicos do mundo capitalista, que faz com que: Os sistemas da economia e da administrao tendem a fechar-se contra os seus respectivos ambientes, obedecendo apenas aos imperativos do dinheiro e do poder58 . Para legitimar estes imperativos do dinheiro e do poder a tecnologia , utilizada como um signo da nossa poca, que se expressa como uma ideologia que perpassa todas as esferas da vida e da estrutura social.Todas as esferas da vida pblica estaro cobertas por processos informatizados e por algum tipo de inteligncia artificial, que ter relao com computadores de geraes subseqentes. O problema no est no modo como ocorre este processo nas diversas esferas da vida pblica; o verdadeiro problema quem deve gerir os resultados deste processo informtico generalizado e como utiliza os dados que tem sua disposio. Quanto maior a expanso do processo, maior o perigo de uma diviso entre os que possuem e os que no possuem as 59 informaes adequadas.

Nos dias atuais, h uma influncia muito forte do mercado sobre os indivduos e os grupos sociais. Se este processo se inverter, os detentores da ideologia de mercado podem se rebelar para defender seus interesses. Segundo SCHAFF,O surgimento do fascismo no passado recente deveria servir como uma severa advertncia. Naquele perodo o totalitarismo se afirmou triunfalmente diante da surpresa de muitos, incluindo os movimentos revolucionrios de todo o mundo. Este fenmeno ocorreu porque as pessoas no souberam e inclusive no quiseram acreditar no que viam. A histria demonstrou o que pode fazer a fria das classes proprietrias quando seu poder se v ameaado. Tudo isto pode se repetir, a despeito das belas perspectivas para o futuro, mas desta vez devemos 60 nos opor com todas as nossas foras.

57

HABERMAS, O discurso filosfico da modernidade, p. 319 e 326. HABERMAS, Direito e Democracia..., v. 2, p. 294. SCHAFF, p. 49. SCHAFF, p. 59.

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Fica-se surdo aos clamores da natureza, e mais ainda aos da natureza humana, principalmente dos que no dispem de competncias mnimas de falar e agir. O mundo hoje est mais voltado para o consumo, muitas vezes perverso, excludente, desenfreado. Para SEGRERA,O mundo rico est orientado para o consumo e perdeu o sentido do esforo e da solidariedade, pois em poder de 20% dos homens esto concentrados 80% das riquezas. Se a hegemonia desmedida do Estado restringe a liberdade, no podemos ignorar que a hegemonia indiscriminada do mercado pode nos levar a 61 um ponto de no retorno.

No entanto, diante deste cenrio abrem-se tambm possibilidades de reflexo crtica, norteadas pelos imperativos da razo emancipatria, no contexto de desenvolvimento da vida das pessoas onde o novo poder emergir como trajetria na construo de um mundo melhor, mais humano e mais democrtico. Com isto, possvel cortar o n grdio dos problemas simplesmente insolveis62 . Na era da informao em tempo real, globalizao da economia, realidade virtual, internet, procriao assistida, quebra de fronteiras das naes, megablocos econmicos, ensino a distncia, escritrios virtuais, robtica e sistemas de produo automatizados, empresas transnacionais, operrios multifuncionais, canais multimdia de informao e entretenimento, ns ainda acreditamos que o uso crtico da razo e da linguagem poder favorecer o processo de conscientizao emancipatria, de vida democrtica e de maior solidariedade entre os seres humanos. Segundo SCHAFF, O advento da sociedade informtica, portanto, nos anuncia no apenas um novo estilo de vida, mas tambm uma vida mais satisfatria do ponto de vista de auto-realizao dos indivduos; considerando o melhoramento das condies materiais de existncia, tambm uma vida mais feliz 63 .

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SEGRERA, p. 265. HABERMAS, Passado como futuro, p. 94. SCHAFF, p. 134.

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Neste novo sculo que estamos iniciando, a humanidade dever concentrar esforos para vencer essa realidade de contrastes e gritantes desigualdades sociais. Para que isto seja possvel, preciso, do ponto de vista tico, substituir a competio pelas relaes intersubjetivas.

1.5 TENTATIVAS DE INTERPRETAO DA SOCIEDADE CONTEMPORNEA A PARTIR DA TICA HABERMASIANA A sociedade moderna avana a passos de gigante desde que a mquina foi introduzida como intermediria entre os homens e a natureza. A humanidade passou a conhecer no uma, mas sucessivas revolues industriais. A produo mecanizada e a racionalizao do trabalho avanam num processo de transformao dos homens em objetos tcnicos, at a possibilidade ps-mquina do sistema tecnolgico de controlar o homem. J ingressamos na era da informtica ou da terceira revoluo industrial, estendendo a inovao tecnolgica aos campos da robotizao, computao, internet. Paralelamente a este avano, aparecem tambm as crises sistmicas. Na era atual,Sentimos de forma aguda uma crise desencadeada pelas cincias e pela filosofia, na qual assistimos s tentativas variadas de contestao do pensamento esclarecedor, a desconstruo ou, pelo menos, a fragmentao da razo, que constitui a mola mestra do esclarecimento, de que resulta, s vezes, a recada em mitologias arcaicas, formas pseudocientficas de interpretao do mundo e diferentes tipos de dominao, levando no somente a razo ao descrdito, como 64 pem em risco a liberdade do sujeito e da sociedade.

As crises a que Habermas se refere so as crises sistmicas que envolvem todos os setores da vida, dado o desequilbrio do prprio mundo sistmico.6564

SIEBENEICHLER, Flvio Beno. Jrgen Habermas: razo comunicativa e emancipao. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 11.65

Habermas traa uma anlise interessante dos sistemas de nossa crise, a partir do medo e dos protestos, silenciosos ou estridentes, da populao global contra a destruio de partes substanciais do mundo vital contemporneo. Medo diante dos reatores nucleares, do lixo atmico, da manipulao dos gens animais e humanos constitui um medo real. (...). Estes sintomas podem ser tomados como indcios seguros de que algo no est em ordem na sociedade atual, existe uma crise na base das suas estruturas profundas, da qual poder resultar tanto a destruio, como um novo nvel de identidade racional dos sujeitos e da sociedade SIEBENEICHLER, p. 38-39. .

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Crises so as perturbaes mais duradouras da integrao sistmica, decorrentes de problemas no resolvidos. Nesta leitura a sociedade atual, o mundo atual est marcado por tendncias de crises, as quais sintetizamos no quadro a seguir.

Explicaes Propostas o aparelho do Estado age como rgo executivo inconsciente, maneira natural, da lei do valor; - o aparelho do Estado age como agente planejador do capital monopolista unificado. Crise de racionalidade Ocorre a destruio da racionalidade administrativa atravs de: - interesses opostos dos capitalistas individuais. - produo (necessria para contnua existncia) de estruturas alheias ao sistema. Crise de legitimao - limites sistemticos; - efeitos colaterais no-desejados (politizao); das intervenes administrativas na tradio cultural. Crise de motivao - eroso de tradies importantes para a existncia contnua do sistema; - sobrecarga atravs de sistemas universalistas de valores ( novas necessidades). FONTE: HABERMAS, J. A crise de legitimao no capitalismo tardio. Traduo de: Vermireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. p. 67. -

Tendncias de Crise Crise econmica

A sociedade atual instrumentalizada, na medida em que se submete s atividades, s relaes e instituies sociais e aos critrios de uma racionalidade formal, essencialmente orientada para a eficcia estratgica e ao sucesso tcnico das empresas econmicas e polticas. Com o surgimento das sociedades capitalistas, inicia-se o processo de racionalizao moderna, possibilitando a passagem do sistema feudal ao burgus. Rasgou-se o contexto comunicativo de um pblico pensante constitudo por pessoas privadas: a opinio, que uma vez j provinha dele, est em parte decomposta em opinies informais de pessoas privadas e sem pblico e, em parte, concentrada em opinies formais de instituies jornalsticas ativas66 . Na sociedade capitalista de consumo, a racionalidade comunicativa orientada pela linguagem substituda pela teleolgica, dirigida e controlada pelas novas mdias. Assim, dinheiro e poder, com os novos meios de comunicao,66

HABERMAS, J. Mudana estrutural da esfera pblica: investigaes quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Traduo de: Flvio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 287.

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possibilitam a diferenciao dos dois subsistemas de ao racional teleolgica: economia e administrao estatal. As mdias se apresentam como reorganizadores do privado. prpria esfera pblica se privatiza na conscincia do pblico consumidor. A A conscincia da privacidade se eleva atravs de uma tal publicidade67 . Habermas reinterpreta as deficincias modernas como deformao provocada pela penetrao dos sub-sistemas economia e administrao. As medidas administrativas definem-se cada vez mais por essa meta de impor o modo de produo capitalista. A modernidade capitalista avana na medida em que o sistema econmico se torna independente e princpio de organizao da sociedade. Nas sociedades assim modernizadas, as perturbaes da reproduo material do mundo da vida assumem a figura de desequilbrios sistmicos que agem provocando crises ou patologias. O capitalismo, para poder superar as crises endgenas do subsistema econmico, acaba estendendo os processos de monitorizao e burocratizao,

atravs dos papis do trabalhador e consumidor, de cliente e cidado, at o mundo da vida. Com a interveno estatal na economia, o sistema consegue neutralizar o papel do trabalhador e pacificar, assim, o conflito social. A lgica sistmica invade, deste modo, tanto a esfera privada quanto a pblica e esta colonizao provoca efeitos patolgicos. sociedades industriais avanadas parecem aproximar-se de um tipo de As controle do comportamento dirigido mais por estmulos externos do que por normas. O controle indirecto mediante estmulos condicionados aumentando sobretudo nos campos de liberdade aparentemente subjectiva (comportamento eleitoral, consumo e68 tempo livre).

Neste processo, o mundo sistmico proporciona, atravs de meios como a tcnica, a cincia, a economia, a administrao, a psicologia, a publicidade, a imprensa e a cultura de massa, maior aumento de comportamento adaptativo pelas foras

67

Id. Ibid., p. 203. HABERMAS, Tcnica e cincia como ideologia, p. 75-76.

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ideolgicas que penetram nas grandes massas, manipulando a realidade conforme os interesses da esfera privada burguesa. No capitalismo liberal, as crises aparecem na forma de problemas econmicos de direo ou de gesto no resolvidos. Nas sociedades liberais capitalistas, por outro lado, as crises tornam-se endmicas porque existem problemas de conduo temporariamente sem soluo que o processo de crescimento econmico produz em intervalos mais ou menos regulares enquanto faz ameaa integrao social69 O fracasso na integrao social manifesta-se no estado de anomia e nos . correspondentes conflitos de insegurana da identidade coletiva e de alienao pessoal. A crise, de modo geral, atinge todos os setores: a arte, o dinheiro, a religio, a poltica, as organizaes e instituies e a existncia humana.Um dos grandes problemas dos tempos atuais a dificuldade de se fundamentar uma moral com condies de proporcionar a identidade do eu-individual e a identidade de grupos sociais. (...). No sabemos como devemos viver, que normas devemos seguir, qual deva ser a medida das normas. Vivemos uma crise de legitimidade de normas. E o que o mais grave: no sabemos o que devemos 70 querer para bem viver.

O avano indevido das formas de racionalidade tcnica, econmica e administrativa, da racionalidade do sistema, em reas dos valores ticos, fragmenta o mundo da vida. Habermas contrape o mundo da crise ao projeto de restaurao da esfera pblica Formula, na Teoria da Ao Comunicativa, as condies universais . para a produo de enunciados a partir do paradigma de uma situao lingstica ideal em que interlocutores resolvem seus impasses pela argumentao, livre de distores ideolgicas ou coercitivas. teoria de Habermas tem a vantagem de apresentar uma A perspectiva alternativa (...) por estar apoiada numa teoria hermenutica macroscpica, centrada num conceito de razo comunicativa [que] permite interpretar a sociedade69

HABERMAS, J. A crise de legitimao no capitalismo tardio. Traduo de: Vermireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. p. 39.70

SIEBENEICHLER, p.41.

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como um complexo que abrange simultaneamente valores culturais e imperativos do sistema71 . Habermas no s possibilita uma compreenso mais adequada do mundo contemporneo com suas patologias, mas tambm abre o caminho de sua possvel cura. Ele aponta para um futuro promissor no qual a racionalidade comunicativa poder se opor s tentativas invasoras da dimenso instrumental, e a humanidade pode escolher, dentre os caminhos estruturalmente possveis, aquele mais humanizado, porque fundamentado intersubjetivamente. nica sada da crise atual continua sendo a filosofia crtica, prtica. A Uma filosofia transformada em crtica e em teoria da racionalidade72 A filosofia . diagnosticar a atualidade, levantar os elementos reprimidos da razo comunicativa na histria, bem como esboar uma anlise interdisciplinar, cooperativa, incorporada na razo comunicativa, nos movimentos e nas instituies sociais as quais configuram a sociedade atual, em crise devido ao avano colonizador dos sistemas nocomunicativos. Segundo Habermas, deve-se buscar a identidade e emancipao individual e social atravs da reflexo filosfica crtica e do esclarecimento racional, a fim de fazer com que a autonomia do indivduo se generalize, graas ao procedimento do dilogo comunicativo pblico. A sociedade deve constituir-se como sociedade civil num quadro que constitudo a partir das liberdades radicalizadas da comunicao poltica73 Atravs da comunicao pblica partilhada intersubjetivamente, pode-se . evidenciar os contextos dos interesses pblicos de uma vida tica. A comunicao a , linguagem como medium universal, passa a constituir o critrio do processo , emancipatrio, libertador. Do ponto de vista da teoria da comunicao surge, em

71

Id. Ibid., p. 40. Id. Ibid. p. 51. HABERMAS, Passado como futuro, p. 83.

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contrapartida, uma relao mais estreita entre a preocupao pelo bem-estar do prximo e o interesse pelo bem-estar geral74 . A razo comunicativa abre a perspectiva do entendimento, do consenso racional de indivduos que se comunicam entre si. Processo a partir do qual as coisas podero melhorar pelo fato de incorporar o interesse emancipatrio. No prximo captulo, abordaremos a questes pertinentes filosofia, que para Habermas assume uma postura de mediao, de interpretao e de reconstruo e interao com as diversas instncias das cincias que se concretizam atravs de um processo reflexivo-dialgico e dialtico-crtico. Destacaremos tambm a teoria crtica como fator de reflexo e a hermenutica como uma arte e um mtodo de interpretao que poder nos auxiliar na compreenso do processo argumentativo-discursivocomunicativo.

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HABERMAS, Comentrios tica do discurso, p. 70.

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A FILOSOFIA, A TEORIA CRTICA E A HERMENUTICA DE HABERMAS: PRIMEIRAS APROXIMAES No captulo anterior, enfocamos a vida do filsofo Habermas, a sua

trajetria intelectual, as suas obras, que destacam o pensamento filosfico voltado para a dimenso comunicativa, e a repercusso desta filosofia no Brasil. Ao desenvolver sua Teoria da Ao Comunicativa baseada no entendimento, Habermas buscou encontrar respostas para os que so, a seu ver, os principais problemas da poca contempornea, fortemente marcada por crises que afetam o mundo da vida. Nesse sentido, a sada apontada para esta crise , precisamente, o paradigma da comunicao voltada para o entendimento.

2.1 A FILOSOFIA No campo da filosofia, Habermas recebeu fortes influncias da filosofia alem, especific