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O DESAFIO SOCIAL EMERGENTE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO Wilson Pontes Maziero 1 1 Introdução. É triplo o objetivo deste trabalho. Pretende-se a leitura de tessituras históricas dos chamados biocombustíveis brasileiros; bem como a análise do seu suposto benefício nos cenários nacional e internacional, tendo, como pano de fundo, a cultura da plantation canavieira. No campo contemporâneo ainda pairam estreitíssimas relações desta monocultura com a manutenção do trabalho escravo, com especial respaldo para os canaviais paulistas. “O padrão de empreendimento que utiliza esse tipo de mão-de-obra continua sendo o de fazendas com grandes áreas monocultoras voltadas para a exportação” (SAKAMOTO, 2008, p. 61). Como área estratégica da política nacional, o processo industrial do etanol brasileiro ganha corpo na presente pesquisa, como fonte alternativa para veículos automotores. Trabalhadores que foram submetidos à reprimenda da condição análoga à de escravo, bem como os seus familiares, cientistas sociais, juristas, consultores legislativos e jornalistas desfilam pelo texto, em um cenário cada vez mais afetado por mudanças de paradigma dos últimos tempos e que possui o lucro como engrenagem investida neste ramo, doravante o vetor meio ambiente. 1 O autor é bacharelando do Departamento de Ciências Jurídicas do Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB, autor e formulador do blog AlibiJus: <www.alibijus.blogspot.com>.

trabalho escravo nas indústrias de cana-de-açúcar O DESAFIO SOCIAL EMERGENTE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

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O DESAFIO SOCIAL EMERGENTE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

Wilson Pontes Maziero1

1 Introdução.

É triplo o objetivo deste trabalho. Pretende-se a leitura de tessituras

históricas dos chamados biocombustíveis brasileiros; bem como a análise do seu

suposto benefício nos cenários nacional e internacional, tendo, como pano de fundo,

a cultura da plantation canavieira.

No campo contemporâneo ainda pairam estreitíssimas relações desta

monocultura com a manutenção do trabalho escravo, com especial respaldo para os

canaviais paulistas.

“O padrão de empreendimento que utiliza esse tipo de mão-de-obra continua

sendo o de fazendas com grandes áreas monocultoras voltadas para a exportação”

(SAKAMOTO, 2008, p. 61).

Como área estratégica da política nacional, o processo industrial do etanol

brasileiro ganha corpo na presente pesquisa, como fonte alternativa para veículos

automotores.

Trabalhadores que foram submetidos à reprimenda da condição análoga à

de escravo, bem como os seus familiares, cientistas sociais, juristas, consultores

legislativos e jornalistas desfilam pelo texto, em um cenário cada vez mais afetado

por mudanças de paradigma dos últimos tempos e que possui o lucro como

engrenagem investida neste ramo, doravante o vetor meio ambiente.

1 O autor é bacharelando do Departamento de Ciências Jurídicas do Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB, autor e formulador do blog AlibiJus: <www.alibijus.blogspot.com>.

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2 A História dos Biocombustíveis.

Lançado nos anos 1970, em decorrência da crise do petróleo, o Programa

Nacional do Álcool – o pró-álcool – é um programa governamental que surgiu com a

edição do decreto n° 76.5932, visando fornecer alternativas para suprir, em larga

escala, a dependência e deficiência de oferta daquele combustível fóssil, sendo este

ecologicamente mais viável além de uma fonte de energia renovável.

Importante salientar que, no Brasil, já em meados da década de 20, o

Instituto Nacional de Tecnologia (acrônimo INT) não mediu esforços no sentido de

encontrar, através de exaustivos estudos de cunho científico, combustíveis que

fossem alternativos e renováveis; oportunidade em que fora revelada, pelo então

professor da Universidade Federal do Ceará – UFCE, o senhor Expedito Parente, a

descoberta do biodiesel, o que lhe rendeu a autoria da patente “PI – 8007957”,

doravante a primeira para a produção de biodiesel e de querosene vegetal de

aviação.

Este biocombustível nada mais é do que um combustível de origem não-

fóssil, normalmente produzido a partir de vegetais com potencial econômico

aproveitável, como a cana-de-açúcar ora em análise.

Além da utilização da cana-de-açúcar, como fonte de energia limpa para

veículos automotores, existem ainda outras, exempli gratia: a mamona, soja, canola,

babaçu, mandioca, milho e beterraba.3

Acerca das fontes acima arroladas, o douto relatório intitulado O Brasil dos

Agrocombustíveis: Impactos das Lavouras sobre a Terra, o Meio e a Sociedade -

Gordura Animal, Dendê, Algodão, Pinhão-Manso, Girassol e Canola, produzido e

formulado pela ONG Repórter Brasil, no ano de 2009, revela que ao longo deste

mesmo ano, “a soja continua sendo o carro-chefe do programa brasileiro de

biodiesel. Dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis

(ANP) indicam que pelo menos quatro em cada cinco gotas de biodiesel produzido

no país têm origem no óleo de soja.

Em posição minoritária, estão produtos como a gordura bovina e os óleos de

algodão e de palma ou dendê. Já o girassol, canola e pinhão-manso possuem

2 Informações disponíveis no link: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=123069>. Acesso em: 27 jan. 2010.3 Informações disponíveis no link: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Biocombust%C3%ADvel>. Acesso em: 18 jan. 2010.

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participação irrisória na fabricação de biodiesel, mas especialistas alertam para o

potencial dessas culturas em um cenário de demanda crescente. Atualmente, o país

precisa produzir 1,8 bilhão de litros de biodiesel por ano para garantir a mistura de

4% desse agrocombustível ao diesel de petróleo, o chamado B4. Com o B5 à vista,

diante da pressão de um setor industrial que tem capacidade instalada para fabricar

três vezes mais do que produz, novas matérias-primas podem se tornar viáveis para

a cadeia produtiva do biodiesel”.4

Revelando o vetor qualitativo dos biocombustiveis, resultados recentes de

pesquisas de campo mostram que “os biocombustíveis adicionados em veículos

automotores fazem com que os mesmos percorram mais de vinte mil quilômetros

sem necessidade de qualquer modificação mecânica prévia” (LIMA, 2005, p. 09).

2.1 Cana-de-Açúcar: Fonte de Riqueza.

Construindo um juízo mais bem delineado acerca do tema, é importante

registrar que somente no estado-membro de São Paulo, o qual encabeça

atualmente o título de maior produtor de açúcar e álcool do país, a área ocupada

pela plantation canavieira corresponde a 5,1 milhões de hectares5, com tendências

de crescimento cada vez maiores ante a política da mercantilização do etanol6 nos

mercados interno e externo (RIBEIRO e SILVA, 2008, pp. 67-68).

A tabela 0.1 a seguir mostra o multi-processo de produção da cana-de-

açúcar7 nos principais municípios paulistas referentes à área colhida, quantidade

produzida, rendimento médio e variação de produção:

4 SAKAMOTO et. al. O Brasil dos Agrocombustíveis: Impactos das Lavouras sobre a Terra, o Meio e a Sociedade - Gordura Animal, Dendê, Algodão, Pinhão-Manso, Girassol e Canola – 2009. Relatório Completo. Informações disponíveis no link: <http://www.reporterbrasil.org.br/escravidao_OIT.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2010.5 O equivalente a 5,1 milhões de campos de futebol.6 Há grande probabilidade de que o álcool brasileiro perca espaço nos mercados interno e externo dada a recente descoberta de petróleo na camada pré-sal, descoberta em meados de 2007, na chamada Amazônia Azul. Informações disponíveis no link: <http://www.petrobras.com.br/pt/energia-e-tecnologia/?video=2#flash>. Acesso em: 19 jan. 2010.7 Informações disponíveis no link: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=998>. Acesso em: 7 mar. 2010.

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A produtividade do estado de São Paulo, juntamente com a de outros

estados, como o Rio de Janeiro, Mato Grosso, Tocantins, Goiás, entre outros, faz do

Brasil não só o maior produtor de cana-de-açúcar, como também o maior exportador

de açúcar e álcool do planeta.

Importante ainda salientar que o volume de álcool produzido no esteio do

ano de 2004, no Brasil, foi de 15.153.458 (quinze milhões, cento e cinquenta e três

mil, quatrocentos e cinquenta e oito) metros cúbicos, sendo que o valor pecuniário

de suas exportações (em dólares) chegou a cifra de R$ 504,083 (quinhentos e

quatro milhões e oitenta e três mil); somando o álcool carburante e os seus

derivados.8

Em termos de riqueza, o Brasil ocupa atualmente a 6ª (sexta) posição no rol

das maiores economias do planeta; todavia, é um dos países mais desiguais no

quesito distribuição de renda, ocupando atualmente, no cenário internacional, a 75ª

(septuagésima quinta) posição no ranking do IDH, doravante o Índice de

Desenvolvimento Humano9, o qual mede o parâmetro de desenvolvimento de um

determinado país a partir dos quesitos: educação, riqueza e expectativa média de

8 Dados colhidos a partir do trabalho produzido pela ONG Repórter Brasil, cujo coordenador é o jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto, baseado em dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Ministério do Desenvolvimento Agrário. SAKAMOTO, Leonardo et al. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil. Contribuições Críticas para a sua Análise e Denúncia. Rio de Janeiro. Ed. UFRJ, 2008. pp. 65-67.9 O IDH foi inventado e formulado pelo economista indiano Amartya Sen, prêmio Nobel de economia de 1998, e pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq.

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vida.

As seguintes tabelas apontam a situação do Brasil nos quesitos Produto

Interno Bruto - PIB10 e Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, respectivamente:

10 O equivalente à produção de bens e serviços produzidos por um determinado País durante o prazo de 01 (um) ano. No Brasil, a tabela mostra a situação que decorreu do ano de 2007.

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2.2. A Cana-de-Açúcar e o Processo Industrial do Etanol Brasileiro.11

Depois de colhida no campo, a cana-de-açúcar chega até à(s) usina(s) por

caminhões. Chegando ao parque industrial, o caminhão carregado de cana é

pesado em uma balança que irá precisar a quantidade de cana que este carrega. O

passo seguinte é a análise da quantidade de açúcar que aquela cana específica

possui; isto é feito com a retirada de uma amostra pequena do carregamento através

da utilização de sondas (que podem ser oblíquas ou horizontais).

A amostra da cana é direcionada a um laboratório que diagnosticará o índice

de ATR (Açúcares Totais Recuperáveis), ou seja, a quantidade efetiva de açúcar que

aquela cana comporta.

Depois da pesagem, a cana poderá ter dois destinos distintos: ou será

encaminhada diretamente à mesa alimentadora da usina, onde, se colhida

11 O presente capítulo fora desenvolvido com base em subsídios científicos disponíveis no link: <http://www.youtube.com/watch?v=VHqNbX0475A&feature=related>. Acesso em: 25. fev. 2010.

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manualmente, poderá ser lavada ou ventilada – em limpeza a seco – para a

remoção das impurezas, ou, no caso da cana colhida mecanicamente, esta seguirá

diretamente ao picador, desfibrador e moenda ou difusor.

Algumas usinas trabalham com pátios de recepção de cana e estocagem,

onde a cana é depositada ou fica simplesmente aguardando nos próprios caminhões

até ser encaminhada à mesa alimentadora.

O próximo passo consiste na preparação da cana para a extração do seu

caldo, aumentando assim sua densidade e capacidade de moagem. Neste processo,

objetiva-se também romper as células para a liberação do caldo nela contido; com

isto, a cana passará por um jogo de facas (processo de preparação) até entrarem

em um desfibrador, onde cerca de 85% a 92% de suas células serão rompidas,

facilitando assim a extração do caldo.

Constituída basicamente de fibras e de caldo, o que interessa para a cadeia

produtiva da cana-de-açúcar é o açúcar contido em seu bojo, o qual se encontra

dissolvido no caldo. Portanto, o objetivo principal se perfaz por extrair ao máximo a

quantidade de caldo presente no bojo da cana.

Tal extração se perfaz por duas diferentes técnicas, a saber: a utilização de

moendas ou difusores.

Nas moendas, formadas por vários termos com dimensões diferentes, a

cana passará por um processo de esmagadura. Cada termo, ou castelos como são

conhecidos, possuem 04 (quatro) rolos principais, a saber: rolo de entrada, rolo

superior, rolo de pressão e rolo de saída. No primeiro termo é onde são extraídas as

maiores quantidades de caldo; depois disso, a cana é embebecida de água para

passar pelos demais termos, eis que cerca de 94% a 97% de seu caldo é extraído.

O número de termos varia de 04 (quatro) a 07 (sete).

A outra forma de extração do caldo é feita pelo difusor de cana. Nesta

seara ocorre a ruptura das células no preparo da cana (onde se encontra a

sacarose) e a lavagem desta com água ou caldo oriundo(a) da própria cana. Neste

processo, os índices de extração podem chegar até a 98% do caldo retirado.

Após a extração do caldo, o processo se divide em 03 (três) diferentes

estágios; de um lado, o bagaço que sobra é dirigido até à esteira ou é direcionado

até às caldeiras, local onde será queimado e o seu vapor transformado em energia,

no processo que se conhece por co-geração de energia ou bioeletricidade.

As usinas brasileiras são altossuficientes em geração de energia durante o

esteio da safra e ainda exportam os excedentes para as redes de distribuição,

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vendendo desta forma créditos de carbono, em flagrante conformidade com o

protocolo de Kyoto.

Cada tonelada de cana processada gera em média 260 (duzentos e

sessenta) quilos de bagaço. A energia co-gerada é capaz de acionar as moendas

nos processos elétricos, ou o vapor utilizado para o seu acionamento transforma a

energia térmica em mecânica.

Com a extração do caldo da cana concluída, o próximo passo será o

tratamento deste caldo, objetivando a retirada de impurezas solúveis e insolúveis

nele encontradas.

O tratamento pode ocorrer em várias fases, desde a passagem do caldo por

peneiras até a força centrífuga utilizada para separar os materiais sólidos do líquido,

pesagem do caldo (eis que permite o melhor controle químico do processo) e

tratamento químico do mesmo.

Depois de tratado, o caldo pode ser encaminhado para a fabricação de

açúcar ou de etanol.

No primeiro caso, o caldo passa por um processo químico conhecido como

sulfitação, que tem por objetivo inibir as reações que causam formação de cor,

coagulação de coloides e solúveis, diminuindo assim a viscosidade do caldo; e a

calagem para neutralizar o PH do caldo e eliminar corantes. Logo em seguida, o

caldo é preparado para a próxima fase: a do aquecimento.

Nesta presente fase, o caldo é aquecido a aproximadamente 105 graus

célsius, com a finalidade de acelerar e facilitar a coagulação, aumentando a

eficiência da decantação e possibilitando a degasagem do caldo.

Depois de aquecido, o caldo é purificado em um processo chamado de

decantação ou clarificação. O “caldo decantado” é retirado da parte superior de cada

compartimento e enviado ao setor de evaporação para concentração. As impurezas

sedimentadas formam o lodo, o qual normalmente é retirado do decantador pelos

fundos e enviado ao setor de filtração para recuperação do açúcar nele contido;

depois, o caldo é filtrado com o objetivo de recuperar o açúcar ainda contido no lodo,

na sequência, ele passa por evaporadores para ser depois cozido, cristalizado,

centrifugado e secado.

A figura a seguir mostra como é feito o procedimento no Setor de Filtros:

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O passo seguinte diz respeito ao açúcar, eis que pode ser refinado ou

ganhar outras formas, sendo este ensacado, pesado e armazenado para ser, logo

em seguida, transportado por via rodoviária ou ferroviária.

Algumas usinas comercializam o açúcar diretamente para os consumidores,

embalando e ensacando o seu produto em suas próprias unidades; utilizando-se de

marcas próprias.

Após passar pelo crivo do tratamento primário de peneiramento, o caldo é

submetido a um tratamento mais completo, que implica na adição de caldo,

aquecimento e posterior decantação, sendo este um tratamento semelhante àquele

utilizado na fabricação do açúcar.

Já livre de impurezas e devidamente esterilizado, o caldo está pronto para

ser encaminhado para a fermentação, onde os açúcares são transformados em

álcool.

As reações químicas ocorrem nos tanques denominados dornas de

fermentação. O tempo de fermentação varia de 6h a 10h. Ao final desse período,

praticamente todo o açúcar foi consumido com a consequente redução da liberação

de gases e multiplicação do fermento. Após a fermentação, o vinho é enviado às

centrifugas para recuperação do fermento que é tratado novamente e utilizado para

a continuidade do processo fermentativo.

O excedente de fermento pode ser encaminhado para a secagem, dando

origem a um novo produto: a “levedura seca”, a qual será comercializada como

complemento alimentar tanto para animais quanto para seres humanos, como fonte

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de proteínas.

O vinho centrifugado é encaminhado para a destilaria, processo este que se

utiliza dos diferentes pontos de ebulição nas diversas substâncias voláteis

presentes, separando-as. A operação é realizada com o auxílio de colunas

distribuídas em vários troncos.

Cada coluna tem a finalidade de esgotar a maior quantidade possível de

álcool do seu produto de fundo, que é denominado vinhaça.

A vinhaça, retirada em uma proporção aproximada de doze litros para cada

litro de álcool produzido, constituída principalmente de água, sais sólidos em

suspensão e solúveis, é utilizada na lavoura como fertilizante, sendo o seu calor

parcialmente recuperado pelo caldo em um trocador de calor.

O álcool hidratado, produto final dos processos de destilação e retificação, é

uma mistura binária álcool/água que atinge um teor na ordem de 96 graus. Este

álcool hidratado pode ser comercializado nesta forma ou pode passar por um

processo de desidratação, transformando-se em álcool anidro, utilizado no Brasil

como aditivo à gasolina.

Depois de pronto, o álcool produzido é armazenado em tanques de grande

volume, situados nos parques industriais ou mesmo embarcado em caminhões-

tanques ou composições ferroviárias, para enfim ser comercializado às

distribuidoras.

A figura a seguir mostra como é feito o processo de secagem e ensaque do

açúcar para a sua posterior distribuição aos varejos e comércios de venda de

açúcar:

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3 Os Bóias-Frias: “Classe Oprimida”

A situação econômica do Brasil ora exposta encontra estreita consonância

nas relações de trabalho dos bóias-frias do estado de São Paulo, classe de

trabalhadores que realiza o serviço do corte manual da cana nos períodos de sua

safra (que ocorre entre os meses de abril e novembro), buscando levar às suas

famílias ajuda pecuniária proveniente do labor sazonal (Cf. SAMUELSON e

NORDHAUS, 1993, pp. 661-670) ora aqui em análise, cujo contingente é composto,

em sua maioria, de migrantes nordestinos.12

“Até há pouco tempo, o setor usineiro dependia exclusivamente da mão-de-

obra humana para realizar o corte da cana-de-açúcar. Eram famílias inteiras de

trabalhadores rurais que passavam horas, todos os dias, enfrentando as condições

mais adversas para desempenhar o seu trabalho. Só que de uns tempos para cá, o

processo de colheita da cana passa por um intenso processo de mecanização”.13

12 Grande pólo exportador de trabalhadores para a empreitada braçal é o estado do Piauí, juntamente com o estado do Maranhão. No estado-membro do Piauí, os municípios de onde o maior número de trabalhadores emigram são: Barras, Miguel Alves, Esperantina, Uruçuí, Corrente e São Raimundo Nonato, segundo diagnóstico produzido pela Comissão Estadual de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo (CPTE) [2002]. Majoritariamente, esses trabalhadores se deslocam para o Pará, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo e Brasília. PRADO, Adonia Antunes et al. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil. Contribuições Críticas para a sua Análise e Denúncia. Rio de Janeiro. Ed. UFRJ, 2008. p. 316.13 CANA: Colheita Mecanizada. Revista Rural, São Paulo. rev 92, 2005. Disponível em: <http://www.revistarural.com.br/Edicoes/2005/artigos/rev92_cana.htm>. Acesso em: 18 jan. 2010.

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Com isso, o cenário ao qual se encontram esses trabalhadores comporta o

agravante de que os mesmos estão perdendo cada vez mais espaço nos canaviais,

tendo de concorrerem com o maquinário rural moderno que realiza a mesma tarefa

(o corte da cana) em menos da metade do tempo a que seria feito por esses

trabalhadores, forçando-os a trabalhar por produção em jornadas exaustivas que

ultrapassam facilmente as 10h diárias.

Os pesquisadores Jadir Damião Ribeiro14 e Maria Aparecida de Mores Silva15

discorrem a esse respeito:

“... Ademais, esse processo também implica a concentração dos capitais e da terra, sem contar que, nos últimos anos, tem se intensificado o processo de mecanização do corte da cana, responsável pela contínua redução de empregos não somente para os trabalhadores locais como também para os migrantes. Ademais, esta produção é caracterizada pelo constante aumento dos níveis de produtividade do trabalho, por meio da imposição da média de produção diária, atualmente em torno de 12 (doze) toneladas de cana cortadas. Tais fatos contribuíram para a ocorrência de 22 (vinte e duas) mortes, no período de 2004 a 2008, supostamente, por excesso de esforço.” (RIBEIRO e SILVA, 2008, p. 68).

O ponto chave que desvenda o porquê do presente estado de coisas,

dessas relações trabalhistas tão absurdas e de ilegalidade flagrante, é explicado

pelas condições de vida a que se encontram esses trabalhadores/camponeses,

determinadas em larga escala pelos desníveis gerais resultantes do grau de

instrução e das características geopolíticas de seus locais de origem respectivos.

O trecho a seguir aponta a situação sócio-econômica do estado-membro do

Piauí, o qual fora colhido através das esposas dos peões que são ou que foram

submetidos à reprimenda da condição análoga à de escravo:

“À pergunta 'Por que os homens viajam seguidamente apesar de saberem que voltarão sem dinheiro, que poderão sofrer abusos, como já aconteceu anteriormente...?', as mulheres afirmaram: 'Aqui não dá, aqui não tem serviço, se tivesse não saíam [...]. Eles saem para o mundo porque é o jeito. Aqui não tem um meio'. Ou então: 'Tem mês que ele não

14 Bolsista de iniciação científica do CNPq, sob a orientação de Maria Aparecida de Mores Silva. Graduando do Curso de Direito da Fundação Municipal de Direito de Franca.15 Professora livre-docente da UNESP. Colaboradora dos programas de pós-graduação de Sociologia da UFSCar e de Geografia da UNESP/PP. Pesquisadora do CNPq.

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ganha nem um centavo...' É fraco demais aqui...” (PRADO apud FIGUEIRA, 2008, p. 317)

Em verdade, tal circunstância resulta de uma necessidade profundamente

incrustada na própria essência de sobrevivência desses sujeitos – que são

geralmente chefes de família e (ou) o filho mais velho da prole que saem em busca

de emprego fora de seus estados – que, uma vez restritos ao âmbito do isolamento

de seus lares, encontram-se desprovidos do mínimo existencial a que deveria ser

imbuído pelo Estado por meio das políticas públicas16, sendo assim forçados pelas

necessidades a saírem do isolamento geográfico de suas localidades na busca

esperançosa de melhorarem suas vidas, “vendendo suas forças de trabalho” (Cf.

MARX, 2006, p. 30) aos grandes proprietários de terras que, na maioria das vezes,

pouca ou nenhuma retribuição pecuniária lhes fornecem.

A mão-de-obra cabocla17 utilizada para o corte da monocultura canavieira no

campo também destina-se a outros estados brasileiros além do estado de São

Paulo. O depoimento a seguir é o relato de experiência de Cícero Guedes dos

Santos18, que discorre acerca do que aconteceu consigo em sua redução à condição

análoga à de escravo nos canaviais do estado de Mato Grosso. Verbis:

“- Meu nome é Cícero Guedes dos Santos, nasci em Alagoas, tenho 42 anos, minha companheira e cinco filhos. Ela é uma grande guerreira e me sustenta.Comecei a trabalhar com 08 anos de idade, não porque minha mãe me forçava, mas sim porque os fazendeiros pensavam assim: começou a andar tem que trabalhar para ajudar, porque senão a fazenda não desenvolve; só os pais e as mães não dão conta do serviço.19

Não tive pai. Meu pai e minha mãe foram a senhora que me botou no

16 No mesmo sentido aponta o trabalho realizado por Gelba Cavalcante de Cerqueira e Ricardo Rezende Figueira, em que mostra a principal causa para a persistência do presente crime – trabalho escravo contemporâneo – “a escassez de políticas públicas voltadas para a reprodução social dos trabalhadores.” Cf. FIGUEIRA e CERQUEIRA, 2008, p. 200.17 Eis que sua composição abarca, de forma quase predominante, pessoas com ascendência indígena, hispânicas (ou pardas) e negras. Na verdade, a escravidão contemporânea pode arregimentar também pessoas de ascendência asiática ou brancas, diferentemente do que ocorria no passado. Confira o Anexo – I da presente obra.18 O presente depoimento fora relatado por um trabalhador rural que reside atualmente em um assentamento do MST, no município de Campos (RJ). CERQUEIRA, Gelba Cavalcante de et al. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil. Contribuições Críticas para a sua Análise e Denúncia. Rio de Janeiro. Ed. UFRJ, 2008. pp. 121-124.19 O leitor já pode sentir neste trecho as claríssimas violações às normas trabalhistas a que essas pessoas são expostas todos os dias. Vítimas do arbítrio da cegueira condenável de um fanatismo odioso evocado pelo lucro, engrenagem investida neste determinado ramo.

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mundo através de Deus. Cortava cana no Norte, em Alagoas. Já passei muita fome, trabalhei com fome, levantava e deitava com fome. E a minha mãe dizia: 'Meu filho, você não vai aguentar, você vai morrer'. Aí eu dizia pra ela que se parasse, seria pior. Meu alimento era a cana, chupava cana para me alimentar. Chegava na fazenda para me alimentar e o fazendeiro perguntava quanto eu tinha ganhado no corte da cana. Na época era cruzeiro, eu ganhava Cr$ 5,00. Então, ele dizia para eu comprar Cr$ 2,00 e os outros Cr$ 3,00 abatia na conta. Comprava meio quilo de feijão, meio quilo de farinha, não tinha como comprar carne, nem açúcar. Minha mãe perguntava: 'Meu filho, e o resto?' Eu respondia: 'Não me deixaram comprar porque eu não tenho mais recursos para pagar'. Aí, fazia aquela gororoba e comia. No outro dia ia trabalhar.Chegava o final de semana e fazia as contas para eu ver se tinha algum recurso, algum resto de dinheiro para ir à feira. Eu via os carros passarem para a feira e eu não tinha dinheiro. Eu ficava na mesma situação. Na segunda-feira eu ia trabalhar na mesma situação. Eu já não aguentava mais.Fui para o Mato Grosso trabalhar cortando cana, contratado pelos famosos 'gatos'. Eles usavam a mesma tática: prometiam o céu, a terra e as estrelas... Quando chegávamos lá, nós víamos o tremendo inferno. Eu ia trabalhar nos caminhões de cana. Agora dizem que modernizou, mudou para ônibus. Mas nós íamos trabalhar nos caminhões de cana. Muitas vezes eu vi meus companheiros morrerem; eles apanhavam e eram chicoteados na frente de todo o mundo. Nós não podíamos fazer nada e quem reclamasse apanhava também.Eu pergunto: que país é esse em que nós vivemos? O Brasil é nosso, mas tem a elite, que acha que é dona do Brasil, que escraviza os trabalhadores, as crianças sofrem, não há respeito pelos idosos.Não aguentei mais a situação. Em 1993, falei pra minha mulher pra fugirmos, pra irmos embora, senão daquele jeito morreríamos. Ela me disse que não tínhamos dinheiro e perguntou o que iríamos fazer. Eu disse para irmos assim mesmo. Mandei colocar as coisas, mais uns trapos, botar em uma bolsa algumas panelas, e o resto destruímos porque não podíamos levar. Os meus vizinhos, me lembro que na época me deram três quilos de peixe. Levamos na viagem e à noite assamos na brasa. Os vizinhos me perguntaram como é que eu ia levar três crianças, se eu não ia acabar matando elas na estrada. Eles fizeram uma vaquinha e me deram Cz$ 15,00; na época a moeda havia mudado. Eu fui. Quando cheguei num coletivo na divisa que pega a estrada para o Rio, o dinheiro acabou. Aí eu falei assim: 'o dinheiro acabou, minha velha. O que nós vamos fazer?' Tinha um posto carreteiro. Eu fui lá, mas o gerente falou que se estivesse pensando em durmir, poderia procurar o matagal, por que ali eles não iriam deixar por causa da segurança do posto. Falei pra minha esposa que teríamos que durmir no mato. Nisso chega um coletivo iluminado. Eu acho que foi Papai do Céu que mandou. Quando cheguei lá, eram dois paulistas que tinham ido comprar o ônibus no Rio Grande do Sul. Eu expliquei minha situação e eles disseram que meu estado era realmente crítico, que no caminho viram muito gado morrendo, mas não sabiam o que poderiam fazer pela gente. Mandaram eu ficar ali, entraram e tomaram café, e eu fiquei esperando. Depois, na volta, um deles olhou para mim, de cima a baixo, e falou para eu buscar minha família. Contei

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para minha esposa que eu achava que tinha arrumado uma carona. Ela me disse que não era hora de brincar, que a coisa era séria. Então eu falei para pegar as coisas que nós iríamos embora. Foi quando eles nos acolheu, eram dois filhos de Deus, e nós fomos de carona. Deram alimentação para nós, queriam nos levar para São Paulo, mas eu via na mídia que São Paulo era muito perigoso e fiquei em Campos.Campos é uma cidade grande e quando eu pensava onde iríamos ficar, uma senhora que vendia galinha no abatedouro olhou para as minhas crianças, olhou para a minha situação, chamou minha esposa e começou a perguntar de onde nós éramos, de onde vínhamos, onde iríamos ficar. Minha esposa disse que estávamos atrás de um trabalho. Ela deu lanche para as crianças e disse que tinha um proposta para nós: irmos para o Parque Cidade Luz, arrumar uma casinha para ficarmos até nós nos ajeitarmos. Minha esposa ficou meio espantada, mesmo assim embarcamos no ônibus. Quando eu cheguei, todo mundo queria saber um pouco do meu caso, o que tinha acontecido, por que eu tinha fugido do meu estado. Mas eles já tinham visto na televisão que a fome estava terrível, a seca... Chegou gente com cesta básica, colchão... Essa mesma companheira alugou a casa. Ficamos lá, todo mundo solidário com a situação da minha família. Nós ficamos e não faltou nada para nós. E na segunda-feira comecei a trabalhar na maldita cana de novo, em Campos, só que aqui a justiça era um pouco... Não sei, tinha um sindicalista rural que era comprometido com a classe trabalhadora, mantendo a extração da cana por um preço – soca, planta –, então tinha mais ou menos um preço.Eu trabalhei cortando cana, e o gato se animou e disse que eu era o bicho para cortar cana. Eu disse: 'não fala isso não'. Aí, a vizinha disse que eu não comprasse nada que eles me sustentariam, que eu tirasse meu dinheiro livre. Minha esposa falou que parecia que nós estávamos em outro mundo. Eu disse que Deus existe. Comecei a trabalhar e recebi. Aí o gato começou a espalhar que chegou o 'alagoano doido', que era o rei no corte de cana, e eu disse que ele acabasse com isso por que estava fazendo muita fama de mim. Eu sei que fui trabalhando, trabalhei um bom tempo. Depois eu vi que a exploração do corte de cana estava voltando para a mesma situação. Me levaram para Gruçaí, e eu comecei a trabalhar de caseiro. Isso já era em 1996.Trabalhei de caseiro um ano, um ano e pouco. Aí a patroa queria me botar um cabresto e me levar que nem um cachorrinho de balaio para onde ela quisesse. Eu disse que esse trato era muito bom, mas tinha medo dessa situação. Foi quando em 1997 teve a explosão da ocupação da Usina São João. Eu, vendo aquela situação toda, vi que o meu mundo estava começando a aparecer. Eu visitei esse assentamento, que era acampamento, e os companheiros de lá falaram que tinha uma vaga para mim, se eu fosse disposto. Então, eu disse que coragem eu não tinha não, mas se todos eles corressem, eu corria também, mas eu não ia me borrar não.Estava com muito medo, porque eu tinha vindo do Norte. Lá, se falasse em terra ou colocasse os patrões na Justiça, nem a cabeça sobrava porque os jagunços consumiam. Será que isso foi nos anos 1990, será que isso foi no ano de 2005, será que isso foi no ano de 1970? Não, foi em 1984 ou 1985, e hoje em dia não adianta ninguém dizer que está combatendo isso, porque existe a mesma situação, porque há

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impunidade e eles acham que são os donos do mundo, acham que podem comprar todos, Policia Federal, acham que podem comprar o juíz, senador e deputado, porque eles é que apóiam e nós somos as classes menos favorecidas. Graças a Deus esse quadro está mudando.Aí fiquei no assentamento, no acampamento, na luta. Vai para lá e vai para cá, ações para cá e justiça para lá, polícia vai para um lado e nós para o outro, eu só sei que o assentamento aconteceu. E uma coisa eu tenho para dizer para vocês: que hoje sou outro homem, sou feliz, mas ainda tenho um choro na garganta, porque tem muitas injustiças sociais e muitos companheiros foram assassinados. Não é o país que nós queremos ainda, está muito longe de ser o país que nós queremos. Por isso os companheiros estão aqui lutando por uma causa só. Eu tenho certeza que no governante eu não confio; eu confio na sociedade organizada, confio nos trabalhadores organizados, porque se nós fôssemos esperar por políticos, nós estaríamos dentro d'água. Se fosse esperar pelo presidente dizer assim: 'Cícero, você será assentado', eu estava dentro d'água. Foi a luta dos nossos companheiros, hoje nós somos assentados, 506 famílias. Hoje eu tenho outra vida.Agora eu não tenho mais fome, eu já mato a fome de outros companheiros que têm lutado pela mesma situação. Eu já era comprometido com a situação, eu queria fazer alguma coisa, mas não podia, se eu não tinha comida para mim como é que ia dar? Hoje eu já levo uma banana para os companheiros que estão lá na luta. Quando tem companheiro em má situação, nós ajudamos. Eu sou um homem feliz, mas não muito feliz, só um pouco feliz porque ainda tem muitas injustiças. Sabemos que o capitalista diz que não é preciso a reforma agrária, que o seu projeto está em miséria enquanto milhões de sem-terra estão jogados na estrada, o medo de ir para a cidade e enfrentar a favela, a fome e o desemprego. Saindo dessa situação e segurando as mãos desses companheiros, assim ninguém chora mais, ninguém tira o chão de ninguém, o chão onde pisava o boi é feijão e arroz capinado. E eu termino com uma fala: 'Que chore o latifundiário e dêem risadas as famílias brasileiras'.”

O longo trecho de depoimento acima mencionado, colhido de um ex-

trabalhador submetido à reprimenda da condição análoga à de escravo, não se

perfaz por uma voz isolada de um canavial somente, sendo (a mais não poder!) voz

coletiva de “toda uma geração que clama para ser ouvida; que clama por seus

direitos” (BOAVENTURA, [2006?]).

O estado-membro do Mato Grosso se destaca por abarcar “o maior conjunto

de assentamentos para a reforma agrária do país” (NETO, 2008, p. 242); porém,

este fato logo encontra paradoxo por meio do uso indiscriminado de trabalhadores

em regime de escravidão contemporânea, largamente explorados na assim

conhecida “zona de transição”.

Também neste estado fica localizada a destilaria Gameleira, a qual é

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responsável pelo processamento de nada menos do que 280.520 (duzentas e

oitenta mil, quinhentas e vinte) toneladas de cana, valendo-se do uso/exploração da

mão-de-obra nordestina, sendo que, no esteio do ano de 2005, fora acusada de

manter, em suas dependências, mais de 1000 (mil) trabalhadores em regime de

escravidão, um recorde nacional.

As humilhações experimentadas pelos peões, que vão desde o início do

trajeto até o término da empreitada (quando são “largados nos cantos” à própria

sorte, sendo alguns até mesmo mortos), leva esses indivíduos a não mais

regressarem para os seus antigos lares, situação esta em que negam suas

legendas, transformando-se em peões do trecho, ou seja, os “peões que deixaram

suas terras de origem e não mais se fixaram em nenhuma outra região, indo de um

canto para outro em busca de trabalho” (op. cit. p. 243).

Adonia Antunes Prado discorre, com brilhantismo, os sentimentos desses

trabalhadores:

“... A perda do contato do trabalhador com a família nem sempre significa que este esteja morto. Seu silêncio também pode se dar por vergonha, pois tendo saído em busca de dinheiro e de novas oportunidades, se vê na situação de regressar ainda mais pobre, doente, ferido no corpo e na alma pelas humilhações vividas. Muitos, então, preferem não dar notícias, não assumindo, diante da família e dos amigos, o fracasso de seus projetos.” (PRADO apud FIGUEIRA, 2004).

4 “GATOS”. Conversa Agradável; Destino Difícil.

Personagem que se aproveita das péssimas condições de vida a que se

encontram pessoas de “raízes humildes”, o gato, segundo José Carlos Aragão Silva

(2008, p. 208), “é o empreiteiro com grande habilidade para recrutar trabalhadores

por meio de promessas sedutoras de trabalho e ganhos fáceis”; sendo assim um dos

principais elementos responsáveis pela diminuição do custeio da mão-de-obra das

fazendas e por fim assegurar maior locupletamento em seus negócios.

O gato possui estreitíssima ligação com policiais e políticos locais e quase

sempre se adentra em localidades com poucas oportunidades de estudos e

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empregos para arregimentar trabalhadores até às fazendas de seus patrões, as

quais estão localizadas a centenas de quilômetros dali, geralmente em outro estado

da federação20 – com o objetivo único de dificultar possíveis fugas –, sob promessas

de um trabalho rápido, com curta duração e retribuição pecuniária razoáveis. “O gato

também recruta mulheres e menores de 18 (dezoito) anos para a empreitada” (SILVA

apud ALMEIDA, 1998).

Como figura convincente e de agradável presença que é, o gato sabe

seduzir o peão ou um grupo de peões munido somente do porte de suas palavras,

ou seja, convencendo – de forma notável – os peões de que o trabalho que está

“logo à frente” é digno de uma pessoa humana, sendo o aliciamento geralmente

praticado nas dependências de pensões, mercadinhos, bares e padarias, no bojo do

qual lhes são oferecidos “pingados de café”, pequenos lanches e até o pagamento

de bebidas alcoólicas (cachaças, pingas e cervejas); tudo visando a facilitar a

arrolagem do processo de recrutamento.

A conversa fácil dos gatos conquista paulatinamente a consciência dos

peões, entabulando o (con)trato verbal de trabalho.

Como se não bastasse, lhes são oferecidos adiantamentos e transportes. O

peão, antes vítima das dificuldades, agora acredita que lhe sobreveio um melhor

rumo; que está sendo premiado pelo destino. No que tange à perspectiva do gato, o

peão comporta o estigma de mão-de-obra barata e descartável, sendo, portanto,

motivo de chacota e desleixo.

Existem ainda escritórios de “agências de turismo” especializados no

transporte desses trabalhadores, sendo que os valores pecuniários oriundos de

alojamentos, viagens e os seus acessórios são descontados dos salários percebidos

pelos peões, sem exceção.

Segundo Vitale Joanoni Neto (2008, p. 244) os trabalhadores “pagam

também pelo uso de equipamentos de proteção individual e medicamentos. Falam

do recolhimento de sua Carteira de Trabalho e Previdência Social, da

obrigatoriedade da assinatura de papeis em branco, e da vigilância armada nos

alojamentos. São comuns os relatos de mais de dez viagens, de casos de acidentes

graves ignorados pelos empregadores (mutilações, cegueira) de trabalho sem

carteira assinada.”

O gato, após modelar algumas dezenas de camponeses à sua vontade,

20 A larga distância entre a casa do peão e a fazenda de destino é, repita-se, empregada com o escopo de evitar a fuga do peão, segregando-o da civilização.

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embarca com estes rumo à fazenda de destino, cuja viagem comporta um joeirado

de percalços de toda sorte e revés, obrigando alguns peões, com medo da aventura,

a abandonarem a viagem, pulando dos caminhões em movimento que saem no

meio da noite não por rodovias, mas ziguezagueando e porfiando por estradas de

chão (com o fito de evitar a fiscalização).

Com a chegada dos peões à(s) fazenda(s) de destino, os trabalhadores “são

desembarcados e divididos em grupos que variam de 04 a 08 pessoas” (SILVA,

2008, p. 212). Logo em seguida, estes são alojados em locais considerados

precários e desumanos para a realização da empreitada, locais estes destinados

anteriormente ao abrigo de animais, como currais e chiqueiros, além de comerem e

beberem em condições subalternas às dos cachorros.

Também há casos registrados de os peões – após o trabalho braçal de 12h

nas lavouras – dormirem em locais considerados irregulares pela legislação,

localizados no meio da floresta e em barracas de lona preta, não oferecendo

qualquer segurança às ameaças que circundam constantemente os trabalhadores,

que vão desde a contaminação por cólera até a contração de dengue e malária.

Alguns indivíduos foram inclusive, devido à falta de segurança, puxados de

dentro para fora dos barracos e mortos por onças e jaguares.

Em entrevista concedida por Aurélio A.M.21, este discorre acerca do seu

relato de experiência nas fazendas do Estado do Pará.

“O barraco era coberto de palha e por cima da palha tinha uma lona, aquela lona preta. Esquentava demais, e o barraco era cercado de madeira grossa assim, no pé, pras onças não entrarem e não puxarem a gente. As onças, de noite... era muito perigoso. Tinha muita onça porque era dentro da mata. A gente não podia dormir menos de um metro distante da parede, porque as onças puxavam as pessoas se estivessem na beira da parede. A gente então dormia longe.” (CERQUEIRA et al. 2008, pp. 117-118).

A vigilância constante22 dos camponeses por parte dos

capangas/funcionários da fazenda é bastante intensa. O segregamento corporal

vale-se pelo uso de facões, ameaças, porte de armas de fogo, pedaços de madeira,

21 Trabalhador rural, à época com 41 anos de idade, residente em Miguel Alves, no Piauí, casado e pai de dois filhos. Entrevista concedida a Adonia Prado, frei Xavier Plassat e Monique Taranto Tardem. CERQUEIRA, Gelba Cavalcante de et al. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil. Contribuições Críticas para a sua Análise e Denúncia. Rio de Janeiro. Ed. UFRJ, 2008. p.p. 117-118.22 Comumente chamado de “o controle arbitrário dos corpos”.

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vias de fato, etc., causando assim uma barreira intimidativa aos camponeses que

tentem lograr êxito na fuga.

Por todo o exposto, a vigilância constante a esses camponeses “torna-se um

operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça

interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar”

(FOUCAULT, 2000, p. 147).

5 A Organização Internacional do Trabalho - OIT

O relatório global sobre o Trabalho Escravo Contemporâneo, intitulado “O

custo da coerção”, realizado durante a Conferência Internacional do Trabalho, ano

de 2009, em Genebra23, firma o entendimento já há muito tempo assentado entre

pesquisadores brasileiros, no que se refere à forma mais comum de trabalho forçado

(no Brasil e também em todo o continente latino-americano) que é a servidão por

dívidas.

A servidão por dívidas, segundo o relatório, é um procedimento “no qual os

trabalhadores temporários são recrutados através de intermediários informais e não

licenciados, que atraem os trabalhadores através do pagamento de adiantamentos,

e posteriormente incorrendo em lucros significativos através do inflacionamento de

uma série de custos. Este processo pode ter lugar dentro ou fora das fronteiras

nacionais”.24

Seguindo ainda com o douto relatório, o mesmo assevera que “o trabalho

forçado na América Latina encontra-se intimamente ligado aos padrões de

desigualdade e de discriminação, particularmente contra os povos indígenas. A ação

de combate a esta situação necessita, assim, de ser incorporada num

enquadramento mais abrangente de medidas e de programas de redução da

pobreza, lutando contra a discriminação, e promovendo os direitos dos povos

indígenas, bem como a melhoria da situação dos trabalhadores mais pobres nas

zonas urbanas”.

23 O relatório em comento encontra-se disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br/escravidao_OIT.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2010.24 CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DO TRABALHO, 98ª Sessão, 2009, Genebra. Anais... Genebra, 2009.

Page 21: trabalho escravo nas indústrias de cana-de-açúcar O DESAFIO SOCIAL EMERGENTE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

“Apesar de a OIT estimar que a América Latina possui o segundo maior

número de pessoas em situação de trabalho forçado em todo o mundo (depois da

Ásia), só alguns países encetaram esforços sistemáticos para investigar e

documentar o trabalho forçado e a sua incidência. No entanto, os fortes esforços

realizados por alguns países, principalmente pelo Brasil e pelo Peru, melhoraram a

compreensão do trabalho forçado contemporâneo e as suas causas subjacentes.

Estes esforços também foram acompanhados por medidas políticas e

práticas, no intuito de coordenar a ação dos diferentes ministérios e das instituições

contra o trabalho forçado, e para definir e libertar indivíduos em situação de trabalho

forçado. Em Novembro de 2008, fora aprovado um Decreto Supremo, pelo Governo

da Bolívia, o qual referia que as propriedades rurais que utilizassem o trabalho

forçado e a servidão por dívidas, seriam transferidas para o Estado, sob a vigilância

do Instituto Nacional da Reforma Agrária”.25

No Brasil, “o primeiro caso de desapropriação de terras por interesse social,

para fins de reforma agrária, aconteceu em 19 de outubro de 2004, no imóvel rural

da fazenda Castanhal Cabaceiras, no município de Marabá, estado do Pará”

(KAIPPER et al. 2008, p. 164).

A seguir, a tabela 02 aponta o demonstrativo do custo total da coerção

decorrente do ano de 2009:

25 Idem, Ibidem.

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6 Trabalho Escravo, Fenômeno Também da Elite.

As relações laborativas dos canaviais do estado de São Paulo, seu cenário

maior, são muito mais amplas do que o imaginário comum pode abstrair.

Pesquisadores têm desenvolvido detalhadas manifestações empíricas das

relações de trabalho forçado ao redor do planeta a partir de documentações

individuais das experiências de trabalhos forçados de suas respectivas localidades,

contribuindo com valiosíssimas perspectivas na natureza do problema, que é alvo de

confronto de dimensões globais, repita-se, não se resumindo a um fenômeno

meramente incidental e sim, a um intrínseco liame de desenvolvimento e evolução

da política econômica de abrangência mundial.

Estudos de cunho acadêmico e político, ambos, associam este fenômeno

como típico de países pobres ou em desenvolvimento.

Nicola Phillips26 oferece aos estudiosos do tema uma coerente e analítica

teoria acerca deste fato (o trabalho forçado), ao analisar sua a natureza,

circunscrição(ões) geográfica(s), dinâmica e, por fim, a racionalidade argumentativa

daqueles que arregimentam os trabalhadores em condições desumanas de trabalho.

“Em outras palavras, o trabalho forçado é central para a produção de bens e

serviços...” (PHILLIPS, [2009?], p. 02).

Em sua douta pesquisa acerca da matéria, sob o título “How can a Focus on

Global Productions Network Help Us to Understand Forced Labour?”, Phillips

contraria o senso comum de que trabalho forçado é um fenômeno única e

exclusivamente de países pobres ou em desenvolvimento, eis que uma parte

considerável de sua força motora é proveniente de países desenvolvidos (os

chamados de primeiro mundo), verbis:

“... Política e estudos acadêmicos, ambos, responsabilizam o aspecto em torno do trabalho forçado a uma comum hipótese de que este fenômeno é associado, primeiramente, com os países pobres. Esta é uma justificativa para este assunto. As pessoas trabalhando nestas condições são concentradas em economias e sociedades caracterizadas por um alto nível de pobreza e indigência, e, consequentemente, estes altos números estão localizados em algumas regiões como o sul e o sudeste da Ásia,

26 Doutora e pesquisadora da School of Social Scienses (Escola de Ciências Sociais) da University of Manchester (Universidade de Manchester), Inglaterra.

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América Latina, Caribe e a África, entre outros. A Organização Internacional do Trabalho – OIT estima que, dos 12.3 milhões de pessoas que trabalham em condições de escravidão, somente 360.000 estão fisicamente localizadas em países 'ricos'.” (PHILLIPS, [2009?], p. 08, tradução do autor).

7 “Solução Verde”?

Nos dias de hoje, há grande questionamento acerca dos benefícios oriundos

da implementação da monocultura nas regiões amazônica e de cerrado, tais como a

monocultura da soja, a do milho e a da cana-de-açúcar, só para citar algumas, eis

que “diversos estudos e teses acadêmicas demonstram que a expansão de

monocultivos representa um risco ainda maior para o aquecimento global do que as

emissões de carbono provenientes de combustíveis fósseis. Apesar do esforço do

governo brasileiro para convencer a comunidade internacional de que o etanol

brasileiro é, sim, uma fonte de energia 'renovável', entre 2007 e 2008 houve uma

mudança significativa em relação a essa imagem” (MENDONÇA, 2008, p.76).

Invadindo grandes áreas de biodiversidade do cerrado, da Amazônia e agora

também às portas do Pantanal, por intermédio da Medida Provisória 42227, a qual

permite ao Incra titular de forma direta, sem licitação, propriedades na Amazônica

com até 15 (quinze) módulos rurais ou 1.500 (mil e quinhentos) hectares; a suposta

esperança de uma energia sustentável, a qual fora motivo de orgulho dos tempos de

chumbo, o pró-álcool, como esperança nacional, tem de a ganhar roupagem de

conto de fadas no quesito energia limpa, eis que não faltam artigos científicos e

notícias publicadas em jornais de grande circulação que se desvalam no sentido

contrário ao de seu suposto benefício.

A jornalista e diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Maria

Luíza Mendonça, em sua pesquisa28, aponta efeitos nefastos ao meio ambiente a

27 A presente Medida Provisória já encontra-se convertida na Lei nº 11.763, desde 1º de agosto de 2008. BRASIL. Lei nº 11.763, de 1º de agosto de 2008. Conversão da MPV nº 422, de 25.3.2008. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 dez. 2002. Disponível no link: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11763.htm >. Acesso em: 31 mar. 2010.28 Os impactos da expansão do monocultivo de cana para a produção de etanol. Com a colaboração de Isidoro Revers, Marluce Melo e Plácido Júnior. Extraído a partir do que fora publicado no relatório “Impactos da Produção de cana no Cerrado e Amazônia”, pela Comissão Pastoral da Terra e Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

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partir do que fora veiculado em matérias de jornais e revistas mais respeitados da

contemporaneidade.

Ela destaca importante reportagem da Sciense Megazine, sob o título Use of

U.S. Cropland for Biofuels Increases Greenhouse Gases Through Emissions from

Land-Use Change, que fora publicada no dia 28 de fevereiro de 2008 e discorre que

a maioria dos estudos anteriores descobriu que substituir gasolina por

biocombustíveis poderia reduzir a emissão de carbono. “Essas análises não

consideraram as emissões de carbono que ocorrem quando agricultores, no mundo

todo, respondem à alta dos preços e convertem florestas e pastos em novas

plantações, para substituir lavouras de grãos que foram utilizadas para os

biocombustíveis” (MENDONÇA, 2008, p.76).

Não obstante a malgrada causa de danos irreparáveis ao meio ambiente, a

cultura de monocultivos gera lucros rentosos àquele que o implementa29, empurra e

expande cada vez mais o litoral das fronteiras agrícolas das fazendas produtoras de

gado e de soja, diminuindo – principalmente por meio de queimadas – a riqueza

primária das florestas nativas, eis que a floresta secundária não recupera o número

de espécies da flora e da fauna originárias, encarecendo, direta ou indiretamente, o

custeio de gêneros alimentícios, causando danos à boa qualidade do ar e à da água

(altamente demandada na prática da presente atividade mercantil); além de asfixiar

o espaço reservado à pesquisa científica de cunho medicinal, em regiões da

Amazônia e do Cerrado, riquíssimas no campo da biodiversidade e com amplas

possibilidades de oferecer cura e terapêutica para doenças atualmente incuráveis,

como a Aids e o Câncer.

Seguindo com as publicações jornalísticas que decorreram de pesquisas

realizadas no estrangeiro, o jornal El País publicara importante matéria no bojo da

qual diversas pesquisas de cunho científico emitem nota de que os biocombustíveis

poluem ainda mais do que os combustíveis convencionais, eis que destroem

grandes áreas de valor ecológico ímpar por meio das queimadas predatórias, além

de explorar ao máximo relações trabalhistas de cunho criminoso e informal.

Importante registrar, na presente seara, paradoxo peculiar, pois o mesmo

jornal publicou, recentemente, matéria com juízo de valor positivo em prol dos

biocombustíveis brasileiros. Sob o título: Verde, sostenible y con asas, o jornal atribui

29 A cana-de-açúcar tem o mais alto retorno para os agricultores por hectare plantado. O custo de produção do açúcar no país é baixo (inferior a US$ 200/tonelada), podendo dessa maneira competir no mercado internacional. Tal mercado é, entretanto, volátil e apresenta grandes oscilações de preços. Informações disponíveis no link: <http://www.biodieselbr.com/proalcool/pro-alcool.htm>. Acesso em: 17 fev. 2010.

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aos biocombustíveis o mesmo valor dado à energia eólica e (ou) à solar como meio

de se evitar o aquecimento global, decorrente do uso feroz de combustíveis

tradicionais, doravante os fósseis.30

No cenário nacional, a posição é divergente à que ocorre no campo

internacional, sendo a produção e a comercialização de biocombustíveis a janela de

saída não só para os problemas ambientais, mas também para os problemas

sociais, pois gera empregos no campo e alavanca as exportações, diz Paulo César

Ribeiro Lima.31 Segundo ele, “para um emprego no campo são gerados 03 na

cidade, seriam criados, então, 180 mil empregos. Numa hipótese otimista de 6% de

participação da agricultura familiar, no mercado de biodiesel, seriam gerados mais

de 01 milhão de empregos” (2005, p. 11).

No que se refere ao campo ambiental, “se comparado ao óleo diesel

derivado de petróleo, o biodiesel pode reduzir significativamente as emissões

líquidas de gás carbônico, um dos grandes causadores do aumento do efeito estufa,

já que ele é reabsorvido quando do crescimento das plantas que fornecerão matéria-

prima. Além disso, o biodiesel permite a redução das emissões de fumaça e

praticamente elimina as emissões de dióxido de enxofre” (op. cit. p. 03).

8 Conclusões.

Conclui-se a partir do que fora exposto, pela urgente utilização de fontes de

energia eminentemente renováveis, verbi gratia o uso das energias solar e eólica,

dentre outras de vetor ecológico abrangente; políticas públicas que ataquem o ponto

nevrálgico da maioria da população: a falta de conhecimento acerca da importância

dos fatos ambientais, através da distribuição de panfletos, do uso da propaganda

educativa, etc.; de ações como o voluntariado em arborização urbana e rural;

recuperação de áreas degradadas por incêndios criminosos bem como a

implantação do modelo agrícola sustentável, doravante a agroecologia.

30 Informações disponíveis no link: <http://www.elpais.com/articulo/empresas/sectores/Verde/sostenible/asas/elpepueconeg/20091122elpnegemp_7/Tes>. Acesso em: 17 fev. 2010.31 Consultor legislativo da Área XII – Recursos Minerais, Hídricos e Energéticos – da Câmara dos Deputados.

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Ao Ministério Público, através dos seus instrumentos de atuação (LC. 75/93,

art. 6º), juntamente com o apoio da sociedade e dos meios de comunicação (os

mídias), incumbe denunciar quaisquer atos de abuso e violações aos direitos

humanos, por parte de fazendeiros e de grandes mercados varejistas, e aos direitos

fundamentais aplicáveis aos trabalhadores, com o objetivo de fazer tabula rasa ante

os efeitos nefastos oriundos da inconstitucionalidade e da ilegalidade do ato patronal

discricionário.

A política de mudanças estruturalistas há de ser também empírica, visando

com isto não ser apenas mais um artigo científico acerca da matéria, mas sim fato

gerador de mudanças, mesmo que em sentido estrito.

Page 27: trabalho escravo nas indústrias de cana-de-açúcar O DESAFIO SOCIAL EMERGENTE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

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ANEXO I – QUADRO COMPARATIVO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL