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Reforma X Revolução: Celso Furtado e a questão regional no pré-1964 Julia Gomes e Souza 1 Introdução Celso Furtado foi, durante a década de 50 e até o golpe militar de 1964, um intelectual de destaque no interior da burocracia estatal brasileira. Escolheu o aparelho de Estado como local privilegiado de sua atuação, onde adotou uma postura militante, buscando orientar as políticas estatais de acordo com sua visão de mundo. Para isso, travou um grande debate com muitos de seus contemporâneos, buscando deslegitimar as posições desses e demonstrar que a perspectiva por ele adotada era a única que se pautava por um método realmente “científico” de observação da realidade. O golpe de 1964 é reconhecido pelo próprio autor como um evento que marcou intensamente sua trajetória. Alijado das estruturas estatais, ele se dedica à vida acadêmica e a rever sua produção precedente. Além disso, vários autores indicam que este foi o momento da crise final da ideologia nacional-desenvolvimentista, a qual teve em Furtado um de seu mais importante expoente teórico A produção teórica de Celso Furtado no pré-1964 está relacionada a sua atuação no aparelho estatal. Nenhum autor brasileiro foi tão feliz como ele na articulação entre teoria e prática, pois através de sua análise da formação histórica brasileira, da explicação sobre os condicionantes históricos de nosso atraso relativo (comparado às economias desenvolvidas), forneceu as justificativas teóricas para a política econômica implementada pelo Estado brasileiro durante o período, em especial no governo Kubitscheck, do qual teve importante participação. Durante esse período que vai de inicio dos anos 50 até 1964 pode-se destacar dois momentos distintos em sua obra. O primeiro deles vai até 1961 2 – ano da publicação de “Desenvolvimento e subdesenvolvimento” em que a sua maior inquietação girava em torno da elaboração de um projeto de “desenvolvimento” capitalista para o país, ou um projeto de 1 Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e membro do Neils (Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais) 2 Celso Furtado. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961.

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  • Reforma X Revoluo: Celso Furtado e a questo regional no pr-1964 Julia Gomes e Souza1

    Introduo

    Celso Furtado foi, durante a dcada de 50 e at o golpe militar de 1964, um

    intelectual de destaque no interior da burocracia estatal brasileira. Escolheu o aparelho de

    Estado como local privilegiado de sua atuao, onde adotou uma postura militante,

    buscando orientar as polticas estatais de acordo com sua viso de mundo. Para isso, travou

    um grande debate com muitos de seus contemporneos, buscando deslegitimar as posies

    desses e demonstrar que a perspectiva por ele adotada era a nica que se pautava por um

    mtodo realmente cientfico de observao da realidade.

    O golpe de 1964 reconhecido pelo prprio autor como um evento que marcou

    intensamente sua trajetria. Alijado das estruturas estatais, ele se dedica vida acadmica e

    a rever sua produo precedente. Alm disso, vrios autores indicam que este foi o

    momento da crise final da ideologia nacional-desenvolvimentista, a qual teve em Furtado

    um de seu mais importante expoente terico

    A produo terica de Celso Furtado no pr-1964 est relacionada a sua atuao no

    aparelho estatal. Nenhum autor brasileiro foi to feliz como ele na articulao entre teoria e

    prtica, pois atravs de sua anlise da formao histrica brasileira, da explicao sobre os

    condicionantes histricos de nosso atraso relativo (comparado s economias

    desenvolvidas), forneceu as justificativas tericas para a poltica econmica implementada

    pelo Estado brasileiro durante o perodo, em especial no governo Kubitscheck, do qual teve

    importante participao.

    Durante esse perodo que vai de inicio dos anos 50 at 1964 pode-se destacar dois

    momentos distintos em sua obra. O primeiro deles vai at 19612 ano da publicao de

    Desenvolvimento e subdesenvolvimento em que a sua maior inquietao girava em torno

    da elaborao de um projeto de desenvolvimento capitalista para o pas, ou um projeto de

    1 Mestre em Cincias Sociais pela PUC-SP e membro do Neils (Ncleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais) 2 Celso Furtado. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961.

  • industrializao coordenado e comandado pelo Estado rgo, segundo a viso furtadiana,

    politicamente neutro. Aqui, vale a pena destacar, o papel da burocracia de Estado em seu

    pensamento, que estaria acima dos interesses particulares e, portanto, capaz de formular e

    implementar polticas voltadas para a realizao do bem comum.

    O incio da dcada de 1960 foi um momento de estrema polarizao poltico-

    ideolgica no Brasil, em que se observou o acirramento das contradies sociais e a

    ascenso dos movimentos populares como atores importantes na cena poltica brasileira.

    Neste contexto, Furtado abandonou sua postura de tcnico e mergulhou diretamente no

    debate poltico-ideolgico com o objetivo de defender o projeto de reforma do capitalismo

    brasileiro, em oposio ao revolucionrio, de inspirao marxista-leninista. Nos textos

    desse perodo, o autor defende a realizao das reformas base como medidas necessrias

    diminuio da misria existente na sociedade brasileira, uma vez que ela era encarada como

    o principal fator que possibilitava a expanso das idias revolucionrias.

    A problemtica da questo regional, mais especificamente do desenvolvimento do

    Nordeste e, dentro dela, a da reforma agrria, nos permite identificar claramente esses dois

    momentos da obra furtadiana. O tema da reforma agrria, assim como das demais reformas

    distributivas, encontram-se intimamente relacionados questo da intensificao da luta de

    classes em finais dos anos 50, incio dos anos 60. Esse o perodo em que se percebe a

    intensificao do movimento das Ligas Camponesas no campo e da Frente do Recife, no

    meio urbano.

    O Desenvolvimento do Nordeste e a Reforma Agrria

    A economia nordestina foi um tema privilegiado na obra de Furtado no pr-1964,

    em especial na segunda metade dos anos 50. Durante esse perodo ele atuou no aparelho

    estatal com objetivo de elaborar um plano de desenvolvimento para o Nordeste. Alm de

    trabalhar na criao SUDENE (Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste),

    estrutura burocrtica responsvel pela conduo desse plano.

    As solues para os problemas nordestinos segundo a ptica furtadiana passavam

    pela modificao das estruturas produtivas da regio, sem se voltar diretamente para a

    questo da reforma agrria. Essa questo s abordada de forma explcita pelo autor em

  • seu texto de 1962, quando a reforma agrria se torna um instrumento fundamental para a

    conteno do movimento revolucionrio no campo.

    Segundo Furtado, o Nordeste seria o sistema econmico subdesenvolvido mais

    importante do pas, isso porque dada a sua evoluo histrica, galgou manter uma grande

    reserva de mo-de-obra. Essa populao, relegada subsistncia, seria induzida a migrar, o

    que foraria a reduo dos salrios na regio industrializada. Essa era para Furtado a

    explicao para o fato dos salrios no aumentarem na mesma medida que os ganhos em

    produtividade nos centros industriais. O excedente de mo-de-obra seria um dos principais

    problemas das economias subdesenvolvidas, pois, por um lado, ele dificultava a

    organizao dos trabalhadores e, por outro, permitia que a economia crescesse sem que

    houvesse a necessidade da incorporao de novas tecnologias. Se esse problema fosse

    solucionado, a economia superaria sua condio de subdesenvolvimento.

    Segundo Furtado, a industrializao brasileira, extremamente concentrada

    geograficamente, conforme vinha ocorrendo, em vez de contribuir para o desenvolvimento

    desta regio, o Nordeste, estimulava a sua permanncia no quadro em que se encontrava, o

    que, dado o processo de rpida industrializao pelo qual passava a economia do Centro-

    Sul, determinava um crescente aprofundamento das desigualdades regionais, ...na forma

    como foram conduzidas, no ltimo decnio, as relaes econmicas do Nordeste com o

    Centro-Sul tm sido prejudiciais regio mais pobre de recursos e de menor grau de

    desenvolvimento3.

    importante frisar que, na anlise furtadiana, o Centro-Sul e o Nordeste constituem

    dois sistemas econmicos diferentes, apesar de associados. A economia brasileira seria

    formada, segundo essa tica, por uma estrutura dual. Essa anlise dualista foi criticada por

    Francisco de Oliveira4, para quem os setores chamados moderno e tradicional

    encontravam-se em uma simbiose. O primeiro se desenvolvia apoiando-se no segundo, a

    fim de maximizar a acumulao. Ao mesmo tempo, o setor exportador geraria as divisas

    necessrias para que o setor industrial prosseguisse com seu desenvolvimento.

    A tese da existncia no Brasil de dois sistemas econmicos possibilitou a Furtado

    concluir que haveria uma reproduo interna do mesmo sistema de dependncia observado

    3 GTDN. Uma poltica de desenvolvimento para o Nordeste. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1959. p.31. 4 Francisco de Oliveira. A economia brasileira crtica a razo dualista In: Selees CEBRAP. So Paulo, julho, 1972.

  • no plano internacional, entre Estados nacionais, em funo da diviso internacional do

    trabalho. Ocorreria no Brasil a deteriorao dos termos de troca caracterstica da relao

    centro-periferia no sistema mundial. O Nordeste desempenharia o papel de periferia e o

    Centro-Sul de centro. Reproduzir-se-iam internamente as mesmas relaes observadas

    na diviso internacional do trabalho, em que o Centro-Sul industrializado seria favorecido

    em detrimento do Nordeste agrrio.

    Ao analisar a relao entre Nordeste e Centro-Sul, Furtado utiliza o repertrio

    analtico da tese cepalina da relao centro-periferia5. Para Wilson Cano, tal concepo

    vlida somente para relaes entre estados nacionais que so politicamente

    independentes, no se aplicando s relaes que se estabelecem entre regies que compem

    o mesmo estado nacional.

    Apesar disso, o problema central dessa tese era no perceber que o cerne da questo

    no estaria em implementar os setores industriais modernos, ... mas uma industrializao

    predominantemente comandada pelo capital estrangeiro ou pelo Estado, de carter

    marcadamente oligopolista. Neste contexto, Furtado no se deu conta da inexistncia, j

    naquela poca, de uma oportunidade histrica concreta para a criao de um Centro

    Autnomo (Regional) de Expanso manufatureira" 6

    As propostas contidas na Operao Nordeste no se contrapem a poltica

    desenvolvimentista do governo Kubitscheck e esto intimamente ligadas idia de

    integrao nacional. Apesar de o documento do GTDN (Grupo de Trabalho para o

    Desenvolvimento do Nordeste) conter como proposta de criao de um centro autnomo

    de expanso manufatureira 7 na regio nordestina, medidas presentes no I Plano Diretor

    da SUDENE, aprovado em 1961, incentivaram o investimento do capital industrial paulista

    no Nordeste.8

    5 No podem coexistir, no mesmo pas, um sistema industrial de base regional e um conjunto de economias primrias dependentes e subordinadas, por uma razo muito simples: as relaes econmicas entre uma economia industrial e economias primrias tendem sempre a formas de explorao. Segundo o autor paraibano, sse fenmeno [que caracteriza a relao entre pases industrializados e pases primrio-exportadores] est ocorrendo dentro de nosso pas Celso Furtado,. A operao Nordeste. Rio de Janeiro, ISEB, 1959,p. 13. 6 CANO, Wilson. Crise Regional e concentrao industrial no Brasil - 1930-1970. So Paulo , Global; Campinas, UNICAMP, 1985. p. 26. 7 GTDN, op. cit. p.12. 8 Em seu artigo 34 consta que: facultado as pessoas jurdicas e de capital 100% nacional efetuarem a deduo at 50%, nas declaraes do impsto de renda, de importncia destinada ao reinvestimento ou aplicao em indstria considerada pela SUDENE, de intersse para o desenvolvimento do Nordeste O texto

  • Em documentos elaborados pela prpria superintendncia, j consta a possibilidade

    da participao de capitais de outras regies nos investimentos necessrios ao

    desenvolvimento do Nordeste, ficam assim excludas as possibilidades de um projeto de

    industrializao autnoma da regio. Nesse aspecto, pode-se apontar uma contradio entre

    o texto que serviu de base para a aprovao da lei que criou a SUDENE e as polticas

    implementadas por seu primeiro plano diretor9.

    As polticas implementadas pela SUDENE apesar de contriburem para amenizar o

    ritmo de concentrao industrial10, a industrializao no Nordeste se deu a partir da

    expanso do capital monopolista sediado no Centro-Sul e no com base em investimentos

    de empresrios nordestinos11.

    No Segundo Plano Diretor da SUDENE, aprovado em junho de 1963, foi retirado a

    exigncia do capital ser cem por cento nacional para a concesso dos incentivos fiscais nos

    investimentos industriais no Nordeste. Reforava-se assim, a tendncia de expanso do

    capital monopolista no Brasil.

    muito comum na literatura que comenta a produo furtadiana atribuir ao autor a

    defesa da reforma agrria, como elemento necessrio ao desenvolvimento econmico

    brasileiro, j nos textos elaborados por ele durante o governo Kubitschek. Este um

    problema grave, pois se corre o risco de des-historicizar sua produo. Alm disso, a

    produo furtadiana sobre a problemtica nordestina, em especial, est intimamente

    relacionada ao estatal na regio. Tais anlises, ao perderem a perspectiva histrica,

    ficam impossibilitadas de compreender a importncia da obra de Furtado no perodo, assim

    como de suas implicaes polticas. da lei no 3.995, instituindo o Primeiro Plano Diretor da SUDENE e aprovado em dezembro de 1961, encontra-se na integra na rede mundial de computadores, no stio www.planalto.gov.br. 9 Nas palavras de Francisco de Oliveira: Ironicamente, a prtica da poltica de desenvolvimento regional, que centrou suas potencialidades na expanso oligopolista do Centro-Sul, radicalmente diferente da abordagem dos desequilbrios regionais. [...] surpreendente, pois, que a retrica dos planos, programas e polticas de desenvolvimento regional siga seu curso, completamente divorciada da prtica real da poltica implementada. Francisco de Oliveira, Elegia para uma Re(li)gio. 2a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra 1985. p. 25, grifos do autor. 10 Wilson Cano op.cit. p. 107. 11 os grandes grupos econmicos do Centro-Sul, gozando dos incentivos fiscais, passaram a implementar unidades produtivas, geralmente no padro de capital intensivo (poupador de mo-de-obra), que, obviamente, transcendiam as possibilidades internas do Nordeste, seja em termos de capitais, seja em termos de mercado. Quanto burguesia nordestina, no haver lugar para ela na nova ordem econmica, calcada no investimento e na realizao de capital altamente concentrado. Pouqussimos grupos econmicos locais conseguiram sobreviver. Rosa Maria Vieira, Celso Furtado: reforma, poltica e ideologia (1950-1954). Tese de Doutorado, Histria, PUC-SP, 2003, p. 254.

  • De fato, o autor paraibano foi, no ps-1964, um dos grandes defensores das

    reformas distributivas como medidas necessrias ao desenvolvimento endgeno brasileiro.

    Entretanto, o mesmo no ocorre em relao reforma agrria, no pr-1964. Para Wilson

    Cano12, Furtado afirmou que a soluo para o problema do superexcedente populacional na

    zona rural nordestina passaria pela reforma agrria e que essa proposta constaria no

    documento do GTDN, Uma poltica de desenvolvimento para o nordeste, de 1959.13

    Todavia, o termo reforma agrria no aparece em nenhum momento desse texto. O que

    est presente a tese da necessidade de mudanas no sentido de se reorganizar a unidade

    produtiva da regio semi-rida e no propriamente de se fazer a reforma agrria. Como o

    prprio Cano reconhece, o objetivo central era instituir relaes capitalistas de produo, ou

    seja, introduzir renda monetria na regio com base no assalariamento dos trabalhadores.

    Segundo Furtado, a poltica de desenvolvimento para o Nordeste deveria abarcar

    diferentes linhas de ao, correspondentes s diferentes caractersticas ecolgicas de cada

    sub-regio nordestina.

    No semi-rido, mais especificamente na regio de caatinga, havia-se implementado

    uma economia extremamente vulnervel seca. Seria, ento, primordial um melhor

    aproveitamento dos recursos da regio e, para isso, era preciso reorganizar sua agricultura,

    que teria como pressuposto diminuir a densidade populacional, por meio do deslocamento

    da fronteira agrcola nordestina, principalmente rumo s terras midas do Maranho, as

    quais so mais frteis e poderiam ser destinadas produo de alimentos para o restante do

    Nordeste. Assim, para Furtado, havia a necessidade de criar frentes de colonizao com

    base no escoamento do excedente populacional e na criao de uma infraestrutura que

    permitisse o escoamento da produo. A regio semi-rida deveria se especializar na

    produo de xerfilas e na pecuria, alm de diminuir a agricultura de subsistncia14.

    A reforma agrria, com relao ao problema do desenvolvimento econmico do

    Nordeste, foi trabalhada por Furtado no texto A Operao Nordeste, que corresponde a uma 12 Wilson Cano Celso. Furtado e a questo regional no Brasil. In: Maria da Conceio Tavares (Org). Celso Furtado e o Brasil. So Paulo, Fundao Perseu Abramo, 2000. 13 Wilson Cano, op.cit. p.112. 14 O problema de reorganizar a economia da regio semi-rida inseparvel do da abertura de frentes de colonizao, seja nos vales midos da regio, seja na periferia do polgono, ou em outras regies do pas. A colonizao tem o duplo objetivo de absorver o excedente de populao da regio semi-rida e de produzir gneros alimentcios para abastecer, parcialmente, aquela regio. A reorganizao da economia da zona semi-rida implica especializar a mesma na cultura de xerfilas e na pecuria, e reduzir o setor de subsistncia. (GTDN, op.cit, p. 84).

  • conferncia proferida por ele no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Esse

    tema s foi abordado depois da exposio principal, no momento do debate com as pessoas

    que acompanhavam tal evento. Para o conferencista, a reforma agrria seria, nesta regio

    semi-rida da caatinga, contraproducente, pois eliminaria suas bases econmicas15.

    Mais adiante, nesse mesmo texto, o autor deixa claro que a soluo no passa por

    tornar o trabalhador rural um proprietrio, mas sim, introduzir renda monetria na regio

    com base no trabalho assalariado com remunerao adequada no interior de relaes de

    explorao capitalista. Para implementar nesta rea uma economia desenvolvida, de alta

    produtividade, que possa, portanto, proporcionar salrios mais altos, devemos partir de

    uma unidade de produo agrcola de tamanho mdio, ou de dimenses a determinar,

    de acrdo com a sub-regio. [...] A reforma, na caatinga, no pode ser diviso da terra, e

    sim reorganizao da agricultura, proporcionando ao homem melhor nvel de vida. 16

    No agreste, segundo Furtado, predominava a agricultura de subsistncia, com base

    na utilizao de reduzidas quantidades de terra. Sendo o solo extremamente pobre, a

    questo no era dividir as terras, mas aglutin-las, pois uma unidade produtiva no agreste

    deve ter em mdia 20 hectares, o que, no caso, corresponde a uma grande propriedade.

    Assim, A reforma agrria, a, no se far pela diviso da terra, ao contrrio, pela

    aglutinao dos pequenos stios. Se a operao se deve fazer pondo para fora o

    proprietrio, latifundirio ou no, um problema poltico e a opo por uma forma ou por

    outra no compete ao economista17.

    Pode-se observar que Furtado muda o sentido da reforma agrria. Ela no passa

    necessariamente pela transformao do sitiante em proprietrio. As mudanas econmicas

    necessrias ao desenvolvimento da regio poderiam ser feitas mantendo-se boa parte da

    estrutura fundiria da regio, desde que fosse alterada a forma de organizao da produo.

    Alm disso, Furtado se esquiva de qualquer posicionamento com relao concentrao da

    15 A reforma agrria na caatinga seria tiro de misericrdia na economia, inclusive com a possvel liquidao da pecuria. Reforma agrria, para o homem da rua, significa diviso da terra, eliminao do proprietrio do latifndio, eliminao da renda da terra. Se fizssemos isto na caatinga, ns a despovoaramos, desorganizando completamente a economia da regio, o que seria um rro. [...] A unidade de produo na caatinga, para subsistir, precisa ser relativamente grande, pois as terras so pobres e, de certo modo, tm de compensar em quantidade sua deficincia qualitativa. Celso Furtado,. op. cit. p. 57, grifos nossos 16 Idem, Ibidem, grifos nossos 17 Idem. p. 60. grifos nossos

  • terra a partir de um argumento tecnicista. Tal proposta no entra necessariamente em

    contradio com os interesses das oligarquias regionais.

    Por ltimo, temos a regio da zona da mata, com a predominncia do latifndio

    aucareiro. Aqui seria necessrio utilizar tcnicas de produo mais avanadas e difundir o

    uso da irrigao, de modo a aumentar a produo por hectare e, desta forma, diminuir a

    extenso do plantio da cana sem prejuzo para o volume da produo. Com essa medida,

    seria possvel liberar terra para a cultura de outros produtos, em especial os destinados ao

    consumo da populao, o que permitiria o aumento na oferta de alimentos e, em

    conseqncia, a reduo nos custos dos mesmos.

    Entretanto, a industrializao por si s no resolveria o principal problema na regio

    nordestina, o excedente de mo-de-obra. Seria necessrio o deslocamento da fronteira

    agrcola e da irrigao das zonas ridas, para aumentar a disponibilidade de terras arveis

    por homem ocupado na agricultura 18. Com relao reforma agrria, Furtado,

    novamente, afirma que no cabe a ele opinar sobre o assunto. O que lhe compete, segundo

    ele, determinar qual seria a forma mais racional de utilizao da terra, cujos meios j

    foram expostos acima. Furtado enftico sobre esse ponto: O que tenho a dizer, com toda

    a franqueza, que se a grande maioria quiser adotar esta ou aquela soluo, por exemplo,

    tomar as terras de uns e dar a outros, no sou eu quem vai se opor a isso, nem o tcnico,

    nem o indigitado latifundirio. O que no posso acobertar, na qualidade de tcnico,

    uma bandeira poltica qualquer19.

    A criao da SUDENE, pela lei 3.692 de dezembro de 1959, foi influenciada pela

    ocorrncia de uma grande seca que assolou o Nordeste no ano de 1958 e por estatsticas que

    apontavam para um aumento nas desigualdades regionais. Entretanto, o fator fundamental

    foi a intensificao dos movimentos sociais a partir da segunda metade da dcada de 50 e

    incio da dcada de 1960. ... a SUDENE surgiu em que se revelaram de modo

    particularmente aberto e intenso os antagonismos da sociedade do Nordeste20.

    Os movimentos sociais se tornaram fatores preocupantes para o governo,

    difundiram-se tanto no meio rural, atravs da atuao das Ligas Camponesas, quanto no

    18 Celso Furtado, op.cit.p. 55 19 Idem. p.62-63, grifos nossos. 20 Octavio Ianni. As Ligas Camponesas e a criao da SUDENE In: Origens agrrias do Estado brasileiro. So Paulo, Brasiliense, 1984. p. 210.

  • meio urbano, cujo movimento que merece destaque a Frente do Recife, sediada no maior

    centro urbano nordestino, alm do fato do governo Kubitscheck ter perdido para a oposio

    nas eleies estaduais em Pernambuco e na Bahia em 1958.

    No momento em que camponeses e operrios rurais deixaram de acomodar-se s solues de estilo oligrquico [...] os grupos dominantes no Nordeste e o governo federal (incluindo o Executivo e o Legislativo), decidiram agir politicamente, no sentido de controlar ou dominar as tenses sociais crescentes na regio. Alis, a SUDENE no foi se no uma das solues dadas ao agravamento das tenses polticas no Nordeste 21

    Aos olhos das classes dominantes havia um outro elemento que agravava o temor

    com relao intensificao dos movimentos populares. A Revoluo Cubana (1956-1959)

    caracterizou-se como um movimento revolucionrio latino-americano bem sucedido e que

    poderia ser seguido como exemplo para as foras polticas em ascenso no Nordeste. Por

    isso, a questo nordestina passou a ser encarada como um problema de segurana nacional,

    pois

    ...zonas subdesenvolvidas so zonas potencialmente ocupadas pelo inimigo [regime sovitico]. No pertence ao Brasil o que est dominado pela fome, no se acham efetivamente integradas no organismo nacional as reas em que as populaes vegetam no isolamento ou so dizimadas pela precariedade das condies de existncia, oferecendo ao mundo espantoso ndice de mortalidade infantil. 22

    A pobreza e as precrias condies de vida de grande parte da populao nordestina

    eram encaradas como algo que propiciava a difuso de idias comunistas. Nos discursos

    de JK, o combate a misria a forma mais eficaz de no permitir a implementao do

    regime sovitico 23.

    A problemtica da reforma agrria foi pouco discutida por Furtado nos anos em que

    ele se ocupava do Plano de Desenvolvimento para Nordeste. Quando o tema era abordado,

    em nome de sua condio de economista, aceitava se manifestar sobre a reforma agrria,

    questo que julgava ser eminentemente poltica. Tudo se passava como se, para Furtado,

    sua prpria atuao, como tcnico e economista inserido nas arenas decisrias do aparelho

    estatal, no fosse poltica.

    21 Idem, ibidem, 210-211. 22 Trecho do discurso do presidente Juscelino Kubitscheck quando da aprovao da lei de criao da SUDENE, retirado do stio da rede mundial de computadores www.sudene.gov.br, onde se pode ter acesso no s a esse texto, como tambm o texto integral da lei no 3.692 que instituiu a SUDENE, em 15 de dezembro de 1959. 23 Miriam Limoeiro Cardoso. Ideologia do desenvolvimento Brasil JK-JQ. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 109.

  • Entretanto, em seus textos da dcada de 60, essa problemtica explicitamente

    abordada pelo autor. verdade que ele continuava tratando a reforma como algo

    pertencente esfera da poltica, isto porque, antes de 1964, Furtado ainda no elaborara as

    anlises em que a distribuio de renda e de propriedade figurariam como determinantes da

    dinmica do crescimento econmico24. A reforma agrria, assim como as reformas

    distributivas, s se tornaram fundamentais para o desenvolvimento econmico, no

    pensamento de Furtado no ps-1964, em especial em sua fase estagnacionista, quando

    considerava existir no Brasil uma insuficincia de demanda, causada pela alta taxa de

    concentrao de renda da economia brasileira.

    O incio dos anos 60 marcado pelo crescimento das Ligas Camponesas,

    movimento que lutava por modificaes na estrutura agrria brasileira e tinha como uma de

    suas bandeiras a reforma agrria. A ascenso desse movimento, aspecto mais importante do

    acirramento das lutas sociais no campo, somada a ento recente Revoluo Cubana,

    alarmava as classes dominantes. Nesse contexto, Furtado ... viu-se constrangido a abandonar

    a discrio poltica, a linguagem objetiva de cientista social e tcnico do planejamento e

    mergulhar na luta travada entre os grupos sociais que disputavam o controle do processo de

    desenvolvimento capitalista do Brasil 25.

    O que teria propiciado a emergncia da conscincia de classe entre os camponeses,

    foi rebaixamento de suas condies de vida imposto pelas classes proprietrias. Segundo

    Furtado, a condio de vida dos trabalhadores teria cado tanto, entre 1960 e 1962, que seu

    salrio mal dava para um litro de farinha de mandioca. Para ele, esse seria o fator

    determinante da rpida expanso das Ligas Camponesas na Zona da Mata.

    Assim, caso fosse mantida a rgida estrutura agrria existente na sociedade

    brasileira, todo o movimento reivindicatrio que surja nos campos tender a assimilar

    rapidamente tcnicas revolucionrias de tipo marxista-leninista26. Para conter a ameaa de

    uma sublevao revolucionria, as reformas de base fazem-se mais do que necessrias.

    Quando Furtado escreveu o texto Dialtica do desenvolvimento (1964) j havia

    ocorrido a aprovao do Estatuto do Trabalhador Rural (1963). A sua avaliao desse

    episdio est relacionada anlise precedente. Segundo ele, a extenso da legislao 24 Ricardo Bielschowsky, Pensamento econmico brasileiro: o ciclo ideolgico do desenvolvimentismo. 4a ed. Rio de Janeiro, Contraponto, 2000, p. 162. 25 Rosa Maria Vieira, op.cit. p. 240. 26 Celso Furtado, A pr-revoluo brasileira. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1962. p. 29.

  • trabalhista ao campo teria possibilitado que as antigas associaes camponesas

    semiclandestinas se transformassem em sindicatos, o que teria permitido ... classe

    camponesa atuar prontamente com extraordinria eficcia [...] levando a aplicao em

    tempo recorde uma legislao que no smente elevava substancialmente os seus salrios

    reais, mas tambm modificava pela base relaes de trabalho seculares 27.

    A reforma agrria representa nesse momento para Furtado uma forma de barrar o

    crescente processo revolucionrio, que, caso fosse bem sucedido, representaria um

    retrocesso, dado o grau de liberdade que, para o autor, a sociedade brasileira j havia

    atingido. No pr-1964, a defesa da reforma agrria e das demais reformas distributivas

    assumem, no pensamento de Furtado, um carter explicitamente anti-revolucionrio.

    Consideraes finais

    O debate sobre a questo regional no pensamento furtadiano anterior ao golpe

    militar de 1964 pode ser encarado como propostas explcitas de reformar o capitalismo

    brasileiro. Com esse objetivo em mente, Furtado travou um amplo debate com as

    perspectivas tericas que buscava combater. Num primeiro momento, dedica-se a refutar os

    mtodos neoclssicos e as teses marxianas por meio do questionamento da cientificidade

    dos mesmos. S a metodologia utilizada por ele teria o status de cincia. As demais se

    reduziriam a doutrinas, com pouco ou nenhum apego realidade. Posteriormente, o seu

    discurso se politiza, visando, por um lado, afirmar o quo danoso era o mtodo

    revolucionrio para transformar a realidade e, por outro, defender a necessidade das

    reformas que estavam nos programas de Goulart e no Plano Trienal que deveriam ser

    feitas por meios constitucionais. Alm disso, em seu discurso em prol das reformas,

    procurava persuadir a juventude socialista de que possuam objetivos comuns. Nesse ponto,

    a defesa da democracia tem na ordem vigente seu ponto chave.

    Neste perodo, observa-se em seu pensamento uma clara distino entre cincia e

    poltica, que se apresentou de forma explcita quando o autor se encontrava empenhado na

    defesa da implementao de uma estrutura burocrtica especfica a SUDENE capaz de

    27 Celso Furtado,. Dialtica do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964. p.155-156

  • implementar o Plano de desenvolvimento para o Nordeste. Como foi visto, sua

    argumentao girava em torno de que esta seria a maneira mais racional de resolver os

    problemas nordestinos e que o fator poltico presente na estrutura do novo rgo teria a

    incumbncia de criar consenso social necessrio a sua implementao. Neste ponto,

    destaca-se o debate sobre a reforma agrria presente no texto A operao Nordeste, em que

    Furtado se ope diviso de terras em algumas regies nordestinas, justificando sua

    perspectiva a partir de sua condio de tcnico e economista, e prope, em seu lugar,

    frentes de colonizao. As propostas contidas em tal plano visavam uma melhor insero

    do modo de produo capitalista no campo ou, nas palavras do autor, fornecer maior

    racionalidade estrutura produtiva nordestina, sem que houvesse grandes transformaes

    na estrutura fundiria. A reforma agrria seria neste contexto uma opo poltica e no algo

    tecnicamente necessrio para o desenvolvimento capitalista da regio.

    No se est aqui questionando a dimenso cientfica das anlises furtadianas, muito

    pelo contrrio. O problema se encontra no fato de o economista brasileiro, ao separar a ao

    tcnica da poltica, na realidade, busca legitimar sua posio com base no argumento de que

    ela seria a nica cientificamente possvel, desconsiderado que mesmo as opes tcnicas

    contm em si posies polticas. Ao fazer isso, Furtado tenta persuadir os diversos grupos

    sociais a aceitarem o projeto por ele defendido, afirmando que esse seria o nico que se

    pautava em mtodos cientfico de apreenso e de diagnstico da realidade brasileira.

    Posteriormente, em um momento de ascenso dos movimentos sociais, Furtado

    defendeu a implementao da reforma agrria como medida necessria conteno do

    potencial revolucionrio desses movimentos. Para ele a questo era: ou se fazia a reforma

    dentro dos marcos legais do sistema vigente ou, fatalmente, o Brasil entraria em um

    processo abertamente revolucionrio, pois a grande massa de miserveis seria persuadida

    pelos movimentos de orientao marxista-leninista a adotar a estratgia revolucionria.

    Naquele contexto, apesar das acusaes de comunista que sofreu no perodo anterior ao

    golpe de 1964, Furtado foi um grande defensor do sistema capitalista, que, desde que

    reformado, poderia, segundo sua viso, propiciar melhorias na qualidade de vida da

    populao brasileira.