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Trabalho diagramado

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“Para ser real basta que as pessoas acreditem”

Para a memória de Maria de Valdemar.

SUMARIOI O ConfessionarioII O capitulo perdidoIII A botijaIV Uma noite pra ficar na historiaV Os penitentes

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VI O livro dos segredosVII A bruxa boaVIII A vila dos milagresIX Cristaos novosX A saga de Badalo e MedeirinhosXI Os lacos dos coroneisXII O cemiterio dos anoesXIII O buraco sem fundoXIV O ultimo dos penitentesXV O missionarioXVI MisantropiaXVII Teletransporte inusitadoXVIII O conto de AntonioXIX Confronto finalXX Agente duplo

Prólogo

- E então, Alexandrina?Pelas contas de Alexandrina, essa

podia ser a centésima quinquagésima vez que ouvia aquela pergunta. Entra ano e sai ano, invernada pós invernada, seca pós seca, e ela continua sendo o alicerce para aquilo tudo.

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Agora ela e Jerônimo estão em viagem, ao lado de seus nove filhos oficiais e dos três de criação. Os Cajé junto com mais duas famílias numerosas haviam descido o Garrancho em busca do norte, do Rio Grande do Norte.

Maria Inês estava aflita com o estado de Leôncio, seu esposo. Tal qual Alexandrina, ela era alguns anos mais nova que o marido.

Parecia que havia sido um dia desses que Maria Inês, ao conhecer Alexandrina, perguntou se os dez meninos eram todos dela e ela explicou que casara aos quinze anos, ainda quando vivia no Pajeú das Flores. Viúva ainda nova, tocou para frente com os três rebentos do casamento: Maria, Vicente e Francisco, que do pai nem o sobrenome levavam. Ao conhecer Jerônimo, um viúvo pai de Francisca e Jerônimo, encontrou companheirismo, paz e o convite para deixar o Pajeú e ir se juntar a ele no Cajé, no topo da Serra do Garrancho, a 55 léguas dali. E ali fizeram mais cinco filhos: Zé, João, Cícero, João e Valentina. De quando nascera até a data daquela viagem dura com Maria Inês, Alexandrina contava 50 anos.

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Cinco décadas em que a herança sinistra do povo do Pajeú ora pesava ora aliviava seus ombros.

- Não tem jeito, comadre. De hoje ele não passa.

Adivinhar a morte de Leôncio poderia ter sido igual a adivinhar a morte de seu primeiro marido, a de sua mãe, a de Jerônimo Segundo. Mas, não. Não que doesse mais, mas, parecia adivinhar outra coisa pior, depois, e isso era desconfortante.

Há muito que ela não se perguntava “porquê logo eu?” e havia passado a se indagar “porquê não eu?”. Amanhã seria dia de serviço. Limpar e perfumar (e vestir) morto, encomendar a alma e cantar... E se Alexandrina não estivesse enganada, ela viria naquela noite.

Seu cavalo e seu “boa noite” chegaram como sempre. Uma voz sem gênero definido, apesar de ser emitida por uma jovem que por altura devia ter uns quinze anos. De cabelos escuros e rosto eternamente encoberto por um capuz.

- Boa Noite – respondeu Alexandrina.

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- E então – disse a Morte, sentando-se – como foi?

- Morte de retirante, apesar de comum, nunca é boa. Temos que preparar tudo nessas barracas improvisadas e enterrar o de cujus no meio do tempo, sem padre nem nada, só com a vela.

- É a vida – respondeu a Morte, em seu sussurro que imitava o som mais misterioso da natureza: o silêncio.

- Alexandrina – continuou ela – o lugar para onde você está se mudando. Como ele se chama mesmo?

- Não sei chamar, mas sei dizer mais ou menos como é. Ou pelo menos lhe fazer o retrato que Jerônimo me fez. Fica até perto daqui. Passando uma serra que fica logo após Poço Dantas, tem-se um paraíso, como falam. Nasceu um rio na dita serra e que passa por entre ela e outra. Diz-se que lá tudo dá e a terra está nos saindo quase de graça. São meia légua do rio até um serrote e meia légua do rio até outro, isso de fundos. Por 90 contos de réis.

- O proprietário que está vendendo a terra: tem nome?

- Cipriano. É ex- arrendado do dono do Vale inteiro, o Capitão

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Carvalho. Um velho já nos seus 90 anos que deixou para si o melhor trecho de plantio daquela região e repartiu os demais entre agregados e parentes.

- Você disse Carvalho? – retrucou a Morte.

- Sim – confirmou sonoramente Alexandrina, percebendo algo estranho.

- Vejo que chegou a hora, finalmente.

- De quê, minha senhora?- De lhe dar a permissão para

abrir o baú da sua mãe.Candeias havia sido a mestra de

Alexandrina até esta completar doze anos, idade em que sua filha atingiu o ápice do poder jamais observado dentro da linhagem do Pajeú. Ela havia sido daquelas que seguiam à risca os preceitos de seu grupo: cabelo batendo no mocotó, discrição completa e extremo gosto pela tradição passada pela boca e longe do lápis e da tinta. Antes de entregar a filha ao mundo por meio de um noivado arranjado, Candeias deixara de herança a sua única filha um baú feito de madeira de pau d’arco, com uma inscrição “V” em ouro. V de Valentina, sua mãe e avó de Alexandrina. Foi quando a Morte

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achou por bem selar o tesouro debaixo de sete chaves, mantendo-o proibido para Alexandrina até aquele momento.

Ao localizar o baú no meio das coisas da tenda, a Morte o abriu e de dentro dele tirou um enorme e empoeirado livro de capa preta. E o jogou na mesa.

- Páginas e páginas de magia escritas à mão.

- Então isso é um grimório? – Admirou-se Alexandrina.

- Não um grimório qualquer, mas, o grimório do poder. E esse foi escrito pelo próprio autor.

- O legendário Cipriano?- Exatamente.- Minha família nunca gostou ou

fez uso de grimórios. Porque minha mãe me deixaria justamente esse?

- Como já falei, não é um grimório qualquer. Reúne informações de praticamente a magia de todo o mundo. Talvez só não ensine como tirar gente de dentro da terra. Quiçá até mesmo uma coisa ou outra de vocês. Coisinha besta como localização.

- Mas o que faz aqui, na Paraíba, um livro escrito pelo pior mago de todos os tempos?

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- Lamento não poder entender tudo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: quem portar o livro portará perigo. Você sabe por que esse grimório é tão famoso.

- Sei – confirmou, solene – Mas, porque agora? Ou melhor, porque só agora?

- A terra que você doravante ocupará é bastante estranha. O povo lá sabe mais do que apenas adivinhar a chuva por meio do pio dos pássaros e do acasalamento dos besouros. Eles fazem mais do que se guiar pelo Lunário Perpétuo. E ouvem além do que os tropeiros trazem.

- Me explique melhor...- Das duas serras, a maior... A de

lá, sem ser a de cá. Lá paira uma maldição secular. O lugar é conhecido por Serra das Almas. São problemas que vem procurando ser resolvidos a muito tempo. O vale esconde muitas coisas, minha cara. Mas se você vai, tem de levar o livro com você. E resistir a tentação de tê-lo plenamente. Ele é o sonho de qualquer bruxa.

- Nem todas as bruxas. E nem só bruxas.

- Você tem contato com as bruxas de lá?

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- Praticamente nenhum. Apenas um nome, que parece ser muito comum na família delas. Não sei se existem outras.

- Lá existem muitas coisas, não tenha dúvidas. Dentro de poucos dias entraremos em 1910. Depois desse ano, prepare-se, porque sua vida nunca mais será a mesma.

Capitulo I O ConfessionarioHá 75 anos como enviado para

uma missão na Serra. 75 anos de batizados, crismas, casamentos e extrema-unções. Pedro havia sido um daqueles jovens ordenados na Itália e mandados ao interior para sujeitar os sertões sem lei à justiça e a vista de Deus. Porque até a chegada dele e contemporâneos seus às regiões norte do país, aqueles brasileiros do reduto seco e inclemente do sertão viviam em meio ao paganismo. Pagãos disfarçados de católicos. Ou vice-e-versa. O fato era que a Igreja não gostava nem um pouco de caiporas guardando as matas, homens se transformando em animais e mulheres curando crianças com

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folhas de pinhão-roxo. Era preciso extinguir as tradições de índios, as misteriosas danças dos escravos e as práticas pagãs da Europa bárbara.

Pedro, justamente por tudo isso, escondia coisas demais sob o teto da Igreja de Luís Gomes. Eram 75 anos de descobertas e segredos do imaginário do povo do sertão. Fazia 75 anos que ele tinha sido enviado na missão de convencer o povo de que lobisomens eram resultado do estrago feito pelo sol quente nos cérebros dos lavradores e donas de casa, e que almas não podiam aparecer a seres humanos. 75 anos que deveriam ter sido dedicados a ensinar que tudo no mundo se divide em duas categorias: as bênçãos de Deus e os ardis do demônio. Mas, como trabalhar assim com um povo que conversa com animais? Lê o futuro nas mãos? E que tem como segunda bíblia um livro em escrito em 1492 e que desde então vem prevendo – e nunca errou – o ritmo das secas e das invernadas em ambos os hemisférios?

Como, aos 90 anos de idade, lutar com Alzira? Uma negra fofoqueira que, uma vez solteirona, vivia com ele, fazendo de-comer e de beber e arrumando a casa paroquial para o

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pároco. Uma negra criada no mais rigidamente mundo sobrenatural: como impedi-la de entender as conversas que tinha com as visitas importantes e secretas se não as levando para o confessionário?

Sempre chegava atrasada, a empregada da Igreja. Quantas vezes ela não havia limpado a sacristia e feito o zelo da capela com as horas passando da meia noite?

Alzira estava limpando a Igreja atrasada, pra missa do outro dia quando percebeu que alguém tinha chegado para conversar em confissão com o padre. “Á meia noite?” Pensou a mulher olhando o relógio que marca quinze minutos pras doze, enquanto ouvia a conversa exaltada.

- Padre, dai-me a benção porque pequei.

- O que te aflige meu filho? - O senhor sabe... O fardo é

pesado. A missão é mais árdua do que jamais pensei.

- Você a torna mais pesada, e sabe disso. Fica se penitenciando sem o menor motivo. Aliás, só aceitou a missão por teimosia. Eu deveria ter contado tudo a Lycurgo.

- Não me entregaria nas mãos deles padre, eu sei disso. E quanto à

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missão, é algo que há muito já tinha de ser concluído. E nessa caminhada eu preciso disso pra me fortalecer.

- Eu sei mais do que ninguém que não fortalece coisa nenhuma. Ouça sua voz cansada e veja essas marcas. Não lhe ordeno que pare agora porque tenho esperança que tu mesmo caia em si. O que você tem para confessar afinal?

- Preciso me aliviar padre. Existe um ódio em mim que cresce cada dia. Só de pensar na traição...

- Não precisa pensar no livro de São Cipriano como a maior ou a única traição do mundo. Nunca lhe disse que concordo ou que é cem por cento correto o que nós fazemos, ou melhor, fazíamos.

- Eu ainda faço... - Apesar... -... do senhor me recriminar. - Escute filho, não deixe que uma

história tão antiga interfira assim no seu presente. Você tem tantas outras coisas a fazer, tantas obrigações e oportunidades.

- O que o senhor acha de procurar um ajudante para mim?

- Discordo plenamente. Envolver mais alguém, alguém de fora nessa história terrível... É algo impensável.

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- Mas, padre, eu lembro ao senhor que foi o senhor mesmo quem disse que talvez fosse preciso alguém alheio a tudo isso para... para destruí-lo.

- Sim, foi algo assim que Araújo tentou falar antes da sua morte, mas Deus o levou antes. Mas você sabe filho, mais do que ninguém, o quanto é sangrenta a trajetória dessa história macabra, o quanto é medonha e terrível para os seres humanos, o quanto deve ser assustador para as pessoas descobrir que sociedades secretas rastejam no submundo de seus olhos, bem debaixo do nariz delas, e isso há quase 200 anos.

- Isso muita gente sabe... Não sabem quem ou o que é ao certo.

- O que faz toda a diferença. Olhe filho, é melhor deixar de lado a pompa e a circunstância dos sinos, das roupas, dos hinos e dos chicotes. Chega por enquanto, por favor. Se isso lhe atrasar em sua missão, pelo menos descanse por agora e se concentre em apagar os rastros para que ninguém descubra sem querer ou mesmo querendo, o segredo que envolve Riacho de Santana e Luiz Gomes.

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- Certo. Vou pensar. Agora é tarde e eu ainda vou descer a serra. E pelo que eu estou vendo, temos uma intrometida que agora sabe demais.

- Vou ter que dar um jeito nisso. Mas antes, que o Senhor Jesus Cristo o absolva de seus pecados.

- Amém.No outro dia, cinco de janeiro de

2012, a empregada da igreja de Luiz Gomes amanheceu demitida, arrumou as coisas e foi-se embora para sua cidade natal. Alguns comentavam que ela deveria ter ganhado na loteria, os mais próximos juravam que ela havia descido rica a serra de Luiz Gomes.

Cinco de janeiro de 2012 é o quinto dia do ano. Qualquer um poderia estar acordando tarde no primeiro sábado do ano, principalmente no Brasil. Mas, vizinho ao acontecimento de Alzira, e na mesma manhã, um jovem estava acordando muito cedo e preocupado. E o que tem de tão mal num jovem de 17 anos, na conhecida e “batida” efervescência da idade, acordar cedo e preocupado numa manhã, ainda que de sábado e ainda que o primeiro do ano? Afinal, ele era de Riacho de Santana e a cena se

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passou justamente nesta cidade, o lugar que mais obedece, no mundo, ao estereótipo de normal. Pelo menos assim parecia a maior parte da população de mesma idade do garoto em questão. Afinal, nem mesmo estudavam lá, em sua maioria. De muito extraordinário, para Riacho de Santana, lá só havia um homem conhecido por João das Cachorras, apelido que tal qual sua rejeição perante a população provinha de uma matilha que insistia em acompanhar o andarilho, que nunca se arranchou em paradeiro certo, desde sua chegada ao local, há algumas décadas. Talvez possamos incluir na lista uma velha história sobre um buraco sem fundo e um trecho que as pessoas evitam passar com rumores de gritos e almas. Havia também, desde um bom tempo, visitas de bandos de ciganos à cidade. Dezenas e dezenas de ciganos costumavam se instalar na casa de um homem, avô do garoto em questão, chamado Tomaz, Fernandes de seu pai Timóteo Fernandes de Bessa, Maia de sua mãe Cristina de Jesus Maia. Ricos fazendeiros daquele vale, Timóteo e Cristina haviam galgado fortuna nos anos em que Timóteo fora tropeiro,

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oportunidade em que penou do Cariri de Fogo até o sertão da Paraíba, e de berço cultuara o apreço pelos bandos de ciganos, passando-o para o filho mais velho. Tomaz descansava sentado na cadeira de cipó, que durante anos fora seu descanso predileto, enquanto a ciganada cantava, dançava, tocava, lia as mãos dos transeuntes daquela rua, comia e bebia de graça à custa de sua esposa Maria Victoria, filha de um professor daquele mesmo vale. Mas estavam se tornando cada vez menos frequentes e bem menores os bandos de ciganos.

Enfim, de um modo geral a cidade só experimenta dias diferentes em dois momentos: um anual, que é a festa do padroeiro São João Batista, e outro que é de quatro em quatro anos, época das fervorosas eleições. Mas para esse jovem em questão a vida não estava exatamente normal.

Não se sentia de férias. Isso porque estudava numa escola diferente das demais. Antigamente era um Instituto criado e comandado por padres e freiras, e dedicado a mais alta elite da região em que ficava Riacho de Santana. A sede da escola era em Pau dos Ferros, cidade

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de médio porte que fica a uns trinta minutos de Riacho de Santana. Os anos de excelência do Instituto da Imaculada Conceição serviram de base para o governo estatizar o colégio quando criou a Rede do Instituto de Formação Tecnológica para Profissionais em Potencial, conhecido popularmente como Instituto Gênios. Por meio de uma seleção feita em prova, jovens de todo o país ganhavam vagas nesses colégios, a maioria antigas escolas de elite que agora emprestavam sua imagem para um novo modelo de educação pública. E, não para a surpresa de muita gente, Castor Fernandes havia ingressado no Gênios, a quase três anos.

E desde então, todo dia, se acorda às cinco da manhã, pega um carro até Pau dos Ferros e retorna para casa depois do almoço. E estuda para ser um completo profissional e para descobrir habilidades em todas as áreas. Entretanto, no seu segundo ano ocorreu uma greve geral em todo o país, pois os professores queriam um aumento salarial. Ao fim do movimento, as escolas foram obrigadas a pagar cada um dos setenta e dois dias “perdidos”,

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resultando em aulas ainda em janeiro para todos. E o que deixava Castor apreensivo ao acordar naquele sábado, dia 05, era porque de súbito se lembrara de que era um dos últimos do recesso dado em ocasião das festas de fim de ano.

Levantando da cama, agora examinava frente ao espelho um pequeno presente, lembrança dos seus avós Tomaz e Maria. Era um pequeno cordão com uma pombinha prateada e sumamente antigo, mas que ele sempre trazia como herança daqueles a quem tanto gostava e que já fazia um tempo que tinham rumado a vida eterna, como o próprio Castor costumava dizer. O prateado claro contrastava com o moreno do corpo dele. Alto e meio magro, Castor tinha uma expressão cabocla, rígida e antipática fomentada pelos olhos castanhos e cabelos quase encaracolados. Um problema de respiração causado por um problema na coluna o impedira de realizar qualquer esporte que não a esgrima, paixão que compartilhava com seu amigo Arturo.

- Filho, já acordou? Tá com fome?Lucia interrompeu os devaneios

do filho, já o convidando para tomar café da manhã.

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- Tô sim, chego já aí na cozinha, pera um pouco.

Enquanto se vestia e escovava os dentes, lembrava-se de como os cafés da manhã haviam perdido o gosto, isto já ia fazer um ano. Na verdade, desde que o avô se fora, já há três anos, a vida tinha mudado radicalmente.

Começara a estudar no Instituto Gênios, na vizinha cidade de Pau dos Ferros que ficava apenas a meia hora de Riacho de Santana, conhecido novos amigos (em especial Verbena, uma moça pequena no tamanho, enorme na teimosia, de cabelos castanhos e olhos azuis, Aprígio que era extremamente parecido com Castor, exceto pelas expressões mais simpáticas, e Arturo, alto e forte, de cabelos escuros e lisos) e outros clichês de quando se muda de escola. A doença da avó Maria, a qual remediou e acompanhou de perto, a relação conturbada com Marina – que ele estava adiando narrar de novo para si mesmo – e a quase repetência do primeiro ano, tudo tinha um peso estranho nas costas.

Em tese, Castor convivia com as mentes mais brilhantes da região,

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que incluía desde antes da Serra de Portalegre até quem vivia no topo da Serra de Luís Gomes. Mas a vida no novo colégio havia mostrado a ele coisas além do estudo e inteligências além da inteligência técnica e moldada pelos professores arrogantes do Instituto.

E por isso, era o lugar que Castor mais odiava no mundo todo. Antes, levava uma vida bem legal e normal. Em Riacho de Santana todos os jovens de determinada faixa etária são amigos, o que possibilitou a Castor até seus 15 anos uma adolescência feliz (serestas até tarde na praça, nas calçadas, em todo lugar). Mas no Instituto, os professores, os pedagogos, os diretores eram todos arrogantes. Os alunos eram acostumados a serem ignorados e a se sentirem como pássaros engaiolados para serem adestrados. A função final daquilo não se sabia ao certo.

Sonhava para esse ano terminar de pagar matemática e se livrar da bolsa de História, com o professor mais chato do colégio – tinha que estudar sobre um tema “O Fogo de Pau dos Ferros na primeira república” e fazer um artigo científico. Assim, ficaria livre para

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conseguir ser tutor de alguma disciplina que chamasse sua atenção. Lucia e Afonso compartilhavam desses mesmos sonhos, e estava na cara deles, quando Castor entrou na cozinha e sua mãe mostrava um álbum de fotos suas quando era pequeno para uma mulher. Mas não era qualquer mulher. Apesar de madura era sem favor nenhum a mulher mais bonita que Castor tinha visto. Morena, cabelos ondulados, lábios e busto avantajados, usava um justo vestido vermelho...

- Ah Castor – disse Lucia finalmente, parecendo perceber o filho babando. – Esta aqui é Marta, nossa nova doméstica.

- Oi Castor – disse a mulher – sua mãe estava aqui me contando sobre sua infância...

-Estava quase contando a parte do seu medo mortal de cachorros...

- Mãe! – advertiu Castor. Afinal, sua mãe não era aquele tipo de mãe carinhosa e babona, muito pelo contrário. Não contava suas histórias de infância nem para ele mesmo, porque contaria para uma desconhecida.

- A senhora... - Senhorita – corrigiu Marta.

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- A senhorita. A senhorita é daonde?

- Serra das Almas. Fica ali em Água Nova. Me mudei recentemente pra cá.

- Castor veja aqui o que ela preparou de café da manhã!

A mesa estava repleta de tapiocas recheadas, bolos de milho e de leite virados no caco, como se diz em Riacho de Santana, suco de manga, suco de graviola, café, leite, brownies com castanha e mal pode acreditar no vidrinho com conteúdo amarelo que parecia brilhar na mesa.

- Mas isso é... - Manteiga da terra. Bati a nata

hoje de manhã. - Nossa! - Bem dona Lucia, eu vou indo lá

onde a senhora me mandou comprar uma galinha para o almoço. Até mais Castor.

- Até.A mulher deixou a cozinha com

um rebolado espetacular, e Castor não pode deixar de notar que seu pai também estava com o olhar preso a Marta, antes de se sentar com sua família.

- Últimas semanas de férias hein? Daqui a pouco acaba o descanso e a

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moleza. – falou Lucia, com a vozinha fina e enjoada.

- Como se um mês pudesse ser chamado de férias mãe! Essa greve reduziu o descanso para esses vinte e poucos dias, não chego a chamar de moleza.

- Bem, eu já achei tempo demais para quem quer estudar para passar em Matemática e fazer Medicina no quarto ano. – Afonso era simples e direto, Castor anotou isso para si mesmo.

Lembrou por um instante seu sonho de Medicina, a profissão que almejava desde a tenra idade, para depois se tornar um perito em resolução de crimes em equipes policiais.

- Olha, seu pai e eu vamos sair. Ele vai fazer a feira na Casa da Fruta e eu tenho hora daqui a pouco no salão. Vai ficar só em casa?

Castor puxou pela memória e pensou no seu único amigo que decididamente estava acordado ás nove da manhã em pleno inicio de janeiro: Antonio.

- Acho que vou lá na casa de Antonio, faz tempo que a gente não se vê.

- Certo. E você, filha, o que vai fazer?

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- Acho que vou lá na casa de Elisa, fazer as unhas.

- Certo. Mas quero você aqui na hora do almoço mocinha, não estou lhe criando para viver direto na casa dos outros. Tchau vocês dois!

- Tchau. – disseram os dois.Lucia e Afonso saíram. Ela cheia

de sacolas com algumas frutas da época, as quais ela iria distribuir no caminho do salão nas casas dos parentes: Tia Tina, mãe de seis filhos; Tia Neta, mãe do seu primo escritor; Tio Chico, dono do bar; e vô Bento mais vó Iolanda, os pais de seu pai.

Andromeda era a irmã de treze anos de Castor. Lucia era apaixonada por estrelas e colocou os nomes de seus dois filhos como as duas constelações favoritas dela. Andromeda, princesa acorrentada por Poseidon como punição para sua mãe, Cassiopea, e Castor, a estrela da constelação de gêmeos. O gosto estranho da mãe rendeu a seus filhos anos de bullyng na escola até que todos se acostumassem com os nomes incomuns. E no caso de Castor, pior ainda, pois seus dentes anormalmente grandes até os onze de idade faziam com que seus colegas o chamassem de Castor

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(com o a fechado) em vez de Castor (com o a aberto).

- Você tá com uma cara péssima Castor – disse Andromeda.

- Pesadelos. Dormindo e acordado.

- Me conte como foi.Castor e Andromeda sempre

contavam os sonhos e os pesadelos que tinham um ao outro, no café da manhã. Com qual intuito, não sabiam. Mas gostavam desses momentos.

- O mesmo de sempre. Acordei suado, gelado, cansado como se tivesse participado de uma corrida olímpica. No sonho estava desbravando uma mata fechada e perigosa, acompanhado de um burro com bornais e claramente estava subindo uma serra, terrivelmente familiar, mas que ainda não consegui desvendar qual, mesmo o sonho tendo se repetido várias vezes ao longo do início de 2012. Era como se eu fosse um tropeiro, mas ao mesmo tempo sei que não era, pois estava de noite. E era como se o burrinho me guiasse. Eu até o batizei de Xisto. Mas desta vez o sonho se prolongou mais. Vi claramente que Xisto relinchava alto e apontava – não sabia como um burro podia apontar,

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mas ele apontava – para um homem que por sua vez levava um revólver, e que ao chegar numa casa no cume da serra, jogava a arma num local onde estavam muitíssimas outras, bem como uma espécie de bainha de couro enorme.

Por não acreditar em vidas passadas, Castor não tinha dúvida que os sonhos jamais poderiam ser frutos de regressões ou coisas do tipo. Mas se tinha uma certeza era que o local, além de familiar era muito, muito antigo.

- Fique bem – desejou Andromeda, saindo e fechando a porta.

Castor olhou para a manteiga da terra derretendo no seu resto de pão. Com uma última mordida ele se levantou e saiu, fechando a porta.

Ventava e as flores e as folhas das acácias caíam pelo chão, não tão paisagísticas como as do pé de flamboyant que tem no quintal da casa da sua avó. Da sua casa se avistava um serrote, coroado por uma frondosa e antiga aroeira. Perdido no meio de sonhos e de lembranças, mas encontrado firmemente debaixo do sol quente, entre as ruas e as acácias, Castor se dirigiu a passos lentos até a casa de

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seu amigo, apreciando o vento e vislumbrando as serras que formavam um anel ao redor da sua pequena cidade.

Capitulo II O capitulo perdido

A urbe santanense era composta por nove ruas verticais e algumas horizontais, além de dois bairros afastados, o Alto dos Conrados e o Junco. A casa de Castor ficava no ponto de divisa do centro e o Alto dos Conrados. Era um pequeno trecho rural onde tinham apenas três casas: a de seu vizinho Jales, a sua e antiga casa onde moravam seus

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avós e agora morava seu tio Chico. O quintal das duas casas que era um só continha um pomar e um magnífico pé de flamboyant. E mais na frente, as antigas propriedades do avô de Castor, agora abandonadas, delimitadas por três serrotes pequenos e por um grande, chamado Caroá.

Naquela manhã Castor estava extremamente observador, e teve a típica sensação de estar sendo observado. Entretanto a rua estava vazia, e a única opção era estar sendo “seguido” por uma árvore no cume do serrote, o que era decididamente impossível. Mas por mais que Castor tentasse, ele não conseguia parar de olhar. Ela era visível, com seu tronco claro e folhas quase brancas de todos os locais por onde andava até chegar à casa de Antonio.

Tanto ficou entretido que deu um encontrão num cara bem na rua da pracinha, e ambos quase caíram.

Quando Castor aprumou a vista para avaliar o cidadão, percebeu que o cara era bem estranho. Usava roupas de frio, quando, apesar de ventar, fazia muito calor. E usava uma boina engraçada e óculos enormes.

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- Oh me desculpe – adiantou-se o homem, com uma voz igualmente engraçada.

- Me desculpe o senhor... Quer dizer, acho que eu não te conheço.

- Ah, me mudei faz pouco tempo. Me chamo Jerônimo. Sou o novo diretor do Centro Espírita. Você conhece Aprígio?

- Conheço. Estuda comigo no Gênios.

- Um rapaz bem inteligente. Quando ele vier para cá, para a casa da avó dele, venha me fazer uma visita para um debate, certo?

- Anh, certo – respondeu Castor, pensando “vai sonhando”. – Até mais senhor Jerônimo.

- Até Castor! - Mas como o senhor sabe meu...Tarde demais. O homem já ia

longe, com seu andar destrambelhado.

Lentamente Castor foi chegando á casa de Antonio, que estava na área com um grande livro preto e seu notebook. Conversando com ele estava um senhor de meia idade, quase careca, mas de aparência muito jovial.

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- E aí Antonio, beleza? - Cumprimentou Castor, abrindo e fechando rapidamente o portão.

- Beleza rapaz! Não sei se você conhece o Doutor Henrique?

Castor e o homem apertaram as mãos.

- Apenas de ouvir falar. O senhor é advogado se estou certo? E escritor?

- Exatamente meu caro. Terminei e publiquei recentemente uma obra com crônicas e contos baseados em fatos reais daqui da nossa pequena Riacho de Santana. Histórias famosas, sabe? Histórias que todos conheciam e que não quis deixar o tempo perder.

- Traições, patotas, anedotas, casos de assombração, lobisomens encurralados... – Explicou Antonio em tom de riso.

- Muito legal Henrique. O meu primo Caio escreveu um livro mais histórico com fatos daqui da cidade... Acredito que ele tenha sido o primeiro a registrar Joaquim Antonio de Carvalho como o habitante mais antigo destas terras. Você conhece o livro dele?

- Ah, certamente. É uma obra formidável. E por um acaso eu

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estava mostrando a Antônio uma foto igualmente formidável.

Então Henrique puxou do bolso uma foto muito antiga onde se distinguiam algumas pessoas que aparentavam, pelos trajes, serem do início do século XX.

- Aqui estão o Padre Militão, meu avô o Coronel Fontes, o velho Ludgero e dona Alexandrina. Os pioneiros que construíram a capela de São João Batista.

Enquanto Castor observava a foto, Henrique ia descrevendo-a.

- Meu avô Fontes era religiosíssimo. Abominava quaisquer histórias que fizessem a menor referência a alguma heresia ou blasfêmia... E isso somado a sua fama de valente e violento culminou na construção de sua imagem de um típico coronel.

Um velho careca se apoiava em sua bengala, ao lado do Padre. Parecia muito feliz, mas por algum motivo Castor achou que o motivo que o fazia feliz deveria fazer os outros infelizes, inclusive sua tataravó, Alexandrina, a benfeitora da cidade que havia doado dinheiro e terras para construírem a vila, a partir da capela. Ela não parecia

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nada contente na foto comemorativa.

- Mas o sentimento religioso do meu avô não impediu que falassem a cerca de sua participação como administrador da construção. Muito falaram sobre ele ter roubado o dinheirão da velha Alexandrina, mas não vejo motivos que levassem naquela época uma mulher corajosa como Alexandrina a deixar alguém roubar o dinheiro que ela estava usando para pagar uma promessa. E seu primo, onde está agora?

- Em Natal fazendo faculdade. - Será que você faria o favor de

entregar um exemplar da minha obra para seu primo? Já tenho um de “Da aroeira à cidade, nos Caminhos do Rio Santana”, mas creio que ele ainda não conheça “Eu quisera contar”, de Henrique Lopes.

- Com certeza entrego, ele vai gostar muito.

- O encontro dos dois únicos escritores santanenses. – Observou Antonio.

- E você bem que poderia ser o terceiro hein Antonio? Com essas histórias da sua monografia... Bem, tenho que ir, vou fazer algumas visitas. Quero dar livros de presente ainda para Ulisses e Tereza, Josias,

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Enéas, Donato, dona Laura e seu Enoque e dona Emília também. Até mais rapazes, qualquer dia nos encontremos para debater um pouco de história.

- Até mais! – Responderam Antonio e Castor.

- Hoje tô meio ocupado com assuntos do mestrado, mas, como você sabe essas pesquisas nem é mais motivo de estresse... – Começou Antonio.

- E como sei. Você gosta mesmo desses temas, não te imaginado infeliz nessas atividades. E esse livro preto? – perguntou Castor, sentando-se.

- É minha monografia. Tava dando uma revisada nela, vendo algumas coisas antes de partir para a nova dissertação.

- Sua monografia foi sobre o quê, que o tal Henrique tanto elogiou?

Os olhos de Antonio brilharam antes de ele responder.

- Bem, minha área é Letras, e decidi tratar de histórias que vem sendo contadas, de geração em geração, e que acabam virando literatura na boca do povo. Histórias que compõem a cultura, a memória da civilização.

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“Meu objetivo é provar que essas histórias são literaturas e que a memória das pessoas é a fonte disso tudo. São capítulos perdidos da história do lugar.”

- E no seu mestrado, o que você tá pesquisando?

- Outras histórias do tipo, desta vez são lendas relacionadas á botijas.

Castor quis rir. Achava a ideia de botijas uma coisa bem bestinha. Das lendas mais fantasiosas, a mais, pois pressupunham mortos que se comunicavam com vivos.

- Daqui a pouco eu vou lá na casa da mulher, Dona Joaquina, que conta as histórias dessas botijas. Ela mora lá nas Quintas.

Era o sítio mais longe do município, já na divisa com Luiz Gomes.

- Quer vir comigo?- Tô dentro. – O seu interesse na

verdade, se devia ao ócio do fim das férias. Se não havia acontecido nada durante aquele mês e meio, não seria na última semana que algo iria acontecer.

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Capitulo III A botija

Subindo na moto com a cabeça cheia de ideias, Castor seguiu com Antonio para o Sítio Quintas, para a casa de Dona Joaquina, e no caminho veriam os sítios Paul, Caiçara, Tabuleiro do Padre e Poço da Pedra. A região rural estava mais ou menos seca, com poucas áreas verdes. Era início de janeiro. Ventava excepcionalmente naquele dia.

A primeira divisa era pelo ponto onde Sítios Paul e Santo Antônio se encontravam, chamado popularmente de Riacho dos Gritos, que agora estava seco. Bêbados ou não, homens passaram a vida inteira jurando que o local é mal-

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assombrado, pois ao passarem de moto, bicicleta ou animal pelo local, sempre sentiam um peso na garupa e ouviam gritos. Depois deste trecho, começava de fato o Sítio Paul.

Depois de uns trinta minutos de passeio pela zona rural, chegaram a um alto, que Antonio achou por bem subir a pé. O alto era deveras exaustivo, mas no seu topo, Castor teve uma surpresa: uma pequena espécie de vila, com seis ou sete casas, se dispunha a sua frente com um charmoso ar século XX. Imaginou que fossem todas pertencentes a uma mesma família, e, de súbito, sua visão foi tomada por um verdadeiro palácio, uma enorme casa ás margens da “vila”, que imponentemente se apresentava á vista, onde se discernia uma fonte em formato de leão e um portão, onde fulgurante, brilhava ao sol uma Estrela de Davi.

- Antonio, de quem é esta casa? - De um judeu, genro de Dona

Joaquina. Veio de São Paulo faz uns tempos.

- Casarão né? - Oh se! Muito difícil construir

qualquer coisa aqui nessas bandas, imagine uma casa desse tamanho. Bem, dona Joaquina está lá. Vamos?

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- Sim.Quanto mais se aproximavam do

casarão, mais a curiosidade crescia. O portão fez barulho ao passarem e a fonte parecia querer rugir e atacar a qualquer momento.

A porta enorme que guardava a mansão tinha o símbolo da Estrela de Davi. Após três batidas, a maçaneta em formato de leão rodou e no lugar da porta apareceu um homem incrivelmente alto e excepcionalmente barbudo, com um simpaticíssimo sorriso no rosto.

- Caleb Bloch, genro de Joaquina Cavalcante. É um prazer. – Apertou firmemente a mão de Antonio e a de Castor, que eram cerca de metade da dele. – Vocês devem ser rapazes da entrevista. Dona Joaquina esperando na cozinha. Vamos!

Com um assentimento de cabeça, adentraram a mansão até a cozinha, ficando visivelmente maravilhados com o salão e a escadaria. Castor não pode deixar de notar mais uma vez a Estrela de Davi desenhada em cada porta que via.

Ao chegarem na cozinha, e que cozinha, Dona Joaquina estava comendo um belo pedaço de queijo com iogurte, ao lado de uma bela e jovem moça, que Castor pensou ser

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Lia, esposa de Caleb. Ouvira alguma coisa sobre um velho judeu que casara com uma mulher muito nova de Riacho de Santana, e que ninguém sabia como uma mulher jovem como ela queria um homem velho e feio, e ainda por cima judeu. Com a língua do povo de Riacho ninguém podia, isto era fato.

Ao cumprimento de Antonio, Dona Joaquina abriu um sorriso enorme. Castor percebeu que ela gostava muito dele, talvez porque na velhice encontrara alguém que queria ouvir e dava valor a suas velhas histórias de botija. A empregada da casa, Iracema, estava pedindo para sair mais cedo, pra resolver pendências policiais de mãe dela. A morena de cabelos encaracolados e olhos azuis havia sido sogra de Castor, pois era mãe da belíssima Cecília, que durante a infância e início da adolescência vivera uma paixão com ele. Agora a garota era a Miss da cidade. Pelo que Castor sabia, a mãe de Iracema era uma velha metida a vidente que sempre levava nome de charlatã. Helena, Madalena ou coisa assim.

- Chegou de novo meu rapazinho da botija! Oh, que coisa boa! – Dona Joaquina deu um daqueles famosos

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cheiros nordestinos no rosto de Antonio e se virou para Castor. Ela era uma típica velhinha, baixa e de semblante feliz – E esse moço bonito aqui?

- É um amigo meu, Castor.- Castor de quem? - Sou neto de Tomaz Fernandes.- Ah, decididamente eu conheci

seu avô.Apesar de todos os Fernandes

aparentemente serem como Castor, meio incrédulos no que se diz respeito a espíritos, havia histórias interessantes em sua família. Seu avô Tomaz ficou conhecido por ser um dos maiores políticos da região junto com seu cunhado Antero Conrado, irmão de vovó Maria, e ex-prefeito duas vezes. A história política da pequena Riacho de Santana era interessante: Antero entrou na política por intermédio de Tomaz, e após chegar ao poder, um desentendimento entre os dois gerou o apoio para prefeito de seu genro Ulisses, casado com sua filha mais nova, Tereza. E depois foi a vez de Ulisses passar a rasteira no sogro, apoiando seu melhor amigo Jonas para a prefeitura. Jonas, entretanto não fazia parte do grupo tradicionalista do qual faziam parte

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as famílias Fernandes, apesar de traída, Conrado e Nascimento, e a sucessão em 2012 apostava todas as fichas na volta dos Soares do Nascimento para a prefeitura. Era uma história e tanto que também chamava a atenção de Castor. O pai de seu amigo Aprígio, Egídio, também exercia certa liderança na cidade, como oposição a família do velho Antero.

- Ele veio ouvir suas histórias também dona Joaquina.

- Ah, com toda certeza! Ele faz parte do trabalho também?

- Não, não! – Principiou-se Castor – Estou apenas acompanhando.

- E você é igual a Antonio, Castor? – Joaquina o examinava com os olhos verdes e cansados por cima dos óculos – Quer dizer, você acredita nas minhas histórias de botija, e que espíritos mandam mensagens por sonhos? Esse tipo de coisa que muita gente chama de loucura?

- Para ser sincero... Não. – Não havia medido bem as palavras e isso causou um certo silêncio na cozinha.

- O Senhor não quer dizer que minha sogra é mentirosa, ou quer? – Caleb finalmente falou depois que

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entraram na cozinha. Mas Lia não falou nada.

- Não! Longe de mim senhor. Eu acredito que ela tenha fortes... Fortes motivos para acreditar em qualquer que seja a mensagem do além.

- Talvez você acredite mais depois que eu contar a história toda.

“Bem, meu avô, Antonio Xavier Cavalcante, veio morar aqui nas Quintas mais ou menos em 1880, iludido com a promessa de encontrar ouro e joias por essas bandas. Um velho mapa indicava esta região como forte candidata a muitas reservas de ouro. No entanto, só em 1937 ele encontrou a primeira pedra de ouro. Num certo tempo ele vendeu grande parte das terras a um homem de Luiz Gomes e desde então nunca mais se achou nem ouro nem nada por aqui. Ele morreu dizendo que havia sido enganado.”

“Há uns anos ele me apareceu num sonho. Estava diferente, robusto e forte. Me disse umas palavras, uma espécie de código. Eu nunca consegui entender... Falava sobre uma estrela. Dizia que a estrela apontava pela direita, onde estava a mina perdida e roubada, pela direita...

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Eu estive sinceramente perturbada com isso. Certa vez quando estava pegada nesses pensamentos, veio uma ventania que obrigou todos a se guardar dentro de casa. No meio dela, surgiu um homem o qual não conhecíamos, nem nunca havíamos ouvido falar de tal fisionomia. Como se não ventasse, ele atravessou o tempo ruim e entrou na minha casa, e se declarou vindo do inferno para me admoestar em relação ao sonho. Sobre o perigo que continha aquele segredo.

Não entendo nada. Caleb veio morar aqui, chegou de São Paulo faz uns tempos, e desde então ele estuda para ver se consegue descobrir alguma coisa.”

- Ainda bem que eu gravei tudo Dona Joaquina – observou Antônio – Olha, eu vou vir aqui outro dia, só que mais cedo, para entrevistar a senhora sobre outros aspectos da sua vida, e da do seu avô também.

- Vai ser um prazer. E o rapazinho – indicou Castor com um gesto - o que achou agora?

Castor não quis demonstrar de novo toda sua incredulidade nas palavras de Joaquina, portanto riu e disse:

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- História fascinante!

Durante a volta, no percurso de moto, Antônio puxou assunto com Castor.

- Você já ouviu falar sobre um livro de magia chamado Livro de São Cipriano?

- Não é um que vendem na Internet e em revistas da Hermes?

Antônio riu. - É e não é. O livro negro de São

Cipriano é uma verdadeira relíquia do arsenal mítico da cristandade. Trata-se de um livro verídico de magia negra.

Agora Castor riu. - Antônio, eu acredito em Deus.

O que quer dizer que não acredito nisso.

- Não vamos discutir esse seu pensamento agora meu amigo. Mas o fato é que dizem as histórias que a família de Antônio Cavalcante guardava um livro enorme, de capa preta e escrito a mão, com bruxarias e outras coisas do tipo.

- E isso teria algum prestígio na sua pesquisa? Quer dizer, o livro de São Cipriano pode ser encontrado em qualquer livraria barata – disse Castor, fingindo-se interessado.

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- A magia, ou suposta magia, como queira, é uma tradição oral. Portanto você não tem ideia do valor que um livro de São Cipriano escrito a mão pode ter.

Castor continuava rindo, com o vento nas bochechas e lhe arrancando lágrimas. O mais perto que havia chegado de acreditar em coisas sobrenaturais foi ter os sonhos que havia tido, sem aparente explicação. Mas aquilo não fazia muita diferença na vida moderna e rápida que se vivia em 2012. O que importava era só estudar, estudar e estudar, qualquer coisa que não seguisse esse cronograma na vida de um jovem, era vagabundagem. Mas mesmo assim, Castor estava de férias e queria vagabundar um pouco.

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Capitulo IV Uma noite pra ficar na historia

Jales, vizinho de Castor, Elisa, Andromeda, Catarina, prima de Castor, Aprígio – que havia vindo passar os últimos dias de férias na casa de sua avó Laura, Castor, Cecília – filha de Iracema e ex-namorada de infância de Castor– Renato, Valéria e Danilo (primos de Aprígio), Mateus, namorado de Valéria. Todos resolveram naquela noite de segunda-feira realizar uma seresta, como nas antigas. Antonio teve que ficar em casa para terminar sua dissertação de mestrado. Ir para a pracinha e ficar até tarde da noite. Até duas ou três da madrugada. Faziam aquilo desde a infância, ou

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melhor, desde que Jales havia aprendido a tocar violão. Agora a pracinha, antes cheia de chocolates, “chilitos” e refrigerante, agora estava com algumas caixinhas de cerveja. As idades mudam e mudam-se as drogas, dizia Castor.

O repertório era variadíssimo. Passaram por Dorgival Dantas, Jorge e Mateus, chegaram à tão esperada MPB de Catarina e Aprígio.

Sentados perto, Castor, Cecília, Aprígio e Catarina conversavam sobre diversos assuntos, até que recaíram no sobrenatural, depois que Catarina comentou que aquela ruazinha torta e com uma pracinha era muito assustadora.

- Eu e Antônio fomos lá no fim do mundo hoje, entrevistar uma senhora que jura que o avô dela fala com ela em sonhos. Só lembrei de você cara! – Disse Castor a Aprígio.

- Vou comentar com Jerônimo isso.

- Cara estranho esse seu professor.

- Também achei – acrescentou Cecília.

- Catarina, quem sabe a gente vai esses dias lá no Centro Espírita.

- Catarina, você é espírita?

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A branquíssima e de longos cabelos negros prima de Castor olhou assustada para os lados e disse:

- Depois de certas coisas que vem acontecendo comigo ultimamente, eu acredito sim.

- Que tipo de coisa? – Perguntou Cecília.

Renato interrompeu a conversa, gritando: - Vocês vão mesmo ficar conversando isso em vez de cantar?

- Que tipo de coisa? – repetiu Cecília, em voz baixa.

Catarina continuou: - Eu toco nas pessoas e fico

vendo coisas a respeito delas. É horrível!

- Vai ver isso faz parte do fato de que toda vez que você viaja, passa mal na volta – brincou Castor.

- Ah Castor besta! Você sabe que eu não me dou bem com outra água que não a do poço daqui.

Os quatro riram. - Catarina, deixe seu primo –

disse Aprígio – talvez ele não tenha tido motivos suficientes para crer ou querer crer em espíritos como nós três.

- Peraí, vocês três? A Catarina eu já sabia que tinha umas brisas, mas e você e Cecília?

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- Com uma avó como a minha não tem como não brisar de vez em quando – riu Cecília.

- Mas sua avó não é constantemente acusada de enganação? – perguntou Castor – com aquelas orações e magias que ela faz?

- Talvez tenha perdido a prática. Mas eu já ouvi dizer de muita coisa que ela fez no passado e ás vezes ela quer me ensinar. Dá medo também. Tem horas que eu sinto que posso manipular a natureza.

A declaração de Cecília soou estranha, até mesmo para Castor.

- Eu já senti isso um pouco. Uma vez, já atordoada de tanto sonhar e ver coisas, decidi me concentrar. Fiquei com medo de parecer meio louca, no meio da rua. Mas como não tinha ninguém por perto, eu parei e me concentrei no vazio – disse Catarina.

- E aí? – interessou-se Cecília. - Passou uma corrente de vento

muito forte. Não foi exatamente normal.

Castor segurou o sorriso com um gole de cerveja.

- E você Aprígio? – disse ele, finalmente – o que aconteceu com você?

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- Lembram do meu primo, Diogo? - O que morreu afogado?-

perguntou Catarina. - Esse mesmo. Bem a morte dele

não foi bem explicada sabem? Até hoje nossa família não comenta muito, mas teve fatores sobrenaturais envolvidos. Algo com relação ao livro de São Cipriano.

- Antônio me falou desse livro – disse Castor.

O silêncio se seguiu mediante a menção do nome de Diogo. Castor não conhecia bem, mas sabia que era um primo bastante querido da família de dona Laura e seu Enoque.

- Ei que tal voltarmos às antigas? – disse Jales, conclamando a todos.

- Como assim? – perguntou Cecília.

- A gente tava pensando – maturou salientemente nos lábios Danilo – de ir brincar de polícia e ladrão, como há uns quatro ou cinco anos atrás.

- Sério? Aprovada a ideia! – disse Castor.

Diante da aprovação geral, dividiram o grupo entre os policiais (Aprígio, Catarina, Danilo, Mateus, Valéria e Andromeda), e os ladrões (Castor, Cecília, Renato, Elisa e Jales).

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Ao grito de liberação, o grupo partiu, como antigamente. Exceto pelo fato de já serem uma hora da manhã e estarem levemente bêbados.

Castor subiu para seu esconderijo favorito, atrás de uma velha quadra de esportes. O local era feio e geralmente João das Cachorras ficava por lá. Castor seguiu em silêncio, um tanto quanto embriagado, mas não tanto quanto Mateus ou Renato. Quando entrou na quadra, sentiu um cheiro esquisito, de algo que queimava. Seguindo seus instintos, procurou de onde vinha o cheiro e achou.

Atrás da quadra tinha uma fogueira enorme, e perto dela e algumas em cima da parede, velas dentro de latas, cortadas em forma de caretas com sorrisos abertos.

- Mas o quê? – começou Castor a pensar, mas foi interrompido pelo grito de Cecília e pelo soar de um sino.

Tanto quanto o sino tocava, Cecília gritava apavorada.

Quando ela viu Castor e a fogueira e as latas de enfeite, correu e caiu nos braços dele.

-Castor, o que é isso?

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- Você se refere a esse Halloween antecipado ou ao sino?

- Aos dois. Eu tive muito medo. Estava subindo a rua principal, a da Igreja, sozinha, louca por um bom esconderijo. Foi quando me lembrei de uma história antiga de lobisomem que eu tinha ouvido. Estava seguindo o rastro do lobisomem. Ele veio lá de baixo, das bandas da sua casa. Passou exatamente por onde eu estava passando e os cachorros acuaram ele até o beco entre a casa de Seu Elias e de Fontes, que era o delegado.

- Seu Antônio – continuou Cecília – teve o bicho nas miras da sua espingarda, mas num último momento...

- Ei vocês – falou uma voz.Cecília gritou, mas Castor colocou

a mão na sua boca.A voz era de Aprígio. - Você também ouviu o sino

Cecília? – perguntou ele. - Ouvi. Estava contando a

Castor... - Uma verdadeira fábula e não

chegou ao ponto. Deu pra ver de onde vinha o barulho desse sino?

- Não – responderam os dois ao mesmo tempo.

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- Mas vocês estavam perto um do outro?

Quando relataram, a resposta foi novamente negativa. Cecília estava na rua principal e Aprígio quase no cemitério. E, no entanto, Cecília, Aprígio e Castor haviam ouvido o barulho de um sino tocando.

- Que espécie de sino pode ser ouvida em todos os locais?

- Eu não sei. Só sei que parou e nem percebemos.

- Eu também ouvi – falou uma quarta voz, grossa e estranha.

Era Jerônimo, que vinha pelos matos de trás da quadra ao encontro do grupo. Inconfundível com seu jeito gordo e desajeitado, mas, notou Castor, sem óculos e sem boina.

-Não tenham medo. Eu sei bem o que vocês ouviram.

Castor teve vontade de dizer “duvido”.

- E por isso eu preciso conversar com Castor e com Aprígio o mais rápido possível.

E como se tivesse sido convocado por mágica, Jerônimo saiu.

- Agora teremos uma luz – falou Aprígio.

- Com esse cara? Deixe que eu te dou a luz então. Essa fogueira deve ser do velho João das Cachorras, as

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latas com as velas são uma brincadeira de mal gosto. E o sino também.

No fundo, Castor acreditava em suas palavras, apesar de mais fundo ainda, sua mente tentar ligar seus sonhos estranhos, as experiências de seus amigos e o soar de um sino.

E ele viu, perto da fogueira, pedras. E nelas havia sangue humano.

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Capitulo V Os penitentes

Se tinha uma pessoa que Castor lembrara no caminho de volta para casa sua colega de sala, Verbena. Verbena era muito parecida com Castor, nas opiniões e visões de mundo. Já Aprígio parecia muito com ele no aspecto de se interessar pela investigação do passado, mas por outro lado ele era muito espírita para o gosto de Castor e Verbena. Arturo, outro amigo de Castor, era mais amigo de balada, azaração e coisas do tipo. Era o namorado de Elena, melhor amiga de Marina, a garota que de vez em quando tirava o sono de Castor. Mas ele não podia, não queria nem ia pensar naquilo agora.

Ao chegar em casa, mandou um e-mail para Verbena, que ele sabia que estava em São Paulo visitando a família.

Naquele fim de noite teve outro sonho, mas diferente. Estava com o simpático burrinho Xisto num local conhecido, onde havia os escombros

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de uma casa e alguém remexia lá, até que as pessoas da casa vizinha acordaram e colocaram cachorros pra cima do visitante noturno.

Foi tudo muito rápido.Acordou novamente suado e

gelado, e preocupado.

- Castor – falou uma voz doce e sonhadora, de manhã. Era Marta, entrando no quarto de Castor, deixando-o confuso.

- Sim Marta... - Sua mãe me disse que você

está pagando Matemática lá no Gênios?

- Sim é verdade. Minha mãe andou te dizendo muita coisa não é?

Marta riu. Castor sentiu vontade de agarrá-la e jogá-la na cama.

- Quer ajuda com alguns exercícios de férias?

- A senhora, quer dizer, senhorita, sabe Matemática?

- Modéstia a parte, sei bastante. - Pois seria um prazer.Castor achou que a palavra

prazer soou inoportuna.

No Centro Espírita, no outro dia, Aprígio e Castor encontraram um trio que eles não esperavam: Antônio, Henrique e Jerônimo.

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- Ah eles chegaram – disse Antônio.

Henrique olhava desconfiado para os dois, mas não tanto quanto Jerônimo, que ficava muito estranho sem óculos e sem boina.

- Vamos Antônio, antes que mudemos de ideia novamente – disse Henrique.

- Castor, lembra que eu te falei sobre minha linha de pesquisa, de monografia e dissertação de mestrado?

- Lembro sim.“Eu não te disse que de início

busquei histórias que há muito tempo vem sendo contadas no meu seio familiar. Desde pequeno ouço meu avô falar do avô dele, o meu trisavô Antonio Cego.”

- Antonio Cego? Era nome verdadeiro? – indagou Aprígio.

- Segundo a lenda, meu trisavô que vivia ali no Sítio Paul, admirava muito o nascer do sol, o que com o tempo o deixou cego. Seu nome verdadeiro era Antonio Joaquim de Carvalho.

- Nossa! Que massa o apelido dele.

- O melhor você nem sabe ainda. Conversando com meus avós eu descobri muita coisa... Minha avó

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Ana me relatou uma experiência que ela teve aos sete anos de idade, mas que a marcou.

Antônio apontou para um projetor que havia no salão de reunião do Centro Espírita e os cinco homens se dirigiram a uma exibição que ele havia preparado.

- Eu sempre gravo minhas entrevistas, então...

O vídeo era uma entrevista com Ana, avó de Antônio.

“No meu tempo de menina, sete ou oito de idade, era muito comum a gente ir lá pra casa de uma senhora que vivia no Paul, fazer os acompanhamentos das orações de cada santo, esse tipo de coisa. Todas as famílias antigas se reuniam ali, a do meu avô, que já era falecido, do velho Cardoso, e a de Antônio Cego, que era casado com Benta. Nós tudo menino ficava brincando depois, mas um dia nossas mães recolheram nós mais cedo.”

Houve um tom meio sombrio na voz da senhora.

“Eu não entendi por que, mas o toque de recolher foi geral. Como era teimosa, saí escondida e fui até a cerca da minha casa, que dava pra casa de Antônio Cego. Foi então que eu vi. Um meio mundo de homens,

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que Benta recebia. Ela era a única mulher no meio deles. Pareciam ser de Luiz Gomes, pelo pouco que eu ouvi, e alguns do próprio Paul. Mas não reconheci ninguém, nem mesmo se quisesse. Estavam todos encapuzados e cobertos de branco da cabeça aos pés. Eram recebidos por Benta, e entravam, ao som de um sino que parecia abalar o mundo todo. E aí passaram, o que eu pensei ser o resto da noite, cantando hinos. Ouvi barulhos estranhos, fiquei com medo e fui me deitar. No outro dia, foi a vez de nós mulheres invadirmos a casa de Antônio Cego. Para lavar a enorme sala que estava suja de sangue humano.”.

O vídeo parou e antes que todos voltassem o olhar para alguém ou falassem algo, Castor disse:

- Havia sangue nas pedras, perto da fogueira.

- Caso encerrado para mim – falou Henrique.

- Vamos com calma – disse Jerônimo.

- Pelo contrário. É melhor explicar mais.

- Se me deixarem – disse Antônio – A partir daí associei outros fatos que me haviam contado tanto meu avô quanto minha avó, e descobri

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que Antônio Cego era um dos líderes de uma verdadeira sociedade secreta, religiosa, que buscava afirmar sua fé através de atos no mínimo corajosos: eles se penitenciavam com navalhas em seus rituais, buscando o sofrimento como forma de amor ao sacrifício de Cristo. Antonio Cego era chamado de dicurião, isto é, o líder dos chamados penitentes.

Castor, que havia ajudado seu primo escritor no trabalho dele sobre a história da cidade, juntou Carvalho com Paul e perguntou:

- Não me diga que ele era filho de...

- Sim. Do Capitão Joaquim Antonio de Carvalho, o fundador da cidade.

- O que indica que nossa cidade...

- Muito provavelmente foi fundada por penitentes. - Antonio pareceu admirar muito a historia dos seus antepassados. – Guilherme também gosta muito dessas histórias.

Guilherme era o irmão gêmeo de Antonio. Castor não gostava muito dele, pelo mesmo motivo que não gostava muito de gatos. Apareciam

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de uma hora para outra e sempre com um olhar não muito amigável.

- É... em que consistia exatamente ser líder dessa seita? – Castor ficou sinceramente interessado.

- Bem, as reuniões ocorriam nas casas dos membros e também num ponto lá da Serra de Luiz Gomes, havia penitentes lá também, chamado Monte Tabor. Os penitentes tinham muito conhecimento da bíblia e apreciavam muito o alto, por isso suas sedes eram sempre em montanhas e serras. O dicurião tocava um sino avisando da hora da reunião, e assim, cada um saía de sua casa e se dirigia ao ponto previamente combinado. Usavam roupas brancas e máscaras, sendo chamados de caboclos ou mascarados por quem desconhecia o ritual. Apenas a esposa de cada um conhecia a verdadeira identidade.

-Muito interessante Antonio, mas se seu trisavô vivia aqui no Paul, como ele subia aquela serra tão íngreme? – falou Aprígio.

- A pé. Carregava sempre um revólver, que nem Vovô costumava lembrar – Nesse ponto o coração de Castor quis sair pela boca,

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lembrando-se do estranho sonho. Interessado, ele perguntou:

- Como você recuperou isso tudo Antonio?

- Meu avô contava muitas dessas coisas, e depois que Antonio Carvalho passou a ser Antonio Cego, ele foi aos poucos passando a liderança para os Araújo da Serra de Luiz Gomes, lá da Vila São Bernardo, onde fica o Monte Tabor. Entrevistei duas filhas de antigos penitentes dessa região e assim consegui concluir a monografia.

- O jovem que almejava ser penitente era submetido a uma série de tarefas, além de atender a requisitos como ter virtudes tais quais: coragem, temor de Deus e muita fé. O próprio açoite era muito mais prova de fé do que de coragem. A última tarefa consistia em passar a noite inteira no Monte Tabor, sujeito a muitas provações e assombrações, se açoitando e entoando os lindos hinos e benditos dos rituais – completou Antônio.

- Isso sim é ser “vida loka” – brincou Henrique. Mas se pudermos ir direto ao assunto...

- Isso tudo foi seu avô quem contou? – perguntou Castor a Antônio.

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- Na verdade foi uma filha de um ex-líder que mora em Luiz Gomes. Meu avô falava mais sobre o avô dele. Eram momentos muito familiares nossos.

“Ele recordava muito do sino que ele tocava. Lembrava também das vezes em que ele, menino, via vários encapuzados misteriosos chegando, e logo as mães colocavam os filhos para dormir. Só conseguiam ouvir os chicotes estalando na sala, e depois, pela manhã, se constatava o chão coberto de sangue humano.

“Lembro claramente que ele dizia que Antonio Cego ás vezes saía sozinho por entre as matas fechadas, subindo a serra e carregando escondido um revólver.”

O coração de Castor queria gritar, mas ele se deteve em dizer somente isto:

- Que outro tipo de arma esses penitentes usavam? – A imagem da bainha que tinha visto no sonho estava clara em sua mente.

- Como assim? – Jerônimo finalmente falou e sinceramente interessado.

Antes de continuar a pergunta, uma voz fria e desanimada interrompeu a conversa:

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- Você não devia ficar contando histórias da família para estranhos, Antonio. Saber de certas coisas ás vezes pode ser muito perigoso, são coisas que dizem respeito a historias muito antigas e sagradas.

Castor achava incrível como dois irmãos gêmeos podiam ser tão parecidos e tão diferentes ao mesmo tempo. Guilherme vivia sempre barbudo, com roupas rústicas do trabalho na roça e da lida com o gado, e, portanto sempre sujo e suado.

Guilherme invadiu o local onde o grupo se encontrava sorrateiramente, exatamente como Castor lembrava desprezar. Ele morava com a avó de Antonio, dona Ana, que vivia perto de onde outrora existira a casa de Antonio Cego e de seu pai, o Capitão Carvalho, primeiro habitante e fundador da cidade. Ana era a mãe de Isa, mãe de Antonio, e esposa do falecido Francisco, neto de Antonio Cego.

- Ninguém aqui é estranho, e muito menos é um fofoqueiro que fica escutando conversa atrás da porta. E essas histórias já foram encerradas Guilherme. Eu, Henrique e agora Jerônimo fazemos parte de um grupo de pesquisa que...

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- Um erro, como já disse antes. Os penitentes eram muito discretos. Tô perdendo meu tempo tentando te mostrar como isso pode ser perigoso, tenho que ir trabalhar. E todos vocês, lembrem-se de que os penitentes não gostavam de ter seus segredos revelados.

Guilherme se retirou, pegou sua bicicleta e saiu.

Após a retirada de Guilherme, Antonio voltou ao assunto.

- Bem, sobre armas só sei que, conforme as filhas dos penitentes de Luiz Gomes me contaram, todos vinham armados e jogavam esses pertences num certo local. Eu insisti que uma me mostrasse onde era esse local, mas ela não aceitou. – e nesse momento Antonio fez uma cara de desapontamento terrível. Castor estava absorto, pois agora não tinha dúvidas: sonhara com o trajeto de um penitente até a serra de Luiz Gomes, mas, por quê?

Perguntava-se se no sonho ele era o próprio Antonio Cego. “Aprígio vai dizer que sou descendente de Antonio Cego e que isso foi uma regressão”, pensou Castor, “ele vai adorar isso”. Mas Castor conhecia sua árvore genealógica, e tinha

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certeza de que não era nada dos penitentes.

- Nós três aqui temos interesses particulares em relação a pesquisar Riacho de Santana. Henrique do ponto de vista científico, Jerônimo da perspectiva espiritual.

- Como assim espiritual? – Perguntou Aprígio.

- Riacho de Santana – disse Jerônimo – é uma cidade peculiar. De localização peculiar e de uma história mais peculiar ainda. Com muito sofrimento e mistério, muito sangue derramado. Espíritos inquietos não deixam seu lugar de origem tão fácil.

- Voltemos ao assunto – falou Castor.

- Em resumo, temos um ponto crucial na história toda, que tem a ver com o livro de São Cipriano.

- É nesse ponto crucial que as nossas pesquisas se separam – falou Henrique, que pegou seu boné e fez logo menção de se retirar – sempre soube que nossas intenções eram diferentes caro Antônio. Eu não recusei uma posição no Conselho para acreditar em livrinhos de magia. Até mais vocês, tenho certeza que iremos nos reencontrar.

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- E se não se importar, Antônio, vá ter essa conversa na sua casa. A partir desse ponto fico ligeiramente desinteressado – falou Jerônimo.

- Eu também fico – disse Aprígio.Talvez, pensou Castor, aquilo

tudo fosse doloroso para ele devido seu primo.

Então Antônio levou Castor do Centro Espírita até a sua casa, no centro urbano, para terminar a crônica, deixando Aprígio com Jerônimo.

Capitulo VI O livro dos segredos

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“Livro de São Cipriano” pensou Castor aflito, mas logo se sentiu um bobo. É claro que esse livro que Aprígio havia mencionado na história do primo dele e que ele havia ouvido falar em algum outro lugar era uma lenda. Não existiam livros de bruxaria assim, reais e apalpáveis.

Mas Antônio, Henrique e Jerônimo – e Guilherme – pareciam acreditar em algo muito sobrenatural naquilo tudo. Penitentes podiam e eram reais, afinal qualquer um pode se autoflagelar a noite toda cantando, pensou finalmente.

Quando chegou a casa de Antônio – este estava rígido e preocupado – Castor falou.

- Tem milhões de versões desse livro para vender na internet, com promessas de ficar rico, um muído medonho. O que há demais nisso?

Antônio riu como se Castor fosse a pessoa mais inocente do mundo.

- O que foi? – perguntou Castor. - Nada. Só que a civilização

ocidental se fechou dentro desses mitos, desses falsos livros de São Cipriano. E esqueceu-se do verdadeiro.

- Então me conte a história.

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- Lá vai: Cipriano era um bruxo europeu. Um estudioso de diversas práticas mágicas e brutamente rejeitado pelos cristãos. Até que um dia Cipriano encontrou a bruxa mais famosa da história, a bruxa de Évora.

“Essa bruxa tinha manuscritos poderosíssimos, sobre artes até então desconhecidas para Cipriano. Quando Cipriano juntou suas ideias com as da bruxa, surgiu o livro de São Cipriano. O verdadeiro e original livro de São Cipriano teve pouquíssimas cópias verdadeiras, a maioria veio para o Brasil. É o chamado livro de capa preta. Dizem que o livro oferece àquele que se deleitar totalmente em sua leitura, o poder absoluto. O poder de estar acima do bem e do mal e de se igualar a Deus em conhecimento.”

- Mas isto é impossível. - É sim. Mas os homens se

iludem com o livro. Matam e morrem por ele. As consequências são horríveis. Agora imagine o que aconteceria se um penitente usar o livro de São Cipriano?

- Um penitente?- Exatamente. Achei uma relação

entre a pesquisa que fiz na graduação e a que estou realizando no mestrado.

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Como se tivesse lido a indagação na cara de Castor, Antônio continuou:

- Antônio, avô de dona Joaquina, foi dono do livro de São Cipriano. A descrição feita por ela para mim era de um livro enorme, com folhas grossas, capa preta e escrito a mão.

E Glória, filha de Antônio Simão de Araújo, o último dos penitentes de Luiz Gomes, relatou que o pai era um verdadeiro santo, por obrar milagres com um livro preto, de capa dura, folhas grossas e escrito à mão.

- Você acha que é o mesmo livro?

- Acho. E acho que pode se tratar do livro original, escrito com a caligrafia do próprio Cipriano.

- Mas o que teria num livro de bruxaria que poderia agradar a um penitente?

- É isso que vamos descobrir. Corre por entre admiradores e leitores do grimório de São Cipriano, que o livro tinha o poder de achar o que estava perdido, cessar incêndios e secas, livrar almas de espíritos ruins...

Castor de súbito parou. Não ouvia mais Antônio. Cessar incêndios. Achar coisas perdidas. Isso tudo não

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lhe era nem um pouco estranho. Mas porque?

- Preciso procurar dona Glória novamente e quem sabe o Padre Pedro.

- O de Luiz Gomes, que tem 90 anos?

- É. Desconfio que o padre Pedro seja de fato o último dos penitentes, e talvez possua as informações mais cruciais para minha pesquisa. Ele era amigo próximo de Antônio Araújo, pai de dona Glória, e assistia as reuniões... Ah Bom dia mãe.

“Meu Deus” pensava Castor, “onde orações que achavam coisas perdidas e acabavam pestes, onde?”.

Isa, mãe de Antonio, acabara de chegar à área. Foi bom para Castor colocar as ideias no lugar enquanto a mãe de seu amigo conversava com ele. Não conseguia se lembrar, mas já ouvira falar de um livro assim, que alguém usava para ajudar os outros. Orações para fazer cessar o fogo, trazer coisas perdidas de volta... Mas onde?

- Então jogaram os cachorros em cima dele?

- Foi. Saiu correndo. Destacava-se no meio da noite, pois usava branco.

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- Do que vocês estão falando? – Castor perdera a conversa.

- Mamãe acabou de contar que ontem alguém foi lá nos escombros da casa de Antonio Cego. Guilherme estava lá fora e ele disse que viu tudo, mas vovó Ana não se lembra de muita coisa. Só dos cachorros.

O sonho de Castor novamente fazia sentido. Ele tinha que sair dali agora, pois estava quase voltando na mente onde ouvira falar desse livro antes. Não podia se preocupar agora com sua “vidência”.

Despediu-se rápido da família Carvalho e foi embora pra casa.

No meio do caminho, debaixo de um pé de acácia, a lembrança voltou.

Lembrou exatamente de onde ouvira falar do livro de São Cipriano.

Capitulo VII A bruxa boa

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Não sabia se, devido aos sonhos estranhos ocorridos ultimamente, mas tinha certeza que a lembrança que veio a sua mente naquele momento parecia se repetir na íntegra, como se assistisse a si próprio, com nove ou dez anos, e Caio seu primo, aos doze, entrevistando a avó finada, Maria Victoria da Silva. Sobre Alexandrina Cajé.

Cansada como sempre, mas ao lado do seu inseparável cigarro, Maria falava sobre sua bisavó, que no caso era tataravó de Castor e Caio.

- Então vó – perguntou Caio –o que a senhora sabe mais sobre ela?

- Mãe Alexandrina era muito inteligente. Sabedoria antiga, que não se vê mais hoje em dia. Ela ajudava as pessoas com essa sabedoria.

- Conselhos? – perguntou o primo irmão de Castor.

- Também. Mas toda vez que algo sumia, algo muito importante. E toda vez que havia incêndio, ou quando a seca era pesada demais para os ombros do nosso povo. Ela era chamada. As palavras dela mudavam isso.

- Mas ela lia essas orações?73

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- Não. Ela não sabia ler. Ela tinha as orações decoradas. Como eu disse: muita sabedoria.

E a cena se desfez. “Alexandrina Cajé” pensou Castor, compondo a Odisseia Santanense mais uma vez. Joaquim de Carvalho era donatário de todo o Vale do Santana, mas Alexandrina havia sido a fundadora do povoado. Vinda ninguém sabia de onde, acompanhada de uma grande família, Alexandrina comprou vários terrenos e doou para construir a escola, o mercado, o cemitério e a capela de São João Batista. Havia sido a benfeitora local. E agora, tinha as chances de ser uma bruxa. Mas quem poderia desvendar isso? Castor pensou na enorme família originada de Alexandrina. Haveriam muitas pessoas. Mas talvez ninguém como tia Júlia.

Na árvore genealógica santanense, Valentina, filha de Alexandrina, havia sido a matriarca dos Soares, família de Aprígio, e Zé, dos Cajé. Zé era pai de Flora, mãe de Maria Victoria, mãe de Lúcia. De Flora, bisavó de Castor, restava ainda uma irmã, a quem todos chamavam tia Júlia. Divertidíssima,

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lúcida nos seus 98 anos... Talvez ela soubesse.

No meio do caminho parado feito um louco pensando nisso, decidiu voltar e ir imediatamente à casa de Tia Júlia, mas teve que fazer o caminho mais longo. Riacho de Santana era uma cidade onde era muito difícil passar numa rua sem ser visto pelos moradores das outras, e ele não queria que Antonio o visse passando em frente a sua casa, já que há pouco tempo ele tinha saído daquela casa dizendo que ia pra sua.

Após o arrodeio das ruas e acácias, Castor chegou a casa de Tia Júlia, típica casa do centro urbano original da cidade: grandes janelas e portas, teto altíssimo, cercada de batentes e “peitorios”. Eram grandes casas construídas ao redor da Igrejinha, numa rua alta de onde se avistava a casa de Castor e a bela paisagem de trás, do serrote e da velha árvore.

- Oi tia, sua benção! - Deus te abençoe, meu filho.

Quanto tempo. Sua mãe faz tempo que veio me visitar.

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- E eu já devo começar pedindo desculpas... Não vim exatamente fazer uma visita...

- Então o que veio procurar? –riu a velhinha.

- É que eu tô precisando muito de uma informação.

- Informação? É, eu me lembro de muita coisa que vi, vivi e ouvi. Informação eu tenho de sobra.

- E informações sobre Alexandrina Cajé?

- Vovó Alexandrina? Ah meu filho, informações sobre ela não faltam no livro que Caio escreveu e lançou há pouco tempo.

- Mas informações mais pessoais, da vida particular dela...

- Entendo... Vovó era uma pessoa excepcional sabe? As secas a obrigaram a se deslocar com um marido doente e dez filhos do Pernambuco até esse vale, onde a natureza prometia uma vida melhor.

- Ela criou todos os dez filhos? - Ah com certeza... E criou outros

e outros. Adotou muitos, e o mesmo carinho ela mantinha com netos e bisnetos. Sua avó e Antero viviam no pé dela, ainda recordo. E olhe que Antero era bisneto adotivo. Mas ela tratava todos igualmente. As crianças admiravam muito, como é

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que eu posso dizer... As coisas espetaculares que ela fazia.

- Era nesse ponto que eu queria chegar tia. Coisas espetaculares, orações... Isso tudo tinha a ver com o livro de São Cipriano?

Foi como se tia Júlia tivesse ouvido uma palavra proibida ou no mínimo era um assunto que há muito tempo não palestrava sobre.

- As pessoas evitam comentar sobre isso. Até hoje evitam, e você, quer que eu nos meus plenos 98 anos lembre essas histórias.

- 98 anos de lucidez, boa vontade... É importante pra mim tia. – Castor não sabia por que era importante, mas sabia que era.

- Vou me esforçar por você então. Se você tá se interessando por essas histórias, deve saber que o livro de São Cipriano é um pacto.

- Um pacto? Que espécie de pacto?

- Só sabe quem faz e por isso eu não sei explicar. Só sei que o livro lança uma maldição na pessoa que o lê e que ama possui-lo. Mas minha avó Alexandrina era analfabeta, e tudo que ela sabia estava na

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memória dela. Ela nunca leu sequer uma oração do livro de São Cipriano, mas sabia todas decoradas. A questão é que existem dois tipos de usuários do livro.

- Dois tipos de “Bruxos”? - Mais ou menos por aí.

Alexandrina era uma líder meu filho. Ela, meu pai, sua avó...

E Júlia se levantou e andou pela casona, olhando do teto para as paredes.

- A morte. Nossa família por muito tempo velou a doença e a morte dos pobres. Numa terra sem médicos, eram nossas folhas verdes tão bem escolhidas e nossas técnicas que transferiam algum alívio. Nossa coragem de se aproximar de todo tipo de gente, até mesmo de vestir a mortalha... Não é uma tarefa fácil.

- E esses dons eram realmente, digamos, reais?

- Para uma coisa ser real basta que as pessoas acreditem.

- Minha avó fez com que as pessoas acreditassem em algo melhor do que a morte, melhor do que a seca. Mas nem todo mundo pensava assim, e é por isso que o livro de São Cipriano é algo assim, tão horrível. Já ouviu falar em lobisomem?

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- Muito. Na verdade muito e nada. São várias versões da lenda, sétimo filho homem que...

- Esqueça tudo que você já ouviu dizer, porque com certeza é mentira. Lobisomem pode ser traduzido como a coisa mais perversa que existe na face da terra. A pior oração que existe, faz você perder parte dos seus sentidos, da sua humanidade, para virar uma figura medonha, sem caráter e sem sentimento. Todas as noites que o pacto indica o amaldiçoado se transforma.

- Então porque alguém iria querer usar o pacto para esses fins tão ruins?

- Porque é o único modo de ter acesso a outros, como voar, ficar invisível, rapidez extrema, sair na chuva sem se molhar, ficar rico!

- Mas eram muitas pessoas que usavam o pacto para essa finalidade? Quer dizer, conheço poucas histórias a respeito.

- Garanto que não foram poucas nos limites desse vale que assombravam a população durante anos, se transformando em animais enormes, se transfigurando e sumindo em pleno ar. Haja lista meu filho, é que como disse, são histórias que evitam se comentar até hoje, e é

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por isso que é isso é tudo que eu posso te dizer Castor, espero que tenha ajudado.

- Ajudou muito. Mas tia, Alexandrina, a “bruxa boa” não passou o livro para ninguém?

- A última vez que eu ouvi falar disso foi antes da capela ser construída, em 1937. Foi uma promessa. Ela se dedicou muito a construção da pequena ermida, de corpo e alma, e, acredito eu, que a partir daí ela viu que o livro fazia mais mal do que bem.

- Ótimo! Agora eu tenho mesmo que ir em casa, organizar as ideias.

- Castor... - Sim? - Tome cuidado com o que faz

com certas informações. - Podeixar.

Castor folheou “Da aroeira á cidade – Nos Caminhos do Rio Santana” até chegar numa parte que chamou sua atenção.

- “Em 1936 o Padre Militão Benedito de Mendonça, da Paróquia de Pau dos Ferros, lançou a ideia de construir uma capela em Riacho de Santana. Em 1937, Maria Alexandrina da Conceição doou 4 tarefas de terra para a obra e

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financiou boa parte de todo o material ...” 1937, 1937...

- Já sei, lembrei! – Castor ficou eufórico. – O mesmo ano que Antonio Cavalcante achou ouro nas Quintas, pela primeira vez!

Castor não sabia por que, mas precisava anotar alguma coisa.

Pegou um papel e rabiscou. Era como se fosse um mapa. Desenhou o Sítio Paul, as Quintas, deixou um espaço em branco para a botija desaparecida – era forçado a aceitar que isso tinha a ver com seus sonhos – o Monte Tabor, a Igreja de Padre Pedro e a capela de São João Batista.

Algo estava estranho.Ligou com um traço o Sítio

Quintas ao Monte Tabor, e depois a capela de Riacho de Santana, formando um triângulo.

Depois ligou o Sítio Paul á Igreja de Padre Raimundo e ao espaço em branco, surgindo outro.

E aí apareceu-lhe, quase tão imponente quanto no portão da casa de Caleb, a Estrela de Davi.

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Capitulo VIII A vila dos milagres

Castor guardou seu mapa muitíssimo bem escondido nas suas coisas.

- Aprígio – falou Castor finalmente depois de uma pausa após o discurso sobre livros de magia e penitentes – não acredito nesse livro.

- Você parece um pouco com meu primo. Ele não acreditava e queria provar e...

- Eu sei. Mas preciso chegar ao fundo disso tudo.

- Mas porquê? Quer dizer, se você não acredita então...

- Ah Aprígio, eu não estou sonhando com um burro por nada.

Fazia-se necessária uma visita a dona Glória. Maria da Glória de Araújo, que morava na chamada Vila São Bernardo, onde ficava o Monte Tabor. Antônio concordou em ir com Aprígio e Castor.

Subir a serra de Luiz Gomes foi estranhamente familiar desta vez, pois ter feito isso em sonho e a pé era algo novo. Antonio estava com muito sono no volante, o que era estranho porque ele era muito acostumado a acordar cedo.

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Demoraram um pouco para chegar à Vila onde morava a família de Dona Glória e ficava, mais acima, o Monte Tabor.

Antes de o carro parar, uma senhora baixinha e de cabelos levemente esbranquiçados e de típico vestido florido veio correndo ao encontro dos viajantes.

- Ah Antonio, ainda bem que você veio.

- Olá dona Glória, a senhora pediu que eu viesse e me disse que estava preocupada...

Esse detalhe tinha sido omitido por Antônio.

- E estou muito. Vamos entrar, por favor.

A casa dela era simples, mas muito aconchegante. Estava só em casa.

- Eles são de confiança? – Indicou a velha com um sinal para Castor e Aprígio.

- São sim, pode ter certeza – Castor observou certa desconfiança no que Antonio dizia, mas não entendeu bem.

- Pois bem, essa noite aconteceu uma coisa que eu nunca pensava que viria, ou melhor, ouviria novamente. A família ficou toda em prantos, tem gente muito nervosa

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com isso Antonio. Porque ontem, depois de tantos anos sem os penitentes se reunirem, algum abusado foi lá no Monte Tabor e tocou o sino do dicurião. Eu sei que era esse sino porque eu conheço muito bem esse som. Eu também estou preocupada, parece até um sinal. Violaram o cruzeiro do meu pai. – Estava triste e inconformada – O cruzeiro que o irmão mais velho dele talhou para as celebrações penitentes e que papai me pediu para fincar lá. Você sabe Antonio, que desde então lá é lugar de milagres. Quem reza ou pede lá, é curado e recebe, desde o início dos tempos...

Castor pareceu se transportar para quilômetros de distância. Tudo se formava em sua mente: Guilherme pegara um sino, não sei como achara na casa de Antonio Cego e tinha ido ao Monte Tabor na noite passada, e atormentara Riacho na anterior. Por isso Antonio estava com sono, devia ter ficado a noite toda procurando pelo irmão. Antonio estava acobertando Guilherme, devia ser isso. Guilherme tinha cara de quem fazia aquilo e muito mais. Algo cortou o raciocínio de Castor: Antonio fez uma pergunta que seria

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muito mais própria de Aprígio ou dele mesmo:

- Dona Glória, sua filha, a Denise, ela ainda tem o livro que a senhora deu de presente pra ela quando ela foi pra São Paulo?

- Ah, também queria lhe contar isso meu filho. Foi roubado a um tempo, há mais de anos já... Só que ela só se deu conta a pouco tempo, quando foi procurar e não encontrou... Será que tem algo a ver com isso tudo que tá acontecendo?

Quando chegaram em Riacho de Santana novamente, era hora do almoço, e Castor e Aprígio marcaram de se encontrar depois.

Quando chegou ao quarto que a avó de Aprígio preparava para ele passar férias, feriados e fins de semana, Castor disse logo:

- Precisamos destruir esse troço. - Que troço? – indagou Aprígio. - Esse livro que as pessoas tanto

põem fé! Não acredito nele, mas tenho que reconhecer que o povo acredita e isso é um problema.

- Mas eu acho que não podemos simplesmente rasgá-lo...

- Então?

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- Você parou para pensar que Antônio e Guilherme são descendentes dos penitentes?

- Claro. Eu tenho suspeitas em relação a quem está tocando sinos e acendendo fogueiras quando não tem nada melhor pra fazer.

- Guilherme? - Seria a cara dele... - Qual a explicação para essa

fogueira?Parecia que Aprígio estava

interrogando Castor. - Bem pensado. Penitentes não

faziam fogueiras... Mas creio que só o último dos penitentes poderá nos revelar sobre isso.

- E o que esse cara está querendo? Já pensou que poderia ser...

- O livro de são Cipriano? Para destruir?

- São só suposições...

Quando Castor voltou para casa, encontrou seus pais meio atordoados.

- O que foi que aconteceu? Essas caras de vocês estão me sugerindo...

-Uma invasão domiciliar – falou Afonso – e seu quarto foi o alvo.

Castor correu pro quarto e tudo estava bagunçado. Mas nada de

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anormal aí. Entretanto, mesmo no meio de toda a bagunça Castor era capaz de ver de longe quais eram os seus papéis. E logo percebeu que haviam sido furtados o mapa da estrela e o semanário escolar do Instituto Gênios.

Capitulo IX – Os cristaos novos

Precisamos ouvir o que Jerônimo tem a dizer – falou Aprígio no outro dia.

- Mas porquê? - Por que ele simplesmente é o

cara. - Se ele quiser fazer alguma

regressão comigo... - Ele não vai fazer isso. Ele

entende muito de história e talvez queira nos dar algumas dicas.

Jerônimo marcou a visita cedo. Cedo demais para quem tinha ido se deitar de três horas da manhã com a cabeça cheia de ideias. E sonhos.

Ele e Xisto estavam num local muito ruim, esburacado e de difícil acesso. Havia apenas uma casa em muitos quilômetros. Uma casa grande. Xisto guiou-o para dentro da

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casa, onde um velho muito velho, aparentando ter uns mil anos, ouviu um barulho no meio da casa. Saiu correndo, se arrastando, o corpo velhíssimo e cansado. E lá no alpendre o relâmpago claríssimo revela o rosto de um homem com um pacote grande na mão.

- Nããããão! – gritou o velho. - Vou destruí-lo. É tarde demais –

e o ladrão pula a janela.

Foi um sonho ruim, e Marta havia pedido uma folga de um dia, o que acabou com suas esperanças de vê-la preparar seus deliciosos cafés da manhã.

- Ela é tão gata assim? – perguntou Aprígio.

- A mais gata que eu já vi.

O Centro Espírita de Riacho de Santana a muito tempo não recebia um novo professor. O salão estava vazio, com várias cadeiras e uma estante empoeirada com livros. E Jerônimo estava a espera.

- Ah ainda bem que chegaram. – Disse ele. E Castor notou que ele não usava os óculos novamente.

- Vamos direto ao ponto, pode ser? – disse Castor.

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- Precisamos ir. Eu quero dizer a vocês dois que eu sei exatamente onde está o livro de São Cipriano.

- Sabe?- desacreditou Castor. - É claro que sabe. –disse Aprígio

– ele simplesmente sabe de tudo. - Não exagere caro Aprígio.

Quero dizer que sei sim, mas minha informação tem um preço.

- Ah, agora deu mesmo! O senhor precisa me ajudar a destruir esse troço. Eu sei o que ele já fez... O que ele causou aos penitentes. É uma história longa e de fé... Eu vi como ficam quando são desonrados. Dona Glória, ela...

- Eu sei exatamente como ficam, Castor – disse Jerônimo. – Mas eu quero e preciso de certa espada. Uma relíquia muito valiosa para minha família. E ela está com uma mãe d’água, que vive num lajedo escondido aqui em Riacho de Santana, conhecido como buraco-sem-fundo.

- Mãe d’água? - É. Os nordestinos costumam

chamar assim os olhos d’água, mas a origem desse nome está nos espíritos que vivem dentro de lagoas, rios, lagos e poças...

- E essa mãe d’água guarda uma espada? – Castor lembrou-se do

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sonho com a bainha. Ele havia contado a Aprígio, mas ele não poderia contar nada a Jerônimo. Castor não confiava nele. Então olhou para Aprígio e falou com o olhar, para que ele mantivesse isso em segredo.

- Uma relíquia que eu preciso muito. Então, quero que a peguem para mim.

- E porque você que é tão foda não vai lá e pega?

- Digamos que eu sou proibido de andar lá, e não vou responder mais nada.

- E devo avisar que ela vai querer algo em troca – adicionou Jerônimo.

- Tipo o quê? – perguntou Aprígio.- Ela quer um fio de cabelo loiro

de um albino.- Um albino loiro? E porque diabos

a mãe d’água vai querer isso? – perguntou Castor.

- Vai ver ela nunca viu um – disse Jerônimo.

O argumento não foi convincente, mas discutir não iria adiantar. Castor aceitou a missão.

- Então nos diga onde encontrar esse cara.

- Eu não sei onde - Ótimo.

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Nesse momento Castor recebeu uma mensagem de celular de Antônio. Ele estava chamando ele e Aprígio para irem novamente à casa de Joaquina.

- Parece que ela achou um documento antigo de venda de terras do avô dela – sussurrou para Aprígio, quando se livraram do Centro Espírita.

Enquanto Antonio foi até a casa de Joaquina, Castor e Aprígio foram novamente a mansão do judeu Caleb. Ele ficava com um aspecto engraçado enquanto cuidava das lindas flores do seu enorme jardim, que ladeava a fonte em formato de leão. Castor então começou a perguntar sobre aquele símbolo que se repetia, a Estrela de Davi.

Após os cumprimentos, seguiram-se os elogios á casa e ao jardim do judeu gigante, somente despistando para a pergunta que realmente interessava:

- Caleb, o que significa essa Estrela que o senhor colocou em todas as partes da casa?

Caleb corou ligeiramente e então respondeu:

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- É o símbolo de Davi, o mais famoso e grandioso rei do povo hebreu, e, portanto, símbolo da minha religião.

“E no Brasil era símbolo de pessoas que, às claras juravam sobre a Bíblia amarem a Nossa Senhora, mas em surdina ainda viviam sobre as Leis de Moisés.”

“Era comum aqui no sertão que judeus escondidos, fugidos da Inquisição, usassem a Estrela em suas casas, assim como eu fiz na minha mansão. Era o único modo de manter a sua verdadeira raiz, enquanto fingiam ser cristãos.”

- Eu já estudei isso em História – comentou Castor. – Eram chamados de...

- Cristãos-novos. A maioria iniciados nos segredos da Cabala.

- Cabala? – Indagou Castor. - A magia dos judeus... A Estrela

de Davi é o símbolo da Cabala- continuou Caleb – a magia secreta que busca conhecer a essência de Deus a partir da natureza. Acima do bem e do mal.

Castor ia começar um raciocínio a partir do que Caleb dizia significar a Cabala e a Estrela de Davi: a busca pelo conhecimento de Deus a partir da natureza. Acima do bem e do mal.

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Mas foi interrompido por Antônio. Ele vinha com um papel amareladíssimo, e com um sorriso de pesquisador no rosto.

- Vejam só! – Disse ele, e estendeu o papel para Castor e Aprígio.

ESCRITURA PARTICULAR DE COMPRA E VENDA

Fica registrada por essa escritura a compra efetuada por ANTONIO SIMÃO DE ARAÚJO, 40 anos, residente e domiciliado em VILA SÃO BERNARDO, Luiz Gomes, a ANTONIO XAVIER CAVALCANTE, residente e domiciliado em QUINTAS, Pau dos Ferros, da propriedade denominada GRANADA, localizada próxima a QUINTAS, Pau dos Ferros, pelo valor de 90 mil réis.

TESTEMUNHASJosé Simão de AraújoAntônio Xavier FilhoJoão Xavier Cavalcante

23 de maio de 1952.

- Nunca nenhum dos descendentes de Antônio Xavier Cavalcante ouviu sequer falar dessa Fazenda Granada – continuou

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Antonio – O que nos mostra que ela é, sem sombra de dúvida, a mina perdida, a botija que o velho patriarca voltou para entregar a sua neta. E, o que o documento nos revela de mais impressionante...

- É que o homem que Antônio Xavier morreu acusando de tê-lo enganado foi Antônio Simão, o penitente.

Capitulo X A saga de Badalo e Medeirinhos

O fato de partir no “meio do mundo” sem rumo nem direção atrás de um albino especificamente loiro parecia loucura. Para despistar e ao mesmo tempo para ter chances de encontrar alguma coisa de futuro, Castor disse a mãe que ele e Aprígio fariam uma indeterminada visita a Sátiro e Isabel.

Sátiro Pereira e Isabel Fernandes Maia eram os padrinhos de Castor.

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Ela era a irmã mais nova de Tomaz, avô de Castor, e a melhor pessoa do mundo. Sátiro, seu esposo, era um velhinho de 90 anos, cego, mas que morava a tanto tempo na chamada “Baixa do Arroz” que andava tranquilamente naqueles rincões mesmo não enxergando nada. E por conhecer de tudo um pouco na vida, Sátiro talvez soubesse de um albino loiro.

Castor e Aprígio pensavam viver uma aventura como nunca havia experimentado. Pareceria mais com uma aventura se fossem a pé, escondidos de seus pais, perdidos no meio da maior serra do Rio Grande do Norte ou coisa assim. Mas estavam indo na Bros do pai de Aprígio e totalmente aprovados por seus pais, pois se tratava de uma visita inocente.

- Ei cara, precisamos de apelidos. - Apelidos? - É! Somos uma dupla, seríamos

um trio se Verbena tivesse aqui, mas como não está somos só nós dois, e precisamos de apelidos. Se nossa aventura ficar famosa, teremos que ficar conhecidos por nossos apelidos.

- A saga de Badalo e... - Badalo? – Riu Aprígio.

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- É. Apelido de infância, quando eu era mais curioso do que qualquer outro e perguntava tudo.

- A saga de Badalo e Medeirinhos.

- E esse Medeirinhos? - O apelido de pai era Medeirão,

e geralmente me chamam de Medeirinhos ou Medeiros Júnior. Só não vou contar porque o chamavam de Medeirão.

Quanto mais rápido achassem esses albinos, mais rápido saberiam onde estava o livro de São Cipriano, antes que Guilherme achasse e fizesse algo errado. Porque se Guilherme fosse o destinado a encontrar a relíquia, seria ele o sonhador, e não Castor.

A viagem que leva Riacho de Santana a Baixa do Arroz era pela pior estrada conhecida pelo homem. Tanto era ruim como longa, o que levou Medeirinhos a perguntar se ainda estavam no Brasil.

- Tá vendo o que seu amigo nos arruma?

- Não é culpa dele, Castor!- Mas pelo menos vamos visitar

meus padrinhos.

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Depois de subirem um alto íngreme, chegaram a casa de Sátiro.

Era uma típica casa antiga, de paredes altas, alpendre e demais predicados. Na calçada, um velhinho cego e uma senhora baixinha e meiga, linda e adorável até mesmo a distância. Aquela cena resumia perfeitamente para Castor porque a Baixa do Arroz era sinônimo de paz: um dos últimos recantos silenciosos e um pedaço dos seus avós vivos: os melhores amigos deles.

- Padrinho, madrinha! – Gritou Castor.

- Mas é Castor? – levantou-se Sátiro, abraçando-o com uma agilidade incrível.

- Que surpresa boa! Se meu filho tivesse avisado, madrinha tinha feito algum agrado...

- Não precisa se preocupar madrinha, a visita hoje tem motivos sérios.

- Sérios? Alguém de lá está doente ou...

- Não madrinha, é que eu e esse meu amigo aqui precisamos muito conversar com padrinho Sátiro.

- Então me deixe pelo menos mimar você um pouco. Tirar essas

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jaquetas, esses tênis, relaxar um pouco e comer alguma coisa.

Não tinha como não dizer não.

- Padrinho, o senhor conhece algum tipo de família do passado que eram albinos?

- Albino Fernandes era o nome do avô de Isabel, do avô de Tomaz...

- Isso eu sei padrinho, mas me refiro àquele povo branco que mal pode sair ao sol.

- Hum... Estou me recordando. - E tem que ser loiro –

acrescentou Aprígio, ao passo que Castor olhou em desaprovação pra ele.

- Tinha um povo ali praquelas bandas – e com um gesto vago, Sátiro indicou regiões muito extensas para que Castor as nominasse apenas observando – loiríssimo, branquíssimo. Era até perseguido, devido serem incandescentes sol e brilhantes à lua... O povo não acreditava que isso fosse normal, mas afinal, só se casavam primos carnais com primos carnais, tios e sobrinhas, cunhados e cunhadas... Dessa forma o sangue convergiu demais, e o povo foi nascendo muito branco, muito loiro e muito louco também.

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- Nossa que massa – a admiração de Aprígio se deu ao fato do senhor saber daqueles “postulados” de genética.

- Padrinho, onde podemos encontra-los hoje?

- Para sua sorte, tem um viúvo que mora aqui mesmo na Baixa do Arroz.

“Muita sorte” pensou Castor. A vida inteira ele achou que apenas Isabel e Sátiro vivessem ali. Talvez duas ou três famílias a mais, mas nunca ouvira falar de um cara incandescente.

- Então, por favor, vamos lá.Graças a Deus Sátiro não era

muito de perguntas.Descendo um alto e subindo

outro, passando pelas baixas que no inverno ficariam alagadas e dão muito arroz, chegaram a uma casa velha e feia. A do albino.

Capitulo XI Os lacos dos coroneis

- Abel? – gritou Sátiro. - Quem é? -Sátiro! Sátiro Pereira.

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- Ah, não imaginei que seria uma hora dessas.

O homem lá dentro vinha se arrastando.

- Então presumo que venha vindo acompanhado.

Disse isso e abriu a porta.Era branco como uma folha em

branco, como a neve ou como as nuvens num dia ensolarado. Era mais ainda, porque a luz do sol da tarde fazia ele queimar. E seus cabelos loiros, esses eram puro fogo.

- Entrem logo! – ordenou.Dentro da casa pequena e feia,

Abel arrastou três mobílias. Castor localizou Sátiro numa cadeira, e então se formou uma roda.

- A que devo a visita? - Isso é aqui com meu afilhado,

Castor. - Castor? Nome esquisito hein? –

falou o velho, com uma voz que era debochada e enjoada ao mesmo tempo.

- Castor Fernandes. - Hum. Neto do ex-vereador

Tomaz, eu presumo. Pelos cabelos de Tomaz e pelo jeito ignorante do pai de Maria, o finado Amaro. Enfim, você veio tratar comigo, e as pessoas não costumam vir tratar comigo.

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O homem parecia queimar até dentro de casa. Despertava pena.

- Eu preciso – gaguejou Castor – de uma parte do seu cabelo.

Castor esperou que Abel praguejasse e dissesse “o que diabos você vai fazer com meu cabelo?”, mas não.

- Você mora em Riacho de Santana, certo?

- Certo.Abel examinava Castor como se

examinasse um porco que iria para o abate.

- Conhece Henrique Lopes? -Conheço! - Sabia que ele é neto do Coronel

Fontes? - Sabia sim. O coronel que ajudou

a construir a capela... - Velho nojento aquele Fontes... Abel se levantou e mostrou a

perna que mancava. Depois que ele levantou parte da calça, ela tinha uma grande cicatriz.

- O tiro de uma das balas especiais do velho coronel. Ele caçava coisas da noite, ou então do dia... Desde que fôssemos coisas do demônio.

Diante do silêncio, Abel continuou, depois de se sentar:

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- Um caçador, amador, mas caçador. Procurava de tudo e em todo canto. Ele e o filho dele que era delegado de Riacho de Santana. Lobisomens eram seu alvo favorito. Mas nós ficamos na mira dele, depois que desconfiaram da nossa suposta capacidade de brilhar ao sol. “Soldados do Apocalipse” foi do que fomos chamados.

Ele tentou rir, mas não conseguiu. - E aqui está o resultado. Garanto

Castor, que lhe dou meu cabelo se você trouxer uma arma do coronel. Uma focinheira que ele tinha, especial para bichos grandes que se encontram na noite...

- Hum... E o senhor espera que eu consiga isto com Henrique, certo?

- Certíssimo. - Fechado então!Castor se levantou e se despediu

do velho. Ele e Aprígio pernoitariam na casa dos padrinhos, e no outro dia cedo iriam a Riacho de Santana em surdina para conquistar a arma do coronel.

Para Castor, ele estava perto de provar para todos que todos eram loucos. Os que acreditavam em livros de magia, tia Júlia e seus lobisomens, o Coronel Fontes e suas caçadas, Jerônimo e as mães d’água. Ele iria

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provar, pois como havia dito, não tinha sonhos com um burro para nada.

Medeirinhos e Badalo encontraram ótima guarita na casa de Sátiro e Isabel. Boas camas, bom café da manhã.

A única coisa que não foi boa foi encontrar um papel que parecia que estava escondido. Castor leu e releu, mas não conseguiu acreditar.

- Madrinha, eu sei que fui mal-educado em ler esse exame da senhora, mas eu entendi certo o que li? Quero dizer...

Isabel olhou para Castor forçando um sorriso.

- Ao que parece, leu sim meu filho...

- Mas madrinha...Quando as palavras iam sendo

substituídas por lágrimas, Castor apressou-se em abraçá-la.

- Eu já perdi meus avós, e agora...

- Fique quieto – e se afastou sorrindo – Ainda não sabemos de nada não é?

Era incrível como aquela mulher conseguia deixar todos apaixonados pela sua temperança frente à vida.

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Ela era agora uma mulher doente com um marido cego vivendo no fim do mundo, mas estava tranquila. Então Castor também teve que ficar.

A ida a Riacho de Santana naquele dia foi feita em surdina, para que os pais de ninguém estranhassem. E tudo aconteceria realmente às escondidas, se Castor não encontrasse, na rua principal, onde morava tia Júlia e Henrique – vizinhos – sua prima Catarina.

- Castor! –gritou ela, como se fizesse anos que não o via.

Correu até o encontro dele e de Aprígio, que desciam da moto e já espiavam para ver se encontravam algum sinal de que Henrique estivesse em casa.

- Você tem que vir comigo e agora! – falou ela.

- Não posso. Estou resolvendo um assunto muito sério, depois eu posso até te falar.

- Você tem que vir! – gritou.E puxou ele pelo braço, com uma

força incrível. Ele viu que teria que atrasar o plano e então pediu para Aprígio esperá-lo.

Eles desceram o arruado mais antigo da cidade, onde haviam as

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casas de Júlia, Henrique, Elias, do falecido Fontes – primeiro delegado e filho do dito Coronel Fontes – e mais umas duas. No fim, havia um beco que dava para a outra rua, e assim Catarina parecia leva-lo para a última rua do centro.

- O que foi Catarina? – enraivou-se Castor.

A menina de cabelos cacheados se virou para ele, não chateada, mas visivelmente preocupada.

- Eu toquei numa mulher e vi uma cena horrível, talvez a mais horrível que eu já vi na minha vida... Ela passou por uma humilhação tremenda e eu preciso que você me ajude.

- Ajudar com o quê? E quem foi essa mulher? Olha Catarina, eu não acredito que isso seja real, esse seu dom, e você sabe disso.

- E os seus sonhos? Você pensa que Aprígio não me contou?

- É diferente de tocar numa pessoa e ver coisas que aconteceram com ela...

- Enfim, o nome dela é Márcia, eu acho. Ela mora num sítio. Eu não conheço bem o cara que humilhou ela, não consigo lembrar o nome. Por isso que eu te trouxe até aqui.

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Ela parou em frente a uma casa na Rua Joaquim Soares, e chamou:

- Ô de casa! – e se virou para Castor – uma prima dela mora aqui. Ela tá aqui hoje.

Alguns segundos depois e então a tal Márcia saiu. Era uma mulher baixa, simples e aparentava ser sofrida, por algum motivo. Catarina pegou na mão de Castor, correu até a mulher e cumprimentou-a, apertando sua mão.

Então Castor entendeu o objetivo de tudo.

Aquela situação foi determinante para que Castor mudasse seu ponto de vista sobre o mundo. O segundo que ele pensou serem minutos mostrou a ele uma cena simples, mas que deixaria qualquer um com pena extrema. Aquela Márcia, que aparentava atualmente ter uns 40 anos, encontrava-se, na visão de Catarina, mais nova uns 10 anos.

Ela vinha com uma garotinha, que a chamava de tia, e que pela fisionomia tinha uns sete anos.

As duas iam até uma mansão branca numa das ruas do centro de Riacho de Santana, cansadas e ofegantes, talvez porque viessem a pé desde o sítio onde moravam até Riacho de Santana.

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A mansão branca estava cheia de pessoas de todos os tipos, alguns conhecidos de Castor, como um cara chamado popularmente de Naldo, mas cujo nome verdadeiro era Antônio Ronaldo. Ele estava mais novo alguns anos.

Márcia ia entrando na mansão apinhada de gente, quando Naldo pulou em sua frente e disse:

- Aonde a senhora pensa que vai? Já esqueceu como as coisas funcionam? Esqueceu em quem votou na campanha passada?

Márcia fez menção de responder, mas uma voz lá de dentro da mansão gritou:

- Pode deixa-la entrar. É bom que ela entre.

A voz vinha de um escritório, para onde se fazia fila, e era alta, sonora, clara, precisa, de um verdadeiro líder.

Márcia passou na frente de inúmeros conhecidos de Castor que estavam na fila para aquela sala. Lá, sentado em porte de rei, um homem extremamente alto, cabelos volumosos bem negros. Era como se o olhar daquele homem perfurasse a existência da camponesa, mas ela rapidamente se encheu de coragem e falou. Pelo medo que antes

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emanava dela, Castor sentiu uma grande admiração pela coragem repentina.

- Ulisses, é que... - Correção senhorita, Doutor

Ulisses – falou a voz grave e solene – É assim que me chamam, quando querem que eu ouça.

- Doutor Ulisses – apressou-se Márcia em corrigir – bem, me desculpe. É que minha sobrinha aqui, a Gisele, ela está muito doente Doutor. Eu já a levei para consultar em Pau dos Ferros, e o caso dela é meio grave, e como o senhor é prefeito Doutor...

- Olhe Márcia – é Márcia seu nome, certo? – Bem, eu acredito que o motivo que a levou a me procurar somente agora, ou seja, o motivo que a fez levar sua adorável sobrinha para uma consulta que outro médico que não eu, é a chave para responder seu pedido.

- Vamos – continuou ele – me diga abertamente. Você sabe que eu sei de tudo.

- Doutor, a gente foi adversário na última campanha, o senhor sabe...

- Sei sim. Apesar de sermos parentes ainda.

- Em terceiro grau.

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- Mas mesmo assim você, seus pais, seus irmãos, todos ficaram contra mim.

- Existem motivos mais graves que nos impediam de votar no senhor. E foi por isso que eu relutei em consultar minha sobrinha aqui. Mas agora é seu dever, como prefeito e médico de Riacho de Santana, nos ajudar a zelar pela saúde da minha sobrinha...

- Eu faço o que eu quero com a prefeitura. Faço o que eu quero com Riacho de Santana. E no momento o que eu tenho para você é nada.

- Mas...- A não ser que você e toda sua

família venham aqui e me peçam perdão. E se comprometam em votar sempre comigo e com meu candidato.

- Mas, mas... – gaguejou Márcia. - E é só. Naldão, pode retirá-la.Antes que Naldão chegasse e

usasse de força, Márcia fez com a sobrinha lhe seguisse, e saiu correndo. Como a casa estava cheia de gente ela esbarrou em muitos, e quando finalmente saiu daquele inferno, estava em lágrimas e tão atordoada que esbarrou em dois homens, que brutamente a empurraram. Ela perdeu o controle e

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caiu por cima das bicicletas dos inúmeros servos de “Doutor Ulisses”, ficando machucada e toda suja de terra. Ao se levantar, Naldão ria, os outros observavam. Mas o olhar que Márcia lançou para a mansão branca foi do mais profundo desejo de vingança e remorso.

Quando a visão de Castor voltou ao plano real, ele não sabia se estava mais espantado com o fato de sua prima Catarina realmente estar certa em relação a visões ou com a humilhação sofrida por aquela mulher diante de uma situação tão desconfortante quanto a doença de uma criança.

Catarina despistou Márcia facilmente. Era difícil explicar porque ela e um primo haviam aparecido do nada para tocar nela e ir embora. Mas Catarina parecia ter certa amizade com ela.

Quando saíram daquela rua, sentaram-se num banco da praça.

- Eu descobri que dá pra pedir – disse Catarina.

- O quê? - Uma visão. – Ela riu como se

estivesse contando uma piada – é engraçado. Mas parece que a clarividência está em nossas mãos.

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Castor olhou para as nuvens poucas naquele dia ensolarado e ventilado. Já havia visto dizer que as pessoas tinham revelações formando imagens com as nuvens. E também de videntes que viam coisas sobre as pessoas ao toque. E também em sonhos.

Será que a realidade era um pouco mais fantasiosa do que ele pensava?

Bem, mas a trajetória rumo a descobrir todos esses mistérios continuava na casa de Henrique, perto dali, onde Aprígio o esperava.

- Catarina, você disse que precisava da minha ajuda? Com essa visão?

- Quem é esse Ulisses Castor? - O nosso ex-prefeito. Foi eleito

três vezes. Você nunca ouviu falar dele?

- Não que eu me lembre... - Muito lezada mesmo! Ele até

hoje é considerado o dono da cidade sabe? Ele apoiou o atual prefeito, Jonas, por dois mandatos, e agora é a vez da sucessão. Catarina, eu vou subir, Aprígio tá me esperando...

- Certo vai lá! Vou para casa já.Castor subiu a rua com vontade

de contar as novidades para Aprígio, mas já prevendo que ele ia dizer “eu

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sempre soube que um dia você ia descobrir que o mundo real não é tão normal quanto você pensava”, aquelas frases enormes dele.

Mas, antes que contasse qualquer coisa, só explicou que Catarina precisava de sua ajuda, pois a cara dele estava de muita ansiedade para falar logo com Henrique. E Castor, mais ainda. Agora ele estava encarando o mundo de outra forma, e quando ele e Aprígio olharam na direção da casa de Henrique, o olhar de Castor possuía coragem e curiosidade. Porque algumas coisas estranhas do mundo podiam ser resultado da genética influenciada pelos costumes bizarros dos sertões, mas algumas não tinham explicação naquele plano do mundo. E o Coronel, avô de Henrique, que motivos tinha para crer e caçar lobisomens?

Uma mulher de meia-idade de cabelos meio azulados e curtos abriu a porta para eles quando bateram.

- Bom dia senhora, desculpe o horário, mas, precisamos muito falar com Henrique.

- Bom dia! Me chamo Mirna, sou irmã de Henrique. Ele está ali dentro

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lendo. Porque não entram? Posso servir um café para vocês.

As paredes da casa estavam cheias de retratos de antepassados de Henrique e Mirna, dos Fontes e dos Lopes.

Henrique estava na salinha antes da cozinha, um excelente local para leitura com uma minibiblioteca, e era exatamente no local onde antes ficava o sótão da casa.

-Castor e Aprígio! Quanto tempo desde aquele incidente maluco. A que devo a visita?

Sem se incomodar com a presença de Mirna, Castor desenterrou toda a história, sem poupar detalhes, do conto fantástico que viviam, o qual ele queria desmascarar o mais rápido possível em virtude da relação íntima que estava começando entre ele próprio e os fatos. Só escondeu a parte dos seus sonhos. E finalmente falou da corrida pelo livro negro e chegou à parte em que apenas Henrique poderia ajudar.

O estudioso observou a casa como se pensasse no que dizer, mas quando percebeu que isso era óbvio demais, começou:

- Bem, meu avô tinha lá suas excentricidades, como todos da

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família Fontes. Eu não puxei muito esse lado. Veja que o fato de alguém desaparecer pela tarde e só retornar ao amanhecer nunca me atraiu. Não creio em lobisomens, em resumo. Mas meu avô, meu tio, todos sempre estavam preparados para qualquer possível ataque. Nem só de lobisomens, existiam rumores de outras aparições bizarras também. Isto despertou a atenção do meu pai para a família de Abel.

-Eu acredito em lobisomens – disse Castor, engolindo em seco depois. Aprígio olhou admirado para ele, como se fosse outra pessoa que estivesse ali. Afinal, Castor nunca, jamais, admitia nada que fugisse a realidade, a vida normal – e acredito, é claro, que a família de Abel em nada se assemelha a uma coisa maligna, que precisa ser perseguida. Mas existe algum ruim, sim, nesse livro de São Cipriano. Se me entregar a arma do seu avô, terei um fio do cabelo de um albino louro, e aí terei a espada, que Jerônimo tanto quer. Por fim terei a informação que quero.

Henrique se levantou e subiu até o sótão velho da casa e desceu com uma focinheira enorme, de couro e ferro.

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- É tolice acreditar que exista por essas bandas algum animal tão grande.

Realmente, se aquela focinheira fora desenhada pensando em um lobisomem real, Castor queria morrer sem ver um lobisomem. Quando se aproximou da arma, Henrique afastou-a dele bruscamente.

- Espere aí. Já que as coisas estão assim, também não vou te dar isso de graça!

- Era só o que me faltava! E o que o senhor quer em troca disso? – Disse Castor, levantando-se.

- Quero que vá a Venha Ver para mim. Uma cidadezinha vizinha de São Miguel, ao pé da serra.

- Eu sei mais ou menos onde fica. - Pois bem, lá existe um povo

anão muito peculiar e importante para uma pesquisa que eu estou fazendo. Preciso de algumas informações, mas não posso me retirar de Riacho de Santana agora.

- Então sou eu que preciso ir lá por você.

- Se quiser mesmo descobrir o segredo, se é que existe, do livro de São Cipriano.

- Okay. Vamos Aprígio. E, obrigado pelo nada de agora, Henrique.

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Castor pensava que só faltava o anão querer uma escama de dragão. A mente de Castor estava se abrindo para coisas menos fantasiosas, como lobisomens e maldições, mas não ainda para dragões.

Capitulo XII O Cemiterio dos Anoes

Aproveitando-se que ninguém sabia, ainda, da sua rápida passagem por Riacho de Santana, Castor tratou de ir rápido com Aprígio para a cidadela de Venha Ver. O trajeto podia ser feito “por dentro”, desbravando serrotes, serras, matas densas, o que seria muito mais heroico. Mas Castor e Aprígio, heroísmos a parte, tomaram o caminho que, apesar de mais rápido, era geograficamente bem mais longe dos contrafortes da serra que unia os municípios de Coronel João Pessoa e São Miguel. Venha Ver

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fica numa posição levemente parecida com a de Riacho de Santana. Quer dizer que fica bem no meio de serras, mas neste caso apenas a Serra de São José se destaca, e lá tem um clima mais agradável, que pros nordestinos se lê “frio”. Depois de uma hora de viagem, o paredão verde de São José se erguia diante dos dois aventureiros de moto. Poucas casas formava a urbe simpática de Venha-Ver, onde devia haver anões.

Castor pensava que tais anões não deviam ser uma aberração natural, não uma família que sofria comumente de nanismo, mas sim um grupo de várias famílias que, se casando sempre entre si, primos com primos e por aí vai, tinham concentrado os genes demais e aí resultou em pessoas baixas demais. Mesmo caso dos albinos.

Em toda a Venha Ver todo mundo conhecia os Fernandes pequenos, diferentes dos Fernandes grandes.

- Ali perto do cemitério mora Débora, que é filha de Abraão Fernandes pequeno. Ela se saiu meio alta, pouca coisa, mas mais alta que os pais e os outros irmãos, tios, primos... – Informou uma velhinha.

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O acaso, fator mais importante da genética, pensou Castor.

Dirigindo-se ao cemitério de Venha Ver, encontraram umas casas todas muito aproximadas em aparência e idade, que supuseram ser todas de uma mesma família. Todas tinham até mesmo as velhas cruzes de palha da semana santa do ano passado. Era costume também na família de Castor, como em inúmeras outras, benzer ramos de diferentes árvores no Domingo de Ramos (celebração que abre a Semana Santa) e com as palhinhas formar uma cruz e afixar na porta, para se proteger do mal. As cruzes têm até um formato engraçado, são como se fossem duas, uma um pouco mais acima da outra, como se fossem então seis braços.

Tinha uma casa que estava aberta, então foi até essa que Castor e Aprígio se dirigiram. Bateram palmas e então uma mulher de traços quase, quase asiáticos, mas de tamanho baixo e expressão que decididamente tinha algo de muito europeu.

- Bom dia! No que posso ajudar vocês?

- Estamos procurando Débora Fernandes, dos pequenos.

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- Sou eu mesma. Só não sou tão pequena assim.

Débora estava com um avental, e pelo visto nas proclamadas lutas da mulher de interior. Naquele momento Castor sentiu, sabe-se lá porque, uma semelhança entre Débora e Abel. Algo que era comum aos dois, mas, não havia a olho nu menor similaridade. “Impossível dois seres mais diferentes” pensou ele. Ela era baixa, cabelos pretos, pele branca, e Abel era alto, de cabelos muito loiros, olhos muito claros e pele faiscante. Não podia haver semelhanças.

Deixando isso de lado, Castor foi direto ao assunto.

- Bem, é que eu me chamo Castor, sou de Riacho de Santana, e junto com esse meu amigo aqui, o Aprígio, precisamos fazer um trabalho de história sobre Venha Ver. E nos indicaram a senhora...

- Bem, não sei porque indicaram a mim, mas, vamos lá, o que vocês querem saber?

- Quem sabe algo sobre sua família seria bom pra começar – engendrou Aprígio.

- Então vamos ali no cemitério. Tem uns túmulos bem antigos, dos meus avós e bisavós.

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Débora fechou as portas da casa e Castor e Aprígio a seguiram até o cemitério da cidade.

Rústico como todo cemitério de interior, fiel à descrição de Rachel de Queiroz (um quadrado de terra triste, feio e sem luxo algum) o cemitério de Venha-Ver não era assustador ou coisa do tipo.

Enquanto Débora os conduzia por entre alguns cercados e grades de ferro, Castor ia notando que alguns túmulos tinham seixos, pequenas rochas, enfeitando-os sinistramente.

Quando finalmente chegaram a um túmulo bastante antigo, Castor notou que este é que tinha seixos. De muitas cores e tamanhos, o túmulo tinha as inscrições:

MOISÉS FERNANDES1895-1995 - Esse era meu bisavô, patriarca

dos Fernandes pequenos.Castor observou atentamente o

túmulo. “Se o velho Moisés havia morrido há apenas 17 anos, o túmulo decerto que tinha sido construído para o Moisés Fernandes sênior ou seja lá quem fosse. Aparentava ter uns cinquenta anos”, pensou Castor. Mas nem os seixos nem a idade do túmulo eram o mais impressionante, mas sim que, em vez de um terço ou

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algo ligado a Igreja Católica pendurado na cruz do túmulo – como é de costume em cidades interioranas predominantemente católicas como Venha-Ver – tinha um medalhão mui antigo. Tremendo um pouco, Castor tirou as sujeiras e a terra de cima do medalhão para poder ter certeza do que se tratava: uma Estrela de Davi em ouro.

Aproveitando-se que Débora se entretivera com outro túmulo da família e que Aprígio estava demasiado com frio para prestar atenção em alguma coisa, Castor surrupiou a relíquia para debaixo da sua roupa. Ela estava quase camuflada pelo tempo e pela poeira, então ninguém ia dar falta.

- Acho que terminamos por aqui – disse finalmente.

O dia já tinha andado bastante quando Castor e Aprígio deixaram Venha-Ver, após almoçar na casa de Débora, que morava sozinha e ficou feliz pela companhia. Quase que Castor sentiu um remorso de roubar aquela relíquia da família dela. Só que um desejo impulsivo se apoderou dele, não pela estranha certeza que lhe acometeu de que aquilo era de fato ouro, mas sim pela familiaridade do símbolo.

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De Venha-Ver para Riacho foi um pulo, devido a ansiedade.

- Formidável sua descoberta – disse Henrique, analisando o medalhão com seus óculos especiais – e muito intrigante e interessante para mim. Pode ficar com ele Castor.

E entregou o artefato para o jovem, que de repente se sentiu um personagem de algum livro que recebia sua própria vida materializada, sua joia mais preciosa.

- Castor, pare de olhar para esse medalhão com esse olhar cara. Tá parecendo que...

- Ah, e pode ficar com essa velharia também – disse Henrique, interrompendo o raciocínio de Aprígio e entregando a focinheira velha para ele.

- Pronto. Muito obrigado – Castor guardou a Estrela no seu bolso, de onde ela demoraria muito para sair.

- Eu que agradeço a vocês, vocês não sabem o quanto.

E Castor, se virando para Aprígio, fez um gesto que indicava, vagamente, a Baixa do Arroz. Aquela aventura ia ter fim ainda naquele dia.

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Logo mais anoiteceria, e Castor passou rápido pela casa dos padrinhos, principalmente para não ter que se demorar muito em ver aquela que tanto amava e que tanto estava doente.

Desceu feito desesperado a ladeira até a casa de Abel. Bateu forte na porta, e esperando o velho albino incandescer naquele fim de tarde, quase caiu para trás com a figura feminina, igualmente incandescente que apareceu.

- O Seu Abel está aí? - Você trouxe o que ele pediu? Aprígio ia, como um cachorrinho,

entregar a focinheira velha para a garota quando Castor o impediu.

- Se você me deixar entrar e conversar, quem sabe eu te responda.

Por um instante Castor pensou que aquela moça iria inflamar como o último raio de sol no horizonte e fritar ele, e depois fritar Aprígio, com os olhos. Mas aí anoiteceu e a expressão de fúria dela foi abrandada, pois a luz da lua aquele povo fica fluorescente, o que é bem menos intimidante. Como se tivesse percebido isso, a garota se afastou e revelou a mesa velha da casa e Abel

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sentado lá, como se dormisse de olhos abertos.

- Ah, são vocês! Conheceram minha neta Adelia. É dela que vocês vão ganhar a recompensa por nos darem uma recompensa depois de anos de perseguição. Creio que os cabelos dela sejam melhores do que os meus, seja lá o que for que vocês vão fazer com eles.

- É. Na verdade conhecer é modo de dizer – disse Castor.

Adelia aparentava ser uns dois anos mais velha que ele e Aprígio. Tinha longos cabelos loiros, iguais aos do avô e vestia roupas meio estranhas para uma adolescente daquele mundo. Pareciam ser de alguém que caçava.

Do nada a estranha garota sacou uma tesoura e cortou uns dois palmos de cabelo, sendo que nem assim eles ficaram curtos demais. Entregou o montante meio vermelho meio amarelo a Castor e disse abusada:

- Me entregue a focinheira, agora!

- Aprígio, por favor!Aprígio entregou a ela, e recuou.Adelia observou o instrumento,

correu e abraçou o avô, que havia se levantado.

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- Pronto vô, vamos ver quem são os lobisomens de verdade agora.

- Ainda existem lobisomens? – indagou Aprígio, ao passo que Castor ficou sinceramente interessado.

- Deixe isso comigo por enquanto. E se puderem se retirar.

Foi um dia estranho, pensou Castor. Em meio a todas aquelas anomalias genéticas bonitas e ao mesmo tempo intrigantes, o coração de Castor por um instante devaneou-se para o lado antigo, de que essa história de trevas não existia. Lobisomens são frutos de lendas eslavas sobre homens-lobos e não maldições... Não existem livros de magia negra e os penitentes são fanáticos e iguais ao primo de Aprígio, viam coisas onde não existiam e pagavam pelo preço de suas fantasias.

Mas, ele sonhava com um burrinho de tropa lhe guiando por aquele nordeste mítico e desconhecido, e os sonhos faziam sentido, e havia uma repetência macabra de um símbolo hexagonal, a Estrela de Davi. Motivos suficientes para, ainda naquela noite, antes de ir para casa, passar pelo Centro

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Espírita e dar início ao fim daquilo tudo.

Já era noite e, Castor não pode deixar de notar o quanto Riacho de Santana parecia mais esquisito, aos seus olhos, durante a noite. E estava sozinho, pois Aprígio estava deveras cansado. Quando finalmente chegou no Centro Espírita, suado e cansado, eis a surpresa de quem estava saindo de lá.

- Marta? - Olá Castor? Já voltou?Ela não parecia surpresa em

encontra-lo ali. - Ah, deve estar se perguntando

o que eu faço aqui. Bem, é que eu sou espírita sabe? E Jerônimo me disse que ia sair por tempo indeterminado, um longo tempo, aliás. E conta comigo para fazer uma limpezinha aqui durante esses dias.

A sedutora empregada de Castor não parecia surpresa em vê-lo ali. E nem poderia, pois somente Henrique, Antônio – outro sumido – ele e Aprígio sabiam dos negócios escusos que tinham em comum com Jerônimo. Então, ele tratou de se acalmar, pois só assim poderia desviar o olhar das pernas e seios de Marta enquanto voltava para casa, com um monte de cabelos loiros na

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mochila, e pensar no plano B que lhe ocorrera devido uma brilhante revelação.

Capitulo XIII O buraco sem fundo

- Preste atenção Aprígio, vê se entende cara! Jerônimo só colocou a gente em roubada, mas, essa espada é a chave para tudo, desde a

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primeira vez que esse cara conversou com a gente. Ele a quer, porque ela é o que pode destruir o livro de São Cipriano. Lembra-se do meu sonho? Tinha uma bainha nele.

- Vamos que essa bainha seja da espada que Jerônimo quer que capturemos da mãe d’água. Então porque o penitente que a tinha em mãos não destruiu o livro e o que essa espada faz com um espírito das águas num tal buraco no meio do nada?

- Essa história não é para fazer sentido mesmo. E esse “buraco” é a mina perdida que o avô de Joaquina tanto chorou porque perdeu. Lá estava a espada que destruiria a fonte de sua riqueza, o livro negro de São Cipriano. Por isso o ódio do falso amigo penitente, da serra de Luiz Gomes. Então, seguindo as orientações dele, vamos encontrar o buraco sem fundo mais ou menos entre Paul e Quintas.

- Que seria onde a Estrela aponta pela direita. Genial! Mas mesmo assim, existem muitos quilômetros entre o Paul e Quintas.

- É verdade. Mas acho que se minha visão é privilegiada durante sonhos, talvez dormindo eu possa ver alguma coisa.

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Castor e Aprígio estavam sentados na calçada de dona Laura conversando essas coisas, quando Aprígio quase gritou.

- Cara, eu acho que tive uma ideia.

- Fale então! - Vamos para um local bem

silencioso e calmo, pra você relaxar, coisa assim, e ver o que acontece. Durante o sono não podemos controlar nossa mente, e sabe-se lá quando você vai dormir tranquilo de novo, com esse monte de coisa na cabeça.

-Só consigo pensar no cemitério.- Cemitério? Vai se deitar em

cima de um túmulo? - Não necessariamente. Debaixo

de uma daquelas árvores esquisitas. - Então vamos lá!

O cemitério de Riacho de Santana, ao contrário do cemitério que eles haviam visitado ontem, era bem assustador. Todos sempre diziam isso, mas apenas agora Castor admitia que o lugar não era dos melhores. Mas, nada que a curiosidade não vença.

Enquanto Aprígio ficou do lado de fora do cemitério, Castor se deitou

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debaixo de uma árvore com flores brancas que estava sempre florida. Pensou firmemente, quase como se estivesse dormindo e em total contato com seu mundo interior, para descobrir em qual dos quilômetros entre Paul e Quintas estava a tal caverna sem fundo.

Não era fácil dormir ali. O clima debaixo da sombra, a brisa, o calor até certo ponto gostoso...

- Ahhhhhh!“Como Aprígio não ouviu esse grito que eu dei?”

Castor se deu por conta que não estava no cemitério, estava em casa. Mas uma casa meio diferente. Sem seus pais, irmã e sem Marta. Muito calada, mas aí apareceu alguém. Na verdade algo. Uma sombra preta que Castor estava lutando para discernir.

- Calma, cachorrinho. – sussurrou ele. Na verdade, ele pensava estar sussurrando, mas as palavras proferidas alcançaram um eco incrível. Do mesmo jeito que a sombra do cachorro foi crescendo e Castor lembrou-se do pesadelo de infância: um cachorro do tamanho de um boi que lhe atacava. “Papai, papai!” gritava o menino Castor, mas o cão falante continuava ali, inerte as súplicas da criança de oito anos.

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Mas antes que o cachorro lhe atacasse, Castor meio que entendeu que aquilo estava dentro de sua mente e que podia manipular aquilo a seu favor.

Então tratou logo de retirar sua mente daquele pesadelo e se direcionar a verdadeira localização da mina tão procurada.

O caminho que Castor foi visualizando, a partir da visão que obtivera, era tortuoso, e a certo ponto teve que descer da moto e fazer o percurso a pé, desvencilhando-se sobre cercas de pau-a-pique, tocos e brocas. Até que viu um casarão velho, mais ruína do que casarão propriamente dito, e do lado dele, uma sombria caverna. Aproximou-se rapidamente e sentiu no ar um clima pesado. Correu para a ravina e olhou seu interior, que segundo as lendas, não tinha fim. Admirou ociosamente o silêncio imponente daquela região longe da civilização. Até que este foi interrompido por um galho quebrado. Virou-se e encontrou um velho típico do interior. Óculos escuros, roupas de roça e chapéu de palha.

- Prazer, Galdino! - Prazer, Castor.

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Castor não teve tanto prazer. Não esperava outra criatura humana naquele longínquo lugar, àquelas horas.

- Eu sei o que você tá procurando. Se você confiar em mim, eu posso te ajudar.

- Não sei se posso confiar em alguém que acabei de conhecer, ainda mais nesse fim de mundo. Quem é o senhor?

- Já disse. Sou Galdino. E sei que você está atrás da espada. Eles estiveram aqui esses dias atrás também.

- Eles quem? - O que se diz professor

Jerônimo. Ele não teve muita sorte. E também Caleb.

- E se eu disser que confio em você, o que o senhor me diz?

- Lhe diria para usar um pouquinho a inteligência, e lembrar que é impossível existir um buraco sem fundo... – A voz do tal Galdino, Castor pode anotar pra si mesmo, não combinava com a indumentária roceira. Era voz de advogado, médico, político... Alguma profissão que exigia uma boa oratória.

- Mas é claro que eu já sei disso. Mas no que isso me ajuda nessa

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busca que o senhor pelo visto conhece tão bem?

- Vai lhe ajudar a ver que nem tudo é o que parece, ou nem tudo é o que se ouve.

O velho que havia se identificado como Galdino foi até a ravina, se aproximou bastante e chamou Castor para se aproximar também.

- Lembre-se de tudo que já aprendeu e ouça!

Lembrando-se da experiência que já tinha tido quando achou o caminho até aquele local, Castor apurou seus ouvidos da alma e esperou... Havia algum ruído ao fim daquela ravina, e ele sabia o que era... Um som de água corrente.

O som da água corrente levou Castor e Galdino por um bosque seco até uma região mais subterrânea, onde havia um córrego que passava exatamente por debaixo da ravina. O córrego banhava uma piscina natural feita do próprio lajedo, escavada na própria pedra. Era funda e, portanto deveria ser uma mão na roda numa seca. O local era inóspito e de difícil alcance, e logo entendeu porque achavam que o tal buraco era sem fundo. Mas era de uma beleza e paz inigualáveis.

- Vamos esperar a mãe d’água.133

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Castor encheu o pulmão e gritou: - Mãe d’água! - Você é louco menino? Não se

invoca uma mãe d’água assim. As mães d’água são a própria água. São seres imortais e metamorfos poderosos, podem tomar qualquer forma humana e se elas se sentirem insultadas...

A voz de Galdino foi interrompida. A água do lajedo, límpida como Castor nunca tinha visto, começava a borbulhar. E das bolhas surgiu uma forma. Uma mão, depois um rosto seguido de um busto, tronco e membros inferiores de uma bela mulher, feita d’água. Trazia na mão uma espada, mas ela não era feita d’água. Era comprida, talvez tivesse uns 100 centímetros de lâmina. Não era o tipo de espada que Castor costumava manejar, mas sem dúvida ele gostaria de possuí-la. A criatura das águas se aproximou de Castor, e quando Galdino pensou que ela iria fazer ele em pedacinhos com a arma, ela fez uma profunda reverência, como se Castor fosse um rei. Ela continuou abaixada, e então entregou a espada para Castor. Quando Castor a tocou, o ar desenhou na espada uma fina Estrela de Davi.

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- O que? – disse Galdino. – Então, você não deve ser quem eu pensava.

- Do que você tá falando? - A Espada foi feita para um

verdadeiro penitente... E ela obedece você! – Galdino falava mais para si mesmo do que para Castor.

- E que problema tem? -Logo você vai descobrir que

admirar tanto os penitentes não é algo, digamos, tão bom assim. Tenho que ir, até mais!

Castor teve a impressão de que Galdino sumiu em pleno ar, mas pode ouvir seus rápidos pés subindo o caminho que os levara até ali. Quem ele era, não sabia. Mas agora ele tinha uma espada legal.

De volta a Riacho de Santana, disfarçando a espada numa caixa de violão – que ele levara por precaução – Castor ouviu de Aprígio que Jerônimo não havia retornado e que não havia sinal de nada interessante no Centro Espírito.

- Castor você e seu amigo não querem comer alguma coisa? – perguntou Marta.

Aprígio fez uma cara de nossacaraelaémuitogataputaquepariu que Castor logo entendeu.

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- Não, obrigado. Precisamos ir lá em Antônio.

- Antônio saiu faz um tempo. – disse Isa, mãe dele. – Foi a Luiz Gomes, visitar o padre Pedro.

Capitulo XIV O ultimo dos penitentes

- Com sorte nós o alcançamos – disse Castor.

- Subindo a serra a pé, como os penitentes?

- Não, roubando o carro lá de casa.

Foi a coisa mais louca que Castor já tinha feito em sua vida. Mas Marta concordou em acobertá-los, o máximo que pudesse.

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Dentro de alguns minutos, já se encontravam na agreste serra de Luiz Gomes, que não estava muito verde. E tomaram o conhecido rumo que, em cidades de interior, sempre leva a capela. Localizaram a sacristia e se dirigiram á passos largos até lá. A porta estava aberta e logo viram o Padre Pedro, o amigo dos penitentes. Careca, com uma aparência de quem tinha envelhecido muito nos últimos dias.

- Boa Noite Padre, sou Castor Fernan...

- Sei bem quem é – a voz cansada dos quase noventa anos de Pedro respondeu ríspida – e também sei o que quer.

- Sabe? - Respostas! E eu as tenho. Pedi

para ele não contar nada a ninguém, mas pelo visto ele encontrou as pessoas certas. Por favor, sentem-se e não me interrompam. O que eu vou contar-lhes talvez faça parte do maior segredo da humanidade.

- O princípio do livro de São Cipriano, o que o torna tão desejado e ao mesmo tempo perseguido, está no medo. Para me entenderem melhor, é preciso que saibam que é como se existissem dois tipos de

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pessoas... Não duas espécies, nem duas almas... Apenas diferentes no sentido de que, enquanto uma minoria nasce, de tempos em tempos, com uma sensibilidade aguçada, a maioria dominadora nunca viu nada além de cheques, trabalho e férias. Isso porque a sabedoria é uma coisa que vai de poucos para o todo. Se todos vissem além do véu da sobrenaturalidade, o mundo seria um caos. Aqui nesta sacristia, por exemplo, encontram-se três, digamos, visionários do mundo como ele é. Ao longo da história, as pessoas que se sentiam diferentes formaram grupos diferentes, como os penitentes. Eles tinham sua própria simbologia – o alto, o açoite – o que diz muito sobre a forma deles verem o mundo. Submissão à Deus como a única forma de conhece-lo. Entretanto, nem todos viam assim.

- São Cipriano – disse Castor. - Exatamente. São Cipriano e

outros, como Nicolau Flamel, alquimista, tinham um olho aguçado demais para as possibilidades que o mundo oferece. A magia – ou a alquimia – não passam de estudos sobre a natureza. É como o sertanejo que interpreta o acasalamento dos

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besouros mongangás para adivinhar a chuva, ou então o pio do nambu.

- Está tentando nos dizer – começou Aprígio – que tudo isso é real?

- Para uma coisa ser real, basta que as pessoas acreditem – disse Castor.

- Vejam bem. Pensem na criação do mundo. Deus é o princípio de tudo e, portanto, o próprio tudo. Ninguém criou a Ele porque Ele é o próprio universo, o universo respirando, amando... E como somos feitos do pó da terra, somos feitos do próprio Deus.

- “Á sua imagem e semelhança.” – murmurou Aprígio.

- Exatamente. Não há um só centímetro deste universo onde Deus não esteja presente. É por isso que existem plantas que curam e que matam. Ora, se existem plantas que levam a morte, imagine coisas banais como voar.

- O senhor quer dizer que podemos voar? Voar é banal?

- A Cabala coloca como algo muito banal, se tiver neve e vesícula de carneiro. São todos da raça humana, mas enquanto a maioria nasce com uma predisposição natural para pensar ou trabalhar,

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alguns poucos nasceram com um dom de ver. Tornam-se, por conseguinte, guardiões dos segredos que desvendam. Exemplos são ciganos, penitentes, e o próprio Cipriano, que foi uma das mentes mais brilhantes que o mundo conheceu. Ele estudou o mundo ao redor e canalizou isso em um livro. O pior defeito de Cipriano foi se deter a estudar coisas pequenas demais para a pura raça dos descendentes de Deus. Eram coisas simples demais. Como eu disse, existem plantas que matam e curam. O homem foi destinado á cura, á libertação e á salvação, à ajudar o próximo com sua inteligência, principalmente. Não para truques baratos. E este não foi o defeito somente de Cipriano. O próprio Flamel tentou transformar pedras em ouro. Debruçou-se sobre o assunto como se o grandiosíssimo Deus fosse criar um planeta inteiro e não desse a ele o poder de uma simples transformação. Veja a pedra de magnetita. Está na natureza e tem o poder de atrair todo e qualquer ferro. Querem magia melhor? Magia tão incrível que o homem não consegue controlar facilmente, precisando se render a uma traição terrível. Uma

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traição que precisa ser caçada. O pacto de São Cipriano cria aquilo que a humanidade tem mais medo...

- Lobisomens, por exemplo – disse Castor.

-Trazem de volta certas coisas, do passado. Enfim, se a maioria das pessoas simplesmente não consegue ver lobisomens, dado o exemplo de Castor, e tem medo, imagine se pudessem ver. O Livro de São Cipriano é um grimório, concentra diversos tipos de magia no objetivo único de encontrar o poder, de estar acima do bem e do mal - e Castor então entendeu: a Estrela de Davi também pode ser o símbolo do livro de São Cipriano – e tem magia antiga dos primitivos povos do mundo. Os manuscritos de Évora e os de Cipriano, que formaram o temeroso livro negro de São Cipriano, podem dar, a um bom entendedor, o poder de rasgar o véu e subjugar a humanidade ao medo eterno. Sempre achamos que, uma vez o livro estando enterrado neste fim do mundo, estaríamos a salvo. Mas o fato de Antônio Simão não ter conseguido destruir o livro já devia ter me alertado. Sempre fui amigo dos penitentes, assisti seus louvores inúmeras vezes com os olhos cheios

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d’água, mas jamais me integrei ao grupo. O que não faz de mim o último dos penitentes, que está desde um tempo tentando encontrar o livro de São Cipriano e destruí-lo. Mas ele o faz como se fosse uma missão que cabe aos penitentes, e, portanto levou a frente essa história da dor e da penitência, o que foi um erro lamentável.

- Então Padre – disse Castor – quem é o último dos penitentes? Guilherme? Jerônimo?

- Não. O último dos penitentes é Antônio Viana de Carvalho.

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Capitulo XV O Missionario

A afirmação de Padre Pedro não explicava muita coisa, como por exemplo, como Antônio sabia que Castor tinha esboçado um pequeno mapa, que era a chave para o segredo.

O Padre contou a Castor a história da espada, forjada em Toledo e abençoada por Deus com o poder dos minerais que a revestiam. Por isso que as mães d’água eram suas guardiãs. Podiam levar a Espada por todo o mundo, onde quer que esteja o livro negro de Cipriano.

- Tome cuidado. – advertiu – algumas ainda se consideram donas do poder dos minerais desta espada. E vão querer toma-la.

Havia vários locais onde Antonio Carvalho poderia estar agora. Pelas palavras de Padre Pedro, Antonio era o único penitente vivo, e estava vagando pelos locais marcados no mapa, se penitenciando, na esperança de achar o livro que Castor sabia onde estava.

- Está com Caleb. O livro.- Como você sabe? – perguntou

Aprígio.

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- O livro foi para São Paulo, pra casa da filha da Dona Glória. E voltou. E Caleb veio de São Paulo. E ele é judeu, amante da Cabala. Que é magia tal qual o livro de Cipriano.

O primeiro local que procurariam Antonio era a capela de São João Batista, que era o primeiro local que veriam chegando a Riacho de Santana vindos de Luiz Gomes.

Chegando lá viram que não eram os únicos que tinham tido aquela ideia. Havia um tumulto em frente ao local.

- O que será que aconteceu? – Principiou-se Aprígio.

- O que eu temia.Passando pelo meio da multidão,

Castor e Aprígio se chegaram até bem perto do Monsenhor Lycurgo, padre da cidade que já contava seus quase 70 de idade. Ele estava exclamando um “arrá” ao encontrar uma chave num molho que carregava a mão.

- Foi longe demais Antonio – murmurou ele.

Ao abrir a porta da capela, o Padre deu aos fiéis uma visão terrível. Lá no altar Antonio estava com as costas nuas, sangrando torrencialmente, pois estava se penitenciando, isto era claro. O sino

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estava do lado, Antonio quase caindo com seu chicote, os olhos com uma expressão terrível.

Estava terminando de cantar um bendito de São Bento, com a voz cansada e acabada. Isa e Juvenal, pais de Antonio, correram ao seu encontro, aparentemente sem entender nenhum detalhe daquele cenário de filme de terror. Castor também correu ao encontro do amigo. Aprígio e Juvenal levantaram Antonio que á esta altura já havia caído. Isa abraçou o filho. Castor fez um sinal a Aprígio para se retirarem e quando estavam saindo da capela quase correndo, o Padre Lycurgo alcançou-lhes com um olhar estranho e gritou:

- Quero ver os dois hoje, ás sete da noite na casa paroquial. - Que será que o Padre quer com a gente?

- Deve ser algum assunto relacionado á Igreja. Antonio era catequista junto comigo a uns anos, e o Padre deve temer que o que ocorreu hoje afete a paróquia.

- Mas eu nunca fui catequista, e ele disse que queria ver a nós dois...

Castor e Aprígio se sentaram na praça, enquanto o tumulto cessava.

- Buraco sem fundo, penitentes, livros de magia... O que mais sua

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cidade tem? Castor, já pensou como passar por Caleb? Já viu o paredão que ele é? Mais de dois metros!

- Tô bolando um plano, mas nada certo ainda.

Sete e meia da noite, atrasados e sob as ameaças de Lucia e Afonso, Castor e Aprígio foram para a esquisita reunião com o padre Lycurgo Mathias.

- Ah, ainda bem Fernandes. Você e seu amigo entrem logo. – Havia uns dois tons de severidade a mais do que o normal na voz do padre.

Ele olhou pela janela como se a qualquer momento fosse chegar alguém que ele não estava desejando chegar. Trancou-a e a porta também. Olhou bem nos olhos de Castor e começou.

- Senhores, o que aconteceu hoje, eh...

- Faz parte de uma história bem maior do que o senhor pensa padre, se o senhor me deixar eu...

- Não precisa me contar mais nada. Eu já sei dessa história toda. Antonio Carvalho era um dos tolos que quer encontrar e destruir o livro de São Cipriano. Só gostaria de informar aos senhores que apesar de existirem padres como o caduco

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Pedro, a Igreja em sua maioria desaprova atos de brincar de Sobrenatural na vida real. Presumo que o senhor e esse colega de escola estão tentando fazer o mesmo. Mas advirto que não será necessário.

- Como assim não vai ser necessário destruir esse artefato tão...

- Eu sei o que ele é senhor Fernandes. Mas a Igreja tem abafado por anos todos os casos perigosos e reais que envolvem o livro de São Cipriano. Nós temos reduzido a mito tudo isso que falam e cuidamos da espiritualidade das pessoas para que não se afetem por essas bruxarias. É um trabalho muito árduo para deixar que dois adolescentes estraguem tudo.

- Com estragar tudo o senhor quer dizer destruir o livro de São Cipriano? Que atormenta a humanidade por séculos? O livro que desonra nossa condição da raça pura e que nos leva a praticar a magia baixa? A magia negra? – Aprígio sentiu algo que crescia dentro de Castor. Por muito tempo ele achou que o amigo era o verdadeiro estereótipo da paciência e do controle, mas sentia que estava prestes a mudar de opinião.

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- A coisa não é tão assim como o Padre Pedro relatou. A idade dele é avançada e...

- Mas com certeza ele tem caráter senhor! E não age às escondidas e com ameaças como o senhor.

- Ainda não usei de ameaças, ainda. Tenho certeza de que o senhor entendeu muito bem minhas palavras...

- Lamento. - Lamenta o quê? - Seu erro? - Erro? - Suponho que parta da premissa

que serei submisso, sendo que nunca o fui. Só aviso padre, que não pretendo entender coisa alguma que o senhor falou, nem mesmo vou ficar na minha quando eu sinto dentro de mim uma coisa crescendo desde o começo desse ano, uma coisa que me diz que algo muito ruim ameaça a paz dessa cidade, e o senhor sabe o quanto eu gosto dela.

- Então é assim? Vais ficar contra a Igreja senhor Fernandes? Não se preocupas com os julgamentos de Deus?

- Para falar a verdade, não. Preocupo-me com meus atos padre, por que eles é que são falhos. O

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julgamento de Deus é infalível, portanto não há com o que se preocupar, nunca haverá. Valeu aí!

- O senhor sabe que tenho influência na cidade não sabe? Tenho dois, ou melhor, quatro olhos bem postos e...

Castor nem ouviu. Chamou Aprígio e passou por Padre Lycurgo como se o missionário de araque não estivesse sentado naquela cadeira. Abriu a porta e saiu.

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Capitulo XVI Misantropia

Castor e Aprígio pararam para tomar um açaí, antes de ir para a casa de Castor descansar e planejar.

Só não imaginavam encontrar a desagradável figura do Padre Lycurgo conversando com Lucia e Afonso na sala de estar.

- Padre Lycurgo? – Boquiabriu-se Castor – Fazendo o quê por aqui?

- Fazendo o que você deveria fazer enquanto filho. – Principiou-se Afonso enquanto o padre somente ria ironicamente.

- Ainda estou esperando a resposta.

- Ele está – Lucia tomou a palavra – entre outras coisas, nos informando sobre seus passeios... Roubando o carro... Andando com um menor de idade pilotando a moto.

Castor varreu a sala com o olhar, e não achou Marta. Onde estaria ela?

Castor já sabia que não seria fácil driblar os pais e principalmente o

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padre Lycurgo para ir até a casa de Caleb. Então nem respondeu nada, para não criar uma situação mais desagradável para ele e Aprígio. Mas não se conteve em mandar um olhar bem “vá se foder” para o padre que ele não aguentava mais nem ouvir o nome.

- Ah – Lembrou-se Lucia – e Aprígio, sua avó já ficou sabendo. E você terá que voltar para casa também.

A noite havia perdido a graça. No outro dia Aprígio iria embora, e Padre Lycurgo mostrara um pouco do seu poder de influência. “Ah se as pessoas pudessem realmente saber quem ele é”, pensava Castor. Mas no meio da confusão, Deus plantou a semente de um plano na sua cabeça. Ele saiu com Aprígio e começaram a andar.

- Sua mãe é dona de um salão de cabeleireiro bem profissional né?

- É sim... Ela inclusive já trabalhou para teatros e TV, com maquiagem e efeitos especiais.

- Era isso que eu queria ouvir... Presta atenção no plano.

Castor contou três vezes o mirabolante, mas brilhante plano que concebera.

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- O seu plano só tem um defeito Castor.

- Só um? - Riu descaradamente. Parecia não ter se inteirado ainda do risco que corria.

- É daqueles planos que só funciona se der certo cem por cento. Do contrário, vamos nos encontrar numa roubada sem tamanho e sem saída.

- Até agora tem sido assim, a nossa única certeza é que não vamos desistir.

Aprígio foi cedo para a casa de Eunice, mas fugiria a noite.

Um dos princípios do livro de São Cipriano era a misantropia, isto é, a capacidade de se tornar uma figura com aversão humana, com instintos e habilidades animalescas. Sejam perus, porcos ou até mesmo insetos, eles pulularam na história santanense, segundo tia Júlia, haveria até uma lista.

Pela dedução de Castor, Caleb era um apreciador do livro de São Cipriano. Era judeu, e do judaísmo provêm a Cabala, conjunto de práticas e “bruxarias” com mesmos princípios ciprianos. E o símbolo da Cabala era a Estrela de Davi. E ainda deduzindo, Castor pensava que

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Caleb não dominava por inteiro o grimório de Cipriano. E saindo das deduções e entrando nas apostas, Castor achava que a misantropia atraísse o judeu gigante, e concebeu um plano que talvez nem Nietsche e Kafka juntos e em seus maiores momentos de loucuras pudessem conceber: Aprígio se utilizaria dos grandes dotes de maquiagem que a mãe, Eunice, ex-esposa de Egídio, para se transformar em um licantropo, e assim tirar Caleb de casa para que Castor vasculhasse a mansão atrás do livro de São Cipriano. As premissas para que o plano desse certo eram duas: Caleb realmente se interessar pela misantropia e, a mais importante, que o livro permaneça na casa durante toda noite, a longa noite que mais tarde prometia.

Durante a tarde Castor foi à farmácia, comprou remédios que fazem dormir e dosou na comida de seus pais e irmã. Às oito da noite, Afonso, Lucia e Andromeda se encontravam em profundo sono, deixando Castor livre para ir encontrar Aprígio, que corajosamente viria de moto de Pau dos Ferros à Riacho de Santana.

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Castor tomou banho. Procurou e vestiu roupas pretas, para ficar mais fácil de esgueirar-se no escuro sem ser percebido. Viu-se no espelho e pela primeira sentiu medo da situação. Tudo acontecera rápido demais: sonhos, viagens, relatos, o fiasco de Antonio... E agora estava partindo sem saber se voltaria. Eram dez horas. Tarde demais para quem tinha uma grande missão pela frente.

Chegando à parada de ônibus, Castor viu de longe o lobisomem e sua moto.

- Pensei que havia desistido. - Jamais! Cara, sua maquiagem

tá muito convincente, muito convincente mesmo.

A maquiagem de Aprígio deixou o rosto dele desfigurado. Era como se as feições lupinas estivessem violentamente usurpando as humanas, e no processo o rosto ainda humano estava metade às avessas. E parcialmente peludo. As roupas também estavam bem rasgadas, e a pele do corpo maquiada similarmente à do rosto. Restava saber se um lobisomem realmente era assim.

- É, mamãe é profissional mesmo. Tive que dopá-la depois que

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ela terminou de fazê-la, mas são ossos do ofício.

- Que ofício? – Riu Castor, esquecendo-se do medo.

- Esse que estamos assumindo. Saindo vivos hoje, algo me diz que não vamos parar tão cedo. Suba logo, estamos atrasados.

Na garupa da moto com seu melhor amigo e rindo de Eunice, que igualmente a Lucia nem sonhavam onde seus filhos estavam, Castor contemplou a lua cheia. Noite perfeita para lobisomem

Capitulo XVII Teletransporte inusitado

Depois de subir o alto, viu-se à luz da cheia, o reduto dos Cavalcante, pequenos garrotes pastoreados pela mansão de Caleb.

De acordo com os autos do plano, Castor se escondeu em uma moita do lado da casa, enquanto Aprígio criava coragem para chamar a atenção de Caleb.

- Não sei! – Disse Aprígio. - Não sabe o quê? - Uivar, ora. - Não é hora pra isso, Aprígio! - Tenta você então!

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Castor olhou pra lua, encheu-se de coragem e lançou seu uivo. Fino, alto, claramente audível de dentro da mansão. Idêntico ao de um cão noturno grande demais para ser só um cão.

- Que uivo! Desde quando você... - Faço aulas de uivo? Tente

chamar mais a atenção, por favor!O lobisomem falso bateu no

portão.O coração de Castor palpitava.

Pouco tempo depois o enorme portão se abria, e o licantropo falso saiu correndo, enquanto Caleb vinha atrás, com um papel na mão, que com certeza continham as instruções malignas que fariam dele um misantropo mais tarde. Foi, como se diz no Nordeste, uma cagada. O plano havia funcionado perfeitamente até agora.

Aproveitando a deixa do portão aberto, Castor principiou-se pela mansão, imersa num silêncio mortal. Vasculhou a sala, a lareira, a cozinha, e subiu as escadas chegando aos quartos, biblioteca, e finalmente ao quarto onde dormia a belíssima Lia. A beleza da mulher de Caleb era incrível: branquíssima, cabelos negros, ela lembrava muito

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Elena, namorada de Arturo, e isso chamou muito a atenção de Castor.

Estava aflito. O livro aparentemente não estava em lugar algum. De súbito, deu-se pelo seu erro. O livro só poderia estar no local favorito de Caleb de toda a casa, no jardim.

Desceu apressadamente as escadas. Já não se ouvia os uivos de Aprígio. De frente a enorme fonte em formato de leão, Castor olhou atentamente de ponta a ponta do monumento, até que encontrou o que esperava: uma alavanca.

Puxou-a com força, e como se estivesse rugindo, o leão abriu a boca, estendeu a língua de pedra onde se encontrava um enorme livro de capa preta.

Castor agarrou o livro e já ia leva-lo de encontro à espada, na moto estacionada perto da casa, quando uma enorme mão o atirou pra longe do livro, batendo no portão da casa. De lá Castor visualizou Caleb, no mínimo um metro mais alto e visivelmente transformado em algo que ele não conhecia. Ou conhecia?

Os olhos estavam amarelos, os dentes desenvolvidos tal quais os músculos, as orelhas eram de fato as de um morcego. Castor só podia

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lembrar Aprígio: o que acontecera com o amigo diante daquele monstro? Seus instintos falaram mais alto e ele se principiou contra Caleb. Foi em vão. O monstro agarrou-o e o jogou contra a fonte com tamanha força que ela se partiu em alguns pedaços. Lá de baixo, em meio aos restos da fonte, Castor agarrou o maior pedação que encontrou da estátua e, tal qual o mesmíssimo rei Davi havia feito com Golias no Antigo Testamento, mirou perfeitamente no olho de Caleb, que urrou de dor após receber o presentinho de Castor.

O monstro familiar se contorcia de dor, mas Castor não parou para ajuda-lo ou descobrir o que ele era. Castor apanhou o maldito livro e correu para onde estava estacionada a moto.

Lá estavam Aprígio e um homem familiar. De perto Castor pode reconhecer, pelos óculos escuros – apesar de ser noite - que era Galdino. O misterioso Galdino havia acolhido o amigo de Castor e estava tratando dos ferimentos causados pelo misantropo.

- Aprígio! – Ele vinha correndo, preocupado.

- Ele não vai responder, ainda está desacordado. E você tem algo

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muito importante a ser feito ainda hoje.

- Nada é mais importante agora do que a segurança dos meus amigos. Nada! Temos que leva-lo para um hospital, ele está muito ferido.

- Destruir esse livro que você carrega aí é bem mais importante. E eu não vou poder permitir que você sacrifique essa oportunidade por causa de Aprígio. Acredite em mim, ele está bem.

- Da última vez que confiei em você, você sumiu de uma hora pra outra e me deixou sozinho. Não sei se posso...

- Por favor, permita-me...O estranho homem de óculos

escuros tocou em Castor e murmurou algumas palavras, que devido ao torpor que se seguiu, este não conseguiu identificar. Um estranho transe tomou conta do seu corpo e ele tentou gritar, à medida que a imagem do sítio quintas se desfazia e surgia na sua frente a pequena vila do Monte Tabor.

Lá em baixo estavam as casas, e na sua frente o famoso cruzeiro de Antonio Simão. Segundo as histórias, o velho penitente fincara ali o cruzeiro de suas devoções

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penitentes e desde então lá havia sido palco de milagres. Castor, absorto com o que acontecia, colocou o livro na frente do cruzeiro, empunhou a espada e quando estava prestes a destruir o famoso grimório, a capa do livro resplandeceu e se materializou ali na sua frente um papel. Antiquíssimo e escrito à mão, tratava-se de uma carta.

Capitulo XVIII O conto de Antonio

“Á quem chegou até aqui,

Meus parabéns pelo feito histórico, e desde já, meu alerta para o que está por vir. A história é comprida.

E ela começa com Alexandrina. Ela era uma bruxa de uma antiga família que migrou para o Brasil e se dividiu em vários clãs. O clã ao qual ela pertencia era notoriamente

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poderoso e se destacava por tal qual seus antepassados, desprezarem a tradição escrita e passar de geração em geração seus conhecimentos oralmente. A família de Alexandrina tinha um pacto com a própria vida e com a própria Morte. Até que Alexandrina descobriu que sua mãe havia lhe deixado um grimório, justamente a coisa que ela mais desprezava. Tudo que descobrem ou pensam, os bruxos anotam e assim criam seus grimórios, que quanto mais antigos mais poderosos e perigosos são. E Alexandrina descobriu que tinha em suas mãos o Grimório do Poder, de Cipriano. Sem saber qual a origem dele e porque estava em sua família, ela o trouxe em sua peregrinação até o Vale do Rio Santana. Estava caindo numa verdadeira armadilha.

O Vale era povoado por pessoas estranhas. Viviam ali bruxas não tão bem intencionadas e famílias que muito tinham o que esconder. Mas todas ambicionavam amplamente o livro de São Cipriano, seja por motivos materiais ou não. A Ordem dos Penitentes, mantida e crescida ali em segredo também era outro infortúnio. Mas o pior era o próprio Vale. Onde existem muitos espíritos

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inquietos e inconformados, existe muita magia e atração de coisas ruins. A doce Alexandrina teve que cair nas garras do grimório nesse cenário tão terrível, mas, em compensação, fez por onde se livrar. Entretanto entregou-o na boca do lobo: Antônio Cavalcante.

E a mim coube o trabalho de recuperá-lo, apesar de Penitente, vi a cima dos meus próprios ideais. Mas tal qual a bruxa Alexandrina, meus ideais me cegaram e me fizeram pensar que eu poderia ser a segurança necessária para o livro de São Cipriano. Não consegui enxergar que o livro tinha um passado, um presente e um futuro. Um destino. Não pude ver que antes de passar a minhas mãos, tirando-o das mãos do velho Cavalcante, alguém o havia pego e com ele criado uma nova maldição. Alguém sumamente poderoso usurpou o livro de São Cipriano. E com uma terra já tão amaldiçoada fiquei impossibilitado de, na idade avançada, encontrar entre tanta gente o responsável. O outro poder permaneceu um mistério pra mim. E agora repasso a missão para quem ler esta carta, que foi a última penitência desta alma que

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entrega nas mãos de um coitado o fardo de destruir a maldição.

“Tudo se repete debaixo do Sol. Nada é novo, tudo é fugaz e repetitivo. Nada é novo.”

Somente o sangue pode ser destruído, sendo a alma, imortal.”

Capitulo XIX Confronto final

Sem dúvida nenhuma era muita informação pra pouco tempo. Lera a carta em voz alta, para que ele ouvisse até mesmo mais atentamente a revelação de um segredo incrível e necessário para sua tão falada missão.

Não pensou duas vezes e com a espada partiu o vultoso livro de capa preta ao meio. Orgulhava-se internamente de não ter tido o mínimo impulso de curiosidade para lê-lo ou usá-lo.

Assistiu com esse orgulho o fim, pelo menos o primeiro, da maldade de Cipriano na sua terra. Uma luz vermelha emanava do livro partido, como se quisesse permanecer, como se pudesse colar o livro novamente. E aí Castor viu um rosto sair do meio daquele fenômeno. Os traços do rosto eram medonhamente familiares, mas a pressão não deixou Castor reconhecer. O que aquilo

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queria dizer? O que aquele rosto tão severo dizia ao coração de Castor? As indagações foram interrompidas porque Castor viu que não estava sozinho.

Galdino anunciara involuntariamente sua presença no local pisando em galhos, logo atrás de onde Castor se encontrava.

- Devo dizer que estou surpreso. Assisti tudo com muita emoção jovem Castor e...

- Porque você não abandona logo esse disfarce de homem da roça?

- Não entendi a pergunta... - Não se faça de bobo

novamente e nem ouse sumir. Sua presença por algum motivo me incomoda e – se aproximou brutalmente de Galdino com a espada – acho que você está escondendo alguma coisa.

- Deveria você esconder esta espada. E comigo.

- Agora eu que não sei do que você está falando.

- Essa espada ainda vai ser muito útil na trajetória que você irá definir ao longo dessa história, e se ela ficar com você, você é que correrá perigo. Entenda Castor, já viu que pode confiar em mim e...

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- Não é por nada não, mas, eu encontrei a espada, eu destruí o livro e eu vou encontrar esse outro poder nesse vale que eu chamo de casa. A espada fica comigo.

- Não queria que as coisas fossem difíceis, mas...

Galdino se aproximou de Castor com incrível desenvoltura, e como há pouco tempo – por falar em tempo, estava amanhecendo á esta altura – tocou-o e começou a murmurar. Castor o imitou, sem saber porque, mas institivamente tocou seu adversário e recitou algo sem se tocar o que realmente era. Os dois ficaram nesse embate místico até que Castor sentiu novamente o torpor. Teria perdido novamente para Galdino, indagou-se antes de cair num profundo sono.

Acordou no Hospital. No leito ao lado estava Aprígio, acordado e merendando, e do lado do seu leito a espada. “Havia vencido Galdino”, sorriu por dentro. Estava começando a achar que Galdino seria um grande inimigo, mas aquele tipo de inimigo que usa as mesmas armas e tem as mesmas habilidades (no caso, a estranha habilidade de falar línguas estranhas), e vencer alguém assim era e é de fato muito bom.

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Castor visualizou seus pais, sua irmã e para sua surpresa Verbena conversando com o médico.

- Meu filho acordou! – Gritou Lucia vendo os machucados olhos de Castor se abrindo para o mundo.

Subitamente todas as atenções do quarto, inclusive Aprígio, se voltaram para Castor. Todos queriam saber detalhes, sobre espadas, lobisomens, e tantos outros acontecimentos que Castor se viu enjoado daquela situação toda e pediu para ter um momento a sós com os pais e depois com os amigos.

Lucia e Afonso, passado o momento de euforia, foram tomados de um semblante triste e pesado.

- Vocês tem algo importante a me dizer?

- Temos dois algos meu filho, mas o jornal é quem vai dizer. – principiou-se Lucia.

O exemplar do Diário Santanense exibia duas notícias em destaque.

MAIOR RACHA POLÍTICO DA HISTÓRIA ACONTECE EM RIACHO DE SANTANA-RN

Atual prefeito Jonas Marinheiro decide romper com seu padrinho político, Dr. Ulisses Nascimento.

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Nas eleições de 2012 o atual prefeito Jonas Marinheiro dos Santos apoiará para majoritária a chapa composta pelo então Secretário de Saúde do município, José de Nicodemos Aires, liderança jovem e que tem como vice-prefeito Egídio Soares do Nascimento, atual liderança de oposição. A posição do prefeito vai contra a do seu antigo mentor político, Dr. Ulisses Nascimento. O rompimento representa fim de laços também com a família da esposa de Ulisses, Tereza Conrado, filha do ex-prefeito Antero Conrado da Silva, in memorian, e dona Perpétua Cajé da Silva. Ulisses apoiará como prefeito seu irmão, Donato Nascimento, e está agora a procura de um vice-prefeito suficientemente bom que consiga bater os recordes de popularidade dos situacionistas Nicodemos e Egídio, que se destacam...

Os olhos de Castor foram desvencilhados das duas grandes fotos de Jonas e Ulisses para uma foto sua e de Caleb.

CALEB BLOCH É BRUTALMENTE ASSASSINADO EM SUA RESIDÊNCIA

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Durante madrugada judeu é assassinado na zona rural e principal suspeito é jovem envolvido numa invasão a residência do extinto.

Não precisou ler mais nada para entender mais do que os outros ao seu redor. Alguém, possivelmente ligado ao tal “outro poder” havia matado Caleb, com o objetivo de incriminar Castor. Estava ali uma situação a ser vencida, tanto para o bem dele como para o bem de sua missão.

- E aí? – Perguntou o rapaz, sem esperar respostas.

- Tio Chico tá firme e forte com Nicodemos, e nós também. Vamos finalmente nos libertar politicamente da família do Tio Antero.

- Não era bem isso... - Ah – completou Afonso – já

temos um advogado na questão. Não existem provas suficientes para te incriminar filho, não se preocupe.

Castor fitou Afonso e Lucia por uns instantes e percebeu que eles não pareciam surpresos. E deduziu que sua missão seria aceita muito naturalmente por eles. Estava aí um mistério intrigante: pais que não permitiam nem que o filho fosse à

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festas, achavam normal ele sair com uma espada e falando de livro de São Cipriano.

Capitulo XX Agente duplo

A conversa entre Castor, Aprígio e Verbena não correu de forma mais rápida.

- A cidade está cheia de bruxos, lobisomens e fantasmas – elencou Régulo – e precisamos descobrir a história do livro de São Cipriano... O que ele fazia com a família de Alexandrina e o que as pessoas daqui queriam tanto com ele... O que a fez usar o livro...

- Lobisomens, pelo que eu pude ver, são bem estranhos – afirmou Aprígio.

- Na verdade devemos esperar conhecer um de perto para ter

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certeza. – Disse Castor e suspirou- tia Júlia deixou bem claro que são perigosos e algo assim perigoso não é tão monstruoso a primeira vista.

- Quer dizer que você acha que ainda existem muitos lobisomens por aí?- indagou Verbena.

- Só pude ler nas entrelinhas do que Adelia disse quando recebeu a focinheira das mãos de Aprígio. É esperar pra ver...

Todos concordavam que os dois últimos acontecimentos eram de absoluta importância para desvendar o mistério: a divisão política, algo que em cidades pequenas pode chegar a causar absoluta desordem e que nas circunstâncias que aconteciam estavam claramente ligadas a forças sobrenaturais; e a morte de Caleb. Precisavam descobrir quem é o assassino. Além, é claro, de quem repassava informações sobre Castor para Lycurgo e possivelmente para Antônio, que sempre pareciam saber demais.

E sobre a transformação de Caleb, Aprígio ainda disse:

- É como se o seu medo tivesse alimentado a transformação dele.

Verbena colocou em questão:

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- Vamos montar uma lista com nomes que tinham motivos e oportunidades para matar Caleb ou para fazer mal a Castor.

- No topo da lista – começou Castor.

- Padre Lycurgo! – completou Aprígio.

- Boa. Quem mais? – Continuou Verbena.

- Acho que Lia, esposa de Caleb. Verbena e Aprígio fizeram ao

mesmo tempo uma cara de quem pedia mais explicações.

- Pensem bem – explicou Castor – Uma mulher jovem, linda, casada com um homem mais velho e rico...

- Típico golpe do baú! Genial – afirmou Aprígio.

- Nem todas as mulheres são assim. – Defendeu Verbena.

- Mas enquanto investigadores, nós vamos ter que trabalhar com o conceito de maioria, e a maioria é assim. – Castor friamente concluiu o seu raciocínio. – Mas para mim o principal suspeito é Galdino.

- Galdino? Ele não esteve o tempo todo ajudando vocês dois?

- É, mas com quais intenções? - Eu particularmente gostei dele

– disse Aprígio. Nada contra.

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- Pois eu aposto no nome dele nessa lista. Ele tem uma espécie de poderes, quando ele me teletransportou do Sítio Quintas para o Monte Tabor... Eu senti uma energia decididamente forte. E acrescento: temos só três nomes, essa lista não tá nada completa. Quando a situação esfriar mais, vamos nos sentar e fazer uma maior. Agora que o pai de Aprígio vai ser candidato aqui ele vai ter mais tempo em Riacho de Santana, e Verbena também passa a vir mais. Vamos vigiar dia e noite nossos suspeitos. Acho que assim vamos estar passos a frente de descobrir quem ou o que representa esse poder paralelo, e impedi-lo de fazer mais mal ainda a essa cidade.

- Certo você quem manda! - Pode descrever o monstro que

atacou vocês de novo? – Perguntou Verbena.

A garota de olhos azuis penetrantes encontrava-se agitada e claramente preocupada com alguma coisa, e Aprígio e Castor estavam respondendo a mesma pergunta continuamente para ver se ela soltava uma pista do que era. Cansado, Aprígio desafiou:

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- Verbena, pode falar o que tá se passando na sua cabeça. Acredito que você já entendeu que Caleb virou um demônio parecido com um...

Uma voz feminina riu. - Patéticos! Era Marta. Entrou no quarto e

trancou a porta. - Marta? O que você... - Calado.Então a mulher, antes dócil e

sensual, virou Jerônimo, na frente deles. Aprígio fez uma cara estranha, entre o nojo e a sensação de que ia desmaiar. E por último, Jerônimo virou uma linda e feroz mulher feita d’água.

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