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TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: ABORDAGEM HISTÓRICA E ALGUNS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS FORCED LABOR IN MODERN BRAZIL: A HISTORICAL APPROACH AND A FEW THEORETICAL ASPECTS Ilda Pires Galletta* Resumo: O presente artigo versa sobre o trabalho escravo contemporâ- neo. Tem como ponto de partida a discussão sobre a complexidade con- ceitual do trabalho escravo sob diferentes abordagens. Pressupõe que o sentido da escravidão deve ser analisado levando em conta o caráter de sua própria historicidade, buscando a adequada compreensão deste fe- nômeno perverso, a partir do modo como se deu a escravidão no perío- do colonial e imperial e como ela persistiu, sob outro formato, nos tempos contemporâneos. Constata que a maximização dos lucros da grande em- presa agropecuária é o fio condutor que liga passado e presente e que o trabalho escravo se insere na própria lógica do capital. Palavras-chave: Escravidão. Trabalho escravo. Dignidade humana. Justi- ça do Trabalho. Abstract: This article is on contemporary slave labor, and begins with a discussion on the conceptual complexity of slave labor based on diffe- rent points of view. It presupposes that the meaning of slavery should be analyzed from the prism of its history, in order to provide an adequate understanding of this perverse phenomenon. We show how slavery operated during the colonial and imperial periods in Brazil and how it has persisted, in other formats, even to the present day. The author also notes that the maximization of profits by large agribusinesses is the driving power that links past and present, and that slave labor is part and parcel of the logic of capitalism. * A autora é licenciada em História e Pedagogia, com especialização em História da América pela Faculdade de História da UNESP (Assis/SP). Este artigo é uma síntese dos primeiros capítulos da monografia elaborada para o Curso de Especialização em Direito do Trabalho na UNISAL – Campinas, sob a orientação da professora doutora Luciana Caplan.

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  • TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL CONTEMPORNEO: ABORDAGEM HISTRICA E

    ALGUNS PRESSUPOSTOS TERICOS

    FORCED LABOR IN MODERN BRAZIL: A HISTORICAL APPROACH AND A FEW

    THEORETICAL ASPECTS

    Ilda Pires Galletta*

    Resumo: O presente artigo versa sobre o trabalho escravo contempor-neo. Tem como ponto de partida a discusso sobre a complexidade con-ceitual do trabalho escravo sob diferentes abordagens. Pressupe que o sentido da escravido deve ser analisado levando em conta o carter de sua prpria historicidade, buscando a adequada compreenso deste fe-nmeno perverso, a partir do modo como se deu a escravido no pero-do colonial e imperial e como ela persistiu, sob outro formato, nos tempos contemporneos. Constata que a maximizao dos lucros da grande em-presa agropecuria o fio condutor que liga passado e presente e que o trabalho escravo se insere na prpria lgica do capital.

    Palavras-chave: Escravido. Trabalho escravo. Dignidade humana. Justi-a do Trabalho.

    Abstract: This article is on contemporary slave labor, and begins with a discussion on the conceptual complexity of slave labor based on diffe-rent points of view. It presupposes that the meaning of slavery should be analyzed from the prism of its history, in order to provide an adequate understanding of this perverse phenomenon. We show how slavery operated during the colonial and imperial periods in Brazil and how it has persisted, in other formats, even to the present day. The author also notes that the maximization of profits by large agribusinesses is the driving power that links past and present, and that slave labor is part and parcel of the logic of capitalism. * A autora licenciada em Histria e Pedagogia, com especializao em Histria da Amrica pela

    Faculdade de Histria da UNESP (Assis/SP). Este artigo uma sntese dos primeiros captulos da monografia elaborada para o Curso de Especializao em Direito do Trabalho na UNISAL Campinas, sob a orientao da professora doutora Luciana Caplan.

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    Key words: Slavery. Forced Labor. Human dignity. Labor Courts.

    Sumrio: 1 Introduo; 2 A complexidade do conceito; 3 Escravido tra-dicional e trabalho escravo contemporneo; 4 Consideraes finais; 5 Re-ferncias.

    1 INTRODUO

    O presente artigo tem como origem o estudo realizado a partir da monografia Trabalho Escravo Contemporneo: uma abordagem histrica e alguns apontamentos no mbito da atuao da Justia do Tra-balho que, utilizando-se do instru-mental bibliogrfico, luz da concepo dialtica, buscou compreender a ver-dadeira natureza das relaes de tra-balho escravo con-temporneo a partir dos anos 60 e persis-tente ainda em ple-no sculo XXI. Esta abordagem histrica demonstrou como o trabalho escra-vo foi apropriado pelo sistema ca-pitalista nas diferentes fases de seu desenvolvimento histrico.

    A escravido moderna uma questo ampla e complexa e, por sua relevncia, tem sido obje-to de muitos estudos e pesquisas, realizados a partir das primeiras denncias sobre trabalho escravo na regio nordeste mato-grossen-se, tornadas pblicas no incio dos anos 70 pelo bispo da Prelazia de So Flix do Araguaia/MT, D. Pe-dro Casaldliga. 1 PINSKY, Jaime. Escravido no Brasil. 6. ed. So Paulo: Global, 1987, p. 13.2 MARTINS, Jos de Souza. A escravido nos dias de hoje e as ciladas da interpretao. In: CPT (org.). Trabalho escravo no Brasil contemporneo. So Paulo: Edies Loyola, 1999, p. 159 et. seq..

    A escravido moderna uma ques-to ampla e complexa e, por sua re-levncia, tem sido objeto de muitos estudos e pesquisas, realizados a partir das primeiras denncias sobre trabalho escravo na regio nordes-te mato-grossense, tornadas pbli-cas no incio dos anos 70 pelo bispo da Prelazia de So Flix do Araguaia/MT, D. Pedro Casaldliga.

    Pretende-se discutir de for-ma sinttica por que o trabalho es-cravo persiste e reincidente em muitas propriedades rurais, apesar de todos os esforos empreendidos pelos poderes pblicos e setores da sociedade civil. De forma especfi-ca, qual a essncia desta relao de trabalho e como explicar a existn-

    cia do trabalho es-cravo desde os fins da dcada de 1960 nas reas de frontei-ra agrcola?

    2 A COMPLEXI-DADE DO CON-CEITO

    Vrios au-tores, como Pinski1

    e Martins2, enfatizam que, para a adequada clarificao do conceito de trabalho escravo, preciso le-var em conta, primordialmente, as condies histricas de uma dada sociedade, para se verificar como formas diferentes de organizaes sociais e polticas geram maneiras diferentes de explorao da fora de trabalho. Ou seja, o conceito de escravido se vincula a uma teo-ria das relaes das sociedades em que a escravido praticada.

    As circunstncias histricas e sociais explicariam as condies

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    da sujeio do trabalhador, por exemplo, na regio nordeste mato-grossense. Os estudos de Esterci3, nesta regio, comprovaram ser a dvida o principal elo da cadeia de explorao dos trabalhadores ru-rais, constituindo-se como instru-mento responsvel pela usurpao da sua liberdade. A dvida se confi-gura na diferena entre o montan-te das despesas feitas pelos pees e a remunerao que lhes devida.

    Ocorre que na grande maio-ria das situaes nunca resta saldo. O trabalhador, consequentemente, sempre tem novas tarefas a serem feitas at que a dvida seja liqui-dada. Desse modo, a coero pela dvida o elemento essencial que deve ser levado em conta para de-finir o trabalho escravo.

    Martins4 enfatiza que o n-cleo central do trabalho escravo est na coero fsica e moral que cerceia a livre opo e ao do tra-balhador, podendo ocorrer escra-vido mesmo onde o trabalhador no tenha conscincia dela.

    Aprofundando esta discus-so, Castilho trata a escravido sob o aspecto da dignidade humana e no apenas como um crime contra a liberdade individual: Esse enfo-

    que mais abrangente porque in-clui as outras liberdades e direitos do homem. Dignidade abrange tu-do, e a escravido tira tudo5.

    Para a OIT h diferenas en-tre trabalho degradante e trabalho escravo: Toda a forma de traba-lho escravo trabalho degradante, mas o recproco nem sempre ver-dadeiro. O que diferencia um con-ceito do outro, a liberdade6.

    Nesta mesma perspecti-va, Sento-S7 tambm faz a distin-o dos conceitos trabalho forado e trabalho escravo. Aquele tem uma dimenso bem mais ampla do que este que possui uma realidade mais especfica, a qual se integra no contexto macro que consubstancia o trabalho forado.

    Um longo processo de lutas e presses de diversas entidades e organizaes sociais levou o legis-lador brasileiro a alterar a redao do art. 149 do CPB, at ento con-siderado por muitos de forma la-cnica e genrica. Em 2003, a Lei n. 10.8038, deu nova redao quele ar-tigo, definindo o delito num sentido mais abrangente, igualando traba-lho escravo e trabalho degradan-te. Alm disto, esta alterao trouxe acrscimos significativos ao explici-

    3 ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: pees e posseiros contra a grande empresa. Petrpolis: Editora Vozes, 1987, p.144 et. seq.

    4 MARTINS, Jos de Souza. A escravido nos dias de hoje e as ciladas da interpretao. In: CPT (org.). Trabalho escravo no Brasil contemporneo. So Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 159 et. seq..

    5 CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de V. de. Em busca de uma definio jurdico-penal de trabalho escravo. In: CPT (org.). Trabalho escravo no Brasil contemporneo. So Paulo: Ed. Loyola, 1999, p.93.

    6 AUDI, Patrcia. A Organizao Internacional do Trabalho e o combate ao trabalho escravo no Brasil. In: CERQUEIRA, Gelba et al (org.). Trabalho escravo contemporneo no Brasil: contribuies crticas para sua anlise e denncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008, p. 47.

    7 SENTO-S, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil na atualidade. So Paulo: LTr, 2001.

    8 BRASIL. Cdigo Penal e Constituio Federal. So Paulo: Saraiva, 2007.

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    tar o que o legislador entende por condio anloga de escravo, permitindo ampla liberdade con-figurao do crime. Se do ponto de vista jurdico houve avano na defi-nio de trabalho escravo, por outro lado, a discusso terica, envolven-do outros setores da academia, sempre necessria para que a reali-dade contextualizada historicamen-te se torne sempre uma referncia para os operadores do Direito.

    3 A ESCRAVIDO TRADICIO-

    NAL E O TRABALHO ESCRA-VO CONTEMPORNEO

    No Brasil, a produo base-ada no trabalho escravo se inicia a partir da dcada de 1530 e se man-tm por mais de trs sculos. Go-render9, ao investigar a estrutura e dinmica da escravido colonial no Brasil, concluiu que se tratava de um modo de produo novo com caractersticas prprias. O Modo de Produo Escravista teria sido o determinante na colnia, mas, su-bordinado Formao Econmica e Social Capitalista.

    A produo escravista se articula e se subordina ao movi-mento geral de acumulao primi-tiva mediada pelo vnculo colonial. As condies essenciais para a exis-tncia do MPE estariam presentes: o trabalho escravo base da pro-duo social; os escravos so bens

    mveis, juridicamente no livres e esto separados dos meios de produo; os donos dos escravos possuem os meios de produo necessrios para colocar a produ-o em movimento; o escravo faz parte do capital fixo, sua fora de trabalho constitui mercadoria e o produto do seu trabalho tambm vendido como mercadoria10.

    Sob outra tica, Figueira e Mendes11 concebem a escravido como a forma de ser colonial do Modo de Produo Capitalista. O que define a essncia da coloniza-o o fato de a acumulao ter co-mo ponto de partida e de chegada o mximo de sobretrabalho (mais-valia): O lucro tornou-se o centro do mundo dos escravocratas e ur-diu a unanimidade de interesses em torno dos quais construram sua existncia. Para estes autores h um nico processo de acumula-o originria abrangendo tanto a colnia quanto a metrpole, sendo os seus espaos econmicos com-plementares. O objetivo primordial da colonizao era a mercantiliza-o da riqueza produzida, em larga escala, destinada ao mercado mun-dial. Desta forma, o sistema colo-nial se tornou a contrapartida do estgio de desenvolvimento de re-laes capitalistas na Europa. Ora, a compulso ao trabalho era o ni-co meio de obter-se a mo de obra e assim, a escravido se fazia impe-

    9 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. So Paulo: tica, 1978. p. 60 et. seq.10 GALLETTA, Ilda Pires. Relatrio das discusses e leituras sobre o modo de produo no Brasil colonial. 1977. Monografia (Especializao em Histria) Faculdade de Histria, UNESP, Assis, 1977.

    11 MENDES, Claudinei M. M.; FIGUEIRA, Pedro de Alcntara. Estudo preliminar: o escravismo colonial. In: BENCI, Jorge. Economia crist dos senhores no governo dos escravos: livro brasileiro de 1700. So Paulo: Ed. Grijalbo, 1977, p. 9 et. seq.

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    riosa para aproveitar e valorizar as terras virgens da colnia.

    Assim como o sistema ca-pitalista utilizou a escravido colo-nial como condio necessria para o processo de acumulao e cen-tralizao dos meios de produo, sendo uma das alavancas mais po-tentes para o novo modo de pro-duo que se formava no mundo ocidental, o mesmo sistema agora na sua forma neoliberal continua a se apropriar do trabalho escravo. A partir das ltimas dcadas do s-culo XX, tal for-ma de explorao do trabalho sob o formato de es-cravido por d-vida - reincide com fora em al-gumas regies do pas, continuan-do a servir ao sis-tema capitalista. Passado e presen-te interligam-se atravs do movi-mento do capital o qual, como um fio condutor invisvel, cria e recria relaes de trabalho diversas, que objetivam a maximizao dos lu-cros da grande propriedade, com produo voltada principalmente para o mercado externo.

    Contudo, nos tempos con-temporneos, diferentemente dos quatro primeiros sculos de nossa histria, pelo prprio carter da pro-duo realizada, o trabalho escravo

    temporrio e circunstancial, ain-da que persistente. A partir de me-ados dos anos 60, incide, sobretudo, nas regies de fronteira agrcola da Amaznia Legal, onde empre-sas nacionais e multinacionais im-plantam grandes empreendimentos agropecurios, subsidiados por cr-ditos e incentivos fiscais oferecidos pela SUDAM, em decorrncia da poltica desenvolvimentista dos go-vernos militares.

    Martins12 descreve e reve-la a complexa teia de conexes da escravi-do por dvidas na re-gio da Amaznia, identificando e expli-cando as contradies engendradas pelo ca-pitalismo, que no seu processo de repro-duo ampliada usa, temporariamente, em momentos especficos e oportunos, formas

    coercitivas de trabalho e no as de assalariamento. Entende-se que, onde for necessrio para o capital, o trabalho no-livre ser utilizado ou mesmo ter preferncia. Porm, ressalta o autor, esse fato depen-de das circunstncias histricas em que ocorre o desenvolvimento do capital, precisando ser levadas em conta, nesta anlise, as circunstn-cias sociais, polticas e culturais da acumulao, no seu processo de re-produo ampliada.

    12 MARTINS, Jos de Souza. Fronteira: a degradao do outro nos confins do humano. So Paulo: Ed. Hucitec, 1997, p. 85

    Assim como o sistema capitalista utilizou a escravido colonial como condio necessria para o proces-so de acumulao e centralizao dos meios de produo, sendo uma das alavancas mais potentes para o novo modo de produo que se for-mava no mundo ocidental, o mesmo sistema agora na sua forma neoli-beral continua a se apropriar do tra-balho escravo.

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    Sakamoto13 retoma a ques-to abordada por Martins, defen-dendo o ponto de vista de que o trabalho escravo pode ser con-siderado como um espao no capitalista necessrio ao desen-volvimento do prprio sistema. a forma ilegal de trabalho que acelera a capitalizao e garante a capaci-dade da concorrncia. A produo econmica, realizada nas grandes fazendas das regies de fronteira agrcola onde o trabalho escravo utilizado, articula-se com o centro do sistema de produo capitalis-ta em nvel global. Adota-se tal re-lao de trabalho, para diminuir os custos de produo, tendo em vista a alta competitividade existente no mercado interno ou externo.

    No obstante, por que no diminuir os custos de outra forma? O lucro, mais uma vez, explica a ra-zo final da explorao da fora de trabalho, porque ele obtido no pela comercializao de produtos, mas com a apropriao da mais-valia obtida da diferena no acres-centada dessa produtividade ao salrio dos seus empregados, ou se-ja, de horas trabalhadas sem remu-nerao14. Reduzir custos significa, pois, aumentar a mais-valia abso-

    luta atravs da explorao de mo de obra, apropriando-se do sobre-trabalho extorquido ao trabalhador, como a realizada nas regies da pe-riferia do sistema de produo.

    Afinal, apesar da aparncia contraditria, esta a lgica do ca-pital, ainda que perversa:

    A superexplorao do trabalho, da qual a escravido sua forma mais cruel, deliberadamente utilizada em determinadas regies e cir-cunstncias como parte integrante e instrumento do capital. Sem ela, empreendimentos mais atrasados em reas de expanso no teriam a mesma capacidade de concorrer na economia globalizada15.

    Sakamoto16 demonstra co-mo o capitalismo molda e incor-pora prticas no-capitalistas nas regies perifricas do sistema, de acordo com seus interesses para se expandir ou se reproduzir, funda-mentando como a explorao sel-vagem da periferia do capitalismo essencial para o funcionamento deste sistema. O trabalho escravo possibilita aos produtores rurais, pressionados por uma constan-te demanda de reduo nos seus custos, concorrerem no mercado mesmo sem uma alta taxa de com-posio orgnica do capital.

    13 SAKAMOTO, Leonardo Moretti. Os acionistas da casa-grande: a reinveno capitalista do tra-balho escravo no Brasil contemporneo. 2007. Tese (doutorado em Cincia Poltica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, USP, So Paulo, 2007.

    14 Ibid., p. 111. 15 Idem. A reinveno capitalista do trabalho escravo no Brasil. In: CANUTO, Antnio et al. (org.). Conflitos no campo Brasil 2007. Goinia: CPT Nacional, 2008, p. 111.

    16 Idem. Os acionistas da casa-grande: a reinveno capitalista do trabalho escravo no Brasil con-temporneo. 2007. Tese (doutorado em Cincia Poltica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, USP, So Paulo, 2007, p. 82.

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    Vieira17, confirmando Mar-tins e Sakamoto, ao pesquisar o trabalho escravo na regio Sul e Sudeste do Par, verificou a utiliza-o combinada de formas contratu-ais e no contratuais de trabalho na agropecuria da regio que usa, de um lado, trabalhadores especializa-dos em algumas de suas atividades com contrato de trabalho assina-do, e de outro, trabalhadores tem-porrios sem vnculo empregatcio com a empresa, obrigados a cum-prir extensas jornadas. Estes so os pees que realizam as atividades de desmatamento e formao de pastagens, os servios mais peno-sos e de difcil execuo, em con-dies de alojamento e alimentao extremamente precrias, por vezes inferiores s dispensadas aos ani-mais criados nas fazendas18. Esta a realidade trgica destes traba-lhadores superespoliados, que se transformam em prisioneiros de uma dvida interminvel e para os quais cidadania e direitos huma-nos so meras noes abstratas.

    Desta forma, nas regies de fronteira agrcola, h mais de 40 anos, ocorre o processo de acumu-lao primitiva no interior da re-produo ampliada do capital, a partir do estgio de expropriao das terras dos posseiros e indge-nas, at a fase de formao/produ-o das fazendas, com a utilizao do sobretrabalho da peonagem.

    4 CONSIDERAES FINAIS

    A escravido moderna po-de ser configurada como parte in-tegrante de uma totalidade que tem uma lgica perversa. Tal co-mo ocorreu nos primeiros quatro sculos de nossa histria, o traba-lho escravo continua a ser utilizado tendo em vista a maximizao dos lucros da grande empresa, agora localizada em regio geografica-mente extensa e de difcil acesso. O modelo de desenvolvimento na regio, iniciado na fase do regime militar, seguiu a lgica do capital. Grilagem de terras e trabalho es-cravo foram e continuam sendo in-gredientes utilizados no processo de acumulao primitiva do capi-tal, articulados ao processo de re-produo ampliada.

    Concluindo, entende-se que o estudo sobre a escravido contem-pornea provoca uma reflexo sobre a necessidade de uma nova socieda-de mais justa e solidria, em que se-ja banida a ideia de naturalizao de trabalho escravo e em que todos te-nham o direito ao mnimo existen-cial. Sabendo-se que a histria no linear, mas o resultado de pres-ses e lutas sociais, acredita-se que as transformaes desejadas sejam viveis, a partir de prticas sociais e polticas, construdas cotidiana e coletivamente, que intervenham na realidade buscando alternativas

    17 VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. Trabalho Escravo, Trabalho Temporrio e Migrao. In: CER QUEIRA, Gelba et al (org.). Trabalho escravo contemporneo no Brasil: contribuies crticas para sua anlise e denncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, p. 227 et. seq.

    18 ibid. p. 231.

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    que contemplem as necessidades bsicas de toda a populao, garan-tindo assim a efetividade dos direi-tos sociais e o respeito dignidade da pessoa humana, previstos no texto constitucional.

    6 REFERNCIAS

    AUDI, Patrcia. A Organizao In-ternacional do Trabalho e o com-bate ao trabalho escravo no Brasil. In: CERQUEIRA, Gelba et al (org.). Trabalho escravo contemporneo no Brasil: contribuies crticas pa-ra sua anlise e denncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

    CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de V. de. Em busca de uma defi-nio jurdico-penal de trabalho escravo. In: CPT (org.). Trabalho escravo no Brasil contemporneo. So Paulo: Ed. Loyola, 1999.

    ESTERCI, Neide. Conflito no Ara-guaia: pees e posseiros contra a grande empresa. Petrpolis: Ed. Vozes, 1987.

    GALLETTA, Ilda Pires. Relatrio das discusses e leituras sobre o modo de produo no Brasil colo-nial. 1977. Monografia (Especiali-zao em Histria)Faculdade de Histria, UNESP Assis, 1977.

    GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. So Paulo: tica, 1978.

    MARTINS, Jos de Souza. A escra-vido nos dias de hoje e as ciladas da interpretao. In: CPT (org.). Tra-balho escravo no Brasil contempo-rneo. So Paulo: Ed. Loyola, 1999.

    ______. Fronteira: a degradao do outro nos confins do humano. So Paulo: Ed. Hucitec, 1997.

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    SENTO-S, Jairo Lins de Albu-querque. Trabalho escravo no Bra-sil na atualidade. So Paulo: LTr, 2001.

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    SAKAMOTO, Leonardo Moret-ti. Os acionistas da casa-grande: a reinveno capitalista do trabalho escravo no Brasil contemporneo. 2007. Tese (doutorado em Cincia Poltica)- Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, USP, So Paulo, 2007.

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