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TRADUZINDO A DEVOTIO MODERNA: DE IMITATIONE CHRISTI E OS “IRMÃOS E IRMÃS DE VIDA COMUM” FRANCO A. BIONDI * A história do livro De imitatione Christi se confunde com a própria história do cristianismo ocidental. Surgido, em sua atual forma, em meados do século XV, esse “pequeno livro” foi intensamente lido nos séculos subsequentes, chegando a ser nomeado como a “segunda Bíblia”. Especula-se que, dentre os séculos XV e XIX, em uma estimativa baixa, cerca de 2,3 milhões de exemplares teriam circulado por toda a Europa. Outros cálculos chegaram a estipular 15 milhões de impressões. (SORDET, 2012: 872) Dentre os séculos XV e XVIII, Yann Sordet identificou a existência de 800 manuscritos medievais, e pelo menos 2300 edições nesse período. (SORDET, 2012: 871) Ainda hoje, De imitatione Christi representa um título bastante familiar no universo editorial: apenas no Brasil, é possível encontrar com facilidade mais de uma dúzia de edições traduzidas sob o título Imitação de Cristo. Em todas elas, predomina o caráter devocional: traduzidas e editadas por religiosos, a exemplo das traduções do frei Tomás Borgmeier (KEMPIS, 2015) e Leonardo Boff (KEMPIS, 2016), seu conteúdo é entendido e apresentado por perspectivas religiosas contemporâneas. Em outras palavras, De imitatione Christi ainda hoje continua a ser utilizado como um guia espiritual, sendo modificado por seus tradutores e utilizado por seus leitores para esse fim, distribuído e produzido por editoras religiosas, como Vozes, Paulinas, Quadrante, Vida-Nova e Ave-Maria. Embora conhecido, pode-se dizer que De imitatione Christi, no entanto, é pouco compreendido. Surgido em meados dos século XV, esse livro possui raízes no que ficou conhecido como devotio moderna ( literalmente, “devoção contemporânea”, talvez melhor traduzido por “devoção de nossos dias”), ou nas chamadas “comunidades dos irmãos e irmãs de vida comum”. Nelas, homens e mulheres procuravam orientar suas vidas pelos ideais apostólicos do cristianismo primitivo, despojando-se de bens materiais e praticando exercícios de ascese espiritual. Seria, justamente, para esse fim que manuais de meditação e orações passariam a ser produzidos, com o intuito de instruir e servir de guia para os devotos dessas * Mestrando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, orientado pelo Prof. Dr. Rui Luis Rodrigues. Pesquisa realizada sob o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq.

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TRADUZINDO A DEVOTIO MODERNA: DE IMITATIONE CHRISTI E OS

“IRMÃOS E IRMÃS DE VIDA COMUM”

FRANCO A. BIONDI*

A história do livro De imitatione Christi se confunde com a própria história do

cristianismo ocidental. Surgido, em sua atual forma, em meados do século XV, esse “pequeno

livro” foi intensamente lido nos séculos subsequentes, chegando a ser nomeado como a

“segunda Bíblia”. Especula-se que, dentre os séculos XV e XIX, em uma estimativa baixa,

cerca de 2,3 milhões de exemplares teriam circulado por toda a Europa. Outros cálculos

chegaram a estipular 15 milhões de impressões. (SORDET, 2012: 872) Dentre os séculos XV

e XVIII, Yann Sordet identificou a existência de 800 manuscritos medievais, e pelo menos

2300 edições nesse período. (SORDET, 2012: 871) Ainda hoje, De imitatione Christi

representa um título bastante familiar no universo editorial: apenas no Brasil, é possível

encontrar com facilidade mais de uma dúzia de edições traduzidas sob o título Imitação de

Cristo. Em todas elas, predomina o caráter devocional: traduzidas e editadas por religiosos, a

exemplo das traduções do frei Tomás Borgmeier (KEMPIS, 2015) e Leonardo Boff

(KEMPIS, 2016), seu conteúdo é entendido e apresentado por perspectivas religiosas

contemporâneas. Em outras palavras, De imitatione Christi ainda hoje continua a ser utilizado

como um guia espiritual, sendo modificado por seus tradutores e utilizado por seus leitores

para esse fim, distribuído e produzido por editoras religiosas, como Vozes, Paulinas,

Quadrante, Vida-Nova e Ave-Maria.

Embora conhecido, pode-se dizer que De imitatione Christi, no entanto, é pouco

compreendido. Surgido em meados dos século XV, esse livro possui raízes no que ficou

conhecido como devotio moderna ( literalmente, “devoção contemporânea”, talvez melhor

traduzido por “devoção de nossos dias”), ou nas chamadas “comunidades dos irmãos e irmãs

de vida comum”. Nelas, homens e mulheres procuravam orientar suas vidas pelos ideais

apostólicos do cristianismo primitivo, despojando-se de bens materiais e praticando exercícios

de ascese espiritual. Seria, justamente, para esse fim que manuais de meditação e orações

passariam a ser produzidos, com o intuito de instruir e servir de guia para os devotos dessas

* Mestrando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, orientado pelo Prof.

Dr. Rui Luis Rodrigues. Pesquisa realizada sob o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico – CNPq.

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comunidades, dentre os quais, figura De Imitatione Christi. Portanto, ele se constitui como

um “documento da devotio moderna”, refletindo muitas das práticas e ideais desse grupo de

religiosos. Mas, mesmo com tantas traduções e edições, mesmo que seja um dos livros mais

lidos do mundo, poucos trabalhos procuraram relacioná-lo ao seu contexto de surgimento, ou

a utilizá-lo para análises sobre essas comunidades de devotos. Na maioria das vezes em que é

citado ou apresentado, os autores se contentam em explicá-lo como uma obra “de Thomas de

Kempis, monge da devotio moderna” (ver KEMPIS, 2012: 5-13; KEMPIS, 2015: 15-18;

KEMPIS, 2016: 5-14).

Há, assim, um contraste entre o sucesso popular do livro e o desconhecimento sobre o

que significou o seu conteúdo, algo essencial para a compreensão de sua vasta veiculação pela

Europa nos séculos seguintes ao seu surgimento. De imitatione Christi, por exemplo, se insere

no processo de surgimento dos manuais de exercitação espiritual dos finais da Idade Média e

inícios da Moderna, como Vita Christi (“Vida de Cristo”), de Ludolfo da Saxônia; as

produções do mestre Eckhart; De spiritualibus ascensionibus (“Ascensões Espirituais”), de

Gerard Zerbolt von Zutphen; e o antecessor direto de De Imitatione Christi, Tractatulus

Devotus (“Pequeno Tratado do Devoto”)¸ de Florent Radewijns, tutor e mestre de Thomas de

Kempis. Inácio de Loyola, em seus Ejercicios Espirituales, pressupõe a leitura simultânea de

seu livro e De Imitatione Christi, assim como se baseou nele para a sistematização de seus

exercícios. A quantidade de manuais sugere que não representam casos isolados, mas sim uma

verdadeira tendência do período. Ainda, há uma longa disputa, demonstrada por Max Von

Habsburgo, entre católicos e protestantes a respeito do conteúdo do livro, identificado tanto

com as doutrinas da fé católica quanto pelas confissões de fé protestantes (HABSBURGO,

2002), o que indica a importância que atribuíam ao livro.

De Imitatione Christi pertence a um contexto complexo, de intensas reapropriações

entre distintas perspectivas do cristianismo ocidental. E, nesse contexto, se constitui como um

elemento chave. O intuito desse texto não é o de definir o seu local e importância nesse

momento de efervescências religiosas e sociais, mas apenas o situar dentro de seu contexto de

produção, a devotio moderna, demonstrando, de forma breve, como podemos entender as

práticas desses devotos a partir de seu conteúdo.

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DEVOTIO MODERNA: A HISTÓRIA DOS IRMÃOS E IRMÃS DE VIDA COMUM

A história da Devotio Moderna remonta ao final do século XIV, quando um patrício,

Geert Grote, decide despojar-se de seus bens materiais em busca de uma vida dedicada à

pregação apostólica. Enfatizando a necessidade de um comportamento moral segundo os

ensinamentos evangélicos, Grote se despoja de seus bens e prebendas, convertendo sua casa,

em Deventer, em uma comunidade de mulheres devotas. Ao mesmo tempo, Florent

Radewijns, vicário na igreja de São Lebuinus, em Windesheim, converte a casa vicarial em

uma comunidade masculina. Assim, em torno de Grote e Radewijns, formam-se os primeiros

núcleos da devotio moderna. A partir deles, novas comunidades se espalhariam pelas regiões

adjacentes, como o principado de Utretch, ducado de Elre e ducado de Brabante. Em seu

auge, especula-se que tenha havido, no mínimo, 80 casas sob a chancela de “vida comum” ou

devotio moderna, número já estipulado para mais de 150 (VAN ENGEN, 2008: 55-56).

Dentre suas principais características, estão a vida comunitária sem votos obrigatórios, o ideal

da humildade apostólica e do desprezo pelos prazeres mundanos, a valorização dos autores da

patrística e dos tempos do cristianismo primitivo, a prática espiritual por exercícios

sistematizados, as orações em grupos e o sustento pessoal de cada devoto pelo próprio

trabalho, geralmente a cópia de livros, trabalho entendido segundo as palavras de Cassiodoro,

“proclamar a palavra de Deus com as mãos”. (RADEWIJNS, 1999: 11).

Muitas dessas características foram identificadas pela historiografia como prenúncios

das reformas religiosas do século XVI. A possibilidade de uma vida de santificação pessoal

fora dos votos monásticos fez com que fossem aproximados dos ideais que seriam

manifestados pelas igrejas evangélico-reformadas, assim como a sua ênfase no caráter

espiritual, que se oporia ao teor fortemente sacramental do catolicismo. A preocupação quase

constante com a reprodução do tempo dos apóstolos e o apreço característico pelos chamados

“pais da Igreja” foram identificados como elementos típicos do Renascimento: a valorização

dos textos latinos da antiguidade tardia, assim como a possibilidade de leitura das Sagradas

Escrituras em grego koiné, ao lado de autores “pagãos” como Cícero e Sêneca, fez com que

fossem fortemente associados aos studia humanitatis, ou “humanismo”. Até o começo do

século XX, as “comunidades de vida comum” seriam tidas como sintomas da lenta morte do

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mundo medieval e do nascimento do mundo moderno, associado com a racionalidade, a

preocupação pessoal com as virtudes morais e, sobretudo, recusa a uma tradição

“corrompida” e “supersticiosa”, identificada com a Igreja medieval.

Johan Huizinga, em O Outono da Idade Média, (HUIZINGA, 2013) é o primeiro a

indicar uma nova perspectiva sobre a devotio moderna, embora bastante sutil. Os ideais

desses devotos não seriam resultados da recusa com um mundo corrompido ou decaído, mas

sim as últimas expressões de um contexto em pleno processo de desaparecimento. Os anseios

por “um mundo mais belo” teriam levado ao misticismo, a única forma capaz de se conceber

o divino:

A língua humana é incapaz de evocar uma visão tão drástica da felicidade

como ela o faz com o horror. Para encontrar material cru que descreva a feiura e a

miséria, basta mergulhar fundo nos recantos mais baixos da humanidade; mas para

descrever a suprema sensação de felicidade, é preciso esticar o pescoço bem para o

alto, na direção do céu. (HUIZINGA, 2013: 361)

Para Huizinga, a devotio moderna representa mais um apelo ao misticismo medieval, a

única forma possível para a “comunhão espiritual”. Conhecer Deus, necessariamente, havia se

tornado “senti-lo”. (HUIZINGA, 2013: 369)

O primeiro grande trabalho sobre a devotio moderna, que acabou por definir os limites

pelos quais ela seria entendida, veio apenas em 1925, com The Christian Renaissance: A

History of the Devotio Moderna, de Albert Hyma. Como o próprio título já indica, a sua ideia

principal é a de que o grande momento de virada na história do cristianismo ocidental teria se

dado com a conversão de Grote. Assim, ela representou o “renascimento” dos valores do

cristianismo em uma sociedade na qual o fervor religioso havia se esvaído. Pregadores

anteriores como Bernardo de Clairvaux e Francisco de Assis teriam demonstrado a

insatisfação latente e a necessidade da renovação espiritual, mas somente Grote teria sido

capaz de trazer “o último grande período de reformas” do cristianismo. (HYMA, 1925: 3-4)

Segundo Hyma, esse teria sido o momento no qual foram reunidos “a sabedoria dos antigos

[filósofos greco-romanos], a essência dos ensinamentos cristãos, a mística dos pais da Igreja e

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dos santos medievais, assim como o conhecimento dos humanistas italianos”, reinterpretando-

os em uma “nova roupagem” para “um velho e um novo mundo”. (HYMA, 1925: 32)

Em 1968, Rognerius Post publicou um novo trabalho que pretendia compreender a

devotio moderna de forma ampla. The Modern Devotion: Confrontantions with Humanism

and Reformation (POST, 1968) representa uma resposta ao trabalho de Albert Hyma, que

superestimou a devotio moderna. Segundo Post, a associação dos devotos com o humanismo

e com as reformas deve ser vista com cautela. Para ele, as “comunidades de vida comum”

representaram um fenômeno bastante específico e delimitado. Suas relações com o

humanismo se restringiria a Florent Radewijns, Gérard Zerbolt, Henry Mande, Gerlarch

Peters e Thomas de Kempis, excluindo nomes como Erasmo de Rotterdam e Wessel Gansfort,

associados às comunidades por terem sido educados em escolas mantidas pelos devotos, o que

Post nega que tenha existido. (POST, 1968: 1-8)

Tanto Post quando Hyma pecam pelo extremo em suas análises. Se, por um lado, a

devotio moderna não significou o ponto de viragem na história do cristianismo ocidental e

nem desencadeou as profundas mudanças que agitariam a Europa nos séculos XVI e XVII, ela

também não pode ser diminuída para meras comunidades, praticamente isoladas em si e

distantes dos círculos humanistas do norte da Europa. Essas comunidades foram eficazes em

construir um sistema de práticas espirituais que se mostraria importante para a história do

cristianismo, a exemplo de De Imitatione Christi. Ao mesmo tempo, foram importantes para a

construção das perspectivas morais do humanismo norte-europeu, associando autores

clássicos aos ensinamentos bíblicos, de modo a sustentar uma moral baseada na busca por

virtudes e no aprimoramento pessoal.

Após a publicação de Post, na década de setenta, em decorrência da diversificação de

estudos trazidos pela “Nova História”, aspectos psicológicos, espirituais e literários passaram

a dominar os debates sobre a devotio moderna. Kaspar Elm apontou o seu caráter “ambíguo”,

como uma espécie de grupo que oscilava entre o meio “leigo” e o “religioso”, situando-a

dentre uma série de grupos “religiosos” que dispensavam o claustro, como os begardos,

beguinas e os hospitalários. Kurt Goudriaan, Van Djik e Scheepsma se preocuparam com a

participação feminina na construção dessas comunidades e de suas perspectivas. (VAN

ENGEN, 2008: 4) Thomas Mertens, por sua vez, se dedicou ao estudo do gênero literário

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desenvolvido pelos devotos, denominado rapiarium, em um estudo publicado juntamente com

a tradução do Tractatulus Devotus, de Florent Radewijns. (RADEWIJNS, 1999: 5-59)

Esse gênero específico se constitui em uma compilação de trechos que seriam úteis

paras os devotos em suas orações e práticas espirituais. Ao lerem determinado autor, ao

ouvirem alguma frase tocante, ou ao emocionarem-se com determinada passagem das

Sagradas Escrituras, esses devotos as copiavam em pequenos cadernos, para que pudessem lê-

las em outros momentos e serem tomados do mesmo êxtase espiritual. Aos poucos, esses

rapiaria primitivos foram se tornando mais elaborados, sendo compartilhados entre os

devotos e extrapolando sua natureza individual. O Tractatulus devotus representa o primeiro

desses manuais, contendo reflexões e passagens de autores da patrística e do período greco-

romano, e também práticas espirituais sistematizadas, em organizadas em exercícios diários.

As características comuns dos rapiaria podem ser facilmente identificadas, também, em De

imitatione Christi: reflexões sobre temas diversos, capítulos curtos – que muitas vezes não

possuem um tema coeso – práticas espirituais sistematizadas e recursos imaginativos para se

induzir o “fervor” por Deus. É bem provável que Thomas de Kempis tenha compilado trechos

de outros rapiaria, que circulavam entre os devotos, e os unido às próprias elaborações. Isso

explicaria a sua constituição a partir de quatro livros distintos, assim como muitas

semelhanças com o Tractatulus.

O último grande trabalho a respeito da devotio moderna foi publicado em 2008, sob o

título Sisters and Brothers of Common Life: Devotio Moderna, self-made societies, and the

world of the later middle ages, de autoria de John Van Engen. (VAN ENGEN, 2008) Esse foi

o primeiro trabalho que procurou compreender a devotio moderna, de forma geral, em seu

próprio contexto. Associando-a a outros grupos religiosos, como os begardos, beguinas,

“espíritos livres” e demais ordens pregadoras, Van Engen ilumina um momento de tendências

comuns, como o ideal de pobreza evangélica, castidade e recusa ao claustro. (VAN ENGEN,

2008: 19-23) Segundo Van Engen, essas transformações teriam se dado, em grande parte,

pelo incremento das preocupações com o “caráter cognitivo da fé”, nos séculos XI a XIV. Em

uma Europa já cristianizada, com a ameaça do paganismo já distante, o foco dos pregadores e

teólogos passa a ser a correta compreensão dos ensinamentos evangélicos e o comportamento

segundo a moral cristã. (VAN ENGEN, 2004) Assim, a devotio moderna aparece como um

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resultado de um complexo contexto no qual os indivíduos eram encorajados a reforçar o seu

compromisso com os valores do cristianismo e com a sociedade cristã, o que teria se

manifestado de diferentes formas, em diferentes grupos, a exemplo dos begardos e beguinas.

Pela perspectiva de John Van Engen, percebe-se que a devotio moderna não pode ser

reduzida a um mero fenômeno da região dos atuais Países Baixos, uma vez que compartilha

elementos comuns com outros movimentos espirituais. Ela foi resultado de ênfases espirituais

do cristianismo medieval, reinterpretando-as em novas preocupações e expressões, conforme

o seu contexto. Dessa forma, constitui-se como um importante fenômeno para a compreensão

das transformações religiosas da passagem do mundo medieval para o moderno.

DE IMITATIONE CHRISTI: UM MANUAL DAS “COMUNIDADES DE VIDA

COMUM”

O livro De Imitatione Christi é uma compilação de quatro livros distintos: 1)

Admonitiones ad spiritualem vitam utiles (“Conselhos úteis para a vida espiritual”), 2)

Admonitiones ad interna trahentes (“Conselhos trazidos para a vida espiritual”), 3) Liber

Internae Consolationis (“Livro da consolação interna”) e 4) Exhortatio ad sacram

communionem (“Exortação para a Sagrada Comunhão”). Os dois primeiros livros trazem uma

série de reflexões que encorajam o devoto no abandono das coisas terrenas, das vaidades e no

seguir o exemplo de Cristo. O terceiro livro representa, em sua maioria, uma série de diálogos

entre a alma do devoto e Jesus Cristo. O quarto livro se constitui em uma série de instruções

para a eucaristia, enfatizando o aspecto espiritual da comunhão. Essa reunião de livros com

propósitos distintos reforça a ideia de que De imitatione Christi foi composta a partir da

compilação de outros rapiaria, sendo o manuscrito completo mais antigo, de 1441, famoso

por, supostamente, conter a assinatura de Thomas de Kempis, seu mais provável autor e

compilador.

Thomas de Kempis ingressou ainda jovem na comunidade de Deventer, onde teria ido

estudar na escola da catedral. Por influência de seu irmão, John, membro da casa vicarial de

Zwolle, teve contato com os fundadores da devotio moderna, tornando-se bastante próximo de

Florent Radewijns, que lhe daria abrigo e o colocaria em contato com as demais comunidades

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do vale do Ijssel – região de Deventer, Zwolle e Kampen. Por volta de 1399, estabeleceu-se

no mosteiro do monte de Santa Agnes, próximo a Zwolle. Aí permaneceria até a sua morte,

em 1471. Carregando consigo manuscritos herdados de Grote, Radewijns e outros devotos,

ele seria o responsável pela compilação e criação de inúmeros trabalhos, como bibliografias

dos fundadores das comunidades, crônicas de suas fundações e manuais devocionais, como

Soliloquium animae (“Solilóquio da alma”), Vallis liliorum (“Vale dos lírios”), Hortulus

rosarum (“Pequeno Jardim de Rosas”), além de De Imitatione Christi. (HYMA, 1925: 158-

170)

A autoria de De Imitatione Christi já esteve sob discussão, sendo ainda reproduzida,

muitas vezes, nas apresentações das diferentes edições do livro e em meios de divulgação

mais populares, como textos online e resumos de jornais e revistas. Jean Gerson - importante

teólogo e chanceler da Universidade de Paris - é o nome mais citado quando se coloca em

dúvida a autoria do livro, o que, provavelmente, se deva a sua participação na defesa do estilo

de vida desses devotos no concílio de Constança, entre 1414 e 1418. Pode-se supor, também,

que Gerson possa ter tido participação na divulgação do livro pela Europa.

Apesar dessas suposições e questionamentos a respeito da autoria do livro, Thomas de

Kempis ainda representa o mais provável autor do livro, sendo a possibilidade mais aceita,

atualmente, que tenha compilado escritos de outros rapiaria já utilizados por outros devotos e

unido a eles composições de sua própria autoria. Como dito, a sua constituição em quatro

livros distintos e conteúdo disperso reforçam essa possibilidade. Também, o manuscrito mais

antigo que se atribui a Thomas de Kempis, o qual contem sua suposta assinatura, remonta a

1441, sendo que são conhecidas passagens isoladas do livro anteriores, de pelo menos 1431.

De qualquer forma, é preciso considerar que De imitatione Christi representa uma obra que

somente poderia ter sido composta internamente às “comunidades de vida comum”, uma vez

que possui muitas semelhanças com outros textos da devotio moderna, o que, novamente, leva

a autoria mais provável a Thomas de Kempis.

Uma das principais características dos devotos modernos, como vimos, foi a opção pelo

isolamento em comunidades sem que se tornasse obrigatório o voto por determinada regra.

Embora, em seu início, Radewijns tenha tentado sistematizar uma regra própria para suas

comunidades e, gradativamente, determinações tenham sido criadas para a organização da

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vida interna das casas, nunca chegou-se a formular um código escrito que deveria ser seguido

por seus membros. Como vimos, isso foi compreendido, pela historiografia, como um

prenúncio da racionalidade renascentista, que tornaria a consciência a guia moral dos

indivíduos e, portanto, dispensaria a necessidade de obediência segundo uma regra. No

entanto, esses devotos nunca expressaram uma recusa pela vida monástica ou pela adoção de

votos, mas enfatizavam que a salvação se faria por hábitos e costumes dedicados às orações,

exercícios e asceses, e não pelo simples ingresso no claustro:

Habitus et tonsura modicum conferunt, sed mutatio morum et integra

mortificatio passionum verum faciunt religiosum. Qui aliud quærit quam pure deum

et animæ suæ salutem, non inueniet nisi tribulationem et dolorem. Non potest etiam

diu stare pacificus, qui non nititur esse minimus, et omnibus subiectus. (KEMPIS,

1483: Livro I, Cap. XVII)

De pouca monta são o hábito e a tonsura: são a mudança de costumes e a

perfeita mortificação das paixões que fazem o verdadeiro religioso. Quem outra

coisa procura senão a Deus só e a salvação de sua alma, só achará tribulações e

angústias. Não pode ficar por muito tempo em paz quem não procura ser o menor e

o mais submisso de todos. (KEMPIS, 2015: Livro I, Cap. XVII)

Nesse mesmo capítulo, intitulado De vita monastica (“Sobre a vida monástica”),

reconhece-se como útil a vida em qualquer congregação religiosa: “Non est paruum in

monasteriis uel in congregatione habitare, et ibi sine querela conuersari, et usque ad mortem

fidelis perseuerare” (KEMPIS, 1483: Livro I, Cap. XVII) (“Não é pouco habitar em

mosteiros ou congregações religiosas, viver ali sem queixas e perseverar fielmente até a

morte.”) (KEMPIS, 2015: Livro I, Cap. XVII). Isso ecoa um dos primeiros textos de Geert

Grote, no qual ele afirma importância da resolução em seguir por um caminho distante dos

pecados mundanos e em dedicar-se às coisas divinas. (VAN ENGEN, 1988: 73)

Para os irmãos e irmãs de “vida comum”, a importância de uma vida dedicada à oração

e à exercitação espiritual estava na possibilidade da “ordenação” dos impulsos carnais,

evitando as perturbações mundanas. Por uma vida tranquila e calma, eles seriam capazes de

controlar seus desejos e evitar o pecado, além de reconhecerem as naturezas de suas

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inclinações. Em De Imitatione Christi, termos como quiescere (“repousar”), quietus

(“quieto”) e tranquillus (“tranquilo”) são frequentes. No capítulo VI, do Livro I, é dito:

Quandocumque homo aliquid inordinate appetit, statim in se inquietus fit. Superbus et avarus

nunquam quiescunt. Pauper et humilis spiritu in multitudine pacis conuersatur. (KEMPIS,

1483: Livro I, Cap. VI) (“Todas as vezes que o homem deseja alguma coisa

desordenadamente, torna-se logo inquieto. O soberbo e o avarento nunca sossegam;

entretanto, o pobre e o humilde de espírito vivem em muita paz”). (KEMPIS, 2015: Livro I,

Cap. VI)

Reflexões parecidas podem ser encontradas em quase todos os textos da devotio

moderna. Em De spiritualibus ascensionibus, de Gerard Zerbolt, há instruções para que se

“ordene os seus exercícios”, permanecendo “estável”, para que assim se atinja o grande

obejtivo: ter a “pureza” e o “amor” impressos no coração, de modo a não se afastado desses

fins por qualquer “acidente, conselho ou ordens de outrem”. (VAN ENGEN, 1988: 256)

Dedicados para a pureza espiritual, os devotos modernos manifestaram certa suspeita

pelo conhecimento. Suas críticas, que podem ser interpretadas como comentários velados à

escolástica, atentam para os perigos que o interesse intelectual podiam gerar: Quid prodest

tibi alta de trinitate disputare si careas humilitate vnde displiceas trinitati? (KEMPIS, 1483:

Livro I, Capítulo I) (“Que que te aproveita discutires sabiamente sobre a SS. Trindade, se

nãos és humilde, desgradando, assim, a essa mesma Trindade?”). (KEMPIS, 2015: Livro I,

Capítulo I) O conhecimento, para esses devotos, além de criar preocupações que não se

relacionam com a salvação dos indivíduos também poderia ser um fomentador de vaidades, o

que, novamente, afastaria o fiel do ideal apóstolico da humildade. Trata-se de uma perspectiva

bastante presente na história da devotio moderna, remontando ao próprio Geert Grote:

Não gaste tempo com geometria, aritmética, retórica, dialética, gramática,

poesia lírica, leis civis ou astrologia. Pois Sêneca já reprovava todas essas coisas,

como algo que o homem bom deveria olhar com suspeita: quanto mais devem ser

repudiadas pelo “homem espiritual” e pelo cristão! (VAN ENGEN, 1988: 67)

Dessa forma, é perceptível que De imitatione Christi possoui raízes em outras

produções literárias da devotio moderna, expressando seus principais ideais e perspectivas.

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Ao confrontá-los, muito de seu conteúdo se torna mais claro, como, por exemplo, sua

composição a partir de quatro livros distintos, seu caráter de guia para a exercitação espiritual

– algo nem sempre ressaltado nas traduções – e sua humildade radical, chegando a ser

expresso como “auto-desprezo” (“sui ipsius ... despectio”), o que somente pode ser

compreendido adequadamente a partir do contexto das comunidades de “vida comum”.

Ler e analisar De imitatione Christi, portanto, representa um esforço para tornar

compreensível determinado conteúdo a partir de um trabalho histórico, que o relacione ao

universo que o produziu. O seu processo de tradução não pode se contentar com simplesmente

tornar compreensíveis, em sistemas linguístico distinto, suas frases. É necessário que se torne

compreensível, também, o que foi a devotio moderna, detendo-se sobre suas ênfases e

preocupações espirituais. Somente assim, em nosso tempo, teremos alguma chance de

conhecer os irmãos e irmãs de “vida comum” e saber porquê, em seu contexto, procuraram

desprezar o mundo e tender aos céus.

FONTES

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http://www.thelatinlibrary.com/kempis.html, acessada em 04/08/2017.

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