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 1 O CEPTICISMO DE HUME Texto 1 Causalidade, inferência indutiva, eu e mundo (...)O teste adoptado por Hume para determinar se uma frase tem sentido e pode exprimir conhecimento não o levou apenas ao abandono de crenças metafísicas. Noções centrais como as de causalidade, eu e mundo terão de ser drasticamente redefinidas. Vejamos como. Em que experiência se baseia a noção de causalidade? Na experiência de ver repetidamente um certo tipo de objecto ou evento ser seguido por um objecto ou evento de outro tipo. Essa experiência de contiguidade leva a mente a inferir um determinado objecto ou evento sempre que tem a impressão do objecto ou evento que habitualmente o antecede. Segundo Hume, a causalidade é simplesmente uma conexão mental que a experiência do passado formou em nós; é um hábito mental produzido por factos contingentes ligados à natureza humana. Daqui resulta que a ideia tradicional de causalidade como conexão necessária entre duas coisas terá de ser abandonada e redefinida. Não temos a impressão de uma conexão necessária entre duas coisas; o que temos é apenas a impressão de contiguidade entre objectos ou eventos. O que deste modo se forma em nós é apenas um hábito mental e não há lugar para qualquer demonstração a priori da existência de relações causais no mundo. Este hábito mental de estabelecer conexões causais está na base de inferências de factos observados para factos não observados e do passado para o futuro. Essas inferências são argumentos indutivos como os seguintes: da experiência de ter observado que a cadeira onde estou sentado aguenta o meu peso, concluo que será bastante provável que o mesmo aconteça no futuro; do facto de ter tido a experiência de que o pão alimenta e dá energia, concluo que todo o pão alimenta e dá energia. Mas o que nos leva a pensar assim? A resposta é que esperamos que os casos futuros sejam semelhantes aos casos do passado e que o curso da natureza continue uniformemente a ser o mesmo. A isto chama Hume o Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN). Há alguma justificação para PUN, ou estamos mais uma vez na presença de um hábito mental contingente? Vejamos o que sucede se tentarmos justificar PUN através de um argumento indutivo. PUN afirma que as uniformidades do passado continuarão no futuro. Em que premissa podemos apoiar esta conclusão? Na premissa de que a natureza tem sido uniforme nas minhas observações do passado. Mas como Hume diz que todos os argumentos indutivos pressupõem PUN como premissa, o argumento é circular: pressupõe como premissa o que tenta estabelecer como conclusão. Logo, a justificação indutiva de PUN falha. E será que uma justificação dedutiva de PUN teria sucesso? Mais uma vez, Hume diz que não. Se apreciares mais uma vez o argumento do parágrafo anterior, terás de concluir que ele não é dedutivamente válido. PUN não pode ser deduzido das observações feitas no passado. Um outro tipo de justificação dedutiva seria deduzir PUN das definições dos termos que usa. Nesse caso PUN seria uma verdade conceptual como "Um dia húmido não é um dia seco". Assim, tal como da definição de "dia húmido" podemos deduzir que "um dia húmido não é um dia seco", também seria possível deduzir que "a natureza é uniforme" da definição de "natureza". Mas é evidente que não há qualquer contradição se dissermos que a natureza deixará subitamente de ser uniforme. Logo, esta tentativa também falha. PUN não é uma verdade conceptual. Mas se todas estas tentativas falham, o que é PUN então? Mais uma vez, é simplesmente um hábito mental contingente, ainda que bastante importante na aquisição de conhecimento empírico. Tal como a noção de

Textos de Apoio - O Cepticismo de Hume

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O CEPTICISMO DE HUME

Texto 1

Causalidade, inferência indutiva, eu e mundo

“(...)O teste adoptado por Hume para determinar se uma frase tem sentido e pode exprimir conhecimento não o

levou apenas ao abandono de crenças metafísicas. Noções centrais como as de causalidade, eu e mundo terão de

ser drasticamente redefinidas. Vejamos como. Em que experiência se baseia a noção de causalidade? Na

experiência de ver repetidamente um certo tipo de objecto ou evento ser seguido por um objecto ou evento de

outro tipo. Essa experiência de contiguidade leva a mente a inferir um determinado objecto ou evento sempre que

tem a impressão do objecto ou evento que habitualmente o antecede. Segundo Hume, a causalidade é

simplesmente uma conexão mental que a experiência do passado formou em nós; é um hábito mental produzido por

factos contingentes ligados à natureza humana. Daqui resulta que a ideia tradicional de causalidade como conexão

necessária entre duas coisas terá de ser abandonada e redefinida. Não temos a impressão de uma conexão

necessária entre duas coisas; o que temos é apenas a impressão de contiguidade entre objectos ou eventos. O que

deste modo se forma em nós é apenas um hábito mental e não há lugar para qualquer demonstração a priori da

existência de relações causais no mundo.

Este hábito mental de estabelecer conexões causais está na base de inferências de factos observados para factos

não observados e do passado para o futuro. Essas inferências são argumentos indutivos como os seguintes: da

experiência de ter observado que a cadeira onde estou sentado aguenta o meu peso, concluo que será bastante

provável que o mesmo aconteça no futuro; do facto de ter tido a experiência de que o pão alimenta e dá energia,

concluo que todo o pão alimenta e dá energia. Mas o que nos leva a pensar assim? A resposta é que esperamos que

os casos futuros sejam semelhantes aos casos do passado e que o curso da natureza continue uniformemente a ser o

mesmo. A isto chama Hume o Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN).

Há alguma justificação para PUN, ou estamos mais uma vez na presença de um hábito mental contingente? Vejamos

o que sucede se tentarmos justificar PUN através de um argumento indutivo. PUN afirma que as uniformidades do

passado continuarão no futuro. Em que premissa podemos apoiar esta conclusão? Na premissa de que a natureza

tem sido uniforme nas minhas observações do passado. Mas como Hume diz que todos os argumentos indutivos

pressupõem PUN como premissa, o argumento é circular: pressupõe como premissa o que tenta estabelecer como

conclusão. Logo, a justificação indutiva de PUN falha.

E será que uma justificação dedutiva de PUN teria sucesso? Mais uma vez, Hume diz que não. Se apreciares mais

uma vez o argumento do parágrafo anterior, terás de concluir que ele não é dedutivamente válido. PUN não pode

ser deduzido das observações feitas no passado. Um outro tipo de justificação dedutiva seria deduzir PUN das

definições dos termos que usa. Nesse caso PUN seria uma verdade conceptual como "Um dia húmido não é um dia

seco". Assim, tal como da definição de "dia húmido" podemos deduzir que "um dia húmido não é um dia seco",

também seria possível deduzir que "a natureza é uniforme" da definição de "natureza". Mas é evidente que não há

qualquer contradição se dissermos que a natureza deixará subitamente de ser uniforme. Logo, esta tentativa

também falha. PUN não é uma verdade conceptual.

Mas se todas estas tentativas falham, o que é PUN então? Mais uma vez, é simplesmente um hábito mental

contingente, ainda que bastante importante na aquisição de conhecimento empírico. Tal como a noção de

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causalidade, não tem uma demonstração a priori. Acontece que a natureza humana funciona assim, mas ninguém

pode honestamente excluir a possibilidade de que um dia deixe de funcionar da mesma maneira.

Intuitivamente supomos que os "eus" são entidades que persistem através do tempo e da mudança. Claro que

acontecem mudanças na vida de uma pessoa, mas presumimos que não são essenciais: no fundo de cada um de nós

há um substrato do nosso pensamento, da nossa percepção, de todas as nossas propriedades psicológicas. Esse

substrato permanece inalterável. Hume defende que esta concepção de eu não tem base empírica. Assim, se por

introspecção tentarmos compreender o que é afinal este eu, veremos apenas uma sucessão de impressões

momentâneas e efémeras numa espécie de teatro em contínua mudança. Nada mais vemos além disto. A

introspecção não capta qualquer substrato inalterável. Ora, o erro da nossa concepção intuitiva está no facto de a

mente sentir a experiência de objectos relacionados como se fosse a experiência de um objecto único e imutável. O

que se passa é que vemos unidade naquilo que de facto é diversidade. Logo, a introspecção apenas nos autoriza a

conceber o eu como um feixe de percepções mutáveis, e não como um substrato permanente.

A mesma estratégia é seguida por Hume quando se trata de examinar a noção de mundo externo. Intuitivamente

supomos que o mundo externo é feito de objectos estáveis. Mas aquilo de que temos experiência directa é

momentâneo e efémero. Logo, a nossa concepção intuitiva de que o mundo é feito de objectos distintos e contínuos

está errada. A experiência não fornece justificação para pensar desse modo. (...)

Conclusão: Como acabaste de ver, a redefinição levada a cabo por Hume de crenças tão fundamentais como

as de causalidade, inferência indutiva, eu e mundo externo pode abalar seriamente a tua confiança nas nossas

capacidades de justificação racional. Essa é a razão que leva alguns filósofos a dizer que os seus argumentos são um

exercício de cepticismo.” 

Faustino Vaz

http://criticanarede.com/hist_descarteshume.html

TEXTO 2“Cepticismo? Sim, no sentido de que o nosso conhecimento não é certo e seguro. Mas uma coisa é ovalor científico dos nossos conhecimentos e outra a sua utilidade prática e vital: sabemos que os nossos"conhecimentos científicos" são mais pretensão e desejo de segurança do que saber, mas não podemos viver semessas sábias ilusões.” (…) 

O problema da existência do mundo exterior“Suponha que perante si e em cima da mesa da sala está uma caneta.Tem a impressão sensível desse objecto através do tacto e da visão. Imagine que fecha os olhos e deixa de pegar nacaneta. Tem agora, segundo Hume, uma ideia da caneta. Será essa ideia suficiente para confirmar que a canetacontinua a existir independentemente da sua percepção?A resposta de Hume é não. Segundo Hume a nossa mente conhece unicamente as suas próprias percepções, isto é,as impressões e ideias que derivam das impressões sensíveis. As impressões são estados internos, subjectivos, e nãopodem constituir prova de que algo tem uma existência contínua e independente fora de nós. É a aparenteconstância das coisas (as coisas que vemos hoje são mais ou menos iguais às que vimos ontem) que nos leva aacreditar que têm uma existência independente das nossas percepções. Esta crença não é para Hume justificável.Mas o facto de não se poder justificar racionalmente a existência do mundo externo não significa, para Hume, negarque este exista. Não podemos conhecer a existência do mundo externo, mas podemos acreditar que este existe.Trata-se de uma crença que até pode ser verdadeira e que, não sendo racionalmente justificável, é, contudo, tãonatural que Segundo Hume devemos perguntar que razões nos levam a acreditar que o mundo externo existe e nãopropriamente se ele existe.” 

Luís Rodrigues, Filosofia, 11ºAno, Plátano Editora, p.193.