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"Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-Graduação em Filosofia da UFSM"

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Os trabalhos selecionados (majoritariamente de mestrandos e doutorandos) aqui publicados indicam o progresso e a qualificação no sistema de Pós-Graduação em Filosofia no Brasil. É pois, com muita satisfação que publicamos os artigos dos participantes desse encontro, com o propósito de consolidar o enriquecimento estimulado pelo debate e pelo intercâmbio de ideias.

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Textos da V Jornada Nacional de

Pesquisa na Pós-Graduação em

Filosofia da UFSM

José Lourenço Pereira da Silva

Kariel Antonio Giarolo

Evandro Oliveira de Brito (Organizadores)

Textos da V Jornada Nacional de

Pesquisa na Pós-Graduação em

Filosofia da UFSM

Promoção Programa de Pós-graduação

em Filosofia da UFSM

Parceiro Editorial Editora Centro Universitário

Municipal de São José

2015

COMITÊ CIENTÍFICO

Presidente

Prof. Dr. José Lourenço Pereira da Silva

Membros

Prof. Dr. Frank Thomas Sautter

Prof. Dr. Rogério Passos Severo

Prof. Dr. Silvestre Grzibowsk

Capa Estevan Garcia Poll

Projeto gráfico e diagramação:

Kariel Antonio Giarolo e Evandro Oliveira de Brito

Revisão e correção ortográfica:

Kariel Antonio Giarolo

Parceiro Editorial

Editora Centro Universitário de São José

Atribuição - Uso Não-Comercial

Vedada a Criação de Obras Derivadas

100

M433i Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-

Graduação em Filosofia da UFSM / José

Lourenço Pereira da Silva, Kariel Antonio

Giarolo, Evandro Oliveira de Brito

(organizadores) – São José : Centro Universitário

Municipal de São José, 2015.

261 p.

ISBN 978-85-66306-14-9 (e-book)

1. Análise da Linguagem e Justificação 2.

Ética Normativa e Metaética 3. Fenomenologia e

Compreensão I. Silva, José Lourenço Pereira. II

Giarolo, Kariel Antonio. III. Brito, Evandro Oliveira. IV.

Título.

CDD 100

COMISSÃO ORGANIZADORA

Docentes

Prof. Dr. José Lourenço Pereira da Silva

Prof. Dr. Evandro Oliveira de Britto

Doutorando Kariel Antonio Giarolo

Equipe de Apoio

Álan Arruda Matos

Aline Ibaldo Gonçalves

Allana Focking

Bruna Brambatti

Bruno Martinez Portela

Cecília Noemí Rearte Terrosa

Cristina Gabriela Feiber

Guilherme de Freitas Soares

Guilherme Pinto Ravazzi

Karen Giovana V. C. Naidon

Mateus Romanini

Paulo Gilberto Gubert

Promoção

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM

Apoio Institucional

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

Centro de Ciências Sociais e Humanas

Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSM

Departamento de Filosofia

7

Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na

Pós-Graduação em Filosofia da UFSM

SUMÁRIO

José Lourenço Pereira da Silva (UFSM)

Apresentação ........................................................................... 11

Alexandre Neves Sapper (UFPel) O estado de natureza no plano internacional sob a perspectiva

de Thomas Hobbes e a impossibilidade de paz perpetua ........ 13

Andrei Pedro Vanin (UNIFESP)

Scientia e contingência diacrônica e sincrônica em Duns Scotus

................................................................................................. 25

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann (UFSM)

Sartre e as relações intersubjetivas: entre o conflito e a

generosidade............................................................................ 39

Dinno Camposilvan Zanella (UFPel) Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva em Santo

Agostinho ................................................................................ 57

Evandro Oliveira de Brito (UFSM) Franz Brentano crítico de Franz Miklosich: considerações

brentanianas acerca do trabalho sübjektlose sätze .................. 77

8

Felipe Bragagnolo (UFSM)

Consciência intencional: uma análise levinasiana .................. 91

Giovane Martins Vaz dos Santos (PUC-RS)

Tiago Porto Pereira (PUC-RS)

Acerca do tempo: história, metafísica e virtualidade ............ 107

Kátia Marian Correa (UFSM)

Consciência e intencionalidade: Sartre e a fenomenologia ... 125

Leonardo Edi Ignácio (UFSM)

Paul Feyerabend: desfazendo mal-entendidos ...................... 135

Luana Talita da Cruz (UFPel)

Considerações acerca da influência de diferentes correntes

lógicas da antiguidade em boécio ......................................... 145

Marcelo Vieira Lopes (UFSM)

Da analítica existencial à metafísica do dasein: o tema da

liberdade ................................................................................ 153

Mariane Farias de Oliveira (UFRGS)

A diferença entre menção e caracterização dos endoxa na

filosofia de aristóteles ........................................................... 167

Paulo Henrique de Toledo (UFSM)

Thomas Nagel e a sorte moral ............................................... 179

9

Rômulo Eisinger Guimarães (UFSM)

ÉDIPO-REI NO STADTTHEATER KÖNIGSBERG ......... 191

Rudimar Barea (UFSM)

Fato e essência no método fenomenológico de Husserl ....... 207

Susie Kovalczyck dos Santos (UFSM)

Emoções e intencionalidade .................................................. 223

Vinícius dos Santos Brittes (UFSM)

Verdade e metafilosofia em Richard Rorty........................... 233

11

APRESENTAÇÃO

As Jornadas de Pesquisa na Pós-graduação em

Filosofia da UFSM chegam a sua quinta edição firmes no

objetivo de promover o debate e a divulgação das

pesquisas de discentes e docentes de Programas de Pós-

Graduação em Filosofia. O encontro, já consolidado

como evento nacional, tem contado com significativa

participação de estudantes e professores estrangeiros.

No mesmo propósito de ser um momento especial

de interlocução entre pesquisadores nos diversos estágios

e níveis de pesquisa e dos diferentes campos de

investigação filosófica, a V Jornada Nacional de Pesquisa

na Pós-Graduação em Filosofia da UFSM teve em sua

programação palestras representativas de três linhas de

pesquisa de nosso PPG Filosofia: Análise da linguagem e

Justificação, Ética Normativa e Metaética,

Fenomenologia e Compreensão; desse modo os

participantes puderam assistir e envolver-se nas

discussões sobre temas variados da tradição filosófica e

que são tratados sob perspectivas distintas.

Os trabalhos selecionados (majoritariamente de

mestrandos e doutorandos) aqui publicados indicam o

progresso e a qualificação no sistema de Pós-Graduação

em Filosofia no Brasil. A promoção da Jornada de

Pesquisa é uma contribuição que o Programa de Pós-

Graduação em Filosofia da UFSM e o Departamento de

Filosofia buscam oferecer para esse processo. É pois,

com muita satisfação que publicamos os artigos dos

participantes desse encontro, com o propósito de

12

consolidar o enriquecimento estimulado pelo debate e

pelo intercâmbio de ideias.

José Lourenço Pereira da Silva

13

O ESTADO DE NATUREZA NO PLANO

INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DE THOMAS

HOBBES E A IMPOSSIBILIDADE DE PAZ PERPETUA

Alexandre Neves Sapper1

Introdução

O presente artigo pretende problematizar e

analisar a impossibilidade Kantiana de Paz Perpétua na

perspectiva da filosofia política de Thomas Hobbes,

principalmente no que diz respeito à formação do Estado

(e de sua soberania) na filosofia deste autor, sua

representação e as três causas da guerra elencadas no

capítulo XIII do Leviatã, quais sejam: competição,

desconfiança e glória (HOBBES, T. 2004). Também é

pertinente salientar, para uma maior delimitação do

problema proposto, o retorno ao Estado de natureza no

âmbito internacional após a personificação do Estado

soberano perante outros Estados, estabelecendo-se um

estado de guerra constante no cenário internacional,

voltando ao status quo ante e tornando obsoletos o

conceito de soberania, sua importância e fundamento.

Neste sentido, o próprio Kant coloca sobre a

concepção de guerra que cada Estado vive em relação ao

outro na condição de liberdade natural e, portanto, numa

1 E-mail: [email protected];

Titulação: Bacharel em Direito pela UCPel; Licenciado em Filosofia,

Mestre em Ciências Sociais e Mestrando em Filosofia na UFPel. Professor

de Filosofia nas Redes Públicas Estadual, Municipal e na Rede Particular na

disciplina de Filosofia.

O estado de natureza

14

condição de guerra constante (CAYGILL, H. 2000, p.

167). Ainda corroborando com a questão, o próprio autor

acrescenta sobre a concepção de paz, deixando uma

lacuna sobre sua eficácia, dizendo que

na obra intitulada “A fundamentação da

metafísica dos costumes”, Kant descreveu

a paz perpétua como o “sumo bem

político” e uma ideia de razão prática em

relação à qual “devemos agir como se

fosse algo real, embora talvez não o seja”

(Idem, p. 251).

Conforme a citação acima e, sabendo-se que Kant

é ícone do idealismo alemão (WOOD, A. W. 2008), como

seria possível, então, uma unificação real cosmopolita

que formule uma liga de povos (KANT, 2008, p. 31)?

O professor Terry Nardin, da Universidade de

Wisconsin – Milwaukee, contrasta a questão afirmando

que

a justiça requer a independência e a

igualdade legal entre os Estados, o direito

de autodefesa, o dever de não-intervenção,

a obrigação de se cumprir os tratados e as

restrições sobre a conduta de guerra

(NARDIN, T. 1987, p. 270).

Kant propôs uma federação de Estados em

conformidade com os dizeres acima referidos, sendo esta

federação inserida no contexto do direito internacional,

marcando importante etapa da realização da ideia de Paz

perpétua. Na sua formulação, o autor alemão não

pretendeu desintegrar as soberanias dos Estados, mas

estabelecer uma liga de nações, não devendo envolver

nenhuma autoridade soberana da qual os Estados podem

Alexandre Neves Sapper

15

sair e cujos termos eles podem renegociar (CAYGILL,

H. 2000, p. 147).

O professor Wolfgang Kersting, colabora com a

questão no que tange ao projeto Kantiano, ensinando que

Entre os superadores estatais do status

naturalis, prevalece o mesmo status

naturalis, que as fortalezas territoriais

reduzem a meros provisórios jurídicos,

pois a proteção jurídica interna do Estado

pode ser destruída por uma guerra

repentina entre os estados

(ftp://ftp.cle.unicamp.br/pub/kant-e-

prints/vol.3-n.2-2004.pdf).

Na concepção de Hobbes, porém, a integração de

Estados em uma confederação não prosperaria, pois além

de entrar em contradição com a concepção de Soberania2

proposta pelo autor inglês no capítulo XXIX do Leviatã,

que menciona a contrariedade total da essência do Estado

em poder ser dividido (HOBBES, 2004), também

colidiria com as três causas da guerra acima descritas,

partindo da argumentação de que o Estado personificado

seria um indivíduo uno e entraria no Estado de natureza

no campo internacional.

Kersting, comentando, agora, sobre a questão de

Hobbes, coloca enfaticamente o seguinte:

O que é lícito para os indivíduos é,

contudo, vetado para os Leviatãs. Uma

transição organizadora de um pluriverso

político para um universo político global,

um árbitro global, não pode acontecer nos

estados hobbesianos. No nível da

2 Conceito originalmente proposto por Jean Bodin na obra intitulada

“Os seis livros da República”.

O estado de natureza

16

soberania estatal, a estratégia pacificadora

do despojamento de todos os direitos e de

todo o poder não pode ser repetida. Os

Leviatãs permanecem eternamente no

status naturalis. (Idem).

Assim, as três causas da guerra propostas na teoria

de Hobbes tomam um sentido exterior à formação do

Leviatã, pois este último surge para sanar o Estado de

natureza e a concepção de guerra entre todos contra

todos. Mas, em uma concepção internacional, os

“Leviatãs” retornariam a um novo Estado de natureza,

pois não existiria soberano exterior ao próprio Leviatã,

retornando, então, ao estado de guerra constante. Como

poderia, então, ser plausível um projeto de Paz perpétua

sob os auspícios de Kant em um Estado de natureza

internacional?

O referido texto, então, tentará demonstrar as

impossibilidades da proposta de Kant para uma

integração perfeita entre Estados, sob os mandamentos da

soberania e da Guerra propostos na obra de Hobbes.

1. Conceituação e histórico da concepção de

soberania

1.1 Conceito de Soberania na história e filosofia

Os referidos conceitos, como foram previamente

anunciados na introdução, são de extrema pertinência e

têm um caráter ilustrativo para uma melhor compreensão

dos capítulos sequenciais.

Alexandre Neves Sapper

17

Conceito de Soberania se congrue no poder

preponderante ou supremo do Estado, considerado pela

primeira vez como caráter fundamental em 1576, pelo

francês Jean Bodin1, que ditou “Os seis livros da

República”, onde pretendeu caracterizar de forma pétrea

o âmago da República ao enunciar o célebre conceito.

Assim, no Capítulo VIII do Livro I diz: “... a

Soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma

República, palavra que se usa tanto em relação aos

particulares quanto em relação aos que manipulam

todos os negócios de estado de uma República”.

O conceito expresso pelo jurista francês sofrerá

inúmeras variações no desenvolver histórico, conforme a

evolução do pensamento político e da realidade

histórica. Como se pode ver pela ordem dada no

desenvolver do conceito, que tem como autor sequencial

Hegel2, que assim preceitua sobre o tema:

As duas determinações, de os negócios e os

poderes particulares do Estado não serem

autônomos e estáveis nem em si mesmo,

nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas

de terem raízes profundas na unidade do

Estado - que outra coisa não é senão a

identidade deles - constituem a soberania do

Estado.

Hegel esclarece esta noção dizendo3:

1 Citação compilada do artigo de José Blanes Sala, do livro

“Contratos Internacionais e Direito Econômico no Mercosu l”.

CASELLA, Paulo Borba São Paulo: LTr, 1996, p. 707. 2 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito, (tradução

Orlando Vitorino). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.57. 3 Ibidem.

O estado de natureza

18

O idealismo que constitui a soberania é a

mesma determinação segundo a qual, no

organismo animal, as chamadas partes

deste não são partes, mas membros,

momentos orgânicos cujo isolamento ou

existência por si é enfermidade.

Essas determinações últimas de Hegel são

dirigidas contra o princípio afirmado pela Revolução

Francesa, de que a Soberania está no povo. Rousseau

qualificara de Soberano o corpo político que nasce com o

contrato social4 e assim definia o seu poder:

O corpo político ou soberano, cujo ser

deriva tão somente da santidade do

contrato, nunca pode obrigar-se, nem

mesmo em relação a outros, a nada que

derrogue aquele ato primitivo, que seria a

alienação de alguma parte de si mesmo ou

a sua submissão a outro Soberano. Violar

o ato graças ao qual existe significaria

anular-se; e o que nada é nada produz.

Portanto, no dizer do referido autor, o princípio da

soberania é ser o poder mais alto em certo território: não

significa poder absoluto ou arbitrário. Para a moderna

teoria do direito, a Soberania pertence à ordenação

jurídica, sendo entendida como a característica em

virtude da qual “acima da ordenação jurídico-estatal

não existe outra”.5

4 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social . São Paulo:

Martins fontes, 2005, p. 16. 5 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad.

Luís Carlos Borges. São Paulo, Martins Fontes; Brasília,

Editora Universidade de Brasília, 1990, p. 45.

Alexandre Neves Sapper

19

Segundo Kelsen, se admitirmos a hipótese da

prioridade do Direito Internacional, o Estado pode ser

considerado soberano apenas em sentido relativo; se

admitirmos a hipótese da prioridade do direito estatal,

pode ser chamado de Soberano no sentido absoluto e

originário da palavra.

1.2 A soberania em Hobbes

O ponto de partida para a apresentação da

concepção de soberania em Hobbes deve ser a sua

intenção para com outros Estados e sua convivência

pacífica. À sua obra não são encontradas referências que

pudessem buscar uma tentativa de integração entre

Estados. Nesse sentido, Paulo Paiva diz o seguinte acerca

do tema proposto:

Em Hobbes, as relações internacionais são

um meio, não um fim como na dimensão

interna da soberania que teorizou. Não se

está à procura da cristalização positiva da

lei natural, mas de uma postura

racionalmente dirigida, onde as relações

internacionais (sejam elas pacíficas ou

belicosas) são mais um instrumento para

que o soberano mantenha estável sua

autoridade interna. Deste prisma, portanto,

as relações internacionais não só são

fundamentais para a soberania e

prosperidade dos cidadãos (e em Hobbes

estes dois conceitos não se separam) de

O estado de natureza

20

uma Cidade, como é provável que a levem

ao choque com uma outra Cidade.3

A colocação acima relata bem o aspecto

Hobbesiano no que diz respeito a lógica da formação de

um Estado, pois esta lógica é fundada intrinsecamente

nas relações humanas e suas respectivas paixões4, que

levam o ser humano a nunca estar completo, satisfeito.

Ou seja, no âmbito “macro” (ou de Estados), o

surgimento e permanência de um Estado se dá em

contraposição a outro Estado soberano, segundo Hobbes,

evidenciando o “estado de guerra de todos contra todos”

(HOBBES, 2004) na esfera de Estados.

O fundamento da soberania nesse sentido está

justamente delimitada para proteger os Estados de outros

Estados, entrando necessariamente em outra orbita que

será analisada a seguir, que diz respeito a proposta

elaborada por Kant para uma “Paz Perpétua”.

2. A impossibilidade de uma sociedade

cosmopolita: a guerra de Hobbes

O projeto kantiano visou especificamente uma

comunidade de iguais para assegurar o desenvolvimento

e convivência pacífica entre os Estados. Kant previa

sobre a Paz perpétua o seguinte:

Para frear o ímpeto dominador dos

Estados e a homogeneização in-

discriminada dos povos, a natureza conta

3 http://www.unieuro.edu.br/downloads_2005/consilium_02_08.pdf

4 O respectivo tema sobre as paixões não será abordado no presente

trabalho por não ser objeto de estudo do mesmo.

Alexandre Neves Sapper

21

com os diferentes idiomas e religiões que,

por outro lado, contém sementes de ódio

pela diversidade e incitam guerras

fundadas na intolerância. Se isso era

verdade na época de Kant, também o é

hoje, como mostram os movimentos

fundamentalistas e os conflitos na Irlanda,

entre tantos outros.5

Segundo a citação acima sobre o tema, Kant previa

a polarização de Estados com mais condições de

sobrepujar os delimitantes, seja no âmbito econômico,

político ou cultural. A ONU foi uma tentativa de unificar

os Estados em um bem comum, pois Kant mesmo

afirmava que a paz não é algo natural, como pode-se

auferir a seguir:

Uma idéia central na concepção de Kant é

de que a paz não é um estado natural e

que, por isso, precisa ser instituída por

meio de um contrato entre os povos. Na

verdade, é o mesmo entendimento da paz

que está no âmago do trabalho atual da

Organização das Nações Unidas, que

também foi constituída com o fim de

trazer a paz.6

À citação acima parece concordar com a

necessidade de um contrato para uma convivência

pacífica entre as nações. No entanto, Kant não é tido

como um autor contratualista pelos seus comentadores,

ao contrário de Hobbes, que formulou a sua teoria

5http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view

File/407/304 6http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view

File/407/304

O estado de natureza

22

baseado em um contrato entre os súditos para eleger7 o

soberano. Para contrastar com esta proposta kantiana e

manter o objeto do presente texto, serão apresentadas as

três causas da guerra que Hobbes originalmente formulou

para delinear a guerra de todos contra todos, mas que

neste texto será transposta para a questão dos Estados,

que são: competição, desconfiança e glória (HOBBES,

2004, p. 111).

É redundante a afirmação de que as causas da

guerra mencionada por Hobbes e descritas acima podem

ser apontadas para a relação entre os Estados,

beligerantes ou não. Porém, a sua consequência implica

diretamente no cancelamento da proposta feita por Kant

de uma sociedade (federação) de Estados que delegam

algo em prol de uma comunidade pacífica. Os Estados

estão constantemente em movimentação de competição e

desconfiança, podendo a glória ser atribuída aos

movimentos nacionalistas que surgem e re-surgem

constantemente na ordem mundial.

Hobbes é enfático ao dizer sobre a guerra que

Na guerra, a força e a fraude são duas

virtudes cardeais. A justiça e a injustiça

não fazem parte das faculdades do corpo e

do espírito. [...] Não há propriedade nem

domínio, nem distinção entre o meu e o

teu; só pertence a cada homem aquilo que

ele é capaz de conseguir, e apenas

7 É comum ocorrerem equívocos na interpretação do contrato em Hobbes na

questão que diz respeito aos súditos, pois estes elegem um soberano, mas

este, por sua vez, não estipulou nenhum contrato com os súditos. Esta

afirmação deixou diversas lacunas na história da filosofia, na qual diversos

autores passaram a denominar o autor Thomas Hobbes como autor

autoritário, ou absolutista. Na verdade, objetivamente, não há obrigação

formal entre os súditos e o soberano, pois este foi instituído no cargo, e não

convencionado.

Alexandre Neves Sapper

23

enquanto for capaz de conservá-lo. É pois

esta a miserável condição em que o

homem realmente se encontra, por obra da

simples natureza. (HOBBES, 2004, p.110)

O autor inglês encerra a questão colocando que o

medo da morte e o desejo daquelas coisas que são

confortáveis são motivados pelas paixões.

Especificamente quanto à questão abordada no presente

artigo, pode-se auferir que somente por medo da morte

(violenta) os homens estabelecem acordos. No caso dos

Estados soberanos pode-se dizer, então, que são feitos

acordos. Mas com um Estado mais forte, ou, com

“soberano dos soberanos”. Neste caso, uma ideia

cosmopolita mostra não ter respaldo de prosperidade na

teoria política apresentada até o momento.

Conclusões

O presente artigo tentou ilustrar sob uma

perspectiva realista das relações internacionais, na qual o

idealismo kantiano ilustrado em sua Paz Perpétua não

teria validade (ou receptividade) na contraposição a obra

de Hobbes, principalmente, como foi demonstrado, sob as

concepções de Estado, Soberania e Guerra à obra do

filósofo inglês.

A perspectiva realista das relações internacionais

defende o fato de os Estados viverem, nas suas relações

recíprocas, sem a existência de um governo mundial,

significando essencialmente um estado de anarquia no

âmbito internacional. De maneira formal, há uma

igualdade de direitos e obrigações entre os Estados, mas

O estado de natureza

24

a materialidade e as circunstâncias (ou paixões..) fazem

com que esses direitos e obrigações sejam dirimidos por

um Estado mais forte. Ou seja, não há força coercitiva,

de forma supra-estatal, para coagir o Estado com maior

força.

Assim, fica caracterizada situação anárquica

internacional. Nesse sentido, o conceito de soberania que

vinha sendo diluído pelos defensores do processo de

integração, independente do lócus, volta a sua posição de

destaque, pois este conceito é imprescindível à

manutenção do Estado.

Referências Bibliográficas

ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações .

Brasília: 1962.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofa. São

Paulo: Martins Fontes, 2003.

CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 2000.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes,

2005.

KANT, Imannuel. A paz perpétua e outros opúsculos .

Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 2008.

NARDIN, Terry. Lei, moralidade e as relações entre os

Estados. São Paulo: Forense Universitária, 1987.

WOOD, Allen w. Kant. Porto Alegre: Artmed, 2008.

25

SCIENTIA E CONTINGÊNCIA DIACRÔNICA E

SINCRÔNICA EM DUNS SCOTUS

Andrei Pedro Vanin1

Introdução

A comunicação tem por objetivo apresentar a noção de

contingência e de scientia em Duns Scotus. Para tal,

primeiramente apresenta-se a distinção entre contingência

diacrônica e sincrônica, seguindo a interpretação de Knuuttila

(1981) e Pich (2008). A seguir deter-nos-emos na noção de

scientia buscando esclarecer o modo pelo qual ocorre o

conhecimento. A escolha desses temas se justifica basicamente

por representarem um importante marco no pensamento e na

filosofia de Duns Scotus. Mas não é só isso. As análises do

franciscano a respeito da noção de contingência e, em

decorrência disso, de modalidade lógica têm chamado a

atenção das pesquisas recentes. A noção sincrônica de

modalidade – que, em síntese, permite possibilidades

alternativas em dado momento de tempo – e a noção de

possibilidade lógica sugerem que Scotus tenha sido o primeiro

a pensar tais noções e, por consequência, influenciado o

desenvolvimento da noção de mundos possíveis, seja em

Leibniz, seja as desenvolvidas no final do século XX

(NORMORE, 2013, p. 169 e 203-204; VOS, 2006).

Já a noção de scientia em Duns Scotus, como observa

Pich (2013, p. 43), “[...] não é importante só como um capítulo

1 Mestrando em Filosofia da UNIFESP. Bolsista Capes. E-mail:

[email protected]

Scientia e contingência

26

da história da recepção da epistemologia aristotélica, ao final

do século 13; acima e antes disso, ela é importante para a

epistemologia como tal e como um capítulo central da própria

filosofia scotista”. Deve-se notar que as interpretações a

respeito de tal noção, seja no próprio Scotus, seja buscando um

paralelo com a noção de episteme em Aristóteles,

contemporaneamente, não são unânimes. Seguindo

rapidamente a apresentação de Pich (2013), pode-se eleger pelo

menos quatro pontos de vista a respeito do tema. O primeiro

ponto a respeito da noção de scientia é se Scotus “aceita a

concepção aristotélica tradicional de conhecimento científico”

(PICH, 2013, p. 37) tal e qual. O segundo consiste nas

interpretações de Sondag (1996) e Boulnois (1998), segundo as

quais o modelo scotista de scientia representa, de fato, um novo

relato do conhecimento científico (PICH, p. 38). A terceira

interpretação é a de Lauriola (1981), segundo a qual Scotus, no

Prólogo da Ordinatio, apresenta duas definições de ciência

(PICH, p. 42). Por fim, a interpretação baseada especialmente

em Lectura d. 39 q. 1-5, a respeito do “[...] conhecimento

verdadeiro de Deus acerca dos futuros contingentes [...]”

(PICH, 2013, p. 42), apresentada por Vos Jaczn et al (1994) faz

parte do que Scotus considera como parte da scientia. O que

pretende-se porém nesta comunicação é rapidamente apresentar

as características que cumprem o papel de scientia e explicitar

as noções de contingência diacrônica e contingência sincrônica.

1. Contingência diacrônica e contingência sincrônica

No prólogo da Ordinatio p. 4, q. 1-2, n. 208, Scotus

atribui quatro condições para se ter conhecimento científico,

scientia: certeza, necessidade, evidência das premissas e

método silogístico. Estando a necessidade posta numa das

condições para algo poder ser dito possuidor de scientia,

Andrei Pedro Vanin

27

exclui-se, a princípio, a possibilidade desta surgir de verdades

contingentes. Para o correto entendimento desta problemática

se faz necessário investigar o modo pelo qual Scotus entende a

noção de contingente.

O modo pelo qual Scotus procura responder os

problemas relacionados ao conhecimento de entes futuros

pressupõe o entendimento do conceito de contingente (e, por

sua vez, a noção de tempo), bem como a noção de vontade

(PICH, 2010, p. 249). Antes de explicitar tais noções em

Scotus, é pertinente observar que o desenvolvimento destas

questões tem como plano de fundo a problemática do

necessitarismo greco-árabe, que em síntese pode ser

apresentado por estes três modos:

a) algo é de si formalmente necessário, mas, ao

mesmo tempo, causado através de um outro; b)

algo é de si formalmente necessário, mas, ao

mesmo tempo, depende de um outro; c) algo é

de si formalmente possível, mas necessário por

meio de um outro, quando este outro causa com

necessidade (PICH, 2008, p. 36).

Scotus é obrigado a abandonar tal tese por basicamente

dois motivos: 1) vai contra a crença da teologia que Deus criou

o mundo livremente; 2) se há contingência no mundo, sustentar

tal tese acarreta filosoficamente “[...] a inexistência de uma

mediação causal que se responsabilize pelo contingente” (idem,

p. 36). Provando a existência da contingência no mundo,

Scotus deve, por plausibilidade filosófica, demonstrar que esta

tem início na causalidade do primeiro ente necessário e

imutável (PICH, 2008, p. 37), já que, caso contrário, não teria

como explicar a relação da primeira causa com as coisas

contingentes e nem o fato de Deus ter a capacidade de agir

livremente.

Scotus opta, portanto, por um indeterminismo para

explicar os contingentes futuros, ao invés de um determinismo.

Scientia e contingência

28

O determinismo, em síntese, defende que tudo o que acontece é

determinado causalmente por algo que aconteceu, e que nada

pode acontecer diferentemente do que acontece (PICH, 2006,

p. 129). Para sustentar um indeterminismo, Scotus precisa

provar que o primeiro princípio – causador de todas as coisas –

age, ele mesmo, de forma não necessária, e também provar que

há contingência no ato volitivo do ser humano (PICH, 2008, p.

42-43).

Antes de avançar, faz-se necessário relembrar que

Aristóteles buscou uma interpretação indeterminista, mas que,

em última análise, parece ser mais correto afirmar que ele

defende um determinismo. Na obra Da Interpretação (19 a 7-

23), o Estagirita abre espaço para uma interpretação

indeterminista ao afirmar que, de enunciados futuros singulares

em matéria contingente, não se tem como determinar se o

evento é verdadeiro ou falso antes que este ocorra. Para

sustentar tal tese, necessita-se restringir o princípio de

bivalência e, em decorrência, os primeiros princípios, o que

forçaria uma interpretação, especialmente do livro IV da

Metafísica, um tanto quanto dúbia e, por isso, alguns

comentadores sustentam ser errado atribuir a Aristóteles uma

roupagem indeterminista ou trivalente da verdade.

A noção de modalidade em Aristóteles se dá em

momentos sucessivos no tempo:

segundo Aristóteles, a afirmação “A senta” é

verdadeira, mas será falsa depois que A se

levantou. Os valores de verdade referidos à

modalidade estão sujeitos à frequência

temporal, de modo que se pode dizer que “se

um enunciado verdadeiro ora, é verdadeiro

todas as vezes que é proferido, ele é

necessariamente verdadeiro. Se o seu valor de

verdade muda no tempo, ele é possível. E se um

enunciado é falso todas as vezes que é

Andrei Pedro Vanin

29

proferido, ele é impossível” (GHISALBERTI,

2013, p. 189).

Arthur Lovejoy, ao formular o princípio de plenitude –

“nenhuma possibilidade genuína permanece para sempre não-

realizada” –, afirma que Aristóteles não aceitaria o princípio

por inteiro, porque este rejeita o fato de tudo aquilo que é

exclusivamente atual ser também possível (Metafísica, IX, 3,

1046 b 29-32). Não obstante, se cada possibilidade genuína,

por ser verdadeira, deve ser verificada num determinado

momento do tempo (GHISALBERTI, 2013, p. 189), então

deve-se admitir que, se Aristóteles não aceitaria tal princípio,

ao menos o princípio de plenitude formulado por Lovejoy está

intimamente inspirado na concepção de modalidade

desenvolvida pelo Estagirita.

O mérito de Aristóteles está em unir temporalidade e

modalidade, mas, para manter coerência com a teoria da

verdade exposta na Metafísica, ele não pode defender um

indeterminismo. Tal digressão textual deve-se ao fato que, na

Idade Média, buscaram-se soluções contra o determinismo,

mas que permaneceram sendo aristotélicas (PICH, 2008, p. 40),

baseadas, em sua maioria, por confusões e análises falaciosas

de proposições modais temporalmente não qualificadas

(KNUUTTILA, 1981, p. 167).

Seguindo a interpretação de Pich (2008) e Knuuttila

(1981), pode-se afirmar que a base do problema está na

distinção entre proposições modais in sensu composito e in

sensu diviso, ou seja, proposições de dicto e de re, que são

ambíguas em Aristóteles porque a possibilidade pode se referir

a uma suposta realidade em predicados ao mesmo tempo, ou

em momentos diferentes. Quando se analisa uma proposição

possível, e diferencia-se, segundo uma modalidade lógica, em

sensu composito ou em sensu diviso, tal proposição é analisada

em termos de uma distinção “entre a simultaneidade e a não

simultaneidade da realização dos predicados”. Esta teoria é

Scientia e contingência

30

denominada estática porque, segundo Knuuttila (1981, p. 169),

“[...] as noções modais são, em última análise, reduzidas a

termos extensionais, que significam apenas meios de classificar

o que acontece em um e em nosso mundo, em diferentes

momentos no tempo”.

Para apresentar a resposta de Scotus, a teoria estática da

modalidade deve-se, como já apontado acima, provar que há

contingência no ato volitivo do ser humano e provar a

contingência do ato volitivo da primeira causa causadora de

todas as coisas. Para a primeira consideração, precisa-se

analisar a obra Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 45-52. Ao deter-se

nesse texto, se torna clara a distinção entre contingência

sincrônica e diacrônica. Já para a segunda consideração, seria

necessário analisar o texto de Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 53-61.

Com efeito, Duns Scotus se afasta da interpretação estática ou

de uma interpretação diacrônica do contingente:

[...] segundo o qual, nenhuma autêntica

possibilidade pode permanecer não realizada na

sucessão temporal, e institui um modelo

sincrônico, com base no qual se admite que

alguma coisa, que existe ou acontece, possa ser

ou acontecer de modo diverso no mesmo

instante de tempo. Por isso a contingência

exprime a “possibilidade” que se deem “simul”

dos opostos. Esta possibilidade é estabelecida

em relação a uma ação causal que proceda

através da inteligência e da vontade

(GHISALBERTI, 2013, p. 189).

Para entender como se estrutura tal questão, faz-se

mister apresentar rapidamente a noção de possibilidade lógica

(ou potência). Num primeiro aspecto, semântico, entende-se

uma potência lógica “[...] quando os extremos são de tal modo

unidos, ainda que não repugnam um ao outro, mas podem ser

unidos, ainda que não haja uma possibilidade na realidade [...]”

Andrei Pedro Vanin

31

(SCOTUS, Lectura I, d. 39, q. 1-5, n 49, p. 110). Em outras

palavras, uma possibilidade lógica se diz, então, da relação de

termos que não se repugnam (termos que não encerram

contradição) e podem unir-se a uma proposição possível

(PÉREZ-ESTÉVES, 2006, p. 289). Contudo, há outro aspecto

da possibilidade lógica a considerar, a saber: o fato de a

vontade livre, no mesmo instante de tempo que produz um ato

volitivo a, poder também produzir um ato volitivo oposto, não

a (PÉREZ-ÉSTÉVES, 2006, p. 289).

Esta possibilidade lógica, porém, não é segundo

o fato de a vontade ter sucessivamente, mas sim

no mesmo instante: pois, no mesmo instante no

qual a vontade tem um ato de querer, no mesmo

e para o mesmo [instante] ela pode ter um ato

oposto de querer, – tal como se for considerado

que a vontade tão-somente tem existência por

um único instante e que, naquele instante, quer

algo, em que, então, não pode querer e

desquerer sucessivamente, e, contudo, para

aquele instante e naquele instante no qual quer

a pode desquerer a, pois querer para aquele

instante e naquele instante não é da essência da

própria vontade, e nem é uma propriedade

natural dela; portanto, [isso] se segue dela

acidentalmente (SCOTUS, Lectura I, d. 39, q.

1-5, n 50 , p. 111).

Essa passagem já aponta para alguns aspectos da

contingência sincrônica, já que a possibilidade lógica atribui à

vontade o fato de que, no mesmo e para o mesmo (in eodem et

pro eodem) instante que esta tem uma volição, pode ter um ato

oposto (PICH, 2008, p. 55). Entendendo Scotus que a liberdade

– tanto humana como divina – é a capacidade que a vontade

tem de, no mesmo instante que quer algo a, poder querer não

querer (desquerer) algo (diga-se não a), isso implica conceber a

liberdade como oposta a toda determinação. Pelo fato de, no

Scientia e contingência

32

mesmo e para o mesmo instante de tempo que a vontade tem

uma volição a, poder querer uma volição não a, – seu oposto –,

implica conceber a liberdade como uma indeterminação, isto é,

ter a possibilidade de querer sempre entre duas alternativas

distintas o seu contrário (PÉREZ-ÉSTÉVEZ, 2006, p. 289).

Feita essa rápida caracterização da possibilidade lógica, pode-

se avançar para algumas definições a respeito do contingente.

O ‘contingente’ existente numa ação e no mundo se

origina sempre de algo querido para o ser atual, quando o

contrário disso também poderia se dar, exatamente quando

aquele se dá. O contingente é, em oposição à definição

aristotélica, não tudo aquilo que é non-necessarium ou non-

sempiternum – contingência em termos de uma ‘possibilidade

simétrica’ de ser e de não ser – dentre os componentes do

mundo infralunar. Antes, o contingente metafísico deve ser

entendido, [...], através da causalidade contingente da vontade

com base num conceito de contingência sincrônica. Nesse

sentido, o conceito de contingência sincrônica, além de servir à

sua concepção de liberdade da vontade, é o cerne da conhecida

crítica de Scotus à interpretação estatística da modalidade,

segundo a contingência diacrônica (PICH, 2006, p. 133-134).

O correto entendimento do conceito de contingente em

Scotus está calcado no esclarecimento da noção de

contingência sincrônica, que se passa a analisar a partir das

passagens na obra Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 47-52. O primeiro

ponto a considerar é que não há vontade na liberdade “[...]

enquanto ela quer, ao mesmo tempo, objetos opostos, porque

[esses] não são simultaneamente termo de uma única potência”

(SCOTUS, Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 47), já que isso implica em

uma impossibilidade lógica. Agora, do fato de a vontade ter

“[...] liberdade para atos opostos, com respeito a objetos

opostos” (idem, n. 47) tem-se dupla possibilidade e

contingência: “[...] a vontade se rende sucessivamente a objetos

opostos [...]”; e o segundo – que já foi explicitado acima

Andrei Pedro Vanin

33

quando apresentava-se a noção de possibilidade lógica – é

quando “[...] os extremos são de tal modo possíveis que não

repugnam um ao outro, mas podem ser unidos ainda que não

haja uma possibilidade na realidade” (ibidem, n. 49). Em outras

palavras, a dupla possibilidade e contingência da vontade são

“a de querer sucessivamente objetos opostos e a de querer

contemporaneamente objetos opostos, que, porém, não podem

ser na realidade escolhidos porque ela opera de modo

sucessivo” (GHISALBERTI, 2013, p. 190).

De se notar que em Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 45, Scotus

apresenta três maneiras pelas quais a vontade é dita livre: 1)

para atos opostos; 2) por meio dos atos opostos é livre para

objetos opostos; e 3) é livre em relação aos efeitos que produz.

Todavia, não basta para a definição “[...] de contingência que a

vontade possa querer objetos opostos – através de atos opostos

– ‘na sequência do tempo’ (successive). A liberdade da vontade

exige mais do que uma possibilidade diacrônica” (PICH, 2008,

p. 53). Se, para definir a contingência, bastasse entender a

capacidade que a vontade tem de querer objetos opostos na

sequência de tempo, proposições de possibili estruturadas em

termos opostos seriam verdadeiras segundo o sensum divisionis

(PICH, 2008, p. 53). Scotus apresenta tal problemática do

seguinte modo:

E, segundo esta possibilidade, são distinguidas

proposições de possibilidade que são feitas de

[termos] extremos contrários e opostos, tal

como ‘algo branco pode ser negro’: e, segundo

o sentido de divisão, [esta] é uma proposição

verdadeira, conforme os extremos são

entendidos como tendo uma possibilidade para

tempos diversos, como ‘algo branco em a pode

ser negro em b; donde essa possibilidade resulta

na sucessão. E assim também esta [proposição]

‘a vontade que ama algo pode odiar [esse] algo’

é verdadeira, no sentido de divisão (SCOTUS,

Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 48)

Scientia e contingência

34

Scotus, todavia, almeja mais do que simplesmente

entender a contingência da vontade como atos que ocorrem

sucessivamente. Permanecer neste ponto seria sustentar, ainda,

uma contingência diacrônica: a “[...] vontade teria

temporalmente antes uma relação contingente com o querer e

só depois uma relação contingente com o desquerer” (PICH,

2006, p. 136). O que está em questão é o fato de a vontade, no

mesmo e para o mesmo instante de tempo, querer a, e, no

mesmo e para o mesmo instante, não querer a. Tal

consideração pode ser chamada, como aponta Pich (2008, p.

54), de “fórmula scotista da sincronia de possibilidade”: “[...]

no mesmo instante no qual a vontade tem um ato de querer, no

mesmo e para o mesmo [instante] ela pode ter um ato oposto de

querer [...]” (SCOTUS, Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 50).

O contingente, assim caracterizado, leva à conclusão de

que o indeterminismo presente no mundo está fundado na

liberdade e na contingência da vontade (PICH, 2008, p. 61). A

contingência, entendida sincronicamente, torna possível a

explicação da contingência no mundo, e permite a Scotus

explicar o motivo pelo qual algumas coisas não são

determinadas, já que, com tal caracterização, o contingente

segue-se do contingente.

A noção de scientia deve ser entendida tendo como

pano de fundo essa noção de contingente. Uma alternativa para

tal problemática é elucidar a diferença entre conhecimento

intuitivo e abstrativo em Scotus – que não entraremos em

maiores detalhes aqui. Apenas a título de conclusão como

afirmou-se acima, é inegável a existência da contingência no

mundo. A pergunta que resta é como então pode algo possuir

scientia, se uma das condições desta é não se basear em

verdades contingentes? O conhecimento abstrativo capta as

quididades, ou seja, aquilo que há de necessário nos entes

contingentes, já que este conhecimento capta o objeto

Andrei Pedro Vanin

35

indiferente a sua existência, podendo assim alcançar algo de

necessário nas coisas contingentes (CEZAR, 1996, p. 20) e

estabelecer assim, a scientia baseada nos entes contingentes, já

que o conhecimento abstrativo consegue captar o que há de

necessário no contingente. Em última análise não estou

plenamente satisfeito que apenas a distinção entre

conhecimento abstrativo e intuitivo consegue satisfazer a noção

de scientia. A noção de possibilidade, vontade e contingência

sincrônica, como tentou-se elucidar, cumprem um papel

importante na teoria do conhecimento de entes contingentes em

Scotus.

Considerações finais

O objetivo desta comunicação foi apresentar

rapidamente a noção de contingência e suas implicações com a

noção de vontade e possibilidade lógica, para evidenciar, então,

a distinção entre contingência diacrônica e sincrônica, bem

como a maneira pela qual Scotus consegue defender um

indeterminismo sem incorrer em maiores problemas.

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SARTRE E AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS:

ENTRE O CONFLITO E A GENEROSIDADE

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

1

Introdução

O presente estudo assume como tarefa a tentativa de

responder a seguinte pergunta: “É possível afirmarmos a

compatibilidade entre as teses presentes em O ser o nada

relativas à alteridade e a liberdade, e as teses sobre as mesmas

temáticas expostas nos Cahiers pour une morale?”. A questão

acima apontada e sua referência à moralidade, em Sartre,

demonstra uma aparente incompatibilidade. Uma vez que em O

ser e o nada a liberdade radical está referida a uma

subjetividade demasiado independente e que vive as relações

intersubjetivas sob o signo do conflito. Já nos Cahiers pour une

morale a liberdade pode converter-se em autêntica e esta

mesma dimensão da autenticidade, quando referida aos outros,

pode tornar-se uma relação harmônica. Assim, tomando por

base as obras acima citadas, se poderia oferecer uma resposta,

satisfatória, sobre a importância e o que representa uma moral

da conversão e seu papel quanto às relações intersubjetivas. Por

outro lado, é somente a partir da análise conjunta da obra

sartriana que é possível demonstrar que a conversão da

1 UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, RS. E-mail:

[email protected]

Sartre e as relações intersubjetivas

40

liberdade, contida nos Cahiers pour une morale, é compatível

com as teses expostas em O ser e o Nada.

No entanto, o problema da moralidade, em Sartre,

quando pensado em relação a alteridade, somente pode ser

pensado se levarmos em consideração a forma paradoxal como

este se apresenta em seu pensamento. Por um lado, a moral

parece ocupar um lugar de destaque em suas preocupações

filosóficas. Isto pode ser evidenciado desde os seus primeiros

esboços filosóficos das décadas de 1930-1940 contidos em

Diário de uma guerra estranha, em O ser e o nada, na

conferência O existencialismo é um humanismo, em

depoimentos e entrevistas cedidas ao longo de sua vida. Por

outro lado, mesmo com a publicação póstuma dos Cahiers

pour une morale, parece haver uma inconsistência teórica entre

os resultados presentes entre este e O ser e o nada. Pois, nesta

última, Sartre descreve uma liberdade solitária que procura

totalizar-se enquanto projeto de ser e que busca mascarar essa

sua estrutura fundamental, além disso, descreve as relações

com o Outro sob a perspectiva do conflito. Já nos Cahiers pour

une morale, Sartre desenvolve uma teoria da conversão que,

mesmo formalmente, descreve a possibilidade desta mesma

subjetividade tematizar o fracasso de seu projeto fundamental e

escapar da má-fé, e, fora isso, descreve a relação com os outros

sob a perspectiva da generosidade, ou seja, uma relação

harmônica.

Para início da reflexão, se é necessário colocar as

seguintes perguntas: Seria possível assumir um projeto

marcado pela autenticidade e não mais pela má-fé? Poderia se

pensar na relação com os outros não mais sob o signo do

conflito? Haveria como conciliar duas perspectivas da

liberdade e sua relação com a alteridade? Pensa-se que estas

perguntas podem ser respondidas se pudermos compreender

essas duas perspectivas sobre a liberdade do Para-si como

momentos distintos de uma mesma liberdade, e que estas

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

41

perspectivas, no plano teórico, se complementam mutuamente.

Significa, sobretudo, que dos resultados alcançados em O ser e

o nada surge a possibilidade de se pensar em possíveis

implicações morais, e que estas, podem ser encontradas em

grande parte nos Cahiers pour une morale, principalmente

quando Sartre trata da teoria da conversão da liberdade.

1. A dimensão ontológica do conflito das liberdades:

as relações intersubjetivas n’O ser e o nada

N’O ser e o nada a relação com os outros é descrita por

Sartre sob o ponto de vista do conflito, como o mesmo afirma:

“As descrições que se seguem devem ser encaradas, portanto,

pela perspectiva do conflito. O conflito é o sentido originário

do Para-si.” (SN, p. 454). O conflito na relação intersubjetiva

se dá pelo fato de que cada Para-si capta o Outro, a maneira de

um objeto, ou seja, como um Em-si2. A objetivação do Outro

revela que este pode tornar-se parte do projeto fundamental de

um Para-si, e ao mesmo tempo pode se tornar meio para

realização do projeto deste outro Para-si que o revela, já que

ambas as subjetividades estão imersas no seio de um mesmo

mundo. Trata-se da tensão contínua da afirmação da liberdade

individual e da fuga da objetificação do Para-si pelo olhar do

Outro. É a partir disso que Sartre caracteriza as relações com o

Outro.

N’O ser e o nada as relações intersubjetivas são

descritas sob a perspectiva do conflito, e, portanto, um âmbito

de relações em que não há espaço para a autenticidade. Sob

esse aspecto, a presença do Outro representa a perda do mundo

2 “O sentido profundo da análise de Sartre é que a relação sujeito-sujeito

não consegue deixar de ser uma relação sujeito-objeto; no fundo, ele pensa

a relação do para-si com o para-si a partir da relação do para-si com o em-

si”. (BORNHEIM, 2000, p. 93).

Sartre e as relações intersubjetivas

42

do Para-si, pois o que ocorre é que “[...] o Para-si tenta

assimilar a liberdade do outro.” (SN, p. 454). Por esta razão a

conduta fundamental é a reassunção daquilo que foi perdido

procurando suprimir o Outro. Entretanto, para a constituição do

mundo do Para-si, há a necessidade do Outro, e, portanto, é

preciso preservá-lo em certo sentido.

O reconhecimento do Outro ultrapassa os limites de

uma experiência de conhecimento marcada pela relação entre

sujeito e objeto. O Outro é visto como um Para-si, uma

subjetividade além de um corpo. Nesse reconhecimento da

alteridade é possível apreender o Outro como sendo portador

de um mundo, como sendo projeto e, portanto, reconhecer que

possui os seus próprios fins e projetos. Dessa forma, o que é

reconhecido não é apenas Outro corpo que se apresenta diante

da percepção, mas se reconhece uma unidade sintética entre

consciência e corpo. Sendo um Para-si, é uma transcendência

captável e, portanto, não se limita a pura apreensão do dado.

No entanto, se não há a possibilidade de apreensão do Outro

em uma experiência de conhecimento, resta somente a ideia de

que a sua apreensão é uma experiência originária e não a

posteriori. Assim, a presença do Outro se dá na e para a

consciência, pois, sua existência é parte da estrutura

fundamental do Para-si. O reconhecimento do Outro surge

graças ao poder de negação da consciência, pois para que este

exista para a consciência é preciso que haja uma negação

interna do Para-si, ou seja, apreender o Outro como não sendo

o Para-si que “sou”, e, portanto, o reconhecimento de uma

subjetividade e não um objeto do mundo. Além da negação

interna, o que possibilita o reconhecimento da alteridade é a

disposição fundamental do Para-si para ser visto. A

consequência disso é que as subjetividades se reconhecem

mutuamente pela disposição constante de olhar o Outro como

um Para-si e ter consciência de ser visto pelo mesmo. Dessa

forma, ver implica ser visto.

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

43

Avançando nas descrições sobre o reconhecimento do

Outro, Sartre aponta a possibilidade de reconhecimento dos

projetos e da liberdade dos outros nessa relação originária. Esse

reconhecimento é possível porque ao apreender o Outro é

possível também, se observar as situações em que está

engajado, apreendê-lo como se lançando rumo a diferentes fins

futuros, e, portanto, o reconhecimento de que este é um projeto

individual ou uma totalização em curso. Entretanto, a

disposição original para ser visto implica uma série de novos

problemas, como por exemplo: a própria constituição do Para-

si e a objetificação de seu ser.

A experiência de ser visto provoca no Para-si uma

desagregação de seu mundo, e este passa a ser captado pelo

Outro. Dessa forma, a descentralização do mundo do Para-si,

faz com que este seja captado ao modo de um objeto entre

outros. O aparecimento do Outro e a experiência do olhar

modificam o Para-si tornando-o assim uma exterioridade, e,

portanto, como parte do mundo, como um Em-si. Entretanto,

para que o Para-si possa obter algum conhecimento objetivo

sobre si necessita que esse dado objetivo passe necessariamente

pelo juízo do Outro. Dessa forma, os juízos objetivos que o

Para-si pode efetuar sobre si são mediados pela presença do

Outro que o qualifica. O mesmo se dá com a apreensão do

corpo que é captado pelo Outro como estando situado no

mundo, como um corpo entre outros corpos espacializados e

que pode servir para a realização de seus empreendimentos.

Assim, o Para-si está impossibilitado de fazer uso de seu corpo

como instrumento para si mesmo, pois como visto

anteriormente, se constitui como uma unidade sintética, e,

portanto, não poderia fazer uso de seu próprio corpo a partir de

uma perspectiva exterior, como um instrumento. Essa

objetividade do corpo e das qualificações do ser do Para-si é

revelada, conforme Sartre (2005), pelo fenômeno do olhar.

Trata-se, de um fenômeno em que o Outro capta o Para-si de

Sartre e as relações intersubjetivas

44

uma forma que este jamais poderia se captar, do mesmo modo

que o Para-si capta o Outro como este nunca poderá ser

captado por si mesmo.

O Para-si, por ser desejo de ser um Em-si-Para-si, se

caracteriza como perpétua totalização em curso. No entanto, a

apreensão do Outro pelo olhar se dá de maneira ambígua, pois

ao mesmo tempo em que há o reconhecimento de que este é um

projeto livre, há também a apreensão do Outro como uma

totalidade acabada, e, portanto, como objeto, como coisa.

Desse modo, o olhar do Outro, faz com que a liberdade do

Para-si se veja ameaçada, uma vez que ao apreendê-lo

enquanto coisa, o qualifica como ser acabado e não mais um

projeto livre que por meio da transcendência procura se

totalizar. No entanto, essa apreensão do Para-si pelo Outro

como um Em-si, revela algo que o sujeito é incapaz de realizar

por si mesmo: a objetivação de seu próprio ser. Essa

objetivação do Para-si somente pode ser realizada a partir do

Outro que o qualifica deste modo, pois é impossível ao Para-si

ser ao mesmo tempo sujeito e objeto para si. Assim, portanto,

a intersubjetividade em Sartre revela a essência da realidade

humana enquanto falta ou inacabamento. Pois, a possibilidade

de ser um Em-si-Para-si se encontra petrificada na apreensão

que o Outro faz desse Para-si, e já que a subjetividade do Outro

é impossível de se atingir ou vivenciar, o desejo de ser se

encontra irrealizável no Outro que apreende o Para-si como

totalidade acabada.

Pelo olhar do Outro o Para-si é arrancado de seu

mundo, e, assim, vê sua liberdade ameaçada, pois o Outro o

apreende para realizar os seus próprios desígnios e o qualifica.

Assim, de súbito, apareceu um objeto que me

roubou o mundo. Tudo está em seu lugar, tudo

existe sempre para mim, mas tudo é atravessado

por uma fuga invisível e fixa rumo a um objeto

novo. A aparição do outro no mundo

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

45

corresponde, portanto, a um deslizamento fixo

de todo o universo, a uma descentralização do

mundo que solapa por baixo a centralização que

simultaneamente efetuo (SN, p. 330)

Por conseguinte, o Para-si deixa de ser soberano nas

qualificações de seu próprio ser. Nas palavras de Sartre: “[...] o

ser-visto constitui-me como um ser sem defesa para uma

liberdade que não é minha liberdade.” (SN, p. 344) A dimensão

do conflito se instaura na medida em que há o reconhecimento

de que a subjetividade alheia possui o poder de fazer uso do

projeto livre do Para-si para a realização de seus fins e da

impossibilidade de este ter controle absoluto sobre as

qualificações alheias que fazem de seu ser. O Outro é assim

uma presença descrita como ameaça constante dos possíveis

projetos do Para-si, uma vez que a presença do Outro é

original, não há como escapar desta. Nesse sentido se constitui

a dimensão do conflito entre as liberdades.

A relação ao Outro é descrita por Sartre como

essencialmente conflituosa. Duas liberdades ao entrarem em

contato, originariamente, para resgatar o seu ser que foi

arrancado de si pelo Outro, tentam limitar a liberdade alheia

por meio de diferentes expedientes, por isso, recorrem a

diferentes tentativas de utilizar-se do Outro como meio para

realização de certos fins. Estas tentativas de posse da liberdade

do Outro se caracterizam em uma dimensão ontológica

originária pelo simples fato de que a liberdade é o único limite

para a mesma, o que, por conseguinte, revela que as atitudes

em relação ao Outro são dadas a partir da tentativa de limitar a

sua liberdade. “Em suma, o outro pode existir para nós de duas

formas: se o experimento com evidência, não posso conhecê-

lo; se o conheço, se atuo sobre ele, só alcanço o seu ser-objeto

e sua existência provável no meio do mundo. Nenhuma síntese

dessas duas formas é possível.” (SN, p. 384) Assim, as relações

humanas se dão basicamente sob duas formas principais: a) a

Sartre e as relações intersubjetivas

46

tentativa de apoderar-se da liberdade do Outro reconhecendo a

sua alteridade; b) o próprio conflito das liberdades. Para a

primeira, Sartre descreve a conduta amorosa, a linguagem e o

masoquismo, e para a segunda, a indiferença, o desejo e o

sadismo.3 Se nenhuma das tentativas de apoderar-se da

liberdade do Outro são possíveis de ser realizados, resta

somente o desejo de suprimir o Outro para que este não seja

mais o guardião dos juízos objetivos sobre o Para-si. Trata-se,

aqui, do ódio, da tentativa de eliminar o Outro. No entanto,

essa tentativa também se frustra, pois os juízos que o Outro faz

do Para-si não deixam de ter existido com a sua eliminação.

Além disso, com a morte do Outro, se elimina completamente a

possibilidade do Para-si modificar os juízos alheios. Assim, a

morte do Outro representa a derrota do Para-si, pois com a sua

morte o conhecimento objetivo que tinha de si mesmo se

desvanece, transformando-o em objeto petrificado, acabado.

Afora a relação intersubjetiva marcada pelo conflito e as

tentativas fracassadas de fuga da liberdade, Sartre anuncia a

possibilidade de uma moral edificada sob o conceito de

responsabilidade.

A ontologia não pode formular de per si

prescrições morais. Consagra-se unicamente

àquilo que é, e não é possível derivar

imperativos de seus indicativos. Deixa entrever,

todavia, o que seria uma ética que assumisse

suas responsabilidades em face de uma

realidade humana em situação. [...] Todas essas

questões [...] só podem encontrar sua resposta

3 No entanto, não se descreverá aqui cada uma destas atitudes, pois o

objetivo é demonstrar a tentativa de posse e o conflito das liberdades como

relação originária descrita em O ser e o nada, para posteriormente

confrontar com a descrição da intersubjetividade presente nos Cahiers pour

une morale.

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

47

no terreno da moral. A elas dedicaremos uma

próxima obra. (SN, pp. 763; 765).

Essas respostas, além das que estão dispersas em

diferentes escritos, podem ser visualizadas com maior

evidência na obra póstuma Cahiers pour une morale (1983) ao

se debruçar sobre o tema da conversão da liberdade. Nesta

obra, trata-se, sobretudo, de uma liberdade que não vive mais

intersubjetivamente no conflito, mas que adere a generosidade

como possiblidade de relação harmoniosa, e, assim, em uma

autêntica relação com os outros. Além disso, é caracterizada

como autêntica liberdade individual, pois apesar de reconhecer

o seu fracasso enquanto realização do desejo de ser um Em-si-

Para-si, se assume como única responsável pela constituição da

realidade humana em situação.

2. O aspecto moral da liberdade convertida e a

intersubjetividade harmônica

Se em O ser e o nada Sartre nos mostra o olhar do

Outro como revelador da subjetividade do Para-si, nos Cahiers

pour une morale, nos mostra o Outro como um Para-si

revelado. Na obra de 1943 a relação com o Outro é descrita

sem levar em consideração o aspecto desta relação após a

conversão. A relação autêntica descrita nos Cahiers pour une

morale não é uma simples supressão do conflito das liberdades,

mas a afirmação desta relação originária e também de uma

possível relação harmoniosa. N’O ser e o nada há ausência da

esfera do reconhecimento e da compreensão da liberdade do

Outro, pois esta se revela como tensão constante, como luta,

como afirmação de uma liberdade diante de outras liberdades.

Na obra posterior é possível constatar justamente aquilo que

faltava na anterior, ou seja, a dimensão do reconhecimento e da

compreensão da liberdade do Outro como apelo e

Sartre e as relações intersubjetivas

48

generosidade. No entanto, é preciso ressaltar que esta relação

não suprime a tensão e o conflito das liberdades, mas sim

preserva e vivencia esta relação ao mesmo tempo em que

vivencia a relação harmônica. Trata-se, portanto, de uma

relação marcada pela ambiguidade, pois por um lado o Outro é

tido como um objeto dado à consciência e por outro como

liberdade que é apreendida em meio aos seus próprios fins.

A vivência desta ambiguidade no plano moral é o que

Sartre descreve como a possibilidade de autenticidade, e esta

consiste na apreensão do Outro enquanto liberdade em seus

próprios fins e não mais como objeto ou como possibilidade de

incorporação na realização de fins puramente individuais; e,

sobretudo, do reconhecimento da dimensão de sua contingência

e vulnerabilidade diante do mundo. Sartre afirma: “Se eu

entendi o que é um homem e operei a conversão, eu não quero

simplesmente que o projeto seja realizado, eu espero que ele o

seja pelo homem, ou seja, através da contingência e da

fragilidade.” (CPM, p. 522). A relação autêntica descrita nos

Cahiers pour une morale é uma relação de apreensão da

liberdade do Outro como exigência para a realização da

mesma. Por isso, a forma dessa relação se dá pela via do apelo

e da generosidade. A relação autêntica com o Outro não

comporta uma anulação do projeto individual ou negação do

Para-si para a realização dos fins do Outro. O que está em jogo

aqui, não é a elevação de uma liberdade sobre a outra, mas sim,

o reconhecimento das mesmas como impensáveis sem a

dimensão do projeto fundamental e sem a exigência do apelo e

a generosidade da resposta de uma subjetividade que apreende

a outra no seio de seu ser.

Nas relações concretas com o Outro, a generosidade,

apesar de descrita por Sartre em apenas um exemplo4, que

deixa a desejar em termos concretos, indica a possibilidade de

4 Cf. CPM, p. 290. O exemplo em questão é o do homem que corre em

direção a um ônibus.

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

49

realização da mesma a partir de três atitudes fundamentais. A

primeira atitude consiste no Para-si transcender o todo a partir

de seus próprios fins, apreendendo a liberdade do Outro como

objeto qualificado, o que, por conseguinte, significa a não

compreensão e a supressão da liberdade do Outro. A segunda

atitude do Para-si em relação ao Outro está próxima das

descrições contidas em O ser e o nada, pois significa

reconhecer os fins do Outro e ao mesmo tempo apropriar-se

desses fins. O que continuaria em uma relação de

inautenticidade, pois os fins do Outro se tornam objetos de

realização dos fins do Para-si. A única forma de atitude

autêntica descrita por Sartre seria compreender os fins do

Outro, ao mesmo tempo em que se preserva a autonomia de

realização desses mesmos fins, afirmando que: “A única forma

autêntica do querer é querer que o fim seja realizado pelo

Outro. E querer aqui é se engajar na operação. Mas não para

realizar a si mesmo: para modificar a situação de tal sorte que o

Outro possa operar.”(CPM, p. 290). A generosidade que ocorre

na relação autêntica com o Outro, consiste em não abdicar dos

próprios fins, mas a partir da compreensão dos fins do Outro,

em um ato de generosidade, possibilitar que ele realize também

os seus fins na medida em que o Para-si se dispõe livremente

para realizar os fins do Outro.

É possível afirmar que há uma ambiguidade na relação

do Para-si autêntico com a realidade humana e nas suas

relações com o Outro. Pois, ao mesmo tempo em que pretende

uma busca por autenticidade pelo reconhecimento e

tematização do projeto fundamental enquanto fracasso, existe a

possibilidade de tornar esse fracasso edificante sob o pronto de

vista moral. Seja a partir da construção da possibilidade de um

mundo completamente humano, seja pelo reconhecimento da

liberdade do Outro e da exigência de não abandonar os

próprios fins, ou uma relação de generosidade na qual se adota

livremente os fins do Outro. Como conciliar a ambiguidade

Sartre e as relações intersubjetivas

50

entre o fracasso inevitável da realização do projeto

fundamental e a dimensão do conflito presentes em O ser e o

nada, e a realização da realidade humana por uma

subjetividade que se reconhece autêntica e se relaciona com os

outros sob uma perspectiva harmônica descrita nos Cahiers

pour une morale?

Nos Cahiers pour une morale Sartre dedica atenção ao

tema da conversão moral, a qual consiste em uma conversão de

uma liberdade alienada em liberdade autêntica. Assim, a

conversão da liberdade torna-se a condição necessária para a

efetivação de uma moral, entendida por sua vez como

possibilidade de realização humana ao converter-se. Essa

conversão é possível graças à reflexão pura que faz com que o

Para-si se reconheça como o ser pelo qual toda realidade

humana é possível, ao mesmo tempo em que reconhece que

este empreendimento somente é realizável em sua absoluta

contingência e finitude. Assim, se em O ser e o nada há a

descrição do Para-si como fuga da liberdade e queda na má-fé,

nos Cahiers pour une morale a moral viria a complementar os

resultados de sua ontologia de modo a estabelecer uma

autêntica liberdade, algo que não caberia nas descrições da

obra de 1943. Pois, nesta, a liberdade era descrita sob o aspecto

pré-moral. Não se trata de uma liberdade que se transforma em

outra, mas sim, de uma liberdade que resgata a si de sua

condição de “queda” na inautenticidade. Assim, a liberdade

convertida é tratada como a passagem de uma liberdade que se

encontra alienada e degradada para a descoberta da essência

própria dessa liberdade.

Na conversão, pela via da reflexão purificante, a

consciência recupera o seu caráter espontâneo, e, desse modo, a

moral em Sartre é pensada a partir de possibilidades autênticas

de uma consciência purificada. Melhor dizendo: a consciência

purificada deixa de negar a sua contingência absoluta, deixa de

estar submersa na má-fé, deixa de procurar identificar-se com o

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

51

Em-si, e assim, converte-se em autêntica. No entanto, é esta

uma conversão permanente, pois não se baseia em novos

valores absolutos, caso assim o fosse deixaria de ser livre.

Trata-se de uma liberdade que necessita a todo instante

afirmar-se como fundamento de tudo e que ao mesmo tempo

nada lhe serve de fundamento além de si mesma. Assim, a

conversão está associada à ideia de escolha, pois escolher e

fazer a si mesmo implicam constantes “conversões” motivadas

pelo estranhamento a si causado pela falta de nexo causal entre

um projeto atual e outro passado. A conversão, portanto,

adquire um sentido de ser permanente5, por isso a liberdade

continua disposta para mudar ou permanecer como estava.

Dessa forma a conversão se traduz em uma das múltiplas

formas da liberdade.

Para Sartre, “[...] a base única da vida moral deve ser a

espontaneidade, isto é, o irrefletido.” (CPM, p. 12). Assim, a

inautenticidade possui prioridade ontológica sobre a

autenticidade, pois para que haja a conversão da liberdade – e

esta se dá no plano reflexivo – é necessário haver também o

plano irreflexivo como base fundamental a partir da qual se

pode tematizar ou questionar as razões do fracasso do desejo de

ser, pois “[...] a reflexão nasce como um esforço da consciência

para se recuperar” (CPM, p. 19). As razões pelas quais o

homem efetua a passagem de uma reflexão impura para uma

pura é, em um primeiro momento, motivada pela experiência

do Outro que leva o Para-si a descobrir que a sua liberdade

inalienável é o motivo de sua própria alienação6. Outra razão é

5 “A moralidade: conversão permanente. No sentido de Trotsky: revolução

permanente. Os bons costumes: não são nunca bons porque são costumes.”

(CPM, p. 12). 6 “Por alienação entendemos um certo tipo de relação que o homem tem

consigo, com o outro e com o mundo, e em que ele põe a prioridade

ontológica do Outro. O Outro não é uma pessoa determinada, mas uma

categoria ou, se quisermos, uma dimensão, um elemento. Não há objeto ou

sujeito privilegiado que deva ser considerado como Outro, mas tudo pode

Sartre e as relações intersubjetivas

52

a descoberta do fracasso de determinar-se como um Em-si-

Para-si. Por estes motivos, é que a inautenticidade é o ponto de

partida para a possível conversão da liberdade, e esta conversão

se dá, sobretudo, no terreno moral.

No modo de ser autêntico ocorre a rejeição do projeto

fundamental de ser um Em-si- Para-si. Assim, a ideia de não

mais apropriar-se do Em-si se liga a assunção de uma

existência que se reconhece em sua absoluta contingência,

facticidade e finitude como estas vem à tona na reflexão pura.

Como consequência, há também a rejeição da fuga na má-fé.

Dessa maneira, o indivíduo autêntico mantem uma relação

original com o seu próprio projeto, visto que o único valor que

seus projetos possuem são aqueles eleitos pelo mesmo. Como

afirma Sartre: “Chegamos, pois, ao tipo de intuição que

desvelará a existência autêntica: uma contingência absoluta que

não se tem senão a si para se justificar assumindo-se, e que não

pode assumir-se senão no interior de si.” (CPM, p. 498).

Contudo, esse desvelamento somente se dá por meio da ação

concreta, e esta pressupõe criação de si e do Outro.

Dessa forma, o modo de existir autêntico pressupõe a

generosidade como estrutura fundamental, pois o Para-si

“Salva o Ser que, com efeito, não será nunca Para-si mas para

um existente que é para-si” (CPM, p. 500). A reflexão pura

torna explícito que o modo fundamental do agir humano é a

generosidade, o que em parte justifica a afirmação de que o

Para-si é o ser que faz com que apareça o ser. Além do

aparecimento do ser e de outras formas de generosidade, é

possível citar o reconhecimento da liberdade do Outro e do

reconhecimento de seus projetos individuais, o que

possibilitaria uma livre eleição dos fins do Outro sem abdicar

de seus projetos individuais. Dimensão esta, que caracterizaria

ser Outro e Outro pode ser tudo.” (CPM, p. 396) Mais adiante:

“Compreendo-me através de meus bens e das minhas obras e dou-me o tipo

de ser do objeto.” (CPM, p. 484-485).

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

53

as relações autênticas com os outros, e, portanto, um ponto de

convergência do ambíguo tratamento que Sartre da ao

problema moral da liberdade e seus empreendimentos

intersubjetivos.

N’O ser e o nada, como descrito anteriormente, as

relações intersubjetivas estão marcadas pelo signo do conflito e

nesse sentido a responsabilidade também se estende a essa

perspectiva, pois “[...] os outros, enquanto transcendências-

transcendidas, tampouco são mais do que ocasiões e

oportunidades, a responsabilidade do Para-si se estende ao

mundo inteiro como mundo-povoado” (SN, p. 681, grifos do

original). Por outro lado, em O existencialismo é um

humanismo, descreve a esfera da responsabilidade sobre os

outros em diversos momentos a partir do desejo de afirmação e

conquista da liberdade dos outros, pois a liberdade individual

estaria atrelada à liberdade alheia. “E querendo a liberdade,

descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos

outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa” (SN, p.

40). Dessa forma, afirma o aspecto moral da liberdade que não

é destacado em O ser e o nada. Porém, esse mesmo aspecto

moral da liberdade está presente em seu escrito póstumo de

1983, Cahiers pour une morale, no qual a liberdade é descrita

em seu outro modo de ser. Uma liberdade autêntica capaz de

reconhecer os fins dos outros e adota-los livremente sem

abdicar dos seus projetos individuais. Nesta obra, Sartre

procura tratar um outro aspecto da liberdade e da alteridade que

faltam em O ser e o nada, no qual a liberdade é caracterizada

essencialmente como má-fé e a intersubjetividade como

conflito. É preciso ressaltar aqui que, apesar da publicação

póstuma dos Cahiers pour une morale, o mesmo foi redigido

no período de elaboração de O existencialismo é um

humanismo, publicado pela primeira vez em 1946, e, talvez, a

mudança de um discurso puramente ontológico para uma

preocupação com o plano moral seja o reflexo de uma época

Sartre e as relações intersubjetivas

54

em que suas preocupações estavam voltadas para exigências

externas e preocupações pessoais acerca de uma

fundamentação ética do existencialismo.

A descoberta do Outro no período que se segue à

publicação de O ser e o nada foi expresso publicamente da

seguinte maneira:

O outro é indispensável para minha existência,

tanto quanto, ademais, o é para o meu

autoconhecimento. Nestas condições, a

descoberta do meu íntimo revela-me ao mesmo

tempo, o outro como uma liberdade diante de

mim, que sempre pensa e quer a favor ou

contra mim. (EH, p. 34, grifo nosso)

Assim, afirma a possibilidade de ultrapassar a má-fé e

pensar a intersubjetividade não mais sob o signo do conflito,

mas como uma relação harmônica em que o que está em jogo

não é mais a elevação de uma subjetividade sob a outra para a

realização de seus projetos individuais, mas duas liberdade que

colocadas diante uma da outra respondem ao apelo da outra sob

diferentes formas de generosidade, como por exemplo, a

possibilidade de reconhecer os projetos do Outro e adotar os

seus fins em uma relação harmônica. Possibilidade esta,

visualizada nos Cahiers pour une morale.

Conclusões inacabadas

Nos Cahiers pour une morale, Sartre, põe em evidência

o outro modo de ser da liberdade. Essa liberdade é descrita sob

a possibilidade da autenticidade, a qual consiste em, por meio

da reflexão pura, descobrir que o projeto fundamental de torna-

se um Em-si-Para-Si está fadado ao fracasso. No entanto, não

se trata de uma resignação, mas a descoberta de que o homem é

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann

55

o único responsável pelo que faz de si mesmo e da realidade

humana. Nas relações autênticas com os outros a dimensão do

conflito não é suprimida, porém Sartre indica que há

possibilidade de reconhecimento do apelo do Outro. Assim,

procura demonstrar que nas relações autênticas é possível

ultrapassar o conflito e estabelecer uma harmonia

intersubjetiva mesmo que temporária. Essa harmonia se daria

pela via de uma resposta moralmente responsável de uma

subjetividade que reconhece os fins do Outro como apelo para

generosamente adotar os seus fins. Portanto, a relação autêntica

com o Outro significa, sobretudo, que existe a possibilidade de

duas subjetividades que, colocadas uma diante da outra, não

mais se relacionam como meios para realização de seus

respectivos projetos, mas sim a livre adoção dos fins do Outro

sem que seja necessário abdicar dos seus próprios fins.

Se em O ser o nada o encontro das liberdades é

marcado pelo conflito, nos Cahiers pour une morale Sartre

abre a possibilidade do reconhecimento destas liberdades e,

portanto, a possibilidade de resposta de uma subjetividade que

apela pelo reconhecimento dos fins de sua ação em uma

relação autêntica vivida sob uma perspectiva harmônica. Trata-

se, portanto, de uma moral fundada no apelo e na resposta de

subjetividades que, colocadas diante uma da outra, possibilitam

a autonomia de realização de seus respectivos projetos

individuais.

No entanto, é preciso levar em consideração que a

exposição desse outro aspecto da liberdade contido nos Cahiers

pour une morale, não resolve por completo as questões

deixadas em aberto em O ser e o nada. Assim, se a proposta

desta pesquisa é investigar a compatibilidade entre as teses

sobre a liberdade e a alteridade, especialmente a partir de O ser

e o nada e dos Cahiers pour une morale, é preciso investigar o

percurso das intenções da filosofia moral de Sartre para que

esta deixe de ser compreendida como um simples paradoxo

Sartre e as relações intersubjetivas

56

insolúvel, e sim como uma ambiguidade necessária para a

fundação de uma ontologia moral.

Referências bibliográficas

BORNHEIN, Gerd A. Sartre: metafísica e existencialismo.

São Paulo: Perspectiva, 2000.

SARTRE, Jean-Paul. A Transcendência do Ego seguido de

Consciência de si e Conhecimento de si. Trad. e intro. de

Pedro M. S. Alves. Lisboa: Edições Colibri, 1994. [TE]

_____. Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard, 1983.

[CPM]

_____. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica.

13ª ed. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2005. [SN]

_____. O existencialismo é um humanismo. 3ª ed. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2014. [EH]

57

LINGUAGEM SENSITIVA E LINGUAGEM

INTELECTIVA EM SANTO AGOSTINHO

Dinno Camposilvan Zanella1

Introdução

Aurélio Agostinho, em latim Aurelius Augustinus,

religioso e teólogo cristão, Doutor da Igreja sistematizou a

doutrina cristã com enfoque neoplatônico. É considerado "o

último dos antigos" e o "primeiro dos medievais", Santo

Agostinho foi o primeiro filósofo a refletir sobre o sentido da

história, mas tornou-se acima de tudo o arquiteto do projeto

intelectual da Igreja Católica. Nasceu em Tagaste, atualmente

Suk Ahras, na Numídia, atual Argélia, em 13 de novembro de

354 d.C. Seu pai chamava-se Patrício e era um homem pagão e

de posses, que no final da vida se converteu ao cristianismo.

Sua mãe era uma cristã de muita fé e chamava-se Mônica, e

posteriormente tornou-se santa. Agostinho estudou retórica em

Cartago, onde aos 17 anos passou a viver com uma concubina

com quem teve um filho chamado Adeodato.

Cada vez mais interessado pelo cristianismo,

Agostinho, que era pagão, viveu longo conflito interior.

Voltou-se para o estudo dos filósofos neoplatônicos, renunciou

aos prazeres físicos e em 387 d.C. foi batizado por santo

1 Possui Graduação no curso de Filosofia na Universidade Federal de

Pelotas. É atualmente Mestrando do Programa de Pós-Graduação em

Filosofia da Universidade Federal de Pelotas como bolsista CAPES. Tendo

a orientação do professor Dr. Sérgio Ricardo Strefling para a realização

deste artigo. E-mail: [email protected]

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

58

Ambrósio, junto ao filho Adeodato. Tomado pelo ideal da

ascese, decidiu fundar um mosteiro em Tagaste, onde nascera.

Nesta época perdeu a mãe e, pouco depois, o filho. Ordenado

padre em Hipona (391 d.C.), pequeno porto do Mediterrâneo,

também na atual Argélia, foi em 395 d.C. feito bispo-coadjutor

de Hipona, passando a titular com a morte do bispo diocesano

Valério. Não tardou para que fundasse uma comunidade

ascética nas dependências da catedral.

Em sua vida e em sua obra, Santo Agostinho

testemunha acontecimentos decisivos da história universal,

como o fim do Império Romano e da antiguidade clássica. O

poderoso estado que durante meio milênio dominara a Europa

esfacelava-se em lutas internas e sob o ataque dos bárbaros.

Em 410 d.C., Agostinho viu a invasão de Roma pelos

visigodos e, pouco antes de morrer, presenciou o cerco de

Hipona pelo rei dos vândalos, Genserico. Nesse clima, em que

os cismas e as heresias eram das poucas coisas que

prosperavam, ele estudou, ensinou e escreveu suas obras. As

principais obras de santo Agostinho são: “Contra

Acadêmicos”2, “De Trinitate”

3, “De civitate Dei”

4,

“Confissiones”5, “De vita Beata”

6 e “De libero arbitro”

7.

2 Contra os Acadêmicos: No retiro de Cassicíaco, logo após sua conversão,

Agostinho escreveu este diálogo. Realizando uma engenhosa argumentação

sobre os sentidos como fonte de verdade. O erro está nos juízos que se faz

sobre as sensações e não delas próprias. A sensação como tal não é falsa,

mas quando expressa uma verdade externa ao próprio sujeito torna-se falsa.

Assim, os céticos não poderiam refutar se alguém dissesse: “Eu sei que isto

me parece branco.” Limito aqui a minha percepção encontrando ai a

verdade, verdade da qual não pode ser negada, ou contestada. Agora se

digo: “Isto é branco.” Aqui neste caso, há a possibilidade de se cometer

erro. Pois, existiria uma verdade absoluta que estaria implicada na

percepção do objeto. 3 Da Trindade: sistematização da teologia e filosofia cristãs, divulgada de

400 a 416 em 15 volumes. 4 A Cidade de Deus: divulgada de 413 a 426, em que são discutidas as

questões do bem e do mal, da vida espiritual e material, e a teologia da

Dinno Camposilvan Zanella

59

Contra o maniqueísmo, sustenta a liberdade do homem;

contra o pelagianismo, o valor da graça. A visão agostiniana da

história é completamente diferente da visão da graça: não mais

ciclos que se repetem periodicamente, mas um caminho em

linha reta que sobe da terra para o céu. No pensamento de

Santo Agostinho, o ponto de partida é a defesa dos dogmas

(pontos de fé indiscutíveis) do cristianismo, principalmente na

luta contra os pagãos, com as armas intelectuais que advém da

filosofia helenístico-romana, em especial dos neoplatônicos

como Plotino. Para pregar o Novo Evangelho, é indispensável

história. Aqui Agostinho leva a argumentação a cerca do conhecimento, as

ultimas consequências antecipando desta forma o cogito cartesiano com a

afirmação: “Si fallor sum.” “Se me engano, eu sou, pois aquele que não é

não pode ser enganado.” Assim, Agostinho afirmava a certeza da própria

existência. 5 Confissões: sua autobiografia, divulgada por volta de 400; e muitos

trabalhos de polêmica (contra as heresias de seu tempo), de catequese e de

uso didático, além dos sermões e cartas, em que interpreta minuciosamente

passagens das Escrituras. 6 A vida feliz: Solilóquios é o título que o próprio Agostinho deu a esta

obra, que se compõe de 2 livros e 35 capítulos, 15 no Livro I e 20 no Livro

II. A obra é inacabada, como se lê no fim do Livro II. Um terceiro livro

estava previsto, no qual Agostinho trataria especificamente do tema da

inteligência relacionado com a imortalidade da alma. Infelizmente não o

temos, porque os trabalhos pastorais logo iriam absorver totalmente o tempo

de Agostinho. Após sua conversão, ele retirou-se em Cassicíaco, uma aldeia

ao norte da Itália, cuja localização atualmente dificilmente se pode

identificar. Ali lhe fora cedido o uso de uma chácara por um nobre senhor

de nome Verecundo, onde Agostinho passou os primeiros anos após sua

conversão, em companhia de sua mãe Mónica e de seus amigos, para total

dedicação ao estudo, à filosofia, à meditação e satisfação de seu anseio: a

procura de Deus e da verdade, tema central desta obra. O método usado

nesta obra e em outros diálogos escritos nessa época é o de perguntas e

respostas. Era o método pedagógico utilizado na época, em que o instrutor

ou professor dialogava com o discípulo, levando-o a uma conclusão através

de raciocínios, às vezes até absurdos, para chegar à conclusão desejada. 7 O Livre-arbítrio: Afirma que o mal não deriva de Deus, mas das criaturas,

à medida que não é uma realidade positiva, mas uma privação da realidade.

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

60

conhecer a fundo as Escrituras, que só podem ser bem

interpretadas por meio da fé, pois apenas esta sabe ver na

revelação, a verdade divina. Compreender para crer e crer para

compreender, tal é a regra a seguir.

O problema8 a ser discutido é a relação entre

linguagem, educação e fala. Enfatizando como acontece a

comunicação no pensamento filosófico de Santo Agostinho.

Problema que Agostinho tenta resolver em suas obras. O

problema de como chegamos à verdade (“onde ela está?”).

Com relação à linguagem questiona-se: “Como nos

comunicamos?”, “Esta comunicação é realizada de que

maneira?” A função da palavra numa tentativa de transmissão

de conhecimento. “Uma linguagem exterior é capaz de mostrar

a verdade, dar significado por si só?”. Para a solução destes

problemas pretendo usar o conhecimento filosófico contido em

algumas de suas obras, a saber: “Confissões” e “De Magistro”.

Na obra “Confissões” pode-se perceber o desenvolvimento da

temática acerca do conhecimento humano. Trata-se de

conhecer as coisas a partir de uma confissão sincera, de quem

busca, a partir dos erros e acertos cometidos na vida, assim

conhecer a verdade. Esta busca é realizada na forma de oração:

uma súplica a Deus para que o ilumine na tentativa de

encontrar a verdade. Nesta reflexão, Agostinho questionará

seus atos, questionará também o conhecer, em especial a busca

pelo conhecimento verdadeiro: “Onde reside?” “Quando

estamos falando ou escrevendo podemos errar em nossas

afirmações?” “Estes erros cometidos por nós nos tornam

8 O primeiro problema filosófico abordado por Agostinho após sua

conversão foi o dos fundamentos do conhecimento, pois, na época, era

preciso de uma resposta urgente. Discussão que antes era realizada nos

limites da “Nova Academia platônica”, sendo dominada pelas analises de

Arcersilau (315-241 a.C) e Carnéades (214-129 a.C), que sustentavam a

tese de que não é possível encontrar um critério de evidência absoluta e

indiscutível, o conhecimento limitando-se ao meramente verossímil,

provável ou persuasivo.

Dinno Camposilvan Zanella

61

ignorantes?” “Nossa memória intelectiva, ou o conhecimento

interior, é capaz de fazer com que saibamos usar a

comunicação de maneira adequada?” “O conhecimento só pode

ser adquirido pelo estudo do mundo interior, pela alma?”. Na

obra “De Magistro”, podemos perceber por meio do diálogo

com o filho Adeodato, o desenvolvimento do problema da

relação entre linguagem e educação. Problema resolvido no

transcorrer do diálogo. Diálogo que parte de questionamentos

do tipo: “O que se deseja quando se fala?”, ou seja, quando nos

comunicamos temos alguma pretensão, algum desejo advindo

daquela comunicação. “Qual é a pretensão que se tem quando

estamos falando?” “Como é realizada a educação de uma

pessoa, a relação entre ensinar e aprender?” “O conhecimento

está no interior de cada ser humano?”. São questões que o

santo aborda na tentativa de encontrar o conhecimento

verdadeiro, do qual não se pode suspeitar ser falso ou conter

erro.

A obra de Santo Agostinho é imensa, de extraordinária

riqueza. Antecipa o cartesianismo e a filosofia da existência;

funda a filosofia da história e domina todo o pensamento

ocidental até o século XIII, quando dá lugar ao tomismo e à

influência aristotélica. Voltando à cena com os teólogos

protestantes (Lutero e, sobretudo, Calvino), é hoje um dos

alicerces da teologia dialética. Santo Agostinho morreu em

Hipona, em 28 de agosto de 430 d.C. E nessa data, é festejado

como doutor da igreja.

1. Linguagem sensitiva (primitiva)

Na obra “De Magistro”, ou “Do Mestre”, Agostinho9

por meio de um diálogo com seu filho Adeodato10

, apresenta

9 Nas citações Santo Agostinho aparecera como: AG.

10 Nas citações Adeodato aparecera como: AD.

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

62

um texto com amplo aspecto para o pensamento filosófico

quanto para pedagogia. O que tange entorno desta obra é, uma

problematização filosófica acerca da educação, em um sentido

de relacionar: linguagem, forma de comunicação, ensino e

aprendizagem. O que a torna uma obra importante para a época

e para a compreensão de uma epistemologia agostiniana.

O “De Magistro” coloca-se, bem no meio da grande

problemática filosófica da época, ou seja, esta no centro do

problema filosófico inerente a educação, cultura e transmissão

de conhecimento. Inicia os questionamentos na tentativa de

responder a possíveis perguntas: “Como é possível à

educação?” ou a outra pergunta anterior: “É possível

efetivamente à educação?” Ou seja, pretende-se aqui tratar

sobre a relação mestre e aluno, o que se mostra no capítulo

primeiro da obra, que desta relação a uma constante entre

ensinar, por parte do mestre e aprender, por parte do aluno.

Agostinho começa sua obra não criando discussões

sobre tais problemas, mas sim com possíveis soluções acerca

de: “Como e possível à educação?” O que não é questionado

logo de inicio, mas sim a “utilidade da linguagem”. Qual a

utilidade da linguagem, para que serve e por que usamos do

modo como a usamos?

A linguagem é um instrumento prático através

da qual estamos em grau de ensinar e de dar

informações, de evocar a memória fatos ou

conceitos e recordá-los aos outros: ela expressa

a vontade de quem fala. O pensamento de

Agostinho, ainda que não tematize diretamente

o problema da pedagogia, parte, porém, de uma

verdadeira e própria equação entre a educação

ou, ao menos, o ensinamento, e a própria

linguagem11

.

11

SANTOS, Bento Silva. O De Magistro de S. Agostinho e o Problema da

Linguagem, p. 4.

Dinno Camposilvan Zanella

63

Todavia, o que Agostinho realmente questiona neste

primeiro capitulo em relação à utilidade da linguagem é: “O

que queremos quando falamos12

?"

AG — Que te parece que pretendemos fazer

quando falamos? AD — Pelo que de momento

me ocorre, ou ensinar ou aprender. AG — Vejo

uma dessas duas coisas e concordo; com efeito,

é evidente que quando falamos queremos

ensinar; porém, como aprender? AD — Mas,

então, de que maneira pensas que se possa

aprender, senão perguntando? AG — Ainda

neste caso, creio que só uma coisa queremos:

ensinar. Pois, dize-me, interrogas por outro

motivo a não ser para ensinar o que queres

àquele a quem perguntas?13

Seu filho responde que se pretende: “ou ensinar, ou

aprender” “aut docere, aut discere”. O que Agostinho não

aceitou como resposta, em parte, pois não pretende negar, mas

fazer alguns acertos, ou seja, reformular a resposta, corrigindo

certos equívocos. Embora entre os termos: “aut docere, aut

discere”, Agostinho prefira usar somente o termo: “docere”,

pois quem fala também esta aprendendo além de ensinar, e

com relação a esse ensina Agostinho ainda acrescentaria antes

de “discere”, “commemorare”, que é o ensinamento não só para

com os outros, mas também fixar o conhecimento em nós e em

12

A definição do que chamamos “falar” é dada no De Magistro I, 2: “Qui

enim loquitur suae voluntatis signum foras dat per articulatum sonum” (“O

que fala mostra exteriormente o sinal de sua vontade pela articulação do

som”). Nesta definição entram os seguintes elementos: uma vontade

interna, que dá a conhecer o que quer; alguns sinais com os quais manifesta

seu desejo; alguns sons articulados, ou palavras, que são veículo de ideias:

não são simples sons ou vozes, como os que podem emitir os animais, mas

são articulados, formando grupos de sílabas que expressam uma realidade e

emitem exteriormente o que há dentro da vontade e do pensamento. 13

AGOSTINHO, Santo. De Magistro, I.

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

64

nossa memória, “quoddam genus docendiper

commemorationem”14.

Agostinho refutara esta posição de Adeodato com os

exemplos do canto e da oração. Será que com o cantar não nos

propomos também a ensinar e aprender como o que foi

afirmado inicialmente que acontece com o falar? Quem canta

só emite palavras, sons, não que quem escute de repente esteja

interessado em ensinar. Uma das formas de ensinar que o Santo

coloca como uma das mais valiosas é a recordação. Pois a

usamos de dois modos: para ensinar e aprender, ao lembrarmos

as recordações em nós mesmos e nos outros, como pode

acontecer quando cantamos. O que Adeodato discorda porque,

para ele, quando cantamos não nos interessamos pelas

lembranças, mas sim um agradar-se, deleitar-se com os

prazeres e a beleza do canto.

AG — Compreendo o que queres dizer; mas

não percebes que o que te deleita no canto não é

senão uma certa modulação do som, que, pelo

fato de se poder acrescentar ou subtrair às

palavras, faz com que uma coisa seja o falar e

outra o cantar? Em verdade, também com a

flauta e a citara se emitem modulações, cantam

também os pássaros, e nós mesmos, às vezes,

entoamos um motivo musical sem palavras, o

que se pode chamar canto, mas não fala;15.

Portanto, segundo Agostinho, o canto não pode ser

considerado como fala porque não haveria uma intenção de

ensinar e aprender no cantar, como propomos no inicio, como

fundamento para o falar. O que no canto estaria mais para uma

14

Este modo de ensinar per commemorationem parece aludir à doutrina

platônica da reminiscência, mas Agostinho jamais admitiu o mito da

preexistência das almas, e igualmente ignorou a teoria da reminiscência. A

doutrina da iluminação supriu à da reminiscência platônica. 15

AGOSTINHO, Santo. De Magistro, I.

Dinno Camposilvan Zanella

65

relação de modulação de som e palavras em um ritmo. Não

havendo uma pretensão de transmissão de conhecimento, um

simples deleite dos prazeres sensoriais faz com que o animo da

pessoa que canta para si, ouve ou canta para outros, fique em

um estado de felicidade momentânea. Mas ainda não seria o

auge de sua felicidade, o qual seria a paz.

Com relação à oração, Adeodato irá questionar a

respeito do que rezamos e também do que estamos falando. Se

falamos, é porque estamos buscando ensinar e aprender. O que

não pode ocorrer, pois, em uma oração. Não há a pretensão

nem de ensinar e nem de aprender, ou ainda de relembrar algo

a Deus. Como poderá ser observada na citação, essa é a

resposta de Santo Agostinho ao questionamento sobre a oração.

AG — Tenho a impressão de que não sabes

que, se nos foi ordenado rezar em lugares

fechados, expressão que significa o espaço

secreto da alma, o foi porque Deus não quer ser

lembrado de algo ou ensinado por nossas

palavras, para conceder-nos o que desejamos.

Quem fala, pois, dá exteriormente o sinal da sua

vontade por meio da articulação do som: mas

devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais

íntimo recesso da alma racional, que se

denomina o homem interior; quis Ele que fosse

este o seu templo. Não leste no Apóstolo: "Não

sabeis que sois o templo de Deus e que o

espírito de Deus 1 Mt 6,6. habita em vós", e que

"Cristo habita no homem interior?" E não

reparaste no que diz o Profeta: "Falai dentro

dos vossos corações e nos vossos leitos

arrependei-vos: oferecei os sacrifícios da justiça

e confiai no Senhor"? Onde crês que se podem

oferecer os sacrifícios da justiça a não ser no

templo da mente e no íntimo do coração? Onde

se fizer o sacrifício, aí também se há de orar.

Por isso não são de mister palavras quando

rezamos, isto é, palavras soantes, exceto, talvez,

no caso do sacerdote que expressa pela palavra

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

66

o seu pensamento, mas não para que Deus, e

sim os homens ouçam, e, por meio do

consentimento na recordação, sejam elevados

até Deus. Ou não pensas assim?16.

Esta objeção criada por Adeodato, sobre o canto e a

oração, demonstra que a linguagem nem sempre será uma

instrução, mas toda a instrução será necessariamente uma

forma de linguagem. Ao passo que sem falar, ou poder

exprimir seus conhecimentos, um mestre jamais poderá

ensinar. Do mesmo modo ocorre com a oração, pois não há

uma intenção de lembrar Deus ou de ensiná-lo pelas palavras.

Pois, na oração Deus não faz outra coisa senão ouvir a nossa

oração. Acontece, pois, que o Senhor da vida não nos ensina as

palavras, mas pelo significado delas, aquilo que devemos

aprender, ou seja, as coisas que as pessoas pedem em suas

preces.

AG — Entendeste certo: creio também teres

notado, apesar de haver quem não concorde,

que, mesmo sem emitir som algum, nós

falamos enquanto intimamente pensamos as

próprias palavras em nossa mente; assim, com

as palavras nada mais fazemos do que chamar a

atenção; entretanto, a memória, a que as

palavras aderem, em as agitando, faz com que

venham à mente as próprias coisas, das quais as

palavras são sinais17.

Podemos notar que, até mesmo quando não emitimos

nenhum tipo de som, ou seja, quando não emitimos som algum,

estamos, portanto, falando no interior da nossa mente, nos

nossos pensamentos. O que caracteriza os sons que fazemos

como maneiras de chamar a atenção pela memória. No entanto,

a memória que as palavras aderem são as próprias coisas

16

Ibidem. 17

Ibidem.

Dinno Camposilvan Zanella

67

realmente ou sinais derivados das palavras produzidas a partir

da mente.

2. Linguagem intelectiva (iluminação divina)

O questionamento que faço agora é: “O ser humano

conhece a verdade de que maneira?” Como aprendemos?

Como temos um conhecimento das coisas, das palavras, dos

significados que cada um dos sinais representa? Assim, chego à

questão que Agostinho mostra no capítulo X do livro “De

Magistro”: “Qual a diferença entre ensinar e significar?”

Exposto na citação abaixo.

AG — Ensinar e significar são a mesma coisa

ou diferem em algo? AD — Creio que a

mesma. AG — Fala corretamente quem diz que

nós usamos de sinais (que significamos) para

ensinar? AD — Sem dúvida. AG — Se alguém

dissesse que ensinamos para usar sinais (para

significar), não seria facilmente refutado pela

afirmação precedente? AD — Seria. AG — Se,

portanto, usarmos os sinais para ensinar, não

ensinamos para usar os sinais: uma coisa é

ensinar e outra é usar os sinais (significar). AD

— Dizes a verdade, e eu não respondi

corretamente dizendo que são a mesma, coisa.

AG — Agora, responde a isto: quem ensina o

que é ensinar o faz usando sinais ou

diversamente? AD — Não vejo como o poderia

fazer diversamente. AG — Então é falso o que

há pouco disseste, isto é, que não se pode

ensinar sem sinais a quem pergunte o que é

ensinar, porque estamos vendo que nem isto

sequer podemos fazer sem usar sinais, pois me

concedeste que uma coisa é usar sinais

(significar) e outra ensinar. Se são duas coisas

diferentes e uma se mostra pela outra, quer

dizer que não se mostra certamente por si,

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

68

como te pareceu. Portanto, nada encontramos

até agora que possa ser mostrado por si, salvo a

palavra, que, entre as outras coisas, significa

também a si mesma: porém, por ser ela também

um sinal, nada temos que pareça poder ensinar-

se sem sinais.18.

No transcorrer do diálogo, entre Agostinho e seu filho,

chegam ao questionamento exposto acima que: o “significado”

e o “ensinar” seriam a mesma coisa e são correspondentes entre

si ou não. Mesmo que inicialmente aparente alguma

correspondência entre estes dois termos, a citação acima nos

traz o entendimento de que não é bem deste modo que as

pessoas têm o conhecimento, detém o saber, ou melhor, são

capazes de chegar à verdade.

Entendamos esta relação entre ensinar e significar.

Segundo Agostinho, é correto que sejam usados os sinais,

também entendidos como significado, para podermos ensinar.

Pois, é este significar que dá a explicação sobre aquilo que se

pretende ensinar, ou seja, é o sinal de representação de um

objeto, gesto ou som, por exemplo, que seria o ensinar. E o

ensinar seria buscar os sinais, ou o seu significado. Diante

disso afirmamos como verdade: ensinar e significar seriam a

mesma coisa.

Agostinho discorda dessa posição, pois se usamos

sinais para ensinar, não podemos ensinar para aprender sinais.

Todavia, uma coisa é ensinar e outra coisa deve ser o

significar. Então, é falso que ensinar e significar são iguais, e

que não se pode ensinar sem que emitamos sinais. E uma coisa

se mostra pela outra, mas não que sejam mostradas por si,

como sendo iguais. Por não poder mostrar por si, a única coisa

que até o momento pode significar a si mesma é a “palavra” e

que não se pode ensinar sem sinais. Desta forma o

conhecimento se dá pelos sinais que se apresentam por meio

18

AGOSTINHO, Santo. De Magistro, X.

Dinno Camposilvan Zanella

69

das palavras, gestos e sons entre outras formas de

comunicação.

Mas este conhecimento que se dá pelos sinais, ou pelo

que aprendemos das palavras, é o conhecimento verdadeiro, a

verdade? O bispo irá afirmar que as palavras mostram que nós

não aprendemos nada além de palavras: “porque, se o que

não é sinal não pode ser palavra, não sei também como

possa ser palavra àquilo que ouvi pronunciado como

palavra enquanto não lhe conhecer o significado”19

. Só se

pode ter conhecimento depois que temos o conhecimento das

coisas. Logo, o conhecimento completo das palavras não é

dado só pelo que ouvimos, pois somente com o som das

palavras não temos capacidade de entender nem mesmo as

palavras que imaginamos saber ou conhecer o significado.

“Com efeito, não tivemos conhecimento das palavras que

aprendemos nem podemos declarar ter aprendido as que

não conhecemos, senão depois que lhes percebemos o

significado, o que se verifica não mediante a audição das

vozes proferidas, mas pelo conhecimento das coisas

significadas20”. Ao serem proferidas palavras, é perfeitamente

razoável que se diga que nós sabemos ou não sabemos o que

significam; se o sabemos, não foram elas que no-lo ensinaram,

apenas o recordaram; se não o sabemos, nem sequer o

recordamos, mas talvez nos incitem a procurá-lo.

Se disseres que daqueles objetos que servem

para cobrir a cabeça e dos quais temos o nome

(coifas) apenas através do som podemos

adquirir noção só depois de vê-los; e que,

portanto, nem sequer o seu nome conhecemos

completamente senão depois de conhecermos

os próprios objetos; e se acrescentares que, no

19

Idem, XI. 20

Ibidem.

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

70

entanto, de nenhum outro modo, senão pelas

palavras, conseguimos aprender o que se narra

a respeito dos três jovens, isto é, que com sua fé

e religião venceram o rei e as chamas, quais

foram os hinos de louvor que cantaram a Deus,

quais as honras que mereceram do próprio

inimigo, responder-te-ei que todas as coisas

significadas por aquelas palavras já eram de

nosso conhecimento. Pois eu já tinha na minha

mente o que significa três jovens, o que é forno,

o que é fogo, o que é rei, o que quer dizer ser

preservado do fogo e, finalmente, todas as

outras coisas significadas por aquelas palavras.

Mas desconhecidos, como aquelas "saraballae"

(coifas), ficam para mim os jovens Ananias,

Azarias e Misael; nem os seus nomes me

ajudaram ou poderiam ajudar a conhecê-los. E

confesso que, mais que saber, posso dizer

acreditar que tudo aquilo que se lê naquela

narração histórica aconteceu naquele tempo

assim como foi escrito; e os próprios

historiadores a que emprestamos fé não

ignoravam esta diferença.21

.

“Certamente não diria isto se não julgasse necessário

pôr uma diferença entre as duas coisas”22

. Portanto, creio tudo

o que entendo, mas nem tudo que creio também posso

entender. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que

creio tenho o conhecimento verdadeiramente. “E não ignoro

quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço,

utilidade que encontro também na história dos três jovens”23

.

Pois, não podendo saber a maioria das coisas, sem, porém o

quanto é útil acreditar nelas. No que diz respeito a todas as

coisas que compreendemos, não consultando a voz de quem

fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós

21

Ibidem. 22

Ibidem. 23

Ibidem.

Dinno Camposilvan Zanella

71

reside à própria mente incitada talvez pelas palavras a consultá-

la.

Quem é consultado ensina verdadeiramente e este é

Cristo, ser que habita no homem interior, isto é, a virtude

incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria que toda alma

racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é

permitido pelas sua própria boa ou má vontade. “E se às vezes

há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada,

como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia,

se enganam: luz que confessamos consultar a respeito das

coisas sensíveis, para que no-las mostre na proporção em que

nos é permitido distingui-las”24

. Ou seja, a verdade habita o

interior do ser humano. Não são as simples coisas, ou os sinais,

ou as simples palavras que é o conhecer. Mas, sim o mais

intimo do homem, no seu interior, ai está à verdade, o

conhecimento, o verdadeiro saber. Ou como escrito acima:

“Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo”.

Ao recordar-vos, ultrapassei todas aquelas

partes da memória que os animais também

possuem, porque não vos encontrava entre as

imagens dos seres corpóreos. Cheguei àquelas

regiões onde tinha depositado os afetos da

alma. Nem mesmo lá vos encontrei. Entrei na

sede da própria alma, na morada que ela tem na

memória – pois o espírito também se recorda de

si mesmo –, e nem ai estáveis. Assim a alegria,

a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o

esquecimento e outras paixões semelhantes,

assim também não podeis ser o meu espírito,

porque sois o seu Senhor e seu Deus. Tudo isso

muda. Vós, porém, permaneceis imutável sobre

todas as coisas, e, apesar disso, dignastes-Vos

24

Ibidem.

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

72

habitar na minha memória, desde que Vos

conheci.25.

A solução de Agostinho ao problema da linguagem tem,

portanto, um caráter metafísico-teológico: a verdade como tal não

é engendrada em nós pelas palavras do magistério humano, mas

pela presença de uma “Verdade Interior”, que transcende a alma.

A experiência pensante é adquirida paralelamente à experiência

sensível. Podemos constatar a lei de interioridade fora da alma, há

agentes estimuladores ou admoestadores e sinais; a

espontaneidade da alma permanece intacta, pois ela se apropria

destes sinais e os interpreta: é do seu próprio interior que ela tira a

substância do que aparentemente lhe é mostrado pelos sinais que

vem das coisas que temos acesso pelos sentidos, ou por alguma

outra forma de comunicação.

Considerações finais

Após estudarmos e analisarmos o tema, certificamo-nos

quanto é, e o quanto foi importante para a sociedade medieval e

para a história, a doutrina filosófica de Santo Agostinho, em

especial a sua “teoria do conhecimento”. Constatou-se que no

limiar da Era Cristã, houve a necessidade da criação de uma

teoria educacional, uma epistemologia que compreendesse os

problemas do conhecimento. Em contrapartida, houve o

surgimento de homens brilhantes e corajosos que efetivaram a

conjunção do pensamento histórico para dar uma urgente

resposta ao ceticismo da época. Mas, a verdade religiosa

encontrada pelo bispo africano, um dos mais importantes da

Igreja, oriundo de Tagaste, mais tarde consagrado Agostinho

de Hipona, pode ser considerada como a grande resposta da

época para o problema do conhecer verdadeiramente as coisas.

25

Idem, X, 25, p: 284.

Dinno Camposilvan Zanella

73

Agostinho apresenta primeiro um tratado sobre a linguagem e a

educação sensitiva, exterior, primitiva. Linguagem que percebe

como não verdadeira, pois, o conhecimento advindo desta

relação de comunicações não transmite nenhum tipo de

conhecimento. São palavras, gestos por si mesmos, sem que

haja qualquer tipo de significado. Muito menos nossas falhas

de compreensão ou no entendimento das conversas, que nos

tornam ignorantes, por não querermos admitir, ou perceber a

verdade, como se um véu encobrisse a nossa razão.

O filósofo africano, como dito acima, dá uma resposta

satisfatória para época. A sua resposta tem fundamentação na

“teoria da Iluminação Divina”. Doutrina que visa explicar

como é possível para o homem ter o conhecimento das

verdades eternas. Doutrina que seja absolutamente verdadeira,

que não seja um engano ou uma falha na compreensão humana.

Esta teoria proposta pelo bispo faz parte de uma metáfora

recebida por meio da leitura de Platão, que mostra na alegoria

da caverna ser o conhecimento (em última instância, o bem, e o

sol que ilumina o mundo inteligível). Onde todas as

proposições são verdadeiras, há realmente verdade porque elas

são previamente iluminadas pela luz divina. Agostinho

aproxima-se de Platão segundo o qual todo o conhecimento é

“reminiscência”, mas Agostinho afasta-se ao entender a

percepção do inteligível na alma, não como um conteúdo do

passado, mas como irradiação divina no presente. Deus é a luz

eterna de onde procede a Verdade. Acredito que a grande

mensagem deixada pelo filósofo seja: “Crer para entender,

entender para crer”26

. Mostra a necessidade de termos fé para

que possamos entender e assim conhecer a verdade que reside

no interior do ser humano.

26

Sl 43.

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

74

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77

FRANZ BRENTANO CRÍTICO DE FRANZ

MIKLOSICH: CONSIDERAÇÕES BRENTANIANAS

ACERCA DO TRABALHO SÜBJEKTLOSE SÄTZE

Evandro Oliveira de Brito 1

Introdução

A Em 1889, Brentano publicou sua teoria ética e,

abandonando definitivamente o expressivismo proposto na

Psicologia do ponto de vista empírico (1874), sustentou um

cognitivismo moral2 ao afirmar que este se fundamentava na

descrição da consciência desenvolvida segundo os critérios de

sua Psicologia descritiva, a qual seria publicada em pouco

tempo (BRENTANO, 1969, p. 3-4). Essa obra sobre ética,

intitulada A origem do conhecimento moral (Vom Ursprung

sittlicher Erkenntnis), trouxe como apêndice uma resenha já

publicada em 1883, na qual Brentano havia analisado as

pesquisas do linguista Miklosich sobre os verbos impessoais

nas línguas eslavas.

Ora, merece uma cuidadosa atenção o fato de que

Brentano iniciou sua resenha afirmando que o título,

Subjektlose Sätze (Proposições sem sujeito), atribuído por

Miklosich para a segunda edição, era de fato o mais

1 Bolsista de pós-doutorado CAPES/PNPD no Programa de Pós-graduação

em Filosofia da UFSM. [email protected] 2 Este tema foi tratado detalhadamente em Psicologia e ética – o

desenvolvimento da ética na filosofia do psíquico de Franz Brentano

(BRITO, 2012).

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

78

apropriado, pois “o autor não se preocupava apenas com a

natureza de um grupo de línguas; ele estava preocupado com

uma tese de significância muito mais extensa" (BRENTANO,

1971, p. 183). Com isso, Brentano pretendia sustentar que o

novo título se adequava melhor aos propósitos do trabalho

porque indicava o caminho para a grande descoberta ocorrida

na linguística, lógica e teoria do conhecimento, da qual ele

mesmo participara com sua teoria exposta na obra Psicologia

do ponto de vista empírico (1874) e aprimorara nos trabalhos

que constituíram a obra Psicologia descritiva, escritos entre

1889 e 1891.

No intuito de expor a relevância do trabalho de

Miklosich para a filosofia brentaniana do psíquico, tomaremos

como objeto da nossa apresentação a questão principal da

investigação do linguista, apontada por Brentano, quando este

afirmou que Miklosich não se preocupou com a natureza de

apenas um grupo de línguas, uma vez que estava interessado

em uma tese de significância muito mais ampla. A saber: a tese

de que uma proposição é, fundamentalmente, um conceito

(concebido como uma função) e não uma síntese entre sujeito e

predicado.

Assim, trataremos de reproduzir alguns pontos da

análise brentaniana, os quais afirmavam que a extensão

universal de tal tese consistiria no fato de que toda expressão

linguística estaria estruturada sobre uma única forma

proposicional, ou seja, todas as proposições seriam constituídas

da mesma forma lógica.

As seguintes definições, apresentadas por Inwood

(1992, p. 200), servirão para esclarecer, mais adiante, o ponto

principal do texto, uma vez que se trata de apontar a identidade

entre a forma lógica da proposição (Satz) e a estrutura formal

do juízo (Urteil) que fundamentaria a lógica, tal como

Brentano a concebia. Neste sentido, proposição (Satz) e juízo

(Urteil) são tomados ambiguamente do seguinte modo.

Evandro Oliveira de Brito

79

Satz deriva de setzen (assentar, colocar, por,

fixar etc.) e é, pois, alguma coisa posta no chão

ou posta em determinada situação ou condição.

Tem grande variedade de sentidos (por

exemplo, sedimento e resíduos), mas o seu

significado comum em filosofia e no uso

corrente é o de "sentença”, “proposição".

Enquanto que Urteil consiste em conceitos,

Satz consiste em palavras: é um Urteil expresso

em palavras. Mas, está frequentemente mais

perto de "proposição" do que de "sentença": por

exemplo, o que denominamos a "LEI" ou

“PRINCÍPIO" de (NÃO-) CONTRADIÇÃO é,

em alemão, o Satz de contradição”.

Para tornar compreensível, então, a recepção

brentaniana da teoria desenvolvida por Miklosich, nós

exporemos dois pontos específicos de sua resenha, a saber:

i) Miklosich segundo Brentano: como Brentano

interpretou a questão fundamental do trabalho de

Miklosich?

ii) Brentano para além de Miklosich: como Brentano

identificou os resultados da investigação de

Miklosich com os resultados sua própria teoria do

conhecimento?

Vamos ao primeiro ponto.

1. Miklosich segundo Brentano.

Com o proposito de contextualizar esta apresentação,

faremos primeiramente menção a alguns elementos relevantes

da biografia de Miklosich.

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

80

Franz Miklosich3 nasceu em 20 de novembro de 1813

em RadomerŠČak, Eslovênia, e morreu em 07 de março de

1891, em Viena. Formou-se na Universidade de Graz e, entre

1850 e 1886, lecionou na Universidade de Viena. Portanto, foi

colega de Brentano nessa universidade a partir de 1874.

Miklosich ficou conhecido como o linguista austríaco e

esloveno, pois foi o fundador dos estudos histórico-

comparativos de gramática em línguas eslavas.

Franz Miklosich fez uma importante contribuição aos

estudos eslavos com a publicação de textos eslavos medievais,

incluindo Codex Suprasliensis (1851), Apostuluse codice

monasterii ŠiŠatovac paleoslovenice (1853), Nestor’s

Chronicle (1860) e as fontes sobre a história dos eslavos

(Monumenta serbica, 1858). Ele estudou literaturas eslavas e

foi o fundador do estudo comparativo da poesia épica eslava,

além de ter estudado também direito eslavo e etnologia.

As principais obras de Miklosich trataram da

lexicologia e gramática comparativa das línguas eslavas (vols

1-4., 1852-1875). O primeiro e o terceiro volumes deste

trabalho foram, mais tarde, completamente revisados e

publicados na segunda edição revisada do vol. 1 (1879) e vol. 3

(1876). Ele também estudou as influências transversais das

línguas eslavas e as línguas dos povos vizinhos, incluindo os

húngaros, romenos, albaneses e a língua dos ciganos.

Apresentados, assim, alguns dos temas vinculados ao

trabalho de Miklosich, podemos retornar ao nosso ponto por

meio da recolocação da pergunta que nos interessa responder

na primeira parte desta apresentação. A saber: como Brentano

interpretou a questão fundamental do trabalho de Miklosich?

Nas palavras do próprio Brentano, esta questão foi

apresentada do seguinte modo:

3 As informações biográficas sobre Miklosich estão em The Great Soviet

Encyclopedia e foram citadas pelo The Free Dictionary on-line.

Evandro Oliveira de Brito

81

Nós queremos aqui, no entanto, considerar

especialmente a questão principal e esclarecer

de modo breve do que se trata realmente. É uma

antiga asserção da lógica que o juízo consiste

essencialmente em uma ligação ou separação,

em uma relação de representações uma para

com outra. Mantida quase unanimemente por

mais de dois mil anos, ela também exerceu

influência sobre outra disciplina. E, assim, nós

encontramos com os gramáticos, desde a

antiguidade, a doutrina de que não é dada e não

pode se dar qualquer forma simples de

expressão de juízos, além da categórica, a qual

liga um sujeito com um predicado

(BRENTANO, 1971, p. 184. Tradução nossa).

O núcleo do problema explicitado por Miklosich, como

afirmou Brentano nesta citação, estava no fato de que tanto a

lógica como a gramática afirmavam que o juízo se definia

basicamente como uma ligação ou separação entre uma

representação e outra. Deste modo, e exatamente por conta

desse pressuposto, havia surgido a dificuldade de explicar a

natureza de certas proposições, tais como es regnet (chove), es

blitzt (relampeja) e es rauscht (há ruído).

Em língua portuguesa, essa questão é clara. Pois, se, de

um lado, estivesse o pressuposto lógico de que a estrutura

proposicional teria a forma do juízo categórico (S é P), do

outro lado, estariam as proposições que não se encaixariam

nessa estrutura, pois elas não possuem sujeito (ou, em certos

casos, predicado). Elas são exatamente as proposições que

Miklosich investigou e Brentano retomou: chove; relampeja; e

há ruído. Assim, ao menos em língua portuguesa, fica explícita

a impossibilidade de se encontrar a forma do juízo categórico

(S é P) em tais proposições sem sujeito.

De modo análogo ao que se explicita na língua

portuguesa, as proposições “chove” e “há ruído” evidenciaram

o paralelo encontrado por Miklosich e Brentano entre a língua

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

82

alemã e as línguas eslavas. Pois, tal como a língua portuguesa

nos mostra, o sujeito explicitamente inexistente nas proposições

“chove” e “há ruído” não poderia ser considerado como algum

tipo de sujeito oculto, pressuposto pelo pronome neutro ‘es’

presente na língua alemã. Assim, o pressuposto de que uma

proposição teria a forma do juízo categórico (S é P), vinculado

ao modo de conceber a função do pronome neutro ‘es’ da

língua alemã (ou seu correlato nas línguas ocidentais), havia

ocultado algo tão evidente para todos os pesquisadores da

tradição ocidental. Considerada essa a questão central,

Brentano ressaltou, a partir da análise de Miklosich, algumas

tentativas fracassadas de explicar a suposta existência de tal

ligação entre sujeito e predicado naquelas proposições sem

sujeito (Subjektlose Sätze). Seguindo o linguista, ele descreveu

algumas das propostas de solução para mostrar a razão do seu

fracasso.

Na primeira proposta de solução destacada por

Brentano, Miklosich avaliou as tentativas de se estabelecer o

sujeito, tanto para a proposição es regnet (chove), como para a

proposição es rauscht (há ruído). No caso específico da

proposição es regnet (chove) havia a sugestão, proposta por

antigos pesquisadores, a qual afirmava que o sujeito seria Zeus.

Neste caso, ressaltou Brentano seguindo a recusa da solução

apresentada por Miklosich, “tal como alguns pensaram, quando

se diz es regnet (chove), o sujeito não nomeado, designado pelo

‘es’ indefinido, seria Zeus e o sentido seria Zeus regnt (Zeus

chove)” (BRENTANO, 1971, p. 185). O problema estava no

fato de que está solução simplória se tornava imediatamente

falsa quando aplicada à proposição es rauscht (há ruído), pois,

continuou ele, “quando se diz es rauscht (há ruído) seria

evidente, então, que Zeus não poderia ser o sujeito”

(BRENTANO, 1971, p. 185). Nem mesmo seria válida a

segunda proposta de solução, a qual havia afirmado que “aqui

o sujeito seria das Rauschen (o ruído) e, então, o sentido da

Evandro Oliveira de Brito

83

proposição seria das Rauschen rauscht (o ruído rui)”

(BRENTANO, 1971, p. 185). Se isso fosse possível, no caso da

proposição es regnet (chove) tal solução estabeleceria das

Regnen (a chuva) como seu sujeito, uma vez que a proposição

seria, então, der Regen regnet (a chuva chove).

A falha nessas tentativas de procurar um sujeito oculto

para as proposições sem sujeito, como uma tentativa de

justificar a forma da proposição categórica, também ficava

evidente no caso das proposições es fehlt an Geld (falta

dinheiro) e es gibt einen Gott (é dado um Deus ou há um

Deus). A análise de Miklosich citada por Brentano é a seguinte.

Quando se diz es fehlt an Geld (falta dinheiro),

então consequentemente o sentido deveria ser

das Fehlen an Geld fehlt an Geld (a falta de

dinheiro falta dinheiro). Mas isso não é

aceitável. E, então, em vez disso, se esclarece

aqui que o sujeito seria Geld (dinheiro) e o

sentido da proposição seria Geld fehlt an Geld

(dinheiro falta dinheiro). Certamente isso seria,

a rigor, uma violação mais grave contra a

unidade desejada da explicação. E se, tapando

os olhos, talvez se pudesse escondê-la, não

seria mais possível alcançar um sentido

aceitável quando se encontrasse proposições

como es gibt einen Gott (é dado um Deus ou há

Deus), onde novamente nas proposições einen

Gott Geben gibt einen Gott (um Deus dá um

Deus) ou das Geben gibt einen Gott (o Dado dá

um Deus) ou, ainda, Gott gibt einen Gott (Deus

dá um Deus). (BRENTANO, 1971, p. 185.

Tradução nossa).

Ao apresentar a evidência manifesta pelas proposições

sem sujeito enunciadas em línguas eslavas, análogas a

evidência que encontramos em tais proposições quando

enunciadas na língua portuguesa, a análise de Miklosich impôs

à Brentano uma nova questão. Pois, afirmou ele, “seria preciso

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

84

pensar, aqui, em um modo de explicação totalmente diferente.

Mas onde seria possível encontrá-la?”.

2. Brentano para além de Miklosich:

Como Brentano identificou os resultados da

investigação de Miklosich com os resultados sua própria teoria

do conhecimento?

Segundo Brentano, a análise das proposições sem

sujeito (tais como chove, relampeja etc.) levou Miklosich a se

opor a duas teses comumente aceitas pela tradição, a saber: a

tese lógica; e a tese gramatical.

a. A tese lógica afirmava que “o juízo consistia

essencialmente em uma ligação ou

separação, em uma relação de uma

representação com outra” (BRENTANO,

1971, p. 184).

b. A tese gramatical afirmava que “não havia

uma forma expressão mais simples do juízo

que a categórica, a qual ligava um sujeito a

um predicado” (BRENTANO, 1971, p. 184).

Essa oposição de Miklosich, ainda segundo Brentano

(1971, p. 186), estava dirigida contra aqueles que, como

Steinthal, negavam toda a correlação entre gramática e lógica e

refutava, ao mesmo tempo, os ataques que, precisamente em

razão dessa correlação, os psicólogos e os lógicos poriam

contra sua teoria. Portanto, a grande virtude encontrada por

Brentano nesse ataque, levantado por Miklosich, consistia em

reconhecer a verdadeira estrutura dos juízos a partir da

estrutura das proposições sem sujeito, pois a ele pareceu ser

falso que um conceito fosse relacionado a outro em todo juízo,

Evandro Oliveira de Brito

85

uma vez que “frequentemente o juízo é apenas a afirmação ou

negação de um fato simples” (BRENTANO, 1971, p. 187).

Este era, então, o ponto fundamental da interpretação de

Brentano, pois, segundo ele, a tese de Miklosich não apenas

estava correta, mas ela também havia chegado às mesmas

conclusões que ele mesmo chegara nas investigações

psicológicas desenvolvidas em sua Psicologia do ponto de

vista empírico (1874) e aprimorara nos trabalhos que

compuseram sua Psicologia descritiva, elaborados entre 1888 –

1891.

A tese brentaniana envolvia um conjunto de

especificidades que foge aos propósitos deste trabalho. No

entanto, é preciso ressaltar que ela, supondo os fundamentos da

filosofia do psíquico aprimorados para a Psicologia descritiva

(1888 – 1891), sustentava os três pontos seguintes, os quais

permitiram recepcionar os resultados do trabalho de Miklosich.

b) Toda proposição pode ser descrita na forma de um juízo

existencial.

c) Todo juízo existencial pode ser descrito como uma

relação intencional de segunda classe (diploseenegie),

sendo, portanto, um fenômeno psíquico que pressupõe

uma representação (relação intencional de primeira

classe).

d) Enquanto relação intencional fundamental, toda

representação consiste num ato intencional dirigido a

um objeto imanente.

Tal como analisamos pormenorizadamente em outro

trabalho4, esses três pontos resultaram conjuntamente do

aprimoramento da filosofia brentaniana, apresentado entre

1888-1891.

4 A esse respeito, conferir BRITO (2013), especialmente o terceiro capítulo

intitulado Os fundamentos da descrição dos fenômenos no contexto da obra

Psicologia descritiva (p. 125-180).

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

86

Nesse contexto de época, Brentano corrigiu sua

primeira teoria da intencionalidade apresentada na obra

Psicologia do ponto de vista empírico (1874) e chamou passou

a chamar a atenção para aquela que seria a correta separação

entre a classe das representações (ideae) e a classe dos juízos

(judicia), tal esta como fora apresentada por Descartes à

história da filosofia. Segundo a análise brentaniana, a correta

separação cartesiana entre a classe das representações (ideae) e

a classe dos juízos (judicia) resultava da seguinte descrição.

O juízo seria descrito como um ato de afirmação ou

rechaço da representação (e não mais como um ato de

afirmação ou rechaço do conteúdo representado, como em

1874). Isso significava que a descrição do juízo seria orientada

pela estrutura de predicação encontrada em Aristóteles, ou seja,

[(A)é] ou [(A é b)é], mas, além disso, Brentano reconhecia na

teoria cartesiana uma especificidade desse mesmo ato. Tratava-

se da afirmação ou do rechaço da relação intencional que

constituiria o ato de representar, ou seja, da representação (e

não do representado), pois a análise brentaniana descrevia a

ideae como uma função assimétrica para redefinir a noção de

representação.5

5 É interessante anteciparmos uma parte do comentário de Twardowski que

desenvolveremos adiante. O próprio Twardowski fez referência ao modo

como Brentano concebeu essa noção de representação e, também, deixou

indicada a recepção cartesiana, pois Twardowski afirmou que a noção

brentaniana de objeto secundário era o ato e o conteúdo tomado em

conjunto. Além disso, como veremos adiante, essa representação consistia

no objeto ao qual o juízo se referia intencionalmente. “Embora Brentano

designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito

aqui (na obra de Twardowski), ele entende por objeto secundário de uma

representação o ato e o conteúdo tomados em conjunto, na medida em que

ambos, durante a atividade de representar um objeto, são apreendidos pela

consciência interna, e aí a representação torna-se assim consciente”.

Twardowski, Kasimir. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das

representações, Uma investigação psicológica, p. 62-63, nota 2.

Evandro Oliveira de Brito

87

Aqui está, então, o ponto tangencial que nos interessa

nessa posição epistemológica, pois Brentano não reconhecia a

noção moderna de juízo (relação entre ideias) no âmbito da

teoria do conhecimento cartesiana. A análise brentaniana

esclareceu que a noção cartesiana de juízo não poderia ser

descrita como uma atribuição de um sujeito a um predicado [A

é B]. Tal como descreve a citação a seguir, Brentano nos fez

lembrar, também em 1889, que uma composição de “ideias”

ou uma “ideia composta”, por si só, nada mais seria que uma

parte (ou o correlato) da representação (ou do ato). Do mesmo

modo, uma “ideia” simples seria também uma parte (ou o

correlato) da representação (ou do ato). Isso significava que a

representação, como um ato intencional, estava referida a um

objeto imanente, portanto, tendo uma representação como base,

um juízo seria uma referência intencional a essa representação,

fosse ela um ato que se referisse a um correlato simples ou

composto:

Sempre que se queira, é possível juntar e referir

várias representações umas às outras. Por

exemplo, quando dizemos: uma árvore verde;

uma montanha de ouro; um pai de cem filhos;

um amante da ciência. No entanto, se nada for

feito além disso, não se expressa juízo algum.

Também é certo que o julgar, como o desejar,

implica sempre um representar. Mas, não é

certo que várias representações se refiram umas

às outras como sujeito e predicado. Isto

acontece quando digo: Deus é justo. Mas, não

quando digo: existe um Deus. (BRENTANO,

1969, p. 17. Tradução nossa).

Esse era o ponto convergente entre Descartes e

Brentano, tal como expõe a citação acima.

Ora, se Brentano estabeleceu que não haveria como

conceber a noção de ideia hobbesiana e lockiana em sua

filosofia do psíquico, então não haveria também como

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

88

conceber juízo ou conhecimento como relação entre ideias,

segundo a fórmula do juízo categórico (S é P). Tendo esse

pressuposto em elaboração, o trabalho de Miklosich serviu

perfeitamente para corroborar sua teoria do psíquico.

Conclusão

Tal como expusemos, Brentano se valeu da tese

fundamental de Miklosich, a qual estabelecia que, a partir da

sua forma, as proposições sem sujeito explicitavam que o juízo

seria apenas a afirmação ou a negação de um fato simples. Em

outras palavras, Brentano utilizou o fenômeno linguístico

estudado por Miklosich para corroborar sua teoria de que todo

juízo sintético é redutível a um juízo tético, pois todo juízo

possui a forma de ato intencional de segunda classe.

Ao pressupor sua própria teoria, Brentano incorporou

algumas reformulações à tese de Miklosich com o exclusivo

propósito de complementá-la e consolidá-la filosoficamente,

embora as tenha classificado como reformulações secundárias.

De modo breve e alusivo, podemos dizer que tais

complementações estabeleceriam que: a) por um lado, as

proposições denominadas proposições sem sujeito também

seriam, por definição, proposições sem predicado; e b) por

outro lado, a forma da proposição seria, na verdade, universal

e sua extensão seria ilimitada.

Não poderemos analisar aqui, no escopo desta

apresentação, os pressupostos e as implicações das

complementações brentanianas propostas para a teoria de

Miklosich, pois esta será a tarefa de um trabalho futuro.

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Evandro Oliveira de Brito

89

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ich

91

CONSCIÊNCIA INTENCIONAL: UMA ANÁLISE

LEVINASIANA

Felipe Bragagnolo1

Introdução

Ao iniciarmos nossos estudos sobre a fenomenologia

defrontamo-nos com conceitos como consciência e

intencionalidade, ambos conceitos centrais dessa área de

estudo. Esses conceitos, distantes de fazerem referência às

análises realizadas pela neurociência, ou seja, que parte de

métodos com bases empíricas, na fenomenologia, são pensados

antes como condições de possibilidade do conhecimento. Tanto

a consciência como a intencionalidade nos remetem a uma

tradição longínqua do pensamento filosófico, onde pensadores

como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Guilherme de

Ockham a tradição empirista inglesa envolveram-se

profundamente na discussão desses temas.

No entanto, o que faz da fenomenologia a

fenomenologia, essa que surge em meados do século XIX, é a

reflexão realizada pelo pensador Edmund Husserl. Sua reflexão

sobre a consciência e a intencionalidade, que se iniciaram com

a influência de seu professor e mestre Franz Brentano, e, a

partir de questões trazidas pela tradição antes referida,

principalmente aquelas realizadas pelos empiristas e

naturalistas do século XIX e seus antecessores, oportunizaram

conclusões até então desconhecidas. De forma bastante

1 UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. E-mail para contato:

[email protected]

Consciência intencional

92

resumida e até demasiadamente simplória, podemos dizer que a

concepção de intencionalidade fornecida pela tradição

filosófica, que destacava-se diante das demais até Husserl, era

a de que a intencionalidade seria algo como uma ponte entre a

realidade empírica e a consciência, ou ainda, a intencionalidade

era como um atributo, uma característica da consciência

(LEVINAS, 2004, p. 68ss).

Husserl desfaz essas concepções. A intencionalidade na

fenomenologia não é, somente, concebida como meio para

explicar a relação da consciência com a realidade empírica,

nem mesmo, para responder estritamente a questão acerca de

como o sujeito cognoscente alcança o objeto empírico. A

intencionalidade na fenomenologia surge como uma ideia

teórica riquíssima que nos revela uma perspectiva bastante

distinta daquela proposta pela tradição antecessora de Husserl.

Nesse breve artigo, nosso objetivo torna-se, além de

apresentar brevemente a concepção da intencionalidade

proposta por Husserl a partir da leitura de Levinas, apresentar a

esfera da consciência denominada de esfera passiva. Essa

discussão está perpassada pela leitura do livro La teoria

fenomenológica da intuição de Levinas, mais especificamente

o capítulo denominado “Teoria fenomenológica do ser: a

intencionalidade da consciência”. Esse trabalho justifica-se

quando percebemos em Levinas o desejo de mostrar um outro

lado da consciência não estudado por Husserl com tamanho

rigor como a consciência teórica. Acreditamos que o valor fim

de tal investigação está em possibilitar uma nova compreensão

sobre a sensibilidade e a ideia da ética, tão bem desenvolvidas

posteriormente por Levinas.

Felipe Bragagnolo

93

1. Consciência intencional

A consciência na fenomenologia husserliana não seria

mais compreendida como uma substância fechada em si

mesma, concepção essa que perpassava o período medievo

(LEVINAS, 2004, p. 70). Entretanto, a consciência somente

seria consciência enquanto ato intencional, ato que se

transcende. A intencionalidade em Husserl apresenta-se para

além da compreensão de uma ponte entre a consciência e o

mundo, como também, ultrapassaria a compreensão de um

atributo da consciência. A intencionalidade é pensada na

fenomenologia husserliana como constituinte da subjetividade

mesma do sujeito. “A intencionalidade constitui a

subjetividade mesma do sujeito. Sua substância mesma consiste

em transcender-se” (LEVINAS, 2004, p. 69, grifo do autor).

No entanto, o que significa esse transcender-se da consciência?

Significa que Husserl coloca no coração da consciência a

necessidade do contato direto, sem mediação, com o mundo e

os objetos. A intencionalidade, originariamente, nos coloca em

relação com algo exterior a consciência, nos lança para fora da

esfera imanente.

Mas longe de resumirmos a questão da intencionalidade

ao problema do conhecimento, “[...] a ideia de intencionalidade

nos permite ir mais além do problema sujeito-objeto”

(LEVINAS, 2004, p. 70). Ao analisarmos mais profundamente

a intencionalidade percebemos que a relação sujeito e objeto

não é a única forma de doação da consciência. A

intencionalidade não se reduziria a esfera do conhecimento, da

doação do objeto, mas sim, relacionar-se-ia com as mais

diferentes formas do sujeito se posicionar diante do mundo e

das coisas, como na esfera afetiva, na esfera prática e na esfera

estética (LEVINAS, 2004, p. 71). Essas formas de vida

também se caracterizariam por sua relação com o objeto

(LEVINAS, 2004, p. 71), entretanto, possuiriam sua

Consciência intencional

94

particularidade, não se constituiriam da mesma forma que a

esfera teórica da consciência, que sempre nos revelaria o

objeto. “Toda valoração é valoração de um Wertverhalt (estado

de valores), todo desejo, desejo de um Wunschverhalt, etc. O

atuar vai dirigido a ação; o amar, ao amado; a satisfação, ao

satisfatório, etc.” (HUSSERL, 2006, § 117, grifo do autor).

Seria em função de a intencionalidade não fazer somente

referência à esfera teórica da consciência que a mesma poderia

se dar de uma maneira diferente dessa (LEVINAS, 2004, p. 72-

73).

Os atos volitivos e afetivos possuem modos específicos

de transcenderem-se, de tenderem para algo fora de si

(LEVINAS, 2004, p. 72). Nas palavras de Husserl,

O modo como uma ‘simples representação’ de

um estado-de-coisas visa a este seu ‘objeto’ é

diferente do modo do juízo que toma o estado-

de-coisas por verdadeiro ou falso. Mais ainda,

uma coisa é o modo da suposição e outra o da

dúvida, o modo da esperança e do temor, da

satisfação e do desprazer, do desejo e da

aversão [...]. (HUSSERL, L.U., 2012, V, § 10,

grifo do autor).

Esses diferentes modos de visar algo revelariam a

intencionalidade da consciência. Segundo a análise de Husserl,

o sujeito ao dirigir o seu olhar para algo visaria um

determinado objeto a partir desses diferentes modos. O objeto

vivido intencionalmente pelo sujeito teria “em seu modo

mesmo de ser vivido, uma autêntica prerrogativa de ser”

(LEVINAS, 2004, p. 72), sendo a vida consciente a fonte

mesma da ideia de ‘ser’ do objeto. Logo, não seria somente a

esfera teórica da intencionalidade que revelaria a vida concreta,

no entanto, a vida concreta, a vida vivida seria revelada

também pelos diferentes atos intencionais que a constituem.

Conforme a leitura apresentada por Levinas, os atos volitivos e

Felipe Bragagnolo

95

afetivos seriam os atos responsáveis por inserir o sujeito na

vida concreta (LEVINAS, 2004, p. 72). Para esse filósofo, “[...]

vemos que o mundo real não é simplesmente um mundo de

coisas relativas ao ato perceptivo (ato puramente teórico). O

mundo real é um mundo de objetos de uso prático e de valores”

(LEVINAS, 2004, p. 72, grifo do autor).

Parece-nos que Husserl não teria dado tamanha ênfase

ao estudo que Levinas está propondo, ou ainda, que a própria

tradição filosófica não teria visto esse tema como central nas

análises de Husserl. Mas, esse possível fato não exclui a

importância e os apontamentos já realizados por Husserl sobre

esse tema, tanto que temos nesse uma obra bastante densa e

volumosa sobre a esfera passiva da intencionalidade

denominada Analyses Concerning Passive and Active

Synthesis: Lectures on Transcendental Logic (2001), dentre

outras.

Logo, sabendo da centralidade desse tema, Levinas

volta a sua atenção para esse campo de estudo, pois

As qualidades inerentes as coisas que fazem

que essas nos importem

(Bedeutsamkeitsprädikate), que fazem que nos

sejam apaixonantes, que as temamos, que as

queiramos, etc., não devem ser excluídas da

constituição do mundo, não devem ser tão só

atribuídas a reação ‘inteiramente subjetiva’ do

homem com o mundo. (LEVINAS, 2004, p.

72)2.

Seria a partir dos atos volitivos e afetivos da

consciência que as qualidades inerentes das coisas apareceriam,

revelando, assim os objetos e o mundo como algo que

importariam ao sujeito, que o interessaria, que o cativaria.

2 O conceito “Bedeutsamkeitsprädikate” em alemão pode ser traduzido para

o português como: predicados de importância.

Consciência intencional

96

Esses diferentes atos, como bem lembra Levinas, “[...] não

devem ser excluídos da constituição do mundo” (LEVINAS,

2004, p. 72) e não devem ser, tão somente, questões atribuídas

a esfera ‘subjetiva’ do homem que está no mundo. “Essas ditas

qualidades se dão em nossa vida como correlativas as

intenções, sendo necessário considerá-las como pertencentes à

esfera objetiva” (LEVINAS, 2004, p. 72) da consciência, em

outras palavras, essas ditas qualidades se dão juntamente com a

esfera que nos revela o objeto enquanto tal.

Dizer que esses atos pertencem à esfera objetiva da

consciência não significa dizer que o modo como eles se

apresentam partem de uma representação de base. A

intencionalidade não se apresenta somente a partir desse modo

de doação. Conforme Levinas, a noção husserliana de

intencionalidade é mais ampla (LEVINAS, 2004, p. 72).

Atentamos para a explicação fornecida por ele sobre essa

questão: A intencionalidade “[...] expressa unicamente o eixo

geral de que a consciência se transcende, de que se dirige para

algo que não ela mesma, e que, possui um sentido. No entanto

‘ter um sentido’ não equivale a representar” (LEVINAS, 2004,

p. 72-73, grifo do autor). Logo, nem todos os atos tem algo

claro em sua base como uma representação, contudo, possuem

algo, possuem um sentido. “O ato de amor tem um sentido, no

entanto, isto não quer dizer que possua uma representação do

objeto amado e um sentimento puramente subjetivo,

desprovido de sentido, que acompanharia aquela

representação” (LEVINAS, 2004, p. 73, grifo do autor). É

próprio do ato de amor dar-se enquanto uma ‘intenção de

amor’, “intenção irredutível a representação puramente teórica”

(LEVINAS, 2004, p. 73). Esses diferentes atos, dentre eles os

volitivos e afetivos, revelam-se como ultrapassando a

representação, indo para além dela, não se limitando a esse

modo de dar-se da consciência.

Felipe Bragagnolo

97

Levinas radicaliza a sua análise mostrando que as coisas

e o mundo não podem ser compreendidos com base no ato

teórico da consciência. Para esse, as coisas e o mundo sempre

escapam ao ato teórico da consciência. Almejando exemplificar

essa questão apresentemos o exemplo que ele apresenta:

[...] um livro [...] não se reduz ao mero eixo de

estar aí, diante de nós, como um conjunto de

propriedades físicas. É mais bem seu caráter

prático e usual o que constituem sua existência.

Esse nos é fornecido de uma maneira

completamente distinta de uma pedra, por

exemplo. (LEVINAS, 2004, p. 73).

Levinas, através desse exemplo, apresentaria um outro

modo de dar-se das coisas que fariam delas algo para nós

diferente daquele modo proposto pelo ato teórico da

consciência. O ato teórico objetivante3 do mundo não seria aqui

excluído, no entanto, cederia o lugar central da doação de

significado de algo para o ato da esfera valorativa, afetiva e etc.

Retirar-se-ia a atenção da esfera teórica da consciência e

colocar-se-ia na esfera prática, na esfera existente. Tais

características, perceber as coisas e o mundo a partir de seu

caráter prático e usual, revelariam as coisas e o mundo como

algo que não poderiam ser reduzidos somente a esfera da

consciência teórica, pois as coisas e o mundo nos seriam

apresentados para além de seus predicados objetivos, nos

seriam apresentados enquanto objetos de interesse ou não do

sujeito. Desse modo,

3 Alguns atos da consciência são chamados de ‘atos objetivantes’. Tais atos

se caracterizam especificamente por fornecerem algo sobre as coisas e o

mundo. Nas Investigações Lógicas esses atos não levam em consideração os

atos volitivos, afetivos da consciência, pois esses atos não revelariam nada

sobre as coisas (LEVINAS, 2004, p. 90).

Consciência intencional

98

A vida concreta, fonte da existência do mundo,

não é puramente teórica, apesar da especial

dignidade que esta tem para Husserl. A vida

concreta é uma vida de ação e de sentimento, de

vontade e juízo estético, de interesse e

desinteresse, etc. (LEVINAS, 2004, p. 73, grifo

do autor).

O mundo correlativo dessa vida prática certamente seria

o mundo teórico, no entanto, esse mesmo mundo objetivado

pela vida teórica consistiria em um mundo querido, sentido,

mundo de ação, de beleza, de bondade, de feiura e de maldade

(LEVINAS, 2004, p. 73).

A compreensão da vida enquanto atividade teórica e,

também como, atividade volitiva e afetiva a partir da

intencionalidade apresentam-se como algo extremamente

importante no pensamento levinasiano. Segundo o filósofo

francês, essas diferentes noções da intencionalidade

“constituem na mesma medida a existência do mundo,

compõem sua estrutura ontológica na mesma medida que as

categorias puramente teóricas da espacialidade, por exemplo”

(LEVINAS, 2004, p. 73, grifo do autor). Como em Husserl a

esfera teórica da consciência obtivera, em certa medida, mais

atenção, agora Levinas busca mostrar que existem outras

esferas merecedoras de tamanho destaque, tendo em vista que

também possuem papel central na constituição da estrutura

ontológica do ‘ser’.

Porque vontade, desejo, etc., são intenções que

constituem, na mesma medida que a

representação, a existência do mundo e não se

reduzem a serem elementos da consciência

desprovidos de toda a relação com o objeto, a

existência mesma do mundo possui uma

estrutura rica, sempre distinta de acordo com os

diferentes domínios. (LEVINAS, 2204, p. 73-

74).

Felipe Bragagnolo

99

A intencionalidade revela-se para nós como constitutiva

de todas as formas de consciência. “No entanto até esse

momento temos nos ocupado da consciência explícita,

desperta, ‘ativa’, como Husserl a chama” (LEVINAS, 2004, p.

74, grifo do autor). Entretanto a consciência não se limita a sua

esfera de claridade e distinção, aonde cada ato se articula

nitidamente. Ao realizarmos a epoché direcionamos nossa

atenção para a compreensão da articulação desses diferentes

atos. Porém, alguns atos revelam-se com maior facilidade de

mapeá-los, já outros atos não nos parecem ser tão claros como

aqueles. Não conseguimos com a mesma facilidade mapear os

atos e seus correlatos nessa outra esfera da consciência, a

esfera passiva, dos atos volitivos e afetivos. Como se

apresentaria essa nova esfera da consciência? O que essa esfera

da consciência nos revelaria? Tal esfera da consciência é

distinta da esfera objetiva, teórica e atual?

A intencionalidade seria o ato constitutivo de todas as

formas de consciência. “No entanto, até esse momento temos

nos ocupado da consciência explícita, desperta, ‘ativa’, como

Husserl a chama” (LEVINAS, 2004, p. 74, grifo do autor).

Entretanto a consciência não se limita a sua esfera de claridade

e distinção, aonde cada ato se articularia nitidamente. Por um

lado, como vimos até esse momento, temos a esfera da

consciência ativa, teórica, que nos doa o mundo e os objetos.

Por outro lado, defrontamo-nos com a esfera passiva, inatual da

consciência. Essa esfera nos revelaria a vida em sua

radicalidade, a vida em sua concretude. Vida que é perpassada

pela ação, pelos sentimentos, pela vontade, por juízos estéticos

(LEVINAS, 2004, p. 73).

Conforme avançamos na análise da esfera passiva da

consciência parece-nos que deparar-nos-íamos com a

concepção de um ‘eu’ envolvido com o mundo e os objetos que

o circundam. Um ‘eu’ que não somente compreende o mundo e

Consciência intencional

100

os objetos, mas que vive através deles, que está envolvido junto

a eles. Assim, a atividade teórica da consciência parece como

que partilhar o mesmo espaço do ato intencional com a esfera

passiva.

A vida consciente não se articularia somente a partir da

esfera de claridade e distinção dos atos, esfera ativa. Todavia,

na esfera passiva da consciência os atos que a compõem não se

revelariam da mesma forma que na esfera ativa. Conforme

Levinas, retomando Husserl, a esfera passiva da consciência

também apareceria como ‘consciência de algo’ (LEVINAS,

2004, p. 74). No entanto, o plano de fundo da consciência ativa

não é nem conteúdo de consciência, nem sua matéria

desprovida de intencionalidade (HUSSERL, Ideias I, 2006, §

84). O plano de fundo da consciência é uma esfera objetiva

(LEVINAS, 2004, p. 74). A diferença existente entre a esfera

ativa e a esfera passiva pressupõem a intencionalidade. Ambas

esferas são diferentes modalidades da intencionalidade

(LEVINAS, 2004, p. 74). O ponto central de análise dessas

diferentes modalidades está na ‘atenção’ depositada sobre o ato

por elas realizado. “Dentro de cada intencionalidade, a atenção

traduz a maneira em que o eu se relaciona com seu objeto. No

ato de atenção, o eu vive ativamente; é, em certa medida,

espontâneo e livre” (LEVINAS, 2004, p. 74). Já nos atos

desprovidos de ‘atenção’, “na esfera potencial, o eu não se

ocupa diretamente com as coisas dadas. Não se dirige

ativamente e espontaneamente para o objeto” (LEVINAS,

2004, p. 74).

O foco de Levinas, com base na constatação acima, está

sobre o ‘eu’ que vive nos diferentes atos da consciência

(LEVINAS, 2004, p. 78). Isso se dá em função de Levinas

desejar aprofundar a sua investigação diante do caráter pessoal

da consciência, pois “a vida psíquica não é uma corrente

anônima no tempo. O vivido pertence sempre a um eu”

Felipe Bragagnolo

101

(LEVINAS, 2004, p. 78)4. A intencionalidade não pode assim,

ser reduzida unicamente a sua esfera constituinte do mundo e

dos objetos, mas também, deve ser considerado a esfera que

apresenta o ‘eu’ como passividade.

Versaria dessa consideração a descoberta de um ‘eu’

que viveria nos diferentes atos da consciência e que se revelaria

de diferentes modos – enquanto ‘receptividade’,

‘espontaneidade’ e ‘intencionalidade’ – nos diferentes atos da

consciência.

Nos atos de atenção, nos atos de juízo criativo e

de sínteses, de afirmação e de negação, esta

atividade do eu, esta espontaneidade, em todas

as suas formas, deve ser respeitada e levada em

conta pela descrição antes de toda

interpretação. Em alguns destes atos

‘posicionais’, o eu vive não como passivamente

presente neles, se não como um centro de

radiação, ‘como a fonte primeira de sua

produção’. (LEVINAS, 2004, p. 79, grifo do

autor).

Nesses diferentes atos posicionais algo como um fiat do

‘eu’ seria revelado (LEVINAS, 2004, p. 79). Levinas, nessa

citação, apresenta um ‘eu’ que vive em seus diferentes atos, um

‘eu’ que apareceria como imerso nessas vivências. Levinas

4 Husserl modifica sua postura da obra Investigações Lógicas para Ideias I

no que se trata o ‘eu’ e a intencionalidade. Na primeira obra citada Husserl

nega o ‘eu’ como um elemento das intenções. “O eu se identifica com a

totalidade das intenções que preenche um lapso de tempo e que são

reciprocamente complementárias” (LEVINAS, 2004, p. 78). Já em Ideias I,

o ‘eu’ aparece “como um elemento irredutível da vida consciente. Os atos

surgem, por assim dizer, de um eu que vive em ditos atos” (LEVINAS,

2004, p. 78-79). Essa nova visão apresentada por Husserl permite que

façamos a distinção entre os diferentes modos de vivência do ‘eu’ nos atos.

Esse se apresenta como ‘receptividade’, como ‘espontaneidade’ e como

‘intencionalidade’ da consciência (LEVINAS, 2004, p. 79).

Consciência intencional

102

evidência a compreensão de que em muitos dos atos da

consciência o ‘eu’ seria o centro de radiação desses diferentes

atos. Logo, o ‘eu’ participaria como fonte primeira de produção

de sentido, de significado de alguns dos atos da consciência.

Levinas, ao se referir aos atos que possuem algo como

um fiat do ‘eu’, desvela a esfera potencial do ‘eu’, a esfera

passiva.

Mas embora o eu seja ativo e possa ser

percebido no cogito explícito, atual, não deixa

de ter relação com a esfera potencial da

consciência, e isso precisamente porque se

encontra, de um certo modo, apartado da

mesma. Esse eixo, esse afastamento determina

de maneira positiva a esfera potencial: essa

deve sua potencialidade precisamente em

função de o eu se apartar dela. A possibilidade

mesma, própria do eu, de afastar-se do campo

potencial e de regressar a ele, pressupõem uma

filiação de princípio de dito campo ao eu. O

plano de fundo da consciência pertence ao eu

como seu; é, por assim dizer, o campo da sua

liberdade. (LEVINAS, 2004, p. 79).

Essa possibilidade mesma acabaria por apresentar um

campo próprio do ‘eu’. O ‘eu’ seria compreendido

fundamentalmente como aquele que não se revela em sua

totalidade em seus atos teóricos, mas que sempre permanece,

mesmo que em partes, velado, encoberto. A capacidade que o

‘eu’ possui de sair e regressar desse campo revela uma pertença

de princípio do ‘eu’ a essa condição (LEVINAS, 2004, p. 79).

Diante dessas considerações, o campo potencial da consciência

apresenta-se como pertencendo ao ‘eu’ como ‘seu’.

O ‘eu’ não se reduziria a um ponto vazio puramente

formal de onde emanariam todos os atos de consciência, pelo

contrário, o ‘eu’ teria um caráter de pessoa (LEVINAS, 2004,

Felipe Bragagnolo

103

p. 78). O que parece interessar a Levinas é analisar a relação

existente entre a intencionalidade e o ‘eu’, pois

o eu não é uma parte real da cogitação como,

por exemplo, as sensações. O eu se anuncia na

cogitação de uma maneira especial que permite

Husserl conceber sua presença na consciência

como uma ‘certa transcendência na imanência

da consciência’. ‘O eu puro não é uma vivência

(Erlebnis) como outras, nem uma parte

constitutiva da vivência’5. (LEVINAS, 2004, p.

80, grifos do autor).

O ‘eu’ revelar-se-ia para além da esfera ativa da

consciência. O ‘eu’ se anunciaria nessas diferentes cogitações,

mas a sua forma pura, o ‘eu’ puro, estaria para além da

vivência imanente dos atos da consciência. Por isso, nos

parece, que Husserl afirma uma certa transcendência na

imanência. O ‘eu’ em sua pureza sempre parece permanecer

escondido, revelando-se pouco a pouco, de momento em

momento, nas suas diferentes vivências. Para Levinas a

intencionalidade nos revela a transcendência do ‘eu’ na

imanência da consciência. Essa revelação não supõe nenhuma

alteração da noção de intencionalidade, somente apresenta um

novo campo de investigação (LEVINAS, 2004, p. 80).

A consciência não se converte de novo, com a

introdução do eu, em uma ‘substância que

descansa sobre si mesma’ e que teria

necessidade da intencionalidade para

transcender-se. Ela é primeiramente

intencionalidade. É só dentro desse fenômeno,

respeitando seu modo transcendental de existir,

que podemos distinguir um lado subjetivo e

outro objetivo, um eu e um objeto. Podemos

5 O sentido da palavra real nessa citação é de que o ‘eu’ não é parte

constitutiva da realidade de algo (LEVINAS, 2004, p. 80).

Consciência intencional

104

falar de um eu, de um ponto do qual emergem

os atos, apenas como característica interna da

intencionalidade. (LEVINAS, 2004, p. 80, grifo

do autor).

A noção de ‘eu’ pressuporia a noção de

intencionalidade (LEVINAS, 2004, p. 80). O ‘eu’, contudo,

pertenceria e somente seria revelado em sua radicalidade a

partir da noção de intencionalidade apresentada pela

fenomenologia.

Considerações finais

A teoria fenomenológica de Husserl nos oportunizou

um campo vasto e rico de investigações vindouras. Levinas

representa o filósofo que, tendo estudado o pensamento de

Husserl e tido a oportunidade de conviver junto a ele,

posteriormente pode, em certa medida, vislumbrar novas

leituras, ou ainda, aprofundar temas somente apontados por seu

mestre. Como percebemos no decorrer desse artigo, Levinas

mostrou que a atenção de Husserl sobre a consciência estava

em torno principalmente dos ‘atos objetivantes’ do mundo e

das coisas. Todavia, Levinas volta sua atenção para outro

âmbito da consciência, retirando o seu olhar da esfera teórica

da consciência e buscando aproximar-se da esfera passiva. A

vida que não se resume a vida teórica, a vida contemplativa,

mas, apresenta-se também como vida afetiva, vida volitiva,

perpassada, roubada de certa maneira pelos desejos, pela

vontade, pelo interesse ou desinteresse do sujeito diante

daquilo que o cerca.

A intencionalidade também nos revela a passividade e

um ‘eu’ que vive em seus atos objetivantes. Um ‘eu’ implicado

com os objetos e o mundo, uma subjetividade, em certa

medida, encarnada nos atos da consciência. A noção de

Felipe Bragagnolo

105

intencionalidade é radicalizada em Levinas, radicalizada

porque aprofunda a análise do ‘eu’ que vive juntos aos atos da

consciência. Tais atos que compõem a esfera passiva da

consciência foram apresentados por Levinas não como

quaisquer atos da consciência, mas, que em certa medida

constituem da mesma forma que os atos da esfera ativa a

estrutura ontológica do ‘eu’.

Com essa nova abordagem da intencionalidade, da vida

objetivante somos levados a navegar em novas águas, a buscar

novas terras, a mudarmos nossa atenção da esfera ativa para a

esfera passiva. Acabamos por assim dizer, sendo roubados pela

vida concreta. Findamos assim essa análise, que ainda continua

em andamento, questionando-nos para onde seremos levados,

para onde seremos conduzidos a partir dessa nova abordagem

fenomenológica sobre a vida em sua radicalidade. A

fenomenologia de Levinas, analisada desde sua rica influência

husserliana, desafia-nos a aprofundar cada vez mais nossa

investigação, não deixando de lado ou esquecendo a vida que

atravessa, que perpassa a nossa existência.

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SOKOLOWSKI, R. Introdução à Fenomenologia. São Paulo:

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107

ACERCA DO TEMPO: HISTÓRIA, METAFÍSICA E

VIRTUALIDADE

Giovane Martins Vaz dos Santos1

Tiago Porto Pereira2

Introdução

O conceito de tempo é definido na filosofia,

inicialmente, como a ordem mensurável do movimento. Essa

conceitualização esteve presente na Antiguidade e no Medievo

e não era de difícil aceitação, já que o movimento, as relações

de causa e efeito e o deslocamento no espaço não sofriam

grandes problematizações. A maior questão em relação ao

tempo estava ligada à oposição entre o mundo terreno e o

mundo divino ou inteligível, sendo a temporalidade

exclusivamente terrena e responsável pela mensuração dos

objetos físicos. Porém, a criação de novos meios de transporte

e comunicação, as descobertas sobre as mudanças ocorridas em

ciclos temporais e a existência de espaços sem objetos físicos

criaram novos problemas que apontaram para a necessidade de

novas reflexões sobre o conceito. Com o advento do

ciberespaço, a virtualização do espaço e do tempo trazem

novos problemas para a filosofia e as ciências sociais,

1 Acadêmico de Filosofia da PUCRS, bolsista de iniciação científica pelo

CNPq. E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Filosofia pela PUCRS, bolsista pelo CNPq. E-mail:

[email protected]

Acerca do tempo

108

modificando as relações de causa e efeito e o modo como

percebemos a passagem do tempo. A seguir, faremos a

exposição da concepção de tempo em Newton e em Leibniz.

Posteriormente, trataremos da questão da existência do tempo,

analisando os argumentos de J.M.E. McTaggart. Por fim,

trataremos do tempo virtual, analisado pelo sociólogo Manuel

Castells.

1. Newton e a tese do espaço e do tempo absolutos

Na sua obra intitulada Principia Mathematica, Newton

defende a existência do tempo e do espaço absolutos. Sobre o

tempo absoluto, Newton utiliza a distinção da astronomia entre

o tempo relativo e o tempo absoluto: a equação do tempo era

utilizada para corrigir diferenças que surgiam na passagem do

dia solar, o padrão de contagem de tempo da época. Durante

um ano, por exemplo, a duração de um dia solar pode variar em

até vinte minutos. A visão de uma taxa de rotação constante da

Terra, representada pelo sistema ptolemaico e pela cosmologia

aristotélica, foi superada pelo matemático e astrólogo alemão

Johannes Kepler (1571-1630), que afirmou que a rotação da

Terra pode ocorrer com maior velocidade quando o planeta

está mais próximo do Sol.

A necessidade de uma equação do tempo, para Newton,

se sustenta no fato de que nenhum movimento é uniforme.

Todo movimento é subjetivo, sofrendo alterações de forças que

o aceleram ou retardam. O tempo absoluto, por sua vez, não é

nada mais do que a duração da existência das coisas, não

sofrendo, portanto, a influência de qualquer força externa. Nas

palavras do cientista:

O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui

sempre igual por si mesmo e por sua natureza,

Giovane Santos e Tiago Pereira

109

sem relação com nenhuma coisa externa,

chamando-se com outro nome “duração”; o

tempo relativo, aparente e vulgar é certa medida

sensível e externa de duração por meio do

movimento (seja exata, seja desigual), a qual

vulgarmente se usa em vez do tempo

verdadeiro, como são a hora, o dia, o mês, o

ano. (NEWTON, 1996, p. 24)

Assim como o tempo, o espaço também poderia ser

definido como sendo relativo e absoluto:

O espaço absoluto, por sua natureza, sem

nenhuma relação com algo externo, permanece

sempre semelhante e imóvel; o relativo é certa

medida ou dimensão móvel desse espaço, a

qual nossos sentidos definem por sua situação

relativamente aos corpos, e que a plebe

emprega em vez do espaço, como é a dimensão

do espaço subterrâneo, aéreo ou celeste

definida por sua situação relativamente à terra.

Na figura e na grandeza, o tempo absoluto e o

relativo são a mesma coisa, mas não

permanecem sempre numericamente o mesmo.

(NEWTON, 1996, p. 24-25)

Em outras palavras, quando apontamos uma dimensão

do espaço, estamos falando do espaço relativo, que é parte do

espaço absoluto. O espaço absoluto, que “ permanece sempre

semelhante e imóvel”, não pode ser referido a partir de um

observador ou a partir de outros objetos. Para Newton, o

espaço e o tempo absolutos são “atributos de Deus”, sendo o

espaço infinito o atributo da Imensidade de Deus e o tempo

infinito o atributo da Eternidade divina. Leibniz, por meio de

correspondências com Clarke, se opôs às afirmações de

Newton sobre o espaço e o tempo absolutos.

Leibniz (2000) se opõe, inicialmente, à afirmação de

Newton de que o espaço e o tempo absolutos são “atributos de

Acerca do tempo

110

Deus”. Leibniz expõe em três argumentos principais os

motivos que tornam a tese de Newton insustentável: a) se o

espaço absoluto é uma propriedade de Deus, então o espaço faz

parte da essência divina. Ora, segundo Newton, o espaço tem

partes. Logo, a essência de Deus também tem partes; b) se o

tempo é identificado como a imensidão divina, então os objetos

que estão no tempo também fazem parte da essência de Deus;

c) seguindo o Princípio da Razão Suficiente e considerando a

hipótese da existência de um espaço e de um tempo absolutos,

não é possível encontrar uma razão para que Deus coloque as

coisas em um lugar do espaço e não em outro, assim como não

há razão para criar o mundo em um tempo e não em outro, já

que o espaço e o tempo absolutos são uniformes e imutáveis.

Após rejeitar a existência do espaço e do tempo

absolutos de Newton, Leibniz formula sua própria teoria acerca

dos dois temas. Para o filósofo, o espaço e o tempo são

constituídos por relações, onde a) o tempo é um conjunto de

acontecimentos temporais; e b) se observarmos todos os

instantes do mundo em um único instante de tempo,

perceberemos a existência das relações espaciais entre todos os

objetos.

Todos os acontecimentos mantém uma relação temporal

com todos os outros acontecimentos. Um acontecimento pode

ocorrer antes, simultaneamente ou depois de outro

acontecimento. Assim, o tempo não pode existir em si mesmo,

mas somente nas relações temporais. Neste sentido, Leibniz

não encontra grandes problemas para justificar sua tese. Sobre

o espaço, no entanto, o filósofo é confrontado com a seguinte

objeção: em um determinado instante de tempo, podemos notar

a existência de um espaço vazio entre dois ou mais objetos, de

modo que estes fiquem isolados e não exista qualquer relação

espacial entre eles. A saída que Leibniz encontra está nas

relações possíveis: o espaço não é apenas um conjunto de

relações efetivas, mas também um conjunto de relações

Giovane Santos e Tiago Pereira

111

possíveis que não existem mas poderiam existir. Deste modo, o

espaço vazio que há na nossa galáxia, por exemplo, pode ser

imaginado como um conjunto de relações possíveis entre

objetos. Após analisarmos a questão do tempo e do espaço

absoluto em Newton e Leibniz, discutiremos o tema do tempo

na filosofia contemporânea, onde o filósofo McTaggart trouxe

importantes contribuições.

2. McTaggart e a irrealidade do tempo

O filósofo inglês J.M.E. McTaggart (1866-1925)

estudou e lecionou durante grande parte de sua vida no Trinity

College, em Cambridge, tendo sido membro fundador da

escola do idealismo britânico. Seu campo de estudos era

principalmente metafísica, ficando conhecido pelos seus

argumentos contra a realidade do tempo e sobre a definição de

duas séries temporais: A e B, conforme dissertaremos abaixo

em linhas gerais.

Para começar a nossa exposição da teoria do filósofo

inglês, consideremos duas posições acerca da posição no

tempo, da forma com que ele se apresenta a nós diretamente:

de um lado, cada posição é presente, passado e futuro, não

deixando espaço para distinções; de outro, temos um evento

que é anterior a outro e posterior a um terceiro, havendo

distinções permanentes. Quanto a essas duas considerações,

McTaggart nomeia a primeira de série A e a segunda de série

B. Qualquer evento pode pertencer a uma ou outra série, ainda

que haja diferenças substantivas entre elas. Analisando mais

profundamente, podemos afirmar que para a série A os eventos

mudam constantemente de lugar, ou seja, existe um movimento

dinâmico entre eles. Por outro lado, a posição dos eventos na

série B não muda (GARRET, 2008, p. 81), havendo apenas

uma passagem de um status (ou marcação temporal) a outro:

Acerca do tempo

112

um evento futuro torna-se presente e, logo, se tornará passado.

Sendo assim, se um acidente automobilístico ocorreu ontem à

noite na minha rua, sempre foi e sempre será verdadeiro que

ocorreu de fato ontem à noite.

Feita essa breve introdução às séries do tempo,

gostaríamos de abordar a polêmica tese do filósofo. Ainda que

estabeleça essa diferenciação entre as duas séries temporais,

McTaggart argumenta no relevante artigo intitulado The

unreality of time (1908) que a existência do tempo é uma

ficção, ou seja, o tempo é irreal.

Parece altamente paradoxal afirmar que o

tempo é irreal e que todas declarações que

envolvem sua realidade são errôneos. Tais

afirmações envolvem uma saída da posição

natural da humanidade que é muito maior do

que o envolvido na declaração da irrealidade do

espaço ou a irrealidade da matéria. Para cada

experiência do homem há uma parte – seus

próprios estados conhecidos por ele por

introspecção – que nem mesmo parecem ser

espaciais ou materiais. Mas nós não temos

experiência que não pareça temporal. Mesmo

nossos julgamentos que o tempo é irreal

aparecem eles mesmos no tempo.3

(McTAGGART, 1993, p. 23)

3 Tradução nossa para a passagem: “It seems highly paradoxical to assert

that time is unreal, and that all statements which involve its reality are

erroneous. Such an assertion involves a departure from the natural position

of mankind which is far greater than that involved in the assertion of the

unreality of space or the unreality of matter. For in each man's experience

there is a part – his own states as known to him by introspection – which

does not even appear to be spatial or material. But we have no experience

which does not appear to be temporal. Even our judgements that time is

unreal appear to be themselves in time”.

Giovane Santos e Tiago Pereira

113

Metodologicamente, antes de lidar com a tese central

do seu artigo, o filósofo questiona qual série é fundamental

para a realidade do tempo, A ou B, realizando uma análise dos

dois conceitos. Procedendo dessa forma, McTaggart conclui

que se tempo implica mudança, a série A pode prevalecer,

considerando que as mudanças devem mudar suas relações

com o tempo, assim como suas qualidades relacionais: a queda

de um castelo de areia na Inglaterra muda a natureza das

pirâmides do Egito (exemplo de McT). Se analisarmos a

hipótese pelo outro lado, a que a série B constitui o tempo

independente da série A, as mudanças precisam ser possíveis

fora desta. Se supormos que as distinções de passado, presente

e futuro não se aplicam à realidade, como que a mudança se

aplicaria a ela?

A série B do tempo não permite mudanças, visto que

um evento N sempre se situará após um evento M e antes de

um evento O. Independente de como seja analisado, as

posições são fixas: tomemos, por exemplo, a Copa do Mundo

de Futebol ocorrida em 2014 aqui no Brasil; sabemos que ela

ocorreu após a Copa de 2010 e que antecede o evento de 2018.

Nada poderá mudar esse fato. Para que houvesse uma mudança

nessa série, um evento M deveria deixar de ser M

gradualmente para se tornar N, ou seja, haveria um devir de M

para N. Contudo, tal coisa é impossível para a série B do

tempo, pois ela é dependente de relações permanentes entre

eventos, não deixando espaço para estes deixarem de existir

como eventos ou se transformarem em algo diferente.

Para o filósofo, o que caracteriza a mudança somente

pode ser encontrado quando investigamos a série A do tempo.

Segundo sua teoria, se tomarmos um evento como referencial –

retornemos ao nosso exemplo anterior, o da Copa do Mundo de

2014 – em uma perspectiva anterior – digamos em 2008 –, esse

evento estaria em um futuro ainda distante; conforme

avançamos, esse futuro se aproxima gradualmente até se tornar

Acerca do tempo

114

nosso presente e, em seguida, fazer parte do nosso passado.

Essas características são as únicas que aceitam mudança,

estando elas presentes somente na série A. Portanto, se não

houver a série A, não existe mudança real. Se isso é correto,

então a série B sozinha não é suficiente para constituir o tempo,

uma vez que tempo envolve mudança e esta só consegue existir

como temporalidade, como anterior ou posterior, onde essas

relações que conectam tais eventos são relações de tempo. A

conclusão que McTaggart chega é de que a série B depende da

série A para existir, pois sem esta não existe tempo, logo não

há a possibilidade daquela existir. Sendo assim, a série A é

mais fundamental que a B para o tempo.

Estabelecidas as diferenciações entre os tipos de séries

referentes ao tempo e com a conclusão de que a série A é mais

fundamental para o tempo, o filósofo retorna para a sua tese

central do artigo, a de que o tempo é irreal. Partindo da

refutação da série que há pouco parecia defender, chegamos ao

que ficou conhecido como o Paradoxo de McTaggart. Para

compreendermos essa teoria, consideremos as seguintes

asserções:

a) Todo evento é passado, presente e futuro.

b) Nenhum evento pode ser passado, presente e futuro.

Logo:

c) A série A do tempo é contraditória.

Explicando as posições, na premissa a) é exposto que

todos eventos carregam em si as três posições: um dia foi

futuro, agora é presente e logo será passado; na premissa b),

McTaggart assume que essas três posições são incompatíveis,

não podendo estar presentes ao mesmo tempo; logo, a

conclusão c) afirma a contradição dentro da série A do tempo,

visto que nada pode possuir características contraditórias sob o

ponto de vista lógico.

De acordo com suas observações, cada evento deve

ocupar uma posição por vez, não as três ao mesmo tempo. Isso

Giovane Santos e Tiago Pereira

115

significa que quando dizemos que um evento é passado,

afirmamos que ele não está mais presente e que ele não

ocorrerá em seguida. Essa característica exclusiva é um ponto

essencial para a mudança e, portanto, para o tempo. Sendo

assim, as únicas mudanças que podemos ter é do futuro para o

presente e do presente para o passado (McTAGGART, 1993, p.

32). Contudo, se aceitarmos que essas características são

incompatíveis somente enquanto simultâneas, ou seja, que não

há contradição quando elas se apresentam sucessivamente,

teremos um sentido em que a premissa a) é verdadeira, mas b)

é falsa; um sentido em que b) é verdadeira e a) é falsa; logo, o

argumento a-c é inválido, pois possui premissas conflitantes.

A saída oferecida por McTaggart dessa objeção é

evitarmos a acusação de contradição nas três posições –

passado, presente e futuro – da série A, recorrendo a três

posições secundárias: N é presente, foi futuro e será passado. O

problema é que agora existem nove posições nessa série

secundária! Além disso, todo evento ocupa cada uma dessas

posições da série A. Como resolver esse problema? Segundo o

filósofo, podemos recorrer à distinções de flexões verbo-

temporais mais complexas, passando assim para um terceiro

nível. Contudo, ainda teremos posições que conflitarão entre si,

sendo necessário passar para um quarto nível. Sendo assim,

sempre podemos avançar um nível para escapar de

contradições; contudo, em cada novo nível que se escalona o

discurso, as contradições persistem (McTAGGART, 1993, p.

32-3; GARRET, 2008, p. 86). Dessa forma, conforme assinala

Garrett (2008), “a 'resposta óbvia' [de McTaggart], afinal de

contas, não é assim tão óbvia” (GARRET, 2008, p. 86).

A conclusão do filósofo inglês é que a realidade da

série A do tempo é contraditória, logo deve ser descartada,

assim como mudança e tempo, visto que estas necessitam desta

série. Além disso, a série B também deve ser rejeitada, pois ela

depende do tempo, estando, assim, atrelada à série A. A

Acerca do tempo

116

polêmica conclusão defendida por McTaggart é a de que nada

muda nem está no tempo: o que existe é a nossa percepção

presente das coisas, que as captura mais ou menos como elas

não são, ou seja, nossa percepção se apoia em uma ilusão das

coisas mesmas.

A realidade da série A, então, leva a uma

contradição e deve ser rejeitada. E, desde que

nós temos visto que mudança e tempo requerem

a série A, a realidade da mudança e tempo deve

ser rejeitada. E também a realidade da série B,

uma vez que ela requer o tempo. Nada é

realmente presente, passado ou futuro. Nada é

realmente anterior ou posterior do que outra

coisa ou temporariamente simultânea. Nada

realmente muda. E nada está realmente no

tempo. Sempre que nós percebemos algo no

tempo – que é a única maneira na qual, em

nossa experiência presente, nós percebemos as

coisas – nós o estamos percebendo mais ou

menos como ele não é na realidade.4

(McTAGGART, 1993, p. 34)

3. Sociedade em rede: intemporalidade e simultaneidade

Apesar das observações filosóficas de J.M.E.

McTaggart e outros teóricos, tempo e espaço são conceitos que

comumente se encontram relacionados, tanto na natureza

4 Tradução nossa para a passagem: “The reality of the A series, then, leads

to a contradiction, and must be rejected. And, since we have seen that

change and time require the A series, the reality of change and time must be

rejected. And so must the reality of the B series, since that requires time.

Nothing is really present, past, or future. Nothing is really earlier or later

than anything else or temporally simultaneous with it. Nothing really

changes. And nothing is really in time. Whenever we perceive anything in

time – which is the only way in which, in our present experience, we do

perceive things – we are perceiving it more or less as it really is not.”

Giovane Santos e Tiago Pereira

117

quanto na sociedade. O espaço, na teoria social, representa um

suporte material para o compartilhamento do tempo nas ações

sociais, ou seja, implica a construção da simultaneidade. Para

acadêmicos como Manuel Castells, o desenvolvimento de

tecnologias de comunicação podem ser entendidas como um

processo de descolamento gradual da contiguidade

proporcionada pelo espaço e o compartilhamento do tempo,

sendo o espaço de fluxos uma oportunidade organizacional e

tecnológica de se praticar a simultaneidade sem necessitar da

contiguidade (CASTELLS, 2009, p. 34). Esses avanços

tecnológicos se refletem na nossa sociedade ao passo que

influenciam diversas instituições, passando do mercado

financeiro até o mundo do trabalho. Na presente seção do

nosso trabalho, buscamos expor como se dá a construção desse

“novo” tempo, constituído na sociedade em rede5.

Presente na sociedade em rede, temos uma virtualização

do tempo conferida por um sistema multimídia eletronicamente

integrado proporcionado pela Internet. Dessa forma, Castells

(1999) assinala que dentro dessa configuração o tempo

transformou-se de duas formas, reportando-se à simultaneidade

e à intemporalidade. O fluxo contínuo e instantâneo de

informações em escala global em conjunção com a cobertura

em tempo real de acontecimentos locais tornam a

instantaneidade temporal de eventos socioculturais uma

realidade. Uma vez que o acesso a esses acontecimentos é

dinâmico, todos indivíduos podem participar das construções

históricas em movimento. Além disso, a comunicação mediada

por computadores (CMC) nos oferece a possibilidade de

manter conversações em tempo real com as mais diversas

pessoas, independente de sua localização geográfica, o que nos

5 Termo cunhado por Manuel Castells que representa a atual configuração

social permeada pelos usos de dispositivos multimídia conectados à

Internet, constituindo uma rede orgânica entre pessoas e corporações.

Acerca do tempo

118

proporciona a possibilidade de discussões multilaterais, sendo

isso possível de forma escrita ou a partir de videoconferências.

Castells (1999) ressalta que “a intemporalidade do

hipertexto de multimídia é uma característica decisiva de nossa

cultura, modelando a memória das crianças educadas no novo

contexto cultural” (CASTELLS, 1999, p. 486-7). Tal fenômeno

é constatado ao observarmos as novas gerações e a sua

facilidade com que crianças e jovens se adaptam aos usos de

ferramentas multimídias eletrônicas nos usos cotidianos, seja

com finalidades recreativas ou educacionais. Respondendo a

finalidades específicas, na Internet a temporalidade das

informações são ordenadas de forma que o resultado final seja

um tempo não-sequencial que representa, de certa forma, uma

totalidade da produção cultural à disposição humana. O

sociólogo põe em contraste essa ordenação com a que outrora

era utilizada pelas enciclopédias: esta catalogava uma série de

conhecimentos humanos a partir de uma ordem alfabética,

enquanto aquela oferece as informações conforme os impulsos

do agente ou decisões previamente estabelecidas pelos

produtores do conteúdo. Sendo assim, Castells (1999) observa

que “[…] toda a ordenação dos eventos significativos perde seu

ritmo cronológico interno e fica organizada em sequências

temporais condicionadas ao contexto social de sua utilização.

Portanto, é simultaneamente uma cultura do eterno e do

efêmero” ( CASTELLS, 1999, p. 487. Grifo do autor). A

eternidade se dá pois abrange passado e futuro das expressões

culturais, enquanto sua efemeridade resulta da dependência

sofrida pela sua organização aos contextos e objetivos das

construções culturais solicitadas.

Na sociedade em rede, a ênfase no

sequenciamento é reversa. A relação ao tempo é

definida pelo uso de tecnologias de informação

e comunicação em um implacável esforço de

aniquilar o tempo ao negar a sequência: de um

Giovane Santos e Tiago Pereira

119

lado, por comprimir o tempo (como em

transações financeiras globais ocorridas em

frações de segundos ou a prática de multitarefas

generalizadas, comprimindo mais atividades em

um tempo estabelecido); por outro lado, por

obscurecer o sequenciamento de práticas

sociais, incluindo passado, presente e futuro em

uma ordem randômica, como no hipertexto da

Web 2.0 ou obscurecimento de padrões do ciclo

da vida, tanto no trabalho quanto na

paternidade.6 (CASTELLS, 2009, p. 35)

Para o sociólogo espanhol, a teoria de Leibniz acerca do

tempo é valiosa. Segundo ela, simpliciter, o tempo é a ordem

de sucessões de coisas: não havendo as coisas, não haveria o

tempo. De acordo com sua argumentação, nossos

conhecimentos científicos atuais não conflitam com essa

conceitualização leibniziana, sendo ela uma forma de melhor

compreendermos as mudanças atuais da temporalidade. Isto

posto, Castells sustenta que seu conceito de tempo intemporal –

isto é, a temporalidade atual – “ocorre quando as características

de um dado contexto, ou seja, o paradigma informacional e a

sociedade em rede, causam confusão sistêmica na ordem

sequencial dos fenômenos sucedidos naquele contexto”

(CASTELLS, 1999, p. 489). Entende-se disso que a

intemporalidade é uma anomalia causada por um evento na

linha de tempo em que está inserida. A confusão que ocorre,

nesse caso, pode ser representada como uma compressão dos

6 Tradução nossa para a passagem: “In the network society, the emphasis

on sequencing is reversed. The relationship to time is defined by the use of

information and communication technologies in a relentless effort to

annihilate time by negating sequencing: on one hand, by compressing time

(as in split-second global financial transactions or the generalized practice

of multitasking, squeezing more activity into a given time); on the other

hand, by blurring the sequence of social practices, including past, present,

and future in a random order, like in the electronic hypertext of Web 2.0, or

the blurring of life-cycle patterns in both work and parenting.”

Acerca do tempo

120

fenômenos, com vistas à instantaneidade, ou na forma de

descontinuidade randômica dentro dessa cadeia de eventos.

Como exemplos empíricos desse tempo intemporal abstrato,

Castells ressalta as transações financeiras das bolsas de valores

realizadas em frações de segundos, empresas que utilizam

jornadas de trabalho flexíveis, indeterminação do ciclo de vida,

guerras instantâneas, tempo variável de serviço, entre outros.

Todos esses fenômenos misturam sistemicamente a ocorrência

de distintos tempos (CASTELLS, 1999, p. 489).

Ponto importante a ser ressaltado é que o tempo

intemporal pertence ao espaço de fluxos, enquanto o tempo

biológico, a disciplina tempo e a sequencialidade posta

socialmente oferecem os lugares onde se aplicam, ao passo que

estruturam ou desestruturam a segmentação das sociedades.

Seguro dessa argumentação, o sociólogo afirma que na nossa

sociedade o espaço modela o tempo, realizando a inversão de

um modelo histórico: “fluxos induzem tempo intemporal,

lugares estão presos ao tempo” (CASTELLS, 1999, p. 490).

Toda a ideia de progresso que fundamenta a nossa sociedade há

dois séculos baseia-se nos movimentos da história norteada

pela razão e fazendo vistas a um impulso de forças produtivas,

passando ao largo de restrições sociais e culturas vinculadas ao

espaço. Dessa forma, o domínio do tempo e o controle do ritmo

dominaram superfícies e, com o avanço da crescente

industrialização, transformaram o espaço a partir do processo

de constituição do estatismo e do capitalismo.

Ainda que a análise de Castells abarque várias amostras

empíricas de temporalidades, a experiência humana não se

reduz apenas a estas, visto que a construção do tempo e do

espaço são diferenciados socialmente. A multiplicidade

espacial de lugares desconectados uns dos outros apontam para

diversas temporalidades, desde o tempo biológico ao tempo

Giovane Santos e Tiago Pereira

121

disciplinar imposto pelo relógio7. Algumas funções e

indivíduos conseguem transcender a esse tempo multifacetado,

enquanto outros simplesmente se resignam e seguem a sua vida

da maneira que conseguem. Contudo, Castells observa que

existe lugar para a contradição nesse sistema, encarnado em

movimentos sociais que buscam substituir esse modelo

predominante da sociedade em rede. Dessa forma, em vez de

simplesmente aceitarem a configuração dada tais como uma

máquina aceita sua programação passivamente, grupos

ambientais propõem viver a vida na sua totalidade, a partir de

uma perspectiva cosmológica. Esses grupos tendem a

considerar nossas vidas como parte de um processo evolutivo

da espécie, em conexão direta com um sentimento de

responsabilidade para com as gerações futuras (CASTELLS,

2009, p. 35).

Considerações finais

Os conceitos de tempo analisados no nosso trabalho não

sofrem sua extinção ao longo do tempo, ou seja, não são

eliminados e substituídos por um novo conceito mais atual que

passa a predominar por um novo período de tempo. As análises

de Newton e Leibniz no século XVII, McTaggart no século XX

e Castells atualmente, acerca do tempo, ainda fazem sentido

em diferentes setores sociais e espaciais da sociedade

contemporânea. O cálculo criado por Newton para a medida do

tempo por meio do movimento é pré-requisito fundamental em

qualquer currículo escolar. A definição de Leibniz de que o

tempo é um conjunto de relações temporais ainda encontra

fundamentação no mundo atual, repercutindo na tese defendida

7 Nos seus livros publicados em 1999 e 2009, Castells explora mais a fundo

esses e outros tipos paralelos de tempo, o que não faremos neste trabalho

devido a sua extensão.

Acerca do tempo

122

por Castells. No entanto, essa definição não é mais

predominante: em uma sociedade em rede, o acesso aos

eventos ocorridos no mundo inteiro e aos objetos virtuais pode

ser instantâneo, problematizando a relação temporal entre

eventos de Leibniz, e dando base para a tese de Castells sobre o

tempo intemporal.

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Leibniz and Clarke. 2007. Disponível em:

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123

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<http://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/newton-

stm/>. Acesso em 22 nov. 2014.

125

CONSCIÊNCIA E INTENCIONALIDADE: SARTRE E A

FENOMENOLOGIA

Kátia Marian Correa1

Num denso e conciso estudo (Uma idéia fundamental

da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade na obra

Situações I – críticas literária)2, Sartre propôs uma leitura

ousada das teses nucleares da fenomenologia husserliana e,

principalmente, sobre o conceito de intencionalidade. Isso se

explica por ser a concepção de intencionalidade muito cara à

tradição fenomenológica, sendo inclusive retomada por muitos

filósofos, entre eles, o próprio Sartre. Em sua obra magna O ser

e o nada: ensaio de Ontologia Fenomenológica Sartre teve a

preocupação de explicitar os elementos de sua filosofia

existencial em perspectiva fenomenológica, mas há outras

obras que poderiam ser citadas, aqui, tais como O imaginário,

Esboço para uma teoria das emoções, A transcendência do

Ego, etc.

Nossa proposta é examinar o referido estudo sobre a

intencionalidade. Sartre parte de teses de filósofos

contemporâneos seus (idealistas e realistas), dizendo que

1 Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

2 Trata-se de uma pequena consideração de Sartre à respeito da

intencionalidade de Husserl. A mesma foi originalmente publicada em La

Nouvelle Reveu Française, n. 304, janeiro de 1939, pp-129-31 [N.T].

Posteriormente o texto foi adicionado à obra Situações I – Críticas

Literárias, compondo um dos volumes das Situations, ensaios políticos e

literários escritos entre os anos 1947 e 1965.

Consciência e intencionalidade

126

predomina entre eles um conceito assimilador de

conhecimento. Objetos tais como uma mesa, um rochedo e

uma casa são, numa perspectiva epistemológica estrita,

realidades que deverão perder sua alteridade para entrar no

domínio do sujeito. Eles se tornarão conteúdos da consciência.

O conhecer seria, assim, assimilação, unificação e, finalmente,

identificação. Tudo, em certo sentido, se torna uma realidade

mental. Não há, por assim dizer, um contato direto e autêntico

da consciência com o mundo, mas sim redução de tudo o que é

exterior ao domínio da mente devoradora. Eis, para Sartre, o

modelo teórico que será posto em causa pela originalidade da

noção husserliana de consciência. Como se dá este

questionamento?

A consciência em sentido fenomenológico não absorve

o mundo exterior fazendo dele algo imanente. Por quê? Porque,

em fenomenologia, a consciência é doadora de sentido.

Relacionamo-nos às coisas por que estas aparecem a nós, se

mostram como dotadas de interesse, de repulsa, de indiferença,

etc.

Ora, a palavra relação é esclarecedora, pois a

consciência humana está essencialmente voltada a objetos. A

intencionalidade é uma saída para o mundo, ou ainda: é um

estar junto a objetos, antes de estar em si mesma. O que se

percebe empiricamente não é uma informação que possa

prescindir das significações intencionais que somente a

consciência poderia trazer. Vale, no entanto, ressaltar que não

se trata de um dualismo consciência-mundo, uma vez que, ao

intencionar algo, a consciência não está apenas representando

subjetivamente este algo, e sim, encontrando um “objeto” tal

como este fora visado por ela. Dizer consciência é dizer relação

intencional a objetos, mas, para Sartre, este direcionamento

implica mais do que relação teórica, pois para ele nós somos no

mundo, existimos em meio às coisas e aos outros e, sendo

assim, a própria consciência é presença no mundo.

Kátia Marian Correa

127

Perguntamos, agora: o que entender por fenômeno?

Para Sartre trata-se de algo que pode ser explicado do seguinte

modo. “O que o fenômeno é, é absolutamente, pois se revela

como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é

absolutamente indicativo de si mesmo” (Sartre, 2011, p. 16).

Sartre afirma, retomando Husserl, que não se podem dissolver

as coisas na consciência. O conhecimento não é o ato pelo qual

as coisas se tornam conteúdos mentais. Em certo sentido, é a

consciência que já está sempre fora de si mesma, ou seja, é

sempre orientação intencional a algo de outro. Eis por que a

consciência não pode ser naturalizada, vale dizer, não se

enquadra numa perspectiva filosófica que faz da natureza física

a realidade em sentido forte, transformando todo fato psíquico

num fenômeno derivado dos acontecimentos causais do mundo

físico. Ora, em fenomenologia, mundo e consciência não são

realidades separadas. Dizer que a consciência é

intencionalidade é propor que, mesmo que sejamos seres da

natureza, tudo o que é significativo depende de uma atividade

constituinte da própria consciência, inclusive as teses que

filósofos e cientistas sustentam em relação ao mundo empírico

e factual. O mundo exterior, que faz de nós corpos reais

existentes como tantos outros, não pode desmentir a atividade

intencional que permite pensá-lo como “coisa material”, “ser

real”, “fatos”, “objetos culturais”, etc. Todos esses termos

dependem, por essência e necessidade, da atividade

constituinte da consciência. Husserl toma a consciência como

fato irredutível, isto é, que não pode ser reduzido a nenhuma

realidade objetiva, uma vez que ela é, antes de tudo, um fluxo

de vivências intencionais.

A consciência, mesmo sendo um acontecer psicológico

ou empírico-real, pode ser vista como consciência pura, isto é,

como uma vida espiritual que não cessa de doar sentido, isto é,

de encontrar o mundo sob a forma de atos de percepção, de

intelecção, de valoração, de realizações práticas, etc. Dessa

Consciência e intencionalidade

128

maneira, pode-se afirmar que a consciência sai de si mesma,

“explode para o mundo”, para dizer segundo os próprios

termos de Sartre. Tal interpretação da fenomenologia mostra

que não há, na consciência, um interior, como se ela fosse um

recipiente contendo pacotes de ideias e representações. Nas

palavras de Sartre: “ela (a consciência) não é nada senão o

exterior de si mesma, e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser

substância, que a constitui como uma consciência.” (2005, p.

56). Eis a luta incessante da consciência para não se tornar um

em-si, ou seja, uma substância, uma coisa.

Retomemos Husserl. Uma vez que a consciência possui

correlatos intencionais, então não fica difícil perceber por que

ela abarca todos os vividos. Esta possibilidade, para Husserl,

remete ao trabalho de um Ego, de um Eu puro ou

transcendental. “Dessa maneira, a consciência possui em si

mesma um ser que é seu, que não é alcançado em sua essência

mesma absoluta pela eliminação fenomenológica.”

(HUSSERL, 2006, p. 83-84). É mediante a ciência

fenomenológica que se podem estudar e aprofundar-se as

questões relativas às estruturas e peculiaridades da consciência.

Não seria, então, forçar as coisas dizendo que, em sentido

fenomenológico, a consciência é abertura ao mundo? Husserl

não é um idealista que fez da intencionalidade um viver

subjetivo que faz do mundo uma construção dominada

egologicamente?

Eis, para nós, a importância da interpretação sartreana

de Husserl. Mesmo discordando do pai da fenomenologia sob

muitos aspectos (a importância que o Ego tem para Husserl é

um deles), Sartre nos diz que, pela intencionalidade, já é

possível notar uma preocupação com as questões que

perpassam a mundaneidade, e é exatamente isso que pode

posteriormente explicitar ou pelo menos descrever elementos

fundamentais da existência humana. Aqui, vale mencionar o

influxo da filosofia de Heidegger sobre as análises sartreanas

Kátia Marian Correa

129

do existir humano, lembrando que, para o autor de Ser e

Tempo, importa principalmente buscar incessantemente

explicitar o sentido do ser, tomando-se como ponto de partida

um ente que se convencionou chamar de ser-aí (Dasein), que

não é senão o próprio existente humano que se encontra aí,

lançado no mundo. No caso de Sartre, estar-no-mundo implica

a ideia de movimento. Em suas palavras: “Ser é explodir para

dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e de

consciência para subitamente explodir-como-consciência-no-

mundo.” (2005, p. 56-57).

A consciência tem necessidade de existir como

consciência de outra coisa que ela mesma (em termos

husserlianos isto se chama intencionalidade). Husserl e outros

fenomenólogos não tomam a consciência humana somente em

sua atividade teórica. O conhecimento é apenas uma entre

outras maneiras possíveis da consciência. Conforme Sartre, a

consciência pode ser descrita de múltiplos modos: consciência

que ama, que manifesta temor, que odeia, etc. sendo que, em

todas essas modalidades, o existente humano pode encontrar

algo do próprio mundo, ou ainda, pode compreender que o

mundo, graças à intencionalidade, se desvela a nós de modos

imprevisíveis e sempre mais ricos. O sentimento de ódio que

alguém nutre em relação a outrem, por exemplo, também é

uma maneira de explodir em direção ao mundo, de modo tal

que outrem lhe aparece ou se revela como sendo repugnante,

odioso, irritante, etc. Nas palavras de nosso autor: “Eis que

essas famosas reações “subjetivas” – ódio, amor, temor

simpatia – que boiavam na malcheirosa salmoura do Espírito

de repente se desvencilham dele: são apenas maneiras de

descobrir o mundo.” (2005, p. 57). Portanto, com essa citação

de Sartre, pode-se concluir que é o próprio mundo que,

instantaneamente, se desvenda para os homens tendo em vista

as várias modalidades intencionais (amor, ódio, juízo estético,

valor, etc.).

Consciência e intencionalidade

130

A interpretação de Sartre é aguda e ousada: “Husserl

reinstalou o horror e o encanto nas coisas.” (2005, p. 57). Por

quê? Porque mostrou que o que chamamos mundo não é outro

senão aquele que se revela a nós mediante os vários modos de

ser visado e vivenciado pela consciência. A ideia de uma “vida

interior” se esvai, uma vez que o movimento intencional faz de

nós, do início ao fim, realidades humanas imersas no mundo, e

é aí que podemos nos descobrir em nossa própria condição:

existentes que nunca são isto ou aquilo de modo fixo, acabado,

determinado. Somos, fundamentalmente, seres indeterminados,

livres, responsáveis por conferir ao existir um sentido que

ninguém poderá, de fora, nos trazer.

Ao resgatar as contribuições de Husserl e com isso da

tradição fenomenológica que antecede sua filosofia existencial,

Sartre não deixa de criticar a ideia husserliana de Ego (a

consciência de estar consciente). Por quê? Porque não é preciso

que o Para-si se lembre de que todos os movimentos que

realizou foram feitos por um “Eu”. Caso alguém pergunte: “o

que se está fazendo?” não é necessário responder remetendo ao

mesmo “Eu”. Sartre explica que, na consciência instantânea,

não é necessário à presença de um Ego transcendental. Basta

apenas um fluxo consciente da ação em processo, em

movimento. “A consciência é consciência de si, antes ou

depois da reflexão.” (Rodrigues, 2010, p. 27).

Expliquemos um pouco mais esta crítica. Sartre explica que a

consciência é de dois tipos: a refletida e a irrefletida. O

segundo tipo de consciência também é consciência de si, sendo

necessário para a reflexão, porque fornece a unificação de toda

a consciência, ou seja, conserva a “corrente” da consciência

consciente de si mesma. Aqui não se têm o intuito de discutir e

desenvolver as concepções de consciência refletida e

irrefletida, mas, sim salientar ao leitor que a consciência dita

irrefletida manifesta um cogito pré-reflexivo que é

Kátia Marian Correa

131

indispensável, sendo mesmo a condição de possibilidade para

que possamos falar de um cogito, em sentido cartesiano.

Mas vale ressaltar o seguinte: é graças ao cogito, em

sentido cartesiano, que se pode revelar uma vivência do tipo

irrefletida. É ele que, em última instância, pode ver que o Ser

da consciência se apresenta antes dele. Ora, esse ser da

consciência não pode reduzir-se a um saber teórico. Ele é

apenas a condição da consciência, uma manifestação

espontânea da mesma. Husserl já falava que a consciência não

é possível antes de ser (fato), isto é, de seu próprio viver, e

isso, na nossa perspectiva, explica por que Sartre insistiu sobre

a fórmula: no existencialismo, a existência precede a essência

(Sartre, 1987).

Concluamos com algumas ponderações críticas

presentes na obra O Ser e o Nada. Com Husserl, Sartre afirma

que a consciência possui um existir irredutível a toda

objetivação. Mas, por outro lado, afastar-se-á do pensamento

husserliano no que diz respeito ao ser do fenômeno. Para

Sartre, após ter escrito as Investigações lógicas, Husserl teria

assumido uma posição e uma orientação extremamente

idealista. Além do mais, Sartre entende que Husserl não evita

que se caia de novo no dualismo, a saber, aquele do finito e do

infinito.

É verdade que as reflexões de Sartre caminham para

uma espécie de “ontologização” do problema do conhecimento

com os recursos da fenomenologia husserliana, mas tal

fenomenologia não via uma possibilidade efetiva da

abordagem do problema do ser. O que se percebe é que ambos

os propósitos, a saber, de Husserl e Sartre são distintos, e isso

pode ser ilustrado pela seguinte passagem da obra Ideias I de

Husserl: “A passagem à subjetividade transcendental não

deseja conduzir-nos ao fundamento do mundo, mas sim ao

‘fundamento radical de todas as funções de conhecimento”

(1950, p. 37).

Consciência e intencionalidade

132

No que diz respeito a Sartre, pode-se dizer que ele

chega a um problema de ordem ontológica: o Ser do fenômeno.

Se for verdade que, para que exista uma consciência, é

necessário já existir de antemão um objeto a ser transcendido,

algo que é anterior a ela mesma, e da qual ela nasce, será

também verdade que o ser do fenômeno não depende da

consciência para existir. Por quê? Porque o ser do Ser do

fenômeno já está dado anteriormente de alguma maneira.

Assim, conclui-se que a própria consciência transforma-se em

“prova ontológica” da existência do Ser do fenômeno. O ser do

fenômeno deve ser algo transfenomenal, isto é, deve ser

irredutível às leis da aparição. Eis por que, com a ideia de

intencionalidade, chega-se não só ao problema teórico

enriquecido pelas análises rigorosas da consciência e de seus

objetos, mas também e, sobretudo, de uma discussão

ontológica da própria consciência no mundo como um Nada,

um movimento interminável de negação, de compromisso com

o mundo, de liberdade.

Referências bibliográficas

HUSSERL, Edmund, Ideias para uma fenomenologia pura e

para uma filosofia fenomenológica: introdução geral a

fenomenologia pura. Tradução Márcio Suzuki. Aparecida,

São Paulo: Ideias & Letras, 2006.

RODRIGUES, Malcom Guimarães, Consciência e má-fé no

jovem Sartre: a trajetória dos conceitos. São Paulo: ED.

UNESP, 2010.

SARTRE, Jean-Paul, Críticas Literárias (Situações I), São

Paulo: EDUSP, 2009.

Kátia Marian Correa

133

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A

imaginação; Questão de método. 3ed. São Paulo: Nova

Cultural, 1987. (Os pensadores).

SARTRE, Jean-Paul, O ser e o nada – Ensaio de ontologia

fenomenológica. Tradução Paulo Perdigão, 20ed. Petrópolis:

Vozes, 2011.

135

PAUL FEYERABEND: DESFAZENDO MAL-

ENTENDIDOS

Leonardo Edi Ignácio1

Um dos pensadores mais polêmicos e que obteve muitas

críticas mal dirigidas e, na esmagadora maioria das vezes,

infundadas no território da filosofia da ciência foi, sem dúvida,

Paul Feyerabend. Austríaco e detentor de uma formação plural

que inclui Física, Matemática, Astronomia, Teatro e Produção

de Óperas, esse filósofo teve ampla repercussão dentro da

chamada “nova filosofia da ciência”, sendo frequentemente

caracterizado negativamente pelos “grandes metodologistas”.

Esta formação acadêmica plural, a nosso ver, inequivocamente

desempenhou um papel fundamental para a consagração do seu

mal-entendido e infame “vale-tudo” (anything goes) e que,

para alguns de seus críticos lhe rendeu à insígnia de “o pior

inimigo da ciência”. Algumas outras críticas a ele endereçadas

são muito pesadas, tal como a de que sua filosofia da ciência é

um conto de fadas, ou mesmo a mais corriqueira delas, a saber,

a que Feyerabend despreza a ciência. Pretende-se, nesse

trabalho, demonstrar que Feyerabend, ao contrário do que é

frequentemente exposto, oferece critérios para a atividade

científica, assim como seu anarquismo teórico não é irracional,

mais precisamente, que racionalidade prática/teórica e ciência

são coisas distintas, não se podendo incluir uma na outra.

Um dos livros que mais causou impacto na filosofia da

ciência depois da “Estrutura das Revoluções Científicas” de

Thomas Kuhn foi, indubitavelmente, “Contra o Método” de

1 Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:

[email protected]

Paul Feyerabend

136

Paul Feyerabend. Lançado em 1975, Feyerabend o escreveu

sob a influência de seu grande amigo Imre Lakatos ao qual

também dedicou essa obra que, segundo o nosso autor, era um

dos poucos que entendia sua filosofia. Neste livro, Feyerabend

tenta responder três questões fundamentais, a saber; O que é

ciência? O que há de tão formidável na ciência? Como

devemos usar a ciência, e quem decide a questão? Além destas

questões ele também defende a ideia de que “tudo-vale”, dito

de outro modo, isso caracterizaria o que o autor veio a

denominar mais tarde de anarquismo teórico, ou, dadaísmo

epistemológico, isto é, uma corrente pluralista que propõem

igualdade de condições tanto para a pesquisa especializada,

assim como para diletantes e, além destes, para campos que, na

visão dos “racionalistas2”, não são considerados ciência tais

como a magia, vodu, acupuntura, alquimia, além de outros.

Esta ideia que tudo-vale é tomada frequentemente como um

princípio de Feyerabend, o que é um erro, visto que, para

Feyerabend:

Tudo-Vale não é um ‘princípio’ que sustento —

não penso que princípios possam ser

proveitosamente usados e discutidos fora da

situação concreta da pesquisa que supostamente

afetam — mas é a exclamação aterrorizada de

um racionalista que examina a história mais de

perto (FEYERABEND, 2011a, p.08).

O leitor pouco familiarizado com Feyerabend pode ter

dificuldades para entendê-lo, uma vez que nosso autor não se

prende a uma única forma de método seja ele escrito ou não.

Dizemos isso, pois algumas páginas adiante Fayerabend afirma

o seguinte sobre o anarquismo teórico:

2 Racionalista aqui significa, antes de tudo, um crente no método da ciência.

Leonardo Edi Ignácio

137

Está claro, então, que a ideia de um método

fixo ou de uma teoria fixa da racionalidade

baseia-se em uma concepção demasiada

ingênua do homem e de suas circunstâncias

sociais. Para os que examinam o rico material

fornecido pela história e não têm a intenção de

empobrecê-lo a fim de agradar a seus baixos

instintos, a seu anseio por segurança intelectual

na forma de clareza, precisão, “objetividade” e

“verdade”, ficará claro que há apenas um

princípio que pode ser defendido em todas as

circunstâncias e em todos os estágios do

desenvolvimento humano. É o princípio de que

tudo vale3 (FEYERABEND, 2011a, p.42).

Embora possa parecer, para alguns autores, que

Feyerabend nada mais está fazendo do que atribuir um novo

conjunto de regras para a ciência, não é essa a pretensão do

filósofo aqui estudado, pois:

Essa impressão certamente seria errônea. Minha

intenção não é substituir um conjunto de regras

por um conjunto da mesma espécie. Minha

intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou

leitor que todas as metodologias, até mesmo as

mais óbvias, têm seus limites4. A melhor

maneira de exibir isso é demonstrar os limites e

mesmo a irracionalidade de algumas regras que

ela ou ele tende a considerar básicas. No caso

da indução (inclusive a indução por

falseamento), isso significa demonstrar quão

bem o procedimento contraindutivo pode ser

apoiado por argumentação. Recorde-se, sempre,

que as demonstrações e a retórica empregada

não expressam nenhuma “convicção profunda”

de minha parte. Elas apenas mostram quão fácil

é fazer, de maneira racional, que alguém nos

3 O grifo é de Feyerabend.

4 O grifo é de Feyerabend.

Paul Feyerabend

138

siga cegamente. Um anarquista é como um

agente secreto da Razão de modo que solape a

autoridade da Razão (FEYERABEND, 2011a,

p.47).

Podemos perceber que Feyerabend tenta eliminar a

crença cega na Razão5 e isso não implica em dizer que o autor

menospreze a ciência. Na verdade, Feyerabend chega a afirmar

que a ciência está doente e que o anarquismo por ele defendido

vem de encontro à ciência como um remédio. Ora, todo e

qualquer remédio que tomamos, nós o fazemos por um

determinado tempo e é essa a intenção de Feyerabend, isto é,

libertar a ciência de dogmas infundados e mesmo prejudiciais à

própria atividade cientifica, os quais são resultantes da crença

cega no racionalismo. Não obstante, há outros autores que

sugerem que o anarquismo teórico de Feyerabend deve ser

entendido como um alargamento do falibilismo, ou seja:

O melhor ângulo para compreender o conjunto

da obra de Paul Feyerabend é considera-lo

como um alargamento do falibilismo. O que

Feyerabend procura, uma e outra vez, é mostrar

que não há nenhuma forma de garantir a

verdade nem a falsidade de uma teoria

científica, mesmo com recurso a experiência;

que é irrealizável o projeto de encontrar um

fundamento seguro para o conhecimento,

mesmo que o fundamento procurado seja

5 A palavra Razão sempre aparece em seus escritos do modo exposto acima.

Isto significa dizer que Feyerabend critica o dogmatismo presente na

ciência, ou seja, procura demonstrar que o método científico é apenas mais

um entre muitas metodologias diferentes e divergentes, e é um erro pensar

que é o único método verdadeiro. Essa comparação poderia ser

exemplificada através do papel que a Igreja desempenhou na Idade Média

quando ela arrogava ser a única religião verdadeira e o mesmo, para o nosso

autor, ocorreria com o cientista que postularia que sua metodologia é a

verdade absoluta e deve se sobrepor aos demais campos.

Leonardo Edi Ignácio

139

empírico; que não passa de uma ilusão a

pretensão de que, se garantimos uma adequada

base empírica às teorias científicas, cada nova

teoria científica aceite pela comunidade

cientifica será necessariamente melhor como

representação do real do que suas antecessoras

(PORFÍRIO, 2010, p.01).

Para Feyerabend, não existe tradição boa e nem

tampouco má, as tradições simplesmente são boas ou más

somente na medida em que participamos de alguma delas como

observadores ou participantes. Assim sendo, quando estamos

imerso em alguma tradição na qualidade de observadores

“normalmente dizemos que certos grupos aceitam

determinados padrões, ou falam muito bem desses padrões, ou

querem que os adotemos” (2011b, p.30). De outro modo,

“quando falamos como participantes, igualmente usamos com

frequência os padrões sem qualquer referência a sua origem ou

aos desejos daqueles que usam” (2011 b, p.30).

Poderíamos aclarar melhor essa última aduzindo que,

por vezes, “dizemos que as teorias devem ser falsificáveis e

livres de contradição e não quero que as teorias sejam

falsificáveis e livres de contradição” (2011b, p.30). A partir

disso, podemos identificar dois modos diferentes pelos quais os

participantes ou observadores de uma determinada tradição

decidem uma questão coletivamente, isto é, através de um

intercâmbio guiado, ou de um intercâmbio aberto. “No

primeiro caso, alguns ou todos os participantes adotam uma

tradição específica e aceitam apenas aquelas respostas que

correspondem a seus padrões” (2011b, p.38). O debate

racional, diga-se de passagem, se enquadraria como uma forma

de intercâmbio guiado ao qual Feyerabend não demonstra

muito apreço como já podemos perceber, uma vez que “uma

sociedade baseada na racionalidade não é inteiramente livre”

(2011b, p.39) afinal de contas, teríamos que fazer o jogo dos

intelectuais. Com respeito ao intercâmbio aberto, ele “é

Paul Feyerabend

140

orientado por uma filosofia pragmática e a tradição adotada

pelas partes não é especificada no começo e se desenvolve à

medida que o intercâmbio vai ocorrendo” (2011b, p.39).

Dentro de um intercâmbio aberto “os participantes mergulham

nas maneiras de pensar, nos sentimentos e nas percepções uns

dos outros” (2011b, p.39) de um modo tal que as ideias deles, e

mesmo suas percepções de mundo estão sujeitas a se

transformarem completamente, ou seja, “passam a ser pessoas

diferentes, participando de uma tradição nova e também

diferente” (2011b, p.39).

Esta última abordagem, como já fora dito, leva em

consideração a teoria pragmática da observação, a qual que não

será aqui objeto de estudo pormenorizado. Thomas Kuhn, na

“Estrutura das Revoluções Científicas” (2007) também fez

considerações semelhantes às de Feyerabend e isso se dá

precisamente em períodos pós-revolucionários, pois de acordo

com o primeiro “os proponentes de paradigmas competidores

discordam seguidamente quanto à lista de problemas que

qualquer candidato a paradigma deve resolver. Seus padrões

científicos ou suas definições de ciência não são os mesmos”

(KUHN, 2007, p.190). Além disso, Kuhn também chega a

afirmar que, após uma revolução científica os cientistas

trabalham em um novo mundo o que aqui se assemelha a

passagem anterior de Feyerabend.

Outra coisa que temos que ter em mente é a crítica de

Feyerabend as cosmologias e aos padrões usualmente aceitos e

que, por sinal, são dois, a saber, o Idealismo e o Naturalismo.

Não obstante, uma terceira posição é sugerida como

alternativa, ou seja, o anarquismo ingênuo. “O idealismo pode

ser dogmático e crítico. No primeiro caso, as regras propostas

são consideradas finais e imutáveis; no segundo, há a

possibilidade de mudança” (2011b, p.42). O idealismo também

peca, segundo Feyerabend, por não levar em consideração as

práticas, mas somente os padrões abstratos, isto é, as regras e a

Leonardo Edi Ignácio

141

lógica. Já com respeito ao naturalismo, “regras e padrões são

obtidos por uma análise das tradições” (2011b, p.43) e o

problema aqui é justamente saber qual tradição escolher haja

vista que a ciência “não é uma tradição, e sim muitas, e,

portanto, faz surgir diversos padrões parcialmente

incompatíveis” (2011b, p.43). No que toca ao anarquismo

ingênuo, aqui nós encontramos uma resposta aos critérios

oferecidos por Feyerabend para a escolha de teorias, vez que o

anarquista ingênuo reconhece as limitações das regras e dos

padrões oferecidos pelas teorias científicas. O anarquista

ingênuo está na posse de duas possibilidades, a saber, a

primeira estabelece que “tanto as regras absolutas quanto as

dependentes de contexto tem seus limites” (2011b, p.42) e

disso ele pode inferir uma segunda possibilidade, ou seja, “que

todas as regras e padrões não têm qualquer valor e devem ser

abandonados” (2011b, p.42). Feyerabend concorda com a

primeira, mas não com a segunda, mais precisamente:

Argumento que todas as regras têm seus limites

e que não há uma racionalidade abrangente; não

defendo que devemos proceder sem regras ou

padrões. Também argumento em favor de uma

explicação contextual, mas, uma vez mais, as

regras contextuais não devem substituir as

regras absolutas, apenas complementá-las6.

Além disso, sugiro uma nova relação entre

regras e práticas. É essa relação, e não uma

regra específica que caracteriza a posição que

desejo defender (FEYERABEND, 2011b,

p.43).

Deve-se observar aqui que a posição demonstrada no

parágrafo anterior exibe a fase “madura” de Feyerabend por

assim dizer, uma fase em que as afirmações anteriormente

sustentadas são reformuladas e algumas abandonadas. A partir

6 Os grifos são de Feyerabend.

Paul Feyerabend

142

disso é possível observar uma grade diferença entre o seu livro

“Adeus a Razão” e “A ciência em uma Sociedade Livre” uma

vez que a posição de complemento das regras é mantida nesse

último livro e um abandono radical das regras é proposto no

primeiro.

Não obstante, devemos ainda considerar a relação

Razão e prática. Nesta etapa, duas posições, de acordo com

Feyerabend, são esboçadas. A primeira nos informa que “a

razão orienta a prática e sua autoridade é independente da

autoridade de práticas e tradições e molda a prática de acordo

com suas necessidades” (2011b, p.33). Essa posição

caracteriza-se como sendo a versão Idealista da relação. A

segunda nos aponta que “a razão recebe tanto seu conteúdo

quanto sua autoridade da prática” (2011b, p.33), ou seja, “ela

descreve a maneira como a prática funciona e formula seus

princípios subjacentes” (2011b, p.33). Essa última posição é

denominada de naturalismo e segundo Feyerabend com

frequência se atribui a Hegel, ainda que de modo errado. No

que concerne a estas duas tradições Feyerabend acha ambas

insuficientes, e isso se dá por distintas razões. Em primeiro

lugar podemos afirmar que o idealista não está disposto a

apenas “agir racionalmente”, além disso, o idealista exige que

suas ações racionais tenham resultados, e que estes

correspondam também no mundo em que ele habita. No que

tange ao naturalismo, a primeira escolha deste é “escolher uma

prática bem sucedida” (2011b, p.33) e, a partir disso ele obtém

a “vantagem de estar do lado certo” (2011b, p.33). O problema

do naturalismo é que “basear padrões em uma prática e parar

por ai pode perpetuar para sempre os defeitos dessa prática”

(2011b, p.33).

Devido à insuficiência das duas práticas anteriores,

Feyerabend sugere que elas não são coisas distintas, senão que

formam parte de um único e mesmo processo dialético. Sua

sugestão, por fim, é que a ciência deve partir de padrões

Leonardo Edi Ignácio

143

cosmológicos antropologicamente mais amplos e podemos

aclarar isso através de um exemplo, mais precisamente através

do estudo do viajante que, ao se guiar por um mapa, e na

medida em que percorre o trajeto que lhe incumbe faz

alterações complementares no mapa referindo-se a novos

caminhos, ou mesmo a coisas novas que, por vezes, não

constam no mapa original.

Por fim, tentamos responder nesse trabalho aos

equívocos cometidos contra a filosofia de Paul Feyerabend,

assim como demonstrar que este filósofo não elimina todas as

regras da atividade científica, ao contrário, ele estabelece

padrões cosmológicos e antropológicos mais gerais que

complementam a ciência a fim de que ela consiga se

desenredar dos preconceitos oriundos de um racionalismo cego

que impede o progresso da ciência.

Referências bibliográficas

FEYERABEND, P. Adeus a Razão. São Paulo: Editora

UNESP, 2010.

________. A Ciência em uma Sociedade Livre. São Paulo:

Editora UNESP, b, 2011.

________. Contra o Método. São Paulo: Editora UNESP, a,

2011.

HACKING, Ian. Representar e Intervir. Rio de Janeiro:

EDUERJ, 2012.

KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São

Paulo: Perspectiva, 2007.

________. A Tensão Essencial. Lisboa: Edições 70, 1980.

LAKATOS, Imre. História de la Ciencia y sus

Reconstruciones Racionales. Tecnos, Madrid, 1987.

Paul Feyerabend

144

LAKATOS, Imre e MUSGRAVE, Alan (Orgs). A Crítica e o

Desenvolvimento do Conhecimento São Paulo:

Cultrix/EDUSP, 1979.

SILVA, Porfírio. A teoria pragmática da observação. Kairos. Revista

de Filosofia & Ciência, Lisboa, n. 1, p. 75-92, 2010. Disponível

em: <http://kairos.fc.ul.pt/nr%201/A%20teoria%20pragmática%20da%20o

bservação.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2014.

145

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INFLUÊNCIA DE

DIFERENTES CORRENTES LÓGICAS DA

ANTIGUIDADE EM BOÉCIO

Luana Talita da Cruz1

A importância de Boécio durante a Idade Média se dá,

em grande parte, por sua obra oferecer uma ligação entre a

antiguidade tardia e o mundo medieval cristão especialmente

através da combinação de suas influências e do modo como às

utilizou em suas traduções e comentários. A relevância da

disciplina de lógica nos estudos de Boécio é bastante clara

quando se considera o modo como o filósofo responde a certas

questões como, por exemplo, o problema dos universais2. Mais

do que isso, em se tratando de lógica durante o período

medieval, não se pode negar que Boécio foi reconhecido como

uma das autoridades, se por mais nada, por suas traduções e

comentários dos tratados lógicos aristotélicos. Conforme

Gilson aponta:

A obra de Boécio é multiforme, não havendo

um só de seus aspectos que não tenha

influenciado a Idade Média, mas em parte

alguma sua autoridade foi mais difundida do

que no terreno da lógica. Devemos-lhe um

primeiro comentário sobre a Introdução

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade

Federal de Pelotas. <[email protected]> 2 Há que se considerar que, pelo menos, parte de seus argumentos são

encontrados em um dos comentários de Boécio a um texto considerado

como introdução a lógica aristotélica.

Considerações acerca da influência

146

(Isagoge) de Porfírio, traduzida em latim por

Mário Vitorino, e um segundo comentário

sobre a mesma obra retraduzida por ele mesmo;

uma tradução e um comentário das Categorias

de Aristóteles; uma tradução e dois comentários

do De interpretatione, um para principiantes,

outro para os leitores já mais avançados; as

traduções de Primeiros Analíticos, Segundos

Analíticos, Argumentos sofísticos e Tópicos de

Aristóteles; depois, uma série de tratados de

lógica: Introductio ad categoricos syllogismos,

De syllogismo categorico, De syllogismo

bypotbetico, De divisione, De differentis

topicis; enfim, um comentário sobre os Tópicos

de Cícero, que chegou incompleto até nós.

Pode-se dizer que, pelo conjunto desses

tratados, Boécio tornou-se o professor de lógica

da Idade Média até o momento em que, no

século XIII, o Organon completo de Aristóteles

(isto é, o conjunto de suas obras de lógica) foi

traduzido em latim e diretamente comentado.

Aliás, a obra lógica do próprio Boécio será

objeto de uma descoberta progressiva.

(GILSON, 2001. p. 160)

Assim sendo, de modo algum se questiona a

familiaridade do filósofo com o tema e, ao se reconhecer o

tempo e esforço dedicado à tradução, estudo e comentário de

tais obras, pode-se aceitar que se dê certo destaque à menção

de seus comentários e traduções àquelas do corpo aristotélico.

Todavia, ainda que se possa considerar que a lógica encontrada

na obra de Boécio seja, em grande parte, apenas um comentário

à lógica aristotélica, restringir seu conhecimento apenas a essa

teoria lógica pareceria, no mínimo, insensato, especialmente ao

se considerar que os estudos do autor não se restringiram as

obras de Aristóteles, nem mesmo as obras de Aristóteles

isoladas de qualquer comentário.

Luana Talita da Cruz

147

Pode-se encontrar nos escritos de Boécio, pelo menos,

duas teorias lógicas cuja influência merece certo destaque, a

saber, a teoria dos Silogismos Hipotéticos e a Teoria das

Inferências. No entanto, conforme Marenbon ressalta, Boécio

trata dos Silogismos Hipotéticos da forma confusa que o tema

era abordado durante a antiguidade tardia.

Além da silogística aristotélica, uma lógica de

termos, havia a lógica proposicional

desenvolvido pelos estóicos. Ao final da

Antiguidade havia sido completamente

confundida com a lógica de termos silogística

aristotélica. O escrito de Boécio De syllogismis

hypotheticis (Sobre Silogismos Hipotéticos) é a

melhor evidência dessa confusão que

sobreviveu.3 (MARENBON, 2007, p. 37)

Tal confusão, ao menos em Boécio, parece ocorrer na

medida em que o filósofo considera a lógica proposicional

estoica também uma lógica de termos, oferecendo uma leitura

de proposições como predicados4.

Há ainda que se considerar a Teoria de Inferências com

que Boécio se preocupa no De differentiis topicis. Tendo

comentando os Tópicos de Cícero, que trata de argumentos de

cunho retórico cuja validade não é necessária, Boécio se afasta

do autor ao argumentar que as máximas proposicionais

propostas por ele deveriam ser avaliadas conforme sua força,

sendo esta dependente de sua proximidade com uma verdade

3 Tradução livre de “Besides Aristotelian syllogistic, a term-logic, there was

the propositional logic developed by the Stoics. By late antiquity it had

become thoroughly confused with the term-logic of Aristotelian syllogistic.

Boethius’s monograph De syllogismis hypotheticis (‘On Hypothetical

Syllogisms’) is the best surviving evidence of this confusion.”

MARENBON, 2007. p. 37 4 É possível encontrar uma breve explicação de tal confusão em Boécio em

MARENBON, 2003.

Considerações acerca da influência

148

lógica5. Dessa forma, o autor parece oferecer uma interpretação

que considera mais correta à teoria de Cícero.

Todavia, ainda que em diversos comentários acerca de

questões sobre o tema Boécio pareça tender a posição

aristotélica, não se pode assumir que o filósofo considere a

lógica como condição anterior as ciências. Conforme Magee

aponta, Boécio argumenta mais de uma possível interpretação

para o uso da lógica, pois “(…) lógica possui seu próprio

objetivo filosófico, mas também é o que descobre e avalia

argumentos em outras áreas da filosofia.”6 Mais do que isso, a

ideia de que Boécio parece assumir posições conflitantes em

relação a sua interpretação da lógica, ora se posicionado ao

lado de Aristóteles e utilizando-a como conditio sine qua non,

ora aceitando o posicionamento estoico e conferindo à lógica

grau de ciência, não oferece de fato conflito se considerarmos

a proximidade do autor com a escola neoplatônica.

Cabe ressaltar que o neoplatonismo “também

incorporavam elementos de outras escolas, especialmente dos

estóicos, cujo pensamento os neoplatônicos desacreditavam e,

ainda assim, acima de tudo na ética, absorviam”7, a fim de

propor uma interpretação que julgasse correta dos escritos de

Platão. Assim, pode-se dizer que a escola oferecia uma

5 Marenbon sugere quarto razões para se considerar os escritos de Boécio

acerca dos Tópicos, em particular: 1. Seu crescente interesse pelo assumo,

parecendo acreditá-lo complementar a outras teorias, nos anos anteriores a

sua sentença; 2. sua influência durante o período medieval; 3. Sua

importância como uma das únicas fontes acerca do tema; 4. esclarecimento

no tratamento de Boécio acerca de inferências proposicionais e

condicionais. 6 Tradução livre de “(…) logic has its proper philosophical aims but is also

what discovers and evaluates arguments for application in other areas of

philosophy.” MAGEE, 2002. p. 216 7 Tradução livre de: “It also incorporated elements from other schools,

especially the Stoics, whose thinking the Neoplatonists disparaged and yet,

in ethics above all, absorbed.” MARENBON, 2007. p. 2

Luana Talita da Cruz

149

abordagem flexível o suficiente para que uma teoria pudesse

ter aspectos ao mesmo tempo criticados e incorporados e,

portanto, os estudos neoplatônicos de Boécio, ao menos na

leitura de Porfírio através de Isagoge, sugere a ideia de que o

filósofo não encontraria problemas em um posicionamento

aparentemente, para nós, conflitante em seu tratamento da

lógica.

Mesmo que não se procure, aqui, argumentar qual

posicionamento filosófico ou, até mesmo, se o pensamento de

Boécio deveria ser classificado de acordo com determinada

escola. Todavia, o reconhecimento das fontes que o filósofo

utiliza bem como do impacto que tais referências têm para a

compreensão e interpretação de seus escritos não podem ser

ignorados. A leitura da Consolação da Filosofia exige, no

mínimo, uma exegese cuidadosa.

Ao se considerar os argumentos lógicos que permeiam a

principal obra de Boécio, a saber, Consolação da Filosofia,

sobretudo o livro V, parece pouco razoável desconsiderar que

as influências do autor não se limitam aquelas do Organon.

Sendo que nesse livro encontra-se o argumento deveras

importante acerca da presciência divina e livre-arbítrio, o qual

grande parte da argumentação proposta na obra parece

pressupor, bem como as considerações do filósofo acerca da

necessidade, de modo que se pode oferecer uma interpretação

mais confiante acerca de tais influências uma vez que já se está

familiarizado, ao menos minimamente, com estilo do autor ao

tratar de argumentos lógicos ou de fundamentação lógica.

Assim sendo, há que se considerar, para um estudo

aprofundado, que não apenas Boécio conheceu e estudou

outras correntes lógicas além daquela proposta por Aristóteles,

mas seus comentários e até mesmo interpretações, algumas das

quais, consideradas hoje como meras confusões, não podem ser

apenas ignorados ao se buscar uma melhor compreensão de sua

obra. Ainda que seu projeto fosse muito além da lógica, há que

Considerações acerca da influência

150

se levar em conta que o tema foi considerado por ele

importante o suficiente para ser estudado com afinco antes de

dedicar-se a outros tópicos.

Mesmo que se aceite, e quanto a isso há, de fato, pouca

ou nenhuma dúvida, que Boécio pretendia transmitir os

ensinamentos aristotélicos, as próprias influências do autor

modificam seu projeto, na medida em que seus comentários

passam a conter também outras teorias. Ainda que a ideia de

uma lógica aristotélica pura em Boécio pareça, nesse caso, por

demais superficial para se considerar como uma possibilidade

plausível para uma leitura mais aprofundada de sua obra, não

se pretende, entretanto, com isso negar toda e qualquer

influência da lógica aristotélica para o autor, pois

(...) ainda que Boécio estivesse, de fato,

transmitindo uma doutrina fortemente

influenciada pelo estoicismo, ele acreditava

estar transmitindo o pensamento aristotélico.

Em seus trabalhos sobre argumentos tópicos, a

posição é um pouco diferente por causa da

importância do romano Cicero. Outra fonte

principal de Boécio aqui é Themistius, um

seguidor de Aristóteles, mesmo vivendo no

século IV, quando neoplatonismo era

dominante.8 ( MARENBON, 2003. p. 65)

Parece razoável observar esse ponto ainda sem esquecer

que o filósofo divide a filosofia especulativa em natural,

matemática e teológica, indicando alguma simpatia pelo

posicionamento aristotélico. No entanto, as diferentes

8 Tradução livre de: “(…) though Boethius was in fact conveying a doctrine

heavily influenced by Stoicism, he believed that he was transmitting

Aristotelian teaching. For his works on topical argument, the position is

slightly different because of the importance of his fellow Roman, Cicero.

But Boethius’s other main source here is Themistius, a follower of Aristotle

although living in the fourth century, when Neoplatonism was dominant.”

MARENBON, 2003.

Luana Talita da Cruz

151

influências que se pode encontrar em Boécio, até mesmo na

interpretação de algumas dessas influências, exigiriam alguma

justificação ao defender que o autor, de fato, compromete-se

com um posicionamento ou outro, especialmente quando

grande parte das teorias lógicas que comentou permeiam e

servem de apoio para os argumentos da Consolação.

Referências bibliográficas

BOÉCIO. The Consolation of Philosophy. Translated by

Victor Watts. London: Penguin Books, 1999.

GIBSON, M. (ed.) Boethius. His Life, Thought and

Influence. Oxford: Blackwell, 1981.

GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Encontrado

em: <http://www.scribd.com/doc/100624544/Etienne-Gilson-

A-Filosofia-Na-Idade-Media-Filosofia-Medieval>. Último

Acesso em: 23/11/2014.

MAGEE, John. “Boethius”. In.: Blackwell companions to

philosophy: A companion to philosophy in the middle ages.

Oxford: Blackwell Publishing, 2002.

MARENBON, John. Boethius, New York: Oxford University

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______________. Medieval Philosophy: An Historical and

Philosophical Introduction. Cambridge: Cambridge

University Press, 2007.

______________. "Anicius Manlius Severinus Boethius". In.:

The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2013

Edition), Edward N. Zalta (ed.). Encontrado em:

<http://plato.stanford.edu/archives/sum2013/entries/boethius/>.

Último Acesso em: 20/05/2014.

SPADE, Paul Vincent. “Boethius against Universals: The

Argument in the Second Commentary On Porfiry. Último

Considerações acerca da influência

152

Acesso em: 25/12/2014. Encontrado em:

<http://www.pvspade.com/Logic/docs/boethius.pdf>

153

DA ANALÍTICA EXISTENCIAL À METAFÍSICA

DO DASEIN: O TEMA DA LIBERDADE

Marcelo Vieira Lopes1

1. O tema da liberdade em Ser e Tempo

A questão da liberdade em Ser e Tempo têm, como

grande parte dos enunciados fenomenológicos expressos por

Heidegger, uma ambiguidade fundamental, constitutiva, que

não deixa reduzi-lo a um sentido único, que pode ser expresso

em termos de uma caracterização geral do termo. Buscaremos

analisar no que se segue as transformações implicadas no

conceito de liberdade, delimitado entre o período da analítica

existencial (Ser e Tempo, 1927) e os rumos tomados por tal

conceito, naquela que é caracterizada como a “década

metafísica” de Heidegger (CROWELL, 2000), a saber, o

período imediatamente posterior a Ser e tempo, até a chamada

virada (Kehre) do seu pensamento2. Começaremos com uma

breve caracterização da noção de liberdade no contexto de Ser

e tempo. Como já apontamos brevemente, a noção de

1 Graduando do curso de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria.

E-mail: [email protected]

2 Não entraremos na discussão do que significa a chamada Kehre do

pensamento heideggeriano. Apenas apontaremos a sugestão de alguns

autores, tal como JARAN, 2010, que sugere que o projeto de uma

metafísica do Dasein, posterior a Ser e Tempo, traria uma virada antes

mesmo da virada (Kehre), no interior do próprio projeto metafisico de

Heidegger.

Da analítica existencial à metafísica do dasein

154

liberdade, como boa parte das noções heideggerianas, são

ambíguas e/ou não discutidas de maneira aprofundada, mas são

como que “jogadas” dentro de um contexto ontológico

existencial. Dessa forma, para compreendermos minimamente

o que significa a noção de liberdade no horizonte da analítica

da existência, é preciso que se faça uma breve caracterização

do projeto visado por esta. Não nos deteremos nos seus

pormenores, somente numa rápida exposição de suas linhas

gerais, em vista da clarificação para a delimitação do conceito

de liberdade.

A analítica existencial surgida em Ser e Tempo, tem

como meta uma investigação de caráter transcendental, visando

à explicitação daquelas estruturas mais básicas do ente humano

na compreensão de algo enquanto algo determinado, isto é,

daquilo que Heidegger denomina “ser”. Embora não com este

nome, investigações recentes mostram que já aparecem traços

de uma investigação semelhante na obra do jovem Heidegger.

(ESCUDERO, 2010). Dado que ser é sempre ser de um ente,

Heidegger elege o Dasein - o ente que possui o modo de ser da

existência como ente privilegiado para a análise de suas

estruturas. A partir de uma correta compreensão do modo de

ser deste ente, diferenciando-o em relação a outros modos de

ser, tais como a disponibilidade (Zuhandenheit) e a

subsistência (Vorhandenheit), com vistas à investigação do

sentido de ser em geral, mostra-se que o Dasein é o ente

primeiro a ser investigado, anterior ao projeto de investigação

sobre o sentido de ser. É somente a partir da determinação

particular desse ente cujo modo de ser é o da existência

(Existenz), que se tornará possível a investigação do sentido de

ser em geral.

O sentido de ser da existência na sua determinação, não

pode ser apreendido categorialmente, como uma coisa, mas

antes, apenas como modos, maneiras de ser, como

possibilidades. A partir da noção de possibilidade, podemos

Marcelo Vieira Lopes

155

caracterizar a existência, modo de ser do Dasein, como

articulando-se, basicamente em dois modos: autenticidade e

inautenticidade. Na divisão I de Ser e tempo, o Dasein lançado

no mundo dos afazeres cotidianos, desde sempre ocupado é

como que privado de liberdade. O Dasein decaído nas formas

inautênticas de vida, já desde sempre incorporou tacitamente

regras e condutas constitutivas de uma herança histórica. O

Dasein que aparece na divisão I deve ser liberado em suas

possibilidades mais íntimas, algo que só poderá dar-se a partir

dos recursos metodológicos e explicativos fornecidos pela

divisão II. Nesse sentido, a noção de Angústia desempenha um

papel metodológico de grande utilidade para o reconhecimento

do Dasein em sua liberdade. Há, porém de destacarem-se dois

níveis de liberdade em Ser e Tempo, tendo como pano de fundo

a diferença ontológica. É justamente nesse sentido que

falávamos no início de nosso trabalho de uma ambiguidade

constitutiva de tais termos.

Segundo a noção de diferença ontológica - que não

aparece textualmente em Ser e Tempo, mas opera como

pressuposto, é preciso distinguir a noção de liberdade em

sentido ontológico-existencial, isto é, como transcendental,

condição de possibilidade do ôntico e a liberdade existenciária,

isto é, a projeção livre em possibilidades concretas. Nesse

sentido, fala-se de uma “Afirmação apodítica” da noção de

liberdade: dado que o Dasein é ser-no-mundo, enquanto ser-no-

mundo possui as características ôntico-ontológicas deste ente

que é mundano. Se a partir da divisão II, principalmente

através da noção de angústia, pode-se encontrar algo assim

como um Dasein livre, “desconectado” dos afazeres cotidianos,

pode-se também afirmar que há uma liberdade constitutiva do

modo de ser da existência. Assim, com as delimitações feitas

acima com base na diferença ontológica, caracteriza-se o

Dasein como ente dotado de uma liberdade ontológica

inalienável. Em resumo, no horizonte de Ser e Tempo, a

Da analítica existencial à metafísica do dasein

156

modalidade apodítica da afirmação diz que seja qual for o ente

dotado da estrutura de ser-no-mundo, este deve ser livre (HAN-

PILE, 2013.). Deste ponto de vista, a liberdade é coextensiva

ao Dasein, na medida em que desempenha o papel de uma

compreensão projetiva como o seu em-vista-de: isto significa,

em poucas palavras, que a liberdade ontológica no contexto de

Ser e Tempo implica a condição de possibilidade de toda a

agência concreta do Dasein.

Como condição de toda a agência do Dasein, a

liberdade abre um espaço normativo, isto é, a capacidade de

vinculação a entes a partir do em-vista-de. Em outros termos,

podemos dizer que o Dasein é capaz de uma autodeterminação

vinculada a leis e normas, mas ainda assim responsivo a elas. A

liberdade de vinculação aparece como requisito para

comportamentos com entes dos mais diferentes tipos. Nesse

sentido, este requisito não é imposto externamente ao Dasein,

isto é, “Não há valores ou leis independentes de nós mesmos: a

liberdade prática é uma autolegislação.” (INWOOD, 1999).

Nesse sentido, o Dasein é livre, embora sempre responsivo aos

entes em conformidade com o em-vista-de.

Também a partir de uma concepção existencial de

liberdade, tal como Heidegger pretende apresentá-la, podemos

dizer que a liberdade, jamais pode ser considerada como um

processo de tipo causal. Se assim fosse, utilizaríamos o modelo

de causa e efeito na caracterização de um tipo ontológico

diferenciado como é o Dasein, implicando, portanto, tomarmos

o modelo teórico-científico, característico do modo de ser do

ente subsistente (Vorhandenheit). Esta forma de compreender a

liberdade existencial equivocar-se-ia ao assimilá-lo com um

ente meramente natural, subsistente. Para não incorrer neste

erro categorial, é necessário que se tome o Dasein em termos

de possibilidade, ao invés de atualidade. A liberdade, neste

sentido, não pode ser explicada em termos causais, mas ao

contrário, deve ser tomada como um “fato”, “não causado ou

Marcelo Vieira Lopes

157

fundado, mas a condição de todo fundamento e causação”

(INWOOD, 1999). Esta noção nos dá condições para

compreendermos a liberdade ligada à existência como

transcendência para mundo, noção que aparecerá nos textos

imediatamente posteriores à Ser e Tempo.

Voltando ao tema da liberdade no horizonte conceitual

de Ser e Tempo, é necessário que se dê o passo além da divisão

I, onde o Dasein ainda é privado de liberdade, caracterizado

através de termos como, perda, alienação, etc. É nesse sentido

que a divisão II desempenha um importante papel na

descoberta do Dasein e de sua própria liberdade. Na

manifestação do fenômeno da angústia, o Dasein confronta-se

com a liberdade para a escolha de si mesmo. Isto é, o Dasein é

“livre para a liberdade de escolher-se a si mesmo ou não. Em

caso afirmativo, tornar-se-á existencialmente livre” (HAN-

PILE, 2013). A ligação da liberdade ontológica, atravessado

pelo conceito de angústia, com nossa liberdade existenciária,

afirma o caráter de escolha da escolha de si mesmo como uma

“escolha finita” (HAN-PILE, 2013). Isto é, uma vez posto em

estado de angústia, o Dasein não mais pode retornar a seu

estado anterior de não-angustiado. Frente a esse estado de

angústia que obriga o Dasein a escolher – embora essa escolha

possa dar-se negativamente (escolher não escolher a si

mesmo), só assim este se torna existencialmente livre. “O

escolher escolher a si mesmo” como a dupla estrutura da

escolha mostra o caráter de liberdade do Dasein angustiado,

enquanto podendo assumir sua historicidade autêntica, de

maneira ontologicamente livre.

2. Críticas à concepção kantiana de liberdade

Nos termos da discussão de Heidegger sobre o

problema da liberdade, buscando pensá-la em suas

Da analítica existencial à metafísica do dasein

158

determinações ontológicas, um importante interlocutor com

relação ao tema é Immanuel Kant. Na interpretação

heideggeriana da concepção de Kant sobre o problema da

liberdade, afirma-se que esta basicamente, consiste em pensar o

universo em termos cosmológicos, como um todo entrelaçado

causalmente. Desse ponto de partida, a liberdade consistiria em

um tipo especial de causa não redutível ao nível material de

causação, mas inserindo-se nesse entrelaçado. Liberdade aqui

aparece ligada a noção de uma “causa livre”, com o poder de

iniciar novas séries causais sem ser por elas mesmas causada.

Na discussão kantiana, segundo Heidegger, a concepção

metafísica tradicional do conceito de liberdade orientada a

partir da noção de causalidade, atinge o seu expoente mais

paradigmático. A liberdade, desenvolvida em termos kantianos

bifurca-se entre uma liberdade em sentido cosmológico e em

sentido prático. Segundo Heidegger é pela via cosmológica da

noção de liberdade que será pensada a liberdade humana. Mas

pensar a liberdade humana em termos causais não faz justiça

àquilo que Heidegger chama o fenômeno originário da

liberdade, a saber, o caráter possibilitador da liberdade na

abertura para mundo e para o ser, característica do ente

humano. A liberdade, pensada em termos de causalidade, só

pode ocorrer em dependência de seu sentido originário. Ela é

antes fundada e derivada de uma noção mais primitiva da

liberdade.

Apoiando a crítica de Heidegger a essa noção de

liberdade em termos causais, surgem as teses de que: 1. A

liberdade, pensada em termos de causalidade, conduz a uma

tendência reificadora do fenômeno, tratando-a como fenômeno

intramundano, isto é, derivado; e 2. Ainda a liberdade pensada

em termos causais é incapaz de dar conta do fenômeno

específico da liberdade humana, entendido primariamente

como transcendência, abertura para mundo. A concepção

kantiana de liberdade fica presa ainda ao domínio de uma

Marcelo Vieira Lopes

159

ontologia da presença, reificando uma estrutura fundamental do

ente humano (VIGO, 2011).

Nos termos da concepção desenvolvida por Heidegger

sobre o problema da liberdade humana, esta também se bifurca,

à maneira kantiana, mas difere radicalmente desta. Tal

bifurcação consiste basicamente na caracterização de uma

liberdade negativa e outra positiva. A liberdade negativa ganha

esse status por ser sempre “liberdade de...” e diz respeito ao

fato intramundano de um “chegar a ser livre”, de uma

desvinculação, ou seja, libertando-se de toda determinação

alheia. Livre nesses termos é tudo aquilo que não está

vinculado. Já com relação à segunda via da liberdade, a

positiva, esta é caracterizada como um “ser livre para...”. Isso

significa, distanciando-se da concepção negativa, que tal “ser

livre para...” reside em termos de uma autodeterminação para.

Esta concepção dialoga como já observamos, com a

perspectiva bifurcada da experiência da liberdade em Kant.

Porém, em Kant, ao contrário do que acontece em Heidegger, a

liberdade transcendental, que é expressa em termos

cosmológicos, logo, causais, é aquela que funda e determina a

liberdade prática, aquela própria do ser humano. A recusa de

Heidegger da doutrina kantiana é justamente frente a esse

embate: por que Kant jamais abandona uma concepção da

liberdade humana caracterizada em termos meramente causais?

(VIGO, 2011).

A liberdade para Heidegger, concebida em termos de

causa livre, fica ainda, sem mais, refém de uma noção geral e

indiferenciada de causalidade orientada desde a ideia de

efetivação, ou produção de efeitos (VIGO, 2011). Assim,

também a liberdade prática fica como que presa a uma noção

de causalidade natural que não diz respeito à apreensão do

correto modo de ser do ente humano. Nesse sentido, a

abordagem heideggeriana parece levantar dois problemas a

partir da leitura de Kant. O primeiro relaciona-se à nivelação

Da analítica existencial à metafísica do dasein

160

da questão da liberdade com a ontologia da presença, através

da noção de efetivação, remetendo a ideia de uma realidade

efetiva (Vorhandenheit). Para Heidegger, o modo de ser do

“ente que é livre” (VIGO, 2011) permanece inquestionado na

investigação kantiana. O segundo problema, intimamente

relacionado ao primeiro, reclama que a noção de liberdade

assim esboçada não caracteriza corretamente o modo de ser do

ente livre, e que, ao não fazê-lo, não considera a transcendência

constitutiva do ente humano, compreendido como Dasein.

Assim, a concepção que toma a liberdade em termos causais

não a reconhece como fenômeno derivado e intramundano, na

medida em que está relacionado à causação entre entes. Um

nível mais básico de liberdade, fundante da concepção vulgar é

pensada desde o ponto de vista da transcendência do Dasein

para o mundo, mundo aqui compreendido como horizonte de

todo aparecer dos entes intramundanos (VIGO, 2011).

Dizer que a liberdade tem um tipo fundamental de

conexão com a transcendência do Dasein significa dizer que é

exatamente por que o Dasein é livre a nível ontológico que há a

possibilidade de uma abertura para mundo e o encontro com

entes intramundanos. A pergunta pela essência da liberdade

revela-se então como uma pergunta diretriz de toda a

metafísica, na medida em que não é outra pergunta senão a

pergunta pelo ser do ente. (VIGO, 2011). A problemática da

liberdade traz assim o caráter essencialmente mostrativo da

liberdade, isto é, como aquilo que detém as condições de

possibilidade do aparecimento dos entes. Portanto, todo o

comportamento com relação a entes, sua vinculação, só é

possível mediante o reconhecimento dessa estrutura mais

básica do fenômeno originário da liberdade.

Marcelo Vieira Lopes

161

3. Metafísica do Dasein como metafísica da

liberdade

Aquilo que frequentemente é caracterizado como uma

virada metafísica do pensamento heideggeriano, isto é, uma

“virada já antes da virada” (JARAN, 2010) após a analítica

existencial de Ser e Tempo, também se compreende como uma

virada no interior da própria ontologia fundamental, no sentido

de preencher lacunas que somente as duas seções de Ser e

Tempo não seriam capazes de responder, tal como o fenômeno

originário da liberdade. No projeto geral de uma metafísica do

Dasein, o termo “metafísica” adquire um sentido muito

especial. Diante da recusa de uma metafísica no sentido

tradicional, ou ontoteológica, na linguagem heideggeriana, a

metafísica, no sentido originário que é atribuído por Heidegger

é tomada como característica fundamental do modo de ser do

Dasein. Como característica fundamental desse ente, o Dasein

aparece bifurcado em dois modos fundamentais, a saber,

Existência (Existenz) e Ser-lançado (Geworfenheit),

correspondendo essas, por sua vez às duas estruturas que na

metafísica tradicional, ao menos desde Aristóteles, foram

tomadas por um lado como ontologia e por outro, teologia.

Dessa forma, o estatuto da analítica da existência humana que

Heidegger concebe como sendo o primeiro passo no programa

de uma interpretação das condições formais do aparecer dos

fenômenos em uma experiência significativa, aparecido em Ser

e Tempo, transforma-se radicalmente em um empreendimento

metafisico no período posterior à sua obra magna, entre 1927 e

1930.

À luz dessa noção de metafísica do Dasein, aparece a

chamada metontologia na forma de uma transformação

imanente da ontologia fundamental, como o questionamento do

ente no todo, isto é, da teologia na linguagem tradicional ou

Ser-lançado (Geworfenheit) à luz das conquistas da ontologia

Da analítica existencial à metafísica do dasein

162

fundamental. É nesse sentido, portanto, que ontologia

fundamental e metontologia juntas darão inicio a uma

metafísica do Dasein desde o fim de Ser e tempo até o começo

dos anos 1930. Em certa medida, a metafísica do Dasein afasta-

se do projeto de Ser e Tempo e trata, muito antes, do vínculo

radical que entrelaça o existir do homem ao ente no todo, ou

teologia (Geworfenheit). Retirando daí a conceptualidade

necessária para o tratamento da natureza humana, caracterizada

como a “finitude no homem” (HEIDEGGER, 1996) e para o

reencaminhamento da questão do ser, não mais apenas em

termos da temporalidade, mas agora relacionado à

transcendência, ou liberdade do Dasein.

A partir dessa unidade temática, a metafísica do Dasein

pode ser lida como uma “hermenêutica da vincularidade

humana a entes” e culmina em um novo conceito de homem, o

homem como “formador de mundo” (HEIDEGGER, 2006). É

no período intermediário entre Ser e Tempo e os anos 30 que

Heidegger concebe a ideia de uma “liberdade metafísica”

situada no seio da relação do Dasein com o mundo, assim, no

seio de todo questionamento ontológico. Nesse sentido, antes

de uma superação da metafísica operada pelo filósofo, é

necessário que falemos um pouco do caráter positivo que este

pretendeu fornecer à metafísica do Dasein, metafísica

compreendida nos termos que já explicitamos. O conceito de

metafísica que Heidegger busca desenvolver, sob o nome de

uma “metafísica científica”, desvincula-se de entes como Deus

ou o mundo, em sentido ôntico, aquilo que ele chamará de o

“conceito vulgar de metafísica”, mas antes, busca lidar

sobriamente com uma “ciência transcendental do ser”

(HEIDEGGER, 2012).

Central para o desenvolvimento do projeto de uma

metafísica do Dasein é a noção de transcendência.

Transcendência, nesse período refere-se a uma relação de

“ultrapassamento” do Dasein em relação aos entes. Na medida

Marcelo Vieira Lopes

163

em que possui compreensão de ser, o Dasein já os transcendeu.

A transcendência, nesse sentido, pertence desde sempre ao

Dasein como uma constituição fundamental de seu ser,

ocorrendo anteriormente a todo e qualquer comportamento

dirigido a entes, e nesse sentido, como condição de

possibilidade. O desenvolvimento da noção de transcendência

operante em Sobre a Essência do Fundamento, como uma

definição da essência do Dasein não mais em termos de

cuidado (Sorge), agora indica a perspectiva desde sempre

“ultrapassante” do comportamento do Dasein com relação aos

entes. É sobre a base da noção de transcendência que

encontramos o desenvolvimento da noção de liberdade, central

para a problemática e o desenvolvimento de uma metafísica do

Dasein.

A concepção de uma metafísica do Dasein passa então,

como tentamos mostrar, por dois momentos constitutivos: 1. A

noção de liberdade e sua confrontação com a doutrina kantiana

e 2. A metafísica pensada por Heidegger como repetição

(Wiederholung) da problemática aristotélica, a saber, a

bifurcação entre ontologia e teologia, ou ainda, o problema do

ente enquanto ente e do ente no seu todo. (JARAN, 2010).

Considerações finais

A passagem do projeto da analítica existencial de Ser e

Tempo, para uma metafísica do Dasein, como pensamos ter

demonstrado, é atravessada por um paralelo entre ontologia

fundamental e metontologia. Ambos os temas na tentativa de

convergir para a discussão do problema da filosofia primeira e

da teologia. Passando pela formulação dos conceitos de

transcendência e de liberdade, como conceitos chaves dessa

fase do pensamento heideggeriano, podemos ver seu papel

como intrinsecamente ligado a elas.

Da analítica existencial à metafísica do dasein

164

Na concepção heideggeriana, corresponderão aos

conceitos chave da ontologia tradicional (semelhante às

características da noção de cuidado na ontologia fundamental),

a noção de Existência (Existenz) e Ser-lançado (Geworfenheit).

Apresenta-se assim, no pano de fundo heideggeriano, ao

abordar o problema da filosofia primeira e da teologia

aristotélica, o seu correspondente existencial, a saber, o

problema do ser e do mundo, determinados agora como o

“conceito autêntico da metafísica” (HEIDEGGER, 2012).

Deixamos então, a perspectiva, que não poderá ser

concluída neste espaço, de reconstruir a metafísica do Dasein

em três diferentes momentos: 1. A passagem da ontologia

fundamental de Ser e Tempo; 2. A fase transcendental de Sobre

a Essência do Fundamento; e 3. A fase correspondente ao

problema da liberdade de A Essência da Liberdade Humana,

que perdura até o fim de seu empreendimento metafísico.

(JARAN, 2010). O esboço que tentamos oferecer de uma

metafísica do Dasein é caracterizado então como atingindo seu

ponto mais alto na caracterização do conceito metafísico de

liberdade – considerado como a condição de possibilidade de

toda liberdade concreta, ôntica.

Referências bibliográficas

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End of Being and Time. Philosophy and Phenomenological

Research, Vol.LX, N° 2, 2000.

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Tradução de Gred Ibscher Roth. México: Fondo de Cultura

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__________________. Os Conceitos Fubdamentais da

Metafísica: Mundo, Finitude, Solidão. Tradução de Marco

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Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

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International Journal of Philosophical Studies Vol. 18(2), 205–

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(Editor). Studia Heideggeriana. Heidegger-Kant. Vol. 1,

Buenos Aires: Editoral Teseo, 2011.

167

A DIFERENÇA ENTRE MENÇÃO E

CARACTERIZAÇÃO DOS ENDOXA NA FILOSOFIA DE

ARISTÓTELES

Mariane Farias de Oliveira1

I.

Sabemos pelos textos de Aristóteles que “ta endoxa”

são as opiniões reputadas, compartilhadas pela maioria (que se

distingue, por sua vez, da multidão “ói pollói”), ou pelos

sábios, ou, ainda, pelos mais ilustres dentre eles, e, por serem

crenças valorizadas por Aristóteles no sentido de serem

elencadas, na maior parte de seus tratados, ao início de cada

investigação, quem se propõe a investigar determinado assunto

deve, portanto, estar atento a este seleto grupo de opiniões que

parecem possuir caráter autoritativo sobre o objeto de

investigação. Nessa medida, Aristóteles indica mais do que, em

uma primeira leitura, podemos entender como a importância de

que “ta endoxa” não sejam ignorados no percurso

investigativo, mas sim que eles sejam os próprios componentes

da análise que o Estagirita empreende em determinados

tratados.

No entanto, entender os endoxa como opiniões

reputadas e salientar a necessidade de sua presença em

determinadas investigações ainda nos diz muito pouco acerca

de sua natureza e do papel ou, ainda, dos papéis que as

1 (UFRGS). E-mail para contato: [email protected].

A diferença entre menção e caracterização

168

opiniões reputadas desenvolvem na filosofia de Aristóteles,

especialmente em sua filosofia moral. Encontramos diversas

recomendações acerca do uso dos endoxa para diversos tipos

de investigação (cf. EE I 3 1214b30, EE I 6 1216b26-35, EE

VII 1 1235a 30-32, EN I 5, 1095a27-29, EN VII 1, 1145b5,

Ret. I 2 1356b30-34)2, mas somente duas caracterizações em

sentido próprio surgem do texto de Aristóteles como uma

tentativa de definição ou, pelo menos, apresentação das

opiniões reputadas qua reputadas (Tóp. I 1 e I 10).

A distinção entre menção e caracterização é uma

tentativa de conferir inteligibilidade ao curioso fato de que é

comum, em boa parte dos tratados aristotélicos, que o filósofo

dê uma indicação prévia de seu procedimento investigativo, o

que geralmente inclui os endoxa, mas, apesar de inúmeras

menções às opiniões reputadas, não apresenta nenhuma

definição desse ponto central de seu método, o que nos leva a

pensar que estaria implícita a ideia de que os endoxa já foram

definidos em outro texto, quando apenas mencionados. O que

entendemos aqui como “menção” é uma evocação de um termo

técnico sem defini-lo ou caracterizá-lo. O que entendemos

como “caracterização” é uma tentativa de definição que não se

faz suficientemente explanatória para ser tomada stricto sensu

como tal. Uma definição, grosso modo, possui o elemento

explanatório capaz de abranger e explicar a natureza do objeto

em todos os casos, ou seja, universalmente.

Diante dessas distinções, vejamos agora as

caracterizações que surgem nos Tópicos: Endoxa, por outro lado, são aquelas [opiniões]

que se baseiam no que pensam todos, a maioria

2 As obras serão abreviadas de acordo com o que se segue: Ethica

Eudemia (EE), Ethica Nicomachea (EN), Retórica (Ret.) e Tópicos

(Tóp.).

Mariane Farias de Oliveira

169

ou os sábios, isto é, a totalidade dos sábios, ou a

maioria deles, ou os mais renomados e ilustres

entre eles. (100b20-22)

Ora, uma proposição dialética é uma questão

em consonância com a opinião (endoxon)

sustentada por todos, ou pela maioria, ou pelos

sábios (todos os sábios, a maioria destes ou os

mais afamados entre estes) e que não é

paradoxal […]. (104a10-12)

A segunda passagem encontra-se em outro contexto de

discussão dos Tópicos, acerca das proposições dialéticas, que

não será contemplado em nosso trabalho, mas o importante é

atentar para o fato de que é retomada a caracterização de Tóp. I

1. Isso parece indicar que Aristóteles pretendeu ter

estabelecido, no início do tratado, determinadas noções-chave,

como, por exemplo, a de endoxon, de que se utilizará nas

futuras discussões que impõe. Em Tóp. I 1 vemos uma possível

formulação de definição stricto sensu, do tipo “x é y”, em que

“y” é o elemento explanatório da natureza de “x”, e explica,

portanto, todo e qualquer caso instanciado por “x”. No entanto,

o definiens de um endoxon não parece suficientemente

explanatório, pois o critério discriminatório dos endoxa é

bastante fraco por sua ambiguidade na medida em que admite

três “níveis” de caracterização: as crenças sustentadas por

todos ou a maioria, a totalidade dos sábios ou a maioria deles

ou apenas alguns dentre eles que sejam ilustres. O entendemos

por caráter ambíguo e, consequentemente, fraco do definiens,

aqui, é o fato de que essa aparente definição é disjuntiva e não

há, na teoria da definição aristotélica, nenhuma maneira de

haver definições disjuntivas. Isso significa que definiens não

pode ser tomado em sua totalidade (a maioria, os sábios e os

mais ilustres), pois eles não conformam um único elemento

explanatório – pois há possibilidade de conflito entre suas

opiniões, tornando disjuntivo este grupo.

A diferença entre menção e caracterização

170

Podemos tomar como estabelecido que a caracterização

dada nos Tópicos não nos diz que os endoxa significam, não

nos fala satisfatoriamente sobre sua natureza, mas aponta-nos

um aspecto dessas opiniões: seu caráter reputável. Contudo,

isso não significa que tal apontamento nos diga pouco a

respeito dos endoxa. Temos pelo menos duas maneiras de ler

essa passagem que apresentam ênfases diferentes na

compreensão do caráter reputável: (1) a reputabilidade

amparada na tese geral da tendência humana à verdade, se

entendermos esta passagem indicando uma ordem decrescente

de reputabilidade a partir da aceitação dos endoxa; e (2) a

reputabilidade amparada igualmente pelos três “subgrupos”

mencionados – todos (ou a maioria), os sábios (ou a maior

parte deles), ou os mais ilustres dentre os sábios –, que advêm

de uma leitura de Tóp. I 1 em que Aristóteles não estaria

privilegiando nenhum dos subgrupos qua subgrupo, mas a

reputabilidade seria encontrada através de outra coisa, a saber:

um método ou procedimento.

No primeiro caso, se extrairmos as consequências do

sentido “decrescente” do critério da reputabilidade e da

tendência do homem à verdade, podemos dizer que os endoxa

são dignos de aceitação porque tendem maximamente à

verdade. Podemos dizer também, de modo inverso, que quanto

mais aceitação um endoxon obtiver, mais indicações teremos

de que ele aponta para a verdade, ou, nas palavras de Berti,

“serão verdadeiros na maior parte dos casos” (p.75).

Há um problema que se coloca ao darmos como critério

de reconhecimento dos endoxa a máxima aceitação comum e o

fato de que isso é explicado pela tendência do homem à

verdade. De fato temos fortes razões pelo trecho mencionado

de EE I 6, por exemplo, a aceitar que a própria natureza do

homem garanta sua tendência à verdade. Mas isso parece não

ser condição suficiente para assegurar que suas crenças, de

modo geral, terão a mesma tendência e para assegurar que

Mariane Farias de Oliveira

171

quanto mais homens sustentarem tal crença, mais probabilidade

ela apresenta de ser verdadeira. Essa condição certamente é

necessária para indicar a reputabilidade e tendência à verdade

das opiniões, mas seria preciso ainda garantir que não haja a

possibilidade de que acidentalmente todos os homens estejam

errados a respeito de determinada crença – o que contraria

todas às menções de Aristóteles de que devemos confiar e

utilizar os endoxa como pontos de partida na investigação,

comprometendo, assim, a reputabilidade e o caráter autoritativo

desse grupo seleto de crenças.

Uma tentativa de afastar essa possibilidade se encontra

no segundo tipo de ênfase dada à reputabilidade que

pretendemos explorar, a saber: a necessidade de um método,

ou, mais especificamente, de um trabalho analítico diante do

conjunto dos endoxa. Nesta perspectiva, Barnes não abandona

a ideia de que os homens tendam naturalmente à verdade e que

isso seja uma das condições de reconhecimento e

reputabilidade dos endoxa, mas, para tentar afastar a

possibilidade de que, a respeito de determinada crença, todos

possam estar errados, Barnes interpreta a caracterização de

Tóp. I 1 como um “elenco” daquelas opiniões que são dignas

de análise, mas não parece ver mais ou menos reputabilidade

nos endoxa, uma vez que sua descrição do conflito parece

exigir igual autoridade entre as crenças:

De novo, ta endoxa podem conflitar: se a

maioria dos homens está em desacordo com os

sábios, ou com os mais reputáveis dentre eles;

ou se os sábios estão em desacordo entre si; ou

se já alguma disputa entre os mais reputáveis

dos sábios – em todos esses casos, opiniões

opostas serão igualmente endoxa. (2010, p.197)

A questão da reputabilidade, tal como entendida por

Barnes, parece ser mais profícua na medida em que nos fornece

mais meios de partir para a discussão do que possam significar

A diferença entre menção e caracterização

172

os endoxa quando consideramos a suposição do conflito entre

eles. A suposição do conflito faz parte do que Barnes chamou

de “método dos endoxa”, cuja tese principal é de que a

prescrição contida em EN VII 1 – da qual trataremos em breve

–, que supõe o procedimento analítico que mencionamos

anteriormente, sustentaria um método comum que Aristóteles

desenvolve em suas investigações. Dito isto, consideraremos

agora o que Barnes considera ser o “método dos endoxa” e,

dessa maneira, partiremos para a análise das menções aos

endoxa, saindo do domínio da caracterização em que nos

encontrávamos até o momento, analisando duas menções que

dizem respeito a prescrições metodológicas: uma da Ethica

Nicomachea e outra da Ethica Eudemia.

II.

Para falar do suposto método, Barnes parte de uma

conhecida menção aos endoxa que surge ao começo da

discussão acerca da akrasia na Ethica Nicomachea VII 1 (=EE

VI, 1). Nela, Aristóteles faz a seguinte prescrição

metodológica: “A exemplo do que fizemos em todos os outros

casos, passaremos em revista o que nos aparece e, após discutir

as dificuldades, trataremos de provar, se possível, a verdade de

todas as opiniões reputadas a respeito desses afetos da mente –

ou, senão todas, pelo menos do maior número e das mais

autorizadas (...)” (EN VII 1, 1145b2-6).

Barnes (2010, p. 183) distingue três importantes passos

a partir dessa prescrição: (1) estabelecer (τιθέναι) o que parece

ser o caso, (2) percorrer (διαπορεῖν) as aporias ou dificuldades

e (3) provar (δεικνύναι) o que for possível das opiniões

reputadas. Os passos (1) e (2) são praticamente inseparáveis na

análise, pois o próprio levantamento doxográfico leva-nos à

constatação das aporias. Segundo Barnes, haverá aqui dois

Mariane Farias de Oliveira

173

momentos de compreensão das opiniões reputadas: (1) o

primeiro será o momento do levantamento dessas opiniões, que

chamaremos de “endoxa preliminares” ou “indícios”, pois

podem apresentar inconsistências, de maneira que, por

definição, não consistirão em um conjunto, dado que um

conjunto precisa ser consistente. Essa listagem preliminar das

opiniões reputadas, uma vez que essas opiniões disputam a

verdade, costumeiramente de maneira confusa, como nos

indica Aristóteles, levar-nos-á às aporias a serem percorridas,

uma vez que muitas opiniões estarão em conflito. E (2) o

segundo momento será o que, depois de percorridas as aporias,

teremos os “endoxa clarificados” ou “modelos”. Dito isso, fica

claro que o processo de percorrer as aporias citado na

passagem visa, em última análise, preservar o máximo possível

dos endoxa estabelecidos no início, de modo a formar um

conjunto consistente através da análise das inconsistências

presentes nas próprias opiniões.

Sobre o terceiro passo, (3) “provar o que for possível

das opiniões”, este será o resultado de “percorrer as aporias” e

reformular as opiniões reputadas de tal maneira que estejam o

mais clarificadas possíveis para formarem um conjunto

consistente. Barnes (2010, p.185) identifica a noção de

“provar” com uma espécie de resolução dos problemas que o

levantamento preliminar dos endoxa provocou. Sobre este

ponto, o comentador ainda ressalta que a verdade será

encontrada exclusiva e exaustivamente no conjunto

remanescente das opiniões reputadas. O que conseguimos

entender aqui por “exaustivo” concerne ao fato de que esses

endoxa formarão um conjunto maximamente consistente, ou

seja, nenhuma outra opinião poderá fazer parte dele sem torná-

lo inconsistente, e, portanto, sem deixar de ser um conjunto. No

entanto, como entender o que o intérprete afirma sobre a

verdade ser encontrada “exclusivamente” nos endoxa

remanescentes, “provando” o que for possível das opiniões?

A diferença entre menção e caracterização

174

Poderíamos objetar aqui que, se essa noção de prova for dada

sem qualificações, ou seja, que a partir dela seja possível

provar o que for o caso no percurso da busca definicional, os

endoxa não poderiam ser, ao mesmo tempo, os pontos de

partida e qualquer tipo de prova. Acreditamos que a análise da

menção aos endoxa encontrada na prescrição metodológica da

Ethica Eudemia possa ser útil para mostrar que essa objeção

não se segue se qualificarmos a noção de prova como o uso dos

endoxa como “modelos” ou paradigmas:

Deve-se tentar buscar a convicção acerca

de todos esses assuntos por meio dos

argumentos, empregando como indícios e

modelos o que nos aparece. Com efeito, o

melhor é que seja manifesto que todos os

homens concordem com o que será dito e,

se não, ao menos que todos concordem de

certo modo – o que, sendo conduzidos por

argumentos, eles farão. De fato, cada um

possui algo apropriado em relação à

verdade, a partir do que é necessário provar

de certo modo sobre esses assuntos. Com

efeito, partindo do que é dito com verdade,

mas não de modo claro, haverá também

clareza aos que prosseguem, tomando

sempre o que é mais cognoscível dentre o

que habitualmente se diz de modo confuso.

(EE I 6, 1216b26-35).

Na primeira sentença, o filósofo pretende definir

justamente como e por que caminho se deve partir para chegar

à verdade acerca dos assuntos morais, ou, pelo menos, a

concepções mais claras. Empregar “indícios” é usar os endoxa

como pontos de partida, a fim de clarificá-los para chegar a

premissas ou hipóteses utilizadas como “modelos” da

investigação. Em seguida, sua segunda asserção parece

Mariane Farias de Oliveira

175

justificar a primeira, pois “é melhor que todos concordem” no

sentido de que será mais fácil estabelecer os endoxa como

modelos, de maneira que o levantamento inicial das opiniões

reputadas já poderá conformar um conjunto. Se isso não for o

caso, Aristóteles prossegue: dado que todos os homens tendem

à verdade – asserção que parece ser dada como justificativa

final do argumento –, precisamos provar este “algo” com que

cada um pode contribuir com a verdade, a saber: as opiniões

reputadas. Só que, neste sentido, elas já serão indícios, mas não

modelos, pois não estão clarificadas, de onde vem a

necessidade, novamente, de percorrer as aporias para

estabelecer um conjunto consistente e, finalmente, provar “o

que esses homens têm de fato a contribuir com a verdade”, que

será conformar os indícios de que se partiu, os endoxa não

clarificados, aos modelos ou paradigmas estabelecidos a partir

da clarificação dos endoxa.

Ora, parece ser justamente este o tipo de prova exigido

na Ethica Nicomachea VII 1 (EE = VI). O que se prova não é a

verdade que encerra a busca definicional, não é uma prova

definitiva de argumento, mas sim uma prova de um endoxon

como premissa ou, ainda, de um conjunto de endoxa como

conjunto de premissas, que, clarificadas, poderão constituir a

investigação. O que isso nos mostra é que devemos tratar a

noção de verdade e prova aqui em um sentido generoso e

dentro do próprio “método dos endoxa” proposto por Barnes,

pois o que se está provando, em última análise, é a

remanescência de um endoxon preliminar, daquilo que

Aristóteles prescreveu como o primeiro passo do procedimento

em EN VII 1, agora em um conjunto consistente e

propriamente “filosófico” – no sentido em que será utilizado

como “modelo” no tratado para dar prosseguimento à busca

definicional.

A diferença entre menção e caracterização

176

III.

Dessa maneira, vimos que tanto a caracterização quanto

as menções aos endoxa são necessárias para a compreensão de

sua natureza e do método aristotélico. A caracterização, como

uma quasi-definição, aponta para o caráter reputável que os

endoxa compartilham e nos permite fazer duas leituras de sua

reputabilidade, sendo possível, assim, interpretar de duas

maneiras sua natureza. Tentamos defender aqui a leitura de

Barnes acerca da natureza dos endoxa, que nos permite avançar

ao possível método que elas conformam, cujo procedimento

pode ser encontrado em menções presentes nas éticas que, além

de explicitá-lo, também justificam a necessidade de sua

presença.

Dito isso, embora a caracterização dos Tópicos seja de

toda relevância para nos apontar uma direção para

compreensão dos endoxa, pouco saberíamos acerca de seu

papel nos tratados se Aristóteles não as mencionasse ao início

de suas investigações. O que nos mostra, portanto, que as

prescrições metodológicas cumprem um papel de elucidação

não só de procedimentos investigativos, mas também de seus

elementos.

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traduction, notes, bibliographie et index par Catherine

Dalimier. Paris: Flammarion, 2013.

ARISTOTE. Topiques. Tome I: Livres I-IV. Texte établi et

traduit par Jacques Brunschwig. Paris, Les Belles Lettres,

1967.

Mariane Farias de Oliveira

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ARISTOTLE. Eudemian Ethics. Translated and edited by Brad

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BERTI, E. “La valeur épistémologique des endoxa chez

Aristote”. In: Dialectique, Physique et Métaphysique – Études

sur Aristote. Paris: Louvain, 2008.

179

THOMAS NAGEL E A SORTE MORAL1

Paulo Henrique de Toledo2

Introdução

Sorte é um fato inalienável da vida humana. Não apenas

não podemos escapar à sorte, devido à nossa condição, como

não podemos querê-la, porque lado a lado com a sorte

caminham as coisas que fazem a nossa vida ter sentido3. A

vulnerabilidade à sorte é um componente essencial das nossas

vidas, mas tal perspectiva representa uma ameaça à agência

independente, o que é um problema para a moralidade4. Desta

forma, “tanto a sorte é parte integral da ética, quanto os

componentes de uma boa vida são fundamentalmente objetos

de sorte5”.

O problema da sorte moral foi cunhado pela primeira

vez em 1976, no par de artigos publicados na revista The

Proceedings of the Aristotelian Society, de Bernard Williams e

Thomas Nagel, intitulados, ambos, Moral luck. Nestes artigos,

tanto Williams, quanto Nagel, apresentaram uma série de

exemplos para tentar contestar a alegada imunidade da moral

no que diz respeito à sorte.

1 Artigo composto para a V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-

Graduação em Filosofia da UFSM, em novembro de 2014. 2 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da

UFSM, sob orientação do prof. Dr. Ricardo Bins di Napoli. 3 Athanassoulis (2005), p. 18.

4 Nussbaum (2009), p. 3-5.

5 Athanassoulis (2005), p.18.

Thomas Nagel e a sorte moral

180

O presente artigo procura esclarecer o problema da

sorte moral a partir do artigo Moral luck de Thomas Nagel.

Começaremos esboçando o princípio do controle, uma intuição

que remonta ao coração de nossas concepções morais, bem

como o problema de seguir tal princípio em nossos juízos de

valor ou responsabilidade. Na segunda parte do texto,

olharemos de perto os quatro tipos de sorte moral estipulados

por Nagel, apresentando os exemplos para melhor

esclarecimento de cada problema.

1. O princípio do controle

Enquanto Bernard Williams apresenta uma visão

antiteorista da moral, apontando um possível paradoxo em

nossas concepções sobre a moralidade, Nagel nos dá uma

definição, um princípio. Ele diz que “pode ser chamado de

sorte moral quando um aspecto significativo do que alguém faz

depende de fatores além do seu controle, e ainda continuamos a

tratá-lo como objeto de avaliação moral6”. Tal princípio é

intuído a partir da Fundamentação da Metafísica dos

Costumes, de Immanuel Kant. Nesta obra, de papel

fundamental para nossas noções de moralidade, Kant afirma

que:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove

ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer

finalidade proposta, mas tão somente pelo querer,

isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma

[...] Ainda mesmo que por um desfavor especial

do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma

natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa

vontade o poder de fazer vencer as suas

intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a

6 Nagel (1993), p. 59.

Paulo Henrique de Toledo

181

despeito dos seus maiores esforços, e só afinal

restasse a boa vontade (é claro que não se trata

aqui de um simples desejo, mas sim do emprego

de todos os meios de que as nossas forças

disponham), ela ficaria brilhando por si mesma

como uma joia, como alguma coisa que em si

mesma tem o seu pleno valor. A utilidade ou a

inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este

valor7.

Contudo, como Nagel afirma em seu artigo, apesar dos

esforços de Kant, nós acabamos por avaliar os agentes

moralmente com base nos produtos da boa vontade,

incondicionada e incondicional, mas até mesmo aqueles fatores

que estão além do controle (vontade) dos agentes.

A questão determinante aqui é que Nagel está tratando

de juízos morais, ou seja, da atribuição de responsabilidade:

louvor ou culpa a determinado agente por determinada ação.

Em outras palavras, avaliar moralmente um agente é dizer se

suas ações foram boas ou ruins; isto é geralmente

acompanhado seja por um elogio ou uma censura pela ação em

questão. O ponto de Nagel é que se percebemos que a ação em

questão não está no controle do agente, não estamos inclinados

a culpá-lo ou elogiá-lo, mesmo que possamos atribuir a ele

responsabilidade.

Por exemplo: imagine que você está na casa de um

amigo e, no meio da conversa, um gato passa correndo por

entre suas pernas. Assustado, você dá um passo para o lado e

acaba derrubando um vaso que estava, há gerações, na família

de seu amigo. Você é responsável por ter quebrado o vaso,

porém, não há culpa a ser atribuída a você: a situação estava

além do seu controle (devido ao susto) e você não teve

intenção alguma de fazê-lo.

7 Kant (1974), p. 110.

Thomas Nagel e a sorte moral

182

Do princípio do controle podemos inferir o corolário:

dois agentes não podem ser avaliados diferentemente se as

únicas diferenças entre eles são devidas a fatores além dos seus

controles. Mesmo assim, tendemos a atribuir uma culpa maior

àquele que acertou o tiro e matou sua vítima do que àquele que

por motivos quaisquer (como um pássaro atravessando a

trajetória da bala, por exemplo) não consegue realizar o

assassinato. O fato é que o homicida é responsável pela morte

de alguém, enquanto aquele que não obteve sucesso em sua

tentativa de homicídio, não. Contudo, no que tange à intenção,

ou a vontade, ambos os agentes se assemelham.

Podemos, também, julgar mais duramente um motorista

bêbado que atropela uma criança do que àquele que retorna a

sua casa sem causar dano algum, mesmo que devamos atribuir

a mesma responsabilidade para ambos motoristas. O problema

da sorte moral é a tensão entre a intuição que o status moral de

alguém não pode ser afetado pela sorte e a possibilidade da

sorte desempenhar um papel determinante no status moral de

um agente. O que Nagel sugere, é que tal intuição é correta e é

um dos pilares de nossas noções sobre a moralidade, mas que a

sorte inevitavelmente influencia a idoneidade moral de um

agente8.

O princípio do controle declara que somos passíveis de

juízos morais apenas na medida em que nossas ações estão em

nosso controle. Mas devemos ter em mente que existem muitas

formas de juízos morais. Podemos ter em mente os juízos

aretaicos, que dizem respeito ao caráter de um agente moral, se

ele é “bom” ou “mau”, por exemplo. Ou podemos julgar

estados de coisas, juízos axiológicos, concernentes às ações das

pessoas como “bons” ou “maus”. Podemos, também, julgar

ações como “corretas” ou “erradas” – os juízos deônticos. Há

também os juízos de responsabilidade, culpa ou louvor9. Tais

8 Latus (2001), p.5.

9 Nelkin (2013); Justin (1996).

Paulo Henrique de Toledo

183

distinções entre espécies de juízos pode ser lida em paralelo

com a distinção que Nagel faz entre os tipos de sorte moral10

.

2. Quatro tipos de sorte moral

Nagel aponta quatro tipos de casos onde a sorte

influencia na moralidade. Podemos chamá-las de sorte

resultante, sorte circunstancial, sorte constitutiva e sorte

causal. A sorte resultante diz respeito ao resultado da ação. A

sorte circunstancial diz respeito às circunstâncias, ou seja, os

tipos de situações, os graus de tentação ou dificuldades que o

agente moral atravessa. A sorte constitutiva diz respeito ao

caráter do agente moral, quem ele é, quais são suas inclinações,

capacidades e temperamento. A sorte causal, por fim, diz

respeito a como o agente é determinado pelas circunstâncias

antecedentes: aqui entramos no debate entre livre arbítrio e

determinismo, o que acarreta nossas atribuições de

responsabilidade ao agente11

. A seguir, vamos olhar mais

detalhadamente cada tipo de sorte moral.

2.1 Sorte resultante

Sorte resultante, ou sorte consequencial, diz respeito ao

modo como as coisas acontecem. Nagel aponta a sorte

resultante como o caso que Kant tinha em mente na passagem

já citada da Fundamentação. Nagel ilustra a relevância dos

resultados efetivos das ações de um agente em dois tipos de

casos: (a) casos de negligência e (b) casos de decisão sobre

incerteza12

. Vamos considerar cada um destes casos.

10

Araújo (2011), p. 172. 11

Nagel (1993), p. 60. 12

Ibidem, p. 61.

Thomas Nagel e a sorte moral

184

Imagine duas situações semelhantes onde alguém é

negligente ao não apagar uma fogueira, acesa por outro agente.

Na primeira situação, digamos, uma forte chuva cai e,

apagando o fogo, impede que algo pior aconteça. Na segunda

situação, porém, uma casa próxima pega fogo e, no incêndio,

uma criança acaba morrendo. É obvio que em ambas situações

o resultado se deve por fatores além do controle do agente, no

sentido de que está além do controle do agente que a chuva

caia, por exemplo. Neste caso, o resultado é determinado por

pura sorte, boa ou ruim. Como ambos os agentes foram

negligentes, pode parecer que ambos são culpados e

responsáveis no mesmo grau. Contudo, tendemos a julgar cada

um dos casos diferentemente. Até mesmo os agentes em

questão avaliariam diferentemente suas negligências: enquanto

o “sortudo” poderia sentir uma leve culpa, o desafortunado se

censuraria muito mais duramente pelo terrível resultado de sua

ação13

.

Nos sistemas legais, também, a relevância de resultados

fortuitos é uma suposição básica no julgamento das ações de

um agente. Para usar um exemplo já dado, vemos uma grande

diferença na pena pela tentativa de homicídio dos homicídios

efetivos, mesmo que tenha sido apenas uma questão de sorte

que tal homicídio tenha sucedido14

.

Outro caso onde a avaliação moral depende do

resultado é nas ações feitas por incerteza. Nagel ilustra este

caso com o exemplo do revolucionário15

. Se alguém decide

levantar uma revolução contra um governo tirano, tal agente

está assumindo um risco moral. Se for bem sucedido, será

considerado um herói moral, um salvador. Se falhar, contudo,

pode ser culpado pela morte de cidadãos inocentes16

.

13

Statman (1993), p. 13-4. 14

Ibidem, p. 14. 15

Nagel (1993), p. 61-2. 16

Statman (1993), p. 15.

Paulo Henrique de Toledo

185

Casos de negligência e incerteza, contudo, possuem

suas semelhanças e diferenças. Em ambos os casos o agente é

julgado com base nos resultados de sua ação. Também, em

ambos os casos, o agente contribui de algum modo com o

resultado, seja por negligência ou por boa ou má deliberação.

Em casos de decisão sob incerteza, mesmo que o agente possa

ter deliberado bem, ele pode ser responsável pelo resultado.

Contudo, em casos de negligência, o agente é sempre digno de

culpa, independente do resultado, sendo este determinante no

grau de culpabilidade no status moral do agente17

.

2.2 Sorte circunstancial

A sorte circunstancial, também chamada de sorte

situacional, se refere às circunstâncias em que o agente se

encontra. Nagel usa o exemplo do nazismo para ilustrar este

problema.

Os cidadãos comuns da Alemanha nazista poderiam

agir heroicamente e se opor ao regime. Enquanto os cidadãos

de outros países, podem nunca chegar a tal nível de

culpabilidade por apoiar um governo tirano, muitos alemães

podem ser culpados pelo simples fato de terem nascido na hora

e na época errada. Para Nagel, “julgamos as pessoas por aquilo

que elas fazem, ou falham em fazer, não apenas por o que elas

fariam se as circunstancias tivessem sido diferentes18

”.

Considere o caso de um oficial nazista que recebe

ordens de cometer atos desumanos. Ele seria digno de culpa

moral mesmo que as circunstâncias que o levaram a cometer

tais atos estivessem além de seu controle. Mas, se por outros

motivos, contudo, ele fosse transferido pela sua empresa para

uma filial na Argentina, em 1929, é possível que tenhamos uma

17

Ibidem, p. 15. 18

Nagel (1993), p. 66.

Thomas Nagel e a sorte moral

186

avaliação moralmente diferente sobre ele. Muitas vezes, o que

fazemos, ou deixamos de fazer, se deve pelas circunstancias

onde nos encontramos. E isto não impede que, por ventura,

sejamos julgados negativamente por isso. Este é o caso da sorte

circunstancial.

Um exemplo clássico que podemos encontrar na

literatura de sorte circunstancial é o de Raskolnikov, na obra

Crime e Castigo, de Dostoiévski. Raskolnikov, um jovem

educado para esperar um certo estilo de vida, de certa riqueza e

autonomia para liberar-se em seus impulsos acadêmicos, acaba,

assassinando uma velha usurária por seu dinheiro. As

circunstâncias que o conduziram a cometer tal ato são

complexas e não estão no total controle do jovem. O fato de ter

de sobreviver com pouco dinheiro, ver sua irmã tendo que se

casar com um homem velho para sobreviver, o fato de a velha

usurária não ser uma boa pessoa (e segundo quem a conhece

não “merecer estar viva”), tudo acaba conspirando para que

Raskolnikov tome sua decisão (e Dostoiévski genialmente

constrói o teste moral pelo qual o personagem passa) e acabe

cometendo o crime.

Outros casos de sorte circunstancial dizem respeito aos

dilemas morais. Nestes casos, o agente se vê entre a escolha de

dois cursos de ação que podem ser considerados ruins. Desta

forma, as circunstâncias levam o agente a não poder escapar do

erro. Mesmo que Nagel afirme que os dilemas morais sejam

casos incomuns de sorte circunstancial, podemos admitir que

eles sejam casos padrão de sorte circunstancial. Certo que há

apenas um curso de ação correto a seguir, o agente sempre terá

a tentação (moral) de seguir o outro curso. Como no caso de

Agamenon, que teve de sacrificar sua filha Ifigênia à Ártemis,

para que os bons ventos soprassem quando o exército grego

partisse para a guerra de Tróia19

. Ele teve todas as razões para

não fazê-lo: ele teve má sorte circunstancial.

19

Williams (1973), p. 173

Paulo Henrique de Toledo

187

2.3 Sorte Constitutiva

A sorte constitutiva diz respeito ao caráter do agente,

ou, em outras palavras a quem o agente é. Os traços de

personalidade, as disposições. Como nossos genes, os cuidados

que tivemos e outras influências ambientais contribuem para

nos tornar quem somos – e como não temos controle sobre isto

– podemos inferir que aquilo que somos é, em muitos aspectos,

uma questão de sorte20

. Nagel comenta que não devemos

louvar ou culpar as pessoas por qualidades que não estão sob

seus controles.

A influência da sorte constitutiva representa um estrago

em nossas intuições de que iniciamos em igualdade dentro da

esfera moral, e que todos nós temos a mesma condição para

atribuição de responsabilidade. Se a existência da sorte

constitutiva não for descartada, temos de aceitar que não somos

todos iguais, e que certas pessoas tem vantagens ou

desvantagens em comparação com as outras, ao menos no que

diz respeito da ação moral. Tal consideração, sobre a

inevitabilidade de algumas de nossas decisões morais, deve ter

algum impacto em nossas noções de responsabilidade e

culpabilidade21

.

A discussão sobre a sorte constitutiva remonta à

importância da relação entre natureza e moralidade. Aristóteles

já falava da distinção entre tendências naturais, objetos da

sorte, e escolhas racionais e disposições desenvolvidas, objetos

da moralidade. Mas, como podemos dizer que nossa habilidade

de fazer escolhas e formar nosso próprio caráter não é,

também, uma questão de sorte?

20

Nelkin (2013), p. 4. 21

Athanassoulis (2005), p. 21.

Thomas Nagel e a sorte moral

188

4.4 Sorte causal

Por fim, temos a sorte causal, ou sorte em “como

alguém é determinado por circunstâncias antecedentes”. Este é

o tipo de sorte menos trabalhado por Nagel em seu artigo. Ele

aponta que a sorte causal remonta ao velho debate do livre

arbítrio. O problema, a qual Nagel se refere, reside no fato de

que nossas ações – mesmo os atos da mais boa vontade – são

consequências de algo que não está em nosso controle. Se

assim o for, nem nossas ações, nem mesmo nossa vontade, são

livres. E, desde que a liberdade é a base para a atribuição de

responsabilidade, não podemos ser responsáveis por nossa

vontade22

.

Esta relação entre a controvérsia sobre determinismo e

livre arbítrio e as considerações sobre a sorte causal podem,

como se sugere, ser aplicada ao problema da sorte moral como

um todo. Assim como as preocupações sobre a compatibilidade

entre livre arbítrio e determinismo, as preocupações sobre a

sorte moral iniciam quando percebemos o quanto daquilo que

deveria ser moralmente significante sobre nós mesmos é

simplesmente empurrado sobre nós, quer queiramos ou não23

.

Considerações finais

O problema da sorte moral foi cunhado para ser um

paradoxo. O próprio Nagel assume que o problema

aparentemente não tem solução24

. Apesar disso, desde os anos

70, vários autores remontaram à questão tentando solucioná-lo

em partes ou totalmente. Algumas críticas foram feitas aos

tipos de sorte apontados por Nagel – seja na contribuição para

22

Nelkin (2013), p. 4. 23

Latus (2001), p. 8. 24

Nagel (1993), p. 68.

Paulo Henrique de Toledo

189

enriquecimento dos argumentos ou na elaboração de uma

crítica negativa, sobre a (não) validade dos mesmos.

De todo modo, o problema parece, a despeito do debate

subsequente, ainda estar aberto. Mesmo que haja aqueles que

negam a sorte moral como um todo, ainda podemos encontrar

elementos em diversos exemplos morais, como os que

trabalhamos neste artigo, onde a sorte parece sim influenciar

nossas concepções sobre a moralidade.

Contudo, há algo em nossas concepções sobre agencia

moral que é incompatível, tanto com a ideia das nossas ações

serem eventos, ou os agentes, coisas. Mas, na medida em que

determinantes externos daquilo que alguém fez é gradualmente

exposto, seja nos efeitos de suas consequências, caráter ou da

própria escolha, vai se tornando claro que podemos (e talvez

devamos) olhar nossas ações como eventos, e os agentes como

coisas.

Assim, sob esta perspectiva, se torna cada vez mais

delicado atribuir real responsabilidade aos agentes. Por mais

que possamos pensar uma agência livre, parece complicado, no

mundo real, nos nossos juízos cotidianos, pensar a agência e os

próprios agentes como livres de fatores fortuitos. Uma das

consequências possíveis, de assumirmos a existência de uma

sorte moral, ou de aderirmos ao princípio do controle, seria de

cancelarmos (ou refrearmos) nossos juízos morais.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Fernando. Sorte moral, caráter e tragédia pessoal.

Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC,

2011.

ATHANASSOULIS, Nafsika. Morality, moral luck and

responsibility. London: Palgrave Mcmillan, 2005.

Thomas Nagel e a sorte moral

190

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos

costumes. Coleção Os Pensadores 1ed., Vol. XXV. São Paulo:

Abril Cultural, 1974.

LATUS, Andrew. Moral luck. Internet Encyclopedia of

Philosophy, 2001.

NAGEL, Thomas. Moral Luck. In: STATMAN, Daniel (Ed.).

Moral luck. State University of New York Press, 1993.

NELKIN, Dana K. Moral Luck. Stanford Encyclopedia of

Philosophy, 2013.

NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade: fortuna e

ética na tragédia e na filosofia grega. São Paulo: Martins

Fontes, 2009.

STATMAN, Daniel (Ed.). Moral luck. State University of

New York Press, 1993.

WILLIAMS, Bernard. Problems of the self. Cambridge:

Cambridge University Press, 1973.

191

ÉDIPO-REI NO STADTTHEATER KÖNIGSBERG

Rômulo Eisinger Guimarães1

Entendendo o que chegou até nós sob o título Poética2

(Perí Poietikés) como Da arte poética (Perí Téknes Poietikés)

tem-se uma noção sobre o que aborda a obra aristotélica: trata-

se, aqui, de uma espécie de manual, o qual busca mostrar como

se produz – conscientemente – uma obra de arte (GRASSI ,

1975, p. 121).

Sem perder de vista a pintura, a música e as demais

artes, Aristóteles discorre de modo mais expressivo sobre a

tragédia, definindo esta sumariamente como “imitação de uma

ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em

linguagem ornamentada [...] não por narrativa, mas mediante

atores, e que, suscitando o ‘terror e a piedade, tem por efeito a

purificação dessas emoções’” (ARISTÓTELES, POI, §§ 13-

14). Disso se segue que a tragédia (i) enquanto “imitação”

(mimese) – entendida como “um tipo especial de representação

[...], grosso modo, representação ficcional” (BARNES, 1995,

p. 265-276) – está ligada a um sentimento de prazer, pois

1 Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

2 Quanto às citações das obras de Aristóteles e Kant atenho-me às

paginações originais, utilizando ainda as seguintes abreviações: Crítica da

Faculdade do Juízo (CFJ), Ética a Nicômaco (ET. NIC.), Fundamentação da

Metafísica dos Costumes (FMC), Poética (POI), Política (POL). Quanto aos

grifos destas e das demais obras, os itálicos dizem respeito aos textos

originais; negritos são grifos meus.

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

192

[...] imitar é congênito no homem (e nisso

difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele

o mais imitador, e, por imitação, aprende as

primeiras noções), e os homens se comprazem

no imitado. [...] Tal é o motivo por que se

deleitam perante as imagens: olhando-as,

aprendem e discorrem sobre o que seja cada

uma delas (ARISTÓTELES, POI, 1448 b 4-9);

e (ii) enquanto algo que tem por efeito a purificação dos

sentimentos de terror e piedade (catarse) – consistindo na

“razão de ser da tragédia” (BARNES, op. cit., p. 277) de modo

que “o profundo sucesso [da catarse] vale como sinal de

qualidade [da tragédia]” (HÖFFE, 2008, p. 71) – deve ela, a

tragédia, ser elaborada de tal modo que suscite tais sentimentos

no espectador – e isso através da boa construção de um mito.

Sendo tragédia imitação não de qualquer ação, mas de

uma ação de caráter elevado – completa, com sentido em si

mesma (GRASSI, op. cit., p. 126), isto é, mimesis da práxis – o

modo, a forma como é tramada a ação, a composição das

palavras se dá através do mito trágico (fábula, estória), o qual é

distinguido por Aristóteles do mito tradicional. Tomemos o

exemplo do rei tebano Édipo – enquanto figura mitológica, “de

cuja história se possa tirar argumento de tragédias”

(ARISTÓTELES, POI, 1454 a 9) – e da personagem

apresentada por Sófocles em Édipo-Rei como “o primeiro dos

homens”, tal que “ninguém em sua cidade podia contemplar

seu destino sem inveja” (SÓFOCLES, 2013, p. 92). Se tragédia

é mimese de uma ação completa que suscita sentimentos de

terror e piedade, e como tal produz um prazer que lhe é

próprio, o sentimento de prazer é prazer com a imitação, pois

reconhecendo como ficção, sentimos prazer com algo que

usualmente não sentiríamos3. Assim, se sentimos prazer com a

3 E.g., “coisas que olhamos com repugnância” (Cf. ARISTÓTELES, POI, §

14).

Rômulo Eisinger Guimarães

193

peça de Sófocles é porque se trata de uma imitação, de uma

fábula que modela (torna uno) um determinado recorte da vida

do rei tebano. O mito trágico “ordena o assunto de modo

unívoco e decidido, destaca-o da sua restante conexão com o

mundo” (AUERBACH, 2013, p. 16) de tal forma que a

integridade da ação não seja prejudicada.

Diferente do que se passa com o historiador – o qual se

ocupa da realidade ordinária, do que é/foi (expondo “não uma

ação única, mas um tempo único” (ARISTÓTELES, POI, 1459

a 17), i.e., eventos que não tem uma relação de necessidade

entre si, transcorrendo “de maneira muito menos uniforme,

mais cheia de contradições e confusões” (AUERBACH, op.

cit., p. 16) – não é ofício do poeta narrar o que aconteceu, mas

representar o que poderia acontecer, o que é possível/plausível

segundo a verossimilhança e a necessidade. Consistindo o mito

trágico do “conjunto elaborado de elementos escolhidos

segundo uma ordem necessária, que se opõe à diversidade

aleatória dos acontecimentos reais” (COSTA, 1992, p. 22), não

se preocupa o poeta com o fato empírico. Não obstante, dentro

da lógica da construção da tragédia, deve haver uma coerência

– lógica esta que convence o público, leva-o a reconhecer (que

reconhece) como plausível o que se apresenta diante dele,

sendo a base da catarse – o efeito produzido pela tragédia – a

purgação/purificação de suas emoções.

Embora uma definição unívoca da função e do

significado do termo “catarse” tenha se mostrado um dos

maiores problemas dentre as interpretações do texto

aristotélico4, aponta-se, habitualmente, para dois significado na

4 Para uma relação ilustrativa das versões e interpretações propostas, do

século XVI ao século XVIII, ao problema “catarse de/catarse operada por

sentimentos de terror e piedade”, ver o comentário de Eudoro de Sousa do §

27 Cf. ARISTÓTELES. Poética (tradução, prefácio, introdução,

comentários e apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional –

Casa da Moeda, 1986.

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

194

tradição pré-aristotélica (quais sejam: um significado medicinal

– referente à purgação, ao efeito de laxativos –; e um

significado religioso – referente à purificação de “pessoas

infectadas”) e que ainda hoje são objeto de disputa entre

comentadores5. Recorrendo à Política, busco aqui uma

justificação de minha preferência à catarse enquanto

purificação de emoções, pois uma vez que Aristóteles afirma

que

[...] alguns [indivíduos] são particularmente

predispostos a este movimento [da alma. i.e., às

paixões]; mas, [por efeito] dos cânticos

sagrados, quando se servem daqueles que são

aptos a produzir na alma a exaltação religiosa,

vemo-los pacificados, como se tivessem sido

sanados e purificados (ARISTÓTELES, POL,

1342 a 4 ss.)

não se atribui à arte o poder de eliminar as emoções, mas antes,

purifica-las – entendendo com isso tornando-as

“apropriadamente sentidas (BARNES, op. cit., p. 279). Até

aqui não fica claro, contudo, de que maneira a tragédia

possibilitaria que “sentíssemos algo de modo apropriado” e,

ainda, o que significaria isso para o espectador. A fim de

buscar uma resposta, devemos atentar àquilo que Aristóteles

expõe sobre a construção do mito trágico e o objeto da mimese.

5 Ao passo que Sousa e Barnes sejam mais favoráveis à uma vinculação da

catarse (e do prazer trágico que dela decorre) à purificação dos sentimentos

de terror e piedade (Cf. SOUSA, E. A essência da tragédia. In.:

ARISTÓTELES. Poética (tradução, prefácio, introdução, comentários e

apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da

Moeda, 1986, p. 99 e BARNES, J. Rhetoric and poetics. In.: IDEM (ed.).

The Cambridge companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University

Press, 1995, pp. 277-279), Höffe parece entendê-la em seu significado

medicinal (Cf. HÖFFE, O. Aristóteles (trad. Roberto Hofmeister Pich).

Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 70).

Rômulo Eisinger Guimarães

195

***

É já na primeira definição da tragédia onde Aristóteles

afirma que a imitação da ação completa (e sua consequente

trama dos fatos, i.e., o mito) produz sentimentos de terror e

piedade no espectador (e, prosseguindo, diz que o efeito da

tragédia é a purificação desses sentimentos) (ARISTÓTELES,

POI, 1449 b 24). Evidente é que nem todo mito suscitará tais

sentimentos, e o próprio Aristóteles indica o que seria “a

situação trágica por excelência”6. Imitando casos que suscitem

terror e piedade, a tragédia não deve representar nem homens

muito bons que passem da boa para a má fortuna – o que soaria

repugnante –, nem homens maus que passem da má para a boa

fortuna – visto que não há nada menos trágico – uma vez que

isso “não é conforme aos sentimentos humanos, nem desperta

terror ou piedade” (ARISTÓTELES, POI, 1453 a). Melhor

seria se se tratasse de um caso intermediário (como Édipo, por

exemplo) o qual, ainda que dotado de prestígio e fortuna,

considerado o “primeiro de todos os mortais” nem por isso

igualado aos deuses (SÓFOCLES, op. cit., p. 7). Se Édipo,

homem honrado de resto (e, não obstante, homem como

qualquer um de nós) incorresse em um erro (hermatia) não em

função de seu caráter – antes, por desconhecimento – de tal

modo que seu sofrimento seja (em parte) desmerecido e ele,

Édipo, torna-se “culpado sem ter culpa”, tal situação geraria

em nós – espectadores da tragédia – simultâneos sentimentos

de terror (pelo “semelhante desditoso”) e piedade (pelo “que é

infeliz sem o merecer”) (ARISTÓTELES, POI, § 69).

A tragédia, enquanto mímesis da práxis, dá a conhecer

as “possibilidades humanas” (GRASSI, op. cit., p. 128).

Através da representação de um erro cometido por uma figura

exemplar, determinados conflitos éticos tornam-se mais

aparentes, distanciados de quaisquer conflitos cotidianos.

Enquanto manifestação das possibilidades das ações humanas e

6 Denominação dada por Eudoro de Sousa no Cap. XIII da Poética

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

196

suas consequências, pode-se atribuir à tragédia uma certa

“importância educativa” (IDEM, p. 143) uma vez que aquele

que participa dela, “mesmo permanecendo só ‘espectador’,

reconhece nelas as próprias possibilidades e perigos,

alcançando a autoconsciência” (IDEM, pp. 148-149). Mas o

que, de fato, se aprende na tragédia?

***

Do que foi dito até então, pode-se perceber que o texto

de Aristóteles nos leva a crer que não apenas o prazer trágico

está, de certa forma, ligado a um (re)conhecimento – no qual o

espectador reconhece (que reconhece) como plausível o que

está diante dele –, mas que, pela simultânea angústia e

comiseração originada pela situação trágica (do herói em

grande sofrimento, em sua desgraça imerecida) nossos

sentimentos são “purificados”, tornam-se “mais

apropriadamente sentidos – sentidos em momentos mais

apropriados, em relação a pessoas mais apropriadas”

(BARNES, op. cit., p. 279) etc. Ora, quão distinto é esse

“sentir-de-maneira-apropriada” da exposição aristotélica das

virtudes, onde tratando da temperança, define temperante como

aquele que

[...] ocupa uma posição mediana [...] [o qual]

nem aprecia as coisas que são preferidas pelo

intemperante [...] nem, em geral, as coisas que

não deve, nem nada disso em excesso [...]não

sofre nem anseia por elas quando estão ausentes

ou só o faz em grau moderado e não mais do

que deve, e nunca quando não deve, e assim por

diante [?] (ARISTÓTELES, ET. NIC., 1119 a

10)

Não estaria então o espectador “purificado de suas

emoções” mais apto a orientar-se pela regra justa da mediania?

Com isso, a tragédia aristotélica propicia ao espectador

(i) de um ponto de vista estético, um sentimento de prazer

Rômulo Eisinger Guimarães

197

advindo da imitação, do reconhecimento; e (ii) de um ponto de

vista moral não apenas um exemplo das possíveis

consequências de suas ações, como também, pela purificação

das emoções do espectador (efeito catártico) a possiblidade

deste senti-las de maneira apropriada – e não mais do que

deveria. Em outras palavras, a tragédia condiciona o espectador

a agir segundo a regra justa da mediania – no que consiste a

excelência característica da virtude dentro da ética aristotélica

(ARISTÓTELES, ET. NIC., 1106 b 20).

***

Voltando à situação hipotética supracitada, estou

disposto a acreditar que Kant admitiria que existe um

sentimento de prazer na tragédia correspondente ao prazer

trágico proposto por Aristóteles (o prazer da imitação, do

reconhecimento), mas que, todavia, este não corresponde ao

sentimento prazer que determina um juízo-de-gosto estético

puro. Pois seria aquele um prazer associado ao conhecimento

(reconhecimento), e este, um prazer produzido pelo jogo-livre

de suas faculdades cognitivas (livre justamente por não formar

conhecimento).

Já na introdução de sua Crítica da Faculdade do Juízo,

Kant aponta que, embora

[...] nós já não sentimos mais qualquer prazer

notável ao apreendermos a natureza [...]

mediante conceitos empíricos, pelos quais a

conhecemos segundo suas leis particulares [...]

[,] esse prazer já existiu noutros tempos, e

somente porque a experiência mais comum não

seria possível sem ele foi-se gradualmente

misturando com o mero conhecimento sem ser

especialmente notado (KANT, CFJ, B XL)

e com isso pode-se pensar que não descartaria o “prazer de

(re)conhecer” defendido por Aristóteles na Poética. Não

obstante, importa para Kant (se tratando de um juízo-de-gosto

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

198

estético) o prazer genuinamente estético resultado da

adequação de um objeto (quer seja uma árvore, uma flor, ou –

porque não? – uma apresentação teatral de Édipo-Rei) às

faculdades de conhecimento (imaginação e entendimento)

postas em relação harmônica em um juízo reflexionante7.

Se para Aristóteles o prazer que é próprio à tragédia –

inerente aos sentimentos de terror e piedade – pode surgir “por

efeito do espetáculo cênico, mas também [...] [pode] derivar da

íntima conexão dos atos [i.e., do mito bem construído afim de

suscitar tais sentimentos no espectador], [sendo que] este é o

procedimento preferível” (ARISTÓTELES, POI, §§ 74-75),

Kant, por sua vez afirma que regras de poéticas de produção

não servem para determinar o prazer genuinamente estético

(KANT, CFJ, B 141).

Em verdade, o que desde o início distingue a Poética

aristotélica da Crítica da Faculdade de Juízo Estética é o fato

de que da primeira extraem-se regras de produção (Perí

Poietikés/Perí Téknes Poietikés) de obras de arte – que forma

deve assumir tal objeto para produzir um determinado efeito

em nós –; ao passo que a segunda versa sobre nosso

ajuizamento (a forma de nossa reflexão) sobre aquilo que

denominamos “belo”. E nesse sentido que deve ser claro o que

Kant tem em mente com o aspecto formal (da reflexão) de um

objeto. Não se trata, aqui, de características – por assim dizer

físicas, materiais – do objeto –, antes, é seu aspecto formal

7 Há de se ter em mente, sobretudo, que a Crítica da Faculdade do Juízo

opera no âmbito da reflexão, e não na esfera da formação de

conhecimentos empíricos determinados. Não por isso, porém, seja ilegítimo

pensarmos o que se encontra além dos limites de nosso conhecimento –

antes, seja mesmo necessário que o façamos (Cf. KANT, CFJ, B XLII).

Com efeito, Kant sugere-nos a tomar o juízo reflexionante quase como uma

função compensatória do conhecimento (em especial se tratando de juízos

teleológicos) e que, embora ocorra na esfera do conhecimento, não produz

conhecimento propriamente dito.

Rômulo Eisinger Guimarães

199

referente à organização de nossas faculdades de conhecimento

relativamente à representação deste objeto.

Claro é que, quando Kant inicia uma argumentação

poetológica8 – e não mais restrita ao juízo-de-gosto –,

inevitavelmente fala da forma do objeto no primeiro sentido (o

que aparentemente gera uma ambiguidade na argumentação

desenvolvida na terceira Crítica).

Mas se tratando de um juízo-de-gosto estético, o que

nos levaria a chamar um objeto “belo” não é a forma da

conformidade a fins do objeto no sentido de como (de que

forma) o mito é construído. Antes, trata-se de como esse objeto

é percebido pela constelação formal das faculdades

transcendentais daquele que julga. O prazer genuinamente

estético, para Kant, não diz respeito ao objeto, mas ao sujeito,

àquilo que acontece com suas formas puras de conhecimento.

Um dado objeto <Gegenstand> que afeta o sujeito –

que adentra sua percepção sensível de forma passiva pelas

formas puras da intuição (Espaço e Tempo) –, para ser

transformado em conhecimento, deve o próprio sujeito evocar

suas faculdades de conhecimento (Imaginação e Entendimento)

e, num ato de sua espontaneidade, classificar isso (este

Gegenstand) segundo as categorias a priori do Juízo: é só então

que pode-se falar com propriedade que se conhece o objeto

<Objekt>.

Pode este mesmo sujeito, entretanto, interromper o

percurso do conhecimento e, por assim dizer, fazer outra coisa

com aquilo que adentra sua intuição sensível que não formar

conhecimento empírico determinado do que seja o objeto em

questão. Evocando suas faculdades sem o fim de produzir

conhecimento, o sujeito “esquematiza sem conceitos” (KANT,

CFJ, B 146), de modo que Imaginação e Entendimento são

8 Como, por exemplo, no § 17 sobre o Ideal de beleza que parece não de

encaixar muito bem no contexto da argumentação kantiana sobre juízos-de-

gosto estéticos puros.

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

200

postos em um jogo-livre no qual ele, o sujeito, reflete

(reflexiona) sobre a própria forma de conhecer os objetos e

desta “percepção refletida” (IDEM, B XLVI) surge o

sentimento de prazer genuinamente estético.

O ponto aqui é que, para Kant, qualquer objeto

<Gegenstand> que adentre nossa percepção sensível como

possível objeto de conhecimento – e uma vez conhecido, passa

de Gegenstand a Objekt – é, também, candidato legítimo a

possibilitar em nós o desencadeamento de outro uso de nossa

faculdade de juízo, um uso reflexionante. Notório é que alguns

objetos seriam mais propensos a estimular esta reflexão, mas

isso não exclui o fato de que qualquer objeto de conhecimento

é passível de reflexão.

Tratando-se de uma tragédia grega tal como Édipo-Rei,

(i) se para Aristóteles o sentimento de prazer relaciona-se aos

sentimentos de terror e piedade suscitados no espectador, e

estes não são continuamente produzidos, mas estão vinculados

a determinados pontos da trama, os quais envolvem a mudança

da boa para a má-fortuna do herói – que cai em um grande

sofrimento do qual é “culpado sem ter culpa” –; (ii) aquilo que

Kant define como o sentimento de prazer genuinamente

estético não é gerado em um momento determinado da

tragédia: a qualquer momento (e não necessariamente pelo

mito, mas também pelo próprio espetáculo cênico) o

espectador pode evocar suas faculdades de conhecimento sem,

contudo, alcançar um conceito determinado ao objeto do juízo.

Assim todo o desenrolar da tragédia – com todos os elementos

que a constituem – é, potencialmente, apto a provocar um

estado mental reflexivo no espectador e do qual provém o

sentimento de prazer genuinamente estético (em linhas gerais,

se o espectador é capaz de um juízo do tipo “Aquilo é uma

cortina”, não há nada que o impeça de realizar um juízo do tipo

“Aquela cortina é bela – com efeito, tampouco se faz

necessário que realize seu juízo deste modo, i.e., pode fazê-lo

Rômulo Eisinger Guimarães

201

da seguinte forma “Aquilo é belo”, sem sequer formar

conhecimento empírico de que se trata de uma cortina).

(Ainda sobre como Kant e Aristóteles veem a produção

de obras de arte convém um breve comentário. Com efeito, a

Poética, como dito, aparece-nos como uma espécie de manual

de produção de uma – bela – obra de arte. E neste ponto

Aristóteles mostra-se tão criterioso na descrição dos elementos

que constituem uma tragédia e, principalmente, na qualidade de

cada um destes elementos – chegando, a hierarquizar os meios

que o poeta dispõe para melhor atingir seus objetivos como,

por exemplo, referindo-se ao reconhecimento, diz-nos que

“melhores são os que derivam da própria intriga [i.e., da

peripécia, da construção do mito]” (ARISTÓTELES, POI, §

98) – que por vezes dá a impressão de que qualquer um que

obedeça suas recomendações estaria apto a escrever, por

exemplo, Édipo-Rei. E Aristóteles não parece oferecer

refutação alguma à pergunta “Porque Sófocles e não eu ou

você poderia escrever Édipo-Rei?” O mesmo, contudo, não se

passa com Kant, o qual, resistente a essa “poética de cartilha”

poderia argumentar que o que difere uma tragédia escrita por

qualquer um de nós da tragédia de Sófocles é o espírito, i.e., a

capacidade de vivificar as faculdades de conhecimento, de pô-

las em um jogo-livre. A isso se soma o que vem sendo dito até

então, a saber: que não apenas o sentimento de prazer não

deriva exclusivamente do mito bem construído, mas que um

mito bem elaborado não dá qualquer certeza da vivificação das

faculdades de conhecimento num juízo reflexionante e, por

conseguinte, não necessariamente suscita um sentimento de

prazer genuinamente estético no espectador. O que se passa na

– mera – construção do mito – e isso vale tanto para Sófocles

quanto para qualquer um de nós – é a estruturação de uma

completude, i.e., um recorte uno que “não se encontra nenhum

exemplo na natureza” (KANT, CFJ, B 194); contudo, “uma

história pode ser precisa e ordenada, mas sem espírito” (IDEM,

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

202

B 192). O fato de uma tragédia ser formalmente perfeita não

oferece garantia alguma de que a mesma desperte um

sentimento de prazer genuinamente estético no público. O que

confere, segundo Kant, esta capacidade à obra seria o espírito,

plasmado pela faculdade do artista de apresentação de ideias

estéticas e uma obra assim constituída “dá muito a pensar, sem

que contudo qualquer pensamento determinado, i.e., conceito

possa ser-lhe adequado” (IDEM, B 193). Com isso fica visto

porque Kant rechaça regras de poéticas de produção: porque

não há nada determinado que possa ser utilizado na elaboração

uma obra de arte a fim de, necessariamente, provocar o jogo-

livre das faculdades de conhecimento de quem ajuíza tal obra.)

***

Por fim, no que toca à esfera da moralidade, Kant até

poderia reconhecer certo valor no “exemplo” dado pela

tragédia de Sófocles como sustasis ton pragmáton (GRASSI,

op. cit., p. 135) – como recomendação da práxis, da ação

completa com um fim em si mesma que envolve uma sabedoria

prática (ARISTÓTELES, ET. NIC., 1140 a 2 – b 25) – mas isso

permanece longe do que tem valor genuíno para a moralidade,

pois “[embora] não se poderia [...] prestar pior serviço à

moralidade do que querer extraí-la de exemplos” (KANT,

FMC, B 29), e embora estes “tornam intuitivo aquilo que a

regra prática exprime de maneira mais geral, [...] nunca pode

justificar que se ponha de lado o seu verdadeiro original, que

reside na razão, e que nos guiemos por exemplos” (IDEM, B

30), uma vez que o princípio supremo da moralidade assenta

fora do mundo físico (da natureza sensível), i.e., no inteligível.

Não obstante, “a espontaneidade no jogo das faculdades

de conhecimento, cujo acordo contém o fundamento [do]

prazer [estético] [...] promove ao mesmo tempo a receptividade

do ânimo ao sentimento moral” (KANT, CFJ, B LVII).

Kant retoma esta ideia mencionada já na introdução da

terceira Crítica no § 59 da mesma, intitulado “Da beleza como

Rômulo Eisinger Guimarães

203

símbolo da moralidade”. Aqui Kant afirma que aquele que

realiza um juízo-de-gosto estético (reflexionante), que no

ajuizamento de um dado objeto põe suas faculdades de

conhecimento em um jogo-livre, experimenta um estado de

auto-afecção que se aproxima (mas não se identifica) a “um

estado-de-ânimo provocado por juízos morais” (IDEM, B 260).

Com isso Kant sugere que o ajuizamento de um objeto

dito “belo” consiste em um tipo de reflexão análogo – daí a

figura do símbolo, aqui distinta do uso corrente simplesmente

contrastado do modo de representação intuitivo – à reflexão

moral, concordando o juízo-de-gosto estético e a reflexão

moral “simplesmente segundo a regra deste procedimento [...]

simplesmente segundo a forma da reflexão” (IDEM, B 255).

Se “o estado mental, que produz a mera contemplação

do objeto belo [...], instancia um estado de coisas genérico, que

caracteriza todos os sujeitos do conhecimento empírico”

(KULENKAMPFF, 1992, p. 71), o que justificaria uma

pretensa comunicabilidade do sentimento de prazer resultante

de uma experiência genuinamente estética tem caráter

subjetivo, i.e., refere-se a algo que acontece no sujeito – e isso

segundo “o pressuposto de que todos os homens têm por assim

dizer a mesma constituição” (IDEM, p. 79).

Com efeito, ainda que “na medida do possível elimina-

se aquilo que no estado da representação é matéria, i.e.,

sensação, e presta-se atenção pura e simplesmente às

peculiaridades formais de sua representação ou de seu estado

de representação” (KANT, CFJ, B 157), aquilo que alguém

tenta comunicar com seu juízo “Isto é belo” (sensus communis

aestheticus) – e não simplesmente “Isso é belo para mim” –

tem caráter meramente subjetivo. E nesse sentido, por

exemplo, difere da Lei Moral, calcada num Factum da Razão

que, para Kant, possui validade objetiva.

Já em sua “Doutrina de Método da Faculdade de Juízo

Teleológica” Kant afirma que

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

204

as belas artes [e não só estas, mas também o

belo na natureza] [...] que por um prazer

universalmente comunicável [...] ainda que não

façam o homem moralmente melhor <sittlich

besser>, tornam-no porém civilizado <gesittet

machen>, sobrepõem-se em muito à tirania da

dependência dos sentidos e preparam-no assim

para um domínio no qual só a razão deve

mandar (IDEM , B 395).

Com isso Kant não afirma que o belo é moral. Antes,

pode-se com boas razões pensar que o estado de reflexão que

nos encontramos durante um juízo reflexionante– e do qual

provém o sentimento de prazer – nos deixa em condições de

assumir uma postura moral – sobretudo porque aquele que

julga algo como “belo” o faz não com base em suas condições

particulares, mas dentro de uma pretensa perspectiva

universalmente válida (a qual, distinta do que ocorre em juízos

morais, não baseia-se em conceitos determinados, e que, ainda

sem a mesma dignidade teórica de uma ideia da Razão ou de

uma forma pura do Entendimento, não é o juízo-de-gosto

estético algo que deva ser posto de lado dentro do sistema

crítico da Razão).

***

Do exposto acima penso ficar evidentes algumas

diferenças entre a Poética aristotélica e a teoria kantiana dos

juízos-de-gosto estéticos puros: (i) que a primeira versa sobre

uma poética de produção de “obras belas”, ao passo que a

segunda volta-se para o ajuizamento daquilo que chamamos

“belo” e (ii) que aquela apresenta-se como um manual definido

e valorativo-hierárquico de como o poeta deve construir sua

obra; enquanto esta não se baseia em quaisquer regras que

justifiquem ou fundamentem o juízo-de-gosto estético – uma

vez que estamos no âmbito da reflexão e não mais da

determinação.

Rômulo Eisinger Guimarães

205

Curioso é, todavia, que Kant, na situação hipotética

elaborada no início deste trabalho, poderia ter acesso àquilo

que Aristóteles propõe em sua Poética: experienciaria algo de

estético e algo relativo à moral – muito embora tanto este

“estético” quanto este “moral” não condissessem àquilo que

para Kant seja genuinamente estético e genuinamente moral.

Este poderia seguramente afirmar: “Sim, ao assistir Édipo-Rei,

tive uma experiência estética e vivenciei algo que, por assim

dizer, levou-me a tocar a esfera da moralidade”, conquanto não

estaria necessariamente fazendo referência àquilo proposto por

Aristóteles.

E finalmente cabe indagar se Kant admitiria uma

experiência do tipo catártica tal como apresentada por

Aristóteles de forma quase aforística no § 27 de sua Poética –

que pela purgação dos sentimentos de terror e piedade o

homem reconhece suas possibilidades.

Disponho-me a acreditar que o filósofo de Königsberg

não apenas assumiria o valor da experiência catártica, como na

sua terceira Crítica assinala algo que se aproxima da ideia

aristotélica quando, no segundo livro da Crítica da Faculdade

de Juízo Estética, aponta que o sujeito diante do dito “sublime”

aproxima-se do suprassensível, i.e. do universo moral, pois “na

medida em que podemos ser conscientes de ser superiores à

natureza em nós e através disso também à natureza fora de

nós” (IDEM, B 109) reconhecemo-nos como habitantes de dois

mundos: o da natureza sensível e o inteligível. Discorrer mais

detalhadamente, contudo, sobre o efeito catártico do sublime

em Kant é tarefa que reservo a outro trabalho.

Referências bibliográficas

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textos José Américo Motta Pessanha). São Paulo: Nova

Cultural, 1987.

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

206

_______. Poética (tradução, prefácio, introdução, comentários

e apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional –

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AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na

literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2013.

BARNES, J. (ed.). The Cambridge companion to Aristotle.

Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

COSTA, L. de M. A Poética de Aristóteles: mimese e

verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992.

GRASSI, E. Arte como antiarte: a teoria do belo no mundo

antigo (trad. Antonieta Scarabelo). São Paulo: Duas Cidades,

1975.

HÖFFE, O. Aristóteles (trad. Roberto Hofmeister Pich). Porto

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HÖFFE, O. Kant (trad. Christian Viktor Hamm e Valerio

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KULENKAMPFF, J. Do gosto como uma espécie de sensus

communis, ou sobre as condições da comunicação estética

(trad. Peter Naumann). In.: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da

Crítica da Faculdade do Juízo de Kant. Porto Alegre:

UFRGS, 1992.

KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo (trad. Valerio

Rohden e António Marques). Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2012.

________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes

(trad. Paulo Quintela). Lisboa: Edições 70, 2011.

SÓFOCLES. Édipo-Rei (trad. Paulo Neves). Porto Alegre:

L&PM, 2013.

207

FATO E ESSÊNCIA NO MÉTODO

FENOMENOLÓGICO DE HUSSERL

Rudimar Barea1

1. A Fenomenologia de Husserl

Edmund Husserl2 foi um dos filósofos mais influentes

do século XX, marcando dentro da tradição filosófica passos

importantes para a continuidade dos debates contemporâneos.

A sua principal contribuição vem de seu método de pesquisa; a

fenomenologia3, tema que abre campo de investigação para

vários temas filosóficos, desde elementos antropológicos e

ontológicos, bem como para a constituição de valores e da

ética, além de influenciar outros movimentos filosóficos e

1 Bacharel em Filosofia pelo Instituto Superior de Filosofia Berthier

(IFIBE); Mestrando em Filosofia na UFSM: bolsista CAPES/FAPERGS

trabalhando ‘A questão da empatia de Edith Stein' sob orientação do

Professor Silvestre Grzibowski. ([email protected]) 2 Husserl nasceu em Prossnitz (na Morávia) em 1859. Estudou matemática

em Berlim, onde seguiu os cursos de álgebra de Weierstrass. Laureou-se

em1883 com uma tese sobre o cálculo das variações. Em Viena, seguiu as

aulas de Brentano [...]. Morreu em 1938. Ao morrer, Husserl deixou grande

quantidade de inéditos (cerca de quarenta e cinco mil páginas

estenografadas), que, salvas com grande esforço durante a guerra pelo padre

belga Hermann van Breda, constituem agora o “Arquivo Husserl” de

Louvain (REALE, 2008, p. 180). 3 A palavra fenomenologia é derivada de duas palavras gregas: fenômeno

(aquilo que se mostra/aparece, se manifesta) logia (pensamento, capacidade

de refletir); no entanto poderíamos dizer que fenomenologia é uma reflexão

sobre um fenômeno que se mostra, segundo Ales Bello o problema está em

saber; “o que é que se mostra e como se mostra” (2006, p. 18).

Fato e essência

208

culturais4. Husserl fora considerado por muitos como um

revolucionário na pesquisa filosófica, como afirma Stein, que,

foi sua discípula, aluna e assistente:

Querer enquadrar Husserl nos esquemas das

escolas tradicionais é um esforço em vão. A

filosofia do nosso tempo se divide em dois

grandes grupos: por um lado encontramos a

filosofia católica que continuava a tradição

escolástica, sobretudo, de São tomas de Aquino

e a filosofia que insistentemente se

autodenomina “moderna” que nasce com o

renascimento e alcança seu ponto culminante

com Kant (STEIN, 2003, p. 40).

Para Stein, Husserl cumpre esse papel de rompimento

com as tradições decorrentes até a modernidade; “Quando

começou a filosofar de forma independente não se deixou

conduzir por nenhum escrito precedente, se não por as questões

mesmas” (2003, p. 41). Sokolowski, pesquisador

contemporâneo da fenomenologia confirma a argumentação, e,

reafirma a sua influência nas pesquisas filosóficas pós-

modernas: “Ele não pode ser considerado o continuador de

uma tradição que tomou forma antes dele; mesmo Martin

Heidegger, como competente filósofo que era, pode ser

compreendido somente na tradição aberta por Husserl” (2012,

p. 223).

Para adentrar na concepção do método fenomenológico

proposto por Husserl, é exigida do pesquisador dedicação plena

e espírito filosófico, pois, a tarefa da fenomenologia pretende

4 A fenomenologia influenciou muitos outros movimentos filosóficos e

culturais, tais como: hermenêutica, estruturalismo, formalismo literário e

desconstrutivismo. Durante todo o século XX foi o maior componente

daquilo que se denominou “filosofia continental”, em oposição à tradição

“analítica” que tipificou a filosofia na Inglaterra e nos Estados Unidos

(SOKOLOWSKI, 2012, p. 11).

Rudimar Barea

209

colocar em base firme todos os procedimentos científicos e

experiências pré-científicas, como uma nova forma de

orientação.5Com efeito, avançar progressivamente até uma

realidade mesma, seria um processo necessário para definir

com precisão os termos e as coisas em si, o que caracteriza a

fenomenologia como uma ciência das essências, como Husserl

define em sua obra capital Ideias I:

A fenomenologia pura ou transcendental não

será fundada como ciência de fatos, mas como

ciência das essências (como ciência ‘eidética’);

como uma ciência que pretende estabelecer

exclusivamente ‘conhecimento de essências’ e

de modo algum ‘fatos’. [...] A passagem à

essência pura proporciona, de um lado,

conhecimento eidético do real, mas de outro, no

que respeita a esfera restante, ela proporciona

conhecimento eidético do irreal. (2000, p. 28).

Husserl atribui à fenomenologia a tarefa de ser uma

ciência ‘a priori’, ‘eidética’, que possibilita o estudo em torno

das essências, como também da ciência das essências. Por um

lado quer afirmar a autonomia daquela ciência física -

matemática, e de outro lado, reivindicar a prioridade da

pesquisa fenomenológica, que tem uma tarefa essencial:

Determinar os gêneros supremos de concreções

no círculo de nossas intuições individuais e,

desta maneira, levar a cabo uma distribuição de

todos os seres individuais intuídos segundo

regiões do ser, cada uma das quais designando

por princípio, já que por fundamentos eidéticos

5A tarefa da fenomenologia consiste em colocar sobre uma base firme todos

os procedimentos científicos (tal como se exercitam nas ciências positivas)

e as experiências pré-científicas do qual estas se fundam; em suma toda a

atividade do espírito que reivindica para si o caráter racional [...]a filosofia,

por sua vez, tem que converter em objeto de sua investigação tudo aquilo

que os outros âmbitos supõem como evidentes (STEIN, 2003, p. 61).

Fato e essência

210

radicais, uma ciência (ou grupo cientifico)

eidética e empírica diferente. (2006. 57).

Para chegar a esta nova ciência que busca ser diferente

da lógica pura, Husserl destaca que foi preciso “traçar um

esquema como exemplo de constituição fundamental, dela

proveniente, de todos os conhecimentos e objetividades de

conhecimento possíveis” (2006, p. 56). No entanto, para obter

sucesso seu método deveria se diferenciar dos demais, e ai

surge o aspecto da redução fenomenológica, como um

caminho6 para se chegar à compreensão do sentido das coisas.

O caminho encontrado seria o da redução fenomenológica,

pelo qual, o ser humano na atribuição de suas capacidades

busca de compreender o sentido das coisas, mas para isso deve

suspender - “colocar entre parênteses” - o que é factual,

delimitando a pesquisa na direção das coisas mesmas, ou seja,

na sua essência.

2. A redução fenomenológica: Do fato a essência.

Em poucas palavras é impossível destacar todos os

aspectos e peculiaridades do método fenomenológico7, bem

como a importância da redução eidética e transcendental na

proposta husserliana. No entanto, nos centraremos em fazer

uma análise levando em conta os aspectos que estão

correlacionados a fatos e essência, temas estes que estão

presente no objetivo da fenomenologia segundo Husserl, assim

como segue:

6 Do Grego: Méthodo: ‘odos’ que designa estrada e ‘meta’ que significa por

meio de, através. 7Os leitores que ainda não conhecem o método fenomenológico, indica-se a

leitura de Ideias I de Husserl.

Rudimar Barea

211

A fenomenologia procede elucidando

visualmente, determinando e distinguindo o

sentido. Compara, distingue, enlaça, põe em

relação, separa em partes ou segrega momentos.

Mas tudo do puro ver, do olhar que capta a

essência do fenômeno. Não teoriza nem

matematiza; não leva a cabo explicações

algumas no sentido da teoria dedutiva. Ao

elucidar os conceitos e proposições

fundamentais que, como princípios, dominam a

possibilidade da ciência objectivante [...],

terminam onde começa a ciência objectivante.

É, pois, ciência, num sentido totalmente

diferente, com tarefas inteiramente diversas e

com um método completamente distinto. A sua

peculiaridade exclusiva é o procedimento

intuitivo e ideador dentro da mais estrita

redução fenomenológica, é o método

especificamente filosófico, na medida em que

tal método pertence essencialmente ao sentido

da critica do conhecimento e, por conseguinte,

ao de toda a critica da razão em geral (2008, p.

87).

Nesta passagem que se refere às lições que Husserl

proferia ainda em 1906-1907, podemos perceber que sua

proposta, desde já, tende para a diferença das ciências

objetivas, destacando a importância de um método que possa

clarificar e captar a essência dos fenômenos, o que seria

possível, no entanto, por um procedimento intuitivo que chegue

ao fenômeno puro, assim como propõe posteriormente em

Ideias I:

Colocamos fora de ação a tese geral inerente à

essência da orientação natural, colocamos

entre parênteses tudo o que é por ela abrangido

no aspecto ôntico: isto é, todo este mundo

natural que está constantemente “para nós aí”,

“a nosso dispor”, e que continuará sempre aí

como “efetividade” para a consciência, mesmo

Fato e essência

212

quando nos aprouver colocá-la entre parênteses.

Se assim procedo, como é de minha plena

liberdade, então não nego este “mundo”, como

se eu fosse sofista, não duvido de sua

existência, como se fosse cético, mas efetuo a

epoché “fenomenológica”, que me impede

totalmente de fazer qualquer juízo sobre

existência espaço-temporal (HUSSERL, 2006,

p. 81).

A epoché8 fenomenológica permite o sujeito que está

em relação de conhecimento frente ao fenômeno, chegar até a

essência de sua manifestação. Na orientação fenomenológica o

sujeito distingue a facticidade e a essência de cada fenômeno.

No segundo parágrafo de Ideias I, Husserl escreve em poucas

palavras a “inseparabilidade de fato da essência”, do qual

destacamos sua posição: “Dito de maneira bem geral, o ser

individual é, qualquer que seja sua espécie, ‘contingente’. Ele é

assim, mas poderia por sua essência ser diferente” (2006, p.

34). Seguindo essa perspectiva, os fatos – que são estudados

nas ciências empíricas, psicológicas – compõe a facticidade da

essência, conforme explica Husserl:

Se dissemos que “por sua essência própria”

todo fato poderia ser diferente, com isso já

exprimíamos que faz parte do sentido de todo

contingente ter justamente uma essência e, por

conseguinte, um eidos a ser apreendido em sua

pureza, e ele se encontra sob verdade de

essência de diferentes níveis de generalidade.

Um objeto individual não é meramente

individual, um este aí!, que não se repete; sendo

“em si mesmo” de tal e tal índole, ele possui

8Epoché. É um termo grego que quer dizer “suspensão do consentimento”:

suspensão do consentimento ou do juízo típica atitude do ceticismo antigo e,

particularmente, de Pirro. Dentro do pensamento contemporâneo, a epoché

é conceito fundamental da fenomenologia de Husserl (REALE, 2005, p.

183).

Rudimar Barea

213

sua especificidade, ele é composto de

predicáveis essenciais que têm de lhe ser

atribuídos (“enquanto ele é como é em si

mesmo”), a fim de que outras determinações

secundárias, relativas, lhe possam ser

atribuídas. Assim, por exemplo, todo som tem,

em si e por si, uma essência e, acima de tudo, a

essência geral “som em geral”, ou antes,

“acústico em geral” – entendido puramente

como o momento a ser extraído por intuição do

som individual (isoladamente ou por

comparação com outros como “o que há de

comum”) (2006, p. 35).

A reflexão que Husserl propõe como metodologia de

busca das essências não exclui a existência dos fatos, pelo

contrário, eles existem, mas são passíveis de análise mais

aprofundada. Com estas indicações em forma de apontamento,

passa-se agora para uma análise básica dos passos que indicam

a redução fenomenológica, que trata intrinsecamente da

distinção epistemológica que o ser humano tem a capacidade

de fazer entre o que é fato e essência.

2.1 A redução eidética

Na redução eidética o ser humano se orienta na direção

de compreender o sentido das coisas, no entanto, nem todas as

coisas são compreendidas imediatamente. Segundo Husserl

para compreender o sentido das coisas, usamos de intuição

individual, mas não podemos ficar restrito a esta intuição.

É certo, por conseguinte, que nem uma intuição

de essência é possível sem a livre possibilidade

de voltar o olhar para um algo individual

“correspondente” e de formar uma consciência

exemplar - assim como também intuição

individual alguma é possível sem a livre

Fato e essência

214

possibilidade de efetuar uma ideação e de nela

direcionar o olhar para as essências

correspondentes [...] Às diferenças eidéticas

entre as intuições correspondem relações de

essência entre “existência” [...] e “essência”,

entre fato e eidos (2006, p. 38 -39). [grifos do

autor]

A essência das coisas, como se percebe não se dá

apenas de maneira individual e também não está apenas em

face de uma percepção externa do fenômeno. Na medida em

que se avança na argumentação fenomenológica percebe-se

que a busca do sentido das coisas já pressupõe a sua existência.

Husserl não nega os fatos, ele busca entender qual é o sentido

desses fatos existirem, não de maneira individual, mas em

essência. Portanto, para ele quem busca a verdade “precisa ter a

apreensão intuitiva da essência como seu alicerce de fundação”

(2006, p. 39). Citamos outro exemplo:

Façamos uma experiência semelhante às que

Husserl propõe: alguém bate a mão sobre a

mesa, identificamos logo que é um som. Todos

nós identificamos esse som. Como o fazemos?

Imediatamente, intuitivamente. Escutamos

qualquer coisa e dizemos “é um som”. Sempre

o fazemos assim, se não pudermos fazer é por

algum problema, mas não havendo problema,

somos capazes de intuir, isto é, colocar em

perspectiva a essência, o sentido da coisa

(ALES BELLO, 2006, p. 22-23).

Como explica Ângela Ales Bello, Husserl não se

preocupa com o fato de que existe o som, isso nós sabemos. Se

ele é alto ou baixo, se grada ou não, tudo isso não importa para

a reflexão da essência, ele (o som, ou, o “fato”) existe e tem

diferenças, mas, somente chegamos à essência se buscamos o

sentido da coisa em si, ou seja, o que é o som? Investiga-se as

características essências da estrutura do som que lhe dão

Rudimar Barea

215

sentido, por exemplo, o som de um instrumento musical, do

barulho dos automóveis ou uma conversa entre vizinhos, etc.,

caracterizam “sons”, que são diferentes em suas

particularidades, mas tem uma estrutura essencial que permite-

nos dizer que é um som.

No entanto a tarefa deste primeiro passo que é a

redução eidética é a busca de captar o sentido da coisa em sua

essência, pra isso é preciso tomar distância do fato em si para

buscar o seu sentido, podemos até nos referir aos dados

empíricos, factuais, imaginários, mas isso não implica em uma

realidade individual existente, sendo que para o conhecimento

concreto será preciso uma visão eidética.

2.2 A Redução Transcendental

O aspecto da redução transcendental é um dos

argumentos mais difíceis em Husserl, mas é preciso entender

pelo menos em linhas gerais qual é a sua contribuição dentro

do método fenomenológico. Sabemos pela redução eidética que

o ser humano busca sentido, mas agora a tarefa é outra; para

Husserl precisaríamos responder: porque o ser humano busca

sentido? E também, quem é este ser humano que busca

sentido?

Vamos tentar explicar com um exemplo o que significa

o aspecto transcendental. Entramos em uma sala de aula, na

qual temos vários objetos, mesa, cadeira, quadro, todos esses

objetos são do conhecimento dos seres humanos que usufruem

deles. Mas, se um dia ao entrar na sala de aula algum destes

objetos não estiverem dentro da sala, será possível uma

reflexão sobre estes objetos faltantes? Sim, pois, sabemos que

eles existem, não estão ali fisicamente, mas, temos a ideia de

como eles são e pra que servem. Tomando outro exemplo, se

Fato e essência

216

um objeto está com defeito, posso intuir essencialmente outro

melhor, que pode nem existir ainda, mas tenho a ideia de sua

existência. Por conseguinte, podemos dizer que “existem”

coisas passíveis de serem refletidas que estão fora do nosso

alcance físico, aquilo que temos como ideia, que concebemos

como consciência de, que está em esfera de reflexão

transcendental.

Com efeito, pela redução transcendental podemos sair

da esfera dos atos de percepção, de compreensão do sentido,

para a esfera do ser humano; “a percepção é uma porta, uma

forma de ingresso, uma passagem para entrar no sujeito, ou

seja, para compreender como é que o ser humano é feito”

(BELLO, 2006, p. 30). Como os atos de consciência do ser

humano buscam sentido das coisas e, no entanto, qual é o

sentido desses atos perceptivos, que são caracterizados como a

imaginação, a recordação, a expectativa, a fantasia, a empatia.

2.3 Da redução à intersubjetividade

O que vimos até agora é um esforço de mostrar a

importância da redução fenomenológica. No entanto, a busca

solipsista de fundamentação pela epoché apenas abre caminho

para uma descrição de conhecimento, que prescindirá de

vivências intersubjetivas transcendentais para uma descrição

fenomenológica mais precisa do conhecimento das essências.

Com efeito, aa confirmação do ego é necessária para o

fundamento basilar das verdades, mas que para a confirmação

das verdades essenciais é necessária a passagem do solipsismo

à intersubjetividade.

Portanto, não o ego cogito, mas, sim, uma

ciência do ego, uma Egologia pura, devera ser o

fundamento mais basilar da Filosofia no sentido

cartesiano da Ciência Universal, e deverá

Rudimar Barea

217

fornecer pelo menos o terreno para a sua

absoluta fundamentação. De fato, esta ciência

existe já – é a Fenomenologia Transcendental

mais basilar e, portanto, não a Fenomenologia

plena, à qual compete obviamente, fazer o

caminho ulterior do solipsismo transcendental

para a intersubjetividade transcendental

(HUSSERL, 2013, p. 10).

Husserl pretende fazer a diferenciação de seu método,

particularmente dialogando com Descartes, pois, segundo

Husserl a máxima que chega a redução proposta por Descartes

está na auto-experiência do próprio ego, que é experiência

apenas dele e nada altera no mundo. Husserl, aponta que a

experiência-de é experiência-de-alguma-coisa: “A propriedade

fundamental dos modos de consciência em que eu, enquanto

eu, vivo, é a chamada intencionalidade, é, em cada caso, o ter

consciência de qualquer coisa” (2013, p. 11). Seguimos um

exemplo de Husserl para deixar claro esse papel do sujeito

perante o mundo enquanto ser de auto-experiência-mundano:

A percepção da casa, mesmo quando inibo a

atividade da crença perceptiva, é, tomada tal

como a vivo, precisamente percepção deste e

justamente desta casa, aparecendo desta e

daquela maneira, mostrando-se com

precisamente estas determinações, de lado, de

perto, ou de longe (2013, p. 11).

Esse perceber a casa, que é um objeto empírico factual,

está na intencionalidade da consciência que intui este objeto

singular, como reitera Husserl: “Cada objeto designa, porém,

uma estrutura regular para a subjetividade transcendental”

(2013, p.20), ou seja, enquanto essência da consciência. Essa

realidade em si, se pode dizer que é em si porque está em

relação conosco. Somos nós que dizemos que ela é o que é,

sendo esse um dos fundamentos da pesquisa fenomenológica

Fato e essência

218

proposta por Husserl. Mas, o conhecimento perceptivo, só é

possível pelos seres humanos dentro de suas vivências, que

confirmam o conhecimento das coisas intersubjetivamente.

Pensemos então que repentinamente em um

ponto temporal, no interior do tempo co-

constituído, com o mundo solipsista se

apresenta em meu domínio de experiência,

corpos, coisas que se entendem e são

entendidas como corpos de homens. Agora,

pela primeira vez, existem para mim, homens

com os quais posso entender-me. E me entendo

com eles sobre as coisas, que em um novo

tempo estão aí em comum para nós. Então se

mostrará algo bem notável: que extensos

complexos de enunciados cósicos, que eu tenho

feito sobre a base das experiências anteriores,

em trechos temporais anteriores, experiências

todas que concordam esmeradamente, não são

confirmadas por meus companheiros de agora;

que estas experiências não meramente, digamos

lhes faltem a eles [...] se não que se encontra

em constante conflito com o que eles

experimentaram (2005, p. 112) [grifos do

autor].

No campo do entendimento entre os seres humanos, o

pensamento solipsista fica limitado ao conhecimento de fatos

individuais, quando no entanto por meio do aspecto

intersubjetivo os seres humanos podem confirmar o

conhecimento dos fatos e das essências. Avançando na

discussão poderíamos dizer que sem o aspecto da

intersubjetividade seria difícil determinar a essência dos fatos.

Com isso, entramos no campo das vivências, do qual nos

utilizamos da epoché e podemos fazer uma reflexão sobre essa

mirada, que está diante de nós, do qual estou voltado diante do

objeto aqui e agora, imerso neste fundo de experiências muito

Rudimar Barea

219

mais vasto, e que nos ajuda a distinguir o fato e essência

daquilo que se manifesta como consciência-de.

3. O mundo da vida entre fato e essência

Afirmamos neste trabalho que fato e essência são

inseparáveis e estão presentes em toda a reflexão husserliana.

Quando se abre a reflexão para a esfera do mundo da vida,

queremos pontuar que os seres humanos em suas vivências

seguem distinguindo entre fatos e essências para o

fortalecimento de nossos conhecimentos. Se ficássemos

contentes com o que já temos viveríamos no mundo dos fatos

já dados e confirmados pelos nossos antepassados, pelo

contrário, como seres humanos que buscam o conhecimento e

que vivenciam outras experiências, ainda muito se tem para

tirar do velamento o que é essencial e não está dado pelas

verdades cientificas factuais.

A verdade científica, objetiva, é exclusivamente

a verificação daquilo que o mundo, de fato, é,

tanto o mundo físico como o espiritual. Mas

pode o mundo, e a existência humana nele, ter

na verdade um sentido, se as ciências só

admitirem como verdadeiro aquilo que é deste

modo objetivamente verificável, se a história

não tiver mais nada a ensinar senão que todas

as figuras do mundo espiritual, todos os

vínculos da vida que a cada passo mantêm o

homem, os ideais, as normas, se formam e

voltam a se dissolver como ondas fugazes, que

sempre assim foi e será, que a razão sempre terá

de se tornar o sem-sentido, a benfeitoria, uma

praga? Será que podemos nos satisfazer com

isso, será que podemos viver neste mundo, cujo

acontecimento histórico não é outra coisa se

não um encadeamento interminável de ímpetos

Fato e essência

220

ilusórios e amargas decepções? (HUSSERL,

2012, p. 3-4).

Toda filosofia só tem sentido a partir da vida. Sem a

vida não é possível à filosofia. Estamos imersos em um mundo

que nos envolve (Umwelt) do qual eu faço parte, sou

coexistente, não somente com coisas, mas, com outros sujeitos

humanos, com valores, cultura, que não pode ser sistematizado

por uma ciência objetiva. O acesso à coisa em si (essência dos

fatos) é possível porque cada ego é possuidor de vivências

intersubjetivas e possibilitam o conhecimento em troca

reciproca. O conhecimento é possível quando o ser humano se

dá conta de suas vivências, que pertencem ao mundo, ao

mesmo tempo em que está dialogando com o mundo de forma

intersubjetiva.

[...] experimento em mim mesmo, no âmbito da

minha vida consciente transcendental, tudo e

cada um, e experimento o mundo não

simplesmente o meu mundo privado, mas como

um mundo intersubjetivo, dado a cada um e

acessível nos seus objetos, e neles experimento

os outros enquanto outros e, ao mesmo tempo,

enquanto uns para os outros, para cada um

(HUSSERL, 1994, p. 46.).

A intersubjetividade que possibilita a confirmação dos

conhecimentos obtidos individualmente, se dá somente quando

existir uma abertura ao outro, ou seja, do reconhecimento de

nossos semelhantes que tem a mesma estrutura, possuem a

mesma essência e fazem parte do mesmo mundo, que

habitamos em conjunto.

Rudimar Barea

221

Referências bibliográficas

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Jacinta Turolo Garcia e Miguel Mahfoud. Bauru, São Paulo:

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STEIN, Edith. Il problema dell’Empatia.Trad. de Elio

Costatini e de Erika Schulze Cosgtantini. Edizioni Studium –

Roma, 2003.

223

EMOÇÕES E INTENCIONALIDADE

Susie Kovalczyk dos Santos1

Na literatura filosófica muito se recorre à

intencionalidade das emoções para se rejeitar teorias

sentimentalistas acerca da natureza das emoções. Considerando

esse tipo de crítica, ou se adota uma teoria cognitivista, como

Solomon (2008), ou uma teoria híbrida, como Goldie (2000),

ou ainda se aponta uma alternativa para explicar a

intencionalidade das emoções como uma característica não

intrínseca das mesmas, sustentando, como Prinz (2004; 2005),

uma teoria sentimentalista. Abordarei teses desses três autores

acerca da intencionalidade das emoções, avaliando suas

implicações para a consideração da natureza das mesmas.

1. Intencionalidade dos estados mentais

A noção de intencionalidade é compreendida, explica

Jacob (2014), como a capacidade de estados mentais de serem

sobre, de representar, de serem direcionados a coisas,

propriedades e estados de coisas. O termo tem origem na

escolástica medieval, derivado do latim intentio, derivado, por

sua vez, do verbo intendere, que significa estar direcionado a

um objetivo ou coisa. Desse modo, se eu tenho uma crença ou

um desejo, eu creio em algo ou desejo algo, e aquilo em que

creio ou que desejo é o objeto da intencionalidade do meu

1 Universidade Federal de Santa Maria. [email protected]

Emoções e intencionalidade

224

estado mental de crença ou desejo. Se todos os estados mentais

possuem intencionalidade não é ponto pacífico. Para Brentano

(2009), por exemplo, o que caracteriza os fenômenos mentais

enquanto tais é o direcionamento a um objeto, e todos e apenas

os fenômenos mentais são dotados de intencionalidade. Searle

(2002) discorda: Se eu disser que eu tenho uma crença ou um

desejo, fará sempre sentido perguntar: “Em que,

exatamente, você acredita?”, ou: “O que você

deseja?”, e não poderei responder, “Ah, eu só

tenho uma crença e um desejo sem acreditar em

nada nem desejar coisa alguma”. Minhas

crenças e meus desejos devem ser sempre

referentes a alguma coisa. Mas meu nervosismo

e minha ansiedade não-direcionada não

precisam ser referentes a alguma coisa, nesse

sentido. Tais estados são caracteristicamente

acompanhados por crenças e desejos, mas os

estados não-direcionados não são idênticos às

crenças ou aos desejos. Segundo minha

explicação, se um estado E é Intencional, deve

haver uma resposta para perguntas como: A que

se refere E? Em que consiste E? O que é um E

tal que? (SEARLE, 2002, p. 2, grifos do autor)

Por “deve haver uma resposta” Searle não está exigindo que a

resposta possa ser fornecida. Primeiramente porque ele

concede que consciência e intencionalidade não coincidem, e

posso não estar ciente de qual o objeto de meu estado mental

em um dado momento. Em segundo lugar, porque o autor

desvincula a linguagem e intencionalidade: “parece-me óbvio”,

afirma Searle (2002, p. 7), “que os recém-nascidos e muitos

animais que, em um sentido ordinário, não possuem uma

linguagem nem realizam atos de fala apresentam, mesmo

assim, estados Intencionais”. Novamente se afastando de

Brentano, Searle (2002) defende que também a linguagem

apresenta intencionalidade, mas de um modo derivado,

diferentemente dos estados mentais, cuja intencionalidade seria

Susie Kovalczyk dos Santos

225

intrínseca, ponto que aqui não será explorado. Searle (2002)

assinala ainda que alguns estados mentais têm ou não

intencionalidade conforme as diferentes circunstâncias:

Por exemplo, assim como há formas de

exaltação, de depressão e de ansiedade em que

se está simplesmente exaltado, deprimido ou

ansioso sem se estar exaltado, de deprimido ou

ansioso a respeito de coisa alguma, há também

modalidades desses estados em que se está

exaltado porque ocorreu isso e aquilo, ou

deprimido ou ansioso com a perspectiva disso

ou daquilo. A ansiedade, a depressão e a

exaltação não-direcionadas não são

Intencionais, enquanto que os casos direcionais

o são. (SEARLE, 2002, p. 2)

Estados mentais são ditos representacionais graças à

intencionalidade. É o que Maslin (2009, p. 289-90) clarifica ao

dizer que certos “estados intencionais, tais como crenças,

pretendem representar como o mundo é realmente. Se o mundo

é como a crença o representa como sendo, a crença é

verdadeira; de outra forma ela é falsa”. Searle (2002, p. 15)

também enfatiza o caráter representacional da intencionalidade

por quando afirma que “todo estado Intencional compõe-se de

um conteúdo representativo em um certo modo psicológico”.

Tal conteúdo é proposicional, seja ele linguisticamente

realizado ou não.

Nos casos em que esse conteúdo é uma

proposição completa e há uma direção de

ajuste, o conteúdo Intencional determina as

condições de satisfação. Condições de

satisfação são condições que, tal como

determinadas pelo conteúdo Intencional, devem

ser alcançadas para que o estado seja satisfeito.

(...) se tenho uma crença de que está chovendo,

o conteúdo de minha crença é: que está

Emoções e intencionalidade

226

chovendo. E as condições de satisfação são: que

esteja chovendo (...). Uma vez que toda

representação – seja esta feita pela mente, pela

linguagem, por imagens ou por qualquer outra

coisa – está sempre submetida a determinados

aspectos e não a outros, as condições de

satisfação são representadas sob determinados

aspectos. (SEARLE, 2002, p. 17, grifos do

autor)

2. Intencionalidade e natureza das emoções

Os modelos contemporâneos para a explicação da

natureza das emoções constituem teorias sentimentalistas,

cognitivistas ou híbridas. Teorias sentimentalistas, como a de

Prinz (2004), caracterizam emoções como sentimentos,

entendidos como estados mentais desprovidos de conteúdo

cognitivo ou representacional. Teorias cognitivistas, como em

Solomon (1977), identificam emoções a estados

representacionais, tais como juízos e crenças. Considerando as

objeções a ambos os tipos de teoria, alguns teóricos

propuseram vias alternativas à adoção de um desses pontos de

vista extremos, optando pela proposta, como Goldie (2000), de

uma teoria híbrida, defendendo que emoções são constituídas

necessariamente por elementos cognitivos e afetivos. A

atribuição de intencionalidade às emoções é importante para

essa distinção, uma vez que é empregada a fim de diferenciar

emoções de sentimentos. Uma objeção tradicional às teorias

sentimentalistas acerca da natureza das emoções, apresentada

por De Sousa (2013), é que emoções, diferentemente de

sentimentos corporais, são estados intencionais. Assim,

emoções teriam uma propriedade da qual meros sentimentos

carecem, não podendo, portanto, ser assimiladas a estes.

Defensor de um modelo cognitivista acerca da natureza

das emoções, Solomon (1977) explica que emoções são

Susie Kovalczyk dos Santos

227

essencialmente intencionais e constituem-se em juízos. Quando

alguém faz um juízo de caráter emocional, afirma o autor, o

envolvimento é tal que produz uma reação fisiológica, e os

sentimentos são apenas efeitos das emoções. Conforme essa

abordagem, sensações e sentimentos não são necessários para a

emoção. O que há de essencial em todas as emoções é alguma

cognição, ainda que não se esteja reflexivamente ciente dela.

Sem tal engajamento, isto é, sem avaliações, crenças ou juízos

acompanhando sentimentos, não há emoção: a pessoa pode se

sentir desconfortável, mas na ausência de um objeto

amedrontador, esse sentimento não conta como medo, por

exemplo. Quanto a experimentos em que se induz sensações a

partir da administração de químicos ou impulsos elétricos,

Solomon (2008, p. 12, tradução minha) mantém sua posição,

refletida no exemplo de que “[s]e a ira neurologicamente

provocada não inclui algum objeto de irritação, tal reação (o

que quer que possa ser) não pode ser raiva”.

Acusando os teóricos cognitivistas de promoverem uma

visão “intelectualizada” das emoções, Goldie (2000; 2002)

propõe uma teoria híbrida em que intencionalidade e

sentimento são essenciais para as emoções, apresentando-as

como complexas – englobam sentimentos, pensamentos,

mudanças corporais, percepções e disposições para ter outros

pensamentos, sentimentos e para agir –, episódicas, dinâmicas

– tais elementos que compreende vêm e vão ao longo do tempo

– e estruturadas – consistem em partes de uma narrativa, na

qual estão inseridas. Segundo ele, muitos filósofos incorrem

em erro ao atribuir a intencionalidade das emoções a crenças e

desejos, descartando o elemento que parece central do ponto de

vista de quem vivencia uma emoção, que é o sentimento.

Partindo da rejeição de que crenças e desejos que acompanham

as emoções possam sozinhas esgotar a intencionalidade da

Emoções e intencionalidade

228

emoção, Goldie propõe a noção de sentimento direcionado2 a

um objeto – que é o objeto da emoção, podendo ser uma coisa,

pessoa, ação, evento etc. – que, juntamente com os sentimentos

corporais, faz parte das emoções. O que Goldie denomina

sentimentos corporais envolve, de um lado, as sensações que

alguém tem em função de sua condição corporal, tais como as

sentidas graças a alterações musculares e hormonais, por

exemplo; e de outro, as sensações que alguém tem a partir do

contato físico com objetos, como a sensação tátil que se tem ao

encostar-se a uma superfície gelada, que o autor relaciona às

condições da superfície do corpo. Sentimentos corporais e

sentimentos direcionados são intencionais. Goldie explica que

o sentimento direcionado possui intencionalidade por se dirigir

a um objeto que está para além do sujeito. Assim, se um sujeito

S está irritado, está irritado com algo, alguém ou com uma

situação, que é o objeto da emoção em questão. Os sentimentos

corporais, por sua vez, têm sua intencionalidade dirigida ao

próprio corpo, parte do corpo ou mudança corporal do sujeito

que experimenta esse sentimento.

É possível, entretanto, manter uma posição

sentimentalista acerca da natureza das emoções e defender que

emoções possuem intencionalidade. É o caso de Prinz (2004;

2005), que defende uma versão da teoria sentimentalista de

James (1884), afirmando que emoções, enquanto sentimentos

corporais, não possuem objetos intencionais intrinsecamente.

Prinz propõe a noção de atitudes emocionais, que seriam

atitudes proposicionais que relacionam causalmente emoções e

representações de objetos e estados de coisas. Diante de tais

ocorrências, diz-se que a emoção tem o conteúdo dessas

representações como seu objeto intencional, como em seu

exemplo de que, se há conexão causal entre pensar sobre o

2 feeling towards

Susie Kovalczyk dos Santos

229

governo e sentir raiva, então se diz que se está com raiva do

governo.

A possibilidade de identificar os objetos da emoção às

causas da mesma são postos em questão por De Sousa (2013),

que afirma que, embora tal identificação se dê muitas vezes, há

exemplos em que isso não é possível, como quando um sujeito

S está irritado com o sujeito R em decorrência dos efeitos do

álcool no organismo de S – a causa da irritação é a embriaguez;

o objeto, o sujeito R. O autor defende que o objeto intencional

da emoção é uma propriedade implicitamente atribuída pela

emoção a seu alvo, foco ou objeto proposicional, e que nem

todas as emoções contam com um objeto intencional, sendo

que às que não o possuem seria mais adequado chamar

humores, em vez de emoções. Solomon (2008), por sua vez,

defende que humores têm por objeto o mundo como um todo.

Considerações finais

Ainda que não haja consenso quanto à natureza das

emoções, ou seja, se são cognições, sentimentos ou uma

combinação de afetos e cognições, os diversos modelos

propostos na tentativa de estabelecer o que as constitui

essencialmente precisam considerar que emoções são, em

geral, estados intencionais. Emoções são direcionadas a algo,

ainda que o sujeito dessas emoções não esteja reflexivamente

ciente disso.

As perspectivas aqui sumariamente apresentadas

interpretam de diferentes maneiras esse aspecto das emoções.

Embora Solomon esteja certo ao colocar a intencionalidade

como central para as emoções, sua proposta falha em dois

pontos. Primeiramente, ao condicionar o aspecto intencional a

estados cognitivos e, em segundo lugar, ao conceder aos

sentimentos um papel contingente na constituição das emoções.

Emoções e intencionalidade

230

Uma visão alternativa e que não incorre nos mesmos erros é

apresentada por Goldie, com seu modelo mais abrangente

acerca da natureza das emoções. A grande vantagem da teoria

proposta por Goldie é relacionar afetividade e intencionalidade:

mesmo que ele inclua crenças e desejos como integrantes das

emoções juntamente aos sentimentos, são os sentimentos

também portadores de intencionalidade. É uma solução para a

crítica, tradicionalmente direcionada aos cognitivistas, de que

seres com aparato cognitivo não plenamente desenvolvido, por

assim dizer, possuem emoções – o que impediria que emoções

fossem identificadas essencialmente a estados cognitivos.

Entretanto, há ainda a possibilidade de se defender que

emoções são, em última análise, sentimentos, sem desprezar a

importância de sua intencionalidade. É o que defende Prinz ao

atribuir a intencionalidade das emoções às causas delas, ainda

que negue que emoções sejam estados intrinsecamente

intencionais. O principal problema dessa abordagem, como

apontado, é que, muitas vezes, o que as emoções têm por

objetos intencionais difere daquilo que as causa.

Destarte, considerar a centralidade do aspecto

intencional para as emoções não pode ofuscar o elemento que

parece central do ponto de vista de quem vivencia uma

emoção, que é o sentimento. E, como visto, é possível conciliar

ambos os elementos.

Referências

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Susie Kovalczyk dos Santos

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233

VERDADE E METAFILOSOFIA EM RICHARD RORTY

Vinícius dos Santos Brittes1

1. O problema com a tradição e a perspectiva de

Rorty sobre a verdade

Alguns autores descrevem o quadro intelectual

contemporâneo sobre a verdade como cindido entre relativistas

e absolutistas (cf. BLACKBURN, 2006). De acordo com este

quadro, os relativistas são aqueles que sustentam que a verdade

é relativa ao sujeito, a um grupo, a uma civilização, há um

tempo e lugar determinados, enfim, que a verdade é sempre

dependente de seja o que for. Por outro lado, os absolutistas

defendem que a verdade é objetiva, ou seja, não dependente de

nenhum tipo de item da lista acima, mas unicamente da

realidade ou da maneira como as coisas são. Rorty defende que

os pares desta disputa jogam um jogo de cartas marcadas, e que

tal contenda não é mais fundamental para a investigação

filosófica. Para ele, esta disputa ocorre apenas dentro de um

determinado quadro conceitual que tem suas raízes em Platão.

Tal como qualquer questão ou problema filosófico,

compreender a verdade permanece sendo um desafio, pois não

existe acordo consensual por parte dos filósofos sobre o que é a

verdade ou o que ela significa, nem como podemos

adequadamente entende-la, ou seja, também não existe um

método (consensualmente) adequado para investiga-la. As

1 E-mail: [email protected]

Verdade e metafilosofia

234

teorias da verdade, da maneira como foram sendo

desenvolvidas pela tradição filosófica, em especial após a

virada linguística, compreenderam o problema da verdade de

muitos modos distintos e apresentaram soluções diferentes para

cada um (cf. KIRKHAM, 2003). O século XX foi

possivelmente o mais fértil em teorias sobre a verdade, mas

também nele encontramos os pontos de vista segundo o qual a

verdade não é algo a respeito do que podemos (ou deveríamos)

fornecer alguma definição cabal, ou ainda, que a verdade

sequer seja algo sobre o qual deveríamos ter qualquer teoria

filosófica. Davidson, por exemplo, defendeu a primeira

postura, Rorty a segunda. Entretanto, embora Rorty tenha

afirmado que a verdade não é um tópico filosófico interessante,

ele certamente não seguiu sua própria conclusão, dado que em

inúmeros escritos seus a verdade aparece como um tema

central.

Para bem compreender as elucubrações de Rorty sobre

a verdade, é útil, antes de tudo, esboçar o pano de fundo donde

emerge suas criticas a maioria dos problemas filosóficos,

inclusive a verdade. Tento fornecer isto brevemente no

parágrafo que segue.

No projeto filosófico de Platão, metafísica e

epistemologia estão intimamente relacionadas. Na busca pelo

conhecimento genuíno Platão cindiu o mundo em dois, mundo

natural ou sensível e mundo inteligível. Com esse dualismo

primordial, que é o centro do pensamento platônico, emergem

as dicotomias aparência/realidade e opinião/conhecimento.

Para Rorty, o pressuposto fundamental do projeto de Platão

esta na ideia de que nós, seres humanos, e de modo algum os

outros animais desprovidos de racionalidade, podemos

transcender nossa finitude existencial nesta vida por meio da

contemplação (conhecimento genuíno) de algo eterno,

imutável, absoluto. No caso de Platão, eram as formas ou

ideias inteligíveis, mas este anseio permaneceu de diferentes

Vinícius dos Santos Brittes

235

modos ao longo da história da filosofia, como a palavra ou

mensagem de Deus durante os séculos católicos, a estrutura do

universo para muitos cientistas naturais, ou simplesmente a

Verdade, singular, única. Qualquer destas coisas exibe (para

aqueles que podem conhecê-las) uma imperturbabilidade

existencial completamente alheia aos interesses humanos. O

quadro conceitual rico em dicotomias inaugurado por Platão é

aperfeiçoado no período moderno por Descartes, que concebe a

mente como aquilo a que temos acesso privilegiado, o que dá

ensejo a mais dualismos que são ainda hoje basilares na

investigação filosófica: a relação da mente com o corpo, e das

representações mentais com a realidade (com a virada

linguística este dualismo foi atualizado para a relação da

linguagem com o mundo). Assim, em sua leitura da história da

filosofia (em especial da filosofia moderna, na qual Kant

representa o expoente máximo), Rorty assevera que certa

“imagem” vem dominando a agenda filosófica e impondo

problemas que “naturalmente” surgem a um espirito

investigativo. Esta imagem é a da mente como um espelho,

contendo representações mais ou menos precisas sobre o que

esta fora dela - sobre o mundo -, por conseguinte, deve haver

um tipo especial de investigação (e de teorização) que é capaz

de dizer quando as nossas representações representam bem a

realidade e quando não o fazem; esta investigação é a filosofia

(qua epistemologia). Esta é a imagem da filosofia como um

tipo de conhecimento fundante (já que investiga, descobre e/ou

postula os critérios de correção das representações) e da mente

como um espelho da natureza. Aceita esta imagem, alguns

problemas surgem “naturalmente”: quais são os fundamentos

do conhecimento? A mente humana descobre (realismo) ou

cria (idealismo) a realidade? Qual a relação entre a mente e o

corpo? Um possível resumo deste paragrafo seria o de que a

suposição de que existe um modo como o mundo é em si

mesmo (à parte de qualquer descrição) gera o problema de

Verdade e metafilosofia

236

como podemos saber se nossas descrições de fato se referem à

realidade.

A tradição filosófica sempre se viu as voltas com a

tarefa de garantir nosso conhecimento da realidade (como ela

é), e o conceito de verdade desempenhou um papel chave neste

empreendimento, principalmente ao se supor que a verdade

(tendo em vista o quadro acima) é o que nos possibilita

diferenciar o aparente do real, a crença justificada do

conhecimento, na medida em que nossas crenças e

representações correspondem à realidade. Para Rorty, a noção

da verdade como correspondência mostra exemplarmente o

anseio em sermos guiados por lago maior que nós próprios, “A

ideia de verdade como algo que persuade por sua própria

causa, não por ser boa para nós, ou para uma comunidade real

ou imaginária, é o tema central dessa tradição [a tradição

cultural ocidental, centrada na noção de busca pela verdade]”

(RORTY, 2002, pg. 37) - e, neste sentido, ele chega a afirmar

que a verdade se tornou um substituto para Deus (cf. RORTY,

2009, pg. 159). Mas este não é o único problema que Rorty

apresenta em sua rejeição da verdade como correspondência. É

possível identificar outras razões de que lança mão para sua

rejeição:

a) explicar a verdade em termos de

correspondência não é esclarecedor, “(...)

várias centenas de anos de esforços não

conseguiram extrair um sentido interessante da

noção de ‘correspondência’ (quer de

pensamentos às coisas, quer de palavras às

coisas)” (RORTY, 1999, pg. 17) e, portanto, a

ideia de correspondência é inútil.

b) não existe a maneira pela qual o mundo

gostaria de ser descrito, dado que a realidade

não possui uma natureza intrínseca. Assim,

nossas crenças não podem ser tornadas

Vinícius dos Santos Brittes

237

verdadeiras pelo mundo (ou pelo que quer que

seja), “não há maneira de sairmos fora de nossas

crenças e de nossa linguagem para encontrar

algum teste que não a coerência.” (RORTY,

1994, pg. 183).

c) deveríamos adotar uma perspectiva darwiniana

sobre a linguagem, entendendo-a como uma

habilidade adaptativa, ao invés de como um

meio de representar a realidade,

[os pragmatistas] levaram Darwin e a biologia a

sério, eles tinham um motivo adicional para

desconfiar da ideia de que as crenças

verdadeiras são representações corretas, pois a

representação, em oposição ao comportamento

adaptativo cada vez mais complexo,

provavelmente não combina com uma história

evolucionária. (RORTY, 2005, p. 4 - 5).

O que Rorty acredita que a verdade faz por nós, então?

Um dos pontos centrais de seu pragmatismo é a maneira como

ele concebe a verdade. Como vimos, sua posição em relação a

este tópico é marcada pela repulsa a concepção da verdade

como correspondência que, como esboçado acima, enraíza-se,

para Rorty, no anseio por algo absoluto. A origem de seu ponto

de vista crítico esta no pragmatismo americano, nomeadamente

James e Dewey, passando pelo segundo Wittgenstein, por

Quine e Sellars, e ganhando plena maturação sob a influência

da obra de Donald Davidson.

A visão de Rorty sobre a verdade tem inicio a partir da

teoria pragmática da verdade2, e o pragmatismo, da maneira

2 Desconsidero aqui a questão sobre se existe uma teoria pragmática da

verdade, dado que os autores ditos “pragmáticos”, além de discordarem

amplamente entre si, também apresentam inconsistências internas em suas

perspectivas (Sobre este ponto, cf. KIRKHAM, 2003, p. 118 - 119). Dessa

forma, ao afirmar que Rorty recebe influencia de uma teoria pragmática da

Verdade e metafilosofia

238

que Rorty o entende, é fundamentalmente antiessencialismo

(não existe nada substancial no conceito de verdade, ou seja,

este termo não designa nenhuma essência ou propriedade

metafísica); rejeição dos dualismos filosóficos tradicionais (tais

como fato-valor) e a ideia de que as únicas restrições à

investigação são as conversacionais “[...] nenhumas restrições

gerais derivadas da natureza dos objetos, ou da mente, ou da

linguagem, mas apenas as restrições particulares fornecidas

pelas observações dos nossos companheiros investigadores”

(RORTY, 1999, p. 236 - 237). A noção de verdade que emerge

ao se conceber o pragmatismo desta maneira não terá a forma

de uma explicação sobre o conteúdo profundo do termo, ou

ainda, que o próprio termo “verdade” deva ser usado para

explicar algo como a conexão entre a linguagem e o mundo.

Desta forma, resta então unicamente mapear nossos usos do

termo “verdadeiro” e ver o que fazemos quando o empregamos.

No ensaio Pragmatismo, Davidson e a Verdade

(RORTY, 2002), Rorty apresenta três usos de “verdadeiro” em

nosso discurso,

(i) uso endossador é aquele onde simplesmente

expressamos nossa aprovação diante de um

enunciado,

(ii) uso acautelado ocorre ao dizermos “Sua

crença em S está perfeitamente justificada,

mas talvez não seja verdadeira”, e o

(iii) uso descitacional, que nos permite “dizer

coisas metalinguísticas do tipo ‘S é

verdadeiro se ____’”.

Fica claro que esta não é uma teoria sobre a verdade. E

é evidente também que a verdade assim concebida não faz

verdade, estou apenas indicando que sua perspectiva sobre a verdade

contem elementos do que Peirce, James e Dewey, por exemplo, disseram

sobre o assunto.

Vinícius dos Santos Brittes

239

nenhuma referencia ao mundo, mas apenas aos usuários da

linguagem. Isto parece entrar em conflito com nosso “realismo

de senso comum”, pois acreditamos fielmente que nossas

crenças verdadeiras se referem ao mundo, e que são tornadas

verdadeiras por ele. Supondo, então, que eu diga (e acredite)

que “há um pássaro lá fora na janela”, se me perguntado como

sei disso, posso responder “por que vi”, então o que garante a

objetividade de minha crença, o que faz com ela seja

verdadeira, é minha capacidade de representar a realidade

como ela é (para mim e para outros). Contudo, seguindo as

criticas de Rorty, a ideia da realidade como ela é deve ser

abandonada. Como posso então justificar minha crença sobre o

pássaro? Para Rorty, ela esta justificada no momento em que

dou razões para ela e que aqueles que a requerem aceitam estas

razões. A verdade, segundo o ponto o “b” descrito acima, não

vem de lugar algum que não do próprio intercambio linguístico

entre as pessoas - ter crenças verdadeiras é uma condição para

usar a linguagem de modo competente.

Assim, deve o realismo de senso comum ser

abandonado? Somente se ele for metafisico. Somente se ele

pretende ser uma teoria da verdade, como alguns filósofos

tentaram fazer. Mas o realismo de senso comum não precisa

pressupor uma natureza intrínseca da realidade, ou seja,

podemos continuar a acreditar que nossas crenças representam

o mundo. Ele pressupõe apenas que a realidade é independente

de nossas crenças sobre ela. Quando dizemos que nossas

crenças representam a realidade, temos a pretensão de que o

que dizemos (nossas descrições, no linguajar de Rorty) não

determina a existência daquilo que estamos tentando exprimir.

A linguagem continua a se referir ao mundo, mas não há

porque dar um segundo passo e afirmar que ela é uma copia tal

e qual o mundo é em si mesmo. O ponto de discórdia nisto

tudo, em relação à Rorty, é que podemos continuar a acreditar

Verdade e metafilosofia

240

num mundo (de eventos e objetos) independente de nossas

descrições. Putnam sugere a seguinte analogia:

Embora eu não possa sair de minha própria pele

e comparar o futuro tal como será depois de

minha morte, com meus pensamentos e ideias

sobre o futuro, eu realmente não posso por essa

razão parar de supor que existem eventos que

irão acontecer depois de minha morte e adquiro

um seguro de vida com o intuito de afetar o

curso desses eventos. (PUTNAM, 2008, pg.

136)

Desta forma, podemos seguir Rorty em sua critica a

teoria da verdade como correspondência, mas não precisamos

ser eliminativistas em relação à ideia de “corresponder” ou

“referir” a realidade, como sua critica sugere.

2. A estratégia argumentativa de Rorty

A abordagem de Rorty de tópicos filosóficos como a

verdade é controversa e incômoda, sua estratégia

argumentativa não visa resolver os problemas com que debate,

antes, intenta mostrar que eles não precisam necessariamente

ser vistos como problemas. Michael Willians denomina esta

posição de “diagnose teórica”, ela consiste na demonstração

dos pressupostos assumidos tacitamente que dão origem a um

modelo inteiro de investigação.

Se esses pressupostos podem ser desafiados

com sucesso, então os problemas que eles dão

origem podem sensatamente ser postos de lado,

e as tentativas de resolvê-los a nível teórico se

tornam ociosas. Isto é o que ocorreu com outras

disciplinas no passado: demonologia e

astrologia judicial, por exemplo. Para Rorty, a

Vinícius dos Santos Brittes

241

epistemologia merece o mesmo destino.

(WILLIAMS, 2000, pg. 191)

Nesta citação é possível vislumbrar porque a

abordagem de Rorty é inquietante (ou até merecedora de

desdém) para muitos dos filósofos contemporâneos: seu ponto

de vista torna supérfluo muito do que vem sendo dito e

defendido sobre o conhecimento e a verdade. Evidentemente,

para aqueles que não se deixam convencer ou influenciar por

seus pontos de vista, ele não precisa ser levado em

consideração3. Atualmente, a epistemologia, a qual Rorty

pretendeu ser uma espécie de coveiro, continua a ser uma

importante e debatida área da filosofia. Entretanto, penso que

as considerações metafilosóficas de Rorty podem deixar uma

marca profunda na autoimagem da filosofia, ainda que suas

conclusões mais radicais não vinguem, e no que segue, tentarei

dizer por que.

Rorty é uma espécie de filosofo “terapeuta”, num

sentido aproximadamente wittgensteiniano da palavra: alguém

que busca dissolver certos problemas filosóficos ao esclarecê-

los. Mas ele faz isto de um modo peculiar, tentando

esquadrinhar a origem histórica dos problemas filosóficos e

3 É possível fazer aqui uma comparação entre a atitude de Rorty diante dos

problemas tradicionais da epistemologia e a atitude do segundo

Wittgenstein diante dos problemas filosóficos em geral. É famosa a

controvérsia de Wittgenstein com Popper durante uma conferencia em

Cambridge nos anos quarenta. Wittgenstein defendia o ponto de vista, tão

radical quanto o de Rorty, de que não existem problemas filosóficos

genuínos, de que as questões filosóficas não passam de perplexidades

linguísticas, ao contrário, para Popper os problemas filosóficos eram reais

(Sobre esta controvérsia, cf. EDMONDS e EIDINOW, 2010). A história

parece ter seguido Popper nesta conclusão, mas, paradoxalmente, a

influência de Wittegenstein se mostrou bem maior. A lição favorável a

Rorty que se pode tirar deste caso é a de que mesmo ideias filosóficas

radicais podem se mostrar profícuas para o desenvolvimento da filosofia.

Verdade e metafilosofia

242

mostrando a marca da contingência em tais problemas. Neste

ponto ele se afasta de Wittgentein, para quem os problemas

filosóficos eram, de fato, pseudoproblemas. Para Rorty, não há

problema em reconhecer a legitimidade dos problemas

filosóficos - eles são problemas genuínos, porém apenas dentro

de um conjunto de ideias, pressupostos e valores determinados

que lhes confiram inteligibilidade, mas que podem, em todo

caso, serem postos de lado (cf. WILLIAMS, 2000, pg. 191).

Suas considerações envolvem o seguinte tipo de questão: por

que deveríamos levar adiante o vocabulário e o modo de pensar

que nos deixa com um problema relativo à fundamentação do

conhecimento, que nos leva a um abismo entre a realidade e

aparência, e a entender a verdade como correspondência a

realidade? É possível conceber o conhecimento como algo que

não necessite de fundamentos e a mente como algo que não

contém representações que, se corretas, correspondem à

realidade? A diagnose teórica pretende fornecer as respostas.

Rorty não oferece (ou, ao menos, pretende não

oferecer) uma argumentação sistemática que demonstre, por

exemplo, a falsidade da concepção correspondencial da

verdade (ou da mente como espelho da natureza). Antes,

pretende nos incitar a deixar de conceber a verdade, ou o

conhecimento, ou a justificação, ou ainda a moralidade, de

certa maneira (a maneira como estes termos

predominantemente são concebidos pela filosofia). Ele faz isso

por meio dos seguintes passos: (i) exibindo a contingencia do

vocabulário que confere inteligibilidade a estes termos, e, mais

importante, (ii) mostrando que é inútil continuar a entender a

verdade, ou o conhecimento, por exemplo, de um determinado

modo. Sua obra mais influente, A Filosofia e o Espelho da

Natureza, apresenta seu mais pleno desenvolvimento do ponto

(i). O critério principal, então, pelo qual Rorty julga a

viabilidade de um vocabulário é a utilidade.

Vinícius dos Santos Brittes

243

A questão que nos importa, a nós, pragmatistas,

não é saber se um debate faz ou não sentido, se

ele remete a problemas reais ou não reais, mas

determinar se esse debate terá um efeito na

pratica, se ele será útil. Nós nos perguntamos se

o vocabulário pelo qual se exprime esse debate

é passível de ter um valor prático, sabendo que

a tese do pragmatismo é: se esse debate não tem

incidência prática, então ele também não deve

ter incidência filosófica, segundo a fórmula de

William James. (ENGEL e RORTY, 2008, p.

54 - 55).

Diante disso, poderíamos objetar que a filosofia sempre

foi encarada como uma pratica eminentemente teórica, tanto

que, uma imagem comum associada a ela é a do filosofo

meditando confortavelmente em uma poltrona, completamente

alheio ao mundo ao seu redor. Mas esta imagem perde alcance

tão logo se constata que a filosofia, ao longo de sua historia,

sempre esteve envolvida com questões sociais e politicas.

Neste sentido, a ênfase de Rorty no “valor prático” parece

indicar que ele favoreceria apenas um tipo de filosofia

“engajada”. Mas isto é um erro. Alguns dos maiores heróis

filosóficos de Rorty são Davidson, Wittgenstein, Quine e

Sellars, autores que pouco ou nada escreveram sobre política,

ética ou critica social, tratando em suas carreiras

predominantemente de temas de filosofia da mente e da

linguagem. Qual seria então o valor pratico que Rorty vê

nestes autores, pelos quais ele tem tanta admiração e que nunca

praticaram de maneira alguma um tipo de filosofia engajada?

Esta resposta pode ser encontrada na maneira como

Rorty compreende a filosofia. Segundo ele, a Filosofia, com

“F” maiúsculo, é a busca por algo maior que nós mesmos (a

Realidade, a Verdade, as coisas como elas são), é a realização

do anseio transcendente delineado acima. Mas filosofia, com

“f” minúsculo, é simplesmente a busca por um caminho que

Verdade e metafilosofia

244

harmonize os diferentes anseios e interesses da sociedade em

uma época, e esta busca acaba por resultar na formação de

novas formas de vida. Assim, estes filósofos nos fornecem um

novo vocabulário para descrevermos as praticas humanas, a

nós mesmos e ao mundo, vocabulários onde verdade,

significado, conhecimento, linguagem, razão e ação não

acarretam questões do tipo “O que é verdadeiramente real?”,

“Como é possível escaparmos do ceticismo?” e “Os valores

morais são objetivos ou subjetivos?”. Um vocabulário que, na

opinião de Rorty, cria condições para que possamos

compreender as empresas humanas (investigar a natureza,

buscar uma sociedade mais justa) por referencia a nossos

interesses cambiantes e não por problemas e questões distintos,

perenes, que forçosamente se impõe ao intelecto. A mudança

de mentalidade (ou, para usar uma expressão de Rorty, de

nossa rede de crenças e desejos) que estes pensadores nos

proporcionam resulta em mudança de comportamento, o que

pode se tornar, por fim, em mudança social. Por exemplo,

Galileu e seus seguidores descobriram, e os

séculos subsequentes confirmaram amplamente,

que se obtém muito melhores prognósticos

pensando as coisas como massas de partículas

colidindo cegamente umas com as outras em

vez de as pensar como Aristóteles pensou –

animisticamente, teleologicamente e

antropomorficamente. (RORTY, 1999, pg. 267)

A partir de Galileu, um novo paradigma teórico e

comportamental passou a se desenvolver na investigação da

natureza. Talvez de modo menos emblemático os heróis de

Rorty citados acima também operaram cada um a seu modo,

redescrições úteis de problemas da reflexão filosófica. Neste

sentido, podemos chegar à conclusão de que as próprias

reflexões metafilosóficas de Rorty possuem valor pratico, pois

o que mais ele faz com seus pontos de vista radicais senão

Vinícius dos Santos Brittes

245

reorientar (ao redescrever) a natureza e a tarefa própria da

filosofia – da contemplação e da busca por essências a uma

ferramenta de mudança social?

3. Breve defesa da diagnose teórica

A marca wittgensteiniana no filosofar de Rorty é ainda

mais profunda do que ele reconhece. O segundo Wittgenstein

legou a Rorty, e a muitos outros, a ideia de que a linguagem é

fundamentalmente uma pratica social e que é ilusório tentar

transcender esta prática para atingir algum padrão de correção

de nossas crenças que não seja a própria prática. Um ponto

importante é de que as práticas sociais humanas, entre elas a

linguagem, se transformam, modificam-se através do tempo. É

este elemento temporal que dá à diagnose teórica seu valor

principal. Não se trata de dizer que a história da filosofia é

essencial para se filosofar, mas que esta atividade humana,

como qualquer outra, esta sujeita à transformação no tempo. A

primeira vista isto é um truísmo inofensivo, mas do ponto de

vista de Rorty, significa que as questões, os problemas, os

conceitos e os métodos filosóficos mudam radicalmente, de

modo que não existe um tópico ou um método que seja distinto

da atividade de filosofar.

O historiador e filósofo politico britânico Isaiah Berlin

concebia as questões filosóficas como aquelas que não

sabemos onde procurar as respostas, que não possuem nenhum

método consensual de resolução. Assim, por exemplo,

[...] não era nenhum erro considerar a

astronomia uma disciplina ‘filosófica’,

digamos, no inicio da Idade Média: enquanto as

respostas a perguntas sobre as estrelas e os

planetas não eram determinadas por observação

ou experimentos e cálculos, mas dominadas por

noções não empíricas como aquelas, por

Verdade e metafilosofia

246

exemplo, de corpos perfeitos determinados a

seguir caminhos circulares por suas metas ou

essências interiores [...], não era claro como as

questões astronômicas podiam ser resolvidas

[...] (BERLIN, 2005, pg.52)

Se seguirmos Berlin e assim concebermos a natureza

dos problemas filosóficos, não mais veremos a hermenêutica, a

fenomenologia, a análise conceitual, a desconstrução e, por

fim, a diagnose teórica de Rorty, como tentando constituir o

método filosófico por excelência, aquele que alcança a

verdade, mas como caminhos alternativos, mesmo que

excludentes, para a concepção e resolução dos problemas

filosóficos – problemas que não possuem nenhum método

consensualmente adequado de resolução. Este ponto de vista

acaba por promover um ideal de tolerância para as buscas

intelectuais da reflexão filosófica, e creio que Rorty estaria de

acordo que tal perspectiva possui, por isso, valor prático.

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