TRÂNSITO RELIGIOSO NO BRASIL - Ronaldo de Almeida

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    TRNSITO RELIGIOSO NO BRASIL

    Resumo: O campo religioso sofreu transformaes nas ltimas dcadas que levaram fragmentao institu-cional e intensa circulao de pessoas pelas novas alternativas religiosas. Este artigo pretende caracterizar a

    configurao atual do campo religioso brasileiro a partir de dados sociodemogrficos de uma pesquisa nacio-nal realizada para o Ministrio da Sade e, num segundo momento, formular um fluxograma exploratrio dopadro de migrao de pessoas e crenas entre as religies.Palavras-chave: religio; mobilidade; Igreja Universal; Renovao Carismtica.

    e modo geral, a literatura cientfica sobre o cam-po religioso brasileiro tem sido desafiada por umcurioso paradoxo: o acmulo de conhecimento

    RONALDODE ALMEIDAProfessor da Escola de Sociologia e Poltica, Pesquisador do Cebrap

    PAULA MONTERODiretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Pesquisadora do Cebrap

    sobre as diferentes cosmovises parecia ter tornado evi-dente que, do ponto de vista dos ritos, das crenas e dalgica interna de cada universo, os cultos podem ser con-siderados bastante diferentes entre si, mas, quando se ob-serva o comportamento daqueles que freqentam esses cul-tos, as fronteiras parecem pouco precisas devido intensacirculao de pessoas pelas diversas alternativas, alm daacentuada interpenetrao entre as crenas. A pesquisaComportamento Sexual da Populao Brasileira e Percep-es do HIV/Aids, realizada em todo o Brasil, em 1998,revelou que 26% da populao mudou de religio. 1 Con-comitante circulao de pessoas, ocorreu tambm amultiplicao das alternativas religiosas, encontrando suaexpresso mxima entre os evanglicos, cuja fragmenta-

    o institucional estrutural ao seu prprio movimentode expanso. Nesse processo sempre renovado de divisopor cissiparidade, as denominaes continuamente doorigem a novos grupos.2

    Essa aparente contradio entre o modo como especia-listas e adeptos percebem o campo religioso representaum desafio para a interpretao cientfica que, muitas ve-zes, tem se contentado em adjetiv-lo de fluido, hbrido,sincrtico ou contnuo. O conceito weberiano de conver-so, que at muito recentemente explicava o complexo

    processo subjetivo de adeso a um novo credo, no pare-ce mais capaz de elucidar essas rpidas idas e vindas en-tre religies aparentemente to dspares entre si: um pro-cesso interior em que a conscincia religiosa no acusa,pelo menos primeira vista, incongruncias cognitivas.

    Uma das tentativas para compreender esse fenmenoreduziu a diversidade religiosa metfora do mercado.Estaria subjacente a esse enquadramento do pluralismo aidia de que a racionalizao do sagrado no mundo mo-derno realizar-se-ia pela transformao das crenas emmercadorias a serem consumidas pelos adeptos que, vo-lveis, escolheriam os produtos segundo suas necessida-des imediatas. A reduo do fenmeno do trnsito reli-gioso ao processo de mercantilizao dos bens de salvaoacabou por deixar na sombra os mecanismos particularesde ressignificao das crenas religiosas. Em ensaio de1994, sugeriu-se que as diferentes tradies religiosas esto

    em permanente processo de reinveno e rearticulaomuitas vezes responsvel pelo obscurecimento da nitidezdas fronteiras. Desse ponto de vista, a circulao entre osdiferentes cdigos seria estimulado pela existncia de umsubstrato cognitivo e/ou cultural comum s religies po-pulares brasileiras, fundado seja em uma idia abstrata dedeus que incorpora todas as variantes, seja em uma repre-sentao ambgua e no dicotmica da idia de mal(Montero, 1994). Um exemplo disto a Igreja Universaldo Reino de Deus, que pode ser entendida como resultan-

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    te da interao entre uma tradio evanglica-pentecostale um catolicismo afro-kardecista, articulada em torno dafigura do diabo (Almeida, 1996). Outros estudos apon-tam na mesma direo ao demonstrarem que, entre amalineza dos encantados da cultura amaznica, dosdemnios do catolicismo popular e dos evanglicos e osexus das religies afro-brasileiras, haveria a permann-cia de uma concepo tica particular s camadas popu-lares (Birman, Novaes e Crespo, 1997).

    Esse macroprocesso de contnua sntese e diferencia-o o fenmeno que aqui interessa ser descrito. A litera-tura especializada convencionou denomin-lo, por econo-mia, de trnsito religioso. Esta noo aponta, pelo menos,para um duplo movimento: em primeiro lugar, para a cir-culao de pessoas pelas diversas instituies religiosas,

    descrita pelas anlises sociolgicas e demogrficas; e, emsegundo, para a metamorfose das prticas e crenasreelaboradas nesse processo de justaposies, no tempo eno espao, de diversas pertenas religiosas, objeto prefe-rencial dos estudos antropolgicos.

    O problema se coloca, portanto, em dois nveis de an-lise: um propriamente institucional, que descreve a mu-dana das filiaes; e outro mais cognitivo, que mostra assemelhanas e as diferenas entre as representaes dosuniversos religiosos. A partir desses nveis, este artigoobjetiva, em primeiro lugar, desenhar a configurao atualdas principais tradies religiosas e suas caractersticassociodemogrficas e, em segundo, compreender algunsfluxos preferenciais nesse trnsito generalizado de fiis eidias religiosas. Preferenciais porque a intensidade da

    circulao varia de acordo com as instituies envolvi-das, como se houvesse fluxos mais intensos entre algu-mas do que entre outras. Trabalha-se com a hiptese de queas pessoas no mudam de religio de maneira aleatria. Amovimentao ocorre em direes precisas, dependendodas instituies envolvidas. Algumas so preferencialmen-te doadoras, enquanto outras so mais receptoras; al-gumas trocam adeptos entre si, enquanto em outras so ascrenas que circulam mais. Nossa proposta formular umfluxograma exploratrio do trnsito religioso ocorrido noBrasil nestas ltimas dcadas.

    CARACTERIZAO SOCIOECONMICADOS RELIGIOSOS

    Os catlicos foram os que mais perderam fiis em n-meros absolutos nas ltimas dcadas. Contudo, apesar davolumosa perda, o catolicismo mantm-se como o maiorgrupo religioso no Brasil, com 67,4% da populao, divi-dido equilibradamente entre os sexos, com maior concen-trao nas regies Norte/Nordeste e sendo mais confessopor pessoas com idade superior a 41 anos e jovens commenos de 25 anos. Em parte, este ltimo dado se explicapelo fato de as pessoas herdarem a religio dos pais e ini-ciarem preferencialmente se for o caso um processode mudana religiosa quando mais velhas. O quadro ge-ral, portanto, de perda de catlicos, tendo como base osdados censitrios de 1980 e 1991. Mantida esta tendn-cia, muito provavelmente essa gerao que se encontraentre 26 e 40 anos produzir, em alguns anos, uma popu-

    TABELA 1

    Distribuio dos Indivduos de 16 a 65 anos, por Sexo, Estratos Amostrais e Faixas Etrias, segundo Religio Atual

    Brasil 1998

    Em porcentagem

    Religio Atual Total

    Sexo Estratos Amostrais Faixa Etria

    Homens Mulheres CentroX NorNor SulX 16 a 25 26 a 40 41 a 55 56 a 65

    Anos Anos Anos Anos

    Catlica 67,4 66,3 68,3 67,9 74,2 64,3 68,3 64,7 68,5 72,8

    Pentecostal 11,8 9,0 14,4 12,2 7,8 13,5 12,0 11,6 13,8 7,3

    Protestantismo Histrico 5,2 6,2 4,3 7,0 6,3 4,3 4,7 3,9 6,4 9,4

    Esprita Kardecista 2,9 2,7 3,1 3,4 2,0 3,2 1,2 4,1 3,8 1,3

    Afro-brasileira 0,5 0,5 0,5 0,6 0,7 0,3 0,4 0,2 0,9 1,0

    Outra 2,2 1,1 3,3 1,0 1,6 2,8 1,6 2,6 1,0 5,7

    Sem Religio 9,7 13,9 5,9 7,9 6,8 11,5 11,4 12,6 5,3 2,6

    No Respondeu 0,2 0,3 0,2 0,0 0,5 0,2 0,4 0,2 0,2 0,0

    Fonte: Ministrio da Sade. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes sobre HIV/Aids.

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    lao ainda menos catlica, devido ao crescimento vege-tativo de outras religies, alm da sua capacidade de atra-o de novos adeptos. Em contrapartida a esta projeo,a consolidao do movimento carismtico pode inverteresse comportamento ao promover a readeso ao catoli-cismo.

    Em relao distribuio espacial, no Centro X, a par-ticipao dos catlicos est prxima mdia nacional,enquanto no NorNor encontra-se acima da mdia e, no

    SulX, abaixo. Esta diviso do pas em trs grandes regies que obedece aos objetivos da pesquisa citados ante-riomente requer maior preciso. 3 De acordo com outraspesquisas, o Centro-Oeste considerado uma regio querecebeu um forte fluxo migratrio poucas dcadas atrs.Entre os migrantes, encontra-se um nmero expressivo deevanglicos vindos do Sul do pas. Minas Gerais, ao con-trrio, um Estado que, pelo Censo Demogrfico de 1991,mostrava-se extremamente catlico, acompanhando o com-portamento do Nordeste: uma forte presena do catolicis-

    mo tradicional e popular das festas, procisses e roma-rias. Como Minas Gerais encontra-se no CentroX, a re-sultante da presena catlica nesta regio foi prxima mdia nacional. O mesmo pode ser pensado para o NorNor,pois o Nordeste muito catlico e pouco evanglico, en-quanto em Estados do Norte, como Rondnia, Par eAmap, houve migrao recente com significativa presenaevanglica proveniente do Sul do pas. Contudo, como osEstados do Nordeste so mais populosos, a mdia de ca-

    tlicos no NorNor significativamente superior mdiado Brasil. Por fim, o dado encontrado para a rea SulX o mais prximo da realidade para todos os Estados: me-nor presena de catlicos do que a mdia nacional. Des-tacam-se, nessa regio, pentecostais, umbandistas,kardecistas e sem religio.

    Em relao escolaridade e renda, os catlicos, pelofato de serem a maioria, obedecem ao padro nacional,tendo em vista o critrio Brasil. 4 Baseando-se em da-dos qualitativos, observa-se que muitas pessoas tm ou-

    TABELA 2

    Distribuio dos Indivduos de 16 a 65 Anos, por Grau de Instruo, segundo Religio Atual

    Brasil 1998

    Em porcentagem

    Religio Atual Analfabeto Fundamental Incompleto Fundamental Completo Mdio Completo Superior Total

    Total 6,3 46,0 21,7 16,7 9,4 100,0

    Catlica 6,9 44,4 21,7 17,0 10,0 100,0

    Protestantismo Histrico 9,1 41,8 24,1 20,8 4,2 100,0

    Pentecostal 5,0 65,2 18,0 9,1 2,8 100,0

    Esprita Kardecista 0,0 12,9 25,4 42,7 18,9 100,0

    Afro-brasileira 0,0 41,6 21,1 4,3 33,0 100,0

    Sem Religio 4,5 46,6 21,4 14,3 13,1 100,0

    Outra 4,2 44,4 30,8 16,3 4,3 100,0

    Fonte: Ministrio da Sade. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes sobre HIV/Aids.

    TABELA 3

    Distribuio dos Indivduos de 16 a 65 Anos, por Estratos Socioeconmicas, segundo Religio AtualBrasil 1998

    Em porcentagem

    Religio AtualEstratos Socioeconmicos

    A B C D E Total

    Total 4,2 21,3 35,9 30,3 8,3 100,0

    Catlica 4,6 22,3 33,0 29,9 10,3 100,0

    Protestantismo Histrico 3,0 17,9 36,3 39,1 3,7 100,0

    Pentecostal 1,5 8,9 47,3 38,5 3,8 100,0

    Esprita Kardecista 3,6 58,4 29,9 7,0 1,1 100,0

    Afro-brasileira 0,0 36,9 22,2 40,9 0,0 100,0

    Sem Religio 7,1 17,0 44,4 25,7 5,7 100,0

    Outra 1,1 31,4 35,6 27,7 4,2 100,0

    Fonte:Ministrio da Sade. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes sobre HIV/Aids.

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    tras prticas religiosas, mas identificam-se como catli-co apostlico romano quando perguntadas qual a suareligio?, principalmente entre os estratos mais pobres emenos escolarizados. Na verdade, trata-se de uma identi-dade religiosa pblica, muito embora as crenas e prti-cas catlicas ocupem um plano mais secundrio na vidado fiel em relao ao condombl, umbanda, espiritismo,entre outros.

    A esse tipo de catlico que mantm simultaneamentereligiosidades diferentes cada uma localizada num pla-no da vida do fiel acrescentam-se ainda os chamadosno-praticantes, categoria sociologicamente pouco pre-cisa, mas com uma auto-identificao significativa quecompe uma parcela importante do segmento. So os ca-tlicos dos batismos, casamentos e enterros, para os quais

    os sacramentos atuam como ritos de passagem tradicio-nais na sociedade brasileira. Trata-se daqueles indivduosque acreditam na Igreja, batizaro seus filhos nela, acei-tam-na como identidade religiosa, mas no a praticam,como ir periodicamente aos templos ou manter algumadevoo a um santo, por exemplo. A auto-identificaode no-praticante deve-se pouca freqncia aos servi-os religiosos e ausncia de relaes mais comunitrias.Por meio de entrevistas qualitativas, possvel inferir queum nmero considervel de pessoas pode muito bem seidentificar como catlico no-praticante, ou simplesmen-te sem religio, dependendo do dia em que for entrevista-da. No por acaso, curiosamente, entre aqueles que se en-contram na categoria sem religio, 30,7% freqentamalgum servio religioso anualmente e 20,3% mais de umavez ao ms (Tabela 4).

    Em relao aos afro-brasileiros, verifica-se que, para aalternativa nunca freqenta servios religiosos, o valor

    corresponde a zero (Tabela 4). Para o candombl e aumbanda, a religiosidade est diretamente ligada s prti-cas rituais. Suas exigncias no so do tipo comportamen-tal, como entre os evanglicos, mas sim de cumprimentoritual de dar comida para o santo. Alm disso, o calen-drio ritual afro-brasileiro tem uma periodicidade maisespaada do que o cristo: catlicos e evanglicos (pro-testantes histricos e pentecostais). Porm, para os pri-meiros, a freqncia semanal Igreja pouco superior a50%, enquanto entre os pentecostais este ndice chega aquase 90%, nmero semelhante ao dos protestantes hist-ricos e um pouco superior ao dos kardecistas.

    De acordo com a Tabela 1, os pentecostais constituemo segundo maior segmento, com 11,8% da populao, eapresentam a maior taxa de crescimento conforme os dois

    ltimos Censos Demogrficos. O grande contingente feminino: 63,7% dos pentecostais, so mulheres enquantoque a proporo feminina na populao do Brasil de52,3% , s perdendo para a categoria outras religies,com 77,0% (sobre as quais nada se pode afirmar devido variedade compreendida pela categoria). Contudo, algu-mas denominaes pentecostais conseguem ter um ndiceainda maior do que este. Quase 80% dos que freqentama Igreja Universal, por exemplo, so compostos por mu-lheres.

    Em relao escolaridade, a maioria dos pentecostais(65,2%) formada por pessoas com o fundamental incom-pleto (para a populao brasileira, a mdia de 46%). Apresena diminui relativamente nos extremos da escolari-dade: poucos pentecostais entre os analfabetos e aquelescom ensino mdio completo e menos ainda com nvel su-perior (Tabela 2). Verifica-se comportamento semelhan-te na estratificao socioeconmica. Os pentecostais pre-

    TABELA 4

    Distribuio dos Indivduos de 16 a 65 Anos, por Freqncia aos Servios Religiosos, segundo Religio Atual

    Brasil 1998

    Em porcentagem

    Religio AtualFreqncia aos Servios Religiosos

    Nunca AnualmenteMais de Uma

    SemanalmenteVrias Vezes

    TotalVez ao Ms por Semana

    Total 6,7 19,9 18,6 41,0 13,7 100,0

    Catlica 3,2 22,6 22,6 46,1 5,5 100,0

    Protestantismo Histrico 0,3 7,3 4,2 43,7 44,5 100,0

    Pentecostal 0,7 7,9 4,8 34,4 52,2 100,0

    Esprita Kardecista 7,2 6,3 4,7 68,9 12,9 100,0

    Afro-brasileira 0,0 6,5 47,3 30,1 16,1 100,0

    Sem Religio 43,0 30,7 20,3 5,6 0,4 100,0

    Outra 1,5 6,3 9,6 39,1 43,5 100,0

    Fonte: Ministrio da Sade. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes sobre HIV/Aids.

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    dominam mais nos estratos C e D e menos em A, B e E.Em suma, baixa e mdia escolaridade e renda caracteri-zam esses religiosos.

    O segmento pentecostal significativamente compos-to por jovens e adultos, sendo pequena a presena de pes-soas com mais de 55 anos. Ao se distribuir a populaototal pelas faixas etrias, constata-se uma maior partici-pao de pessoas mais velhas no catolicismo, no protes-tantismo histrico, e outras, enquanto os mais jovens op-tam, curiosamente, pela filiao aos segmentos catlico epentecostal, ou pela no filiao religiosa. Quanto aoscatlicos, vale a explicao anterior sobre a herana reli-giosa. Os outros (pentecostais e sem-religio) predomi-nam nas faixas etrias de 16 a 25 anos e de 26 a 40 anos,ocupando cada um em torno de 12% da populao em cada

    faixa. Esses dados apontam dois movimentos concomi-tantes, a princpio contraditrios. Um em direo a umareligiosidade exclusivista e espiritualizada, que insere ofiel em outra rede de sociabilidade, desencadeando nelemudana de comportamento. Neste pode-se incluir tam-bm a Renovao Carismtica que, embora ocorra no inte-rior do catolicismo, caracteriza-se pela incorporao de umareligiosidade tipicamente evanglica: pouca liturgia e mui-ta msica e gestos que dinamizam a celebrao; nfase naconverso e nos dons espirituais como o poder de cura, almde utilizar, assim como os evanglicos, os meios de comu-nicao como importante veculo de propagao da fcatlica renovada.

    O outro movimento est direcionado desfiliao ou no-identificao com nenhuma instituio, que muitasvezes acompanhada de desqualificao da vida religio-sa. Assim, no s proliferam as religies como tambmos sem-religio, que formam o terceiro maior grupo. Estapolaridade do campo religioso contribui para a discussoque ainda domina parte da sociologia da religio, qual seja,se esta mudana de configurao aponta para um reen-cantamento do mundo ou trata-se apenas de um ajusteda religio no macroprocesso de secularizao, no qual

    se encontra a sociedade brasileira pelo menos desde a se-parao da Igreja do Estado (Montero e Almeida, 2000).

    Os sem-religio apresentam um nvel de escolaridadealta e, em relao renda dos brasileiros, esto bastantepresentes nos estratos A e C. Pelos dados no possvelestabelecer uma relao direta entre maior filiao reli-giosa e estrato socioeconmico baixo. Os sem-religio en-contram-se mais entre jovens e adultos at 40 anos e, prin-cipalmente, entre os homens. Em relao ao sexo dosreligiosos, a pesquisa mostra que h predominncia mas-

    culina somente nas alternativas sem religio numa rela-o de quase dois homens para uma mulher e protestan-tismo histrico. Em geral, a religiosidade mais confessapelas mulheres. Logo, em alguma medida, a distino degnero afeta o processo de secularizao.

    O protestantismo histrico forma o quarto maior gru-po, com 5,2% da populao, e comporta uma maioriamasculina. Estes religiosos encontram-se mais entre aspessoas que possuem ensino fundamental (incompleto ecompleto) e mdio completo, bem como nos estratos B, Ce, principalmente, D (Tabela 2). Assim, como os catli-cos, os protestantes histricos encontram-se mais presen-tes entre as pessoas acima de 41 anos e mais ainda entreaqueles com idade superior a 56 anos. Os protestantes estopouco presentes entre os mais jovens, sendo que o aumento

    vegetativo deste segmento inferior ao catlico e a taxade crescimento pequena. Contudo, assim como ocorreucom o catolicismo, eles foram atingidos tambm pelomovimento carismtico que tem atrado muitos fiis e criouum segmento religioso com caractersticas intermediriasentre protestantes histricos e pentecostais: so os pro-testantes carismticos ou renovados.

    Os kardecistas, com 2,9% dos brasileiros, so os reli-giosos com maior nvel de escolaridade e renda. Nenhumcaso de analfabetismo foi registrado entre os entrevista-dos, poucos possuam ensino fundamental incompleto ecompleto e muitos tinham mdio completo e superior.Quanto renda, este segmento est mais concentrado nosestratos D e B. 5 Curiosamente, as religies afro-brasilei-ras possuem maior participao entre as classes altas e commaior escolaridade, muito embora a experincia mostreque muitos pobres so adeptos dessas religies. Recorre-se novamente ao argumento anterior, para o qual boa par-te dos brasileiros mantm uma religiosidade privada e outra(a catlica) como identidade pblica, principalmente se aresposta for dada no contexto de umsurvey , o que limitaa caracterizao de certas religies.

    MOBILIDADE DOS RELIGIOSOS

    Como dito inicialmente, o quadro descrito resultadode uma intensa circulao de pessoas entre as religies,ocorrida nas ltimas trs dcadas. De acordo com as ca-ractersticas sociodemogrficas, o universo feminino temum nvel de filiao maior do que o dos homens, mas istono significa que as mulheres mantenham a religio her-dada; ao contrrio, so elas as que mais mudam e, na maiorparte das vezes, sempre direcionadas para outras religies.

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    TABELA 5

    Distribuio dos Indivduos que Mudaram de Religio, por Religio em que foi Criado, segundo Religio Atual

    Brasil 1998

    Em porcentagem

    Religio em que foi Criado

    Religio AtualCatlica

    ProtestantismoPentecostal

    EspritaAfro-brasileira Nenhuma Outra Total

    Histrico Kardecista

    Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

    Catlica 12,2 36,7 63,6 24,1 20,3 23,9 9,0Protestantismo Histrico 14,9 0,6 0,0 9,3 31,1 1,9 12,8

    Pentecostal 36,5 3,0 5,6 11,1 46,3 39,7 31,1

    Esprita Kardecista 13,5 0,3 2,5 0,0 0,0 2,8 9,0

    Afro-brasileira 2,3 0,1 0,0 0,0 0,0 0,0 1,5

    Sem Religio 23,6 79,5 58,8 29,6 55,6 31,7 29,9

    Outra 9,2 4,9 1,4 1,2 0,0 2,2 6,7

    Fonte: Ministrio da Sade. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes sobre HIV/Aids.

    TABELA 6

    Distribuio dos Indivduos que Mudaram de Religio, por Religio em que foi Criado, segundo Religio Atual

    Brasil 1998

    Em porcentagem

    Religio em que foi CriadoReligio Atual

    CatlicaProtestantismo

    PentecostalEsprita

    Afro-brasileira Nenhuma Outra TotalHistrico Kardecista

    Total 63,6 9,4 7,6 2,0 0,3 10,0 6,9 100,0

    Catlica 12,7 31,0 14,4 0,9 22,6 18,4 100,0

    Protestantismo Histrico 74,0 0,3 0,0 0,2 24,4 1,0 100,0

    Pentecostal 74,8 0,9 0,4 0,1 14,9 8,9 100,0

    Esprita Kardecista 95,4 0,4 2,1 0,0 0,0 2,2 100,0

    Afro-brasileira 99,6 0,4 0,0 0,0 0,0 0,0 100,0

    Sem Religio 50,1 25,0 14,9 2,0 0,6 7,3 100,0

    Outra 87,8 6,9 1,6 0,4 0,0 3,3 100,0

    Fonte: Ministrio da Sade. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes sobre HIV/Aids.

    O SulX, por sua vez, foi a nica regio onde as pessoasmudaram de filiao acima da mdia nacional, criando ocenrio mais plural do Brasil. Os muito pobres com pou-qussima escolaridade e os muito ricos e de alta escolari-dade mudaram muito menos de religio. Em resumo, amudana ocorreu de forma mais concentrada no SulX, nasclasses C e D, com escolaridade baixa e mdia e entre asmulheres, segmentos em que os pentecostais mais se pro-liferaram.

    Em nmeros absolutos, os catlicos foram os que maisperderam. Em seguida vm os sem-religio, os protestan-tes histricos, os pentecostais e pouqussimos kardecistase afro-brasileiros. Por outro lado, os segmentos que maisreceberam pessoas, em ordem crescente, foram: os pente-costais (quatro vezes mais do que perdeu); sem-religio

    (cerca de metade a mais); protestantes histricos (quaseigual ao que perderam); catlicos; kardecistas; e afro-bra-sileiros. Porm, ao reduzir o universo unicamente aos

    26,5% que mudaram de religio, quais so as principaisconexes entre as alternativas religiosas? Isto , quemrecebeu de quem e quem doou para quem? como se qui-sssemos saber, por exemplo, de onde vieram os fiis dokardecismo e para onde vo os kardecistas quando muda-rem de religio. Para construir esse movimento, a pesqui-sa perguntou a religio atual do entrevistado e em qualele foi criado. Desta maneira, cada religio pde ser ana-lisada em dois momentos: como pontos de recepo e deemisso de fiis. Considerando-se o estoque de pessoasde cada uma dessas categorias e a alta circulao interna,o campo religioso brasileiro pode ser articulado em tornode trs principais vrtices.

    O primeiro vrtice formado pelos catlicos, que fun-cionam como uma espcie de doador universal, de onde

    todos os segmentos arregimentam boa parte dos seus fiis.O grupo preferencial para onde migram os catlicos opentecostalismo, seguido por aquele sem religio. Do

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    ponto de vista da recepo, quase metade das pessoasentrevistadas que aderiram ao catolicismo afirmou no terpertencido anteriormente a nenhuma religio ou que erampentecostais. Porm, como dito anteriormente, em parteo primeiro dado se explica pela fronteira pouco precisaentre os que se dizem catlicos no-praticantes e os sem-religio. Trata-se de um catolicismo dado pela tradio,em que as pessoas receberam a religio dos pais e a ati-vam no uso dos sacramentos e nos momentos de dificul-dades pessoais (familiar, financeira, sade, etc.), ou, maisrecentemente, por meio da readeso carismtica.

    Os kardecistas, por sua vez, orbitam em torno do cato-licismo, formando um fluxo preferencial. A quase totali-dade (95,4%) afirmou ter sido catlica e, quando as pes-soas saem do kardecismo, vo (ou voltam) para o

    catolicismo, ou tm, como segunda opo, no ter reli-gio. O fluxo de pessoas do (ou para o) catolicismo ex-plicado, em parte, pelo comportamento da maioria doskardecistas, que, assim como os afro-brasileiros, no dei-xam de se identificar como cristos e catlicos: um cat-lico esprita, cujos prticas no so excludentes, mas que,dependendo da situao, o indivduo pode utilizar uma ououtra identidade. Os afro-brasileiros, em parte, orbitamem torno do catolicismo como os kardecistas, mas, dife-rentes destes, a maioria das pessoas, quando sai das reli-gies afro-brasileiras, declara-se sem religio.

    No segundo vrtice encontram-se os sem-religio, ca-tegoria equivalente a um receptor universal, que, numasociedade em processo de secularizao, recebe pessoas

    de todas as confisses. Acrescente-se, contudo, que a li-teratura antropolgica demonstrou exaustivamente comomuitas pessoas compem um repertrio particular de cren-as e prticas variadas, mas no se identificam com ne-nhuma religio especfica. No se trata, portanto, somen-te de um movimento em direo ao atesmo, mas sim acomposio de um repertrio simblico particular, afinal,a no-filiao no significa necessariamente ausncia dereligiosidade. Um dos exemplos contemporneos maissignificativo de composio desses arranjos particulares formado pelo circuito neo-esotrico, cuja religiosidadeno se expressa prioritariamente pela filiao a uma insti-tuio, mas definida por um certo estilo de vida, fen-meno bastante presente nas classes mdia e alta dos gran-des centros urbanos (Magnani, 1999).

    Um fluxo significativo envolve ainda os sem-religioe protestantes histricos. Os histricos so semelhantesaos catlicos, aumentando praticamente de forma vegeta-tiva e perdendo fiis quase na mesma proporo; contu-do, diferentes dos catlicos que aderem a todas as alter-nativas, a maior parte dos ex-protestantes (79,5%)simplesmente fica sem religio. Neste caso, o comporta-mento semelhante ao kardecismo, que se explica a par-tir dos contedos especficos dessas religies que tendem secularizao, como uma religiosidade que pretende umcarter cientfico.

    Finalmente, o terceiro vrtice formado pelos pentecos-tais, cujo aumento semelhante ao daqueles sem-religio,mas, diferente destes, buscam seus fiis entre alguns es-

    FIGURA 1

    Padres de Migrao entre Religies

    Fonte: Elaborao dos autores.

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    tratos sociais e segmentos religiosos basicamente entrecatlicos, afro-brasileiros e sem-religio, que compemum repertrio simblico catlico-afro-kardecista quemanipula simultaneamente elementos de confisses dife-rentes: lgica mgica, reencarnao e destino, devoo asantos e crena na comunicao com os mortos. Ospentecostais pouco atraem os kardecistas o que se ex-plica pelas diferenas sociais que caracterizam estes seg-mentos , mas confrontam-se com algumas de suas idiascomo espritos de mortos e reencarnao. Os afro-brasi-leiros, por sua vez, esto na esfera de ao dos pentecostaispor serem alvos privilegiados da evangelizao e modelosimblico religioso a ser combatido. Porm, o grande ce-leiro dos pentecostais formado pelo catolicismo. Nestesentido, a Renovao Carismtica no deve ser entendida

    apenas como um movimento de readeso, mas tambm dereao ao avano evanglico.

    No cenrio atual, pode-se entender a neopentecostalIgreja Universal, fundada em 1977, como resultante dainterao, tanto simblica quanto numericamente, dosuniversos evanglico e umbandista. A Igreja Universalconstruiu uma religiosidade que condenou e ao mesmotempo validou os contedos de outras religies, contu-do, paradoxalmente, incorporou as formas de apresenta-o e certos mecanismos de funcionamento de um prticaencontrada particularmente na umbanda. Ela ficou maisparecida com a religiosidade inimiga ao elaborar umsincretismo s avessas, que associou as entidades daumbanda e orixs do candombl ao plo negativo do cris-tianismo: o diabo. Se originalmente os universos foramformados em contextos diferentes, a interao (produtodo trnsito de pessoas e idias) gerou uma religiosidadeque mistura exus com glossolalia, exorcismo com transe;de tal maneira que se estabeleceu uma continuidade pelaqual as entidades conseguiram transitar e esses universospuderam, pelo transe, se comunicar. Os pares negao/inverso e assimilao/continuidade so os mecanismosfundamentais pelos quais se processaram essa antropofa-

    gia religiosa. Graas a esses binmios, a Universal pdemanter o proselitismo de fiis e, ao mesmo tempo, sersincrtica com outras crenas, que, juntamente com osinfortnios vividos pela populao brasileira, formam oalimento constitutivo do seu simbolismo religioso(Almeida, 1996).

    Outro fluxo significativo gerador de um novo padrode religiosidade foi formado pela interao entre catoli-cismo, pentecostalismo e protestantismo histrico, resul-tando na Renovao Carismtica. A penetrao de alguns

    elementos evanglicos no catolicismo ocorreu em duasdimenses: do pentecostalismo, a Renovao adotou osdons espirituais ou carismas, como a glossolalia e a cura;e do protestantismo histrico, a idia de converso pes-soal que, em termos prticos, manifesta-se como experin-cia emocional com implicaes direta no comportamentodo fiel em esferas da vida social, como a famlia e o tra-balho, e ainda no seu estado psquico-emocional (depres-so, vcio, solido, etc.). A converso ocorre como inter-nalizao da religio acompanhada de mudana decomportamento social e reorganizao da vida em tornode uma comunidade de irmos. Contudo, a conversoevanglica tem implcita a necessidade de dissidncia ins-titucional e uma nova filiao. Porm, como aderir ao ca-tolicismo se j nasci catlico? A contribuio da Renova-

    o conseguir operar uma mudana, ser um novohomem, sem romper com a Igreja. Na verdade, ela pro-move a re-adeso a um novo corpo de fiis atingido pelareligiosidade evanglica dentro da prpria Igreja. Um fluxoem torno de si mesmo. O resultado um fiel que juntaglossolalia com o culto mariano, o que garante catolicidadeao movimento.6

    CONCLUSO

    Neste artigo, no se tentou assentar a discusso naslgicas internas dos diferentes credos, mas sim compreen-der como estas rebatem umas nas outras, e em planos dis-tintos. Seria interessante, portanto, retomar de maneiramais sistemtica, noes que perpassam as diversas reli-gies, tais como a dicotomia bem/mal, justia, pecado,pobreza, sofrimento, salvao, etc., com a finalidade deacompanhar com maior preciso as migraes religiosas.Promover um espelhamento entre as religies, para apreen-der zonas de tenso e regies de fuso, definido pela si-multaneidade de interaes que so desiguais entre si.

    Citam-se a Universal e a Renovao por consider-lasos produtos mais recentes das transformaes do campo

    religioso brasileiro. como se, a partir delas, fosse poss-vel recuperar parte do processo de interao das tradiescatlica, evanglica e afro-kardecista. Esses exemplosmostraram o espraiamento do pentecostalismo pelo cato-licismo e pelo protestantismo histrico (dando origem aoscarismticos e renovados) e, simultaneamente, a absorode prticas e crenas da umbanda, que, por sua vez, re-sultado da articulao entre os universos kardecista e afro-brasileiro com a mediao do catolicismo, este sim, o gran-de doador no s de pessoas, mas tambm de um campo

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    semntico comum s religies no Brasil. Diante deste ce-nrio, o campo religioso ser ainda hoje o campo dasreligies?, para refazer a pergunta-ttulo de um artigo dePierre Sanchis (1995).

    Mencionando novamente a pesquisa sobre Compor-tamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes doHIV/Aids, as perguntas sobre a mobilidade religiosaeram: qual a sua religio atual e em qual voc foi cria-do. Essas perguntas tm dois limites metodolgicos: ocruzamento s mede uma mudana de religio e pressu-pe que, no momento da entrevista, o indivduo s tenhauma filiao. Pela caracterstica do campo brasileiro, no nenhum absurdo supor uma trajetria que apresentassemobilidade institucional (num processo de sucessivasconverses) ou a simultaneidade de vrios credos (como

    se fosse um sincretismo privado).Isto posto, ao invs de citar um dado etnogrfico espe-

    cfico, suponhamos um movimento ideal no campo. Co-mecemos por um religioso de referncia, to comum noBrasil: o catlico no-praticante. Um indivduo quepassou pela Igreja em momentos como batizado, talvezuma comunho e uma crisma, o casamento e, no futuro,receber dela a extrema-uno algum que pode muitobem se declarar sem religio, dependendo do dia em quefor entrevistado, mas, ao descobrir ser portador de umagrave doena, recorrer f catlica, aos santos milagreirose a alguma devoo a Maria. No conseguindo o seu ob-jetivo, recorre umbanda, que lhe promete a cura medianteoferenda de sacrifcio para alguma entidade afro-brasilei-ra. A cura, no entanto, no vem. Ele, ento, assiste na te-leviso os testemunhos de milagres que ocorrem a quemfor Universal; e l se fixa o fiel-doente. A partir de pes-quisa na Igreja Universal, pode-se afirmar que at aquiessa trajetria significativamente observvel.

    Envolvido com o meio evanglico, esse sujeito podeseguir ainda dois caminhos. Primeiro, passar para outrasigrejas histricas. A pesquisa Novo Nascimento pode le-var a esta concluso, uma vez que 25% dos evanglicos

    pertenceram a mais de uma denominao (Fernandes etalii, 1998). O nico problema que o fluxo ocorre prefe-rencialmente das histricas para as pentecostais, e muitopouco no sentido inverso. Um outro caminho possvel, masque precisa de constatao emprica, o fiel-doente apren-der a doutrina da converso e do Esprito Santo na Reno-vao Carismtica e voltar religio da sua tradio: ocatolicismo.

    Evidente que esse conjunto de passagens representa umatrajetria ideal, porm, como dito, plausvel de acordo com

    a bibliografia sociolgica e antropolgica. No se enten-de que exista uma relao de determinao entre as duascirculaes, na qual a mobilidade de fiis seria o suportepelo qual o contedo religioso fluiria. Ou o inverso disso:que a inveno religiosa torna mais plausvel para uns doque para outros a mudana de filiao. As circulaesdevem ser entendidas em planos distintos, porm correla-tas, como se houvesse uma retroalimentao que acele-rasse tanto a mobilidade de fiis quanto o trnsito de pr-ticas e crenas, resultando na inveno religiosa e em novosagrupamentos de pessoas. Acredita-se, contudo, que essacorrelao e interpenetrao devem ser indicadas, em pri-meiro lugar, na trajetria do indivduo (da a necessidadede melhorar as perguntas sobre pertena religiosa, asso-ciando-as a dados qualitativos) e no propriamente na ins-

    tituio. Os circuitos se concretizam e se tornam mais cla-ros na trajetria do indivduo, sendo que o acmulo deexperincias proporcionadas pelo trnsito torna o seu re-pertrio religioso mais amplo do que o pregado pela ins-tituio qual se filiou em determinada etapa da vida.

    NOTAS

    E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]

    Agradecemos a preciosa ajuda de Marta Rovery de Souza e Eduardo Marqus,na anlise dos dados quantitativos, de Maria Dirce G. Pinho e Maria Paula Ferreira,pela preparao do banco de dados e tabulaes.

    1. Esta pesquisa, cuja representatividade da amostra (3.600 indivduos, entre 16e 65 anos, moradores das reas urbanas de 169 microrregies do Brasil) tem acapacidade de inferncia da ordem de 77,7% do universo (constitudo, em 1996,por 77.018.818 pessoas), foi realizada pela rea de Populao e Sociedade doCebrap para o Ministrio da Sade, sob a coordenao da Dra. Elza Berqu. Seuobjetivo principal foi identificar representaes, comportamento, atitudes e pr-ticas sexuais da populao brasileira e conhecimento sobre HIV/Aids, com vistasa estabelecer estratgias de intervenes preventivas das DSTs e HIV (Coorde-nao Nacional de DST/Aids, 2000:11). No questionrio foram includas sete per-guntas (num total de 204) para compreender como as diferentes religies influen-ciam o comportamento sexual. Este artigo vale-se das perguntas sobre religio eas referentes s caractersticas socioeconmicas da populao para discutir umoutro problema: a intensa mobilidade das pessoas pelas religies, que tambm foiconstatada por outras pesquisas, mas em universos menores, como o municpiode So Paulo (Prandi, 1996) e a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro (Fernandeset alii, 1998).

    2. O dicionrio de dados do Censo Demogrfico, que serve de orientao para o

    entrevistador do IBGE, apresentava, em 1980, nove alternativas para a questosobre filiao religiosa, passando para 51, em 1991. Estas 51 alternativas tam-bm foram utilizadas para classificar as respostas dos entrevistados da pesquisaComportamento Sexual da Populao Brasileira e Percepes do HIV/Aids e,posteriormente, agregadas em sete grandes categorias que expressam as princi-pais tradies religiosas no Brasil: catlicos, protestantes histricos, pentecostais,afro-brasileiros, kardecistas, outras e sem religio.

    3. A pesquisa dividiu o territrio nacional em trs grandes regies: CentroX (quecompreende o Centro-Oeste mais os Estados de Minas Gerais e Esprito Santo),NorNor (Norte e Nordeste) e SulX (Sul e Sudeste, menos Minas Gerais e Espri-to Santo).

    4. Nele so associados valores ao nmero de bens de consumo existentes nodomiclio e ao nvel de instruo do chefe da famlia e/ou pessoa de referncia.Tambm so considerados, para essa classificao, o acesso ao nmero de auto-mveis e a existncia de empregadas mensalistas. Este novo critrio de pontua-

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    o permite uma maior aproximao da realidade socioeconmica dos entrevista-dos, alm de poder ser utilizado como proxy da renda familiar (CoordenaoNacional de DST/Aids, 2000:32).

    5. Outras pesquisas confirmam este alto perfil socioeconmico dos kardecistas(Almeida e Chaves, 1998).

    6. Destaca-se este aspecto por consider-lo um dos mais significativos dessehibridismo religioso, porque Maria, para os evanglicos, no pode ser considera-da a me de deus e tampouco objeto de culto, assim como nenhum santo.

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