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MATEUS ÍNDICE MATTHEW WILLIAM BARCLAY Título original em inglês: The Gospel of Matthew Tradução: Carlos Biagini O NOVO TESTAMENTO Comentado por William Barclay … Introduz e interpreta a totalidade dos livros do NOVO TESTAMENTO. Desde Mateus até o Apocalipse William Barclay explica, relaciona, dá exemplos, ilustra e aplica cada passagem, sendo empre fiel e claro, singelo e profundo. Temos nesta série, por fim, um instrumento ideal para todos aqueles que desejem conhecer melhor as Escrituras. O respeito do autor para a Revelação Bíblica, sua sólida fundamentação, na doutrina tradicional e sempre nova da igreja, sua incrível capacidade para aplicar ao dia de hoje a mensagem, fazem que esta coleção ofereça a todos como uma magnífica promessa. PARA QUE CONHEÇAMOS MELHOR A CRISTO, O AMEMOS COM AMOR MAIS VERDADEIRO E O SIGAMOS COM MAIOR EMPENHO

Tradução: Carlos Biagini O NOVO TESTAMENTO Comentado …files.comunidades.net/pastorpatrick/Mateus_Barclay.pdf · seção de Mateus o estudo detalhado recompensará amplamente a

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MATEUS NDICE

MATTHEW

WILLIAM BARCLAY

Ttulo original em ingls: The Gospel of Matthew

Traduo: Carlos Biagini

O NOVO TESTAMENTO Comentado por William Barclay

Introduz e interpreta a totalidade dos livros do NOVO

TESTAMENTO. Desde Mateus at o Apocalipse William Barclay explica, relaciona, d exemplos, ilustra e aplica cada passagem, sendo empre fiel e claro, singelo e profundo. Temos nesta srie, por fim, um instrumento ideal para todos aqueles que desejem conhecer melhor as Escrituras. O respeito do autor para a Revelao Bblica, sua slida fundamentao, na doutrina tradicional e sempre nova da igreja, sua incrvel capacidade para aplicar ao dia de hoje a mensagem, fazem que esta coleo oferea a todos como uma magnfica promessa.

PARA QUE CONHEAMOS MELHOR A CRISTO, O AMEMOS COM AMOR MAIS VERDADEIRO E O SIGAMOS COM MAIOR EMPENHO

Mateus (William Barclay) 2 NDICE

Prefcio

Introduo Geral Introduo a Mateus Captulo 1 Captulo 8 Captulo 15 Captulo 22 Captulo 2 Captulo 9 Captulo 16 Captulo 23 Captulo 3 Captulo 10 Captulo 17 Captulo 24 Captulo 4 Captulo 11 Captulo 18 Captulo 25 Captulo 5 Captulo 12 Captulo 19 Captulo 26 Captulo 6 Captulo 13 Captulo 20 Captulo 27 Captulo 7 Captulo 14 Captulo 21 Captulo 28

PREFCIO Uma vez mais devo comear este prefcio expressando minha mais

calorosa gratido Comisso de Publicaes da Igreja de Esccia, que me permite acrescentar outro volume a esta srie de comentrios bblicos. Uma vez mais queria agradecer muito especialmente ao Rev. R. G. Macdonald, presidente dessa comisso, e ao Rev. Andrew McCosh, secretrio e administrador, pela permanente bondade e o constante estmulo que me ofereceram. Estou muito seguro de que sem sua ajuda e flego no tivesse podido seguir produzindo estes volumes da maneira em que o tenho feito.

Queria dizer certas coisas maneira de explicao sobre este volume de Mateus. Se pudesse supor que todos os que o lero conhecem j os volumes sobre Marcos e Lucas, certas coisas teriam podido omitir-se, mas cada um dos livros que integram esta srie deve poder ler-se independentemente de todos outros, e isto significou que me foi necessrio repetir aqui algumas das coisas que j se foi dita nos outros dois volumes sobre os evangelhos sinticos. Mais ainda, pode parecer que aqui uso muito espao para cobrir uma seo muito breve do

Mateus (William Barclay) 3 evangelho. Mas deve recordar-se que neste livro estudamos o Sermo da Montanha, e o Sermo da Montanha est to no centro mesmo da f e a vida crists, que em quase todas as suas partes devi coment-lo orao por orao, e at palavra por palavra. Estou convencido de que nesta seo de Mateus o estudo detalhado recompensar amplamente a quem esteja preparados para faz-lo.

estranho que Mateus no tenha tido sorte com seus comentadores. O comentrio de A. B. Bruce, no Expositor's Greek Testament, ainda arroja luz sobre o texto. O de W. C. Allen, no International Critical Commentary, mais para o erudito que para o leitor em geral. Entre todos os comentrios sobre o texto grego, o de A. H. McNeille, na srie de Macmillan sem lugar a dvidas o melhor de todos. O Exegetical Commentary on the Gospel According to Saint Matthew, de Alfred Plummer, um trabalho slido e que oferece grande ajuda. O comentrio de T. H. Robinson, no Moffat Commentary, sugestivo, mas de certo modo superficial. O que presta maior servio, embora por momentos parece perturbador, o de C. G. Montefiore, em sua obra Synoptic Gospels. C. G. Montefiore era um judeu liberal, e portanto sua exegese inevitavelmente ser interessante de um modo particular.

O evangelho segundo So Mateus tem duas grandes caractersticas. preeminentemente o evangelho do Mestre, porque em nenhum outro evangelho encontramos uma compilao to sistemtica dos ensinos de Jesus. E preeminentemente o evangelho que foi escrito para nos mostrar a Jesus como o homem que nasceu para ser Rei. Minha orao que este livro possa contribuir de algum modo para que compreendamos melhor os ensinos de Jesus, e para que O entronizemos de maneira mais plena como Rei e Soberano em nossas vidas.

William Barclay. Trinity College, Glasgow, setembro de 1956.

Mateus (William Barclay) 4 INTRODUO GERAL

Pode dizer-se sem faltar verdade literal, que esta srie de

Comentrios bblicos comeou quase acidentalmente. Uma srie de estudos bblicos que estava usando a Igreja de Esccia (Presbiteriana) esgotou-se, e se necessitava outra para substitu-la, de maneira imediata. Foi-me pedido que escrevesse um volume sobre Atos e, naquele momento, minha inteno no era comentar o resto do Novo Testamento. Mas os volumes foram sucedendo, at que a tarefa original se converteu na idia de completar o Comentrio de todo o Novo Testamento.

-me impossvel deixar suceder outra edio destes livros sem expressar minha mais profunda e sincera gratido Comisso de Publicaes da Igreja da Esccia por me haver outorgado o privilgio de comear esta srie at complet-la. E em particular desejo expressar minha enorme dvida de gratido ao presidente da comisso, o Rev. R. G. Macdonald, O.B.E., M.A., D.D., e ao secretrio e administrador desse rgo editor, o Rev. Andrew McCosh, M.A., S.T.M., por seu constante estmulo e suas sempre presentes simpatia e ajuda.

Quando j se publicaram vrios destes volumes, nos ocorreu a idia de completar a srie. O propsito fazer com que os resultados do estudo erudito das Escrituras possam estar ao alcance do leitor no especializado, em uma forma tal que no se requeiram estudos teolgicos para compreend-los; e tambm se deseja fazer com que os ensinos dos livros do Novo Testamento sejam pertinentes vida e o trabalho do homem contemporneo. O propsito de toda esta srie poderia resumir-se nas palavras da famosa orao de Richard Chichester: Procuram fazer com que Jesus Cristo seja conhecido de maneira mais clara por todos os homens e mulheres, que seja amado com mais dedicao e que seja seguido mais de perto. Minha prpria orao que de alguma maneira meu trabalho possa contribuir para que tudo isto seja possvel.

Mateus (William Barclay) 5 INTRODUO A MATEUS

Os evangelhos sinticos Os primeiros trs evangelhos, Mateus, Marcos e Lucas, so

conhecidos geralmente como os evangelhos sinticos. A palavra sintico provm de duas palavras gregas que significam ver conjuntamente. Sintico significa literalmente "que se pode ver ao mesmo tempo". A razo deste nome a seguinte. Estes trs evangelhos oferecem o relato dos mesmos acontecimentos da vida de Jesus. Em cada um deles h episdios adicionados, ou outros que se omitem; mas em geral o material o mesmo, assim como o seu prprio ordenamento. Portanto possvel coloc-los em trs colunas paralelas e l-los simultaneamente, comparando-os entre se ao faz-lo. Quando se faz isto, fica bem evidente que estes trs evangelhos esto intimamente relacionados. Por exemplo, se compararmos o episdio da alimentao dos cinco mil nos trs evangelhos (Mateus 14:12-21, Marcos 6:30-44, Lucas 9:10-17) encontramos a mesma histria, narrada quase exatamente com as mesmas palavras. Um exemplo bem evidente desta relao a histria do paraltico (Mateus 9:1-8, Marcos 2:1-12, Lucas 5:17-26). Estes trs relatos so to semelhantes entre si, que at um pequeno " parte" "diz ento ao paraltico" aparece nos trs, e sempre como uma expresso entre parntese, exatamente no mesmo lugar. A correspondncia entre os trs evangelhos sinticos to ntima que nos impe extrair a concluso de que, ou os trs tomam seus materiais de uma fonte comum, ou dois deles copiam do terceiro.

O primeiro evangelho Quando nos pomos a examinar mais de perto este assunto,

comeamos a nos dar conta de que abundam as razes para acreditar que Marcos deve ter sido o primeiro evangelho a ser escrito, e que os outros

Mateus (William Barclay) 6 dois sinticos, Mateus e Lucas, usam Marcos como base. Marcos pode ser dividido em 105 sees. Destas, 93 aparecem em Mateus e 81 em Lucas. H somente 4 sees de Marcos que no aparecem em Mateus ou Lucas. Marcos tem 661 versculos Mateus tem 1068 e Lucas 1149. Mateus reproduz em seu texto nada menos que 806 dos versculos de Marcos; Lucas reproduz 320. Lucas reproduz 31 versculos dos 55 de Marcos que Mateus no usa; deste modo somente h 24 versculos de Marcos que no aparecem em Mateus ou Lucas. No se trata s da reproduo da substncia destes versculos, mas sim aparecem copiados palavra por palavra. Mateus usa 51% das palavras de Marcos: Lucas usa 53%.

Mas h mais ainda. Tanto Mateus como Lucas em geral seguem a ordem dos acontecimentos que encontramos em Marcos. Em alguns episdios Mateus ou Lucas diferem de Marcos quanto ordem, mas em nenhum caso os dois situam um mesmo acontecimento de maneira diferente de Marcos; sempre, ao menos um deles, segue a Marcos.

As modificaes do texto de Marcos Visto que tanto Mateus como Lucas so muito mais longos que

Marcos, poderia sugerir-se que Marcos possivelmente seja um resumo dos outros dois. Mas h outro conjunto de fatos que demonstram que Marcos o primeiro. Tanto Mateus como Lucas manifestam a tendncia em melhorar e polir o texto de Marcos, se podemos expressar-nos deste modo. Tomemos alguns exemplos desta tendncia. s vezes Marcos pareceria limitar o poder de Jesus; pelo menos, um crtico com m vontade poderia chegar a essa concluso. Tomemos trs passagens que so o relato de um mesmo episdio:

Marcos 1:34: E ele curou muitos doentes de toda sorte de enfermidades; tambm expeliu muitos demnios.

Mateus 8:16: Com a palavra expeliu os espritos e curou todos os que estavam doentes.

Mateus (William Barclay) 7 Lucas 4:40: E, [Jesus] impondo as mos sobre cada um deles, os

curava. Tomemos outros trs exemplos similares: Marcos 3:10: Pois curava a muitos. Mateus 12:15: A todos ele curou. Lucas 6:19: E curava todos. Mateus e Lucas trocam o muitos de Marcos por todos, de tal

maneira que no se pode sugerir que o poder de Jesus sofria de limitaes.

H uma mudana muito similar no relato de tais acontecimentos da visita de Jesus a Nazar. Comparemos os textos de Marcos e Mateus.

Marcos 6:5-6: No pde fazer ali nenhum milagre... Admirou-se da incredulidade deles.

Mateus 13:58: E no fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles.

Mateus no quer dizer que Jesus no pde fazer milagres e muda a forma da expresso de maneira tal que no seja possvel imputar limitaes ao poder de Jesus.

s vezes Mateus e Lucas deixam de lado pequenos toques do Marcos que poderiam interpretar-se como defeitos de Jesus.

Mateus e Lucas omitem trs afirmaes do Marcos: Marcos 3:5: Olhando-os ao redor, indignado e condodo com a

dureza do seu corao... Marcos 3:21: E, quando os parentes de Jesus ouviram isto, saram

para o prender; porque diziam: Est fora de si. Marcos 10:14: Jesus, porm, vendo isto, indignou-se. Mateus e Lucas vacilam antes de atribuir a Jesus as emoes

humanas de ira e tristeza, e se estremecem ao pensar que algum pde ter sugerido sequer que Jesus estava louco.

s vezes Mateus e Lucas alteram ligeiramente o texto de Marcos para eliminar afirmaes que poderiam dar uma m impresso dos apstolos. Podemos tomar um exemplo desta tendncia no episdio em

Mateus (William Barclay) 8 que Tiago e Joo procuram assegurar-se de que ocuparo as primeiras posies no vindouro Reino de Deus. Comparemos as introdues a esta histria em Marcos e em Mateus:

Marcos 10.35: Ento, se aproximaram dele Tiago e Joo, filhos de Zebedeu, dizendo-lhe:

Mateus 20:20: Ento, se chegou a ele a mulher de Zebedeu, com seus filhos, e, adorando-o, pediu-lhe um favor.

Mateus vacila em atribuir uma motivao ambiciosa diretamente aos dois apstolos, e a atribui me deles.

Tudo isto estabelece com clareza que Marcos o primeiro dos evangelhos. Marcos oferece uma narrao simples, vvida, direta: mas Mateus e Lucas j comearam a ser afetados por consideraes de ordem doutrinal e teolgica, que os fazem muito mais cuidadosos em sua maneira de expressar o que dizem.

Os ensinos de Jesus Vimos que Mateus tem 1068 versculos e Lucas 1149 e que entre os

dois reproduzem 582 dos versculos do Marcos. Isto significa que em Mateus e Lucas h muito mais material de que contm e pode oferecer Marcos. Quando examinamos estes versculos adicionais nos damos conta de que mais de 200 so quase idnticos. Por exemplo, so virtualmente iguais entre si passagens como Lucas 6:41-42 e Mateus 7:3-5; Lucas 10:21-22 e Mateus 11:25-27; Lucas 3:7-9 e Mateus 3:7-10. Mas tambm notamos que h uma diferena. O material que Mateus e Lucas extraram de Marcos se ocupa quase em sua totalidade de narrar acontecimentos da vida de Jesus; mas os 200 versculos que Mateus e Lucas tm em comum alm dos que extraram de Marcos que esto compostos totalmente de ensinos de Jesus; estes versculos nos falam nem tanto do que Jesus fez mas sim do que disse.

Fica claro que estes 200 versculos esto tomados de uma fonte comum que os dois possuram, na qual estavam contidos os ensinos de

Mateus (William Barclay) 9 Jesus. Este livro no existe na atualidade; mas os eruditos lhe deram o nome de Q, letra que representa a palavra Quelle, que em alemo significa fonte. Em sua poca deve ter sido um livro de extraordinria importncia, porque foi o primeiro manual com os ensinos de Jesus.

O lugar de Mateus na tradio evanglica Aqui chegamos a Mateus, o apstolo. Os eruditos concordam em

afirmar que o Evangelho segundo So Mateus, tal como o temos na atualidade, no provm diretamente da mo de Mateus. Quem tem sido testemunha ocular da vida de Cristo no precisa usar Marcos como fonte para narr-la, coisa que ocorre em Mateus. Mas um dos primeiros historiadores da Igreja, um homem chamado Papias, oferece-nos a seguinte informao, de enorme importncia: "Mateus colecionou os ditos de Jesus em lngua hebraica." Deste modo, podemos acreditar que no foi nada menos que Mateus, o apstolo, quem colecionou esse primeiro manual com os ensinos de Jesus, obra da qual dependem todos os que querem saber quais foram os ditos do Mestre. E por causa da grande quantidade de materiais desta fonte que aparecem incorporados ao Mateus que o evangelho recebeu este nome. Devemos estar eternamente agradecidos a Mateus, quando recordamos que graas a ele possumos o Sermo da Montanha e quase tudo o que sabemos sobre os ensinos de Jesus. Em geral, pode dizer-se que devemos a Marcos quase tudo o que sabemos sobre os fatos da vida de Jesus, mas que graas a Mateus conhecemos a substncia dos ensinos de Jesus.

Mateus, o coletor de impostos Sabemos muito pouco sobre a pessoa de Mateus. Em Mateus 9:9

lemos a histria de seu chamado. Sabemos que era coletor de impostos e que portanto deve ter sido uma pessoa profundamente odiada, porque os judeus odiavam aos membros de sua prpria nao que tinham entrado

Mateus (William Barclay) 10 ao servio civil de seus conquistadores. Mateus deve ter sido considerado um traidor de sua prpria raa e povo. Mas sem dvida possua um dom. A maioria dos discpulos eram pescadores. Sua habilidade para expressar-se por escrito deve ter sido muito reduzida. Mas Mateus era sem dvida um perito neste campo. Quando Jesus o chamou, estando ele sentado no banco de cobrador de impostos, Mateus se levantou e o seguiu deixando tudo, exceto uma coisa, sua tristeza. E usou nobremente sua habilidade literria ao converter-se no primeiro homem que compilou os ensinos de Jesus.

O evangelho dos judeus Vejamos agora quais so as principais caractersticas do evangelho

do Mateus, de tal modo que possamos t-las em mente quando o lermos. Em primeiro lugar e sobretudo Mateus o evangelho que foi escrito para os judeus. Foi escrito por um judeu para convencer aos judeus. Um dos grandes objetivos de Mateus demonstrar que todas as profecias do Antigo Testamento se cumprem em Jesus e que, portanto, deve ser o Messias. H uma frase que o percorre totalmente, como tema que volta a aparecer vez por outra: "Tudo isto foi feito para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta, dizendo:" Esta frase aparece 16 vezes no evangelho. O nascimento e o nome de Jesus so o cumprimento de profecias (1:21-23) o mesmo ocorre com a fuga ao Egito (2:14-15), a matana dos inocentes (2:16-18), a volta e a permanncia de Jos em Nazar e a infncia de Jesus nesse lugar (2:13), o uso que Jesus fez de parbolas (13:34-35), a traio por trinta moedas de prata (27:9), o sorteio da roupa de Jesus enquanto estava pendurado na cruz (27:35). O propsito primitivo e deliberado de Mateus demonstrar como as profecias do Antigo Testamento se cumprem em Jesus; como os profetas anteciparam cada um dos detalhes da vida de Jesus; e deste modo levar aos judeus a admitir que Jesus era o Messias.

Mateus (William Barclay) 11 (1) Mateus est interessado primordialmente nos judeus. Sua

converso corresponde de perto e particularmente cara ao corao de quem o escreveu. Quando a mulher siro-fencia procurou a ajuda de Jesus, a resposta que recebeu dEle foi: No fui enviado seno s ovelhas perdidas da casa de Israel. (15:24). Quando Jesus envia os doze para que evangelizem, sua instruo : No tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; mas, de preferncia, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel (10:5-6). Entretanto, no se deve pensar que este evangelho exclua os gentios. Muitos viro do oriente e do ocidente para tomar assento no Reino de Deus (8:11). "Ser pregado este evangelho do Reino a todo o mundo" (24:14). E Mateus quem nos d a ordem de marcha da igreja: Ide, portanto, fazei discpulos de todas as naes (28:19). evidente que o primeiro interesse de Mateus so os judeus, mas tambm o que prev o dia em que todas as naes sero reunidas.

O judasmo de Mateus tambm se percebe em sua atitude para com a Lei. Jesus no veio para destruir a Lei, e sim para cumpri-la. Nem a mais mnima parte da Lei deve perder vigncia. No se deve ensinar aos homens a quebrantar a Lei. A justia do cristo deve ser superior dos escribas e fariseus (5:17-20). Mateus foi escrito por algum que conhecia e amava a Lei e entendia que esta ocupava um lugar na vida e na f dos cristos.

Uma vez mais encontramos um aparente paradoxo na atitude de Mateus para com os escribas e fariseus. Reconhece que tm uma autoridade muito especial: Na cadeira de Moiss, se assentaram os escribas e os fariseus. Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem (23:2-3). Mas, ao mesmo tempo, no h evangelho que condene os escribas e fariseus de maneira to severa e coerente. No prprio incio esto as vvidas palavras de Joo Batista, que os denuncia como "gerao de vboras" (3:7-12). Queixam-se pelo fato de Jesus comer com os publicanos e pecadores (9:11). Atribuem o poder de Jesus no a Deus, e sim ao prncipe dos demnios (12:24). Conspiram para

Mateus (William Barclay) 12 destru-Lo (12:14). Os discpulos so advertidos contra a levedura, os maus ensinos, dos escribas e fariseus (16:12). So como o joio, que est condenado a ser arrancado da terra (15:13). So incapazes de ler os sinais dos tempos (16:3). So os que assassinaram os profetas (21:31). Em toda a tradio evanglica no h captulo condenatrio comparvel a Mateus 23, dedicado aos escribas e fariseus. Mas Mateus no condena os escribas e fariseus pelo que ensinam, mas sim pelo que so. Condena-os por cumprir em to pequena medida seus prprios ensinos, e por estar to abaixo do ideal do que deveriam ser.

(2) H em Mateus alguns outros interesses especiais. Ele est especialmente interessado na Igreja. Mateus, de fato, o nico dos evangelhos que usa a palavra "igreja". o nico que introduz a passagem sobre a Igreja depois da confisso de Pedro em Cesaria de Filipe (Mateus 16:13-23; cf. Marcos 8:27-33; Lucas 9:18-22). Mateus o nico que diz que as disputas devem ser resolvidas pela Igreja (18:17). Quando se escreveu Mateus a Igreja j deve ter sido uma grande instituio, bastante organizada; um fator dominante na vida dos cristos.

(3) Mateus tem um interesse apocalptico particularmente forte. Quer dizer, tem um interesse especial em tudo o que Jesus disse em relao sua Segunda Vinda, o fim do mundo e o julgamento final. Mateus 24 uma verso muito mais completa que a de qualquer outro evangelho do discurso apocalptico de Jesus. o nico onde encontramos as parbolas dos talentos (25:14-30), das virgens prudentes e as insensatas (25:1-13) e das ovelhas e os cabritos (25:32-46). Mateus manifesta seu interesse especial em tudo relacionado com as ltimas coisas e o julgamento final.

(4) Mas ainda no chegamos principal das caractersticas de Mateus: , acima de todos os demais, o evangelho docente. J vimos que o apstolo Mateus foi o responsvel pela primeira coleo dos ensinos de Jesus, que uma vez reunidos compilou em um manual. Mateus era um grande sistematizador. Seu costume era reunir num mesmo lugar tudo o que sabia e podia encontrar dos ensinos de Jesus sobre um tema em

Mateus (William Barclay) 13 particular. O resultado que em Mateus encontramos cinco grandes "blocos" de ensinos de Jesus, cinco grandes sees nas quais os ensinos do Mestre foram reunidos e sistematizados. Todas estas sees tm que ver com o Reino de Deus. So as seguintes:

(a) O Sermo da Montanha, ou a Lei do Reino (5-7). (b) Os deveres dos dirigentes do Reino (10). (c) As parbolas do Reino (13). (d) Grandeza e perdo no Reino (18). (e) A Vinda do Rei (24, 25). Mateus no se limita a colecionar e sistematizar. Deve recordar-se

que Mateus escrevia em uma poca em que ainda no se havia inventado a imprensa, quando havia poucos livros e estes eram muito caros, porque tinham que confeccionar-se mo. Em tais circunstncias muito poucas pessoas podiam possuir livros. Portanto, se queriam conhecer e usar os ensinos de Jesus, deviam lev-los consigo na memria. Mateus, em conseqncia, sempre organiza os materiais que inclui em seu texto de tal maneira que o leitor possa memoriz-los com facilidade. Para este propsito lana mo dos nmeros trs e sete.

Jos recebe trs mensagens; Pedro nega a Jesus trs vezes; Pilatos faz trs perguntas. No captulo 13 h sete parbolas do Reino; no captulo 23 h sete ais pronunciados sobre os escribas e fariseus. A genealogia de Jesus, com que o evangelho comea, um bom exemplo deste tipo de agrupamento. A genealogia tem como objetivo demonstrar que Jesus filho de Davi. No hebraico no h numerais, em cuja substituio se utilizam as letras do alfabeto, cada uma das quais tem, portanto, um valor aritmtico. Em hebraico tampouco se escrevem as vocais. As letras da Palavra "Davi" so, ento, D W D. Se se tomarem estas letras como nmeros, a soma de seus valores 14; a genealogia de Jesus que Mateus nos apresenta consiste em trs grupos de nomes, em cada grupo h quatorze nomes. Mateus faz tudo o que pode em seu

Mateus (William Barclay) 14 intento de sistematizar e organizar os ensinos de Jesus de tal maneira que os leitores e ouvintes possam assimilar e lembrar. Todo educador deve gratido a Mateus por ter escrito aquilo que , acima de tudo, o evangelho didtico.

(5) Mateus possui uma ltima caracterstica. Sua idia dominante a de Jesus como Rei. Escreve para demonstrar a realeza de Jesus. No prprio incio temos a genealogia, que procura estabelecer que Jesus filho de Davi. Este ttulo, filho de Davi, usa-se mais freqentemente em Mateus que em nenhum dos outros evangelhos (15:22, 21:9, 21:15). Os magos devem buscar ao rei dos judeus (2:2). A entrada triunfal uma declarao deliberadamente dramatizada da realeza de Jesus (21:1-11). Diante de Pilatos, Jesus aceita o nome de Rei (27:11). At sobre a cruz, mesmo que seja como zombaria, coloca-se sobre a cabea de Jesus o ttulo real (27:37). No Sermo da Montanha Mateus mostra Jesus citando cinco vezes a Lei e anulando-a com um majesttico Eu, porm, vos digo... (5:21, 27, 34, 38, 43). As ltimas declaraes de Jesus so "Todo o poder me foi dado..." (28:18).

A imagem que Mateus nos apresenta de Jesus a de um homem

que nasceu para ser rei. Jesus caminha ao longo das pginas de Mateus envolto na prpura e o ouro da realeza. Mateus quer mostrar aos homens o senhorio de Jesus Cristo, nos mostrar que com toda autenticidade o Reino, o Poder e a Glria so deles.

Mateus 1 A ascendncia do Rei - Mat. 1:1-17 As trs etapas - Mat. 1:1-17 (cont.) A realizao dos sonhos humanos - Mat. 1:1-17 (cont.) No justos, e sim pecadores Mat. 1:1-17 (cont.) A entrada do Salvador no mundo - Mat. 1:18-25 Nascido do Esprito Santo - Mat. 1:18-25 (cont.) Criao e recriao - Mat. 1:18-25 (cont.)

Mateus (William Barclay) 15 A ASCENDNCIA DO REI

Mateus 1:1-17 Pode ser que parea ao leitor moderno que Mateus escolhe uma

forma muito estranha de comear seu evangelho. Pode-se pensar que confrontar de entrada ao leitor com uma longa lista de nomes um procedimento muito pouco afortunado. Mas para um judeu esta genealogia era uma forma natural de comear, interessante e at poderia dizer-se essencial tratando-se da histria da vida de um homem.

Os judeus se interessavam muito nas genealogias. Mateus denomina esta seo "livro da genealogia" de Jesus Cristo. Esta frase era bem conhecida pelos judeus; significa o registro da ascendncia de um homem, com algumas poucas notas explicativas onde estas eram mais necessrias. No Antigo Testamento freqentemente encontramos listas das geraes de homens famosos (Gnesis 5:1, 10:1, 11:10, 11:27). Quando Josefo, o grande historiador judeu, escreveu sua autobiografia, prefaciou-a com o testemunho de seu prprio "pedigree" que, conforme nos diz, encontrou nos registros pblicos. A razo deste interesse nas ascendncias familiares que para os judeus a pureza racial era de suma importncia. Se algum possua mistura de sangue estrangeiro, perdia seu direito de chamar-se judeu e membro do Povo de Deus. Alm disso, os sacerdotes eram obrigados a apresentar uma linha genealgica ntegra a partir do Aro; no caso de contrair casamento, a esposa devia documentar sua pureza racial pelo menos por cinco geraes. Quando Esdras ao Israel voltar do exlio reorganizou o culto a Deus, e estava pondo em funcionamento novamente o sacerdcio, privou do direito sacerdotal os filhos de Habaas, os filhos de Coz, os filhos de Barzilai, sob a acusao de impureza, porque procuraram o seu registro nos livros genealgicos, porm o no acharam (Esdras 2:61-62). O Sindrio era o encarregado de conservar os registros genealgicos. Herodes o Grande sempre foi desprezado pelos judeus puro-sangue porque parte de sua ascendncia era edomita. Podemos nos dar conta de que o prprio

Mateus (William Barclay) 16 Herodes considerava importantes as genealogias, porque ordenou que se destrussem os registros oficiais a fim de que ningum pudesse demonstrar que possua uma linha de antepassados mais pura que a sua. Esta passagem poder nos parecer pouco interessante, mas para o judeu era de suma importncia que se pudesse demonstrar a descendncia abramica de Jesus.

Alm disso, deve notar-se que esta genealogia est cuidadosamente organizada. Forma trs grupos de quatorze nomes cada um. Trata-se de uma lista mnemotcnica, quer dizer, organizada de maneira a ser fcil memoriz-la. Sempre devemos ter presente que os evangelhos foram escritos muitos sculos antes do primeiro livro impresso. Muito poucas pessoas podiam possuir cpias manuscritas, e a nica maneira de "ter" um livro para a maioria era memoriz-lo. Os hebreus no possuam nmeros em seu sistema de escritura, e usavam as letras como numerais, cada uma com um valor definido (como se ns representssemos o 1 mediante A, o 2 mediante B, etc.). As consoantes da palavra "Davi" em hebreu so D W D. Em hebreu a D serve como nmero 4 e a W como 6; portanto D W D representa a soma de 4 mais 6 mais 4, ou seja 14. Esta genealogia tem o propsito de demonstrar que Jesus filho do Davi; est organizada de maneira que fosse fcil memoriz-la e, deste modo, poder t-la sempre " mo" cada vez que fosse necessrio.

AS TRS ETAPAS

Mateus 1:1-17 (continuao) A organizao desta genealogia de carter simblico; representa

certas caractersticas da totalidade da vida humana. Est dividida em trs sees, que correspondem a trs etapas importantes da histria judia. A primeira etapa culmina com Davi. Davi foi o homem que fez de Israel uma nao e converteu os judeus em uma potncia mundial. A primeira seo leva a histria at o momento do maior rei dos judeus. A segunda seo vai at o exlio em Babilnia. a etapa que registra a vergonha,

Mateus (William Barclay) 17 tragdia e desastre da nao hebria. A terceira seo chega at Jesus Cristo. Jesus Cristo foi a pessoa que liberou os homens de sua escravido e os resgatou de seu desastre, em quem a tragdia se converte em triunfo.

Estas trs sees representam trs etapas da histria espiritual da humanidade.

(1) O homem nasce para a grandeza. "Deus criou ao homem sua imagem, imagem de Deus o criou" (Gnesis 1:27). "Disse Deus: Faamos o homem nossa imagem, conforme a nossa semelhana" (Gnesis 1:26). O homem foi criado imagem de Deus. O sonho de Deus para o homem era um sonho de grandeza. O homem foi feito para a comunho com Deus. Foi criado de tal maneira que pudesse chegar a ser "parente" de Deus. Tal como o entendia Ccero, o pensador romano, "A nica diferena entre Deus e o homem est no tempo". O homem nasceu essencialmente para ser rei.

(2) O homem perde sua grandeza. Em lugar de ser servo de Deus o homem se converte em escravo do pecado. Como diria G. K. Chesterton: "Seja o que for certo em relao ao homem, no pode sustentar-se que aquilo para o qual foi criado". Usou seu livre-arbtrio para desafiar e desobedecer a Deus, em vez de us-lo para entrar em comunho e amizade com Ele. Converteu-se em um rebelde contra Deus, antes que em seu amigo. Fazendo uso de seu prprio arbtrio, o homem frustra o intuito e plano de Deus para sua criao.

(3) O homem recupera sua grandeza. Mas at ento Deus no abandona o homem, nem o deixa entregue sua prpria sorte. Deus no permite que o homem seja destrudo por sua prpria loucura. At nessa situao, no se permite que o final da histria seja trgico. Deus enviou seu Filho ao mundo, a Jesus Cristo, para resgatar o homem do pntano do pecado, no que estava perdido, e libert-lo das cadeias do pecado, com que ficara aprisionado, para que, atravs dele, o homem pudesse recuperar a comunho com Deus que tinha perdido.

Nesta genealogia Mateus nos mostra como se obtm a grandeza majesttica; a tragdia da liberdade perdida; a glria da liberdade

Mateus (William Barclay) 18 restaurada. E esta, na misericrdia de Deus, a histria da humanidade e de cada homem individualmente.

A REALIZAO DOS SONHOS HUMANOS

Mateus 1:1-17 (continuao) Esta passagem sublinha duas coisas especiais a respeito de Jesus. (1) Sublinha que era filho de Davi. Em realidade, a genealogia que

encontramos no evangelho foi composta principalmente para demonstr-lo. um fato que o Novo Testamento afirma repetidas vezes. Pedro o faz no primeiro sermo da Igreja Crist que se registrou (Atos 2:29-36). Paulo fala de Jesus como semente de Davi segundo a carne (Rom. 1:3). O autor das epstolas pastorais insiste com os homens a recordarem que Jesus Cristo, da semente do Davi, foi ressuscitado dentre os mortos (2 Timteo 2:8). O autor do Apocalipse ouve Jesus Cristo dizer: "Eu sou a raiz e a linhagem de Davi" (Apocalipse 22:16).

No relato evanglico Jesus recebe em repetidas ocasies o ttulo de filho de Davi. Depois da cura do homem que fora cego e surdo, o povo exclama: " este, porventura, o Filho de Davi?" (Mateus 12:23). A mulher de Tiro e Sidom que desejava a ajuda de Jesus para sua filha, chama-o: "Senhor, Filho do Davi!" (Mateus 15:22). Os cegos clamam a Jesus chamando-o Filho de Davi (Mateus 20:30-31). Quando Jesus entrou em Jerusalm pela ltima vez a multido o aclamou de Filho de Davi (Mateus 21:9, 15).

Temos aqui algo de grande significado. evidente que eram as multides, o povo, os homens e mulheres comuns, os que O reconheciam como Filho de Davi. Os judeus eram um povo que esperava. Nunca tinham esquecido, nem podiam esquecer, que eram o povo eleito de Deus. Embora sua histria tenha sido uma longa srie de desastres, embora nesse preciso momento fossem um povo subjugado, nunca esqueceram seu destino. O sonho dos judeus era que viria ao mundo um descendente de Davi que os conduziria glria que lhes pertencia por

Mateus (William Barclay) 19 direito prprio. Quer dizer, Jesus a resposta aos sonhos dos homens. verdade que com muita freqncia os homens no o entendem assim. Vem o cumprimento de seus sonhos na riqueza, no poder, na abundncia material e na realizao das ambies que entesouram. Mas se alguma vez tm que realizar os sonhos humanos de paz e beleza, de grandeza e satisfao, isso ser possvel somente em Jesus Cristo. Jesus Cristo e a vida que Ele oferece a resposta aos sonhos seres humanos. Na antiga histria de Jos h um texto que transcende a direta histria. Quando Jos estava preso, junto com ele estavam tambm no crcere o mordomo principal e o padeiro de fara. Estes tiveram sonhos que os perturbaram. Os dois se lamentavam, dizendo: "Sonhamos, e no h quem pode interpretar nossos sonhos" (Gnesis 40:8). Porque o homem homem, porque filho da eternidade, vive acossado por seus sonhos: E o nico caminho que conduz a sua realizao Jesus Cristo.

(2) Esta passagem enfatiza tambm o fato de que Jesus era o cumprimento das profecias. NEle se realiza a mensagem dos profetas. Hoje tendemos a atribuir pouca importncia profecia. No nos interessa verdadeiramente procurar no Antigo Testamento aquelas palavras que prenunciam o que se cumpre no Novo Testamento. Mas a profecia envolve uma grande verdade eterna, ou seja, que o universo uma ordem planejada, que um propsito e intuito divino o sustenta, que Deus deseja que ocorram certas coisas e age para que Sua vontade se cumpra.

Na pea teatral The Black Stranger, de Gerald Healy, h uma cena que ocorre na Irlanda, nos dias terrveis da grande fome de meados do sculo XIX. Ao no saber o que fazer e carecendo de qualquer outra soluo, o governo contrata os desempregados para construrem estradas, embora estas no fossem necessrias nem vo a lugar algum, Michael, um dos personagens, descobre esta circunstncia e um dia, quando volta pra casa, diz a seu pai em uma expresso de custica surpresa: "Esto fazendo estradas que no levam a lugar nenhum." Se crermos na profecia jamais poderemos afirmar que isto o que ocorre com a histria. A histria nunca um caminho que no leva a lugar nenhum. possvel

Mateus (William Barclay) 20 que no usemos a profecia da mesma maneira como o fizeram nossos pais, mas por trs do fato da profecia est a verdade eterna de que a vida e o mundo no so caminhos sem destino, pelo contrrio, se dirigem meta proposta por Deus.

NO JUSTOS, E SIM PECADORES

Mateus 1:1-17 (continuao) O mais extraordinrio desta genealogia so os nomes das mulheres

que aparecem nela. No comum que nas genealogias judias apaream os nomes das

mulheres. A mulher no exercia direitos legais: no era considerada como uma pessoa, mas uma coisa. Era simplesmente propriedade de seu pai ou de seu marido, e estava obrigada a fazer o que eles quisessem. Na ao de graas matinal que o judeu proferia todas as manhs, agradecia a Deus por no t-lo feito gentio, escravo ou mulher. A simples presena de nomes femininos em uma genealogia um fato surpreendente e extraordinrio. Mas quando nos detemos a considerar quem eram estas mulheres e que coisas fizeram, sua meno se torna ainda mais surpreendente.

Raabe era uma prostituta de Jeric (Josu 2:1-7). Rute nem sequer era judia, era moabita (Rute 1:4). A prpria lei

estabelece que "No entrar amonita nem moabita na congregao do Senhor, nem at a dcima gerao deles; no entraro na congregao do Senhor para sempre." (Deuteronmio 23:3). Rute pertencia a um povo estrangeiro e odiado.

Tamar seduziu deliberadamente a seu sogro Jud e cometeu adultrio com ele (Gn. 38).

Bate-Seba, a me do Salomo, foi a mulher que Davi tomou de Urias, seu marido, valendo-se de uma imperdovel crueldade (2 Samuel 11 e 12).

Mateus (William Barclay) 21 Se Mateus tivesse procurado com maior afinco em todo o Antigo

Testamento, no poderia ter encontrado quatro personagens mais indignos de ser antepassados de Jesus. Entretanto, h algo muito belo na meno destas mulheres. Aqui, no princpio de seu evangelho, Mateus nos mostra de maneira simblica qual a essncia do evangelho de Deus em Jesus Cristo, ao nos dar testemunho de como as barreiras so derrubadas.

(1) Em Jesus a barreira que separa o judeu do gentio derrubada. Raabe, a mulher de Jeric e Rute, a mulher de Moabe, encontram um lugar na linha direta dos antepassados de Jesus. J figura aqui a grande verdade de que em Jesus no h judeu nem grego. Aqui, desde o comeo, afirma-se o universalismo do evangelho e do amor de Deus.

(2) Em Jesus a barreira que separa o homem da mulher derrubada. Em nenhuma genealogia comum apareceriam nomes de mulher, mas os encontramos na genealogia de Jesus. O antigo desprezo desapareceu: O homem e a mulher esto igualmente perto do amor de Deus e so igualmente importantes em seu plano.

(3) Em Jesus a barreira que separa o santo do pecador derrubada. De algum modo Deus pode incluir em seus propsitos, e incorporar em seu plano para a Histria, at aquele que cometeu grandes pecados. Diz Jesus: "Porque eu no vim para chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento" (Mateus 9:13). Aqui, ao iniciar o evangelho, nos dado uma insinuao da amplitude universal do amor de Deus. Deus pode encontrar servos seus em seres humanos diante dos quais o crente respeitvel tremeria de horror.

A ENTRADA DO SALVADOR NO MUNDO

Mateus 1:18-25 Para nossa forma ocidental de entender os parentescos, as relaes

que se mencionam nesta passagem so muito confusas. Primeiro, diz-se que Jos est desposado com Maria; e depois encontramos que pensa

Mateus (William Barclay) 22 "deix-la" em segredo (divorciar-se dela); alm disso, encontramos que o chama seu "marido". Estes termos so fiis aos costumes matrimoniais dos judeus daquela poca. No casamento judeu havia trs passos:

(1) Em primeiro lugar vinha o compromisso. Freqentemente se combinava quando os interessados eram apenas crianas. Em general os pais se encarregavam disto, ou um casamenteiro profissional contratado por estes. Alm disso, em geral, os futuros maridos nem sequer se conheciam. Considerava-se que o casamento era um passo muito srio para ficar vontade dos ditames do corao ou da paixo dos homens.

(2) Em segundo lugar vinha o noivado. Este era a ratificao pelos interessados da aliana que se concertou por eles. At este ponto a mulher tinha direito de romper o contrato se no estivesse disposta a lev-lo adiante, mas quando o casal se havia desposado o compromisso se convertia em uma obrigao iniludvel. O noivado durava um ano e durante este lapso o casal era conhecido como marido e mulher, embora no tinham os direitos dos maridos. A nica forma de dissolver esta relao era mediante o divrcio. Na lei judia encontramos freqentemente uma frase que para ns extremamente estranha. Se uma mulher perde, por motivo de morte, o seu prometido durante o ano do noivado, chamada "virgem viva". Jos e Maria tinham chegado a esta etapa. Estavam noivos, e se Jos queria pr fim relao a nica maneira legtima de faz-lo era pedindo um divrcio. E durante esse ano de noivado, Maria era legalmente a esposa de Jos.

(3) A terceira etapa era o casamento propriamente dito, que tinha lugar ao finalizar o ano de noivado.

Se tivermos em mente os costumes matrimoniais dos judeus, os parentescos e relaes que figuram nesta passagem ficam perfeitamente normais e claros.

Neste momento, pois, dito a Jos que Maria est grvida, que o filho tinha sido gerado pelo Esprito Santo e que devia lhe pr o nome de Jesus. Jesus a forma grega do nome hebreu Josu, e Josu significa Jeov a salvao. Muito tempo antes o salmista tinha ouvido Deus

Mateus (William Barclay) 23 dizer: " ele quem redime a Israel de todas as suas iniqidades" (Salmo 130:8). Foi dito a Jos que o menino que havia de nascer cresceria at tornar-se o Salvador que haveria de liberar o povo de Deus dos pecados deles. Jesus no era apenas o homem nascido para ser Rei como tambm o homem nascido para ser Salvador. Veio ao mundo no por seu prprio interesse, mas sim por todos ns, os seres humanos, para nossa salvao.

NASCIDO DO ESPRITO SANTO

Mateus 1:18-25 (continuao) Esta passagem nos diz como Jesus nasce por obra do Esprito Santo.

Seu tema o que ns denominamos "o nascimento virginal". O nascimento virginal uma doutrina que nos apresenta muitas dificuldades. No momento no nos interessa discuti-la, e sim descobrir o que significa para ns.

Se viermos a esta passagem com a mente aberta e a lermos como se a estivssemos lendo pela primeira vez, descobriremos que no sublinha tanto o fato de que Jesus nascesse de uma mulher virgem como a circunstncia muito especial de que o nascimento de Jesus foi obra do Esprito Santo. "Achou-se grvida pelo Esprito Santo." "descobriu que o filho gerado no seio da Maria provm do Esprito Santo." como se estas oraes estivessem sublinhadas e impressas com letras maisculas. isto o que Mateus deseja nos comunicar nesta passagem. Nesse caso, o que significa dizer que no nascimento de Jesus o Esprito Santo agiu de um modo particular? Deixemos de lado no momento todos os aspectos duvidosos e discutveis deste fato, e nos concentremos em sua grande verdade, tal como Mateus tinha em mente.

No pensamento judeu o Esprito Santo exercia certas funes bem definidas. No podemos trazer para a interpretao desta passagem a plenitude da doutrina crist do Esprito Santo, porque estas idias seriam completamente entranhas ao pensamento de Jos. Devemos interpret-lo luz da doutrina judia do Esprito Santo, porque esta, inevitavelmente,

Mateus (William Barclay) 24 a forma em que Jos deve ter compreendido a mensagem que recebeu, dado que era tudo o que ele conhecia.

(1) Segundo a concepo judia, o Esprito Santo era a pessoa que trazia a verdade de Deus aos homens. O Esprito Santo era quem comunicava aos profetas o que deviam dizer e quem dizia aos homens de Deus o que deviam fazer. Era o Esprito Santo quem, atravs das eras e das geraes, havia aproximado a verdade de Deus aos homens. De maneira que Jesus, segundo esta concepo, a pessoa que traz a verdade de Deus aos homens.

Dito de outra maneira, Jesus a pessoa que pode nos dizer como Deus e o que Deus quer que ns sejamos. Somente em Jesus vemos como Deus e como deveria ser o homem. Antes que viesse Jesus os homens tinham idias muito vagas e confusas, com freqncia muito errneas a respeito de Deus; at no melhor dos casos a nica coisa que podiam fazer era adivinhar e propor idias tentativas. Mas Jesus pde dizer: "Quem me v a mim v o Pai" (Joo 14:9). Em Jesus vemos o amor, a compaixo, a misericrdia, a vontade redentora e a pureza de Deus como em nenhum outro lugar do mundo. Com a vinda de Jesus termina a poca das respostas tentativas, e entramos plenamente na era da certeza. Antes que viesse Jesus ningum sabia em realidade o que era a bondade. Jesus o nico em quem conhecemos a verdadeira humanidade, a autntica bondade e a verdadeira obedincia vontade de Deus. Jesus veio para nos comunicar a verdade a respeito de Deus e de ns mesmos.

(2) Os judeus creiam que o Esprito Santo no somente trazia a verdade de Deus aos homens, mas tambm capacitava os homens a reconhecerem essa verdade quando a vissem. De maneira que Jesus quem abre os olhos dos homens verdade. Eles esto cegados por sua prpria ignorncia; esto separados do reto atalho por seus prprios preconceitos; seus olhos e suas mentes so entrevadas por seus prprios pecados e paixes. Jesus pode nos abrir os olhos at que sejamos capazes de ver a verdade.

Mateus (William Barclay) 25 Em uma das novelas de William J. Locke encontramos o retrato de

uma mulher que tem qualquer quantidade de dinheiro e que empregou a metade de sua vida em visitar os museus e galerias mais famosos de todo o mundo. Mas estava aborrecida e cansada. Nessa situao encontra a um francs que tinha muito poucas posses materiais mas um grande amor para a beleza e um amplo conhecimento de todas as expresses da arte. Este a acompanhou, e com ele tudo parecia ser diferente. "Nunca soube como eram as coisas", diz-lhe ela, "at que voc me ensinou a olh-las."

A vida muito distinta quando Jesus nos ensina a olh-la. Quando Jesus entra em nosso corao vemos tudo de maneira diferente, porque ele nos abre os olhos, para que possamos ver de verdade.

CRIAO E RECRIAO

Mateus 1:18-25 (continuao) (3) Os judeus relacionavam o Esprito de Deus particularmente

com a obra da criao. Mediante seu Esprito, Deus efetuou sua obra criadora. No princpio o Esprito de Deus sobrevoava a face das guas, e o caos se converteu em cosmos (Gnesis 1:2). "Pela palavra do Senhor foram feitos os cus", disse o salmista, "e todo o exrcito deles, pelo esprito da sua boca" (Salmo 33:6). (Tanto em hebreu como em grego a palavra que significa flego, sopro, respirao, tambm significa esprito.) "Envia seu esprito, so criados..." (Salmo 104:30), "O Esprito de Deus me fez, e o sopro do Onipotente me deu vida" (J 33:4). O Esprito o criador do mundo e o doador da vida. De maneira que, em Jesus Cristo, ingressa no mundo o poder de Deus que d vida e cria. Com Jesus entra no mundo a prpria vida e poder de Deus. Este poder, que reduziu o caos ordem, vem para pr ordem em nossa vida desordenada. Este poder, que infundiu vida no que carecia dela, vem para insuflar vida em nossas debilidades e frustraes. Poderamos diz-

Mateus (William Barclay) 26 lo da seguinte maneira: No estamos verdadeiramente vivos at o momento em que Jesus entra em nossas vidas.

(4) Os judeus relacionavam ao Esprito acima de tudo com a obra de recriao. Ezequiel traa sua lgubre imagem do vale dos ossos secos. Mas quando mais triste o panorama, ouve a Deus dizer: "Porei meu esprito em vs, e vivereis" (Ezequiel 37:1-14). Os rabinos tinham uma afirmao: "Deus disse a Israel: Neste mundo meu Esprito encheu voc de sabedoria, mas no mundo futuro meu Esprito far com que voc volte a viver." Quando os homens esto mortos em seu pecado e letargia, destrudas suas inteligncias, almas e coraes, somente o Esprito de Deus pode voltar a despert-los para a vida. De maneira que, em Jesus, entra no mundo o poder que pode refazer e recriar a vida. Pode devolver a vida alma que est morta no pecado. Pode reavivar os ideais que morreram. Pode voltar a fortalecer o desejo do bem que pereceu. Pode renovar e recriar a vida quando os homens perderam tudo o que a vida significa.

Neste captulo do evangelho h muito mais que o fato de que Jesus tenha nascido de uma me virgem. A essncia da narrao do Mateus que o Esprito de Deus age no nascimento de Jesus de uma maneira sem precedentes. o Esprito que traz a verdade de Deus aos homens, o Esprito que pe os homens em condies de ver essa verdade quando est diante deles, o Esprito que pode, somente Ele, recriar a alma quando esta perdeu a vida que deveria ter. Jesus nos capacita a ver o que Deus e o que deveria ser o homem. Jesus abre nossos olhos e mentes de tal maneira que podemos ver a verdade de Deus para ns; Jesus o poder criador que desceu aos homens; Jesus o poder recriador que pode liberar as almas dos homens da morte do pecado,

Mateus 2 O lugar de nascimento do Rei - Mat. 2:1-2 A homenagem do oriente - Mat. 2:1-2 (cont.) O rei intrigante - Mat. 2:3-8

Mateus (William Barclay) 27 Presentes para Cristo - Mat. 2:9-12 A fuga para o Egito - Mat. 2:13-15 A matana dos inocentes - Mat. 2:1-18 O retorno a Nazar - Mat. 2:19-23

O LUGAR DE NASCIMENTO DO REI Mateus 2:1-2 Jesus nasceu em Belm. Belm era uma cidade muito pequena, a

uns dez quilmetros ao sul de Jerusalm. Na antiguidade ela era chamada Efrata. A palavra Belm significa Casa do Po. Belm estava em uma zona frtil, na qual seu nome era apreciado. Estava situada na parte mais alta de uma cadeia montanhosa de pedra calcria cinza, a setecentos e cinqenta metros sobre o nvel do mar. A serrania apresentava duas alturas nos extremos e no centro um terreno baixo como uma cadeira de montar. De maneira que, vista desde sua posio, Belm parecia localizada em meio de um anfiteatro montanhoso.

Belm tinha uma longa histria. Foi ali onde Jac tinha enterrado Raquel, colocando um pilar junto tumba, como aviso (Gnesis 48:7, 35:20). Ali viveu Rute depois de haver-se casado com Boaz (Rute 2:1); desde Belm se podia ver Moabe, sua terra natal, ao outro lado do vale do Jordo. Mas sobretudo, Belm era o lugar natal e a cidade de Davi (1 Samuel 16:1, 17:12, 20:6). Quando Davi era um fugitivo nas serranias do Jud seu maior desejo era poder beber as guas do poo de Belm (2 Samuel 23:14-15). Mais tarde -nos dito que Roboo fortificou a cidade de Belm (2 Crnicas 11:6). Mas, na histria do Israel e na mente de todos os judeus Belm era sobretudo a cidade de Davi. E da estirpe do Davi Deus haveria de mandar um libertador de seu povo. Tal como o expressa o profeta Miquias: "E tu, Belm-Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Jud, de ti me sair o que h de reinar em Israel, e cujas origens so desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade" (Miquias 5:2).

Mateus (William Barclay) 28 Os judeus esperavam que o filho do grande Davi, maior at que seu

pai, nascesse em Belm; esperavam que o ungido de Deus nascesse nessa cidade, e aconteceu tal como eles acreditavam.

A imagem do estbulo e da manjedoura como lugares do nascimento de Jesus esto desenhadas com traos indelveis em nossas mentes; mas bem pode ser que a imagem no seja totalmente correta. Justino Mrtir, um dos mais destacados Pais da Igreja, que viveu ao redor do ano 150, e que provm de uma regio prxima a Belm, diz-nos que Jesus nasceu em uma cova prxima cidade (Justino Mrtir, Dilogo com Trifo, 78, 304); possvel que a informao de que dispunha Justino fosse autntica. As casas de Belm esto construdas sobre a base da montanha de rocha calcria, e muito freqente que tenham um estbulo escavado na montanha, por debaixo da casa; Jesus pode muito bem ter nascido em um desses estbulos-caverna.

At nossos dias pode visitar-se uma caverna onde se diz que Jesus nasceu, e ainda por cima dela se construiu a enorme Igreja Catlica do Natal. Faz muito tempo que se identifica esse lugar como autenticamente o lugar do nascimento de Jesus. O imperador romano Adriano, em um intento de profanar o lugar, mandou construir em cima um templo dedicado ao deus Adonis. Quando o Imprio Romano adotou o cristianismo, a princpios do sculo IV, Constantino, o primeiro imperador cristo, fez construir uma grande igreja no mesmo lugar, e essa a Igreja que ainda se pode visitar. H. V. Morton nos narra sua visita Igreja do Natal, em Belm, destacando o fato de que, chegando chegar ao lugar, encontrou-se com uma enorme parede, e nessa parede havia uma porta to pequena o que at um ano precisaria agachar-se para passar por ela. Atravessando essa porta, do outro lado da parede, estava a Igreja. Debaixo do altar principal da igreja est a cova. Quando o peregrino desce para ela, encontra-se com uma pequena caverna escura, de uns quatorze metros de comprimento e quatro de largura, iluminada por cinqenta e trs lmpadas de prata. No piso h uma

Mateus (William Barclay) 29 estrela, e ao seu redor a inscrio latina: "Aqui nasceu Jesus, da virgem Maria."

Quando o Senhor da Glria veio Terra, nasceu em um lugar onde os homens alojavam animais. A cova que est na Igreja do Natal, em Belm, possivelmente seja a mesma onde Jesus nasceu, embora possa ser alguma outra. Isso algo que nunca saberemos com certeza. Mas h um belo smbolo no fato de que a Igreja do Natal tenha uma porta to baixa que todos os que queiram entrar nela devam agachar-se. extremamente apropriado que todo homem que queira aproximar-se do Menino Jesus deva faz-lo de joelhos.

A HOMENAGEM DO ORIENTE

Mateus 2:1-2 (continuao) Quando Jesus nasceu em Belm vieram sbios do Oriente para lhe

render homenagem. Habitualmente se fala desses homens como "os magos", termo muito difcil de traduzir. Herdoto (1:101, 132) sabia algo com relao a uma tribo de medos chamada "os magos". Os medos formavam parte do imprio persa; em um determinado momento da histria tentaram derrocar aos persas e dirigir eles os destinos do imprio. Mas no lograram seu propsito. A partir de ento os magos deixaram de ter ambies polticas e se converteram em uma tribo de sacerdotes. Foram, na Prsia, quase exatamente o mesmo que os levitas eram em Israel. Chegaram a ser os professores e instrutores dos reis persas. Na Prsia no podia oferecer-se sacrifcio algum se um dos magos no estivesse presente. Vieram a ser homens de grande santidade e sabedoria.

Estes magos eram homens versados em filosofia, medicina e cincias naturais. Eram experientes em encantamentos e na interpretao de sonhos. Posteriormente a palavra mago adquiriu um significado de conotao pejorativa, sendo sinnimo de adivinho, bruxo e at enganador. Temos, por exemplo, Elimas, o mago (Atos 13:6, 8), e

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Mateus (William Barclay) 30 Simo, chamado usualmente Simo, o Mago (Atos 8:9, 11). Mas em seus melhores tempos os magos no eram enganadores, mas homens de grande santidade e sabedoria que empregavam suas vidas na busca da verdade.

Naqueles dias todos acreditavam na astrologia. Acreditavam que se podia predizer o futuro interpretando os movimentos das estrelas, e que o destino de cada um estava determinado pela estrela sob a qual nascia. No fica difcil ver como surgiu essa crena. As estrelas percorrem seus caminhos imutveis e, nesse sentido, representam a ordem do universo. Se aparecia repentinamente uma estrela mais brilhante que as demais, se a ordem eterna dos cus era quebrada por um fenmeno especial, interpretava-se como se Deus mesmo estivesse irrompendo em sua ordem para anunciar algo.

No sabemos qual foi a estrela brilhante que aqueles magos viram. No ano 2 A.C. foi visvel o cometa Halley, um astro de brilho considervel que atravessou o cu. Por volta do ano 7 A. C. se produziu uma conjuno de Saturno e Jpiter, que por seu brilho particular pde ter-se interpretado como a apario de uma nova estrela. Entre os anos 5 e 2 A. C, produziu-se um fenmeno astronmico pouco comum. Durante esses anos a estrela Srio, conhecida pelos egpcios como Mesori, aparecia sobre o horizonte na hora do pr-do-sol, e brilhava durante um momento com um resplendor espetacular. Mesori significa, em egpcio, "o nascimento de um prncipe" e para aqueles astrlogos da antiguidade este fenmeno pouco comum teria significado, indubitavelmente, o nascimento de algum grande rei. No podemos saber qual foi a estrela que os magos viram, mas parte de suas responsabilidades profissionais era observar os cus, e algum fenmeno celestial fora do comum deve lhes ter sugerido que um rei tinha entrado no mundo.

Pode nos parecer extraordinrio que aqueles homens sassem do oriente para lanar-se busca de um rei. O estranho que, na poca em que Jesus nasceu, houvesse em todo mundo Mediterrneo a estranha expectativa do advento de um rei. Os historiadores romanos nos do

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Mateus (William Barclay) 31 testemunho desse sentimento generalizado. Pouco tempo depois, na poca do imperador Vespasiano, Suetnio pde escrever: "Estava estabelecida e difundida em todo Oriente a antiga crena de que por aquela poca seria o destino dos homens da Judia governar o mundo" (Suetnio, Vida de Vespasiano, 4:5). Tcito fala da mesma crena, dizendo: "Havia a convico de que nesta poca o Oriente cresceria em poder, e que governantes de origem judia adquiririam um imprio universal" (Tcito, Histrias, 5:13). Os judeus tinham a crena de que "Por aquela poca um de sua raa se tornaria o governante de todo o mundo habitado" (Josefo, Guerras dos Judeus, 6:5, 4). Pouco tempo depois encontramos Tiridates, rei da Armnia, que visita a Nero acompanhado por seus magos (Suetnio, Vida de Nero, 13:1). Em Atenas os magos ofereceram sacrifcios memria de Plato (Sneca, Epstolas, 58:31). Quase ao mesmo tempo do nascimento de Jesus, Augusto, imperador romano, era saudado como "Salvador do Mundo", e Virglio, o poeta romano, escreve sua Quarta gloga, conhecida como a gloga Messinica porque descreve a idade de ouro que est por vir.

No h por que pensar que a histria da visita dos magos ao Menino Jesus recm-nascido somente uma bonita lenda. Trata-se de um fato que bem pde ter acontecido naquela poca. Quando Jesus Cristo veio ao mundo, os homens viviam em ansiosa expectativa. A humanidade inteira esperava a Deus. Os coraes dos homens ansiavam por Deus. Tinham descoberto que sem Deus no era possvel construir a Idade de Ouro. Jesus veio a um mundo expectante; e quando se produziu sua vinda, os extremos da Terra se reuniram ao redor de seu bero. Este foi o primeiro sinal e smbolo da conquista do mundo por Cristo.

O REI INTRIGANTE

Mateus 2:3-8 Chegou aos ouvidos do rei Herodes que tinham vindo magos do

Oriente e que estavam procurando um recm-nascido, destinado a ser

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Mateus (William Barclay) 32 Rei dos judeus. Qualquer rei se preocuparia ao receber a informao do nascimento de um menino que chegaria a ocupar seu trono. Mas Herodes se sentiu duplamente perturbado. Herodes era meio judeu e meio idumeo. Em suas veias corria sangue edomita. Tinha prestado bons servios aos romanos nas guerras e conflitos internos da Palestina, e eles lhe tinham confiana. No ano 47 A.C. tinha sido nomeado governador; no ano 40 recebeu o ttulo de rei; e teria que reinar at o ano 4 de nossa era. Era chamado Herodes o Grande, e em mais de um sentido merecia este ttulo. Foi o nico delegado romano na Palestina que conseguiu manter a paz e produzir ordem no meio da desordem que imperava quando ele assumiu o cargo. Foi, alm disso, um grande construtor; entre outras obras fez a reconstruo do templo de Jerusalm. Podia ser generoso. Nos tempos difceis atenuava os impostos para que a situao do povo se aliviasse; e quando veio a grande fome do ano 25 A.C. chegou at a fundir sua prpria fonte de prata para comprar trigo e reparti-lo entre os famintos. Mas Herodes sofria de uma terrvel falha em seu carter. Sempre tinha sido exageradamente suspicaz, e medida que envelhecia esse defeito se acentuava cada vez mais. Em seus ltimos anos chegou a ser, como algum assinalou, "um velho criminoso". Se suspeitava que algum pretendia rivalizar com seu poder, imediatamente o mandava assassinar. Matou a sua mulher Mariamne, e a sua me, Alexandra; a seu filho mais velho, Antipater. Aos seus dois netos, filhos deste, Alexandre e Aristbulo, eliminou-os com suas prprias mos. Augusto, o imperador romano, disse amargamente, em certa oportunidade, que era mais seguro ser um porco nos chiqueiros de Herodes que filho dele. (O dito em grego muito mais epigramtico que em portugus, porque hus significa porco e hus filho, e h aliterao.) Pode-se entender como era amarga, selvagem e retorcido a personalidade do Herodes pelas disposies que deixou para que se executassem depois de sua morte. Quando chegou aos setenta anos sabia que logo morreria. Retirou-se a Jeric, a mais bela de todas as suas cidades. Deu ordens para que se encarcerasse a um grupo de cidados mais destacados de

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Mateus (William Barclay) 33 Jerusalm, sob pretexto de acusaes falsas. E ordenou que quando ele morresse todos fossem executados. Dizia com amargura que quando ele morresse ningum faria luto por ele, e que deste modo pelo menos se derramariam lgrimas em Israel.

No difcil imaginar como se haver sentido um homem desta ndole quando lhe chegou a notcia do nascimento de um menino destinado a ser rei. Herodes se perturbou, e toda Jerusalm se perturbou com ele, porque bem sabiam todos os habitantes de Jerusalm que tipo de medidas era capaz de tomar seu rei para chegar at o fundo dessa histria e eliminar o menino. Jerusalm conhecia Herodes, e tremeu de medo enquanto esperava sua inevitvel reao.

Herodes convocou os principais sacerdotes e os escribas. Os escribas eram os doutores na Lei e nas outras escrituras. Os principais sacerdotes eram um grupo intimamente relacionado de pessoas. Em primeiro lugar estavam os que tinham sido literalmente sumos sacerdotes, e se tinham retirado de seu ofcio; o sumo sacerdote estava confinado a um nmero muito reduzido de famlias. Eram a aristocracia sacerdotal judaica, e os membros dessas famlias seletas tambm recebiam o nome de "sumos sacerdotes" ou "prncipes dos sacerdotes". De modo que Herodes convocou a aristocracia religiosa e os eruditos teolgicos de sua poca, e lhes perguntou onde, segundo as Escrituras, devia nascer o Ungido de Deus. Citaram-lhe o texto do Miquias 5:2. Herodes mandou chamar os magos e os enviou para buscarem diligentemente o recm-nascido. Disse-lhes que ele tambm desejava ir e adorar o Menino. Seu nico desejo, entretanto, era assassinar aquele que lhe podia tomar o trono.

Acaba de nascer Jesus e j vemos os trs agrupamentos em que os homens sempre se posicionaram em face de Jesus. Consideremos quais so estas trs formas de reagir.

(1) Temos primeiro a reao de Herodes: dio e hostilidade. Herodes tinha medo de que esse garotinho interferisse em sua vida, sua posio, seu poder, sua influncia. Portanto, sua primeira reao

Mateus (William Barclay) 34 instintiva foi elimin-lo. Ainda h os que estariam muito contentes se pudessem destruir a Jesus Cristo, porque nEle vem Aquele que interfere em suas vidas. Querem fazer sua prpria vontade, e Jesus no o permite; por isso gostariam de mat-lo. O homem cujo nico desejo fazer o que deseja nunca estar disposto a receber a Jesus Cristo. O cristo algum que deixou que fazer sua prpria vontade, e que dedicou sua vida a fazer o que Jesus deseja dele.

(2) Temos a reao dos principais sacerdotes e escribas: Uma total indiferena. Eles no se interessaram pelo assunto. Estavam to ensimesmados em suas disputas sobre o ritual do Templo e suas discusses legais jurdicas que simplesmente desconheceram a Jesus. Ele no significou nada para eles.

Ainda h quem est to ocupados em seus prprios assuntos que Jesus Cristo no lhes diz nada. Ainda pode propor a aguda pergunta dos profetas: "No vos comove isto, a todos vs que passais pelo caminho?" (Lamentaes 1:12).

(3) E temos a reao dos trs magos, que pode resumir-se em duas palavras: Reverncia e adorao. Desejam pr aos ps de Jesus os presentes mais nobres que puderam trazer. Sem lugar a dvida, quando qualquer ser humano toma conscincia do amor de Deus em Jesus Cristo, no pode menos que sentir-se arrebatado pela maravilha, a resposta amante e o louvor.

PRESENTES PARA CRISTO

Mateus 2:9-12 Finalmente os magos do oriente encontraram o caminho de Belm.

No devemos pensar que a estrela se foi movendo no cu literalmente, como um sinal indicador. Nesta passagem h muita poesia, e no devemos transformar a poesia em prosa crua e desprovida de vida. Mas a estrela brilhava sobre Belm. H uma bonita lenda que relata como a estrela, depois de ter completado sua misso de guia, caiu no poo de

Mateus (William Barclay) 35 Belm e ainda est ali, onde pode ser vista s vezes por aqueles cujos coraes so puros.

Construram-se muitas lendas em torno dos trs "reis magos". Na antiguidade uma tradio oriental sustentava que eram doze. Mas na atualidade em quase todo mundo se acredita que eram trs. O Novo Testamento no diz quantos eram, mas o triplo presente que apresentam a Jesus sugere a possibilidade de que sejam trs os que trazem os presentes. Uma lenda ulterior os fez reis. Outra, posterior at, deu-lhes nomes: Melquior, Gaspar e Baltasar. Elaboraes posteriores se dedicaram a descrever a aparncia pessoal destes trs personagens, e determinaram quem havia trazido cada um dos presentes. Melquior era um ancio, de cabelo cinza e barba longa, e foi o que trouxe o ouro. Gaspar era jovem e sem barba, de gesto altivo. Seu dom foi o incenso. Baltasar era negro, e foi quem trouxe o dom da mirra.

Desde os tempos mais antigos os homens interpretaram de distintas maneiras a natureza dos presentes que os reis magos trouxeram para Jesus. Estas interpretaes atribuem a cada um dos presentes alguma caracterstica que se adapta ao tipo de pessoa que era Jesus e obra que realizaria.

(1) O ouro um presente de reis. Sneca nos diz que em Partia havia o costume de que ningum podia aproximar-se da presena do rei sem levar um presente. E o ouro, o rei dos metais, um presente apropriado para um rei dos homens. De maneira que Jesus foi algum "nascido para ser Rei", mas deveria reinar no pela fora mas pelo amor, e no sentado em um trono mas sobre a cruz. Fazemos bem em recordar que Jesus Cristo Rei. Nunca podemos nos encontrar com Jesus em um plano de igualdade. Sempre devemos ir a ele em completa submisso e entrega. Nelson, o grande almirante ingls, sempre tratou a seus vencidos com grande bondade e cortesia depois de uma de suas vitrias navais, o almirante inimigo foi levado a nave insgnia e conduzido presena de Nelson na proa do navio. Conhecendo o cavalheirismo de Nelson, e esperando tirar proveito disso, avanou para seu vencedor com a mo

Mateus (William Barclay) 36 estendida, como se fosse estreit-la com um igual. Mas o brao do Nelson no se moveu de seu lado. "A espada primeiro; a mo depois", disse-lhe. Antes de ser amigos de Cristo devemos nos submeter a Ele.

(2) O incenso um presente de sacerdotes. O doce perfume do incenso se usava no culto do Templo e nos sacrifcios rituais que se realizavam ali. A funo do sacerdote abrir aos homens o caminho para Deus. A palavra latina que significa "sacerdote" pontifex, que significa "construtor de pontes". O sacerdote o homem que tende uma ponte entre Deus e os homens. Isso foi o que Jesus fez. Abriu o caminho para a presena de Deus; tornou possvel aos homens entrarem na prpria presena de Deus.

(3) A mirra um presente para algum que vai morrer. A mirra se usava para embalsamar o corpo dos mortos. Jesus veio ao mundo para morrer.

Holman Hunt fez um quadro de Jesus que muito famoso. O quadro O apresenta na porta da oficina de carpintaria, em Nazar. Ainda um menino. O sol do entardecer brilha sobre a porta e o moo saiu um momento para estirar as pernas, com cibras pela posio de trabalho sobre o banco de carpinteiro. Abre os braos para receber melhor o ar fresco do crepsculo, e o sol projeta sua sombra sobre a parede, a sombra de uma cruz. Em um segundo plano est Maria, que ao ver essa cruz estremece: seu rosto manifesta o temor da tragdia que se aproxima. Jesus veio ao mundo para viver pelos homens e, ao terminar sua misso, morrer por eles. Veio para dar pelos homens sua vida e sua morte.

Ouro para um rei, incenso para um sacerdote, mirra para quem vai

morrer. Estes foram os presentes dos sbios orientais: at no bero de Jesus anteciparam que teria que ser o autntico Rei, o perfeito Sumo Sacerdote e, finalmente, o supremo Salvador dos homens.

Mateus (William Barclay) 37 A FUGA PARA O EGITO

Mateus 2:13-15 Na antiguidade no se duvidava de que Deus enviasse mensagens

aos homens mediante sonhos. Jos foi advertido em um sonho de que escapasse ao Egito para evitar os propsitos criminais de Herodes. A fuga ao Egito foi um fato muito natural. Muito freqentemente, nos sculos turbulentos que precederam vinda de Jesus, quando os judeus enfrentavam algum perigo, tirania ou perseguio que tornava a vida deles impossvel, exilavam-se no Egito. O resultado foi que quase cada cidade egpcia tinha sua colnia de judeus. Na cidade da Alexandria, sobretudo, havia mais de um milho de judeus; vrios bairros da cidade eram habitados quase exclusivamente por membros desta nao. Jos, em sua hora de perigo, fez o que muitos outros seus concidados tinham feito antes, e quando ele e Maria chegassem ao Egito no se encontrariam totalmente entre estrangeiros, porque em qualquer cidade ou povo onde decidissem ficar, haveria judeus que, como eles, tinham procurado refgio no Egito.

interessante que posteriormente os inimigos do cristianismo e de Jesus utilizaram sua estada no Egito como um pretexto para desprez-lo. Egito era considerado tradicionalmente uma terra de magia, bruxaria e encantamentos. O Talmud diz: "Desceram ao mundo dez medidas de bruxaria, nove corresponderam ao Egito e o resto se repartiu pelo mundo." Os inimigos de Jesus afirmavam que no Egito, durante seu exlio, o Mestre aprendeu algumas ardis de magia" e bruxaria, que posteriormente lhe serviram para simular seus "milagres" e enganar aos homens. Quando o filsofo pago Celso dirigiu seus ataques contra o cristianismo, no sculo III (ataque que Orgenes enfrentou e rechaou definitivamente) disse que Jesus nasceu ilegitimamente, que esteve empregado no Egito a servio de algum mago, e que ao retornar a Palestina utilizou os conhecimentos adquiridos para enganar a seus concidados e proclamar-se Deus (Orgenes, Contra Celsum, 1:38). Um

Mateus (William Barclay) 38 certo rabino, Elizer Ben Hircano, disse que Jesus tinha as frmulas mgicas que necessitava para fazer milagres tatuados no corpo, para no esquec-los Tais so algumas das calnias que mente torcidas relacionaram com a fuga ao Egito. Mas so evidentemente falsas, porque quando Jesus foi levado ao Egito era um recm-nascido, e quando retornou ainda era menino.

Duas das lendas mais belas do Novo Testamento esto relacionadas com a fuga ao Egito. A primeira a lenda do ladro penitente. A lenda diz que o ladro penitente se chamava Dimas, e que tinha conhecido Jesus pela primeira vez no Calvrio quando ambos pendiam de suas respectivas cruzes. O relato sustenta que quando Jos e Maria se dirigiam ao Egito foram assaltados por ladres, e um dos cabeas do bando quis mat-los para ficar com as poucas coisas que levavam. Mas houve algo no menino Jesus que comoveu o corao do Dimas, que era um dos ladres. Negou-se a que se fizesse mal algum a Jesus e seus pais. Olhou o menino e lhe disse: "Menino bendito mais que nenhum entre os meninos, se alguma vez chegasse o momento em que voc possa ter misericrdia por mim, lembre-se deste momento e no me esquea." Jesus e Dimas voltaram a encontrar-se, no Calvrio, e Dimas, a ponto de morrer justiado, encontrou misericrdia e perdo para sua alma, no Senhor Jesus.

A outra lenda uma narrao infantil, mas muito bonita. Quando Jos, Maria e Jesus se dirigiam ao Egito, diz a lenda, chegou o momento de pr-do-sol, e estavam muito cansados, e procuraram refgio para passar a noite em uma caverna. Fazia frio, tanto frio que o cho se cobriu de geada esbranquiada. Uma pequena aranha viu o menino Jesus e quis fazer algo para ajud-lo a manter-se quente. Depois de muito pensar decidiu que a nica coisa que podia fazer era tecer uma tela bem ampla sobre a entrada da cova, para servir de cortina. Pelo mesmo atalho apareceram depois de um momento os soldados de Herodes, que procuravam meninos para matar e executar de acordo com de seu soberano. Quando chegaram entrada da cova estavam a ponto de entrar

Mateus (William Barclay) 39 para ver se algum tinha procurado refgio nela. Mas o capito advertiu que a entrada estava coberta por um tecido de aranha, e que esta, por sua vez, estava branca de geada. "Olhem", disse, h um tecido de aranha intacto. Ningum pode ter entrado aqui, porque se o fizesse, teria esmigalhado o tecido." De maneira que os soldados passaram adiante, e depois de procurar muito momento em outros lugares voltaram para Jerusalm.

A sagrada famlia pde dormir em paz, porque uma pequena aranha tinha tecido seu manto para proteger a Jesus do frio. por isso, conforme dizem, que at nossos dias cobrimos as rvores de Natal com fios prateados que simulam o tecido de aranha coberta de geada. uma histria muito bonita que contm uma grande verdade: Os dons feitos a Jesus nunca so esquecidos.

As ltimas palavras desta passagem apresentam um costume caracterstico de Mateus. V na fuga ao Egito o cumprimento de certas palavras do profeta Osias. Mateus as reproduz como: "Do Egito chamei a meu filho." A citao de Osias 11:1, que diz: "Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei o meu filho." Pode ver-se imediatamente que esta citao no tem nada que ver com Jesus nem com a fuga ao Egito. No mais que uma forma de asseverar que Deus tinha libertado o povo de Israel de sua escravido no Egito. Veremos em repetidas ocasies que esta uma forma de usar o Antigo Testamento caracterstica de Mateus. Est disposto a usar como profecia a respeito de Jesus qualquer texto do Antigo Testamento que possa adequar-se verbalmente a tal propsito, mesmo que originalmente no tenha tido nada que ver com o assunto em referncia. Mateus sabia que a nica maneira de convencer os judeus de que Jesus era o autntico Ungido de Deus era demonstrando que cumpria em sua pessoa as profecias do Antigo Testamento. Em seu af por obter seu objetivo, encontrava profecias no Antigo Testamento at em lugares onde originalmente no havia profecia alguma. Quando lemos passagens como esta devemos lembrar que, mesmo que sejam para ns pouco convincentes e estranhas,

Mateus (William Barclay) 40 eram de supremo interesse para os judeus, aqueles a quem Mateus dirigiu o seu evangelho.

A MATANA DOS INOCENTES

Mateus 2:16-18 J vimos que Herodes era um mestre consumado na arte do

assassinato. Assim que subiu ao trono aniquilou o Sindrio, a corte suprema dos judeus. Posteriormente mandou matar a trezentos juzes das cortes, em um mpeto inexplicvel. Mais tarde matou a sua esposa Mariame, a sua me, Alexandra, a seu filho mais velho, Antipater, e a dois filhos deste, Alexandre e Aristbulo. Fazia acertos para que na hora de sua prpria morte fosse executado um grupo seleto dos cidados mais notveis de Jerusalm. Era de esperar-se que Herodes no aceitasse tranqilamente a notcia de que tinha nascido um menino que estava destinado a ser Rei. Vimos como averiguou cuidadosamente quando os magos tinham visto a estrela. Nesse momento j estava calculando qual era a idade dos meninos que devia mandar assassinar. Agora o vemos pr em prtica seus planos criminais, com uma rapidez selvagem, animal. Ordenou a matana de todos os meninos de dois anos para baixo em Belm e sua zona circundante.

H duas coisas que devem destacar-se. Belm no era uma cidade muito grande, e o nmero de meninos abaixo dos dois anos no pde ter sido maior de vinte ou trinta. No devemos pensar que foram centenas. obvio, no queremos dizer que o crime de Herodes haja sido menos terrvel por ser somente vinte ou trinta meninos que ele assassinou, mas importante fazermos uma imagem correta.

Em segundo lugar, alguns crticos sustentam que este assassinato no pde ter acontecido, porque no mencionado em nenhum outro lugar, exceto nesta passagem do Novo Testamento. O historiador judeu Josefo, por exemplo, no o menciona. Pode responder-se de duas maneiras. Em primeiro lugar, tal como acabamos de dizer, Belm era

Mateus (William Barclay) 41 uma cidade muito pequena, e em uma regio onde este tipo de atrocidades era moeda corrente, o assassinato de vinte ou trinta meninos provavelmente no tenha sido considerado um fato grave. No deve ter significado muito, exceto para as mes dos meninos. Em segundo lugar, encontramos um interessante paralelo histrico nas crnicas escocesas. Carr faz notar que Macaulay, em sua monumental obra de histria britnica, assinala que Evelyn, um cronista meticuloso e extremamente abundante dos acontecimentos contemporneos a sua vida, nunca menciona a massacre de Glencoe. O fato de que um acontecimento histrico no seja mencionado, at naqueles lugares onde esperaramos que fosse mencionasse, no uma prova suficiente de que no tenha ocorrido. O fato to tpico de Herodes, que no temos razes para duvidar da verdade que Mateus est transmitindo. Estamos ante um terrvel exemplo do que so capazes de fazer os homens para livrar-se de Jesus. Se algum teima em seguir seu prprio caminho, se vir no Cristo algum que pode interferir em suas ambies e reprovar sua forma de proceder, seu nico desejo ser livrar-se dele. Em conseqncia se ver arrastado a fazer as coisas mais terrveis, e se no destroar os corpos dos homens, quebrantar seus coraes.

Aqui tambm, no final da passagem, vemos a maneira caracterstica de Mateus de usar o Antigo Testamento. Cita Jeremias 31:15: Assim diz o SENHOR: Ouviu-se um clamor em Ram, pranto e grande lamento; era Raquel chorando por seus filhos e inconsolvel por causa deles, porque j no existem. O versculo de Jeremias no tem nada a ver com a matana dos inocentes por Herodes. Jeremias tem em mente uma situao muito distinta. V profeticamente como o povo de Jerusalm levado ao exlio. Em sua triste viagem para o estrangeiro, passam pela cidade de Ram, que era o lugar onde Raquel estava enterrada (1 Samuel 10:2); e Jeremias imagina Raquel chorando, desde sua tumba, pelo destino que tinha castigado a seu povo. Mateus recolhe esta passagem e faz algo que j o vimos fazer anteriormente. Em seu desejo de encontrar profecias, descobre-as at onde no esto. Devemos

Mateus (William Barclay) 42 lembrar que este procedimento, que pode parecer estranho, no o era para aqueles a quem Mateus dirigia seu evangelho.

O RETORNO A NAZAR

Mateus 2:19-23 No seu devido tempo Herodes morreu; seu reino, ento, foi

dividido. Os romanos tinham confiana em Herodes, e tinham permitido que ele reinasse sobre um territrio bastante extenso. Mas ele sabia que a nenhum de seus filhos lhe seria confiada uma medida to abundante de poder. De modo que em seu testamento dividiu o reino em trs pores, e legou cada uma destas a trs de seus filhos. Judia seria de Arquelau; Galilia de Herodes Antipas; e a regio norte e a Transjordnia de Felipe. Mas a morte do Herodes no resolveu o problema. Arquelau no foi bom rei e durou pouco em seu trono. Iniciou seu governo tratando de ser ainda mais sanguinrio que seu pai; um de seus primeiros decretos decidiu a execuo de trs mil cidados destacados da Judia. Evidentemente, at morto Herodes, com o selvagem e descontrolado Arquelau no trono no era seguro retornar a Judia. De modo que Jos recebe o conselho de ir a Galilia, onde reinava Herodes Antipas, um soberano muito mais prudente.

Jos se estabeleceu em Nazar, e nessa localidade Jesus se criou. No se deve pensar que Nazar fosse um povo perdido, distante de tudo o que acontecia no mundo. Estava convocada em um vale das serras da Galilia, e um jovem s precisava subir s alturas para ver, para o Oeste, as guas azuis do Mediterrneo, envoltas na bruma da distncia, sulcadas pelas naves que viajavam a todos os extremos da Terra. Fazendo descer o olhar, a seus ps, atravessando a plancie costeira, tinha um dos caminhos mais importantes da antiguidade. Era o caminho que ia de Damasco ao Egito, a via de acesso frica por terra firme. Era uma das rotas de caravanas mais importantes do mundo. Era o lugar onde Jos tinha sido vendido a uns traficantes, vrios sculos antes. Era o caminho

Mateus (William Barclay) 43 que Alexandre Magno e suas legies tinham seguido, trs sculos atrs. Era o caminho por onde partiriam os exrcitos do Napoleo, vrios sculos depois. At no sculo XX, foi a rota escolhida por Allenby. s vezes denominada o Caminho do Sul e outras vezes a Rota do Mar. Transitando-a, Jesus podia ver toda classe de viajantes, de todas as naes do mundo conhecido, indo e vindo todo o tempo. Mas havia outro caminho, que abandonava a Rota do Mar em Acra ou Ptolomea para dirigir-se para o Este. Era chamado a Rota do Este. Chegava at os limites orientais do Imprio Romano. Sobre este caminho tambm transitavam continuamente as caravanas carregadas de sedas e especiarias, e as legies romanas, em direo contrria, para as fronteiras. Nazar no era um povo perdido. Jesus foi criado em um lugar por onde continuamente transitava o mundo. Desde sua infncia deve ter sido confrontado por cenas que lhe revelavam a multiforme magnitude do universo criado por Deus e destinado a ser seu mundo.

J vimos como Mateus relaciona cada acontecimento da vida de Jesus (pelo menos no princpio) com alguma passagem do Antigo Testamento que ele considera uma profecia. Aqui Mateus cita o seguinte: "Ele ser chamado Nazareno." Com isso ele nos cria um problema insolvel, porque no h tal texto em todo o Antigo Testamento. Nazar no se menciona em todo o Antigo Testamento. Ningum resolveu satisfatoriamente o problema de qual a parte do Antigo Testamento que Mateus tinha em mente. Os escritores antigos recorriam freqentemente a jogos de palavras. Sugeriu-se que aqui Mateus est brincando com as palavras do Isaas 11:1, onde diz: "Sair uma vara do tronco de Isai, e uma vergntea brotar de novo de suas razes." A palavra hebria que significa "vara" nezer, que muito semelhante a "nazareno". Deste modo Mateus estaria dizendo, ao mesmo tempo, que Jesus da cidade do Nazar e que o nezer, a vara prometida do tronco de Isai, ou seja um descendente do Davi, o prometido Rei Ungido de Deus. Mas isto no mais que uma conjetura; qual foi a profecia que Mateus teve em mente continuar sendo um mistrio De maneira que j temos o cenrio

Mateus (William Barclay) 44 preparado. Mateus trouxe Jesus at Nazar, que , em um sentido muito real, uma das portas do mundo.

Mateus 3 Os anos intermediriosO aparecimento de Joo Batista - Mat. 3:1-6 A mensagem de Joo: A ameaa - Mat. 3:7-12 A mensagem de Joo: A promessa - Mat. 3:7-12 (cont.) A mensagem de Joo: A promessa e a ameaa - Mat. 3:7-12 (cont.) A mensagem de Joo: A demanda - Mat. 3:7-12 (cont.) A mensagem de Joo: A demanda - Mat. 3:7-12 (cont. 2) Jesus e seu batismo - Mat. 3:13-17 O tempo de prova OS ANOS INTERMEDIRIOS Antes de passar ao terceiro captulo do Mateus, h um assunto que

nos convm examinar. O segundo captulo do Mateus conclui quando Jesus ainda um menino. O terceiro captulo se abre quando Jesus j um homem de trinta anos (cf. Lucas 3:23). Quer dizer, entre os dois captulos h um parntese de trinta anos silenciosos. A que se deve isto? O que ocorreu durante esses trinta anos? Jesus veio para ser o Salvador do mundo e durante trinta anos nunca viajou muito mais longe que as ltimas casas do povo em que vivia, na Palestina, exceto para a Pscoa, quando seus pais o levavam a Jerusalm. Morreu quando tinha trinta e trs anos, e desses trinta e trs anos trinta os passou ignorado em Nazar. Para dizer o de outra maneira, dez onzeavos da vida de Jesus transcorreram no Nazar. O que ocorreu durante esse tempo?

(1) Jesus cresceu, at chegar a sua idade adulta, em um bom lar; no pode haver melhor comeo para uma vida til. J. S. Blackie, o famoso mestre de Edimburgo, disse em certa oportunidade, publicamente: "Quero dar graas a Deus pelas boas aes, por assim dizer, que herdei de meus pais para me iniciar no negcio da vida." George Herbert disse em certa oportunidade: "Uma boa me vale como cem bons professores."

Mateus (William Barclay) 45 De maneira que Jesus passou esses anos silenciosos, mas modeladores, no crculo de um lar modelo.

(2) Jesus cumpria os deveres de um primognito. muito provvel que Jos tenha morrido antes que seus filhos crescessem. Possivelmente tenha sido bem mais velho que Maria quando se casaram. Na histria da festa de bodas em Can da Galilia Jos no mencionado, embora Maria estivesse presente. razovel pensar que Jos tinha morrido. De modo que Jesus deve haver-se convertido no carpinteiro do povo, em Nazar, para sustentar a sua me e a seus irmos mais novos. O mundo o estava chamando, e entretanto, acima de tudo cumpriu suas obrigaes para com sua me, seus irmos e seu lar. Quando morreu a me do Sir James Barrie este escreveu: "Olho ao passado, e no posso ver nem o menor cabo que tenha ficado sem atar." Esta uma razo de profunda felicidade. O mundo est construdo sobre a contribuio daqueles que aceitam sem vacilao nem egosmo os deveres mais singelos.

Um dos mais destacados exemplos desta atitude o grande investigador mdico Sir James Simpson, descobridor do clorofrmio. Provinha de um lar humilde. Um dia sua me o sentou sobre seus joelhos e se ps a remendar suas meias. Quando terminou, contemplou a tarefa que acabava de realizar com mo perita e disse: "Meu Jaime, quando sua me morrer, nunca esquea de que ela era uma grande costureira." Jaime era o gnio da famlia, e todos sabiam. Esperavam grandes coisas dele. Seu irmo Sandy disse: "Eu sentia que algum dia ele chegaria a ser um grande homem." Por esse pressentimento, sem cimes e de boa disposio, seus irmos trabalharam em uma padaria e em outros empregos para que Jaime pudesse ir universidade e ter uma oportunidade de destacar-se. No teria chegado a haver um Sir James Simpson se no fosse por essa famlia disposta a cumprir com amor as tarefas mais cotidianas, para que o irmo brilhante pudesse pr a servio do mundo sua capacidade incomum. Jesus o grande exemplo de todos os que aceitam cumprir com devoo as tarefas mais singelas do lar.

Mateus (William Barclay) 46 (3) Jesus estava aprendendo o que significa ser operrio. Estava

aprendendo a ganhar a vida, a economizar para comprar roupa e mantimentos, e s vezes, possivelmente, poder pagar para si algum prazer incomum; estava aprendendo a atender uma clientela nem sempre fcil de satisfazer e nem sempre pontual no pagamento de suas dvidas. Se Jesus algum dia quisesse ajudar aos homens, devia conhecer como era a vida dos homens. No veio para viver uma existncia protegida e fcil: veio para viver como qualquer homem comum. Devia faz-lo, para poder chegar alguma vez a compreender o homem comum.

H uma famosa anedota sobre Maria Antonieta, a rainha da Frana, na poca em que se preparava na Frana o que seria a tormenta da Revoluo. O povo morria de fome e constantemente se produziam rebelies. A rainha perguntou qual era a causa de todos os problemas e lhe disseram que no tinham po. "Se no tiverem po", respondeu Maria Antonieta, "que comam bolos." A idia de uma vida sem abundncia no entrava em seu panorama. No podia compreender.

Jesus trabalhou em Nazar durante todos seus anos de silncio para saber como era a vida, e assim, compreendendo, poder ajudar.

(4) Jesus estava cumprindo fielmente as suas responsabilidades menores antes de receber a sua grande responsabilidade. Podemos imaginar que se no tivesse completado suas responsabilidades menores provavelmente nunca lhe seria confiado a responsabilidade maior de ser Salvador do mundo. Foi fiel no pouco para poder receber o muito. Nunca se deve esquecer que no cumprimento cotidiano de nossas tarefas mais singelas como construmos uma vida de grandeza ou arruinamos nossas possibilidades, como ganhamos ou perdemos a coroa.

O APARECIMENTO DE JOO BATISTA

Mateus 3:1-6 O aparecimento de Joo foi como o ressoar repentino da voz de

Deus. Naquela poca os judeus eram dolorosamente conscientes de que

Mateus (William Barclay) 47 os profetas j no falavam. Dizia-se que durante quatrocentos anos no tinha havido profeta algum. Ao longo de vrios sculos a voz da profecia se manteve calada. Tal como eles mesmos diziam: "No havia voz, nem quem respondesse." Mas em Joo voltou a fazer-se ouvir a voz proftica.

Quais eram as caractersticas de Joo e sua mensagem? (1) Denunciava intrepidamente o mal em qualquer lugar que o

encontrasse. Se o rei Herodes pecava, contraindo um casamento ilegal e pecaminoso, Joo o reprovava. Se os saduceus e os fariseus, dirigentes da ortodoxia religiosa daquela poca, estavam afundados em um formalismo ritualista, Joo no duvidava em dizer-lhe diretamente. Se as pessoas comuns viviam afastados de Deus, Joo o jogava na cara. Em qualquer lugar que Joo visse o mal no Estado, na Igreja, na multido intrepidamente, ele o denunciava. Era como uma luz acesa em algum lugar escuro: era como um vento de Deus que varria todo o pas.

Conta-se de um famoso jornalista que, apesar de ser famoso, nunca cumpriu a fundo os deveres de sua profisso, diz-se que provavelmente nada conseguia perturb-lo. Ainda h lugar, na mensagem crist, para a advertncia e a denncia. "A verdade", disse Digenes, " como a luz nos olhos irritados." E acrescenta: "Quem nunca ofendeu a ningum jamais fez bem a ningum." Possivelmente tenha havido momentos em que a Igreja foi muito cuidadosa e procurou no ofender. H ocasies em que j no h lugar para a suave amabilidade e chega o momento da acerba recriminao.

(2) Convocava os homens justia, e o fazia com um profundo sentimento de urgncia. A mensagem do Joo no era uma mera denncia negativa. Era uma apresentao positiva das exigncias morais de Deus. No somente denunciava a conduta dos homens, pelo que tinham feito, mas sim os convocava a fazer o que deviam fazer. No somente os condenava pelo que eram, mas sim os desafiava a ser o que deviam ser. Era como uma voz que chama