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Revista Memria em Rede, Pelotas, v.2, n.6, Jan / Jun. 2012 ISSN- 2177-4129 www.ufpel.edu.br/ich/memoriaemrede

O lugar da lembrana. Reflexes sobre a teoria da memria coletiva em Paul RicoeurJeffrey Andrew BARASH1 Resumo: O presente estudo se dedica a examinar o conceito de memria coletiva interrogando-se a respeito da interpretao proposta por Paul Ricoeur em sua obra A memria, a histria, o esquecimento O autor apresenta uma leitura crtica da interpretao da memria coletiva em Ricoeur quando este busca compreender o fenmeno por analogia memria pessoal e assume o risco, segundo essa leitura, de ocultar as dimenses da memria coletiva que escapam a tal relao analgica. O autor busca ento ultrapassar o quadro dessa analogia por uma anlise das fontes simblicas e metapessoais da memria coletiva. Palavras-chave: memria coletiva, smbolo,Paul Ricoeur Abstract: This study examines the concept of collective memory through an investigation of Paul Ricurs interpretation of this concept in his work, Memory, History, Forgetting. In presenting a critical reading of the analogy Ricur establishes between collective and personal memory, the author argues that this analogy risks excluding those dimensions of collective memory which cannot be comprehended through such an analogical interpretation. The attempt is then made to surmount this difficulty through an analysis of collective memory in relation to its symbolic and metapersonal sources. Keywords : collective memory, symbol, Paul Ricoeur O tema da memria coletiva, que toca de maneira essencial a questo do princpio de coeso social, assume um papel singular no contexto heterogneo de nossas sociedades contemporneas. A funo pblica da memria coletiva, sob a forma de comemoraes ou de museus, bem como a evocao de lembranas traumatizantes por toda uma coletividade, suscita um vivo debate em um grande nmero de campos de anlise, indo das cincias cognitivas Cincia Poltica, Sociologia, Histria e s demais disciplinas das Cincias Sociais. O grande mrito da obra de Ricoeur, A memria, a histria e o esquecimento, o de ter abraado em sua reflexo numerosos argumentos oriundos de diversos campos de anlise; todavia, o que manter nosso interesse no propsito que se segue no a diversidade das perspectivas que ele examina, mas a motivao profunda que nutre sua concepo de memria portadora de uma reflexo moral que atravessa toda a sua obra. Desde a primeira pgina de Advertncias esta motivao est claramente expressa:1

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Amiens, Frana.

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Perturba-me o inquietante espetculo causado ora pelo excesso de memria aqui, ora pelo excesso de esquecimento acol, isso para no falar da influncia das comemoraes e dos abusos de memria e do esquecimento. A idia de uma poltica da memria correta, justa, sob esse prisma, confessadamente um de meus temas cvicos2. A inteno aqui anunciada expressa uma ambio considervel: em A memria, a histria e o esquecimento, a reflexo feita por Ricoeur no aborda apenas a memria ou o esquecimento prprios a indivduos ou a grupos restritos, mas tambm considera a ordem poltica, no sentido fundamental dessa expresso. A preocupao em identificar uma memria justa, um autntico tema cvico implica em uma poltica e, simultaneamente, alarga o espectro de sua reflexo memria das coletividades nacionais e dos diversos grupos que a compem, organizadas dentro das grandes ordens polticas conhecidas na poca contempornea. Como se deve ouvir a ordem moral que se prope a reestabelecer a justa memria aplicando as categorias de um excesso de memria ou de um excesso de esquecimento a vastas coletividades polticas? Em que medida essa orientao moral apropriada ao domnio poltico? Nesse propsito, buscaremos fornecer elementos que respondam a essas perguntas a partir de uma reflexo crtica sobre a obra de Paul Ricoeur A memria, a histria, o esquecimento.

IJ na primeira parte da obra A memria, a histria, o esquecimento, que se intitula Da memria e da reminiscncia, Paul Ricoeur apodera-se de um problema fundamental que organiza toda a sua reflexo sobre as implicaes polticas da memria: ele se pergunta como possvel, a partir da experincia primeira da memria - a que se enraza inicialmente na esfera da pessoa e de sua intimidade -, darse conta de uma memria para muitos, ou seja, de uma memria coletiva estendendo-se at aos grupos polticos? Uma vez identificado, que condies nos permitiriam designar a esse princpio de coeso um excesso de memria ou um excesso de esquecimento? Para responder a essa pergunta a respeito das caractersticas de uma memria em larga escala, Ricoeur enriquece nossa anlise com toda uma reflexo anterior sobre o papel da memria na constituio da identidade humana. Com muita preciso, ele define as grandes etapas no desenvolvimento da reflexo filosfica sobre a memria e2

Paul Ricoeur, A memria, a histria e o esquecimento, Paris, d. Du Seuil, 2000, p.1.

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o modo pelo qual ela investida no papel principal da elaborao moderna da identidade pessoal, depois das identidades coletivas. Como ele bem nos recorda, foi John Locke quem, rompendo com as teorias substancialistas da alma herdadas da Antiguidade e da metafsica moderna, colocou como fundamento nico da identidade pessoal a experincia que cada indivduo tem de si mesmo, enquanto uma mesma coisa pensante em lugares e tempos diferentes. De acordo com Locke, a identidade de uma pessoa se estende to longe quanto a conscincia de si pode se estender sobre as aes ou os pensamentos j passados. Desse modo, baseado em uma conscincia de si e os diferentes momentos de sua experincia que cada um se representa e constitui a unidade de seu prprio ser; a partir da memria de si mesmo no passado que o indivduo se conhece como sendo o mesmo de um tempo a outro, bem como de um lugar a outro3. Todavia, a questo do lao entre os indivduos, entre as memrias singulares constitutivas da identidade de diferentes pessoas, no apresenta um problema particular para Locke que dele se ocupa no tema do contrato entre os indivduos isolados e do quadro fornecido pelas instituies polticas para soldar o ser coletivo das sociedades polticas sem buscar por outro princpio de coeso social. Para Ricoeur, contudo, a perspectiva nica do atomismo social e do contratualismo poltico no da conta dos complexos laos de coeso que unem as vastas coletividades modernas. Ele busca outro lao e outra identidade coletiva que ultrapasse as memrias pessoais dos indivduos. Para tanto, Ricoeur resiste tendncia inversa, a que recusa a experincia pessoal de atribuir um estatuto de autntico sujeito na elaborao de lembranas4. Toma-se como prova disso, a maneira pela qal ele submete a seu crivo a teoria da memria coletiva elaborada por Maurice Halbwachs, nomeadamente em Os quadros sociais da memria e A memria coletiva. Halbwachs tentou demonstrar que a memria coletiva, longe de ser composta por um conjunto de memrias individuais, encontra-se, sobretudo, no fundamento da memria e da conscincia pessoal. Est anlise, como salienta Ricoeur, torna a reduzir a conscincia pessoal a uma fonte coletiva, aos quadros sociais sobre os quais ela se ergueria: nosso meio social agiria sobre ns, quer estejamos ou no conscientes de sua influncia e, nesse sentido,

John Locke, Essai philosophique concernant lentendement humain, trad. Coste, liv.II, 27,9, Paris, Vrin, 1983, p.264-265. Citado por Paul Ricoeur, A memria, a histria, o esquecimento, p. 125. Ver igualmente a esse respeito meu artigo As fontes da memria, Mmoire, histoire, Revue de mtaphysique et de morale, n1,1998, p.137-148. 4 Paul Ricoeur, La mmoire, lhistoire, loubli, p.149.3

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nossos pensamentos e lembranas mais ntimas receptam uma rede de significados oriundos da coletividade externa a ns. Alm de sua trajetria entre essas duas escolhas, Ricoeur est em busca de um princpio de coeso capaz de considerar simultaneamente a experincia pessoal em sua autonomia5 e a dimenso metapessoal da experincia coletiva com a qual ela est estreitamente ligada. Ele busca o ponto de apoio indispensvel identificao desse princpio em uma das fontes mais antigas de sua empreitada filosfica, a fenomenologia de Husserl, e particularmente na quinta parte das Meditaes cartesianas, que questiona em seus fundamentos a busca originria do outro. Para Husserl, a condio que possibilita a compreenso de outrem nasce de uma apresentao a priori, de uma experincia analgica do outro pelo prprio ego, ainda que essa constituio do outro em mim, ou segundo a terminologia de Husserl, a experincia de outros no-eu sob forma de outros eu, longe de se limitar simples busca por uma pluralidade de outros isolados, se apresenta, de ora em diante em mim como comunidade6. Esse ato constitutivo, presente em todos os nveis de sua articulao no mundo social, serve como ponto de partida teoria da intersubjetividade, das dimenses interpessoais s comunidades intersubjectivas superiores que designam as coletividades expandidas. Ricoeur tem conscincia de que Husserl no invoca a noo de memria comum em sua teoria da constituio dessas comunidades7,de resto fica evidente que Husserl coloca o princpio de coeso da identidade coletiva no ego transcedental que ele pressupe, fundamento absoluto do sentido inerente ao mundo comum vivido, o papel da memria comum reside certamente secundrio. Esta a razo pela qual Ricoeur, mesmo adotando o vocabulrio da intersubjetividade husserliana, continua ctico em relao ao idealismo transcedental de Husserl porque implica em colocar a soberania do eu no corao da constituio do outro e fundamenta sobre tal base o sentido intersubjetivo. Desde seus primeiros escritos, todo o trabalho hermenutico de Ricoeur consistiu em romper com essa noo de soberania do cogito sob qualquer forma, buscando limitar seu papel na constituio do sentido de sua experincia. Ele nomeia cogito ferido ou cogito

Proust que nos lembra que a memria repousa, em ltima anlise, sobre a inteno que o indivduo atribui a uma experincia e demonstra a importncia que ele lhe concede: Mesmo com memrias iguais ele escreve duas pessoas no se recordam das mesmas coisas. Uma ter dado pouca ateno a um fato em relao ao qual outra guardar grande remorso. Marcel Proust, la recherche du temps perdu, tomo III, Le temps retrouv, Paris Gallimard, d. de la Pliade, p.971 6 Edmund HUSSERL, Mditations cartsiennes, Introduction la phenomenologie, traduction de Gabrielle Peiffer et Emmanuel Levinas, Paris, Vrin, 1969, p. 74-91. 7 Paul RICOEUR, La mmoire, lhistoire, loubli, p. 143.

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quebrado o cogito convidado a ser, de tal modo, mais humilde8. No para menos que ele conserva o papel paradigmtico que Husserl atribui analogia entre a conscincia pessoal e a comunidade e que ele utiliza para elaborar toda sua concepo de coeso social e de memria coletiva. desse modo que ele escreve, por analogia unicamente, e em relao conscincia individual e a sua memria, que se toma a memria coletiva por uma coletnea dos traos deixados pelos acontecimentos que afetaram o curso da histria dos grupos referidos e a quem se reconhece o poder de trazer cena essas lembranas em comum por ocasio de festas, de ritos, de celebraes polticas9. O princpio da analogia entre o indivduo e o grupo rege, em Ricoeur, duas categorias principais de anlise da memria, por um lado a dvida e o dever da memria, por outro, o trabalho da memria no modelo da terapia psicanaltica. dai que se origina minha principal questo: a relao analgica entre o indivduo e a sociedade nos permite situar o lugar da memria coletiva? O recurso a essa analogia permite a identificao do princpio de coeso? essa tendncia constante em reconduzir a memria coletiva s figuras analgicas de uma memria pessoal que convm examinar mais de perto, questionando-nos sobre a legitimidade de sua ambio em liberar, em toda a sua profundidade, o princpio de coeso da memria coletiva. Se Ricoeur denuncia, no idealismo transcedental de Husserl, sua pretenso em reconduzir todo sentido aos atos constitutivos de um ego, o fato de privilegiar a relao analgica entre pessoa e comunidade no implica o risco de ocultar a ou as dimenses da identidade coletiva que escapam a essa caracterizao por analogia com a identidade pessoal? Parece-me indispensvel identificar uma significao coletiva que seja capaz de transpor toda definio analgica em relao memria pessoal sem, contudo, cessar de alimentar a identidade dos diferentes membros de uma comunidade. Dito de outro modo, busco questionar aqui o sentido da memria coletiva qual se atribui a base fundadora do lao entre os diferentes membros da comunidade, antes de confrontar minha anlise ao trabalho de Paul Ricoeur.

IIO que a memria coletiva? primeira vista, esse fenmeno reagrupa no apenas um grande nmero de fenmenos, mas igualmente fenmenos que se situamPaul RICOEUR, De linterprtation, Essai sur Freud, Paris, d. Du Seuil, 1965, p.425; Paul Ricoeur, Soi-mme comme um autre, Paris, d. du Seuil, 1990, p.22-27. 9 Paul RICOEUR, Ibid, p.145.8

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em diferentes nveis da experincia. Pode tratar-se, por exemplo, da experincia de um grupo restrito quer seja uma famlia, uma classe escolar ou uma associao profissional. As lembranas so ento relativamente simples, pode ser tambm um acontecimento importante que tenha marcado a vida de um grupo to bem que os membros se lembraro dele durante toda sua vida. Em outro nvel, podemos evocar as lembranas, que os grupos mais amplos partilham e que marcam, fundamentalmente, a identidade pessoal de cada um, ainda que revelem prticas coletivas bem mais antigas que cada um dos membros do grupo. Como tais so as prticas polticas ou religiosas, regidas por sistemas de significao simblica. Por exemplo, quando indivduos de mesma nacionalidade ouvem o hino nacional de seu pas, eles se levantam em sinal de patriotismo, enquanto que os membros da Igreja crist celebram o rito da eucaristia lembrando-se das palavras de Cristo Este meu corpo, dado a vs; faais isso em minha memria. Neste caso, as identidades dos grupos restritos apelam s lembranas das comunidades ampliadas e se nutrem de prticas simblicas que fundam toda a experincia coletiva como tal. Essa breve anlise convida-nos a concluir, de maneira preliminar, que a possibilidade de referir a memria coletiva alm da esfera da experincia pessoal, qualquer que seja a variedade dos nveis nos quais se possa situ-la, reside no poder comunicativo dos smbolos. A adoo de smbolos, como as bandeiras no domnio poltico ou a hstia no rito religioso, confere um sentido experincia, acessando uma rede profunda de reminiscncias metapessoais. De modo surpreendente, contudo, visto o interesse manifestado por Ricoeur pelo smbolo em seus trabalhos anteriores, ele no insiste muito no tema em sua interpretao da memria10, enquanto que, para mim, essa dimenso metapessoal do smbolo que poderia ajudar-nos a ultrapassar o quadro da relao analgica com a pessoa, ao qual se limita a teoria da memria coletiva em Ricoeur. O lao entre interao simblica e memria coletiva poderia ser o local de ultrapassagem da analogia, como vou demonstr-lo a partir do clebre discurso de Martin Luther King, I Have a Dream (eu tenho um sonho). Martin Luther King pronunciou esse discurso em 28 de agosto de 1963, no decorrer da Marcha sobre Washington que reuniu quase 250 000 participantes.A verdade que Ricoeur, em trabalhos anteriores, prope uma definio restrita do smbolo que, como em Kant, limita sua funo designao por imagem de um sentido do significado ausente. As implicaes dessa definio de smbolo, concebido por oposio ao conceito mais amplo da forma simblica em Ernst Cassirer so objeto de anlise em meu artigo Metacritical Reflexions on Paul Ricoeurs Interpretaton of Cassirers Concepto of the Symbol, Journal Phnomenologie, Vienne, Autriche, n 21, 2004, p.9-17.10

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manifestao havia sido organizada pelo Movimento dos direitos cvicos para protestar contra a desigualdade poltica e social sofrida pelos negros americanos. Um forte componente comemorativo caracterizava a manifestao, posto que, reunida diante do monumento comemorativo erguido em honra do presidente Abraham Lincoln, ela evocava a clebre Proclamao de emancipao atravs da qual Lincoln, durante a Guerra da Secesso, havia decretado a libertao dos escravos negros. Martin Luther King jamais deixou de atrair a ateno sobre essa comemorao, sempre lembrando a seus ouvintes que a promessa de igualdade feita por Lincoln populao negra americana no havia jamais sido fielmente observada. A evocao dessa promessa no cumprida contribuiu enormemente para conferir certa solenidade ao discurso de Martin Luther King, mas isso no explica sua fora pois na realidade, e em outro nvel, o pastor protestante lembra algo alm, algo que est no corao do prprio discurso de Lincoln, o princpio da igualdade sobre o qual foi fundada a Nao americana, a partir da declarao de independncia em 1776 - Ns concebemos essa verdade como evidente em si, que todos os homens so criados iguais- citada por Lincoln e retomada por Martin Luther King. Ainda mais importante, os patriarcas fundadores dos Estados Unidos no se contentaram em legitimar politicamente o princpio da igualdade, mas eles lhe atriburam uma aprovao divina. Aps Lincoln, que invoca por sua vez o fundamento providencial do princpio da igualdade, Martin Luther King lembra, com sua eloqncia peculiar, sua profunda fonte escatolgica. Assim, aps haver vislumbrado um final ao conflito racial e a possibilidade de que crianas negras e brancas pudessem andar em paz, de mos dadas, o pastor protestante evoca uma viso proftica tirada do Evangelho segundo So Lucas, que lembra, por sua vez, as palavras do profeta Isaas (40,3-5): Ento a glria do Senhor se revelar, e toda carne subitamente a ver11.Este exemplo nos permite estabelecer uma distino importante, necessria para elucidar o fenmeno da memria coletiva. Em um primeiro estgio da anlise, podemos nos referir memria coletiva que partilham todos os que escutaram Martin Luther King, em 28 de agosto de 1963. Lembro-me o quanto seu discurso, que pude ver e ouvir atravs da televiso enquanto jovem colegial, foi emocionante no carregado contexto do ano de 1963 que, alguns meses mais tarde, devia igualmente ver o assassinato do Presidente John Kennedy. A lembrana que um grupo retm de uma experincia partilhada constitui assim o primeiro lugar da memria coletiva. Em 28 de agosto de 1963, os manifestantes, os telespectadores e todos os contemporneos que puderam tomar conhecimento do11

Martin LUTHER KING, Autobiography, New York, Warner Bross, 1998, p.226.

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acontecimento atravs dos jornais, dele guardaram uma lembrana coletiva, cada um a partir de sua diferente perspectiva. Tomada nesse sentido, a memria coletiva dura o tempo de vida dos membros do grupo que dela se recordam e com eles desaparece. nesse momento que a memria coletiva viva, como bem o demonstrou Paul Ricoeur, seguindo a teoria de Maurice Halbwachs, cede lugar pesquisa e narrativa histrica que, dando seguimento desapario de toda lembrana viva, busca representar o acontecimento. Todavia, esse nvel de definio de memria coletiva parece bem pobre. Teria sido possvel, de fato, escutar o discurso de Martin Luther King sem apreender a medida de sua significao pois ele poderia ter sido ouvido de maneira distrada, como se ouve qualquer discurso poltico. Poderiam ter sido retidos, ento, fenmenos aleatrios ou mesmo triviais o belo sol de agosto, a importncia indita das foras de segurana presentes, a tenso extraordinria que reinava no dia. Portanto, indispensvel distinguir entre a lembrana direta de um acontecimento daquela de outro momento com o qual ela frequentemente confundida: sua incorporao simblica. Essa incorporao precede toda narrativa histrica e dela se distingue. Em sua fluidez e em seu imediatismo, ela no se confunde tampouco com a palavra que entendemos por tradio. Se verdade que o trabalho da imaginao acompanha a atividade da memria coletiva (examinar essa questo em profundidade ultrapassaria o nosso propsito), ele se constitui a fortiori em um momento essencial da incorporao simblica da memria coletiva. Ao que parece, a incorporao simblica se realiza no momento mesmo em que ocorre a experincia direta do prprio acontecimento que constitui assim o ncleo de toda lembrana posterior. No caso do discurso que o pastor pronunciou nos degraus do Lincoln Memorial em Washington, seus contemporneos puderam apreciar a grandeza do acontecimento e a importncia da contribuio de Martin Luther King hoje objeto de uma comemorao nacional - porque imediatamente compreenderam a profundidade teolgica e poltica de seu discurso. Isso no impede, contudo, que outras maneiras de incorporar simbolicamente esse acontecimento concorram entre si indo at contradio. Os sulistas hostis mensagem do pastor negro e o chefe do FBI na poca, J. Edgar Hoover lhe devotaram uma hostilidade implacvel e, desse modo, atriburam a seu discurso uma significao simblica bem diversa daquela atribuda por seus aliados. Nesse sentido, a memria coletiva , desde sua gnese, uma memria fragmentada12. Ao mesmo tempo, aDoron MENDELS, Memory in Jewish, Pagan and Cristian Societies of the Graeco-Roman World. Fragmented Memory Comprehensive Memory Collective Memory, Londres, Clark, 2004, p.3047.12

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carga simblica que permite memria coletiva servir de fonte de continuidade temporal das identidades coletivas e que, quando codificada, se presta formao do que nomeamos a tradio. aqui que podemos estabelecer uma distino essencial para nossa discusso. Tratando-se de uma experincia coletiva, ns distinguimos entre as lembranas pessoais retidas a partir de mltiplas perspectivas e o local coletivamente identificvel e comunicvel constitudo pela incorporao simblica da memria coletiva. A memria coletiva no poderia ser reduzida a um ou a outro desses momentos, mas oscila entre os dois modos de reminiscncia. Assim, em um extremo encontra-se a singularidade de perspectivas que conduz toda experincia coletivamente significativa rede das lembranas pessoais; em outro extremo, a incorporao simblica ala a memria alm da esfera pessoal e lhe confere um sentido que se comunica em uma esfera comum e pblica. Por um lado, possvel confinar o ato de lembrar to completamente na esfera da experincia pessoal que a profundidade de seu sentido coletivo se esvai (o belo sol que iluminou o cu do ms de agosto, a forte e inabitual presena das foras policiais, etc.); por outro lado, mesmo aps o desaparecimento de toda lembrana pessoal e viva do acontecimento, sua incorporao simblica pode continuar a prestar uma forte significao a uma experincia coletiva ulterior (Eu tenho um sonho). a partir da densidade de suas mltiplas estratificaes que a incorporao simblica permite memria coletiva perpetuar-se muito alm das vidas dos que diretamente presenciaram um acontecimento, em sua articulao ao mesmo tempo contnua e mutvel. E a dimenso perdurvel da incorporao simblica da linguagem e do gesto corporal constitui uma fonte metapessoal de toda interao entre pessoas.

IIITratando-se do conceito de memria coletiva, tal como o elaborado por Paul Ricoeur, parece-me que, ao privilegiar demasiadamente categorias de anlise oriundas da experincia pessoal, ele oculta a profundidade das camadas da memria coletiva. Esta tendncia se manifesta, a meus olhos, sobretudo quando ele aplica tanto ao indivduo quanto comunidade, categorias tais como dvida ou trauma psicolgico. Evidentemente, no nego que seja possvel atribuir uma dvida, um dever ou uma experincia traumtica a comunidades inteiras; bem ao contrrio, isso parece-me um direito. Mas se vejo na anlise sutil qual Paul Ricoeur submete a noo de dever moral coletivo ou de trauma partilhado, evidenciando o nvel tcito e reprimido da

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memria coletiva, uma das contribuies mais originais de seu livro, A memria, a histria, o esquecimento, no posso me impedir de indagar-me, ao mesmo tempo, se tais categorias podem auxiliar, em sua essncia, o que designamos sob o vocbulo memria coletiva. Para retomar nosso exemplo a respeito de Martin Luther King, possvel, sem dvida, caracterizar seu movimento em termos psicolgicos e sublinhar o trauma vivido pelos negros americanos, violentamente arrancados do contexto africano e submetidos a sculos de escravido nos Estados do sul dos Estados Unidos. Logo aps sua libertao, eles foram vtimas de um sculo de injustias e de discriminao, privados que estavam de seus direitos elementares. As mudanas na legislao americana, devidas em grande parte fora moral de suas tticas no violentas, que os estabeleceram em seus direitos, no fizeram cessar inteiramente as condies de desigualdade. Em razo do trauma sofrido, poderamos interpretar a relao entre a sociedade americana em seu conjunto e os negros americanos em termos de dvida, considerando-se a promessa de igualdade no cumprida, sobretudo quando Martin Luther King afirmou em seu discurso Eu tenho um sonho, que havia ido a Washington para descontar um cheque. Ou ainda, inversamente, tendo por base os esforos j feitos em prol dos negros em termos de reconhecimento dos direitos civis, poderamos qualificar de abuso de memria o descontentamento persistente entre certos grupos de negros americanos que teriam como objetivo principal converter uma situao inicial de injustia em um novo estado de credor privilegiado. No , pois, particularmente vantajoso instalar-se na condio de vtima, no intuito de reivindicar outras formas de reparao? Como o escreve Tzvetan Todorov aplicando categorias da psicologia de terapia familiar no mbito poltico: Ter sido vtima vos d o direito de queixar-vos, de protestar e de reclamar13. Adotando uma perspectiva psicolgica similar em A memria, a histria, o esquecimento, Paul Ricoeur, salientando que no deseja alongar esse ponto, no contesta, de modo algum, a idia que a postura de vtima engendra um privilgio exorbitante, que coloca o resto do mundo em posio de devedor14. Desse modo, ele abandona a idia de um dever de lembrar o qual substitui, segundo a terminologia freudiana aplicada ao tema, por um trabalho de memria sobre a experincia traumtica passada15.

Tzvetan TODOROV, Les abus de la mmoire, Paris, 1995, p.56. 13. Paul RICOEUR, La mmoire, lhistoire, loubli, Paris, d. du Seuil, 2000, p.104. 15 Ibid. Para um exame crtico de Ricoeur sobre este ponto, ver os artigos de Rainer ROCHLITZ. La mmoire privatise Le Monde de 26 de junho de 2000 e de Sarah GENSBURGER e Marie-Claire LAVABRE Entre devoir de mmoire eet abus de mmoire; La sociologie de la mmoire colletive14

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Contudo, ignorando o escopo simblico do discurso de Martin Luther King, ou reduzindo-o dimenso nica de um sentimento de rancor ou raiva foi uma raiva legtima motivada pelo sentimento de ter sido vtima de injustia -, poderamos muito bem digerir esse discurso no plano de uma simples reivindicao formulada por um grupo de presso. Em todo caso, essa anlise falha em identificar a fora simblica que alimenta a memria coletiva ao lhe conferir uma significao prpria ao mbito metapessoal, e o mtodo que consiste em explicar as reminiscncias coletivas atravs de sua analogia com os processos psquicos individuais e os princpios oriundos da moral individual oculta a profundidade simblica e a capacidade de persistncia de certas experincias especficas s coletividades polticas, enquanto elas emergem somente no espao que se abre entre a reminiscncia pessoal e a incorporao simblica. Para exemplificar o que Todorov e Ricoeur mencionam, lembro os genocdios do sculo XX e, especificamente a exterminao das comunidades judaicas pelo nazismo. Parece-me que a as categorias de dvida e de dever de memria, bem como as de trabalho de memria, passam ao largo do essencial. Atrs da realidade do desaparecimento fsico de vastas comunidades, convm identificar uma ruptura na continuidade do prprio mundo europeu, que deixa muda toda tentativa de expresso simblica. O essencial aqui, creio, escapa completamente s categorias de quantificao em termos de esquecimento fsico, bem como s categorias de moral individual aplicadas a personalidades coletivas, quer dizer, escapa designao de dois grupos que se confrontam sob forma de devedores ou credores, de paciente ou terapeutas. Trata-se aqui menos de completar um trabalho para retificar o excesso de memria ou o excesso de esquecimento e mais de despertar-nos para a compreenso de que esse desaparecimento afeta a prpria identidade da Europa, cujas razes se encontram na Antiguidade, e que os genocdios do sculo XX, mais do que qualquer outro acontecimento histrico, a desfiguram irrevogavelmente. A quase ausncia, em A memria, a histria, o esquecimento, de uma anlise do smbolo em relao memria coletiva me parece mais surpreendente e lamentvel na medida em que Paul Ricoeur empenhou-se, em seu livro sobre Freud, em sublinhar os limites da interpretao psicanaltica dos smbolos, mostrando que se os mesmos podem efetivamente ser sintomas de neuroses, perde-se, contudo, uma parte de seu significado ao se querer analis-los excessivamente em termos de sintomatologia. Sem dvida, o smbolo pode ser, em um sentido regressivo, o sintomacomme tierce position in Bertrand Mller, dir., Lhistoire entre mmoire et pistmologie.Autour de Paul Ricoeur, Dijon-Quetigny, Payot Lausanne, 2000, p. 75-98.

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de uma doena, mas ele pode igualmente cobrir um sentido progressivo e remeter inspirao, como no caso de uma obra de arte, de uma doutrina religiosa ou de um fundamento poltico16. Essa ltima interpretao parece-me ser capaz de nutrir substancialmente minha prpria teoria da incorporao simblica, posto que nomeadamente a fora dessa incorporao que, atravs de seus meandros, seus deslocamentos e rupturas, responde pela persistncia da memria coletiva em seus nveis mais profundos.

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Paul RICOEUR, De linterprtation. Essai sur Freud, p.514-543.

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