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GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ

ROBERTO REQUIÃO

Governador

SECRETARIA DE ESTADO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL - SEPL

NESTOR CELSO IMTHON BUENO

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INSTITUTO PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL - IPARDES

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Diretor Administrativo-Financeiro

MARIA LÚCIA DE PAULA URBAN

Diretora do Centro de Pesquisa

SACHIKO ARAKI LIRA

Diretora do Centro Estadual de Estatística

THAÍS KORNIN

Diretora do Centro de Treinamento para o Desenvolvimento

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CONTEÚDO

A COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DO

PERÍODO FHC E OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA

Fernando Luiz Abrucio

FEDERALISMO E RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS NO BRASIL:

A REFORMA DE PROGRAMAS SOCIAIS

Marta Arretche

COOPERAÇÃO INTER-ORGANIZACIONAL E RESILIÊNCIA DAS

INSTITUIÇÕES: NOTA SOBRE A INTERSETORIALIDADE NA GESTÃO DAS

PÓLITICAS PÚBLICAS

Carlos Aurélio Pimenta de Faria; Carlos Alberto de V. Rocha e

Cristina Almeida Cunha Filgueiras

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A COORDENAÇÃO FEDERATIVA NOBRASIL: A EXPERIÊNCIA DO PERÍODO

FHC E OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA

Fernando Luiz Abrucio*

* Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Programa de Pós-Graduaçãoem Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), além de lecionarPolítica Comparada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). e-mail: <[email protected]>.

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RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 41-67, jun. 2005

Fernando Luiz Abrucio

A COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL:A EXPERIÊNCIA DO PERÍODO FHC

E OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA1

Recebido em 10 de dezembro de 2004Aprovado em 18 de maio de 2005

O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos alvissareiros,mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação intergovernamental constatadosinternacionalmente, de acordo com as especificidades históricas de nossa realidade. O presente artigoconcentra-se basicamente no estudo dos problemas e ações de coordenação federativa ocorridas recentementeno Brasil, mais particularmente no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Apartir desta análise, procura-se, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenaçãointergovernamental colocados para o governo Lula.

PALAVRAS-CHAVE: federação; centralização; descentralização; governo FHC; governo Lula.

I. INTRODUÇÃO

A estrutura federativa é um dos balizadoresmais importantes do processo político no Brasil.Ela tem afetado a dinâmica partidário-eleitoral, odesenho das políticas sociais e o processo de re-forma do Estado. Além de sua destacada influên-cia, a federação vem passando por intensas modi-ficações desde a redemocratização do país. É pos-sível dizer, tendo como base a experiência com-parada recente, que o federalismo brasileiro é atu-almente um dos casos mais ricos e complexosentre os sistemas federais existentes.

Diante de tudo isso, cresce o número de pes-quisas sobre o assunto, de estudiosos brasileirose estrangeiros. Embora esses trabalhos compor-tem abordagens de campos científicos diferen-tes, diversidades de temas e divergências de in-terpretação, há um elemento comum à maioriadeles. Grosso modo, os estudos sobre o federalis-

mo brasileiro privilegiam a análise do embate, hojee ao longo da história, entre o governo federal eos entes subnacionais, por meio de suas elites po-líticas e estruturas de poder. As oposiçõesdescentralização versus centralização (ourecentralização) e o poder dos governadores frenteà força das instâncias nacionais – os partidos e/ouo Presidente da República – dominam boa partedo debate. Esse foco analítico é uma peça-chavena investigação das relações intergovernamentais,mas ele não esgota o seu entendimento e, pior,não leva sozinho à compreensão do funcionamentodos sistemas federais.

É preciso acrescentar outro vetor analítico,pouco explorado no Brasil, bem como no estudode outros países. Trata-se da análise do problemada coordenação intergovernamental, isto é, dasformas de integração, compartilhamento e deci-são conjunta presentes nas federações. Essa ques-tão torna-se bastante importante com acomplexificação das relações intergovernamentaisocorrida em todo o mundo nos últimos anos. Issose deveu à convivência de tendências conflituosase de intrincada solução, entre as quais se desta-cam três:

a) há hoje expansão ou, no mínimo, manutençãodo Welfare State convivendo com maior escas-sez relativa de recursos. Tal situação exige me-lhor desempenho governamental, com fortespressões por economia (cortar gastos e cus-

1 Este artigo baseia-se em duas pesquisas. A primeira foifeita em 2002, para o Ministério do Planejamento e o Pro-grama da Organização das Nações Unidas para o Desen-volvimento, que resultou na publicação O Estado em umaera de reformas: os anos FHC. A segunda chama-se Refor-ma do Estado, federalismo e elites políticas: o governoLula em perspectiva comparada e está em andamento, ten-do como financiador o Núcleo de Publicação e Pesquisas(NPP) da Fundação Getúlio Vargas.

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tos), eficiência (fazer mais com menos) eefetividade (ter impacto sobre as causas dosproblemas sociais) – três tópicos que depen-dem, em países federativos, de maior coorde-nação entre as esferas político-administrativasna gestão das políticas públicas;

b) houve um aumento das demandas por maiorautonomia de governos locais e/ou grupos ét-nicos, levando à luta contra a uniformização ea excessiva centralização, o que acontece aomesmo tempo em que governos e coalizõesnacionais tentam evitar problemas causados pelafragmentação, como a elevação da desigualda-de social, o descontrole das contas públicas deentes subnacionais – como ocorreu na Argen-tina e no Brasil –, a guerra fiscal entre os níveisde governo e, no piores casos, o surgimentode focos de secessão, como na Rússia e

c) se, por um lado, é cada vez maior a interconexãodos governos locais com outras estruturas depoder que não os governos centrais, tais comoos relacionamentos com forças transnacionais– como empresas e organismos internacionais– e as parcerias com a sociedade civil, por ou-tro lado, há simultaneamente uma necessidadede reforço das instâncias nacionais para orga-nizar melhor a inserção internacional do país ereduzir os aspectos negativos da globalização,inclusive para as comunidades locais e seus há-bitos socioculturais.

Conflitos e dilemas como esses revelam, emsuma, que a temática da coordenação federativatem como intuito ir além da dicotomia centraliza-ção versus descentralização. Em recente estudofeito pela Organization for the EconomicCooperation and Development (OECD), com baseem diversas federações, concluiu-se que “Há tem-pos ocorrem debates sobre centralização oudescentralização. Nós precisamos agora estar dis-postos a mover em ambas as direções – descen-tralizando algumas funções e ao mesmo tempocentralizando outras responsabilidades cruciais naformulação de políticas. Tais mudanças estão acaminho em todos os países”2

(OECD, 1997, p.13).

O renascimento da federação brasileira com aredemocratização trouxe uma série de aspectos

alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfren-tar os crescentes dilemas de coordenaçãointergovernamental constatados internacionalmen-te, de acordo com as especificidades históricasde nossa realidade. O presente artigo concentra-se basicamente no estudo dos problemas e açõesde coordenação federativa ocorridas recentemen-te no Brasil, mais particularmente no período go-vernamental do Presidente Fernando HenriqueCardoso (FHC). A partir desta análise, procura-se, ao final, apresentar resumidamente os desafi-os de coordenação intergovernamental colocadospara o governo Lula.

II. O SIGNIFICADO DA COORDENAÇÃO FE-DERATIVA

A temática da descentralização ganhou forçanos últimos 30 anos em todo o mundo. Suaimplementação diferencia-se, no entanto, de paísa país, de acordo com especificidades históricas,coalizões sociais e arranjos institucionais. Dentreestes últimos, a adoção de uma forma federativade Estado é a que tem maior impacto.

O sistema federal é uma forma inovadora delidar-se com a organização político territorial dopoder, na qual há um compartilhamento matricialda soberania e não piramidal, mantendo-se a es-trutura nacional (ELAZAR, 1987, p. 37). O en-tendimento da especificidade do federalismo pas-sa pela análise de sua natureza, de seu significadoe de sua dinâmica.

Primeiramente, toda federação deriva de umasituação federalista (BURGESS, 1993). Duas con-dições conformam esse cenário. Uma é a existên-cia de heterogeneidades que dividem uma deter-minada nação, de cunho territorial (grande exten-são e/ou enorme diversidade física), étnico,lingüístico, sócio-econômico (desigualdades re-gionais), cultural e político (diferenças no processode constituição das elites dentro de um país e/ouuma forte rivalidade entre elas). Qualquer paísfederativo foi assim instituído para dar conta deuma ou mais heterogeneidades. Se um país dessetipo não constituir uma estrutura federativa, difi-cilmente a unidade nacional manterá a estabilida-de social ou, no limite, a própria nação corre riscode fragmentação.

Outra condição federalista é a existência de umdiscurso e de uma prática defensores da unidadena diversidade, resguardando a autonomia local,mas procurando formas de manter a integridadeterritorial em um país marcado por heterogenei-

2 Todos as citações cujos originais são em língua estrangei-ra foram traduzidas pelo autor.

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dades. A coexistência dessas duas condições éessencial para montar-se um pacto federativo. Masque é uma federação? Segundo Daniel Elazar, “Otermo ‘federal’ é derivado do latim fœdus, que [...]significa pacto. Em essência, um arranjo federal éuma parceria, estabelecida e regulada por um pacto,cujas conexões internas refletem um tipo especialde divisão de poder entre os parceiros, baseadano reconhecimento mútuo da integridade de cadaum e no esforço de favorecer uma unidade espe-cial entre eles” (ELAZAR, 1987, p. 5).

O princípio da soberania compartilhada devegarantir a autonomia dos governos e ainterdependência entre eles. Trata-se da fórmulaclassicamente enunciada por Daniel Elazar: self-rule plus shared rule3. Quanto ao primeiro aspec-to, é importante ressaltar que os níveis intermedi-ários e locais detêm a capacidade de autogovernocomo em qualquer processo de descentralização,com grande raio de poder nos terrenos político,legal, administrativo e financeiro, mas sua forçapolítica vai além disso. A peculiaridade da federa-ção reside exatamente na existência de direitosoriginários pertencentes aos pactuantessubnacionais – sejam estados, províncias, cantõesou até municípios, como no Brasil. Tais direitosnão podem ser arbitrariamente retirados pela Uniãoe são, além do mais, garantidos por uma Consti-tuição escrita, o principal contrato fiador do pac-to político-territorial.

Ressalte-se que na federação o poder nacionalderiva de um acordo entre as partes, em vez deconstituí-las. Assim, a descentralização em esta-dos unitários pode até repassar um efetivo poderpolítico, mas esse processo sempre provém docentro e não constitui direitos de soberania aosentes subnacionais.

Os governos subnacionais também têm ins-trumentos políticos para defender seus interessese direitos originários, quais sejam, a existência decortes constitucionais, que garantem a integrida-de contratual do pacto originário; uma segundacasa legislativa representante dos interesses regi-onais (Senado ou correlato); a representação des-proporcional dos estados/províncias menos po-pulosos (e muitas vezes mais pobres) na câmarabaixa e o grande poder de limitar mudanças na

Constituição, criando um processo decisório maisintrincado, que exige maiorias qualificadas e, emmuitos casos, é necessária a aprovação doslegislativos estaduais ou provinciais. E mais: al-guns princípios básicos da federação não podemser emendados em hipótese alguma.

Como bem constatou Alfred Stepan, toda fe-deração restringe o poder da maioria (“demosconstraining”), consubstanciado na esfera nacio-nal. Porém, o federalismo precisa igualmente res-ponder à questão da interdependência entre osníveis de governo. A exacerbação de tendênciascentrífugas, da competição entre os entes e dorepasse de custos do plano local ao nacional sãoformas que devem ser atacadas em qualquer ex-periência federativa, sob o risco de enfraquecer-se a unidade político-territorial ou de torná-la ine-ficaz para resolver a “tragédia dos comuns” típi-ca do federalismo, vinculada a problemas deheterogeneidade. O fato é que a soberania com-partilhada só pode ser mantida ao longo do tempocaso estabeleça-se uma relação de equilíbrio en-tre a autonomia dos pactuantes e suainterdependência.

A interdependência federativa não pode seralcançada pela mera ação impositiva e piramidalde um governo central, tal qual em um Estadounitário, pois uma federação supõe uma estruturamais matricial, sustentada por uma soberania com-partilhada. É claro que as esferas superiores depoder estabelecem relações hierárquicas frente àsdemais, seja em termos legais, seja em virtude doauxílio e do financiamento às outras unidades go-vernamentais. O governo federal tem prerrogati-vas específicas para manter o equilíbrio federati-vo e os governos intermediários igualmente de-têm forte grau de autoridade sobre as instânciaslocais ou comunais. Mas a singularidade do mo-delo federal está na maior horizontalidade entre osentes, devido aos direitos originários dos pactu-antes subnacionais e à sua capacidade política deproteger-se. Em poucas palavras, processos debarganha afetam decisivamente as relações verti-cais em um sistema federal.

O compartilhamento de poder e decisão emuma federação, desde a sua invenção nos EstadosUnidos, pressupõe a existência de controles mú-tuos entre os níveis de governo – trata-se dos

3 “Autogoverno mais governo compartilhado” (nota dorevisor). 4 “Freios e contrapesos” (N. R.).

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checks and balances4. O objetivo desse mecanis-mo é a fiscalização recíproca entre os entes fede-rativos para que nenhum deles concentreindevidamente poder e, desse modo, acabe com aautonomia dos demais. Assim sendo, a busca dainterdependência em uma federação democráticatem de ser feita conjuntamente com o controlemútuo.

Mas, além da garantia da autoridade nacionalsem retirar a autonomia local e da necessidade dechecks and balances entre os níveis de governo,um novo aspecto torna mais complexo o funcio-namento das federações. É que o desenvolvimen-to recente dos estados modernos levou ao cresci-mento do papel dos governos centrais, especial-mente no que se refere à expansão das políticassociais. No caso dos sistemas federais, em quevigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um processo negociado e extenso de shareddecision making5, ou seja, de compartilhamentode decisões e responsabilidades. A interdepen-dência enfrenta aqui o problema da coordenaçãodas ações de níveis de governo autônomos, as-pecto-chave para entender a produção de políti-cas públicas em uma estrutura federativa contem-porânea.

Em seu trabalho sobre os estados de Bem-es-tar Social em países unitários e federativos, PaulPierson (1995) revela que no federalismo as açõesgovernamentais são divididas entre unidades polí-ticas autônomas, as quais, porém, têm cada vezmais interconexão, devido à nacionalização dosprogramas e mesmo da fragilidade financeira ouadministrativa de governos locais e/ou regiões. Odilema do shared decision making surge porque épreciso compartilhar políticas entre entes federa-tivos que, por natureza, só entram nesse esquemaconjunto se assim o desejarem. Desse modo, amontagem dos Welfare States nos países federati-vos é bem mais complexa, envolvendo jogos decooperação e competição, acordos, vetos e deci-sões conjuntas entre os níveis de governo. O de-safio posto por essa questão foi bem resumidopor Pierson: “No federalismo, dada a divisão depoderes entre os entes, as iniciativas políticas sãoaltamente interdependentes, mas são, de modo fre-qüente, modestamente coordenadas” (PIERSON,1995, p. 451).

Para garantir a coordenação entre os níveis degoverno, as federações devem, primeiramente,equilibrar as formas de cooperação e competiçãoexistentes, levando em conta que o federalismo éintrinsecamente conflitivo. Seguindo essa linhaargumentativa, Paul Pierson assim define o funci-onamento das relações intergovernamentais nofederalismo: “Mais do que um simples cabo deguerra, as relações intergovernamentais requeremuma complexa mistura de competição, coopera-ção e acomodação” (idem, p. 458). Daí toda fe-deração ter de combinar formas benignas de coo-peração e competição. No caso da primeira, nãose trata de impor formas de participação conjun-ta, mas de instaurar mecanismos de parceria quesejam aprovados pelos entes federativos. O modusoperandi cooperativo é fundamental para otimizara utilização de recursos comuns, como nas ques-tões ambientais ou problemas de ação coletiva quecobrem mais de uma jurisdição (caso dos trans-portes metropolitanos); para auxiliar governosmenos capacitados ou mais pobres a realizaremdeterminadas tarefas e para integrar melhor o con-junto de políticas públicas compartilhadas, evitandoo jogo de empurra entre os entes. Ainda é peça-chave no ataque a comportamentos financeirospredatórios, que repassam custos de um ente ànação, como também na distribuição de informa-ção sobre as fórmulas administrativas bem-suce-didas, incentivando o associativismo intergoverna-mental.

Não se pode esquecer, também, que o modelocooperativo contribui para elevar a esperança quan-to à simetria entre os entes territoriais, fator fun-damental para o equilíbrio de uma federação. Noentanto, fórmulas cooperativas mal-dosadas tra-zem problemas. Isso ocorre quando a coopera-ção confunde-se com a verticalização, resultandomais em subordinação do que em parceria, comomuitas vezes já aconteceu na realidade latino-ame-ricana, de forte tradição centralizadora.

É também perigosa a montagem daquilo queFritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap(armadilha da decisão conjunta), bastante visívelno caso alemão, mas que se repete igualmente emoutras experiências. Nessa estrutura, todas as de-cisões são o máximo possível compartilhadas edependem da anuência de praticamente todos osatores federativos. Sem desmerecer os ganhos deracionalidade administrativa, tende-se à uniformi-zação das políticas, processo que pode diminuir oímpeto inovador dos níveis de governo, enfraque-5 “Processo decisório compartilhado” (N. R.).

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8 “Corrida ao fundo do poço” (N. R.).

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cer os checks and balances intergovernamentaise dificultar a responsabilização da administraçãopública.

As federações requerem determinadas formasde competição entre os níveis de governo. Pri-meiro, devido à importância dos controles mútu-os como instrumento contra a dominância (ou ti-rania, nos termos de Madison) de um nível degoverno sobre os demais. Além disso, a competi-ção federativa pode favorecer a busca pela inova-ção e pelo melhor desempenho das gestões lo-cais, já que os eleitores podem comparar o de-sempenho dos vários governantes, uma das van-tagens de ter-se uma multiplicidade de governos.A concorrência e a independência dos níveis degoverno, por fim, tendem a evitar os excessoscontidos na “armadilha da decisão conjunta”, bemcomo o paternalismo e o parasitismo causadospor certa dependência em relação às esferas su-periores de poder.

Há uma série de problemas advindos de com-petições desmedidas. O primeiro refere-se ao ex-cesso de concorrência, que afeta a solidariedadeentre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federa-tivo. Quanto mais heterogêneo é um país, em ter-mos socioculturais ou sócio-econômicos, maiscomplicada é a adoção única e exclusiva da visãocompetitiva do federalismo. Países como a Índia,o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza evi-tar uma disputa desregrada entre os entes.

A competição em prol da inovação tambémpode ter efeitos negativos, mais particularmenteno terreno das políticas sociais, como demons-trou o livro de Paul Peterson (The Price ofFederalism, 1995) sobre a experiência recente dosgovernos estaduais norte-americanos. O autorpercebeu o fortalecimento de uma visão acercado federalismo: a de que os cidadãos “votam comos pés”6 , ou seja, podem escolher o lugar queotimize melhor a relação entre carga tributária epolíticas públicas. Diante disso, os estados fica-ram entre duas opções: ou forneciam um cardá-pio amplo de proteção social, tendo como efeitoum Welfare magnets7, isto é, mais pessoas, so-bretudo as mais pobres, morariam nesses luga-res, aumentando os gastos públicos e, em tese,

diminuindo a competitividade econômica daquelelugar; ou, ao contrário, os governadores deveri-am constituir uma estrutura mínima de prestaçãode serviços públicos e baixar os impostos, redu-zindo com isso a afluência dos mais pobres àque-la região e, novamente em tese, elevando acompetitividade econômica e a oferta de empregodo ente federativo que optasse por esta via – é oque Peterson denomina race to the bottom8.

Entre o efeito de Welfare magnets e o race tothe bottom, muitos governadores nos EUA estãoescolhendo a segunda opção, de modo que o au-mento da competição vem acompanhado da re-dução de políticas de combate à desigualdade. Emsuma, o modelo competitivo levado ao extremopiora a questão redistributiva.

O federalismo puramente competitivo vemestimulando, ainda, a guerra fiscal entre os níveisde governo. Trata-se de um leilão que exige maise mais isenções às empresas, em que cada gover-no subnacional procura oferecer mais do que ooutro, geralmente sem se preocupar com a formade custear esse processo. Ao fim e ao cabo, aresolução financeira dessa questão toma rumospredatórios, seja acumulando dívidas para as pró-ximas gerações, seja repassando tais custos parao nível federal e, por tabela, para a nação comoum todo.

O desafio é encontrar caminhos que permitama melhor adequação entre competição e coopera-ção, procurando ressaltar seus aspectos positivosem detrimento dos negativos. Recorrendo maisuma vez à argumentação precisa de Daniel Elazar:“[...] todo sistema federal, para ser bem sucedi-do, deve desenvolver um equilíbrio adequado entrecooperação e competição e entre o governo cen-tral e seus componentes” (ELAZAR, 1993, p. 193;sem grifos no original).

A coordenação federativa pode realizar-se, emprimeiro lugar, por meio de regras legais que obri-guem os atores a compartilhar decisões e tarefas– definição de competências no terreno das políti-cas públicas, por exemplo. Além disso, podemexistir fóruns federativos, com a participação dospróprios entes – como os senados em geral – ouque eles possam acionar na defesa de seus direi-tos – como as cortes constitucionais. A constru-

6 Essa visão foi formulada originalmente por CharlesTiebout (1956).7 “Ímãs de bem-estar” (N. R.). 8 “Corrida ao fundo do poço” (N. R.).

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ção de uma cultura política baseada no respeitomútuo e na negociação no plano intergoverna-mental é outro elemento importante. A forma defuncionamento das instituições representativas,tais como os partidos e o Parlamento, pode favo-recer certos resultados intergovernamentais(ARRETCHE, 2004).

O governo federal também pode ter um papelcoordenador e/ou indutor. Por um lado, porqueem vários países os governos subnacionais têmproblemas financeiros e administrativos que difi-cultam a assunção de encargos. Por outro, por-que a União tem por vezes a capacidade de arbi-trar conflitos políticos e de jurisdição, além de in-centivar a atuação conjunta e articulada entre osníveis de governo no terreno das políticas públi-cas.

A atuação coordenadora do governo federal oude outras instâncias federativas não pode ferir osprincípios básicos do federalismo, como a auto-nomia e os direitos originários dos governossubnacionais, a barganha e o pluralismo associa-dos ao relacionamento intergovernamental e oscontroles mútuos. É preciso, portanto, que hajaprocessos decisórios com participação das esfe-ras de poder e estabelecer redes federativas(ABRUCIO & SOARES, 2001) e não hierarquiascentralizadoras.

Definido o conceito de federalismo e a impor-tância da coordenação intergovernamental dentrodele, o propósito central deste texto é analisar ocaso brasileiro, centrando o foco no período go-vernamental do Presidente Fernando HenriqueCardoso (1995-2002). Mais especificamente, oobjetivo primordial é mostrar como o governofederal, na Era FHC, lidou com a questão da co-ordenação entre os níveis de governo. As açõesde outras instâncias que podem lidar com essetema não serão negligenciadas, mas deverão serentendidas a partir da estratégia adotada pelo po-der Executivo federal.

III. A REDEMOCRATIZAÇÃO E O NOVO FE-DERALISMO BRASILEIRO

A história federativa brasileira foi marcada porsérios desequilíbrios entre os níveis de governo.No período inicial, na República Velha, predomi-nou um modelo centrífugo, com estados tendoampla autonomia, pouca cooperação entre si e umgoverno federal bastante fraco. Nos anos Vargas,o Estado nacional fortaleceu-se, mas os governos

estaduais, particularmente no Estado Novo, per-deram a autonomia. O interregno 1946-1964 foi oprimeiro momento de maior equilíbrio em nossafederação, tanto do ponto de vista da relação en-tre as esferas de poder como da prática democrá-tica. Mas o golpe militar acabou com esse padrãoe por cerca de 20 anos manteve um modelounionista autoritário (ABRUCIO, 1998), com gran-de centralização política, administrativa e finan-ceira.

A redemocratização do país marcou um novomomento no federalismo. As elites regionais, par-ticularmente os governadores, foram fundamen-tais para o desfecho da transição democrática,desde as eleições estaduais de 1982, passando pelavitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral –ele próprio, não coincidentemente, um governa-dor de estado – até chegar à Nova República e àConstituinte. Além disso, lideranças de discursomunicipalista associavam o tema dadescentralização à democracia e também partici-param ativamente na formulação de diversos pon-tos da Constituição de 1988.

Um novo federalismo nascia no Brasil. Ele foiresultado da união entre forças descentralizadorasdemocráticas com grupos regionais tradicionaisque se aproveitaram do enfraquecimento do go-verno federal em um contexto de esgotamento domodelo varguista e do Estado nacional-desenvolvimentista a ele subjacente. O seu proje-to básico era fortalecer os governos subnacionaise, para uma parte desses atores, democratizar oplano local. Preocupações com a fragilidade dosinstrumentos nacionais de atuação e com coorde-nação federativa ficaram em segundo plano.

Dois fenômenos destacam-se nesse novo fe-deralismo brasileiro, desenhado na década de 1980e com reflexos ao longo dos anos 1990. Primeiro,o estabelecimento de um amplo processo dedescentralização, tanto em termos financeiroscomo políticos. Em segundo lugar, a criação deum modelo predatório e não-cooperativo de rela-ções intergovernamentais, com predomínio docomponente estadualista.

Comecemos pela formação do federalismoestadualista e predatório, visto que ele teve umimpacto enorme nos primórdios do novo federa-lismo brasileiro. De 1982 a 1994, vigorou um fe-deralismo estadualista, não-cooperativo e muitasvezes predatório (ABRUCIO, 1998). Essa revira-volta na federação brasileira só pôde efetivar-se,

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em primeiro lugar, porque a União e a própria Pre-sidência da República entraram em uma séria cri-se, que perdurou por pelo menos dez anos. A cri-se abarcava o modelo de financiamento estatal dodesenvolvimento, o equilíbrio das contas públicasnacionais e a burocracia federal – enfim, os ins-trumentos de poder do Executivo federal.

Além do enfraquecimento do pólo nacional,outras quatro características do sistema políticotambém contribuíram para aumentar o poderio dosestados e de seus governadores. A primeira delasfoi a vigência de um sistema ultrapresidencial nosestados – que em grande medida ainda vigora –,que fortaleceu sobremaneira os governadores noprocesso decisório e praticamente eliminou o con-trole institucional e social sobre o seu poder (idem,cap. 3). A segunda diz respeito aos padrõeshegemônicos da carreira política brasileira, cujareprodução dá-se pela lealdade às bases locais epela obtenção de cargos executivos no planosubnacional ou então aqueles no nível nacional quepossam trazer recursos aos “distritos” dos políti-cos. Em ambos os casos, o Executivo estadual épeça fundamental, seja no monitoramento das ba-ses para os deputados, seja para ajudá-los na con-quista de fatias estratégicas da administração pú-blica federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997).

Os caciques regionais tiveram uma posição des-tacada de liderança no Congresso Nacional ao lon-go da redemocratização, por vezes a despeito dospartidos, por outras tornando-se grandes propri-etários de parcelas dos condomínios partidários.Por fim, os governadores possuíam instrumentosfinanceiros e administrativos que os fortaleciamno sistema de poder, como bancos estaduais eempresas estatais estratégicas.

O fortalecimento dos governos estaduais re-sultou na configuração de um federalismoestadualista e predatório. Estadualista porque opêndulo federativo esteve a favor das unidadesestaduais em termos políticos e financeiros, pelomenos até 1994, quando se implementou o PlanoReal. Esse aspecto estava igualmente presente nocomportamento atomizado e individualista dosgovernadores, cujo fortalecimento não resultou emuma coalizão nacional em torno de um projeto dehegemonia nacional, mas sim em coalizões pon-tuais e defensivas para manter o status quo.

O caráter predatório do federalismo brasileiroresultou do padrão de competição não-cooperati-va que predominava nas relações dos estados com

a União e deles entre si. Desde o final do regimemilitar, as relações intergovernamentais verticaistinham sido marcadas pela capacidade de os esta-dos repassarem seus custos e dívidas ao governofederal e, ainda por cima, não se responsabiliza-rem por este processo, mesmo quando assina-vam contratos federativos. Caso clássico dissoforam os bancos estaduais. A partir de 1982, asinstituições financeiras estaduais foram utilizadaspelos governadores como instrumento de atuaçãopolítica. Foram criadas verdadeiras máquinas deproduzir moedas, com efeitos deletérios para ainflação e para o endividamento global.

No plano das relações entre os estados, o as-pecto predatório teve sua principal manifestaçãona guerra fiscal, que começou a ganhar força apósa Constituição de 1988 e ainda continua vigorosanas práticas federativas. O fato é que oestadualismo predatório acabou sendo ele próprioum dos elementos geradores de sua crise, em 1994,como veremos mais adiante.

Esse contexto estadualista tem algo em comumcom a descentralização: o intento de reforçar osgovernos subnacionais, obtendo-se uma autono-mia inédita. A federação tornou-se uma cláusulapétrea e sua extinção ou medidas que alterem pro-fundamente seus princípios não podem ser obje-tos de emenda constitucional (artigo 60, parágra-fo 4 da Constituição Federal de 1988). Os estadosganharam maior capacidade de auto-organizaçãoe novos instrumentos de atuação no planointergovernamental, como as Ações Diretas deInconstitucionalidade (ADINs), extensamente uti-lizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA,1999, p. 55).

Pela primeira vez na história, os municípiostransformaram-se em entes federativos, consti-tucionalmente com o mesmo status jurídico queos estados e a União9. Não obstante essa autono-mia, os governos locais respeitam uma linha hie-rárquica quanto à sua capacidade jurídica – a LeiOrgânica, por exemplo, não pode contrariar fron-talmente a Constituição estadual –, e são, no maisdas vezes, muito dependentes dos níveis superio-res de governo no que tange às questões políti-

9 Já no seu artigo 1, a Constituição define que “a Repúbli-ca Federativa do Brasil [é] formada pela união indissolúveldos Estados e Municípios e do Distrito Federal [...]” (BRA-SIL, 1988).

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cas, financeiras e administrativas.

A nova autonomia dos governos subnacionaisderiva em boa medida das conquistas tributárias,iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983,e consolidadas na Constituição de 1988, o que fazdo Brasil o país em desenvolvimento com maiorgrau de descentralização fiscal (SOUZA, 1998, p.8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram amaior elevação relativa na participação do bolo tri-butário, apesar de grande parte deles dependermuito dos recursos econômicos e administrati-vos das demais esferas de governo. O fato é queos constituintes reverteram a lógica centralizadorado modelo unionista-autoritário e mesmo as re-centes alterações que beneficiaram a União nãomodificaram a essência descentralizadora das fi-nanças públicas brasileiras.

A descentralização foi acompanhada igualmentepela tentativa de democratizar o plano local. Em-bora esse processo seja desigual na sua distribui-ção pelo país e tenha um longo caminho pela frente,ele redundou em uma pressão sobre as antigasestruturas oligárquicas, conformando um fenô-meno sem paralelo em nossa história federativa.Daí surgiram novos atores, como os conselhei-ros em políticas públicas e líderes políticos quenão tinham acesso real à competição pelo poder –o crescimento gradativo da esquerda nas eleiçõesmunicipais, em particular o Partido dos Trabalha-dores (PT), demonstra isso. Também surgiramformas inovadoras de gestão, como o orçamentoparticipativo e a Bolsa-Escola, para ficar com doiscasos famosos.

As conquistas da descentralização não apagamos problemas dos governos locais brasileiros. Emespecial, cinco são as questões que colocam obs-táculos ao bom desempenho dos municípios dopaís: a desigualdade de condições econômicas eadministrativas; o discurso do “municipalismoautárquico”; a “metropolização” acelerada; os res-quícios ainda existentes tanto de uma cultura po-lítica como de instituições que dificultam aaccountability democrática e o padrão de relaçõesintergovernamentais.

Desde a fundação da federação, o Brasil é his-toricamente marcado por fortes desigualdadesregionais, inclusive em comparação com outrospaíses. A disparidade de condições econômicas éreforçada, ademais, pela existência de um contin-gente enorme de municípios pequenos, com bai-xa capacidade de sobreviver apenas com recur-

sos próprios. A média por região é de 75% dosmunicípios com até 50 mil habitantes, ao passoque no universo total há 91% dos poderes locaiscom esse contingente populacional (ARRETCHE,2000, p. 247).

A baixa capacidade tributária dos municípiosbrasileiros é ainda maior sob o ponto de vista com-parado. Segundo estudo realizado por JoséRoberto Afonso e Érica Araújo (2000, p. 48), osgovernos locais brasileiros estavam em 15º lugarem termos de base de arrecadação própria em umuniverso de 19 países. Mas, além da fragilidadefinanceira, a maior parcela das municipalidadesdetém uma máquina administrativa precária.

Somado ao obstáculo financeiro e administra-tivo, o bom andamento da descentralização noBrasil foi prejudicado pelo municipalismoautárquico, visão que prega a idéia de que os go-vernos locais poderiam sozinhos resolver todosos dilemas de ação coletiva colocados às suaspopulações. Essa definição foi elaborada por Cel-so Daniel, ex-Prefeito de Santo André (em 2001),um dos grandes defensores da bandeiramunicipalista, além de um inovador administrati-vo e um democratizador das relações entre Esta-do e sociedade, mas que também sabia dos limi-tes do poder local no país.

O municipalismo autárquico incentiva, em pri-meiro lugar, a “prefeiturização”, tornando os pre-feitos atores por excelência do jogo local eintergovernamental. Cada qual defende seu muni-cípio como uma unidade legítima e separada dasdemais, o que é uma miopia em relação aos pro-blemas comuns em termos “micro” emacrorregionais. Ademais, há poucos incentivospara que os municípios consorciem-se, dado quenão existe nenhuma figura jurídica de direito pú-blico que dê segurança política para os governoslocais que buscam criar mecanismos de coopera-ção. Mesmo assim, em algumas áreas, os con-sórcios desenvolveram-se mais, como em meioambiente e na saúde, porém ainda em uma pro-porção insuficiente para a dinâmica dos proble-mas intermunicipais. Ao invés de uma visão coo-perativa, predomina um jogo em que os municípi-os concorrem entre si pelo dinheiro público deoutros níveis de governo, lutam predatoriamentepor investimentos privados e, ainda, muitas vezesrepassam custos a outros entes, como é o casode muitas prefeituras que compram ambulânciaspara que seus moradores utilizem os hospitais de

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outros municípios, sem que seja feita umacotização para pagar as despesas. Nesse aspecto,a questão da coordenação federativa é chave.

Outro fenômeno que marcou o processo dedescentralização foi a intensa metropolização dopaís. Não só houve um crescimento das áreasmetropolitanas, em número de pessoas e de orga-nizações administrativas, como também os pro-blemas sociais cresceram gigantescamente nes-ses lugares. No entanto, a estrutura financeira epolítico-jurídica instituída pela Constituição de1988 não favorece o equacionamento dessa ques-tão. No que se refere ao primeiro aspecto, a op-ção dos constituintes foi por um sistema de re-partição de rendas intergovernamentais com viésfortemente antimetropolitano, favorecendo inclu-sive a multiplicação de pequenas cidades(REZENDE, 2001). No que tange ao segundoponto, o fato é que as regiões metropolitanas(RMs) enfraqueceram-se institucionalmente emcomparação com a dimensão que tinham no regi-me militar. Prevaleceu o municipalismo em detri-mento das formas compartilhadas de gestãoterritorial. É dessa concepção que se originou aexplosão dos problemas dos grandes centros ur-banos brasileiros.

A quarta característica da descentralização é asobrevivência de resquícios culturais e políticosanti-republicanos no plano local. A despeito dosavanços que houve, que foram muitos se os en-xergarmos de uma perspectiva histórica, diversasmunicipalidades do país ainda são governadas sobo registro oligárquico, em oposição ao modopoliárquico que é fundamental para a combinaçãoentre descentralização e democracia.

É claro que a única maneira de democratizar erepublicanizar o poder local é continuar na trilhada descentralização. Porém, se não houver refor-mas das instituições políticas subnacionais, alémde uma mudança da postura da sociedade em re-lação aos governantes, o processo descentralizadornão leva necessariamente à democracia.

No plano intergovernamental, não se consti-tuiu uma coordenação capaz de estimular adescentralização ao longo da redemocratização. Narelação dos municípios com os estados, predomi-nava a lógica de cooptação das elites locais, típicado ultrapresidencialismo estadual. Adicionalmen-te, as unidades estaduais ficaram, com a Consti-tuição de 1988, em um quadro de indefinição desuas competências e da maneira como se relacio-

nariam com os outros níveis de governo. Essevazio institucional favoreceu uma posição “flexí-vel” dos governos estaduais: quando as políticastinham financiamento da União, eles procuravamparticipar; caso contrário, eximiam-se de atuar ourepassavam as atribuições para os governos lo-cais.

O avanço da descentralização encontrou a Uniãoem uma postura defensiva. Ao perder recursostributários na Constituição e responsabilizar-seintegralmente, em um primeiro momento, pelaestabilidade econômica, o governo federal procu-rou transformar a descentralização em um jogode mero repasse de funções, intitulado à época de“operação desmonte”.

Ao contrário do que o ideário centralista de-fendeu junto à opinião pública, grande parcela dosencargos foi, sim, assumida pelos municípios. Masisso aconteceu de modo desorganizado na maio-ria das políticas – a grande exceção foi a área desaúde. Ademais, a inflação crônica tornava maisinstável o repasse de recursos, dificultando umaassunção programada das atribuições por parte dosgovernos locais. Criou-se, em suma, uma situa-ção de incerteza, de decisões e transferências deverbas em ritmos inconstantes e de ausência demecanismos que garantissem a cooperação e aconfiança mútua.

Aqui se encontra a nova questão resultante dofederalismo conformado na redemocratização: adescentralização depende agora, diversamente doque ocorria no regime centralizador e autoritário,da adesão dos níveis de governo estadual e muni-cipal. Por isso, o jogo federativo depende hoje debarganhas, negociações, coalizões e induções dasesferas superiores de poder, como é natural emuma federação democrática. Em suma, seu su-cesso associa-se a processos de coordenaçãointergovernamental.

O principal problema da descentralização aolongo da redemocratização foi a conformação deum federalismo compartimentalizado, em que cadanível de governo procurava encontrar o seu papelespecífico e não havia incentivos para ocompartilhamento de tarefas e a atuação consor-ciada. Disso decorre também um jogo de empur-ra entre as esferas de governo. O federalismocompartimentalizado é mais perverso no terrenodas políticas públicas, já que em uma federação,como bem mostrou Paul Pierson, o entrelaçamentodos níveis de governo é a regra básica na produ-

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ção e gerenciamento de programas públicos, es-pecialmente na área social. A experiência interna-cional caminha nesse sentido.

Problemas vinculados ao estadualismo preda-tório e à falta de coordenação da descentralizaçãoforam atacados pelo governo Fernando HenriqueCardoso, com sucessos diferenciados, maiores naprimeira questão, mais irregulares na segunda.Antes de analisar as políticas em si, é preciso com-preender as condições que permitiram as mudan-ças, bem como as que ainda criam obstáculos paraa melhoria da coordenação federativa.

IV. FEDERALISMO SOB FHC: PRINCIPAIS MU-DANÇAS

A “Era do Real” marca o início da crise dofederalismo estadualista, embora não tenha con-seguido eliminar todas as suas características pre-datórias – uma delas, a guerra fiscal, até aumen-tou de intensidade. Entende-se aqui o Real de umaforma mais ampla do que um plano de estabiliza-ção: o contexto que o proporcionou e os seus di-versos resultados foram fundamentais para forta-lecer o governo federal e enfraquecer os gover-nos estaduais, mudando a dinâmica intergoverna-mental.

Nesse sentido, a “Era do Real” nasceu antesda promulgação do plano de estabilização. A partirde 1993 e, mais especificamente, da indicação doMinistro Fernando Henrique Cardoso para o Mi-nistério da Fazenda, o governo federal fortaleceu-se em razão dos seguintes fatores:

a) o primeiro foi a mudança no cenário externo.Depois de uma década em que se combina-ram, perversamente, a redução drástica de em-préstimos e refinanciamento externos com umaenorme transferência líquida de recursos parao estrangeiro (SALLUM JÚNIOR, 1999, p. 25),a partir de 1991 começou a ocorrer uma re-versão desse processo. Entre 1992 e 1997ocorreu o auge do fluxo de capitais para aAmérica Latina. De acordo com dados da Co-missão Econômica para a América Latina e oCaribe (Cepal), somente o montante de inves-timento estrangeiro direto passou de US$ 10bilhões, em 1990, para US$ 68 bilhões, em 1997(GAZETA MERCANTIL, 2000, p. A-20).Soma-se a isso a bem-sucedida renegociaçãoda dívida externa realizada em 1993 e que seconstituiu, assim, em uma situação extrema-mente favorável ao poder Executivo federal no

plano internacional, antítese do que fôra a dé-cada de 1980;

b) um segundo ponto importante foi a melhoradas condições das contas públicas federais. Emverdade, a “Era do Real” recebeu “de bandeja”algumas conquistas dos períodos anteriores,como a modernização orçamentária feita nogoverno Sarney e o crescimento das reservascambiais obtido pelo Ministro Marcílio Mar-ques Moreira (governo Fernando Collor deMello). Além disso, desde o governo ItamarFranco houve um aumento progressivo da ar-recadação federal. Diretamente, FernandoHenrique Cardoso, então Ministro da Fazenda,atuou de maneira decisiva para a aprovação doFundo Social de Emergência (FSE), que au-mentou os recursos “livres” da União, consti-tuindo a primeira grande vitória federativa daUnião no campo financeiro desde a aprovaçãoda Emenda Passos Porto, em 1983, quando seiniciou o aprofundamento da descentralização;

c) o impedimento do Presidente Fernando Collorde Mello e a possibilidade da vitória de Lulanas eleições presidenciais de 1994 levaram aum realinhamento do establishment, em suasdimensões política, social e econômica. Osprincipais caciques regionais e os partidos oufrações partidárias que comandavam importan-tes setores empresariais e a maioria dos meiosde comunicação de massas não estavam dis-postos a ter de engolir o “sapo barbudo” nemum novo aventureiro solitário à direita. Havia,então, os primeiros sinais do fortalecimento dogoverno federal, creditado à atuação deFernando Henrique Cardoso, que, aliás, poucoa pouco se transformava informalmente em“Primeiro-Ministro” do Presidente Itamar Fran-co. Com esse cacife e sua virtù na montagemda coligação eleitoral, Fernando Henrique Car-doso conseguiu formar uma grande aliança, quese reforçou com o sucesso do Real;

d) houve também a consolidação de uma mudan-ça ideológica que há anos estava, paulatinamen-te, ganhando força na sociedade brasileira. Osprincipais formadores de opinião, a classe mé-dia, os meios de comunicação e importantessetores empresariais adotaram a idéia de refor-mas constitucionais como a salvação do país efoi isso que, somado à estabilização monetária,uniu fortemente o Presidente à sociedade noprimeiro mandato, dando grande popularidade

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a Fernando Henrique Cardoso;

e) pela primeira vez desde o início daredemocratização, as eleições presidenciais de1994 ocorreram concomitantemente ao pleitoestadual e à disputa para o Congresso Nacio-nal. Essa “eleição casada” vinculou os congres-sistas e o Presidente, e mesmo os governado-res, ao mesmo manto de legitimidade, ao con-trário do que ocorrera antes, quando a Presi-dência da República era definida em um pleito“solteiro” e os parlamentares elegiam-se tendocomo carro-chefe a eleição à governadoria – oque contava a favor da atuação dos chefes dosexecutivos estaduais junto às bancadas de seusestados. Decorreu, daí, um dos fatores do for-talecimento da Presidência da República vis-à-vis os governos estaduais;

f) ainda no plano eleitoral, não foi apenas o cará-ter concomitante da eleição que favoreceu aUnião no seu relacionamento com os estados.A eleição de 1994 foi marcada por uma outrapeculiaridade: em unidades estaduais estratégi-cas da federação, foram eleitos governadoresfiéis ao Presidente e cujas vitórias derivaramdo apoio ao Plano Real. Entre esses governa-dores destacaram-se Marcello Alencar (Rio deJaneiro), Eduardo Azeredo (Minas Gerais),Antônio Britto (Rio Grande do Sul) e mesmoMário Covas (São Paulo), embora este tivessemaior independência partidária e calibre políti-co. Apesar de ainda existirem importantes con-flitos e FHC ter tido sempre de negociar comos governos estaduais, os últimos atuaram bas-tante afinados com o Palácio do Planalto, con-cordância federativa que não era obtida desdeo governo Geisel e

g) por fim, o fortalecimento do governo federalcompletou-se e estruturou-se no estupendoêxito inicial do Plano Real, que conseguiu sus-tentar-se por mais tempo que qualquer outroe, ademais, estabeleceu uma agenda estrutu-ral, em parte continuada hoje pelo governo Lula.A legitimidade do Real garantiu a eleição e areeleição do Presidente Fernando HenriqueCardoso, bem como um grande apoio de im-portantes setores da sociedade, dos governa-dores e da comunidade internacional. Além dalegitimidade, a arquitetura do Plano Real prati-camente liquidou os mecanismos que os esta-dos detinham anteriormente para produzir, au-tônoma e predatoriamente, recursos financei-ros.

O êxito inicial do Plano Real teve grande im-pacto sobre a descentralização. A drástica redu-ção da inflação tornou mais estáveis as transfe-rências intergovernamentais, favorecendo a con-dução do processo descentralizador. Com isso, aUnião obteve o instrumento que lhe faltava parapoder barganhar a passagem de encargos e fun-ções de uma forma mais racional e programadapara os governos subnacionais. Foi essa situaçãoque permitiu a formulação de políticas públicascoordenadas como o Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Fundamental e deValorização do Magistério (Fundef), que analisa-remos adiante.

A “Era do Real” teve o significado de uma“conjuntura crítica”, isto é, de uma grande mu-dança na posição relativa dos atores políticos esociais em relação aos instrumentos de poder e àspreferências (PIERSON, 2000). A essa modifica-ção na situação dos agentes somou-se a capaci-dade do Presidente Fernando Henrique Cardosode montar e manter por um bom tempo uma coa-lizão capaz de fazer alterações na antiga estrutura,segundo os objetivos determinados por ele. Nes-se sentido, trata-se, também, de um “momentomaquiaveliano” (POCOCK, 1975), em que a mu-dança da “fortuna” (condições objetivas, no sen-tido marxista) realiza seu potencial na virtù do con-dutor da mudança, que cria uma nova ordeminstitucional10.

Ao mesmo tempo em que se fortaleceu o go-verno federal, os estados entraram em uma sériacrise financeira. O estopim disso, sem dúvida al-guma, foi o Plano Real. Em primeiro lugar, por-que, com o fim da inflação, os governos estadu-ais deixaram de ganhar a receita provinda dofloating, que permitia o adiamento dos pagamen-tos e o investimento do dinheiro arrecadado nomercado financeiro, possibilitando assim uma ele-vação artificial dos recursos e uma diminuiçãoigualmente artificial de boa parte das despesas dosgovernadores.

O Plano Real produziu outro grande impactonas finanças estaduais com a elevação das taxas

10 Os conceitos de “conjuntura crítica” e “momentomaquiaveliano” foram primeiramente utilizados para o casobrasileiro por Eduardo Kugelmas e Lourdes Sola (1999) e,depois, por Maria Rita Loureiro e Fernando Luiz Abrucio(2004).

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de juros, atingindo em cheio as dívidas estaduais,sobretudo no que se refere aos títulos e dívidasdos bancos estaduais. Depois de terem sido o gran-de instrumento financeiro dos governadores, es-pecialmente na fase áurea do federalismoestadualista, os bancos estaduais entraram emverdadeira bancarrota. Sofreram mais os grandesestados, sendo os casos mais graves o do Banerj(Rio de Janeiro) e, principalmente, o do Banespa(São Paulo). Neste último, estava em sua carteiraa própria dívida do estado de São Paulo, a maiordentre as unidades estaduais.

Contou ainda para a crise financeira dos esta-dos a adoção de medidas tributárias centra-lizadoras. O resultado final foi uma nova recen-tralização de receitas. Ainda que o Brasil seja umdos países com maior descentralização fiscal emcomparação com os países em desenvolvimentoe mesmo perante as federações mais consolida-das do mundo, o movimento concentrador foi defato considerável, por intermédio da elevação dasreceitas advindas das contribuições sociais e dorepresamento de parcela dos recursos para trans-ferência aos governos subnacionais.

Os efeitos e o esgotamento do modelo preda-tório constituíram-se também em elementos de-cisivos para a crise financeira dos estados. Nãose pode, portanto, creditar as causas do dese-quilíbrio das contas públicas estaduais apenas àsações e ao fortalecimento do governo federal. Osjuros, medidas tributárias centralizadoras, o fimda inflação e a intervenção nos bancos estaduais,sem dúvida, foram fundamentais; porém, são ospróprios governos estaduais que têm a maior par-cela de culpa na produção de sua crise.

O excessivo gasto com pessoal foi outro gra-ve problema que ajudou a minar as contas públi-cas estaduais. Esse padrão administrativo foi re-forçado pelos estados ao longo da redemocra-tização, particularmente com a promulgação dasconstituições estaduais. Nesse tópico, o fator prin-cipal no aumento das despesas com funcionalis-mo adveio da previdência pública, algo crescenteem todos os níveis de governo, mas de uma for-ma mais preocupante no âmbito estadual. Essediagnóstico demorou para ser feito tanto pelosgovernadores como pela União, com efeitos dele-térios para a reforma do Estado planejada pelogoverno Fernando Henrique Cardoso.

O modelo estadualista e predatório enfraque-ceu-se sobremaneira com a Presidência de

Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo-seuma “conjuntura crítica” na federação brasileira.Mesmo com a corrosão gradativa da coalizão go-vernista no segundo mandato (COUTO &ABRUCIO, 2004), não houve uma reviravolta nafederação e, ao contrário, a adoção de um novomodelo financeiro ganhou força com a aprovaçãoda Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), comapoio considerável dos congressistas, da socie-dade e dos governantes locais.

Um balanço geral dos anos FHC mostra que,em parte, ele conseguiu constituir um “momentomaquiaveliano” no jogo federativo, tendo a virtùpara criar uma nova ordem; em outros aspectos,todavia, isso não foi feito, permanecendo o lega-do do federalismo desenvolvido durante aredemocratização e ainda com algumas influênci-as da trajetória histórica das relaçõesintergovernamentais do país. Analisaremos a se-guir como se deu, sob esse pano de fundo, o pro-cesso de coordenação federativa no período 1995-2002.

V. COORDENAÇÃO FEDERATIVA NA ERAFHC: AVANÇOS, DILEMAS E PROBLEMAS

Durante os dois mandatos de FernandoHenrique Cardoso, podemos destacar sete meca-nismos gerais adotados pelo governo federal paramodificar e coordenar as relações intergoverna-mentais e o processo de descentralização. O pri-meiro deles refere-se ao fato de que o Brasil tinhainiciado o processo descentralizador antes de es-tabilizar a economia, o que tornou mais difícil aconstituição de jogos mais coordenados e efeti-vos de divisão de atribuições, sobretudo porque ainconstância da transferência das verbas consti-tui um obstáculo em uma federação desigual comoa brasileira. Ao reduzir a inflação, houve um im-pacto positivo para a regularização dos repassesde recursos aos governos subnacionais. Isso per-mitiu a abertura de uma nova rodada de negocia-ção para (re)pactuar a descentralização em diver-sas políticas públicas.

Um segundo mecanismo foi a associação en-tre a descentralização e os objetivos dereformulação do Estado. Nesse sentido, o gover-no federal procurou, em primeiro lugar, reduzirtodos os focos de criação de déficit público nosgovernos subnacionais, especialmente os de cu-nho predatório – isto é, que repassavam custospara a União. Para alcançar essas metas fiscais,houve uma atuação conjunta em prol da moderni-

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zação da estrutura fazendária em vários estados –com recursos de instituições internacionais – e,no segundo mandato, a aprovação de uma regrafederativa de restrição orçamentária – a Lei deResponsabilidade Fiscal –, além da adoção demedidas de auxílio na área previdenciária.

O modelo de coordenação federativa no cam-po da reformulação estatal, ademais, incluiu a pro-posição de programas de demissão voluntária aosestados, com financiamento federal. Em um sen-tido mais institucional, o Ministério da Adminis-tração e Reforma do Estado (MARE) procurouativar o Fórum dos Secretários Estaduais de Ad-ministração, realizando reuniões mais constantese cujo tema de debate era a modernização dasmáquinas públicas – isso durou apenas os primei-ros quatro anos do período FHC. Por fim, desta-ca-se aqui o processo de privatização das empre-sas estaduais, no qual o Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico e Social (Bndes) teveum papel decisivo.

O repasse de recursos condicionado à partici-pação e à fiscalização da sociedade local foi umterceiro mecanismo marcante dos anos FHC. Decerto modo, houve uma continuidade da estraté-gia já prevista pela Constituição de 1988, particu-larmente na criação e ampliação do escopo dosconselhos de políticas públicas. Aprofundou-seessa concepção com a determinação de que cer-tas transferências só seriam recebidas se existis-sem os Conselhos da área em questão. Além dis-so, o programa Comunidade Solidária optou pelaprodução de programas intrinsecamente vincula-dos à montagem de parcerias entre o Estado e asociedade. O caráter democrático dadescentralização, mais do que o aspecto fiscal,foi a tônica dessa política.

A coordenação de políticas públicas foi muitoimportante nas áreas de saúde e educação, com oPAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef, respec-tivamente. Os mecanismos coordenadores aquiutilizados passaram pela combinação de repassede recursos com o cumprimento de metas pré-estabelecidas ou a adoção de programas formula-dos para todo o território nacional. Trata-se deum modelo indutivo que transfere verbas segun-do metas ou políticas-padrão estipuladas nacio-nalmente, procurando assim dar um perfil maisprogramado e uniforme à descentralização, semretirar a autonomia dos governos subnacionais emtermos de gestão pública. No caso do Fundef,

ocorreu ainda uma redistribuição horizontal derecursos, experiência inédita na federação brasi-leira.

A partir do final do primeiro mandato e iníciodo segundo, foram adotadas políticas de distri-buição de renda direta à população. O primeirodeles foi o PETI (Programa de Erradicação doTrabalho Infantil), depois veio o Programa RendaMínima e, mais adiante o Programa Bolsa-Escola,a que se juntaram os programas Bolsa-Alimenta-ção e o Vale-Gás. Buscou-se, com tais medidas,atacar diretamente a pobreza por meio de políti-cas nacionais, as quais podem ser realizadas emparceria com outros instrumentos de gestão lo-cal, mas com a garantia de uma verba federal pa-dronizada. O pressuposto dessas ações era queem problemas de origem redistributiva, particu-larmente em uma federação, é necessária a atua-ção do governo federal para evitar o agravamentodas desigualdades.

A aprovação de leis ou mudanças constitucio-nais atinentes à temática federativa foi outro me-canismo bastante utilizado nos anos FHC. Comtais ações, ficou claro que o objetivo era fazeruma reforma institucional no federalismo brasilei-ro, mais do que implementar políticas de gover-no, embora o padrão de implementação dessasmedidas não seja completamente coerente, alémde responder a pressões políticas diferenciadasdentro do poder Executivo federal. Das 34 emen-das constitucionais aprovadas de 1995 até junhode 2002, quinze delas afetavam diretamente o pac-to federativo. Isso ocorreu nos seguintes terre-nos:

a) no tributário, com a aprovação duas vezes doFundo de Estabilização Fiscal (FEF) e sua re-novação posterior pela Desvinculação de Re-ceitas da União (DRU), como também pelasmudanças nas contribuições sociais, especial-mente aquelas vinculadas à criação e à prorro-gação da Contribuição Provisória sobre Movi-mentações Financeiras (CPMF). Foi por meiodas Contribuições Sociais que a União aumen-tou suas receitas, sem precisar reparti-las comos outros níveis de governo. Também foramfeitas modificações constitucionais que atingi-ram o Imposto Predial e Territorial Urbano(IPTU), garantindo sua progressividade, e noImposto sobre Serviços (ISS), procurando efe-tuar aqui uma harmonização tributária entre osmunicípios;

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b) na organização político-administrativa, com aaprovação da “Emenda Jobim” (Emenda Cons-titucional n. 15), que tornou mais difícil a cria-ção de municípios, com a aprovação de novoslimites de gastos dos legislativos locais (Emen-da Constitucional n. 25) e mesmo com a insti-tuição da reeleição (Emenda Constitucional n.16). Pouco se comentou acerca do impactofederativo da reeleição, mas o fato é que elaalterou o mercado político brasileiro e prova-velmente terá um grande impacto sobre os pa-drões de carreira tradicionais da classe políti-ca, que antes passavam pela utilização doslegislativos, sobretudo a Assembléia Legislativa,como trampolim para postos executivos;

c) na reforma do Estado, com a abertura à com-petição e à privatização nas áreas do gás cana-lizado e das telecomunicações, e a reformulaçãode vários artigos referentes à administração pú-blica (Emenda Constitucional n. 19) e à previ-dência (Emenda Constitucional n. 20), comimpacto enorme sobre a gestão governamentaldos estados e municípios. Não por acaso, to-das essas medidas passaram por intensas ne-gociações com prefeitos e, sobretudo, gover-nadores (Cf. ABRUCIO & COSTA, 1999;MELO, 2002) e

d) na área social, com a aprovação do Fundef(Emenda Constitucional n. 14), da chamada“PEC [Proposta de Emenda Constitucional] daSaúde” (Emenda Constitucional n. 29) e doFundo de Combate e Erradicação da Pobreza(Emenda Constitucional n. 31), que ajudou amodificar o padrão das políticas de distribui-ção de renda direta à população, tal como refe-rido anteriormente. É interessante notar que taisreformulações constitucionais criam obrigaçõesválidas não só para os próximos Presidentes,mas também para os futuros governantes deestados e municípios.

Além das alterações constitucionais, várias leiscomplementares e ordinárias com impacto fede-rativo foram aprovadas. Destacam-se a Lei deResponsabilidade Fiscal e a Lei Kandir, que trans-formaram regras básicas das finanças públicas.Na verdade, essa nova legislação reordenou osparâmetros de ação dos entes subnacionais, cri-ando as condições para que as relaçõesintergovernamentais ganhem um sentido diferen-te do constituído na redemocratização, especifi-camente no que tange à convivência mais respon-

sável entre os níveis de governo.

A avaliação de políticas descentralizadas tam-bém entrou na agenda de coordenação federativado governo FHC. O Ministério da Educação(MEC) constituiu-se no principal agente dessamudança, criando sistemas avaliadores que apre-sentam regularmente os resultados alcançados poressa política. Entretanto, esse vetor avaliador nãose tornou uma regra geral do governo federal.

Em resumo, o governo FHC usou principal-mente sete mecanismos de ação na ordem federa-tiva: 1) o combate à inflação e a respectiva regula-rização dos repasses, permitindo uma negociaçãomais estável e planejada com os outros entes; 2) aassociação dos objetivos da reforma do Estado,como o ajuste fiscal e a modernização administra-tiva, com a descentralização; 3) condicionou atransferência de recursos à participação da socie-dade na gestão local; 4) criou formas de coorde-nação nacional das políticas sociais, baseadas naindução dos governos subnacionais a assumiremencargos, mediante distribuição de verbas, cum-primento de metas e medidas de punição, tambémnormalmente vinculadas à questão financeira, alémde utilizar instrumentos de redistribuição horizon-tal no Fundef; 5) adoção de políticas de distribui-ção de renda direta à população, partindo do pres-suposto de que o problema redistributivo não seresolveria apenas com ações dos governos locais,dependendo do aporte da União; 6) aprovou umconjunto enorme de leis e emendas constitucio-nais, institucionalizando as mudanças feitas nafederação, dando-lhes, assim, maior força em re-lação às pressões conjunturais e 7) estabeleceuinstrumentos de avaliação das políticas realizadasno nível descentralizado, especialmente na áreaeducacional.

Entretanto, o modelo federativo adotado pelogoverno Fernando Henrique Cardoso também teveproblemas gerais de funcionamento. Entre eles,estão a fragmentação de uma mesma política emvários órgãos e ministérios, como é o caso dosaneamento básico; a pulverização das políticasde renda, a despeito da ação coordenadora do Pro-jeto Alvorada; a falta de uma avaliação consistentena maior parte das áreas descentralizadas; a exis-tência de poucos ou fracos fórunsintergovernamentais, a partir dos quais as políti-cas nacionais poderiam ser melhor controladas elegitimadas; a adoção de uma visão tributária per-versa do ponto de vista federativo, seja pela

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recentralização de recursos, seja pela negligênciaem relação à harmonização tributária do Impostosobre Circulação de Mercadorias e Serviços(ICMS); a deterioração das políticas regionais,levada às últimas conseqüências com o fim daSuperintendência para o Desenvolvimento daAmazônia (Sudam) e da Superintendência para oDesenvolvimento do Nordeste (Sudene) e o fra-casso das políticas urbanas, afetando setores comohabitação, saneamento, segurança pública e trans-portes metropolitanos.

Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato detrês áreas de coordenação federativa contempla-das nos anos FHC. O propósito não é avaliar subs-tantivamente tais ações; o intuito desta parte dotrabalho é entender do papel do governo federalem tais questões ou setores.

V.1. Reforma do Estado: questões financeiras eadministrativas

O tema central da agenda federativa de FHCfoi a questão financeiro-fiscal. Suas açõesnortearam-se pelos objetivos de acabar com osmecanismos que os governos subnacionais tinhamde repassar custos à União, pela criação de condi-ções para que os estados conseguissem ajustarsuas contas e pelo programa de privatização daempresas estaduais, pelo qual procuraram, aomesmo tempo, remodelar setores econômicossegundo o modelo de Estado defendido por Brasíliae obter recursos para quitar a dívida pública. Alémdisso, o segundo período governamental concen-trou-se, movido ainda pela ótica econômica, naquestão previdenciária.

No plano financeiro-fiscal, o governo federalaproveitou a enorme crise que assolou os gover-nos estaduais e a legitimidade da “Era do Real”para, primeiramente, reestruturar o sistema ban-cário estadual. O resultado final apontou para ofim das formas de repasse de custos ao BancoCentral, por meio da extinção, privatização efederalização da grande maioria dos bancos esta-duais. Se, por um lado, este processo pôs fim aum mecanismo estrutural de produção de déficit,por outro lado ele teve um preço para os cofresda União, causado por dois fatores: pela dificul-dade em resolver a situação do Banespa, que pos-tergou a resolução dos problemas de todo o siste-ma, e pela necessidade de criar-se um instrumen-to financeiro de transição, o Proes (Programa deIncentivo à Redução do Setor Público Estadual naAtividade Bancária), cujo custo final, em valores

de março de 2002, foi de R$ 70 bilhões (MORA,2000). Não obstante, esse modelo permitiu umamudança crucial na lógica das relaçõesintergovernamentais.

O governo federal, por meio principalmentedo Bndes, também atuou fortemente no progra-ma de privatizações dos estados. O objetivo, comodito acima, era reestruturar a ação do Estado emáreas estratégicas e obter recursos para quitar adívida pública. No primeiro mandato de FHC, fo-ram privatizadas 24 empresas estaduais e em mais13 ocorreu a venda de participação acionária, oque significou a obtenção de 37% dos quase US$70 bilhões movimentados por todas asprivatizações e concessões realizadas no período,excluídas as transferências de dívidas (ABRUCIO& COSTA, 1999, p. 101).

O êxito financeiro e programático alcançadopelo poder Executivo federal nas privatizações nosestados não solucionou todos os problemas en-volvidos nesse tema. Primeiro porque muitos es-tados usaram parte das receitas obtidas não parao pagamento de suas dívidas com a União, maspara gastos correntes. É claro que houve um ganhoimportante em termos de abatimento de débito,mas sem, no entanto, levar a maioria dos estadosà realização de um verdadeiro ajuste estrutural dascontas públicas – os poucos que conseguiramfazê-lo, como São Paulo, precisaram fazer cortese racionalização dos gastos, bem como aumentara receita.

Mais do que isso: a política macro-econômicaadotada no primeiro mandato de FHC dificultouqualquer ajuste provindo apenas dos recursos deprivatização. Isso porque o modelo da sobrevalo-rização cambial e sua aposta no financiamento porpoupança externa vincularam-se a uma taxa altade juros que, ao fim e ao cabo, elevava ainda maisa dívida pública, de modo que os recursos obti-dos com a venda das empresas (estaduais e fede-rais) acabavam, em boa medida, indo “para o ralo”.Em termos estruturais, os governadores teriamfeito melhor se utilizassem a receita da privatizaçãopara capitalização de fundos de pensão do funcio-nalismo estadual, com efeitos benéficos maioresno curto e longo prazos. Mas, naquele momento,os governos estaduais e o governo federal, no seupapel de coordenação federativa, não tinham idéiado impacto estrutural dos gastos previdenciáriosàs contas públicas subnacionais.

Obviamente que as privatizações são funda-

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mentais para diminuir redes clientelistasestabelecidas entre as empresas estatais, a classepolítica e as empresas privadas, constituindo-seassim em um aspecto essencial para mudar a gra-mática política brasileira (NUNES, 1997). Ade-mais, sem as empresas estatais, os estados ten-dem a não fazer determinados gastos que levari-am ao aumento de seu déficit. Colocados essesaspectos positivos à mesa, deve-se ter cuidadopara não transformar o programa de privatizaçõesem uma ação a partir da qual o Estado sai dessasesferas econômicas.

Aqui se encontra o maior problema do progra-ma de privatizações dos estados sob a coordena-ção federativa da União: não se propôs, na grandemaioria dos casos, um modelo regulatório con-sistente para o dia seguinte da reforma do Estado.Do mesmo modo que o Bndes prestou adequadaassessoria financeira para a venda das empresasestaduais, também seria necessária a ajuda na cri-ação de agências regulatórias – montadas depoisem número menor de estados do que o universode governadorias que privatizaram empresas(ABRUCIO, 2004). Porém, nesse aspecto, pesoumais o lado da primeira onda de reformas volta-das para o mercado do que o aspecto essencial dasegunda rodada de reformas, de criação de novasinstituições estatais voltadas à regulação econô-mica (BANCO MUNDIAL, 1997).

A renegociação das dívidas dos estados, pormeio da Lei n. 9 496/97, foi um passo importantepara disciplinar as relações federativas, rompen-do com o antigo modelo predatório. Em primeirolugar, o acordo contemplou quase a totalidade dasunidades estaduais, evitando-se assim a existên-cia de free riders11. No total, ela refinanciou ummontante de R$ 132 bilhões. Em segundo lugar,embora os estados reclamem hoje da porcenta-gem da receita líquida que têm de dispor, o fato éque receberam um grande subsídio da União, apartir do qual houve uma redução substantiva dastaxas de juros que vinham pagando antes. Essenovo contrato, ademais, é bem diferente dosefetuados ao longo da redemocratização, particu-larmente pela sua capacidade de fazer que seja defato cumprido, incluindo a retenção de transfe-rências federais – o único estado que tentou bur-lar essa regra, Minas Gerais, na gestão de Itamar

Franco, teve verbas bloqueadas e logo a seguirregularizou seu pagamento.

As despesas com pessoal nos governos esta-duais constituíram mais um tópico da agenda fe-derativa do período FHC. No início de 1995, das27 unidades estaduais (contando o Distrito Fede-ral), apenas seis despendiam menos de 60% dareceita líquida com o funcionalismo, sendo queem três delas (Roraima, Amapá e Tocantins) amaior parte dos servidores ainda era paga pelaUnião, já que a sua condição de estado é bastanterecente. A continuidade desse problema dificulta-rá a resolução dos déficits financeiros da federa-ção.

Por isso, o governo federal resolveu atuar nessaquestão. A medida de maior impacto inicial foramos programas de Demissão Voluntária (PDVs).Com financiamento da Caixa Econômica Federal,os PDVs resultaram na demissão de 100 mil fun-cionários públicos estaduais, mas tiveram peque-no impacto na redução de custos, de apenas 4,5%do que se gastava com pessoal ativo – os estadoscom maior contingente de servidores, ademais,foram os menos afetados (BELTRÃO, ABRUCIO& LOUREIRO, 1998).

Foram constatados dois grandes problemas naaplicação dos PDVs. O primeiro é que os servido-res que aderiam a esses programas de dispensasnormalmente tinham uma melhor qualificação pro-fissional, ficando os com menor capacidadegerencial. Além disso, em muitos estados não ha-via um mapa preciso do perfil do funcionalismoe, desse modo, não se sabia exatamente quais eramos gargalos burocráticos. Faltou aqui uma açãomais coordenada entre o governo federal e as ad-ministrações subnacionais.

A falta de uma coordenação federativa tam-bém levou a um diagnóstico equivocado quantoaos gastos com pessoal. O governo FHC insistiu,por boa parte do primeiro mandato, em um argu-mento: a resolução do problema dar-se-ia com apermissão de dispensa de funcionários quando umnível de governo gastasse mais do que 60% dareceita líquida com folha de pagamento. Ao nãodiscriminar os gastos entre os poderes, a entãoLei Camata colocou para o governador uma tare-fa em que em parte ele não podia atuar. Isso por-que cresciam, cada vez mais, os gastos com pes-soal do poder Legislativo e, sobretudo, do poderJudiciário. Mas o maior erro foi outro: não perce-ber que o maior problema do excesso de gastos11 “Caronistas” (N. R.).

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com pessoal provinha do pagamento de inativos.Novamente, isso não foi detectado porque faltavauma burocracia competente nos estados e umaação coordenadora do governo federal para de-tectar essa questão. Somente no final de 1997 éque os governos estaduais e a União deram-seconta da magnitude desse problema.

Mesmo tendo adquirido poder no pêndulo fe-derativo no primeiro mandato, a União não se pre-parou adequadamente para atuar como agentecoordenador no plano intergovernamental. Deve-ria ter havido orientação e capacitação da buro-cracia federal para recolher informações dos go-vernos subnacionais ou então, em uma via maispertinente para o federalismo, os estados e os mu-nicípios poder ter sido auxiliados na construçãode capacidades institucionais. Em vez disso, oprimeiro governo FHC procurou “vender” umareceita de reforma do Estado sem estabelecer umarede da burocracia nacional com as estaduais emunicipais.

Houve, porém, dois avanços no segundo man-dato de Fernando Henrique Cardoso. O Ministé-rio da Previdência e Assistência Social assumiuuma importante função coordenadora e atuou de-cisivamente na assessoria e indução dos estados emunicípios. O resultado é que mais e mais gover-nos subnacionais estão constituindo FundosPrevidenciários, com cálculos atuariais mais pre-cisos – mas a tarefa teria sido mais fácil se o di-nheiro da privatização fosse usado inicialmente nacapitalização desses sistemas.

O aprendizado federativo também foi consta-tado na definição de gastos com pessoal e nosinstrumentos de controle com a promulgação daLei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em maiode 2000. A LRF definiu melhor os mecanismos derestrição orçamentária, responsabilizando maisclaramente todos os poderes. Adicionalmente, suasregras estabeleceram instrumentos de enforcementmais efetivos, que dificultam uma postura con-trária à nova regulamentação, por conta das pena-lidades. E, ainda, o governo federal exerceu umpapel coordenador ativo por intermédio do Bndes,que assessorou governos locais, disseminou asnoções básicas da LRF por todo o país e deu in-centivos para a modernização da máquina admi-nistrativa dos governos subnacionais, com vistasa cumprir os requisitos fiscais básicos.

A LRF foi uma das experiências mais bem-

sucedidas de coordenação federativa nos anosFHC. Faltou, no entanto, criar um fórum de dis-cussão entre os vários níveis de governo, tal comoestabelecido no artigo 67 da LRF, que estipula ainstituição de um Conselho de Gestão Fiscal. Ogoverno FHC não se mobilizou politicamente pararegulamentar tal Conselho, causando prejuízo paraa democratização da federação. No fundo, preva-leceu aqui a visão da equipe econômica, que su-põe, seguindo certas versões do federalismo fis-cal, que deve haver uma hierarquização entre osentes governamentais, com o governo federal –que nesse caso poderia chamar-se governo cen-tral – comandando linearmente as finanças públi-cas. Nada mais distante da soberania comparti-lhada que marca o federalismo.

A melhoria das condições fiscais de longo pra-zo, por fim, tem a ver com duas outras variáveis,praticamente negligenciadas no período FHC: arealização de reformas institucionais e a constru-ção de um novo modelo de desenvolvimento. Noprimeiro aspecto, é importante que sejam realiza-das mudanças no relacionamento entre a socieda-de e o Estado e das instituições políticassubnacionais, especialmente do Tribunal de Con-tas e do poder Judiciário, para aumentar aaccountability democrática. Além disso, a buro-cracia dos níveis subnacionais precisa ser conti-nuamente aperfeiçoada.

A construção de um novo modelo de desen-volvimento que melhore a situação dos estadosdepende basicamente de ações nacionais. Por umlado, é preciso atacar as desigualdades regionais,que impedem a obtenção de resultados satisfatóriosem várias partes do país. Por outro, a guerra fis-cal não pode mais continuar, pois ela cria déficitsfuturos aos governos estaduais e, efetivamente,não resolve o problema do desenvolvimento; aoinvés disso, acirra o conflito horizontal entre asunidades federativas.

Desse modo, a resolução federativa dessa ques-tão passa, sim, pela continuidade da trilha abertapela Lei de Responsabilidade Fiscal, com a ativa-ção de um fórum federativo que a gerencie maisdemocraticamente, mas também depende de re-formas estruturais – criação ou fortalecimento dosfundos previdenciários, modernização das buro-cracias estaduais, democratização das instituiçõespolíticas subnacionais e novo modelo de desen-volvimento – para as quais o fiscalismo reinantenos anos FHC deu pouca atenção.

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V.2. Coordenação federativa na área social: algunsexemplos

A área de proteção social é bastante abrangentee difícil de ser mapeada no espaço deste artigo.Por essa razão, escolhemos três de suas políti-cas, analisando como se deu a relação entredescentralização e coordenação federativa, semfazer uma avaliação substantiva dos resultadosalcançados.

A saúde é, sem dúvida alguma, a política pú-blica de maior destaque no quadro federativo des-de a Constituição de 1988. O modelo dedescentralização proposto foi construído por mui-tos anos de lutas contra a centralização dos pro-gramas e da gestão dos recursos, com destaquepara a atuação de sanitaristas e profissionais daárea médica que constituíram, junto com lideran-ças locais e movimentos sociais, aquilo que al-guns denominam de “partido da saúde” – a quehoje se somam a burocracia setorial e diversospolíticos, muitos com origem na área.

A reforma desse setor aprofundou-se com aConstituição de 1988 e o estabelecimento do Sis-tema Único de Saúde, o SUS. Seus critérios bási-cos são a universalidade, a integralidade e a igual-dade de assistência garantida a todos os brasilei-ros; preconizava ainda a descentralização da ges-tão do sistema e a participação da comunidade,com um tom fortemente municipalista.

Na década de 1990, surgiram também asNOBs (Normas Operativas Básicas), que repre-sentaram um esforço de racionalização dos repas-ses de recursos e dos gastos pelos estados e mu-nicípios, além da criação de instrumentos de fis-calização e avaliação das políticas de saúde. Elastentavam definir, com a maior clareza possível,os custos e benefícios resultantes do cumprimentoou não das regras e critérios de repasse de recur-sos (principalmente no que se refere às condiçõesnecessárias e suficientes ao repasse de recursosfinanceiros entre União, estados e municípios),prestação de contas e acompanhamentos dasações de saúde.

A partir da NOB-96, o SUS procurouestruturar-se pela responsabilização de cada ins-tância de governo. Estabeleceu-se que os gestoresfederal e estadual são os promotores daharmonização, modernização e integração do SUS.Essa tarefa acontece, especialmente, na Comis-são Intergestores Bipartite (CIB), no âmbito esta-

dual, e na Comissão Intergestores Tripartite (CIT)no âmbito nacional. A NOB-96 estimula as parce-rias entre municípios, mas não cria incentivos fi-nanceiros específicos (ABRUCIO & COSTA,1999, p. 78).

Foi nesse contexto de maior consistência dadescentralização que o governo FHC estabeleceusuas políticas de saúde. Os problemas iniciais es-tavam vinculados mais à regularidade dos repas-ses e à garantia de fonte seguras e permanentesde recursos. Com a resolução destes últimos, apartir do fim da inflação e da aprovação da CPMFcom recursos “carimbados” para a saúde, adescentralização aprofundou-se ainda mais. Entre1995 e 1999, sem contabilizar as transferências,os gastos dos níveis de governo eram de 58%para a União, 16% para os estados e 26% para osmunicípios; após contabilizarmos as transferên-cias, as cifras mudam substancialmente: 23% paraa União, 25% para os estados e 52% para os mu-nicípios. Além disso, segundo dados de dezem-bro de 2001, 99% dos municípios estavam habili-tados a uma das condições de gestão, sendo 89%em Gestão Plena da Atenção Básica, e 10,1% naGestão Plena do Sistema Municipal (MELO, 2002,p. 4).

No campo da saúde, a descentralização e acoordenação federativa estiveram presentes emtrês questões. A primeira diz respeito ao fortaleci-mento das atividades intrinsecamente nacionais.A primeira delas é a organização administrativa doMinistério da Saúde, que se reforçou com amelhoria dos sistemas de informação, em especi-al o Datasus. Houve também uma reorganizaçãoadministrativa, com aperfeiçoamento de pessoal econstituição de duas agências reguladoras essen-ciais: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suple-mentar (ANS). Cabe reforçar que a coordenaçãofederativa associa-se claramente à capacidadeburocrática do governo federal.

A política de saúde do governo FHC adotouiniciativas para reforçar as funções redistributivasdo SUS, orientando recursos para as regiões maispobres e menos populosas (COSTA, SILVA &RIBEIRO, 1999). A principal medida nesse senti-do foi a criação, em dezembro de 1997, do PAB.Ao mesmo tempo em que procura reduzir as de-sigualdades de recursos, o PAB também funcionacomo incentivo à municipalização, pois somenteos governos locais habilitados podem receber tais

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recursos.

O PAB é composto de uma parte fixa e outravariável. A primeira destina-se à atenção básica dasaúde e garante a transferência automática, fundoa fundo, de um mínimo de R$ 10 por habitante/ano para todos os municípios brasileiros. A idéiaera reduzir as desigualdades existentes entre asmunicipalidades, uma vez que aquelas com maior“capacidade produtiva” tendiam a receber maisrecursos, ao passo que as pequenas, com redeincipiente ou nenhuma rede de atenção à saúde,pouco recebiam. A parte variável do PAB é umadas invenções mais frutíferas do federalismo nosanos FHC. Sua distribuição de recursos só ocor-ria se os governos locais aderissem aos progra-mas nacionais definidos como prioritários. Alémdisso, para receber tais recursos era preciso pas-sar por todo o sistema de conselhos, que procurafiscalizar o uso adequado dos recursos públicos.

Foram seis os programas nacionais incluídosno PAB variável: Saúde da Família-Agentes Co-munitários de Saúde, Saúde Bucal, AssistênciaFinanceira Básica, Combate às CarênciasNutricionais, Combate a Endemias e VigilânciaSanitária. A característica básica dessas políticasera a ênfase na prevenção e não na cura, lemahistórico do movimento sanitarista. O municípiopodia aderir a quantos quisesse e recebia os re-cursos de acordo com o estipulado em cada pro-grama. Tais ações governamentais, ademais, en-volvem capacitação dos gestores locais e a avali-ação dos resultados, seja pelo sistema federal, sejapelo controle social ligado aos mecanismos deaccountability intrínsecos ao SUS. Os resultadosforam bastante satisfatórios no que se refere àadesão e, conseqüentemente, ao número de pes-soas atingidas. No caso do Programa de AgentesComunitários de Saúde (PACS), por exemplo,houve um aumento de 30% na população cobertaentre 1994 e 1998 (SINGER, 2002, p. 517).

A terceira medida foi a aprovação da chamada“PEC da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29),que determinou a elevação gradativa da porcenta-gem de recursos destinados a essa área nos trêsníveis de governo. Com isso, o problema que ogoverno Fernando Henrique Cardoso encontrouno início do seu primeiro mandato de instabilida-de nos gastos com saúde foi, em boa medida, re-solvido. Muitos criticam o modelo da vinculação,pois ele “engessa” mais o orçamento e os própri-os governantes, que devem subordinar sua agen-

da eleitoral vencedora a tais dispositivos constitu-cionais. Talvez tivéssemos de combinar melhoras regras intertemporais que orientam a ação dosentes federativos com mecanismos de negocia-ção contínua de metas e resultados – e, nesse sen-tido, o Fundef está mais adequado ao padrãofederalista de políticas públicas, uma vez que temmetas e prazo para esgotar-se, ao mesmo tempoem que suas diretrizes ultrapassam o período demais de um governante.

Não foram equacionadas todas as questõesfederativas ligadas à saúde. A coordenaçãointergovernamental, a despeito da força integradorado SUS e do “partido da saúde”, vez ou outrarevela sua fragilidade, como ficou bem claro noepisódio da dengue, em 2002, em que a briga dosgovernantes era para saber se o mosquito eramunicipal, estadual ou federal. A maior lacunadesse sistema é a indefinição do papel das unida-des estaduais. Nesse tópico, o governo federalprecisa criar formas de indução à participação e àcooperação da mesma maneira que o PAB fê-loem relação aos municípios.

O Ministério da Saúde também tentou incenti-var a formação de consórcios entre os municípi-os, como forma de melhorar a prestação do ser-viço segundo problemas que são regionais e/ouporque a maioria dos governos locais não temcondições de resolver todos os seus problemasnessa área.

O fato é que a saúde é uma das áreas commaior número de consórcios. Em 2000, havia 141consórcios de saúde, em 13 estados e 1 168 mu-nicípios e abrangendo uma população de 25 362735 habitantes, segundo estudo da OrganizaçãoPanamericana de Saúde e do Ministério da Saúde.Trata-se de um dado impressionante comparadoao que acontece nas outras políticas públicas.Porém, os mesmos números mostravam que nobloco das municipalidades que têm entre 10 mil a20 mil habitantes a porcentagem de consórciosera de 23,5%, enquanto no estrato que vai de 20mil a 50 mil, o contingente atingido era de 12,4%.Além do mais, nenhuma capital tinha consórcio,o que é um absurdo, sabendo que as regiões me-tropolitanas sofrem freqüentemente do problemado “carona” – habitantes de cidade vizinha que seutilizam dos equipamentos sociais e não pagamnada por isso.

Esse retrato revela que é preciso igualmenteter uma política de indução à criação dos consór-

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cios, na mesma linha do PAB. Mas, nesse caso,há um problema estrutural, revelado anteriormen-te: o federalismo compartimentalizado, omunicipalismo autárquico e a fragilidade jurídicadesse instrumento dificultam a adesão a essa uniãointermunicipal.

Na área de educação, uma política destacou-se nos anos FHC como forma de coordenaçãofederativa. Trata-se do Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Fundamental e deValorização do Magistério (Fundef). Aprovado peloCongresso Nacional em 1997, ele obriga os go-vernos a aplicarem 25% dos recursos resultantesda receita de impostos e transferências na educa-ção, sendo que não menos de 60% deverão serdestinados ao Ensino Fundamental. Sua implanta-ção, em nível nacional, iniciou-se em 1o de janei-ro de 1998.

Dos recursos do Fundef, pelo menos 60%devem ser aplicados na remuneração dos profis-sionais do magistério em efetivo exercício de suasatividades no Ensino Fundamental público. Ade-mais, são definidas metas que balizam a ação dosgestores locais. Entre elas, podemos citar que osestados, o Distrito Federal e os municípios de-vem dispor de um novo Plano de Carreira e Re-muneração do Magistério.

O rateio do Fundef é proporcional ao númerode alunos matriculados na respectiva rede de en-sino. Com isso, a distribuição de recursos obede-ce a um critério mais justo, vinculado à assunçãoefetiva de encargos. Ocorre aqui uma adequaçãomelhor das transferências às atribuições, algo fun-damental em uma federação, especialmente a nos-sa, em que a desigualdade e a politização dos cri-térios foram regularmente empecilhos à efetividadedas políticas.

O objetivo do governo federal com o Fundeffoi corrigir a má distribuição de recursos entre asdiversas regiões e dentro dos próprios estados,diminuindo as desigualdades presentes na redepública de ensino. Trata-se, nesse sentido, de umapolítica vertical e horizontal de redistribuição derecursos, o que a faz única no federalismo brasi-leiro.

Para assegurar o seu cumprimento, a lei exigea criação dos conselhos de Acompanhamento eControle Social do Fundef, instituídos em cadaesfera de governo, que têm por atribuição acom-panhar e controlar a repartição, a transferência e

a aplicação dos recursos do Fundo. O ConselhoMunicipal de Acompanhamento e Controle Socialdo Fundef deve ser composto de, pelo menos,quatro membros, representando a Secretaria Mu-nicipal de Educação ou órgão equivalente; os pro-fessores e diretores das escolas públicas de ensi-no fundamental; os pais de alunos e os servidoresdas escolas públicas de ensino fundamental.

Em comparação com a saúde, em que o papeldo governo federal sempre foi muito forte, a açãoda União na educação foi prejudicada pela formaconfusa e movediça de distribuição de responsa-bilidades e competências. Nessa “torre de Babel”,a União cumpria as tarefas mais variadas, em to-dos os níveis educacionais, mas não conseguiadirecionar a contento seus esforços para o EnsinoFundamental. Desse modo, seu comprometimen-to era mais voluntarista ou discricionário do quefruto de um plano de cooperação federativa naárea educacional. Isso apesar de a Constituiçãodefinir expressamente a missão do governo fede-ral: promover prioritariamente a universalização ea eqüidade no ensino público, incentivando, finan-ciando e fornecendo assistência técnica a estadose municípios. O Fundef conseguiu reorganizarcom sucesso a ação federal.

Os resultados do Fundef revelam o crescimentotanto do número de alunos matriculados como damunicipalização do Ensino Fundamental, tarefasque não avançavam satisfatoriamente no períodoanterior. Em 1996, antes da implantação do Fun-do, 63% das matrículas estavam na rede estadu-al, enquanto 37% estavam no âmbito municipal.Um ano depois de iniciado esse programa, já hou-ve uma reversão significativa: 51% dos alunospertenciam ao sistema estadual e 49%, ao muni-cipal. Outro dado revelador da mudança: em 1998os governos municipais detinham 38,2% das ver-bas do Fundef e, em 2000, passaram a reter 43,2%(GARSON & ARAÚJO, 2001, p. 2-3).

Em resumo, o Fundef foi bem-sucedido noque se refere à questão federativa por ter melho-rado a redistribuição de recursos (em termos ver-ticais e horizontais), aumentado a esperança porsimetria entre os níveis de governo, além de im-pulsionar uma municipalização mais planejada e acolaboração intergovernamental. Contudo, exis-tem dois dilemas federativos não equacionados.O primeiro é o da fragilidade do controle, percep-tível pelo enorme crescimento das denúncias decorrupção em vários estados. Para tanto, é ne-

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cessário estabelecer formas articuladas de fiscali-zação institucional entre o TCU, os tribunais deContas do plano subnacional, o Conselho vincu-lado à política e o poder Legislativo.

O Fundef, ademais, não foi montado sobre umaparato institucional capaz de discutir e revisarsua implantação tal qual há na área de saúde, emque a rede federativa é mais forte e legitimadora.Em termos democráticos, é essa rede que permi-te a continuidade e as alterações da política aolongo do tempo.

Finalizando a discussão de algumas políticassociais, destacamos as políticas de transferênciade renda à população. Iniciado com o PETI, pas-sando pelo mal definido Programa de Renda Mí-nima até chegar ao bolsa-escola, o governo FHCgastou sete anos de seu mandato para construiruma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Naverdade, ao longo desse aprendizado, percebeu-se que problemas redistributivos em uma federa-ção, como já apontaram Paul Peterson (1995) ePaul Pierson (1995), só podem ser resolvidos coma intervenção ativa de políticas nacionais. A maiornovidade em termos substantivos é a vinculaçãoda transferência de dinheiro a certos objetivos,como a manutenção da criança na escola e a re-dução da evasão escolar.

A soma de recursos aí direcionada cresceu bas-tante, graças à aprovação do Fundo de Combate eErradicação da Pobreza. Além disso, a partir de2001, essa distribuição de renda diretamente àpopulação foi mais bem coordenada pelo ProjetoAlvorada, que estabeleceu uma focalização me-lhor de quem seriam os beneficiados, medianteum critério criativo de utilização do índice de de-senvolvimento humano (IDH) dos municípios.

Todavia, o Projeto Alvorada e a noção maiscoordenada de políticas de transferência de rendaforam atropelados pelo ciclo eleitoral. Com a pro-ximidade do pleito presidencial, o PresidenteFernando Henrique Cardoso também permitiu aproliferação de “bolsas” ou “vales” por váriosministérios, de modo que mais programas dividi-ram o bolo, muitas vezes com ausência de comu-nicação entre eles, o que levou ao desperdício e àdificuldade de avaliarem-se os resultados.

V.3. As políticas urbanas e de desenvolvimento

Várias ações do governo FHC poderiam sercriticadas sob o prisma federativo, mas duas de-las precisam ser comentadas devido ao enorme

impacto que têm. A primeira diz respeito às políti-cas de desenvolvimento, analisadas pelo viés dofederalismo. A estrutura institucional federal mon-tada para tratar desses problemas foi bastante dé-bil. O Ministério da Integração Regional consti-tuiu-se apenas em um lugar para o fisiologismopolítico da pior espécie, afora ter tido uma grandeinstabilidade no seu comando, com trocas freqüen-tes de titulares, muitas delas derivadas de algumescândalo.

Triste sina tiveram as instituições de coorde-nação do desenvolvimento regional, a Sudam e aSudene. O Presidente Fernando Henrique Cardo-so poderá dizer que foi ele quem desvelou todauma estrutura profunda, construída por décadas,de corrupção. É óbvio que essa obra deve ser cre-ditada ao avanço democrático ocorrido nos últi-mos anos, com intensa participação da imprensae das instituições de controle, em particular aqui oMinistério Público Federal. Mas o fato cabal é queo governo FHC não teve um projeto claro de de-senvolvimento regional. Ao contrário, desmante-lou os órgãos incumbidos de tal tarefa, fragmen-tou políticas para esta área e não propôs uma al-ternativa ao modelo anterior.

O acirramento da guerra fiscal tornou-se umamarca negativa da Era FHC. O uso dessa formade competição federativa é comprovadamente inó-cuo, pois a adoção dessas medidas não tem alte-rado a redistribuição regional dos recursos e, comomostrou o estudo de Sérgio Ferreira (2000), doBndes, dos sete estados que mais utilizaram osinstrumentos de incentivo tributário (Rio Grandedo Sul, Ceará, Paraná, Espírito Santo, Goiás, Bahiae Pernambuco), somente o Ceará teve aumentona sua participação no PIB nacional entre 1985 e199812.

Sem dúvida, há fatores que fogem da alçadada União, como o comportamento estadualista dasgovernadorias e os elementos da crise financeirados estados causados por eles mesmos, resultan-tes do uso indiscriminado dos instrumentos pre-

12 Os resultados dos estados que utilizaram intensamentea guerra fiscal foram os seguintes: Goiás teve um decrésci-mo de 2% para 1,9%; no Rio Grande do Sul houve umaqueda de 7,9% para 7%; na Bahia, de 5,1% para 4,1%; emPernambuco, de 2,5% para 2,3%; no Paraná, de 6,3% para5,8%; no Espírito Santo, de 1,7% para 1,5%; a grandeexceção, o Ceará, teve um crescimento de 1,6% para 1,8%(FERREIRA, 2000, p. 6).

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A COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL

datórios ao longo da redemocratização, o que oslevou a procurar atrair empresas para angariarempregos e impostos futuros. Fica a pergunta:como o governo federal poderia ter atuado nessaquestão? Primeiro, realizando políticas de desen-volvimento, a partir de decisões que sejam toma-das em fóruns nacionais, em nome da transpa-rência, da justiça redistributiva e da igualdade en-tre os pactuantes. Em segundo lugar, faltou umaação mais efetiva em prol da reforma tributária.Porém, se partirmos da hipótese de que areformulação do sistema de tributo é quase im-possível de ser realizada, o papel do PresidenteFernando Henrique deveria ter sido o de colocarno debate público esse problema e condená-lo.Em vez disso, concedeu empréstimo do Bndespara a Ford, intercedendo, sem critérios, em umabatalha entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favo-recendo o governo baiano em razão da pressãodo grande cacique regional, Antônio Carlos Ma-galhães. Nesse caso, FHC perdeu para o legadooligárquico e patrimonialista do federalismo bra-sileiro.

A maior fragilidade dos anos FHC foi a ausên-cia de políticas urbanas. É bem verdade que des-de o governo Sarney elas não são prioritárias e naEra Collor houve um desmantelamento daquilo quehavia. Mas o fato é que o Brasil dos anos 1990assistiu a um processo de metropolização dos pro-blemas, com a elevação do desemprego urbano, apiora no sistema de transporte nas grandes cida-des, o crescimento da desigualdade e da pobrezametropolitanas (fenômeno bem mais complexo doque o vivido no meio rural), bem como o aumen-to da violência nas periferias.

O crescimento dos problemas metropolitanosocorreu no mesmo momento em que não há polí-ticas ou instituições capazes de dar conta dessaquestão. A Constituição de 1988 foi movida poruma concepção descentralizadora municipalista,por um modelo federativo compartimentalizado epor uma aversão ao centralismo, justificável peloimpacto negativo que teve o “unionismo-autoritá-rio” desenvolvido pelo regime militar. Contudo,quando os problemas não podem ser resolvidossozinhos pelo poder local, envolvem mais de umente governamental e precisam também da inter-venção ativa de uma política nacional, o desenhoinstitucional e a cultura política federalista predo-minante não têm respostas adequadas.

O resultado disso torna-se claro no modelo deregião metropolitana (RM) concebido na Consti-

tuição de 1988. Na verdade, as RMs foram esva-ziadas e sua conformação legal, transferida paraos estados, os quais, conforme trabalho realizadopor Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000), nãopriorizaram essa questão no seu desenho políti-co-administrativo. Sem uma instância metropoli-tana e/ou formas que levem à formação decolegiados metropolitanos – com os municípiosenvolvidos, mais os governos estadual e federal,além da sociedade civil local –, será muito difícilresolver os dilemas dos grandes centros urbanos.

Uma ação nacional passaria pela revisão da le-gislação sobre as regiões metropolitanas, o quedepende de revisão constitucional. O governo fe-deral não tratou deste assunto nos anos FHC. Paraalém da questão mais geral, o fato é que a Uniãonão constituiu políticas adequadas para a grandemaioria dos problemas metropolitanos. Isso ficaclaro ao observarmos o desenho institucional dopoder Executivo federal em relação a essa temática.Primeiro, repassou tal preocupação à Secretariade Políticas Urbanas, fraca institucional e politi-camente, destinada a obter apoios clientelistas noCongresso Nacional. Some-se a isso o fato de quea maioria das políticas urbanas dividia-se por vá-rios ministérios – só o saneamento estava presen-te em sete deles, mais a Secretaria de PolíticasUrbanas. A fragmentação excessiva inviabilizou oalcance de resultados satisfatórios.

As principais políticas de cunho urbano-me-tropolitano fracassaram. Poderíamos citar a se-gurança pública, em que o governo federal des-cobriu tarde seu papel, reduzido ao financiamentodos estados, quando deveria atuar em rede nacoordenação das polícias. No caso do saneamen-to, houve um problema regulatório, com a crisedas empresas do setor e a errática (e equivocada)trajetória de privatização e, em termos de investi-mentos, embora eles tenham-se elevado no perío-do 1995-1998, não puderem crescer mais nomomento seguinte devido às restrições de acordofeito com o Fundo Monetário Internacional (FMI).Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica Fede-ral, principal financiadora de infra-estrutura urba-na, não firmou nenhum contrato de financiamen-to na área de saneamento entre 1999 e 2000(MELO, 2002, p. 8).

Como a área de desenvolvimento urbano en-volve competências e atribuições dos três níveisde governo, a coordenação federativa teria quepassar, como foi feito na saúde e com o Fundef,

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 41-67 JUN. 2005

pela elaboração de políticas federais indutoras, apartir das quais os governos subnacionais fossemincentivados a cooperar e a buscar determinadasmetas e resultados. Além disso, como bem notaMarcus Melo, o sucesso das políticas públicastem sido maior conquanto consigam desenvolversuas características intersetoriais, como ocorreno bolsa-escola, por exemplo. Isso é válido paravários setores do desenvolvimento urbano, emparticular o Saneamento, que poderia articular-semais com a saúde, fortalecendo os programas destaárea (idem, p. 25).

O Presidente Fernando Henrique Cardoso per-cebeu, na passagem de um mandato a outro, quesua política urbana ia de mal a pior. Por isso cogi-tou de criar um ministério específico e forte paraessa área, mas não teve êxito em seu intento. Ain-da que longa, vale a pena citar a descrição de Cacode Paula a respeito desse processo: “Durante suacampanha pela reeleição, Fernando Henrique Car-doso chegou a anunciar a criação do Ministériodo Desenvolvimento Urbano, uma superpasta quecontaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Or-çamento da União, de recursos da Caixa Econô-mica Federal e que, com acordos com a iniciativaprivada, se dedicaria a combater os grandes déficitsdas áreas de habitação e saneamento. Saudadotanto por técnicos em urbanismo como por em-presários do setor imobiliário esse ‘Ministério daMoradia’ – ou ‘Ministério da Cidade’ – passou aser visto como uma possibilidade de, finalmente,o governo enfeixar as políticas de desenvolvimentourbano de forma mais integrada. Como já aconte-cera outras vezes, desde os tempos do regimemilitar, a superpasta foi motivo de muitos comen-tários, discussões e disputas entre os políticos ali-ados do Palácio do Planalto. Mas na hora em queteve de articular o xadrez ministerial para o seusegundo mandato, Fernando Henrique Cardosoabandonou a idéia. E o antigo projeto, tentado desdeo fim dos governos militares, de fazer da questãourbana a grande prioridade da ação federal, nova-mente, ficou para o futuro” (PAULA, 2002, p.419).

VI. OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA

A Era FHC teve um papel importante na mu-dança de alguns padrões federativos construídosao longo da redemocratização. Em especial, tevegrande êxito no ataque ao modelo predatório vin-culado ao estadualismo, reduzindo as formas derepasse de custos financeiros entre os entes e co-

locando fortes limites à irresponsabilidade fiscalde governadores e prefeitos. Destaque deve serdado também para outros quatro elementos posi-tivos: o reforço do controle social vinculado àdescentralização; a adoção de políticas de coor-denação intergovernamental nas políticas de saú-de (com o PAB) e de educação (com o Fundef);criação de programas nacionais de transferênciadireta de renda, com importantes impactosredistributivos e, em menor medida, montou pro-gramas de avaliação dos gastos públicos e dosresultados das políticas, fornecendo um feedbackessencial à União para coordenar a descentrali-zação.

Os limites e os fracassos do período FernandoHenrique Cardoso são pensados aqui como o uni-verso que compõe os desafios federativos do go-verno Lula. Cabe assinalar, primeiramente, trêsações institucionais positivas tomadas pelo novoPresidente: o revigoramento da Secretaria de As-suntos Federativos, que nunca teve o devido po-der nos anos FHC, a criação do Ministério dasCidades, unificando todas as políticas urbanas emum só local, além da reestruturação da políticaregional, com o Ministério da Integração Nacio-nal. Duas medidas legislativas também apontarampara o rumo certo. Uma foi a continuação da re-forma da previdência, agora mais focada no setorpúblico, com impacto favorável à modernizaçãodos governos estaduais – e a forma cooperativapela qual Lula atuou junto aos governadores foium dos pontos altos de sua gestão. A outra medi-da revela a assunção de uma nova visão das rela-ções intergovernamentais. Trata-se do projeto queregulamenta os consórcios públicos, que diminuirásubstancialmente os efeitos perversos do munici-palismo autárquico.

Permanece uma lista longa de problemas decoordenação federativa para o governo Lula. En-tre os principais, destacamos:

1) mudanças no sistema tributário, principalmen-te na lógica de cobrança do ICMS, a fim deneutralizar os efeitos perversos da guerra fis-cal;

2) o fortalecimento dos mecanismos nacionais deavaliação de políticas públicas, tarefa bastanteatrasada no atual momento;

3) auxílio na reformulação e criação de capacida-des administrativas de estados e municípios,processo que teve um bom impulso no campo

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A COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL

dos estados, com a criação do Programa Na-cional de Apoio à Modernização da Gestão edo Planejamento dos Estados e do Distrito Fe-deral (Pnage). Além disso, é preciso estabele-cer redes e interconexões de longo prazo entreas burocracias federal, estaduais e municipais,o que favorecerá um planejamento melhor daspolíticas nacionais e regionais;

4) montagem de uma nova ordem regulatória ecoordenadora das principais políticas urbanas,com destaque para o saneamento, a segurançapública, a habitação e o transporte. Mais umavez, o governo Lula tem andado lentamente,quando não erraticamente, na formulação enegociação dessas políticas. Vale frisar aqui quea discussão sobre o papel e o funcionamentodas regiões metropolitanas precisa estar ligadaa esses assuntos;

5) ampliação e reforço dos mecanismos coorde-nadores nas áreas de educação – com a elabo-ração e aprovação do Fundeb – e saúde – coma indução para ações mais regionalizadas –;

6) aprimoramento das políticas nacionais de trans-ferência de renda, vinculando e controlandomais o repasse de recursos a políticas decapacitação para a cidadania plena;

7) adoção de políticas de desenvolvimento quereduzam, efetivamente, as disparidades regio-nais do país. As boas intenções iniciais, inclu-sive no campo institucional, não tiveram aindaresultados palpáveis e

8) por fim, o fortalecimento dos fóruns federati-vos de discussão e negociação entre os níveisde governo. Decerto que os anos FHC trouxe-ram muitos avanços para o nosso federalismo,mas eles ocorreram em uma ação direta, infor-mal e por vezes fragmentada do governo fede-ral junto aos entes subnacionais. O aumentoda consciência da importância da temática dacoordenação federativa só ocorrerá com mai-or sustentabilidade quando instituições como oSenado, o Conselho de Gestão Fiscal e gover-nos metropolitanos devem ser ativados para evi-tar o reforço perverso da dicotomia entredescentralização e centralização.

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Fernando Luiz Abrucio ([email protected]) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de SãoPaulo (USP), professor do Programa de Pós-graduação em Administração Pública e Governo da Funda-ção Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), além de lecionar Política Comparada na Pontifícia Univer-sidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 263-267 JUN. 2005ABSTRACTS

Versão dos resumos para o inglês: Miriam Adelman

FEDERATIVE COORDINATION IN BRAZIL: THE EXPERIENCE FROM THE FHCADMINISTRATION TO THE CHALLENGES OF THE LULA GOVERNMENT

Fernando Luiz Abrucio

With re-democratization, the rebirth of the Brazilian federation brought with it a series of auspiciousaspects. Yet Brazil must also face up to the growing dilemas on inter-governmental coordination thathave been ascertained internationally, as they pertain to Brazilian historical specificities. The presentarticle concentrates primarily on the study of problems and actions of federative coordination thathave arisen recently in Brazil, particularly during the administration of ex-president Fernando HenriqueCardoso. This analysis also aims to summarize the challenges of inter-governmental coordinationthat the Lula government must now face.

KEYWORDS: federation; centralization; FHC administration; Lula government.

* * *

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RÉSUMÉS

Versão dos resumos para o francês: Maria Fernanda Araújo Lisboa

LA COORDINATION FEDERATIVE AU BRÉSIL : L’EXPERIENCE DE LA PERIODEFERNANDO HENRIQUE CARDOSO (FHC) ET LES DEFIS SOUS LULA

Fernando Luiz Abrucio

La renaissance de la fédération brésilienne, grâce à la redémocratisation, annonce de bonnespespectives, mais il faut aussi que le Brésil fasse face à des difficultés de coordination entre lesrégions qui ont été ressentis internationalement, d’après les spécificités historiques de notre réalité.Cet article s’en tient à l’étude des problèmes et actions de coordination fédérative survenuesrécemment au Brésil, particulièrement dans la période du gouvernement du président FernandoHenrique Cardoso. A partir de cette analyse, on présente, à la fin et brièvement, les défis decoordination d’intégration gouvernementale pour le président Lula.

MOTS-CLES : fédération; centralisation; décentralisation; gouvernement FHC; gouvernement Lula.

* * *

FEDERALISMO E RELAÇÕESINTERGOVERNAMENTAIS NO BRASIL:A REFORMA DE PROGRAMAS SOCIAIS

Marta Arretche*

* Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas (UNICAMP), pós-doutora pelo MassachussetsInstitute of Technology, MIT, Estados Unidos.

A literatura comparada contemporânea considera que as caracte-rísticas institucionais dos estados federativos operam no senti-

do de restringir as possibilidades de mudança do status quo. A afirma-ção central é que a natureza das relações vertical e horizontal em esta-dos federativos dispersa a autoridade política e potencializa o poderde veto das minorias.

No plano das relações verticais, Lijphart afirma que o federalismo

“[...] pode ser considerado o mais típico e drástico método de divisãodo poder [pois] divide o poder entre níveis inteiros de governo. [...]Em todas as democracias, o poder é necessariamente dividido em al-guma extensão entre governos centrais e não centrais, mas esta divi-são é inteiramente unilateral nas democracias majoritárias. Para man-

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Revista Dados1ª Revisão: 27.09.20022ª Revisão: 27.11.2002Cliente: Iuperj – Produção: Textos & Formas

* Agradeço ao Grupo de Política do CEBRAP e aos participantes do Seminário Temático“Federalismo, Instituições e Políticas Públicas no Brasil” da ANPOCS de 2001 as críticase comentários à primeira versão deste texto, particularmente a Argelina Figueiredo,Maria Hermínia Tavares de Almeida, Fernando Limongi, Celina Souza, Eduardo Mar-ques, Vera Schattan Coelho e Haroldo Torres. Agradeço a Mara Roberta de Souza, bol-sista PIBIC/CNPq, o competente trabalho de coleta de dados estatísticos. Finalmente,os comentários dos pareceristas anônimos de Dados foram fundamentais para a eIabo-ração da versão final deste artigo.

DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 45, nº 3, 2002, pp. 431 a 458.

Federalismo e Relações Intergovernamentais noBrasil: A Reforma de Programas Sociais*

Marta Arretche

ter a regra majoritária no modelo majoritário puro, o governo centraldeve controlar não apenas o aparato do governo central mas tambémtodos os governos não centrais, potencialmente competitivos. O go-verno majoritário é, portanto, ao mesmo tempo unitário (não federal)e centralizado. O modelo consensual é inspirado no objetivo oposto.Seus métodos são federalismo e descentralização – isto é, não apenasuma divisão garantida de poder entre os níveis de governo central enão central, mas também, na prática, fortes governos não centrais queexercem uma porção substancial do total do poder disponível em am-bos os níveis” (1999:185-186).

A baixa integração vertical implicaria limites à capacidade de coorde-nação do governo central, pois

“[...] governos provinciais e federais podem ter autoridade para inter-vir em uma área de política sem permissão do outro nível de governo.[...] este tipo de federalismo [...] corre o risco de os diferentes níveis degoverno tenderem a impor conflitos entre programas, a elevar os cus-tos da implementação e a tornar o problema da coordenação de objeti-vos ainda mais difícil.” (Weaver e Rockman, 1993:459)

No plano das relações horizontais, a representação dos estados emuma Câmara Federal, juntamente com as restrições para emendar aConstituição e os poderes da Suprema Corte, operam no sentido deassegurar a divisão federal de poder (Lijphart, 1999:187-188), reite-rando, assim, a dispersão da autoridade política. O poder de veto dasminorias pode variar de acordo com os poderes constitucionais daCâmara Alta e com o grau de super-representação dos estados meno-res (Lijphart, 1984), mas, de qualquer modo, a presença de um maiornúmero de veto players institucionalizados nas arenas decisórias au-menta o potencial de estabilidade das políticas existentes (Tsebelis,1997).

A dispersão da autoridade afeta também o conteúdo das decisões to-madas, na medida em que as garantias institucionais dos Estados-membros no processo decisório tendem a produzir deliberações polí-ticas com base no “mínimo denominador comum” (Pierson e Leib-fried, 1995)1.

Comparado com outras federações contemporâneas, o Brasil estaria –juntamente com os EUA – no extremo da escala de demos-constraining,isto é, um tipo de federalismo cujas instituições políticas conforma-

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riam processos decisórios fortemente restritivos à manifestação davontade da maioria (expressa na escolha do presidente). Em primeirolugar, a super-representação dos estados menores na Câmara dos De-putados, combinada aos excessivos poderes legislativos do Senado,exponenciariam o poder de veto dos estados menores2. Além disso, opoder residual dos estados nos casos de omissão constitucional, o ex-cessivo detalhamento da Constituição de 1988 e a exigência de super-maiorias para as emendas constitucionais ofereceriam aos estadosoportunidades adicionais de veto às iniciativas de reforma da Presi-dência (Stepan, 1999)3. A conseqüência dessa engenharia institucio-nal é que

“[...] mesmo ao se defrontar com a oposição da sociedade, os presi-dentes [brasileiros] puderam implementar as políticas de sua prefe-rência quando encontraram baixa resistência institucional, mas nãoforam capazes de fazê-lo quando o Congresso e/ou os governos fo-ram jogadores decisivos” (Mainwaring, 1997:102).

Os presidentes brasileiros ficariam imobilizados nas áreas de políticaem que o Congresso e os governadores são veto players decisivos(idem; Abrucio, 1998; Stepan, 1999; Samuels, 2000; Ames, 2001). Seri-am, assim, duas as situações mais prováveis nas iniciativas de refor-ma que afetariam os interesses dos estados no Brasil: (a) impasse ouparalisia decisória e/ou (b) subordinação das preferências do gover-no federal àquelas dos governos estaduais e/ou municipais.

Essas previsões não são confirmadas pelas evidências apresentadasaqui. Em quatro áreas de política social – educação fundamental, saú-de, habitação e saneamento –, o governo federal encontrou resultadosdiversos na implementação da agenda de reformas que afetavam di-retamente os interesses de estados e municípios. Entretanto, nem oimpasse nem a subordinação do governo federal às preferências dosgovernos locais caracterizaram os casos examinados. Em outras pala-vras, diferentemente das previsões da literatura que enfatiza o poderde veto dos governos subnacionais no federalismo brasileiro, estesúltimos não representaram um ponto de veto intransponível à imple-mentação da agenda de reformas do governo federal nessas políticasparticulares.

Este artigo pretende demonstrar que, (i) na ausência de imposiçõesconstitucionais, a autonomia política dos governos locais – inerenteaos estados federativos –, de fato, potencializa o poder de veto desses

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governos à implementação de políticas propostas pelo Executivo fe-deral. Isto implica que, para obter a adesão dos governos locais, oExecutivo federal deve incorporar suas demandas às políticas que en-volvam relações intergovernamentais. A incorporação de pelo me-nos uma parte dessas demandas, somada ao compromisso crível decumpri-las, permite ao Executivo federal contornar o poder de vetodos governos locais no plano das relações verticais.

No plano das relações horizontais, (ii) a literatura que enfatiza o po-der de veto dos governos locais na arena congressual brasileira mini-miza a importância dos recursos de poder do Executivo federal, taiscomo os poderes de agenda e de veto, assim como o controle sobre re-cursos necessários à sobrevivência política dos parlamentares (Fi-gueiredo e Limongi, 1999; 2002). Além disso, ao contrário do que afir-ma Stepan (1999), (iii) no Brasil, a aprovação de emendas constitucio-nais é muito mais fácil do que nos Estados Unidos, porque, como nos-sas regras não incluem a necessidade de ratificação das assembléiasestaduais, a autoridade constitucional dos estados brasileiros é muitomais reduzida do que a dos estados norte-americanos. Nos EstadosUnidos, emendas à Constituição, mesmo que não afetem a distribui-ção federal de poderes, exigem a ratificação de três quartos dos Esta-dos-membros, e há mesmo tipos de emendas que não podem ser apro-vadas sem a ratificação de 49 dos 50 estados (Duchacek, 1970:231)4.

Entretanto, (iv) a categoria “federalismo” é insuficiente para definir opotencial de estabilidade de políticas particulares. Este é condiciona-do pela forma como estão estruturadas as relações intergovernamen-tais nas políticas específicas5. Em outras palavras, o poder de veto dosgovernos locais às iniciativas federais varia de acordo com as políti-cas. Mais particularmente, (v) regras constitucionais, legados de polí-ticas prévias e o ciclo da política estruturam diferentemente as arenasdecisórias, condicionando as estratégias e as chances de sucesso dosatores federativos6.

AS REFORMAS NAS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS E SUAS ARENAS

Políticas de Habitação e Saneamento

Nas áreas de habitação e saneamento, a mudança do paradigma depolítica pública7 do regime militar somente ocorreu no governo Fer-nando Henrique Cardoso. Nenhum dos governos democráticos ante-

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riores tinha uma agenda de reformas que visasse modificar radical-mente o modelo de política anterior.

Quer para a política de habitação social quer para o saneamento bási-co, o modelo do regime militar era simultaneamente estatal e centrali-zado. A oferta de bens e serviços fazia-se via produção pública – a ha-bitação social e os serviços de saneamento básico eram geridos porempresas estatais. No plano federal, havia uma agência que centrali-zava a formulação das políticas e a arrecadação da principal fonte definanciamento da política, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço– FGTS. Com base nesse modelo, constituiu-se no país uma rede de 44empresas públicas municipais e estaduais de habitação social, assimcomo 27 companhias estaduais de saneamento8.

A agenda de reformas do governo Fernando Henrique Cardoso visourever esse paradigma: descentralizar a alocação dos recursos federaise introduzir princípios de mercado na provisão de serviços, mais par-ticularmente abrir espaço para a participação do setor privado nessaárea e introduzir uma política de crédito para o mutuário final.

Esses objetivos de reforma decorriam de uma avaliação negativa dosresultados do modelo anterior. O Executivo federal avaliava que acorrupção e ineficiência administrativas das gestões civis preceden-tes foram possíveis graças à centralização federal9; por conseguinte,era forte a concepção, derivada desta primeira, que associava positi-vamente descentralização a formas mais ágeis, democráticas e efici-entes de gestão. Adefesa da descentralização era ainda reforçada pelaavaliação de que a burocracia federal estava viciada nos padrões ad-ministrativos prévios. Além disso, o Executivo federal consideravaque o modelo anterior gerava incentivos à ineficiência das prestado-ras estaduais e municipais. Políticas tarifárias voltadas a satisfazer oeleitorado, renegociação sistemática das dívidas com o governo fede-ral, empreguismo e uma burocracia ativa na defesa de seus própriosinteresses eram o resultado do modelo anterior. A separação entre re-gulação (estatal) e provisão (privada ou pública com padrões priva-dos de eficiência) seria a alternativa mais adequada.

Por fim, na política social de habitação, o financiamento à produçãodo modelo anterior implicava que o crédito hipotecário só podia serobtido para imóveis cuja produção tivesse sido financiada pelo siste-ma. Como nesse modelo não é o mutuário quem tem o financiamento,

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e sim o imóvel que será objeto da compra, a conseqüência direta é a re-duzida margem de escolha do mutuário final no mercado imobiliá-rio, assim como a impossibilidade de ativar o mercado de imóveisusados. A ausência de financiamento direto ao mutuário final, habili-tando-o a adquirir um imóvel diretamente no mercado, era uma dasprincipais críticas – inclusive de setores da esquerda – ao modelo an-terior.

Desestatização das empresas públicas de habitação e saneamento

Em 1995, já no primeiro ano da gestão do ministro José Serra no Minis-tério do Planejamento e Orçamento, os governadores de estado foramcontemplados com a possibilidade de ter grande autoridade sobre aalocação de suas respectivas parcelas do fundo público federal para odesenvolvimento urbano, o FGTS10. Para aderir ao programa, os go-vernadores deveriam constituir comissões estaduais, com represen-tação paritária entre governo do estado, governos municipais e socie-dade civil. Eles contavam com grande autonomia na composição des-sas comissões, o que permitiu um comportamento generalizado demontagem de comissões passíveis de controle no processo decisóriode seleção de projetos.

Na história das políticas públicas no Brasil, esse deve estar entre osprogramas com maior velocidade de implantação: em apenas quatromeses, todos os estados brasileiros haviam aderido a ele. Na base des-se sucesso estão suas regras de operação: a definição de uma estrutu-ra de incentivos que tornou extremamente atraente a adesão dos go-vernadores ao programa federal.

A descentralização da autoridade para alocação desses recursos, en-tretanto, foi combinada com um endurecimento das exigências para aobtenção dos empréstimos federais. Mesmo que aprovada pela co-missão estadual, por uma empresa pública estadual ou municipal, oumesmo um governo estadual ou municipal, somente poderia receberum financiamento caso comprovasse capacidade de endividamento.Assim, no quadro de endividamento generalizado de meados dosanos 90, somente aquelas empresas públicas que tivessem sucessonas medidas de saneamento de suas finanças obteriam os emprésti-mos federais.

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Essa medida dividia os governadores entre aqueles que “estavam fa-zendo a sua lição de casa” e aqueles que resistiam a adotar medidasde contenção do déficit público; bem como criava incentivos para areestruturação das empresas públicas de habitação e saneamento.Empresas públicas já excessivamente endividadas com o governo fe-deral – que tinha sido de longe o maior emprestador até então – passa-ram a ser objeto de uma política de desfinanciamento.

No debate público, o governo federal argumentava que o FGTS, base-ado na folha de salários e destinado também a indenizar trabalhado-res demitidos sem justa causa, sofria as conseqüências do desempre-go e do baixo nível dos salários. Seu caráter pró-cíclico erodia a possi-bilidade de realizar a universalização dos serviços exclusivamentecom base em recursos públicos. Para isto, seria necessário atrair re-cursos do setor privado, abrindo as empresas estatais – particular-mente as de saneamento – a formas de terceirização e privatizaçãodos serviços.

Entretanto, por causa do endurecimento das condições de emprésti-mo e da política de desfinanciamento, acumulava-se um saldo muitoelevado de recursos não aplicados do FGTS. Em 1997, este saldo erade R$ 9,5 bilhões (Pinheiro, 1998), algo equivalente a mais da metadeda arrecadação bruta anual do Fundo em 1996 e 1997.

Paralelamente, dois bancos federais de fomento abriram linhas decrédito para financiar as privatizações na área de saneamento. O Ban-co Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES finan-ciou algumas das privatizações municipais e adiantou recursos paraa privatização de uma companhia estadual, e a Caixa Econômica Fe-deral – CEF foi autorizada, em 1997, pelo Conselho Curador do FGTS,a criar um programa por meio do qual os recursos do Fundo poderi-am ser utilizados para financiar as privatizações das companhias desaneamento.

A estratégia do desfinanciamento decorreu, simultaneamente, da im-possibilidade de interferência direta do Executivo federal nas empre-sas públicas de saneamento e habitação e de sua função de principalfinanciador da política, ambas herdadas do modelo anterior. Na fasede expansão e consolidação da rede prestadora de serviços, ao longodos anos 70, havia se constituído uma rede de empresas de proprieda-de pública estadual e municipal. Dada a autonomia política dos go-

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vernos locais, qualquer política do governo federal nessa área teria decontar com a adesão deles. Entretanto, a função de financiador doExecutivo federal permitiu-lhe adotar a estratégia do desfinancia-mento, cujos efeitos seriam indiretos e pouco visíveis ao debate públi-co.

Na área de habitação, entre 1995 e 2000, doze das 44 Companhias deHabitação – COHABS declararam falência ou diversificaram suas ati-vidades, passando a operar como institutos de desenvolvimento ur-bano e não mais como agências de promoção pública de habitaçõespara baixa renda11.

Na área de saneamento, a privatização das empresas estaduais erauma alternativa atraente para certos governadores e prefeitos.Alguns compartilhavam da mesma avaliação negativa do governo fe-deral em relação à prestação pública de serviços, especialmente dofato de essas empresas terem gerado burocracias autônomas e politi-camente ativas sobre as quais a autoridade política tinha reduzidopoder de controle. Outros, premidos por problemas fiscais, viam navenda de suas empresas uma alternativa seja para reduzir o déficitpúblico seja para arrecadar recursos que poderiam ser empregadoscom maior liberdade alocativa. Iniciou-se, assim, na segunda metadedos anos 90, uma onda de tentativas de privatização de companhiasmunicipais e estaduais de saneamento12 nos estados do Rio de Janei-ro, Espírito Santo, Paraná e Ceará, bem como em algumas cidadescomo Fortaleza (CE), Limeira (SP) e Cajamar (SP).

Nos municípios, o único ponto de veto à privatização das empresasmunicipais seria a Câmara Municipal. O reduzido número de pontosde veto associado ao interesse dos prefeitos nas privatizações permi-tiriam esperar uma significativa taxa de sucesso dessas iniciativas.No entanto, Sanchez (2000) demonstra que, no Estado de São Paulo,entre 1995 e 1998, a pressão – da opinião pública e da companhia esta-dual interessada em disputar esse mercado com as possíveis presta-doras privadas – sobre as Câmaras Municipais inviabilizou a maiorparte das tentativas municipais de privatização.

As tentativas de privatização das empresas estaduais, cuja iniciativacabia aos governadores, foram enormemente dificultadas pela confi-guração de arenas decisórias caracterizadas por um elevado númerode pontos de veto e baixa coesão dos atores envolvidos. Grande parte

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dos obstáculos para a privatização ou flexibilização dos serviços (istoé, a transferência de apenas parte dos sistemas a um prestador priva-do) decorreu da pulverização de titularidade no setor saneamento, aqual, por sua vez, é derivada de uma regra constitucional.

A interpretação dominante sobre o artigo 30 da Constituição Federalde 1988 é a de que as atividades de saneamento básico são de respon-sabilidade municipal13. As empresas estaduais de saneamento ope-ram os serviços como concessionárias, com base em contratos firma-dos ao longo dos anos 70 e 80. Assim, ainda que uma companhia esta-dual possa vender seus ativos, este ato não implicaria a autorizaçãopara um terceiro operar os serviços concedidos pelos municípios àscompanhias estaduais. Neste caso, com base na interpretação domi-nante sobre a regra constitucional, a privatização de uma companhiaestadual de saneamento (ou de um sistema ou subsistema de servi-ços) dependeria da aprovação de todas as Câmaras Municipais onde acompanhia é concessionária. As tentativas de privatização das em-presas estaduais foram marcadas pelas dificuldades de os Executivosestaduais superarem o recurso ao princípio de titularidade por partede empregados das empresas estaduais, de prefeitos e de vereadoresdas diversas Câmaras Municipais14.

Em 1996, o então senador José Serra encaminhou ao Senado um proje-to de lei (PL 266/96) que, caso aprovado, dispensaria o governo do es-tado da autorização dos municípios nas privatizações em conurba-ções e regiões metropolitanas. Entretanto, este projeto foi considera-do inconstitucional na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Nessas condições, caso a privatização na área de saneamento estives-se entre as prioridades do Executivo federal, o passo seguinte deveriaser o encaminhamento de uma proposta de emenda constitucional.Mas esta iniciativa não foi tomada.

A mudança do modelo de política social de habitação

Na área de habitação social, o Executivo federal criou duas linhas definanciamento em 1995. A primeira, o Programa Pró-Moradia, podeser considerada uma continuação do modelo anterior. Voltado para apopulação de até três salários-mínimos, este programa contaria com aintermediação de agentes promotores públicos, prefeituras e órgãosda administração direta e indireta para a construção ou melhoria de

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unidades habitacionais ou para a execução de modalidades diversasde infra-estrutura urbana. O desenho institucional da segunda linhade financiamento, o Programa Carta de Crédito Individual, entretan-to, rompia com o paradigma do modelo anterior. Dirigido à popula-ção de até doze salários-mínimos, deveria conceder financiamentosdiretamente ao mutuário final para que este pudesse adquirir umamoradia nova ou usada, ou mesmo construir ou reformar a sua. Tra-ta-se de um programa de financiamento à demanda habitacional, cujaprincipal característica é permitir ao mutuário adquirir um imóvel di-retamente no mercado imobiliário.

Entre 1995 e 1998, a rede de empresas públicas de habitação recebeu11,5% dos recursos do FGTS, via Programa Pró-Moradia, e 28% dosrecursos destinados ao Programa Carta de Crédito Associativo. OPrograma de Carta de Crédito Individual, por sua vez, recebeu 76%desses recursos, utilizados majoritariamente para a aquisição de imó-veis usados (Tabelas 1, 2 e 3). Portanto, via gestão seletiva das linhasde crédito, ocorreu uma inflexão significativa na política habitacio-nal: de um modelo centrado no financiamento à produção de habita-ções novas, e assentado em uma rede de prestadoras públicas, paraum modelo centrado no financiamento ao mutuário final e, particu-larmente, destinado à aquisição de imóveis usados.

A alteração radical do modelo de financiamento à aquisição da casaprópria contou com o apoio dos mutuários, pois a nova modalidade –uma antiga reivindicação de diversos críticos do modelo anterior –amplia significativamente a liberdade de escolha do pretendente no

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Tabela 1

Distribuição dos Recursos do FGTS por Programa Habitacional

(1995-1998)

(em R$ 1.000,00)

Programa Valor Contratado %

Pró-Moradia 772.953,00 11,41

Carta de Crédito Individual 5.136.520,00 75,80

Carta de Crédito Associativo 821.207,00 12,12

Apoio à Produção 45.197,00 0,67

Total 6.775.877,00 100

Fonte: Base de Dados da Caixa Econômica Federal – 30/6/1999.Extraído de: USP/EESC/FIPAI (2000).

mercado imobiliário. Desse modo, a estratégia de desfinanciamentodas empresas públicas, via gestão seletiva dos financiamentos habita-cionais, encontrava suporte político entre os beneficiários da políticahabitacional.

A gestão seletiva das linhas de financiamento não foi um resultadonão intencional, derivado da exigência de adimplência junto ao go-

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Tabela 2

Programa Carta de Crédito Individual

Valores Contratados Globais por Modalidade

(1995-1998)

(em R$ 1.000,00)

Modalidades Valor Contratado %

Ampliação 48.944,00 1

Lotes 55.856,00 1

Conclusão 27.741,00 1

Construção 311.325,00 6

Cesta 347.259,00 7

Usado 3.486.910,00 68

Novo 352.402,00 7

Terreno + Construção 504.798,00 10

Remanescentes 1.279,00 0

Total 5.136.514,00 100

Fonte: USP/EESC/FIPAI (2000).

Tabela 3

Programa Carta de Crédito Associativo

Distribuição das Contratações por Tipo de Agente Promotor

(1995-1998)

(em R$ 1.000,00)

Promotor Valor doEmpréstimo

% Nº Unidades %

Companhias habitacionais 173.233,00 21 15.155 28

Entidades associativas 647.974,00 79 38.593 72

Total 821.207,00 100 53.748 100

Fonte: USP/EESC/FIPAI (2000).

verno federal para obtenção de recursos do FGTS, isto é, o desfinanci-amento das empresas públicas não foi resultado apenas das taxas deinadimplência das prestadoras públicas. A meta de prioridade deaplicação de recursos no Programa de Carta de Crédito em detrimen-to do Programa Pró-Moradia foi objeto de uma resolução do Conse-lho Curador do FGTS (nº 246) já em 1996. Assim, o desfinanciamentodas empresas públicas fez parte de uma estratégia cujo objetivo cen-tral era introduzir mecanismos de mercado na gestão das políticas dedesenvolvimento urbano.

A principal arena para aprovação das medidas necessárias à imple-mentação dessa estratégia foi o Conselho Curador do FGTS. Confor-me legislação aprovada no final dos anos 8015, este Conselho é o órgãoencarregado de estabelecer as diretrizes e os programas de alocaçãode recursos do Fundo. Ele conta com uma representação de emprega-dos e empregadores, mas não possui representação de estados e mu-nicípios. Em outras palavras, ainda que suas decisões sejam funda-mentais para o financiamento das políticas de desenvolvimento ur-bano dos governos locais, o Conselho não é uma arena com represen-tação federativa16, o que significa que estados e municípios não têmpoder de veto nessa arena decisória. Na verdade, esta é uma arena cu-jos custos de negociação são bastante reduzidos para o governo fede-ral17.

Reforma Constitucional para o Ensino Fundamental

Entre 1997 e 2000, ocorreu no Brasil uma significativa redistribuiçãodas matrículas no nível fundamental de ensino. A matrícula total dosetor público cresceu 6,7% no período, ao passo que as matrículas ofe-recidas pelos municípios aumentaram 34,5% e as estaduais tiveramcrescimento negativo (-12,4%) (ver Tabela 4). Isto significa que ocor-reu uma expressiva transferência das matrículas até então oferecidaspelos governos estaduais para os governos municipais. Os governoslocais também alteraram seu comportamento para com os docentes:no período, ocorreu um crescimento global de 10% no número de pro-fessores e um aumento médio de 29,5% em sua remuneração. Na re-gião Nordeste, esta elevação média foi de 59,7% e, na região Norte, de35% (Semeghini, s/d).

O súbito interesse dos municípios em oferecer matrículas no ensinofundamental e em aumentar os salários dos professores deveu-se a

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uma minirreforma tributária de âmbito estadual, produzida pelaaprovação da emenda constitucional que criou o Fundo de Manuten-ção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização doMagistério – FUNDEF. A Constituição Federal de 1988 havia estabele-cido que a oferta de matrículas no nível fundamental deveria ser uni-versal e oferecida preferencialmente pelos governos municipais. Alémdisso, obrigava governos estaduais e municipais a gastar 25% de suasreceitas de impostos e transferências em ensino. Essa regra de vincu-lação de gastos deu origem a uma expansão generalizada – por partede governos estaduais e municipais – da oferta de matrículas em to-dos os níveis de ensino – infantil, fundamental, médio e, até mesmo,superior. Além disso, a flexibilidade da regra constitucional permitiuque a expansão desse gasto se direcionasse para outras atividadesafins, tais como financiamento de bolsas de estudo, transporte esco-lar etc. Particularmente nas regiões Sul e Sudeste, onde os governosestaduais já tinham uma participação importante na oferta de matrí-culas no ensino fundamental, a expansão de gastos dos municípiosvoltou-se vigorosamente para o ensino infantil.

Para promover a municipalização e a valorização salarial dos profes-sores (vale dizer, aqueles que exercem diretamente atividades emsala de aula nesse nível de ensino), técnicos do Ministério da Educa-ção – sem consulta ou negociação com estados e municípios – elabora-ram um projeto de emenda constitucional que previa que, pelo prazode dez anos, estados e municípios deveriam aplicar, no mínimo, 15%de todas as suas receitas exclusivamente no ensino fundamental.Além disso, 60% desses recursos deveriam ser aplicados exclusiva-mente no pagamento de professores no efetivo exercício do magisté-rio. Para garantir padrões mínimos de gasto em educação, a emendaconstitucional também determinava que deveria ser estabelecido acada ano um valor mínimo nacional de gasto por aluno, sendo estecomplementado pelo governo federal nos estados onde o valor míni-mo nacional não fosse alcançado.

Na prática, a implementação dessa emenda constitucional implicavauma minirreforma tributária de âmbito estadual, na medida em que,a cada ano, 15% das receitas de impostos de estados e municípios seri-am automaticamente retidas e contabilizadas em um fundo estadual,o FUNDEF18, e redistribuídas, no interior de cada estado, entre gover-nos estaduais e municipais proporcionalmente ao número de matrí-culas oferecidas anualmente19.

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A proposta de emenda constitucional penalizava diretamente osnove estados da região Nordeste e o Rio de Janeiro, uma vez que nelesa matrícula já era predominantemente municipal (ver Tabela 4).Entretanto, favorecia outros estados que ou receberiam receitas adi-cionais ou obteriam adesão de seus respectivos municípios para amunicipalização da matrícula. Por conseqüência, a proposta do Exe-cutivo federal dividia os governadores entre “perdedores” e “ganha-dores”.

A estratégia formulada por técnicos do Ministério da Educação alémde obter a aprovação da Presidência fez com que o Executivo federalmobilizasse sua coalizão de apoio para aprovar a emenda cons-titucional no Congresso. As perdas fiscais dos estados do Nordeste –que provocaram a resistência de suas bancadas à aprovação da emen-da – foram compensadas com a inclusão do auxílio federal ao ensinomédio nos estados da região por um período de cinco anos no ProjetoAlvorada.

Adicionalmente, a ausência da regra de ratificação dos estados para aaprovação de emendas à Constituição, mesmo em decisões que afetam di-retamente as receitas de estados e municípios, limitou significativamenteo potencial de veto dos estados e municípios diretamente penaliza-dos pela reforma. A emenda foi aprovada e regulamentada em 1996 eimplementada a partir de 199820.

Para o Executivo federal, a estratégia de emendar a Constituição de-correu do fato de a oferta de ensino fundamental estar distribuída en-tre governos estaduais e municipais, em decorrência de diferentestrajetórias estaduais de expansão dessa oferta, ocorrida particular-mente entre os anos 70 e 90. À exceção de um programa no Paraná en-tre meados dos anos 80 e 90, e de alguns poucos esforços no Nordestedurante o regime militar, as tentativas de municipalização por partede governos estaduais tinham sido em geral fracassadas. Elas defron-tavam-se com as resistências dos governos municipais a assumir no-vas atribuições. Além disso, nessa política particular, diferentementedas políticas de desenvolvimento urbano e de saúde, o governo fede-ral não detinha a função de principal financiador, o que limitava mui-to seus recursos para induzir o comportamento dos governos locais.

O acelerado processo de alteração dos padrões prévios de distribui-ção das matrículas no âmbito dos estados, assim como de elevação

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dos salários docentes, explica-se em grande parte pelo interesse dosgovernos locais em aumentar suas receitas. Isto é, uma vez aprovadaa emenda constitucional, aumentar a oferta de matrículas na rede deensino fundamental passou a ser uma estratégia racional para obterreceitas adicionais. Trata-se, assim, do resultado da estrutura de in-centivos da nova legislação sobre a decisão dos governos subnacio-nais. A oferta de matrículas no ensino fundamental permitiu combi-nar ganhos de receita com a ampliação da oferta de serviços à popula-ção, bem como a elevação dos salários dos professores.

Descentralização da Política de Saúde

Ao longo da década de 90, o governo federal foi muito bem-sucedidoem transferir para os municípios brasileiros a responsabilidade pelagestão dos serviços públicos de saúde.

A descentralização e a universalização da política federal de saúde e aconseqüente construção do Sistema Único de Saúde – SUS passaram aser normas constitucionais na Constituição Federal de 1988. Emborao princípio do direito universal de acesso aos serviços públicos de sa-úde passasse a ter validade imediatamente após a promulgação daConstituição, a municipalização destes implicava um processo de re-estruturação do arcabouço nacional dos serviços, cuja principal con-seqüência seria a transferência de atividades até então desempenha-das no âmbito federal para os municípios21. Esse novo modelo estariaassentado na separação entre financiamento e provisão dos serviços(Costa et alii, 1999), ficando o financiamento a cargo das três esferasde governo e a provisão dos serviços sob a responsabilidade dos mu-nicípios.

A municipalização da gestão dos serviços de saúde foi o elementocentral da agenda de reformas do governo federal ao longo da décadade 90, e pode-se afirmar que, deste ponto de vista, a reforma foi umsucesso. Em 2000, 99% dos municípios estavam habilitados junto aoSUS, aceitando, assim, as normas da política de descentralização dogoverno federal (ver Tabela 5).

A agenda da reforma tinha como objetivos universalizar o acesso aosserviços e descentralizar sua gestão, isto é, a reforma visou, simulta-neamente, romper com o modelo prévio assentado sobre o princípiocontributivo e transferir aos municípios responsabilidades de gestão

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da prestação de serviços, mantendo a participação federal no finan-ciamento da política. Tratava-se, portanto, de uma reforma que en-volvia o princípio ordenador do direito à saúde e o modelo centraliza-do de prestação de serviços.

A universalização dos serviços implicava a ampliação da abrangên-cia de direitos dos cidadãos, uma vez que o princípio contributivo domodelo anterior excluía do acesso aos serviços camada significativada população com baixos rendimentos ou com formas precárias de in-serção no mercado de trabalho. Esse objetivo da reforma – elevar onúmero de beneficiários da política –, seguramente, representou umforte estímulo para a adesão dos municípios ao SUS. Os créditos polí-ticos derivados do aumento da oferta de serviços de saúde criaramnas administrações locais incentivos para assumir sua gestão22.

No entanto, essa variável – o interesse das elites locais na visibilidadepolítica da universalização dos serviços de saúde – não é suficientepara explicar a adesão dos municípios à política federal nem o ritmoem que esta ocorreu. O objetivo da universalização, a norma constitu-cional da municipalização dos serviços, a competição eleitoral e ascondições institucionais para a barganha federativa já estavam pre-sentes no cenário político brasileiro em 1988. Estes fatores explicam,por exemplo, por que o número de estabelecimentos municipais desaúde cresceu de 2.961 para 18.662 entre 1981 e 1992, passando de umpercentual de 22% para 69% do total de estabelecimentos do setor pú-blico no mesmo período (Costa et alii, 1999:37).

Todavia, eles não explicam por que os municípios aceitaram a transfe-rência da responsabilidade pela gestão dos serviços, tarefa razoavel-mente mais complexa do que a sua simples oferta. Observe-se que a

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Tabela 5

Habilitação dos Municípios ao SUS segundo Anos Selecionados

Brasil (1988-2000)

1988 1993 1996 2000

Municípios Habilitados 0 1.090 3.127 5.450

Total de Municípios 4.179 4.974 4.973 5.507

Habilitados/Total (%) 0 22 62,87 98,96

Fontes: Dados sobre municipalização da saúde: Costa et alii (1999); Guimarães (2001). Dadossobre número de municípios: IBGE.Obs.: Na NOB/91 foram habilitados 420 municípios, e na NOB/92, 670 (Guimarães, 2001).

instalação de capacidades de gestão envolvia custos elevados, tendoem vista a quase ausência destas nas administrações municipais, resul-tado da centralização das funções no Executivo federal desde a eraVargas. Aquelas variáveis também não são suficientes para explicarpor que esse processo de aceitação da transferência de responsabilida-des se acelerou apenas na segunda metade dos anos 90 (ver Gráfico 1).

A adesão dos municípios ao SUS e, particularmente, o seu ritmo noplano nacional são explicados pela estratégia de descentralização dogoverno federal consubstanciada em portarias editadas pelo Ministé-rio da Saúde. Os “arrancos” de adesão estão diretamente associados àedição das Normas Operacionais Básicas. A NOB/91 introduziu oprincípio da habilitação ao SUS, mecanismo mediante o qual os esta-dos e municípios poderiam aderir à política federal de descentraliza-ção, subordinando-se às regras federais e capacitando-se a receber astransferências oriundas dessa esfera de governo. Entre 1991 e 1992,sob o governo Collor, ocorreu um primeiro impulso de adesão sob asNOB/91 e NOB/92, que regulamentavam a sistemática de transfe-rência de recursos para os estados e municípios. No governo Collor,entretanto, essas portarias ministeriais estabeleciam regras de trans-

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Evolução da Habilitação Municipal do SUS

ferência de recursos que conferiam um caráter incerto e politizado àsmesmas, razão pela qual a adesão municipal ao SUS, nesse período,permaneceu em 22% (ver Tabela 5). Essas NOBs foram fortementecombatidas pelo movimento sanitarista e foram “mais conhecidas peloque não avançaram do que pelo que implantaram” (Guimarães, 2001:49).

O segundo grande arranco, entre 1993 e 1995, ocorreu sob a vigênciada NOB/93, durante o governo Itamar Franco. Resultado de um am-plo processo de consulta, esta Portaria do ministro da Saúde abria umleque de escolhas aos municípios, que poderiam optar entre três mo-dalidades distintas de habilitação de acordo com suas capacidadesadministrativas, vindo a receber recursos federais diretamente vin-culados às funções de gestão assumidas. Nesse segundo momento,ainda marcado pela incerteza quanto à capacidade de o Ministério daSaúde efetivamente realizar a totalidade das transferências por causada escassez de recursos, 63% dos municípios brasileiros aderiram aoSUS23.

O processo de municipalização completou-se sob a NOB/96, cuja im-plantação ocorreu somente a partir de 1998. A adesão dos municípiosfoi superior às metas do próprio Ministério da Saúde. Duas são asprincipais razões para este resultado. Em primeiro lugar, as novas re-gras de transferência federais acrescentavam recursos aos cofres de66% dos municípios brasileiros e eram fiscalmente neutras para 22%deles (Costa et alii, 1999:45). Em segundo, o Ministério da Saúde fezcrer que as transferências seriam efetivamente realizadas.

No caso da política de saúde, a passagem da fase de definição dos ob-jetivos da reforma para a etapa de implementação implicou um deslo-camento da principal arena decisória: do Parlamento para o Executi-vo, transferindo poder decisório para as burocracias deste último. Asdeterminações constitucionais já haviam sido estabelecidas em 1988,cabendo ao Ministério da Saúde a edição de normas operacionaispara colocar em prática o processo de transferência de funções a esta-dos e municípios.

Entretanto, os conflitos com o Executivo federal durante o governoCollor tornaram visível ao movimento sanitarista – principal articu-lador do processo de descentralização – que a concentração de recur-sos de autoridade no Ministério da Saúde – via funções de financia-mento e de coordenação das relações intergovernamentais – limitava

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a representação de interesses de estados e municípios na arena deci-sória de formulação e implementação da reforma. No governo ItamarFranco, a oportunidade institucional oferecida por um ministro comfortes ligações com o movimento sanitarista, Jamil Haddad, permitiua institucionalização de uma arena federativa para a formulação dapolítica de saúde: todas as medidas da descentralização deveriam seraprovadas por uma Comissão Intergestores Tripartite, composta porrepresentantes dos Executivos federal, estaduais e municipais. Aconstituição dessa arena federativa permitiu a incorporação parcialdas demandas dos governos locais às regras da política federal.Assim, as portarias editadas pelo Ministério da Saúde adaptaram su-cessivamente as regras de operação da política para obter a adesãodos municípios.

O conteúdo das sucessivas normas operacionais expressa um proces-so de aprendizagem (policy-learning) no âmbito das burocracias doMinistério da Saúde. Por seu intermédio, foram alteradas, no prazode menos de uma década, as regras da política federal de descentrali-zação, sem que fossem modificados seus instrumentos e nem sequerseus objetivos. Neste processo, a burocracia do Ministério da Saúdeincorporou não só demandas dos atores com potencial capacidade deveto à política federal (particularmente estados e municípios), comotambém a participação institucionalizada desses atores na formula-ção das regras federais.

CONCLUSÕES

Nos quatro casos de política social aqui analisados, o governo federalalcançou diferentes graus de sucesso, mas, à exceção da privatizaçãodas empresas estaduais de saneamento, não encontrou obstáculos in-transponíveis para implementar sua agenda de reformas.

Os casos apresentados revelam, em primeiro lugar, que não existe re-lação necessária entre a radicalidade das reformas pretendidas peloExecutivo federal e a arena decisória em que são aprovadas as medi-das indispensáveis à sua implementação. Reformas radicais e profun-das no modelo de uma política pública não implicam, obrigatoria-mente, que as decisões que lhe são correlatas devam ser tomadas emuma arena decisória cujos custos de aprovação sejam mais elevadospara o Executivo federal – como, por exemplo, a aprovação de refor-mas constitucionais no Congresso. Das quatro políticas em tela, em

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apenas uma – a municipalização da educação básica – a aprovação deuma emenda constitucional foi a estratégia adotada pelo governo fe-deral.

Os quatro casos têm em comum o fato de o sucesso das reformas de-pender da capacidade do Executivo federal para superar o poder deveto à implementação de políticas decorrente da baixa integraçãovertical de estados federativos. Em razão da sua autonomia política efiscal, os governos subnacionais adotam as políticas federais apenaspor adesão voluntária ou obrigação constitucional. Nas quatro políti-cas, verifica-se que o governo federal excluiu a possibilidade de atri-buir competências exclusivas ou obrigações constitucionais aos go-vernos subnacionais, buscando a aprovação de medidas cuja estrutu-ra de incentivos tornasse atraente a subordinação de estados e/oumunicípios a seus objetivos de reforma.

A estratégia do Executivo federal, em cada política particular, foi con-dicionada pelos objetivos da reforma e pelo modo como estavam es-truturadas as relações intergovernamentais, que, por sua vez, sãocondicionadas por regras constitucionais, legado de políticas anterio-res e o ciclo da política.

No caso da educação fundamental, o objetivo da reforma envolvia aintervenção em distintas configurações estaduais de distribuição dematrículas e nos sistemas de pagamento de professores. Dado que aoferta de serviços era, e ainda é, inteiramente controlada por estadose municípios e o Executivo federal estava insuficientemente dotadode recursos para influir nas escolhas dos governos locais – tais como opapel de financiador nas políticas de saúde e desenvolvimento urba-no –, a realização de uma minirreforma tributária de âmbito estadual,via aprovação de uma emenda constitucional, foi a estratégia adota-da. Esta minirreforma afetava diretamente as receitas fiscais dos esta-dos da região Nordeste, o que não impediu, todavia, sua aprovação,tendo esta sido viabilizada graças ao poder de agenda e ao uso de re-cursos à disposição do presidente, à coalizão de apoio parlamentar doExecutivo federal e à ausência da regra de ratificação dos estadospara emendas constitucionais no Brasil. Tais características do presi-dencialismo e do federalismo brasileiros deslocaram para a arena doPoder Executivo a parte mais importante do processo de formulaçãoda reforma, tal como previsto por Immergutt (1996) para os Estadosunitários e parlamentaristas. Uma vez aprovada a emenda, a adesão

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dos governos locais foi um resultado direto dos incentivos fiscais em-butidos nas regras de operação da nova política.

A descentralização da atenção à saúde não envolvia uma reformaconstitucional, mas a obtenção da adesão dos municípios a normasconstitucionais já aprovadas em 1988. Neste caso, a estratégia passoupela edição de um conjunto sucessivo de portarias ministeriais, a par-tir das quais a burocracia do Ministério da Saúde foi progressivamen-te organizando uma estrutura de incentivos destinada a obter a ade-são dos municípios aos objetivos da reforma. Aestratégia foi em gran-de parte condicionada pelas possibilidades de veto dos municípios àimplementação das medidas pretendidas. A fase de implementação,combinada às funções do Ministério da Saúde, transformou o Execu-tivo federal na principal arena decisória, muito embora tenha sidoinstitucionalizada uma arena federativa, através da qual os interessese a representação de estados e municípios foram incorporados ao pro-cesso de formulação das regras federais.

Finalmente, a desestatização progressiva das empresas públicas dehabitação, assim como a modificação radical da política federal de ha-bitação, foram resultado de uma estratégia de desfinanciamento – viamudança das exigências legais para obtenção de financiamentos fe-derais – bem como da gestão seletiva da liberação de recursos fede-rais. No que se refere às políticas de habitação e saneamento, a arenadecisória para a aprovação das medidas de reforma não incluía a re-presentação de estados e municípios, o que favoreceu a aprovaçãodos objetivos de reforma do Executivo federal. Formulada a estraté-gia pela burocracia do Ministério do Planejamento e Orçamento, osobstáculos institucionais seriam praticamente irrelevantes.

Conforme vimos, a aprovação de medidas no Congresso é uma dasetapas de um processo de reformas. Uma vez aprovada uma legisla-ção reformadora na arena parlamentar, sua implementação envolve aadoção de medidas que deslocam para a arena do poder Executivo fe-deral a autoridade decisória sobre o conteúdo das políticas a seremefetivamente concretizadas. Isto significa que as burocracias encarre-gadas da implementação das reformas aprovadas passaram a disporde inúmeras oportunidades institucionais para tomar decisões inde-pendentemente de autorização legislativa. Posteriormente à aprova-ção legislativa, essas burocracias têm autoridade para traduzir leis

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em políticas efetivas, simplesmente pela definição das regras de im-plementação das políticas.

(Recebido para publicação em novembro de 2001)

NOTAS

1. Weir et alii (1988) demonstram o papel da estrutura federativa dos EUA na emer-gência do sistema de proteção social norte-americano. Pierson (1994) mostra comoas instituições federais foram um obstáculo às reformas descentralizadoras deReagan.

2. Além do poder para aprovar todas as leis e emendar a Constituição, a Câmara Altadispõe de doze áreas de exclusividade legislativa (Stepan, 1999).

3. O controle dos governos locais sobre a sobrevivência eleitoral dos candidatos aoLegislativo federal seria o mecanismo através do qual os governos subnacionaiscontrolariam o comportamento parlamentar no Congresso (Abrucio, 1998; Stepan,1999; Samuels, 2000; Ames, 2001).

4. Para um exemplo, ver Mansbridge (1986), que analisa as razões pelas quais o EqualRights Movement – ERA fracassou em aprovar a emenda constitucional que garanti-ria direitos iguais a homens e mulheres. Embora tenha sido aprovada no Senadodos Estados Unidos com uma votação de 84 contra 9, e diversas pesquisas de opi-nião tenham revelado forte apoio da opinião pública à emenda constitucional, estanão foi aprovada porque em apenas 35 estados as Casas Legislativas a aprovaram,quando seria necessário que 38 estados o tivessem feito.

5. Agradeço a compreensão da importância da distinção entre federalismo e estrutu-ração das relações intergovernamentais à insistência de Celina Souza. Para umadiscussão sobre o tema, ver Souza (2002).

6. Para uma análise sobre as reformas constitucionais recentes no Brasil, com base emestudos de caso que consideram as variáveis específicas das arenas decisórias, verMelo (2002).

7. O conceito de paradigma de política é de Peter Hall (1993), que compreende simul-taneamente a hierarquia de objetivos de uma política, bem como seus instrumentosde operação.

8. Por efeito não desejado da política anterior, existem ainda centenas de companhiasmunicipais de saneamento.

9. O emprego de recursos do FGTS para obter apoio no Congresso pelo presidenteSarney na Constituinte e pelo presidente Collor no episódio do impeachment são osexemplos mais citados.

10. Segundo decisões anteriores do Conselho Curador do FGTS, instância colegiadafederal, os recursos do Fundo deveriam ser aplicados de modo a destinar 60% para

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habitação popular e 40% para as áreas de saneamento básico e infra-estrutura urba-na. Cada unidade da federação deveria ter um orçamento anual, calculado combase na arrecadação líquida do Fundo e em critérios de distribuição entre os esta-dos que atribuem pesos distintos às variáveis arrecadação do FGTS, população ur-bana e déficit habitacional e de água e esgoto. Este orçamento estabelece o valormáximo que pode ser emprestado para cada estado anualmente.

11. Entrevista com dirigente da Associação Brasileira de COHABS – ABC. As COHABS doCeará, Alagoas, Rondônia, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Espírito Santo,Mato Grosso e Goiás foram fechadas. A COHAB do Rio Grande do Sul havia declara-do falência antes de 1995. As empresas estaduais da Bahia, Distrito Federal e Rio deJaneiro transformaram-se em agências de desenvolvimento urbano.

12. Na verdade, a natureza das relações entre os governadores e as burocracias das em-presas estaduais de saneamento foi um fator determinante na definição das estraté-gias estaduais de privatização ou preservação das empresas estaduais de sanea-mento. Ver, a este respeito, Arretche (1999).

13. “Artigo 30 – Compete aos Municípios: […] V – Organizar e prestar, diretamente ousob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, in-cluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.

14. No Rio de Janeiro, após uma longa batalha jurídica e política que consumiu quase atotalidade do governo Marcelo Alencar, o consórcio privado interessado na com-pra da empresa desistiu da operação por causa das incertezas quanto à possibilida-de de poder vir a operar efetivamente a companhia.

15. Leis 7.839/89, 88.036/90 e Decreto 99.684/90.

16. Agradeço a Fernando Limongi e Eduardo Marques a sugestão para a importânciado caráter não federativo dessa arena decisória.

17. Na verdade, o Conselho Curador em diversas situações aprovou ad hoc medidas deaplicação de recursos já implementadas pela Caixa Econômica Federal, as quaiscontrariavam regulamentações prévias do próprio Conselho (USP/EESC/FIPAI,2000). Além disso, a própria representação da Central Única dos Trabalhadores –CUT aderiu à estratégia de reforma da burocracia do Ministério do Planejamento eOrçamento.

18. As receitas do Fundo de Participação dos Municípios – FPM, Imposto sobre Circu-lação de Mercadorias – ICMS e Imposto sobre Produtos Industrializados Proporci-onal às Exportações – IPI/Exp são automaticamente bloqueadas quando da reali-zação dos créditos.

19. O número de matrículas oferecidas é calculado anualmente através do Censo Esco-lar.

20. É por essa razão que seu impacto se inicia depois de 1997.

21. O artigo 30 da Constituição de 1988 estabelece que o município é o único ente fede-rado a quem é atribuída a missão constitucional de prestar serviço de atendimentoà saúde da população.

22. Pesquisas de opinião revelam ser significativa a satisfação dos brasileiros com rela-ção a esses serviços (Costa et alii, 1999:50). A literatura comparada aponta que o in-teresse dos governos na visibilidade da responsabilidade pela oferta de benefíciossociais foi historicamente uma das razões de sua expansão. Pierson (1994) demons-

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tra que, no contexto de expansão do welfare state, a concentração da autoridade po-lítica implica a concentração da accountability pela ampliação de benefícios. Ban-ting (1995) demonstra que, no Canadá, a disputa entre governo federal e provínciaspelos créditos políticos derivados da ampliação de serviços sociais contribuiu paraa expansão do welfare state canadense.

23. Em 1994, o ministro Antonio Britto (do Ministério da Previdência e Assistência So-cial) suspendeu as transferências constitucionais de 30% dos recursos do Fundo daPrevidência e Assistência Social para o Ministério da Saúde, abrindo uma crise dedesfinanciamento no setor.

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Marta Arretche

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ABSTRACTFederalism and Inter-Governmental Relations in Brazil: Social-ProgramReforms

The article analyses the process of reform in four areas of social policies thataffect directly the interests of sub-national governments: basic education,social housing programs, basic sanitation and health. As the study reveals,despite the varying degree of success achieved in the various policyinitiatives and contrary to the expectations of the prevailing interpretationsof the nature of Brazilian federalism, the federal government faced noinsurmountable hurdles in implementing their reform agenda. The studyaims at demonstrating that (i) in the absence of any constitutional mandatoryrequirement, the political autonomy of local governments – typical offederative States – actually enhances the veto power of local governmentsover policy initiatives proposed by the federal Executive branch. However,(ii) power resources available to the federal Executive branch – such asagenda definition and vetoing powers – in addition to control over resourcesthat are essential to the political survival of the representatives increase thechances of success of the federal government. Furthermore, (1999), (iii) theconstitutional authority of Brazilian states is far more limited than that of theNorth-American states; (iv) the category “federalism”, however, is notsufficient to define the potential stability of specific policies, which dependsupon how inter-governmental relations are structured in each particularpolicy. Specifically, (v) constitutional rules, legacies from previous policiesand the political cycle frame the decision arenas in various ways, thusconditioning both the strategies and chances of success of the federativeplayers.

Keywords: federalism; inter-governmental relations; social policies

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RÉSUMÉFédéralisme et Relations Intergouvernementales au Brésil: La Réformedes Programmes Sociaux

Dans cet article, on analyse le processus de réforme dans quatre domaines dela politique sociale atteignant directement les intérêts des gouvernementsrégionaux: éducation élémentaire, logement social, assainissement éssentielet santé. On y voit que le gouvernement fédéral a réussi dans ces domaines àdifférents degrés, mais que, contrairement à l’attente des interprétationsdominantes sur la nature du fédéralisme brésilien, il n’a pas trouvéd’obstacles infranchissables à la mise en place de son programme deréformes. Ici on essaie de montrer que (i) en l’absence de contraintes issues dela Constitution, l’autonomie politique des gouvernements locaux – propreaux États d’une fédération – rend effectivement plus puissant le veto que cesgouvernements locaux opposent à la mise en place de politiques proposéespar le gouvernement fédéral. Cependant, (ii) les ressources du pouvoir del’exécutif fédéral, tels que le pouvoir de fixer les priorités et d’opposer desvetos, ainsi que le contrôle des fonds nécessaires à l’existence politique desparlementaires favorisent plutôt le gouvernement fédéral. De surcroît,(1999), (iii) l’autorité constitutionnelle des États brésiliens est bien plusréduite que celle des États nord-américains. Cependant, (iv) la catégorie“fédéralisme” ne suffit pas pour définir le potentiel de stabilité des politiquesparticulières. Ce potentiel est soumis à la manière dont sont structurées lesrelations intergouvernementales dans les politiques particulières. Enparticulier (v) des règles constitutionnelles, héritées de politiquesprécédentes ainsi que les cycles de la politique structurent différemment lesarènes de décisions, déterminant les stratégies et les chances de succès desacteurs fédératifs.

Mots-clé: fédéralisme; relations intergouvernementales; politiques sociales

Marta Arretche

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COOPERAÇÃO INTER-ORGANIZACIONAL E

RESILIÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES: NOTA

SOBRE A INTERSETORIALIDADE NA GESTÃO

DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Carlos Aurélio Pimenta de Faria; Carlos Alberto de

Vasconcelos Rocha; Cristina Almeida Cunha Filgueiras*

* Professores da Pontifícia Universidade Católica - PUC-Minas Gerais.

1

Cooperação inter-organizacional e resiliência das instituições: notas sobre

a intersetorialidade na gestão das políticas públicas1

Publicado em “Pensar BH-Política Social”, No.15, 2006, p.5-7

Carlos Aurélio Pimenta de FariaCarlos Alberto de Vasconcelos Rocha

Cristina Almeida Cunha FilgueirasProfessores da PUC-Minas

A ênfase que nos últimos anos tem sido dada pelos gestores e pelos analistas de

políticas públicas às relações intergovernamentais, ao papel das redes e à intersetorialidade

espelha, em ampla medida, algumas das principais mudanças que têm sido operadas nos

padrões tradicionais de produção das políticas públicas, mudanças essas associadas à

consolidação de novas formas de governança. Neste contexto de emergência de novos

atores, de uma certa fragilização do Estado, de valorização da sociedade civil na gestão

pública e de complexificação dos processos sociais, torna-se central a questão da

cooperação interorganizacional. Se ainda são incipientes no Brasil os esforços mais

sistemáticos no sentido da investigação dos condicionantes, dos indutores, do impacto e do

potencial disruptivo das relações intergovernamentais e da atuação das redes de políticas

públicas, a preocupação com a chamada intersetorialidade, entendida aqui como ação

concertada das agências governamentais, rompendo a tradicional perspectiva fragmentada e

setorializada do planejamento e da implementação das políticas no país, parece constituir

uma lacuna ainda mais significativa na agenda de pesquisa dos analistas de políticas

públicas. Os raros trabalhos que têm se dedicado à questão parecem ainda em larga medida

restritos à esfera da prescrição, sendo, via de regra, contaminados por um normativismo que

lhes impossibilita um tratamento mais sistemático dos constrangimentos políticos, legais,

institucionais e burocráticos à ação concertada/cooperativa.

1 Este trabalho é parte de uma investigação mais abrangente, cujo primeiro resultado foi o artigo

“Intersetorialidade e resiliência institucional na gestão da política social: as recentes reformasadministrativas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte”, apresentado no XXIX Encontro Anual daANPOCS, realizado em Caxambu, MG, em outubro de 2005.

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Parece valer aqui a imagem da coruja de Minerva, posto que as iniciativas de

modernização do Estado no Brasil, assim como na América Latina de uma maneira geral,

têm privilegiado, particularmente na seara das políticas sociais, a criação de uma nova

institucionalidade, na qual a questão da cooperação, do fomento à ação concertada, ocupa

um papel considerado estratégico. Eduardo Amadeo (2003), por exemplo, mapeando a

"evolução das políticas sociais na América Latina durante os anos noventa", afirma que

aquela foi a década "do surgimento de novos ministérios sociais de caráter geral ou

coordenadores" (p.20). Na verdade, tem sido ensaiada na região uma variedade de formas

de coordenação no âmbito das políticas sociais, nos distintos níveis de governo, que "vão

desde reformas na institucionalidade até inovações na gestão social" (p.21). Se a criação do

Ministério do Desenvolvimento Humano na Bolívia pode ser pensada como paradigmática,

têm proliferado as Secretarias de Desenvolvimento Social e distintas instâncias dedicadas à

busca de cooperação entre as agências governamentais. No âmbito mais programático, tem

se tornado corrente a formulação de políticas e programas sociais que demandam ação

concertada entre distintas agências públicas, sem contar aqui, é claro, a ênfase que tem sido

dada às parcerias entre Estado, organizações da sociedade civil e entidades do mercado2.

Neste ensaio temos o objetivo de explicitar, de forma breve e em suas linhas

principais: (a) os processos que levaram à fragmentação do planejamento e da gestão no

setor público; (b) os fatores que têm gerado a pressão para o rompimento deste padrão

inercial; e (c) as dificuldades e barreiras à cooperação entre as agências públicas, dentre

elas destacando-se o que aqui denominamos "resiliência institucional".

Cabe explicarmos, antes de qualquer outra coisa, o termo “resiliência institucional”.

O Dicionário Aurélio dá a seguinte definição de “resiliência”: “propriedade pela qual a

energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora

duma deformação elástica”. Em nossa apropriação desse termo para a apreciação do

comportamento das burocracias públicas, estaremos enfatizando as características internas

às organizações que servem como obstáculo à assimilação da mudança (qual seja, a

introdução de um modo intersetorial de produção de políticas públicas).

Preliminarmente, é importante recordarmos que, já em seu clássico trabalho sobre a

implementação de políticas públicas, Pressman e Wildavsky afirmavam que “nenhuma

frase expressa melhor a freqüente reclamação sobre a burocracia federal (dos EUA) do que

‘falta de coordenação’. Nenhuma sugestão de reforma é mais comum do que ‘o que

precisamos é de mais coordenação’” (1984, p.133). Guy Peters, por seu turno, assevera que

o “Santo Graal da administração, qual seja, coordenação e ‘horizontalidade’, é uma procura 2 No caso dos Estados Unidos, conforme O'Toole Jr., “o gasto federal direto em programas operados por uma

única agência equivale a apenas uma pequena parcela do enorme orçamento nacional” (1997, p.46).

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eterna dos gestores públicos” (1998, p.295). Harold Seidman consegue ser ainda mais

provocativo ao sugerir que:“a busca de coordenação é, em muitos aspectos, o equivalente do século XX daprocura da Pedra Filosofal na Idade Média. Se conseguíssemos a fórmula corretapara a coordenação, poderíamos reconciliar o irreconciliável, harmonizarinteresses em competição e completamente divergentes, superar irracionalidadesnas nossas estruturas governamentais e fazer complicadas opções relativas àspolíticas públicas das quais ninguém iria discordar” (1970, apud Jennings Jr. &Krane, 1994, p.341).

Fica claro assim, por essa via, que a preocupação com a coordenação e com a

cooperação interorganizacional não pode ser considerada um fenômeno recente. Diga-se, de

passagem, que o tratamento "novidadeiro" muitas vezes dispensado às redes e às parcerias

freqüentemente obscurece o fato que o elemento novo parece ser, essencialmente, a

intensidade de tais articulações e a variedade dos atores envolvidos. Como sugerido por

Guy Peters, desde o tempo em que as estruturas governamentais começaram a se

diferenciar, com a criação de uma variedade de ministérios e departamentos, muitos têm

afirmado que uma agência desconhece o trabalho realizado pelas outras e que os seus

programas são contraditórios, redundantes ou ambos (1998, p.295). Como é bem sabido,

processos de distinta natureza são responsáveis pela fragmentação do planejamento e da

gestão no setor público. Dentre eles, talvez sejam os seguintes aqueles que mais

diretamente têm obstaculizado a capacidade de coordenação das agências estatais:

• O fato de os governos terem progressivamente ampliado o leque de suas atribuições,

a despeito das pressões em sentido contrário, as quais se avolumaram e se

intensificaram nas duas últimas décadas. Essa ampliação faz com que aumentem as

probabilidades de qualquer política ou programa gerar impactos significativos sobre

outras políticas e/ou programas;

• Os processos de descentralização, devolução e/ou privatização, aos quais deve-se

somar a criação de múltiplas agências (reguladoras ou prestadoras de serviços), às

quais é atribuído um poder de atuação mais ou menos autônomo, o que tem

ampliado a fragmentação e, simultaneamente, tornado imperativas a coordenação e

a cooperação (e não apenas entre as agências governamentais);

• Se as atribuições estatais foram enormemente ampliadas nas últimas décadas,

parece igualmente evidente o aumento da complexidade e do caráter técnico de

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parte significativa dos assuntos e questões com as quais o Estado se vê compelido a

lidar, o que também teria reforçado a tendência à fragmentação. Por outro lado, cada

vez um número maior de desafios e problemas colocados ao Estado são

“transversais” ou “cross cutting”, não se encaixando com perfeição nos

organogramas da máquina pública. Isso vale tanto para questões mais "recentes",

como meio ambiente, direitos humanos e novas tecnologias, quanto no que

concerne as políticas sociais, as quais, sob pressão das múltiplas agendas

internacionais e de novas demandas internas, passam a ter que contemplar “novos”

grupos de beneficiários, como os migrantes, as mulheres e as minorias, os quais

demandam serviços de várias agências públicas (Peters, 1998, p.295-6);

• Como se sabe, as diretrizes de reforma do Estado têm muitas vezes se espelhado no

funcionamento das organizações do mercado e/ou buscado a ampliação da

participação dos cidadãos ou “clientes”. “A participação dos clientes é usada como

uma maneira de se garantir que o governo ‘atenda o freguês’, ao passo que

maximizar o envolvimento dos servidores públicos nas suas próprias organizações

incrementa a qualidade dos serviços produzidos. Esse foco nos clientes e nos

servidores no interior de uma única organização torna menos provável a

coordenação” (Peters, 1998, p.296).

No que diz respeito aos fatores que têm gerado a pressão para o rompimento do padrão

inercial de planejamento e gestão, via de regra fragmentado, alguns deles já mencionados

acima, parece possível sermos igualmente sintéticos, elencando os seguintes:

• Os recorrentes problemas fiscais com os quais têm se deparado os governos, os

quais, somados às crescentes demandas por eficiência, transparência e

accountability, fazem com que a coordenação/cooperação seja percebida como

uma forma aparentemente simples de se eliminar a redundância e a

inconsistência dos programas governamentais;

• Ainda que a visão prevalecente destaque a tendência das organizações em geral

e das burocracias públicas muito particularmente de preservar ou de buscar a

ampliação de suas próprias prerrogativas, de sua autonomia e de seus

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orçamentos, alguns outros fatores parecem operar no sentido do fomento à

cooperação e à coordenação, tais como: a definição do papel do

técnico/profissional e a ênfase dada aos beneficiários/clientes, os quais sentiriam

em primeiro lugar o impacto positivo de tal mudança no comportamento das

organizações e de seus profissionais (Peters, 1998, p.305);

• Cabe também ressaltarmos, por fim, o reconhecimento de que a complexificação

dos processos sociais tornou obsoletas e ultrapassadas determinadas concepções

que informavam o planejamento governamental. Um bom exemplo talvez seja o

consenso cada vez mais perceptível acerca da compreensão da pobreza como um

fenômeno multidimensional, a demandar, para sua superação, uma gama variada

de ações, por parte do Estado e da própria sociedade.

Contudo, são diversificadas as dificuldades e barreiras à coordenação/cooperação

entre as agências públicas. Jennings Jr. & Krane (1994) sugerem a possibilidade de se

categorizar tais barreiras da seguinte maneira: haveria empecilhos organizacionais,

legais/técnicos e políticos. As barreiras de ordem organizacional estariam relacionadas às

distintas missões, orientações profissionais, estruturas e processos das agências públicas.

As várias missões e orientações profissionais incidem sobre a definição dos objetivos e das

prioridades das organizações, podendo levar a divergências acerca da maneira mais

adequada de se atingir os fins propostos, o que, obviamente, pode dificultar a ação

coordenada entre diferentes agências. Há também a possibilidade de que as organizações

possam ignorar ou desconfiar do modo de operação e das finalidades das outras agências.

No que diz respeito às estruturas e aos processos, obstáculos à cooperação podem ser

derivados da limitação das conexões interorganizacionais que é cristalizada por distintas

estruturas e processos e pela eventual necessidade de que a aprovação de vários níveis da

organização seja requerida e/ou pela existência de uma diversidade de “pontos de veto”.

Ademais, a abrangência geográfica da provisão de serviços pode variar, podendo também

haver incompatibilidade nos procedimentos e nos sistemas de incentivo.

No que toca as barreiras legais e técnicas à coordenação, elas podem se originar da

própria circunscrição, definida pela legislação pertinente, para a atuação da agência, assim

como de regulamentos internos emanados dos escalões mais elevados das organizações e da

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capacidade tecnológica e da experiência acumulada das agências. Destacam-se aqui as

restrições legais à utilização dos recursos financeiros e técnicos das distintas organizações e

a possibilidade de conflito entre as regulamentações dos vários níveis de governo.

Também como destacado por Jennings Jr. & Krane (1994), as barreiras políticas à

coordenação/cooperação podem estar lastreadas tanto no ambiente político externo aos

programas quanto na “política” interna da própria burocracia. No que diz respeito às

disputas intraburocráticas e à política da burocracia, o conhecido termo “proteção do

território” (turf protection) parece conseguir sintetizar com precisão um comportamento já

amplamente estudado. A idéia expressa é que cada organização tem a sua área de atuação

definida, hegemonia essa que ela vai lutar para preservar (ou ampliar), procurando excluir

competidores potenciais, mesmo (ou principalmente) sendo eles outras organizações

governamentais. Dito de outra forma, para que esta “hegemonia” seja preservada sobre o

território, sobre uma clientela, sobre uma questão ou problema ou sobre uma dada forma de

atuação, o comportamento esperado é a competição, não a cooperação.

Diga-se aqui, de passagem, que a resiliência institucional, entendida como o

comportamento reativo às pressões por mudança (no caso por maior

cooperação/coordenação/intersetorialidade), ou, dito de outra maneira, como resistência às

inovações na gestão, é um fenômeno derivado de combinações específicas de determinadas

barreiras organizacionais, legais/técnicas e aquelas relativas à “política interna” das

organizações envolvidas.

As barreiras políticas externas, por sua vez, são também de várias ordens: podem ser

oriundas de grupos de pressão que desejam proteger os seus interesses na produção da

política pública; podem estar relacionadas a estruturas e processos do legislativo que têm

incidência sobre a fragmentação das agências e das políticas ou programas, sendo também

possível que o legislativo faça valer o seu interesse em privilegiar programas de maior

visibilidade ou do interesse de alguns de seus atores mais relevantes. Ademais, é crucial o

apoio das lideranças do executivo às diretrizes de coordenação.

Tendo sido inventariadas, ainda que de maneira tão sucinta, as dificuldades e

barreiras à cooperação/coordenação inter-organizacional, cabe destacar que, dada a

expansão e complexificação das próprias agências governamentais, parte significativa dos

empecilhos arrolados acima aplica-se também às dificuldades de se produzir ação

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concertada no âmbito mais restrito de agências singulares. Dito de outra forma, tais fatores

podem incidir também sobre a possibilidade de coordenação intra-organizacional.

Por fim, devemos recordar que, dado o número e a diversidade dessas barreiras e

empecilhos, não deveriam nos surpreender a recorrência, a intensidade e a relativa

antiguidade do clamor pela cooperação, coordenação ou intersetorialidade. O que parece

sim surpreendente é a dificuldade, perceptível em parte não desprezível da bibliografia

brasileira recente, de superação da perspectiva usual, acentuadamente normativa, em

direção a um tratamento analítico do problema mais consistente e informado. Essa situação

é, certamente, resultado também do número ainda pequeno de investigações acadêmicas e

de avaliações das políticas e programas sociais implementados no país. Uma tal inflexão,

no sentido da valorização da pesquisa empírica, parece-nos necessária até para que as

prescrições tenham efeito além da retórica.

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