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RIO DE JANEIRO SÃO PAULO E D I T O R A R E C O R D 2016 Tradução Sonia Lindblom 1ª edição

Tradução Sonia Lindblomimg.travessa.com.br/capitulo/RECORD/MEMORANDOM-9788501107… · sava baixar os olhos para fitar o Patek Philippe no pulso. Ele sabia que o preciso ponteiro

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R I O D E J A N E I RO • S ÃO PAU LOE D I T O R A R E C O R D

2016

Tradução Sonia Lindblom

1ª edição

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ABDRASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS REPROGRÁFICOS

EDITORA AFILIADA

RESP

EITE O DIREITO AUTO

RAL

PIA

N

ÃO

AUTORIZADA

ÉCR

IME

Título original: MemoRandom

Copyright © Anders de la Motte, 2014

Publicado mediante acordo com Salomonsson Agency

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados.

Editoração eletrônica: Abreu’s System

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina, 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: (21) 2585-2000, que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01-10707-7

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Atendimento e venda direta ao leitor: [email protected] ou (21) 2585-2002.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Motte, Anders de la, 1971-M922 MemoRandom / Anders de la Motte; tradução de Sonia

Lindblom. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2016.

Tradução de: MemoRandom ISBN 978-85-01-10707-7

1. Ficção sueca. I. Lindblom, Sonia. II. Título.

15-28210 CDD: 839.73 CDU: 821.113.6-3

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Sábado, 23 de novembro

Luzes azuladas... É o primeiro pensamento claro que tem ao abrir os olhos.

Não deve ter passado mais que alguns segundos inconsciente, não mais que uma pequena pausa. Ainda assim, o mundo parece tão estranho, tão desconhecido. Como se ainda não tivesse acorda-do direito.

Reflexos azulados dançam em volta dele. No retrovisor, quicam da parede de concreto para o teto, da pista molhada para os deta-lhes de plástico cromado no painel do carro.

Um carro. Está no banco do motorista de um carro, atravessando um túnel longo.

A dor o alcança. Ele se lembra vagamente de a ter sentido antes do desmaio. Faíscas brilhantes, uma tocha para solda penetrando fundo o lado esquerdo da cabeça, transformando seu raciocínio numa massa viscosa.

Pode até sentir o cheiro.Metal, plástico, eletricidade.Alguma coisa está acontecendo com seu corpo, alguma coisa sé-

ria, que ameaça toda a sua existência. Mas o estranho é que não se sente exatamente assustado. Ele aperta os dedos em volta do volante e sente o couro macio na palma das mãos. Uma sensação

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confortável, calmante até. Por um instante, quase cede e se deixa levar, relaxando e seguindo cada molécula de volta àquele estado de inconsciência.

Mas, em vez disso, ele se agarra ainda mais forte ao volante. Tenta fazer com que sua cabeça latejante explique o que está acontecendo.

— David Sarac. Você se chama David Sarac e...E o quê?O carro continua a atravessar o túnel, e um dos vários medido-

res minúsculos e incompreensíveis no painel certamente indica que está indo muito rápido, rápido demais.

Tenta tirar o pé do acelerador, mas suas pernas se recusam a obe-decer. A verdade é que ele nem sente mais as pernas. A dor está cada vez mais intensa, porém, ao mesmo tempo, por mais estranho que pareça, mais distante. Ele se dá conta de que o seu corpo está prestes a apagar, a interromper qualquer processo que não seja essencial para sua sobrevivência até que o colapso na sua cabeça esteja sob controle.

— Você se chama David Sarac — murmura para si mesmo. — David Sarac.

Uma profusão de sons vem dos alto-falantes: música, toques de discagem, vozes agitadas falando, todas ao mesmo tempo, entre as interferências do rádio.

Ele olha para o retrovisor. Por um segundo, tem a impressão de ver um movimento de relance, uma silhueta escura. Será que tem alguém no banco de trás, alguém que possa ajudá-lo?

Ele tenta abrir a boca e vê a silhueta no espelho fazer o mesmo. Percebe a barba por fazer, uma expressão perturbada e bastante fa-miliar. Ele se dá conta do que aquilo significa. Não tem ninguém mais lá, está totalmente sozinho.

O clarão que reflete do retrovisor faz seus olhos lacrimejarem. As vozes do rádio continuam a falar, ainda mais agitadas, ainda mais alto.

O deslizamento do seu corpo se aproxima. Vai se espalhando pe-las pernas e segue até o peito.

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— Polícia! — grita uma voz no rádio. A palavra se infiltra e rapi-damente preenche a sua consciência.

Polícia.Polícia.Polícia.Ele desvia os olhos do retrovisor e, com muita força de vontade,

vira um pouco a cabeça. Esse esforço o faz gemer de dor.— Você se chama David Sarac.E?De longe, veem-se as lanternas de um outro carro. Logo ao lado

delas uma enorme placa de sinalização, algum tipo de obstáculo e uma saída. De repente, as lanternas estão vermelhas como fogo.

Ele deveria virar o volante, seguir aquele carro para fora do tú-nel. Todos os seus instintos lhe dizem que essa seria uma decisão sábia. Mas parece que a conexão com os seus braços também está prestes a ser desativada, tudo o que sente é um pequeno espasmo, um quase movimento.

O obstáculo se aproxima cada vez mais. Uma enorme barreira de concreto marca a bifurcação do túnel. Os olhos de gato cintilam com a luz dos faróis do carro. Ele tenta prever alguns segundos do percurso, calcular se há algum risco de colisão. Mas o cérebro não está mais funcionando como deveria.

O apagão chega ao rosto, fazendo seu queixo despencar de uma vez.

A distância até o obstáculo continua a reduzir.— POLÍCIA!A palavra está de volta, dessa vez ainda mais forte e de repente

ele percebe o porquê. Ele é um policial. O brilho intermitente vem do seu próprio carro.

Ele se chama David Sarac. Ele é policial. E...?A dor na cabeça cede por tempo suficiente para que consi-

ga formar uma linha de pensamento coesa. O que está fazendo aqui? Quem está perseguindo? Ou será que é ele quem está sendo perseguido?

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A luz no retrovisor se aproxima cada vez mais. Queimando, pe-netrando fundo a sua cabeça.

O medo é esmagador, faz seu pulso disparar. A dor azul cintilan-te está voltando, bem mais forte dessa vez. As pálpebras tremem, todos os sons ao seu redor se dispersam, se distanciam. Ele tenta se manter consciente e impedir o processo de deslizamento. Mas agora não há mais nada que se possa fazer.

Um breve choque faz o carro balançar, no entanto ele mal per-cebe. O processo de desligamento está quase completo e ele está praticamente inconsciente de novo. Liberto de dor, medo e deso-rientação. Tudo o que resta não passa de um sinal teimoso, quase imperceptível no cérebro atordoado. Um impulso elétrico que se desloca entre dois neurônios que se recusam a ser desativados — não antes de cumprir sua tarefa.

Na iminência do carro se chocar com o obstáculo de concreto, no segundo anterior ao carro passar de um objeto com formas de-finidas a um monte de sucata, o impulso chega ao seu destino. Em um momento repentino de clareza, ele se lembra de tudo.

Por que está no carro. Do que se trata tudo isso.Os rostos, os nomes, os lugares, as quantias de dinheiro.O motivo pelo qual todos, cada um deles, precisa morrer.Tudo por causa dele. Por causa do segredo.Um sentimento inexprimível de alívio corre por seu corpo. Se-

guido de arrependimento.Ele se chama David Sarac. Ele é policial. E ele fez algo imperdoável.

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Sexta-feira, 18 de outubro

Às vezes, quando criança, Jesper Stenberg tinha a impressão de que podia parar o tempo. Quase sempre na véspera do Natal ou em aniversários. Ocasiões especiais pelas quais ele mal podia esperar. No meio de tudo, no ponto alto da ocasião, quando esta-va no ápice da empolgação, era como se o tempo desacelerasse. Como se tivesse a chance de absorver com tranquilidade cada nuance, cada sensação derivada desse instante pelo qual tanto esperava.

Ainda se lembrava daqueles instantes nos quais se sentia total-mente no presente. Trinta anos depois, ainda podia remontá-los nos mínimos detalhes: a cor do vestido da mamãe, o cheiro do pós-bar-ba do papai, a textura dos papéis de presente em seus dedos ainda pequenos. Tudo muito fresco na memória, sem a pátina triste de um álbum de fotografia.

Mas, logo cedo na adolescência, esse poder desapareceu. Duran-te um longo tempo, acreditou que tinha a ver com o divórcio dos pais. Ou então seria simplesmente porque havia se tornado adulto, perdendo sua percepção infantil do tempo. Depois disso, não im-porta a ocasião, as celebrações nunca mais foram a mesma coisa. A formatura do ensino médio, o diploma da faculdade de direito, o primeiro processo criminal, o pedido de casamento, até mesmo sua

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luxuosa cerimônia com Karolina. Todas essas ocasiões podiam ser descritas com uma única palavra: decepcionante.

Ele havia trabalhado tanto por cada um daqueles instantes. Es-perou por eles, fantasiou sensações, cheiros, sabores. Depois, muito rápido, tudo se acabou, e só restaram as lembranças vagas e um sentimento incômodo de insatisfação.

Ele se convencia de que seria diferente da próxima vez. Se tentas-se fazer algo mais grandioso e desse o melhor de si, seria capaz de sentir mais. O nascimento dos filhos, o emprego em Haia, a filiação à Ordem dos Advogados, o dia em que foi convidado a ser o sócio mais jovem de todos os tempos do prestigiado escritório Thorning & Companhia.

Mas, novamente, a mesma sensação, a mesma falta de presença. Como se existisse um filtro finíssimo entre ele e a realidade.

Stenberg começou a fotografar. Inundava o computador com fo-tos de uma resolução fantástica, dedicava horas editando pequenos filmes de férias em praias no exterior, toalhas xadrez de piquenique e momentos Astrid Lindgren com os filhos. Não importava a quan-tidade de pixels da câmera ou a resolução da tela, ainda se sentia in-satisfeito. Como se tivesse perdido algum detalhe decisivo daqueles instantes, uma nuance imperceptível que faria toda a diferença.

Mas hoje tudo era diferente. Era o melhor momento da vida de Stenberg, o momento que ele esperou por anos a fio, e nem preci-sava baixar os olhos para fitar o Patek Philippe no pulso. Ele sabia que o preciso ponteiro de segundos do relógio suíço tinha acaba-do de parar e que esse instante seria tão estilizado e perfeito como sempre sonhou. Todo o desgaste, todos os sacrifícios por fim seriam recompensados. Os anos de cão na defensoria pública: fraudadores, agressores de esposas, ladrões, assaltantes e toda essa corja. Depois, o tempo em Haia quando, embora tivesse casos maiores, um jovem promotor como ele atuava mais como garoto de recados. Em se-guida, a mudança para o Thorning & Companhia. Casos de maior notoriedade, perfeitos para um jovem e ambicioso advogado de de-fesa que queira ganhar renome.

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Mas, apesar do dinheiro, do trabalho de alto prestígio, do inte-resse cada vez maior da mídia em sua pessoa e de o próprio John Thorning tê-lo escolhido como seu favorito, Stenberg odiava ser advogado. Durante os primeiros seis meses, a primeira coisa que fazia ao voltar para casa vindo do escritório era tomar uma ducha. Arrancava o terno feito sob medida e os sapatos italianos caríssimos que o faziam parecer impecável na tv. Esfregava-se até a pele ficar vermelha como sangue.

Depois se acostumou e adotou uma máscara, exatamente como Karolina havia sugerido. Um tipo de personagem no qual podia en-trar e sair numa fração de segundo. Alguém que parecia e soava como Jesper Stenberg, mas com palavras e atitudes com as quais ele não queria exatamente se identificar.

Dessa forma, pôde continuar a jogar aquele jogo e ainda assim manter as aparências. Esperava pacientemente pelo seu momento. Este momento. E, portanto, tinha a intenção de agarrar cada mínimo milissegundo dele. Pregá-lo no seu córtex para que pudesse se lem-brar de cada detalhe, cada nuance, mesmo depois de quarenta, cin-quenta anos, quando aquele intervalo de tempo que parecia infinito quando criança estivesse chegando ao fim.

Seus sentidos estavam totalmente despertos, saturando-o com detalhes. Os traços da madeira dos móveis escuros e pesados ao redor da mesa de conferência. O carpete espesso e vermelho sob os sapatos. A luz dos lustres de cristal refletida em bules de café prateados postos no meio da mesa. A porcelana fina como papel da xícara à sua frente. Tudo era exatamente como ele havia imaginado. Mas a impressão mais firme era o cheiro do salão. Um odor doce e pesado que o dominava. Quase o excitava um pouco.

O cheiro do poder.Na cabeceira, o chefe entronizado em sua majestade. Seus subor-

dinados, inclusive o próprio sogro de Stenberg, amontoados ao lon-go da mesa. Ternos, vestidos de luxo, papadas e testas com Botox. Olhares simpáticos da maioria dos rostos, mas obviamente não de todos. Ele era, afinal, um estranho, um arrivista que não seguira o

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percurso predeterminado. Alguém que poderia perturbar o equilí-brio de poder.

Os homens e as mulheres ao redor da mesa fitavam Stenberg, aguardando sua resposta. Ele controlava as expressões. Humildade com um tom de surpresa, geralmente conseguia se exprimir assim com facilidade. Mas o irritante esboço de um sorriso espreitava, podia senti-lo repuxando um canto de sua boca. Não era de se es-tranhar. Ele havia acabado de receber A Pergunta. Seus sonhos es-tavam prestes a se realizar e, a partir de agora, tudo seria diferente.

No exato instante em que abriu a boca e fez do pequeno esboço de sorriso seu melhor sorriso para a tv, teve a impressão de sentir uma leve vibração no relógio. Como se uma nova era tivesse acaba-do de começar.

Atif abriu a caixa de isopor, revirou as latas de refrigerante até achar uma que ainda estivesse mais ou menos gelada e a pressio-nou contra a nuca. O suor escorria pelas costas, um dos vários apa-gões tinha feito o ventilador de mesa parar há mais de uma hora, e o ar na saleta sombria ficou quase completamente parado.

Ele abriu a lata, bebeu avidamente e, em seguida, retornou ao seu posto de observação na janela suja, quase encoberta pela poeira.

Lá fora, as atividades seguiam como de costume. Alguns ca-minhões estacionados, todos com as portas da carroceria abertas ou as lonas levantadas, enquanto várias mercadorias circulavam lentamente. Metade dos veículos era verde-militar. Os motoristas uniformizados papeavam e fumavam na cafeteriazinha enquan-to os carregadores esvaziavam os caminhões. Alguns cães vira--latas rondavam entre os veículos. Eles ficavam a uma distância segura e ocasionalmente farejavam o ar, como se investigassem se havia algo comestível em alguma das muitas caixas que os homens descarregavam.

A essa altura, Atif já estava familiarizado com tudo o que acon-tecia ali na praça empoeirada. Qual marca de cigarro os motoris-tas preferiam, o nome da filha mal-humorada do dono da cafeteria,

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qual dos carregadores vendia haxixe ou qual dos vira-latas era o macho-alfa. O que era temido pelos outros.

O celular começou a vibrar no bolso da camisa. Atif enfiou o fone de ouvido na orelha e ergueu o binóculo. Aumentou o zoom para ver a guarita da única entrada de verdade da praça. O guarda esta-va escorado na parede e fumava, a Kalashnikov casualmente pen-durada no ombro.

O celular vibrou de novo e Atif atendeu.— Alô.— Sou eu. E aí?— Mais ou menos a mesma coisa.— Nenhuma pista ainda?— As pistas me trouxeram até aqui.— E você está sentado aí já tem quanto tempo, Atif?— Vai fazer três semanas.— OK. Já não está na hora de deixar isso quieto?— Ele vem.Silêncio do outro lado da linha por alguns segundos. Atif pas-

seou o binóculo pela praça, depois voltou para a guarita. O homem tinha se recomposto, jogou a bituca do cigarro na terra vermelha e pisou nela.

— Uma mulher ligou para você — disse a voz na orelha de Atif. — Da Suécia. Ela disse que era sua cunhada, queria que você ligasse de volta assim que pudesse. É sobre o seu irmão...

— Meio-irmão — resmungou, sem tirar os olhos do guarda.A postura do homem mudara de repente. Tinha tirado a arma

automática do ombro e agora a segurava com as duas mãos. De repente deu a impressão de levar seu trabalho muito mais a sério. O homem assobiou, e as atividades na praça se interromperam ime-diatamente.

Um carro escuro, com placa militar e vidros escurecidos, entrava em baixa velocidade. O guarda levou uma das mãos à cabeça, um gesto entre prestar continência e um aceno. O clima na praça mu-dou em questão de segundos. Os motoristas apagaram os cigarros,

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esmagaram as bitucas com os pés e se entreolharam, nervosos. Os carregadores apressaram o passo.

Até mesmo os cachorros pareciam saber que algo estava para acontecer. Eles se deitaram e se esconderam à sombra ao mesmo tempo que seguiam atentos o carro escuro com os olhos. O veículo parou, e um homem de uniforme e óculos de sol desembarcou. Atif não precisou nem olhar nos binóculos, a reação dos outros bastava para saber quem era.

O homem que estava procurando.O macho-alfa.Atif estendeu a mão, pegou a pistola que estava na mesinha de

pernas bambas e enfiou no cós da calça, às costas. Puxou um pouco a barra da camisa para se assegurar de que a arma estava escondida.

— Preciso desligar — murmurou ao telefone.— Atif, espera — disse a voz. — Parecia importante. Muito im-

portante. Acho melhor você ligar para casa.

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Sábado, 23 de novembro

O centro da cidade parece estar repleto de luzes azuis. Elas dançam entre as fachadas dos edifícios, são sutilmente ofuscadas pela neve que cai antes de serem refletidas na água escura sob a ponte. Alguns dos carros de resgate estão com as sirenes ligadas, mas a maioria segue a busca noite adentro em silêncio.

Os seis estudantes que subiam a rua Skeppsbron já estavam entediados com a comoção. Eles interromperam o passeio por al-gum tempo e, do mirante próximo à praça Slussen, acompanharam o circo lá embaixo, na ponte que dá para a movimentada rodovia. O local estava repleto de ambulâncias, caminhões dos bombeiros, viaturas e carros policiais à paisana, o que indicava que algo sério havia acontecido no túnel.

Dois dos jovens ligaram a câmera dos celulares, apoiaram-se nas grades geladas do parapeito e espreitaram à espera de capturar um pouco de ação. Mas, como nada de especial aconteceu depois de vá-rios minutos, perderam o interesse. Os graus negativos congelantes e a neve pesada convenceram o grupo a caminhar em direção ao centro da cidade.

A guerra de bolas de neve começa mais ou menos no meio da Skeppsbron. Um dos rapazes, não dá para saber qual, para e reúne uma grande quantidade de neve acumulada no para-brisa de um

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carro estacionado. Ele rapidamente forma uma bola meio disforme e joga nas costas dos outros, e logo depois começa a guerra. Todos os seis correm pela calçada e se esquivam dos projéteis uns dos ou-tros, ocasionalmente parando para fazer novas bolas de neve.

Uma garota de touca vermelha é quem faz a descoberta.— Olha, tem alguém dormindo aqui dentro — grita, e aponta

para o carro estacionado do qual tinha acabado de pegar um pu-nhado de neve. — Oi, acorda! Ele está apagado. — Ela ri quando o namorado se aproxima.

Pela pequena abertura escura na cobertura de neve, ele dis-tingue os cabelos claros de um homem grande. Está sentado no banco do passageiro, com a testa escorada no painel. Parece estar dormindo.

O rapaz da calçada também bate no vidro do para-brisa, mas, como não vê nenhuma reação, começa a afastar a neve que ainda encobre parte da visão. Primeiro devagar e depois mais rápido, até que quase todo o para-brisa fica sem neve. Ele faz o mesmo com os vidros laterais. O homem no carro continua sem se mexer.

Longe dali, dá para ouvir o som de motores e o ruído de um helicóptero se aproximando. Alguma coisa faz com que os outros do grupo parem a brincadeira de repente e vão para perto do carro. Eles se aproximam vagarosamente, como se na verdade não tives-sem certeza se querem ver quem ou o que está escondido no interior do veículo. Mas a garota de touca vermelha não percebe a mudança no clima.

— Já chega — diz, dando uma risadinha. — Estou congelando, deixa o cara dormir.

Ela puxa o namorado pelo braço, tenta fazer com que ele a acom-panhe, mas o rapaz não desiste. Assim que acaba de tirar toda a neve das janelas, ele mete a cara no vidro.

— Merda! — murmura.— O que foi...? — De repente, a voz da garota perde o tom de

brincadeira. Agora está mais para medo. O som das hélices do heli-cóptero está mais forte.

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— Merda — repete, mais para si mesmo que para os outros.O gelo que se formou do lado de dentro do vidro atrapalha a

visão e, além disso, está escuro no interior do carro. Mas, entre ele e o homem que dorme, há menos de meio metro de distância, então não há nenhuma dificuldade para distinguir os detalhes. A jaqueta de couro, a estampa bordada nas costas, a tatuagem tribal que ser-penteia para fora do colarinho e vai até o pescoço grosso.

Mas é a mancha escura na nuca do homem dormindo que cap-tura o interesse do rapaz. Um pequeno furo coberto de cristais de gelo escuros, a milímetros uns dos outros, formando um desenho aperolado na nuca.

O barulho das hélices é ensurdecedor; ecoa entre as paredes dos prédios. Transforma-se em um rugido quando o helicóptero passa bem acima de suas cabeças.

— Merda... — diz o rapaz uma terceira vez, mas os outros não ou-vem. Depois ele dá um passo para trás e começa a procurar o celular.

David Sarac não percebe o trabalho de resgate acontecendo em torno dele. Nem as vozes preocupadas. Nem os bombeiros que co-brem de espuma os destroços do carro, que usam intensamente as ferramentas hidráulicas de todas as maneiras possíveis por quase quinze minutos até conseguir soltá-lo das ferragens. Nem mesmo os paramédicos que usam uma ferramenta envergada para conse-guir enfiar um tubo de oxigênio na garganta dele e evitar, por um triz, que os pulmões entrem em colapso. Onde Sarac está, não existe nenhuma dor, nenhuma preocupação, nenhum medo. Em vez disso, ele sente uma paz imensurável.

O corpo não é nada além de um amontoado de moléculas, uma associação temporária que — assim como toda matéria sólida — está a caminho da sua inevitável decomposição.

Ele consegue ouvir os sons ao redor, máquinas que emitem si-nais de alerta, a discussão focada do pessoal do resgate. Um barulho desagradável e ruidoso que, aos poucos, percebe ser sua própria respiração.

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Mas ele não está com medo. Nem um pouco. Porque sabe que tudo é um plano do universo. O momento de se transformar. De retornar ao fluxo universal.

Só depois que alguém levanta suas pálpebras, chama seu nome e mete uma luz bem dentro do seu cérebro é que ele sente medo. Não da luz nítida ou da voz que chama por ele. O que lhe assusta é a sombra no canto de um dos olhos. Uma silhueta escura e ameaçado-ra no canto do seu campo de visão. Sarac a segue com os olhos, mas a silhueta se esquiva. Ele percebe uma jaqueta de couro, um capuz puxado de forma que o rosto da silhueta se torne um buraco negro.

— ... precisa ir agora. O helicóptero já está a postos — diz al-guém, possivelmente um dos paramédicos.

Mas a silhueta não se move, continua a se imprimir no canto do olho de Sarac. Em algum lugar, um celular toca. Uma vez, depois de novo.

O barulho faz seu medo aumentar e se intensificar. Ele aperta o peito de Sarac e faz seu coração disparar e uma dor de cabeça explo-dir como fogos de artifício. Depois, o paramédico solta a pálpebra e o deixa voltar para o conforto da escuridão.

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