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TRANSMIDIALIDADE E ESTILO DE OPOSIÇÃO NA ARTE PÓS- MODERNA Edgar Roberto Kirchof 1 1. ESTILO O estilo, enquanto signo, possui um caráter paradoxal: de um lado, pode constituir-se de um conjunto delimitado de padrões estéticos que são copiados ou imitados durante várias gerações, por milhares de anos. Esse fenômeno é especialmente comum em sociedades mais tradicionais, nas quais as similaridades dos padrões estéticos possuem como principal objetivo criar e reforçar laços de identidade e pertença social. 2 Por outro lado, o estilo evolui e se multiplica dinamicamente através de sucessivas transgressões dos padrões anteriores, o que pode ser observado, entre outros, já nas manifestações artísticas da Grécia Antiga (a maneira como o drama grego evoluiu desde Ésquilo até Sófocles e Eurípides, por exemplo), mas principalmente na velocidade com que as escolas artísticas do século XX substituem umas às outras. Essa mesma velocidade também pode ser observada em outros níveis da cultura, principalmente na moda. Esse aparente paradoxo entre o caráter dinâmico e estático do estilo foi notado, entre outros, por Iury Lotman, e elaborado através dos conceitos “arte de identidade” e “arte de oposição”. 3 Ao passo que a primeira é composta de estruturas que procuram corresponder à maior parte das expectativas do receptor, a segunda procura violar e transgredir tais estruturas, buscando seus principais efeitos no estranhamento provocado pelas transgressões. A tradição da 1 Edgar Roberto Kirchof 2 Irinäus Eibl-Eibesfeldt, Die Biologie des menschlichen Verhaltens, p. 933. 3 Iury Lotman, A estrutura do texto literário, p. 460.

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TRANSMIDIALIDADE E ESTILO DE OPOSIÇÃO NA ARTE PÓS-

MODERNA

Edgar Roberto Kirchof 1

1. ESTILO

O estilo, enquanto signo, possui um caráter paradoxal: de um

lado, pode constituir-se de um conjunto delimitado de padrões

estéticos que são copiados ou imitados durante várias gerações, por

milhares de anos. Esse fenômeno é especialmente comum em

sociedades mais tradicionais, nas quais as similaridades dos padrões

estéticos possuem como principal objetivo criar e reforçar laços de

identidade e pertença social.2 Por outro lado, o estilo evolui e se

multiplica dinamicamente através de sucessivas transgressões dos

padrões anteriores, o que pode ser observado, entre outros, já nas

manifestações artísticas da Grécia Antiga (a maneira como o drama

grego evoluiu desde Ésquilo até Sófocles e Eurípides, por exemplo),

mas principalmente na velocidade com que as escolas artísticas do

século XX substituem umas às outras. Essa mesma velocidade

também pode ser observada em outros níveis da cultura,

principalmente na moda.

Esse aparente paradoxo entre o caráter dinâmico e estático do

estilo foi notado, entre outros, por Iury Lotman, e elaborado através

dos conceitos “arte de identidade” e “arte de oposição”.3 Ao passo

que a primeira é composta de estruturas que procuram corresponder

à maior parte das expectativas do receptor, a segunda procura violar

e transgredir tais estruturas, buscando seus principais efeitos no

estranhamento provocado pelas transgressões. A tradição da

1 Edgar Roberto Kirchof 2 Irinäus Eibl-Eibesfeldt, Die Biologie des menschlichen Verhaltens, p. 933. 3 Iury Lotman, A estrutura do texto literário, p. 460.

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semiótica estética e literária tem priorizado o estudo da evolução dos

estilos a partir de seus desvios e transgressões em relação a sistemas

anteriores, em detrimento dos estilos de identidade, o que se explica

pelo fato de que a arte contemporânea tende inequivocamente para

os estilos de oposição. Destacam-se, quanto a essa abordagem, os

trabalhos de Tynianov, Mukarovsky, Dubois, Eco, Koch, entre outros.

Em seu estudo sobre o estilo, em uma perspectiva etológica,

Eibl-Eibesfeldt define-o como aqueles padrões estéticos, geralmente

visuais, criados com o fim de reforçar a identidade de pertença ao

grupo ou cultura mais abrangente. Por outro lado, o autor afirma

existirem também estilos individuais, cuja principal função é veicular

uma imagem positiva do indivíduo perante o grupo a fim de obter

benefícios e de se tornar mais apto do que os concorrentes. Eibel-

Eibesfeldt afirma que o estilo individual também pode ser utilizado

para codificar mensagens, de forma que apenas os membros do

grupo específico sejam capazes de compreendê-las.4

No presente trabalho, elabora-se a hipótese de que o conflito

entre estilos coletivos e estilos individuais revela a dinâmica da

evolução dos estilos, que se resume em um percurso que parte de

“grandes” estilos coletivos e segue em direção à multiplicação de

estilos cada vez mais individualizados. A sobreposição cada vez mais

veloz de novos estilos sobre estilos antigos, nas artes e nos demais

âmbitos da cultura, leva à multiplicação dos estilos individuais e à

conseqüente fragmentação dos estilos coletivos mais abrangentes, de

um lado, minando ou destruindo sua função original de reforço da

identidade grupal (ainda encontrado em sociedades tribais) e, de

outro, reforçando as qualidades específicas de indivíduos, grupos ou

tendências artísticas e estéticas.

Pretende-se argumentar em favor dessa hipótese analisando a

obra icônica a Última ceia, em duas etapas evolutivas: sua versão de

4 Irinäus Eibl-Eibesfeldt, Die Biologie des menschlichen Verhaltens, p. 949.

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Leonardo da Vinci; sua versão “pós-moderna”, de Andy Wahrol. O

principal argumento da análise é que a Última ceia de da Vinci faz

parte de um projeto estilístico mais amplo, reconhecido como o

Cinquecento, e vários de seus elementos formais e temáticos podem

ser reconhecidos claramente nas obras de artistas como

Michelangelo, Raffael, Tiziano, Corregio, entre outros. Já o projeto de

Wahrol não segue um programa estilístico rígido, sendo que sua

ligação com autores como Beuys, Duchamp e Pollock, entre outros,

consiste mais na liberdade com que esses artistas elaboram os temas

e as formas de suas obras do que na partilha de temas e técnicas.

2. DA IDENTIDADE À TRANSGRESSÃO

2.1. ESTILOS DE IDENTIDADE

Na tradição da semiótica literária, Lotman designou as

mensagens estéticas que se repetem durante várias gerações de

“arte de identidade”. Para o autor, esta se caracteriza por fornecer,

antecipadamente, estruturas que correspondem às expectativas do

receptor, sendo que suas estruturas ou regras determinadas podem

se manifestar nos mais diversos níveis da mensagem. Quando o

artista, ao invés de respeitar esse conjunto de expectativas, decide

destruí-lo (no todo ou em parte), o receptor tende a considerar a

obra como de má qualidade, fruto de incompetência, sacrilégio ou

insolência por parte do autor. Lotman considera que, no conjunto da

arte mundial, tomada historicamente, predominam os sistemas

artísticos canônicos ou de identidade, caracterizados mais pela

observância de regras determinadas e esperadas pelo receptor do

que pela sua transgressão. Como exemplo desse tipo de arte, Lotman

cita o folclore de todos os povos do mundo, a arte medieval, a

Commedia dell´Arte e o Classicismo, entre outros.

Em uma perspectiva etológica, a arte de identidade revela

similaridades de padrões estéticos cujo principal objetivo é criar e

reforçar laços de identidade e pertença social. Os padrões,

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geralmente visuais, criados com esse fim, também atuam sobre a

percepção estética do receptor, embora de forma secundária.

Segundo Eibl-Eibesfeldt, esse fenômeno ocorre tanto nas complexas

sociedades modernas como em sociedades mais simples, compostas

de caçadores e coletores.5

Para Eibl-Eibesfeldt, assim como há diversos níveis de

identidade, também há diversos níveis de estilo, que podem variar

quanto ao espectro de abrangência: há estilos extremamente amplos,

que envolvem muitos povos e culturas; há outros mais específicos,

destinados a marcar diferenças entre esses povos; além disso, cada

cultura específica possui uma infinidade de grupos sociais, sendo que

cada um deles cultiva seu próprio estilo. Por fim, existem inclusive os

estilos pessoais, cuja principal função é assinalar a identidade pessoal

frente ao grupo.

2.2. ESTILOS DE TRANSGRESSÃO

Na tradição da semiótica literária, a evolução dos estilos

começou a ser estudada a partir dos trabalhos desenvolvidos pelos

formalistas russos, especialmente J. Tynianov,6 que, pioneiramente,

sugeriu o estudo da evolução literária como “um sistema posto em

correlação com outras séries ou sistemas e condicionados por eles”.7

Posteriormente, Mukarovsky levou adiante essa reflexão a

partir da relação de tensão entre a função e a norma estética. Ao

passo que a função possui como objetivo principal a realização do

prazer estético, a norma pretende ditar as regras necessárias para a

obtenção desse prazer. No entanto, a norma estética não só pode

como é freqüentemente violada, sendo que Mukarovsky considera

como arte mais autêntica justamente aquela que viola os preceitos e

as regras anteriores a si mesma, gerando, no receptor, uma espécie

5 Irinäus Eibl-Eibesfeldt, Die Biologie des menschlichen Verhaltens, p. 933. 6 Cf. Michael Fleischer, Die Evolution der Literatur und Kultur, p. 82. 7 J. Tynianov, Da evolução literária, p. 142.

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de desagrado ou estranhamento. Segundo Mukarovsky, essa

sensação é uma espécie de contraste dialético, necessário para a arte

quando pretende obter a sua máxima intensidade estética.8 Em

outros termos, Mukarovsky prefere a arte de transgressão à arte de

identidade.

Por outro lado, mesmo violando certas regras, uma obra de arte

autêntica jamais chega a violar a todas, pois necessita de um ponto

de contato com o passado para ser reconhecida como tal. Aliás, há

períodos estéticos em que o cumprimento da norma prevalece sobre

a sua negação, o que, como se viu, caracteriza a arte de identidade.

Ao negar uma norma anterior, a obra acaba criando uma nova

norma, que tende a ser imitada por epígonos, até o momento em que

passa a ser consumida sem gerar aquela sensação de desagrado,

típica da obra de vanguarda. A partir de então, também passa a ser

transgredida.

Umberto Eco explica esse fenômeno afirmando que a

mensagem estética se estrutura de modo ambíguo com relação ao

sistema de expectativas que é o código. Na medida em que constrói

relações homólogas em todos os seus níveis estruturais, a mensagem

acaba criando um código particular, que parece se desviar ou mesmo

agredir o código mais geral da cultura. No entanto, deve-se ressaltar

que essa transgressão não é aleatória: “Todos os níveis da

mensagem transgridem a norma segundo a mesma regra.”9 Essa

‘mesma regra’, que pode se manifestar em uma obra específica, no

estilo de um autor ou mesmo no estilo de uma época ou período,

equivale a um código privado e individual; devido ao seu caráter de

regra, mesmo se tratando de uma mensagem que não respeita o

código geral da cultura ou da língua da qual é parasitário, esse

8 id. Função, norma e valor estético como fatos sociais, p. 47. 9 id. ibid., p. 58.

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idioleto estético (o conjunto das características criadas a partir da

transgressão) pode ser reconhecido por qualquer um.

Iury Lotman, por sua vez, elabora esse fenômeno a partir do

conceito “arte de transgressão”. Ao contrário da arte de identidade, a

arte de oposição se caracteriza pela transgressão das estruturas

esperadas pelo receptor. Ao invés de simplificar e generalizar o

conhecimento, dispondo-o em estruturas facilmente reconhecíveis, o

artista de oposição decide impor sua “decisão original”, contrariando,

dessa forma, as expectativas do leitor. Essa atitude leva à

complexificação da obra e de sua percepção.

Em um primeiro momento, a transgressão da arte de

identidade tende a reforçar o estilo individual em oposição ao estilo

coletivo. Somente quando o novo estilo adquire seguidores – o que

nem sempre acontece – pode-se falar de um novo estilo coletivo.

Para Eibl-Eibesfeldt, o estilo individual possui a função de veicular

uma determinada imagem do indivíduo perante o grupo, geralmente

uma imagem que lhe possa trazer algum benefício. Sob o ponto de

vista evolutivo, o motivo principal por que alguém procura chamar a

atenção sobre si, diferenciando-se dos demais, é tornar-se mais apto

do que os seus concorrentes, por exemplo, persuadindo o grupo

sobre a qualidade positiva das próprias ações ou qualidades. Eibel-

Eibesfeldt afirma que o estilo individual também pode ser utilizado

para codificar mensagens, através de recursos estéticos, de forma

que apenas os membros do grupo específico sejam capazes de

compreendê-las. O hermetismo característico de várias correntes

artísticas contemporâneas pode ser interpretado sob essa

perspectiva.

3. A ÚLTIMA CEIA: DE DA VINCI A WARHOL

O conflito entre “estilo de transgressão” e “estilo de identidade”

pode ser exemplificado a partir do modo como a temática da Última

Ceia foi sendo apropriada e remidializada ao longo dos séculos, na

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tradição cultural do Ocidente. Esse mito, originalmente, encontra-se

em alguns textos bíblicos, Mateus 26, 26-29; Marcos 14, 22-25;

Lucas 22, 15-20; Jo 13, 1-30, sendo que adquire, em cada um deles,

nuances semânticas específicas e, por vezes, mesmo contraditórias.

Do texto religioso, eminentemente verbal, esse texto migrou para

outras mídias, sendo que, principalmente na Idade Média, seu

principal meio de expressão foi a pintura.

Neste artigo, será realizada uma breve análise comparativa

entre Última ceia de da Vinci e sua versão pós-moderna, de Warhol.

Ao passo que a primeira obra faz parte de um projeto estilístico mais

amplo, reconhecido como o Cinquecento, e vários de seus elementos

formais e temáticos podem ser reconhecidos claramente nas obras de

artistas como Michelangelo, Raffael, Tiziano, Corregio, entre outros, o

projeto de Wahrol não segue um programa estilístico rígido, sendo

que sua ligação com autores como Beuys, Duchamp e Pollock, entre

outros, consiste mais na liberdade com que esses artistas elaboram

os temas e as formas de suas obras do que na partilha de temas e

técnicas comuns. Esse argumento permite reforçar a tese segundo a

qual evolução dos estilos, ao longo da história da arte, ocorre, de um

lado, como um processo de constante transmidialidade, revelando, de

outro lado, uma dinâmica de conflito entre estilos coletivos e estilos

individuais, cuja principal conseqüência, na arte contemporânea, é a

multiplicação vertiginosa de estilos individuais e a conseqüente

fragmentação de estilos coletivos mais abrangentes.

A pintura realizada por Leonardo da Vinci data de 1498 e se

encontra no refeitório do mosteiro Santa Maria delle Gratia, em Milão.

Para os objetivos do presente artigo, interessa notar que a Última

Ceia de da Vinci está dotada de várias características temáticas e

estruturais típicas daquilo que se convencionou chamar, na história

da arte, de Cinquecento. Quanto aos temas, há o predomínio de uma

visão cristã e bíblica, que se manifesta pela representação da

celebração da Páscoa. Os detalhes visuais estão na repartição dos

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alimentos, na presença de Jesus e dos discípulos, sendo Jesus o

protagonista das ações – na pintura de da Vinci, esse elemento se

evidencia através da colocação de Jesus no centro da cena; no

anúncio da traição por parte de um dos discípulos – evidenciada, na

pintura, através dos gestos de surpresa e consternação por parte dos

discípulos, de um lado, e, de outro, pelo fato de Judas apresentar-se

em um plano anterior aos demais discípulos, comprimido por João e

Pedro. Tanto os textos bíblicos quanto as obras artísticas produzidas

até então, inclusive a obra de Leonardo da Vinci, veiculam

representações muito semelhantes do ponto de vista temático,

embora utilizando mídias diferentes.

No que respeita à estrutura, é interessante notar que da Vinci

utiliza principalmente técnicas recém descobertas oriundas dos

campos da matemática – principalmente a perspectiva – e a

anatomia, sendo que essas técnicas são usadas por vários outros

pintores do Cinquecento. Note a simetria construída intencionalmente

pelo fato de Jesus ocupar o centro da cena, ao passo que os

discípulos estão divididos, primeiro, quanto ao lado direito e esquerdo

em relação a Cristo e, segundo, de acordo com quatro grupos de três.

A repetição dos discípulos, isoladamente, bem como a repetição dos

grupos, caracterizam uma simetria translativa. Já a oposição dos dois

grupos da esquerda aos dois grupos da direita caracteriza uma

espécie de especularização. Esse mesmo jogo de simetrias

translativas e especulares ocorre na representação das janelas por

trás das personagens. Em nenhuma pintura anterior dedicada a esse

tema, encontra-se uma divisão tão proporcional.10 Além disso,

existem vários outros jogos de reiteração: os efeitos atingidos com o

uso da perspectiva não se limitam à ilusão de tamanho proporcionada

pela cena da janela; a fidelidade quanto às características dos objetos

10 Sobre as características estéticas da obra de da Vinci, verificar, entre outros, E. H. Gombrich, op. cit., p.

298-99.

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representados pode ser buscada em todos os elementos

representados. Da mesma forma, todos os elementos da obra

estabelecem relações simétricas uns com os outros, e não apenas as

personagens entre si.

Imagem 1 – Última Ceia, de Leonardo da Vinci.

Entre 1985 e 1986, o artista americano vinculado ao

movimento Pop art realizou uma obra composta de 24 serigrafias, 27

pinturas e 47 colagens em papel como parte do projeto “Warhol – II

Cenacolo”, a serem expostas no Palazzo Stelline, sede do banco

Credito Vatellinese, em Milão. Um dos aspectos mais interessantes

quanto ao Pallazo é o fato de estar situado em frente ao mosteiro

Santa Maria delle Gratia, onde se encontra a obra original de

Leonardo da Vinci.11 Todas as obras realizadas por Warhol para esse

projeto copiam, de forma mais ou menos direta, a obra de da Vinci.

No entanto, ao contrário do que pode parecer, a interpretação que

Warhol realiza de da Vinci é dotada de muito mais liberdade do que a

interpretação que da Vinci realiza tanto das pinturas já existentes até

então quanto dos textos bíblicos.

11 Sobre esse trabalho de Warhol, verificar, entre outros, Corinna Thierolf, All the catholic things, p. 23.

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Andy Warhol, apesar de pertencer ao movimento Pop art,

juntamente com artistas como Robert Rauschberg, Jasper Johns, Roy

Lichtenstein, Claes Oldenburg, Peter Blake, Richard Hamilton e David

Hockney, entre outros, não utiliza os mesmos padrões estéticos e

estilísticos que esses artistas em sua obra. Na verdade, o que liga

todos esses nomes é mais a sua habilidade para expressar o espírito

de uma época a partir de meios diversos e menos a utilização de

padrões estéticos e estilísticos em comum. Conforme notou

Osterwold, “o conceito Pop art não se refere a estilo, mas a uma

concepção geral em relação a fenômenos artísticos ligados

concretamente com os sentimentos de vida de um período histórico

específico.”12 A maior parte das características atribuídas a esse

movimento se refere, portanto, à maneira como seus correligionários

tratam de temas como consumismo, euforia em relação ao progresso

tecnológico, a popularização da informação através dos meios de

comunicação de massa.13 Além disso, a Pop art se define como a

negação de todos os estilos bem como de todas as definições

tradicionais da arte, o que permite caracterizar suas obras como anti-

arte.14

Para realizar suas reproduções, Warhol não utilizou a pintura do

mosteiro Santa Maria delle Gratia como modelo original, mas várias

réplicas da obra de da Vinci: uma cópia do século XIX, alguns

esboços produzidos por artistas famosos (como Rembrant), retirados

de uma enciclopédia de obras e artistas, juntamente com algumas

maquetes de plástico.15 Além disso, Warhol combinou as reproduções

da obra de da Vinci com a reprodução de vários objetos triviais, como

embalagens, motos, etiquetas de preços, etc. Para os artistas pop, de

forma geral, a reprodução de objetos triviais possui a finalidade de

12 Tilman Osterwold, Pop art, p. 6. 13 id., ibid., p. 11. 14 id., ibid., p. 55. 15 Corinna Thierolf, op.cit., p. 25.

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apontar para o problema do consumismo na sociedade

contemporânea. Nesse contexto, Andy Warhol é considerado um dos

artistas mais radicais, pois não pretende apenas apresentar objetos

vulgares através de sua arte e sim, transformar a própria arte em

objeto vulgar.16 Na reprodução abaixo, podem-se ver, entre outros,

algumas motos bem como a etiqueta com o preço 6,99.

Imagem 2 – A última ceia, de Andy Warhol.

Outro recurso utilizado por Warhol é a combinação das

reproduções com marcas e logotipos de produtos conhecidos. As

principais marcas utilizadas, nesse caso, são as do cigarro Camel, Mr.

Peanuts, a de companhias como a General Eletrics ou a marca do

sabonete Dove, mas também de algumas companhias menos

conhecidas, como uma fábrica de molhos original de Pittsburg (a

cidade natal de Warhol), cujo logotipo é o número 57 (57 tipos de

molho), ou da companhia Wise, que produz batatas fritas e possui,

como logotipo, o olho de uma coruja.

16 Tilman Osterwold, op. cit., p. 167.

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Imagem 3 – A última ceia, de Andy Warhol.

Como se percebe, ao passo que a arte de da Vinci está imersa

na aura do cristianismo, respectivamente, na simbologia ligada ao

ritual da Santa Ceia, a obra de Warhol caracteriza-se como uma

afronta ou um ataque a essa aura. O próprio tema da originalidade é

questionado pelo fato de o artista desconsiderar o original enquanto

modelo e pelo fato de a obra constituir-se de uma série de

reproduções: a instalação realizada em Milão possui de mais de 80

trabalhos. Conseqüentemente, o conteúdo propriamente religioso e

metafísico, presente na obra de da Vinci, sofre um esvaziamento ou

um apagamento através da obra de Warhol.

Além disso, em termos estruturais, as obras de Warhol não

veiculam qualquer efeito realista, buscado por da Vinci e seus

contemporâneos. A maior parte das recorrências estéticas da versão

original são como que apagadas na obra de Warhol, não apenas

devido ao não-realismo das reproduções, mas também devido às

sobreposições de objetos, marcas, logotipos, cores, camuflagens e

outros recursos, que, em muitos casos, impedem uma visualização

clara da cena. Pode-se dizer que a combinação de uma obra

renascentista com símbolos oriundos da cultura comercial e

massificada do século XX é uma incongruência estética per se,

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contribuindo para o apagamento do ideal estético atingido pela arte

de Leonardo da Vinci.

Desse modo, podemos concluir que, a partir da comparação

entre a obra de da Vinci e a de Warhol, existe um dialogismo

claramente transmidial, pois, apesar de Warhol fazer uso de uma

matriz pertencente à tradição artística ocidental, não se limita a

copiá-la, realizando uma verdadeira transfiguração midiática. Além

disso, essa transmidialidade também permite perceber que, na

dinâmica da evolução dos estilos da arte ocidental, tem ocorrido uma

espécie de fragmentação cada vez mais intensa dos “grandes estilos”,

abrindo-se espaço para estilos cada vez mais individualizados. Em

poucos termos, na arte contemporânea, o estilo de oposição

prevalece sobre o estilo de identidade.

REFERÊNCIAS EIBL-EIBESFELDT, Irinäus. 1995. Die Biologie des menschlichen Verhaltens: Grundriss der Humanethologie. München & Zürich: Piper.

GOMBRICH, E. H. Die Geschichte der Kunst. 2002. Berlin: Phaidon.

KIRCHOF, Edgar Roberto. Estética e biossemiótica. Porto Alegre: IEL & Ed. da PUCRS, 2008.

LOTMAN, Jurij M. 1970. Die Struktur literarischer Texte. München: Fink.

OSTERWOLD, Tilman. Pop art. 2003. Köln: Taschen.

SCHNECKENBURGER, Manfred. Die direkte Sprache der Realität. In: WALTHER, Ingo F. Kunst des 20. Jahrhunderts. 2005. Köln: Taschen, 2. Band, p. 509-523.

SCHULZ-HOFFMANN, Carla. “Are you serious or delirious?” Vom Last Supper und anderen Dingen. In: WARHOL, Andy. The Last Supper. Staatsgalerie moderner Kunst München. 1998. Cantz: München, p. 9-21.

SYRE, Cornelia. Das Abendmahl des Leonardo da Vinci: Geschichte und Rezeption. In: WARHOL, Andy. 1998. The Last Supper. Staatsgalerie moderner Kunst München. Cantz: München, p. 103-107.

Thierolf, Corinna. All the catholic things. In: WARHOL, Andy. The Last Supper. Staatsgalerie moderner Kunst München. 1998. Cantz: München, p. 22-54.

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WARHOL, Andy. The Last Supper. Staatsgalerie moderner Kunst München. 1998. Cantz: München.