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Tratado das coisas da China

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Introdução, modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro do texto da autoria de Frei Gaspar da Cruz.

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TRATADO DAS COISAS DA CHINA

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Frei Gaspar da Cruz

TRATADO DASCOISAS DA CHINA

(ÉVORA, 1569-1570)

Introdução, modernização do texto e notas deRui Manuel Loureiro

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© 12.19 — Sociedade Editora de Livros de Bolso, Lda.Apartado 24871112-001 Lisboa Codex

Título: Tratado das coisas da ChinaAutor: Frei Gaspar da CruzIntrodução, modernização do texto e notas: Rui Manuel LoureiroCapa: Pormenor de uma gravura do Itinerario de Linschoten (finais do séc. XVI), que

representa um junco chinês

Junho 2010ISBN 978-989-8231-24-6

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Índice

Nota preambular p. 9Introdução 11

Tratado das coisas da China de Fr. Gaspar da Cruz 55

Relação da Crónica dos reis d’Ormuz... 267

Bibliografia 281

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Nota preambular

Os editores decidiram em boa hora dar de novo àestampa esta edição, originalmente publicada em 1997 (Lis-boa, Edições Cotovia), do célebre Tratado das coisas daChina do dominicano frei Gaspar da Cruz, a primeira obraexclusivamente dedicada ao Celeste Império a ser impressana Europa (Évora, 1569-1570). Trata-se de uma edição emleitura modernizada, que tentou resolver, penso que deforma satisfatória, os muitos problemas de leitura causadospor frequentes lapsos tipográficos e por uma prosa própriado século de Quinhentos, sem dúvida, mas que nem sempreprima pela clareza. A modernização de textos antigos é umtema sempre controverso nos meios académicos, questio-nando-se em determinados sectores a legitimidade de umtal procedimento, que não pode deixar de introduzir altera-ções graves num objecto cultural que tem a sua própriaespecificidade histórica. Pode argumentar-se, contudo, queo impresso quinhentista que chegou às nossas mãos não énenhum original, antes foi manuseado, alterado, deformadopor editores, correctores, censores e tipógrafos. Além domais, as modernas técnicas de reprodução documental per-mitem um acesso fácil e imediato a fac-símiles do texto ori-ginal. Assim, as acrescidas possibilidades de difusão que amodernização proporciona a um texto quinhentista pare-cem justificar todos os riscos de anacronismo que se correm.

Aquando da edição original, pareceu oportuno anotarcopiosamente o Tratado de Fr. Gaspar, esclarecendo todas e

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quaisquer dúvidas que a obra pudesse eventualmente colo-car ao leitor não especializado. Nesta tarefa, tomei comoponto de partida, obviamente, as notas de Charles R. Boxerà edição já clássica da Hakluyt Society, South China in theSixteenth Century (Londres, 1953), que aqui foram substan-cialmente modificadas e alargadas, com base em pesquisasque a seu tempo desenvolvi sobre a matéria da China. Afi-gurou-se ainda pertinente, para além dos esclarecimentosprestados nas notas de rodapé, preceder a versão moderni-zada do Tratado de um texto introdutório, onde a obra defrei Gaspar da Cruz é devidamente contextualizada, e ondese analisam alguns dos seus aspectos mais relevantes. Aocontrário do que sucedera na edição de 1997, foi agora pos-sível utilizar a presente edição do Tratado nas citações dotexto introdutório, que, entretanto, recorre ao sistemaPinyin, hoje vulgarizado, para as romanizações do chinês.Infelizmente, nas notas de rodapé ao próprio texto de Fr.Gaspar da Cruz não foi possível alterar as romanizaçõesefectuadas através do sistema Wade-Giles, ainda em vogana década de 1990, convertendo-as para o novo sistema.Para uma tal disparidade, que se fica a dever a razões deordem técnica, desde já se solicita a maior benevolência doseventuais leitores.

Lagos, Maio de 2010 Rui Manuel Loureiro

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Introdução

O reinado de el-Rei D. Sebastião parece ter sido espe-cialmente propício à impressão de obras dedicadas à expan-são lusitana pelos mundos ultramarinos. Depois de 1557,com efeito, multiplicam-se as edições de tratados, crónicas,cartas e itinerários, que relatavam os principais feitos danossa gente, em incansáveis andanças por terras e mareslongínquos. Muitas dessas obras, ao mesmo tempo, procu-ravam descrever os cenários exóticos onde os portuguesesdesenvolviam as suas actividades, revelando, de passagem,realidades geográficas e humanas anteriormente desconhe-cidas.

Uma das mais curiosas publicações que então saiu dosprelos foi o Tractado em que contam muito por estenso as cou-sas da China, da autoria de Fr. Gaspar da Cruz, que ia dedi-cado precisamente “ao muito poderoso Rey dom Sebastiamnosso señor”. O missionário dominicano, por razões várias,decidira sistematizar num volume único todo o vasto con-junto de notícias então disponíveis sobre o Celeste Império,que corriam manuscritas, ou que andavam dispersas porobras várias, de finalidades e objectivos distintos. O Tratadodas coisas da China, impresso em Évora, em 1569-1570, 1

1 O frontispício regista “Impresso com licença .1569.”; mas o cólofonacrescenta “Acabouse aos .xx. dias de Feuereiro de mil quinhentos & setenta”(Fr. Gaspar da Cruz, Tractado, ed. 1569-1570, frontíspíco e fl. l.viij, respectiva-mente). A obra, começada a imprimir ainda durante o ano de 1569, teria sidoconcluída apenas em Fevereiro de 1570, portanto.

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por André de Burgos, era a primeira obra exclusivamentededicada à China a ser publicada na Europa.2 Fr. Gaspar daCruz, compilando rigorosa e exaustivamente um extensoleque de materiais, conseguira produzir uma síntese aca-bada da visão portuguesa da China, que culminava, de umaforma quase perfeita, um longo período de contactos direc-tos e de recolha de informações em primeira-mão, que seiniciara nos primeiros anos de Quinhentos.

Desventuras asiáticas de Fr. Gaspar

Fr. Gaspar da Cruz terá nascido em Évora, em ano quenão se consegue apurar, e também em data incerta foi admi-tido no convento de Azeitão da Ordem dos Pregadores.3

Uma vez completada a sua formação religiosa e cultural, foiintegrado num grupo de nove frades que embarcaram paraa Índia em 1548, sob as ordens de Fr. Diogo Bermudez,com o propósito de fundarem uma missão dominicana noOriente.4 Durante cerca de seis anos Fr. Gaspar dedicou-seao trabalho apostólico no litoral do Indostão, missionandocertamente em Goa, Chaul e Cochim, localidades onde asua Ordem abriu as primeiras residências.5 Durante esteperíodo, que tão-pouco está documentado, o nosso domini-

2 A obra de Fr. Gaspar da Cruz, em termos rigorosos, não era exclusiva-mente dedicada à China, uma vez que incluía ainda, em apêndice, uma “Rela-çam da Cronica dos Rey Dormuz, & da fundaçam da cidade Dormuz” (ibi-dem, fls. l.ijv-l.viij).

3 Sobre a vida de Fr. Gaspar, vd. Fr. Luís de Sousa, História de SãoDomingos, pt. 3, liv. 4, cap. 8; e Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana,vol. 2, pp. 347-348. Vd. ainda Charles R. Boxer, South China, pp. lviii-lxvii; eAníbal Pinto de Castro, “Introdução”, pp. lviii-lxvi.

4 Documentação — Índia, vol. 4, pp. 253-259. 5 Documentação — Índia, vol. 7, pp. 375, 389 e 395.

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cano visitou ainda as “muitas e muito grandes cristanda-des” da ilha de Ceilão.6

Em 1554, Fr. Gaspar da Cruz encontrava-se emMalaca, “fundando uma casa” da sua Ordem “e pregando”aos cristãos da terra.7 Terá talvez viajado na mesma nau quenesse ano trouxe da Índia o Pe. Melchior Nunes Barreto eFernão Mendes Pinto, que seguiam a caminho do Japão,com uma embaixada do Estado da Índia para o dáimio japo-nês de Bungo. O nosso missionário demorou-se na cidadeaté Setembro de 1555, data em que embarcou num navio demercadores com destino ao reino do Camboja.8 Algunsrumores chegados à praça portuguesa indicavam que osoberano local pretendia admitir missionários europeus nosseus territórios, com o objectivo de ter “noticia do Criadordo ceo e da terra”, e conhecer em pormenor a “lei evange-lica em que vivem os christãos”.9

Fr. Gaspar, apesar da oposição generalizada de “todosquantos havia em Malaca”, decidiu partir para o Camboja,tanto mais que possuía licença para tal do seu “prelado”.10

Uma vez que haviam sido os próprios mercadores portu-gueses a informar o dominicano dos desejos do monarcacambojano, é provável que os jesuítas fossem os responsá-veis pelas dificuldades levantadas à sua partida. Os padresda Companhia de Jesus, que praticavam então uma aproxi-mação cuidadosa às culturas asiáticas, temiam certamente oexcessivo zelo apostólico de outros missionários, que pode-ria revelar-se contraproducente. No caso de Fr. Gaspar daCruz, alguma razão teriam, pois o dominicano deu provas,

6 Fr. Gaspar da Cruz, Tratado, Prólogo, p. 63. 7 Tratado, cap. 1, p. 71.8 Documenta Indica, vol. 3, p. 364. 9 Documenta Indica, vol. 3, p. 364. Cf. Documenta Indica, vol. 3, pp. 152-

-153.10 Tratado, cap. 1, pp. 71-72.

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em repetidas ocasiões, de uma persistente intransigênciaface às crenças religiosas dos povos que contactou.11

Em finais de 1555, o nosso missionário aportava ao lito-ral do Camboja, de onde seguiu em direcção a “Loech”, acapital do reino,12 navegando pelo Mekong adentro, “aolongo de muitas terras incultas e despovoadas, de grandesmatos e arvoredos”.13 Durante cerca de um ano, permane-ceu em território cambojano, viajando um pouco através doreino, acompanhado, ao que parece, por mercadores portu-gueses, tentando fazer algum “fruto” entre os gentios.14

Porém, como veio a verificar, as notícias que circulavam emMalaca, a respeito dos anseios religiosos de Ang Chan,eram completamente falsas. O monarca cambojano apenaspretendia saber se Fr. Gaspar “era feiticeiro”. Perante a res-posta negativa do intérprete, desinteressou-se por completodo missionário português.15 Mais ainda, os monges budistaslocais, a que chama “brâmanes”, eram muito dados “a seusritos e idolatrias”, logo, particularmente difíceis de conver-ter, para além de gozarem de um enorme ascendente sobreo soberano.16

Em finais de 1556, na sequência de alguns “desarranjosde portugueses”, Gaspar da Cruz, confrontado com tantos“inconvenientes” que dificultavam o trabalho apostólico,decidiu abandonar definitivamente o Camboja, que se reve-lara um campo missionário particularmente estéril.17 Escu-tando de novo rumores que circulavam entre as comunida-des de mercadores lusitanos, resolveu tentar a sorte no

11 Cf. Tratado, cap. 1 e cap. 27.12 Tratado, cap. 3, p. 94.13 Tratado, cap. 3, p. 93.14 Tratado, cap. 1, p. 71.15 Tratado, cap. 1, p. 73.16 Tratado, cap. 1, p. 73. Sobre a experiência de Fr. Gaspar da Cruz no

Camboja, cf. Tratado, caps. 1 e 3. Vd. Donald F. Lach, Asia in the Making ofEurope, vol. 1, pp. 565-568.

17 Tratado, cap. 1, p. 76.

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litoral da China, de onde chegavam notícias sobre a reaber-tura dos portos cantonenses ao tráfico estrangeiro. E antesde terminar o ano já se encontrava em Lampacau, pequenailha da Baía de Cantão, onde os navios lusitanos então cos-tumavam ancorar.

Em Dezembro, o incansável missionário obtivera auto-rização dos mandarins chineses para se dirigir à grandemetrópole do Guangdong, onde, tal como era hábito entreos seus compatriotas, estanciou durante um mês.18 Fr. Gas-par da Cruz não encontrou no litoral chinês melhores con-dições para a propagação da doutrina cristã. Por um lado,os portugueses não podiam ali permanecer por tempo inde-finido, uma vez que as suas visitas eram cuidadosamentesupervisionadas pelas autoridades. Assim, dificilmente seconseguiria desenvolver um trabalho apostólico sério e con-tinuado.19 Por outro lado, a gente do povo vivia totalmentesubjugada pelos loutiás ou mandarins, de modo que nin-guém se atreveria a aceitar uma nova crença sem explícitalicença dos funcionários superiores do governo provincial.Nestas condições, como refere o autor do Tratado, “é impos-sível poderem religiosos pregar nem frutificar”, como ohaviam comprovado as anteriores tentativas dos “da Com-panhia”. Repetindo a opinião de alguns dos seus predeces-sores jesuítas, o padre dominicano concluía que a entradade religiosos na China apenas seria viável se a Coroa lusi-tana despachasse uma embaixada para Pequim. A comitivaoficial integraria alguns padres, que na capital solicitariamao imperador “licença para andarem pela terra”, fazendosua “pregação” livremente.20

Apesar de se gorarem por completo os seus eventuaisprojectos de missionação, o nosso dominicano não perdeutempo, e parece ter aproveitado ao máximo a curta estada

18 Cf. Tratado, caps. 10 e 28.19 Cf. Tratado, cap. 28.20 Tratado, cap. 28, p. 260.

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em Cantão. Assim, calcorreou exaustivamente toda acidade, observando ruas, casas e templos, trocando impres-sões com gente oriunda de variados estratos sociais,21 fre-quentando audiências dos mandarins, avaliando hábitos ecostumes, documentando-se sobre práticas culturais e reli-giosas, enfim, recolhendo informações sobre os mais varia-dos aspectos da realidade chinesa. Paralelamente, o nossoautor entrevistou portugueses bem experientes nas coisas daChina, todos “pessoas dignas de fé”, conseguindo inclusiva-mente obter uma cópia de um “compêndio que [fez] umhomem fidalgo que cativo andou pela terra dentro”.22

Fr. Gaspar referia-se ao tratado de Galiote Pereira, antigoprisioneiro que chegara a Sanchoão em finais de 1552,depois de passar vários anos em prisões chinesas.23 O mis-sionário eborense, comprovando os seus amplos recursos,pôde ainda adquirir, durante a estada em Cantão, traduçõesde documentos chineses relacionados com a nossa presençano Celeste Império.

De Cantão a Setúbal, mistérios de um itinerário

Fr. Gaspar, embora muito impressionado com a civiliza-ção chinesa, de que traçaria mais tarde um elaborado retrato,não se demorou nos portos da China, onde ainda não pare-ciam estar reunidas as condições essenciais ao desenvolvi-mento de uma actividade missionária frutuosa. Assim, em

21 Tratado, cap. 4, p. 101 (“Afirmou-me um china velho”); cap. 11,pp. 151-152 (“Afirmavam alguns mercadores chinas”; “fui informado por viados regedores”); e cap. 17, p. 188 (“pratiquei com homens discretos”).

22 Tratado, Prólogo, p. 66.23 Cf. Tratado, cap. 8.

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princípios de 1557 rumava novamente a Malaca, onde terápermanecido pelo menos até Setembro.24 A partir daqui,perde-se o rasto do dominicano, que talvez tenha efectuadoum périplo pela Insulíndia antes de regressar ao litoral doIndostão. Com efeito, um documento posterior sugere que,por estes anos, um “fraile” da Ordem de São Domingos,“veniendo por la China”, estanciou durante algum tempo nailha “de los Macaçares”, onde se teria fixado “si la obedientiaque traía le non obrigara venir a Guoa”25. Outro documentocoevo refere que em princípios de Dezembro de 1559 che-gava a Malaca um navio com “grandes emformaçõens” sobrea cristandade de Macassar.26

Tudo leva a crer que se trataria do nosso Fr. Gaspar,que assim, talvez no cumprimento de instruções superiores,realizara mais uma jornada de prospecção missionária,entre finais de 1557 e finais de 1559. Embora tal nuncafosse sugerido, é provável que o autor do Tratado, tal comoo tinha feito o Pe. Francisco Xavier na década anterior, esti-vesse em vias de efectuar um levantamento sistemático daspossibilidades de missionação na Ásia Oriental, em prol dasua Ordem, visitando sucessivamente Malaca, o Camboja, aChina e as Celébes. Entretanto, em data incerta, Fr. Gasparvisitou igualmente a “terra onde o apóstolo São Tomé pade-ceu martírio”, a que os portugueses chamavam “São Tomé,e os da terra Meliapor”,27 o que parece confirmar a inten-cionalidade de um périplo geral por toda a Ásia marítima.

Posteriormente, Fr. Gaspar da Cruz ter-se-á dirigido aolitoral ocidental da Índia, onde permaneceu durante algunsmeses. Em Abril ou Maio de 1560, de acordo com um relató-rio jesuíta, alguns “Padres de Sam Domingos” partiam deGoa para Ormuz, com o objectivo de ali darem início a uma

24 Documenta Indica, vol. 3, p. 685. 25 Documenta Indica, vol. 5, p. 190.26 Documenta Malucensia, vol. 1, p. 306.27 Tratado, cap. 27, p. 250.

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residência da sua Ordem.28 O nosso missionário fazia decertoparte deste grupo, pois um historiador dominicano, escre-vendo em princípios do século XVII, afirma explicitamenteque Fr. Gaspar foi enviado para Ormuz “pregar o Evangelhodepois de tornar da China”29. Os frades, achando as casasjesuítas desocupadas, “meterom-se nellas”, ali fazendo “seumoesteiro”30. Entretanto, a Companhia de Jesus, “por ser aterra muito doentia” e “muito devassa e occasionada paramales”, resolveria um pouco mais tarde fechar a sua missãonaquela ilha, aproveitando a oportunidade de ali se encontra-rem religiosos de outra denominação.31

Durante os três anos seguintes, o autor do Tratado resi-diu em Ormuz,32 dando assistência religiosa ao contingenteportuguês que estacionava na fortaleza, que nessa época secompunha de “400 até 600” homens.33 Mas aquele entre-posto do golfo Pérsico, situado em território islâmico, erauma “terra mui fronteira ou de guerra”, onde dificilmentese faria “mais fructo que confesar e pregar aos soldados”.34

Por isso, antes de meados de 1563 já o nosso irrequietofrade abandonava Ormuz, com destino a parte incerta.É provável que tivesse regressado aos portos indianos.

Nada se consegue apurar sobre Fr. Gaspar da Cruz nosanos imediatos. O seu regresso a Portugal tem sido datadode 1569, sem qualquer justificação documental.35 Mas é

28 Documenta Indica, vol. 5, p. 200.29 Fr. João dos Santos, Etiópia Oriental, pt. 2, liv. 2, cap. 2, p. 55.30 Documenta Indica, vol. 5, p. 200.31 Documenta Indica, vol. 7, p. 577. 32 Tratado, pp. 278-279. Durante este período, o dominicano compilou a

“Relação da Crónica dos Reis d’Ormuz”, que figura em anexo à sua obra (Tra-tado, pp. 267-279).

33 Documenta Indica, vol. 5, p. 741. Sobre os portugueses em Ormuz, vd.Dejanirah Couto & Rui Manuel Loureiro, Ormuz, passim.

34 Documenta Indica, vol. 5, p. 741. 35 Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, vol. 2, p. 347; e Char-

les R. Boxer, South China, p. lx.

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provável que fosse ele o “Pe. Frai Gaspar” que em 1564embarcou em Goa, na Drago, com destino ao Reino.36 Estegaleão, em virtude de uma partida demasiado tardia, foraobrigado a invernar na ilha de Moçambique, de onde pros-seguiu viagem em finais do ano.37 Após esta viagem,Fr. Gaspar só volta a aparecer em Lisboa anos mais tarde,colaborando na luta contra a violenta peste que em 1569assolava a capital.38 Uma vez debelada a enfermidade nestacidade, o nosso dominicano passou a Setúbal, onde o “pes-tifero mal” recrudescera; porém, contraindo ele próprio adoença, aí veio a falecer em “5. de Fevereiro de 1570”.39

Singularidades de uma edição

Duas semanas mais tarde, como vimos, o impressorAndré de Burgos publicava em Évora o Tratado das coisasda China, da autoria de Fr. Gaspar da Cruz. A escolha daoficina tipográfica parece sugerir que o missionário, após oregresso do Oriente, se teria estabelecido no mosteiro ebo-rense da Ordem de São Domingos. Caso Fr. Gaspar tivessechegado a Lisboa em 1569, em meados do ano, como se

36 Documenta Indica, vol. 6, p. 291. O Pe. Fernandes declara que se tra-tava de “Frai Gaspar, frayle de S.Francisco” (Documenta Indica, vol. 6, p. 291).Mas parece de admitir um erro involuntário na designação da ordem religiosa,pois não há notícias, por esses anos, de qualquer franciscano chamado Gasparter estanciado na Índia (cf. Fr. Paulo da Trindade, Conquista Espiritual, vol. 1,passim).

37 Documenta Indica, vol. 6, p. 243. Vd. Josef Wicki, “Duas cartas ofi-ciais”, p. 68.

38 Fr. Luís de Sousa, História, pt. 3, liv. 6, cap. 9. Sobre a grande peste de1569-1570, que teria provocado mais de 60000 mortes, vd. Mário da Costa Roque, “A ‘Peste Grande’”, pp. 71-90.

39 Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, vol. 2, p. 347.

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tem pretendido,40 numa altura em que a peste já fizera mui-tas vítimas, dificilmente teria oportunidade de preparardevidamente a edição da sua obra. Mas se o nosso autor,como aqui se propõe, chegou ao Reino na primeira metadede 1565, teve pelo menos quatro anos para organizar osmateriais que recolhera durante a expedição a Cantão epara sistematizar os seus apontamentos com o devido vagar.O Tratado, com efeito, não parece ser um texto apressada-mente redigido para os prelos, mas ostenta antes caracterís-ticas de uma obra meticulosamente preparada. As notíciasda China são organizadas em conjuntos coerentes, muitobem estruturados, que abrangem, por assim dizer, a totali-dade dos conhecimentos portugueses sobre aquele impérioasiático. O próprio autor expõe, na abertura da sua obra, aordem que presidiu à redacção.

Em primeiro lugar, o Tratado aborda a “China emgeral”, descrevendo a disposição geográfica da terra e ascaracterísticas das gentes que a habitam. Em segundo lugar,debruça-se sobre a organização administrativa do “reino eprovíncias”. Depois, trata dos edifícios, e também dasembarcações, que na China são lugares de moradia. Emquarto lugar, são referidas as actividades a que os chinesesse dedicam e, complementarmente, o modo de “aproveita-mento das terras”. A seguir, vem a descrição dos “seus usose costumes”, incluindo formas de vestuário, práticas ali-mentares e modos de diversão. Em sexto lugar, aparece aanálise do sistema de governo chinês, com particular desta-que para os “que regem a terra”. E “no fim de tudo”, háainda lugar para os “cultos e adorações” dos chineses.41

Fr. Gaspar da Cruz não respeita o seu próprio plano deuma forma rigorosa. Porém, o conteúdo da obra de modoalgum desmente as advertências lançadas na sua abertura,

40 Charles R. Boxer, South China, p. lx.41 Tratado, Aviso aos Leitores, pp. 69-70.

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pois aborda todos os aspectos focados, e ainda muitos mais,como é o caso de uma resumida história das relações luso--chinesas no período anterior a 1556.42 O padre domini-cano, de facto, compilava de uma forma bastante exaustivatodas as notícias sobre o Celeste Império que, desde os pri-mórdios de Quinhentos, haviam sido recolhidas pelosobservadores portugueses.43 O Tratado das coisas da China,de uma forma brilhante, sistematizava as imagens resultan-tes de um longo, e nem sempre pacífico, convívio lusitanocom a realidade chinesa.

O aparecimento do Tratado parece ter ficado a dever--se, sobretudo, à viva curiosidade, ao enorme empenho etambém aos inegáveis dotes literários do seu autor. Comefeito, muitos outros portugueses haviam visitado a Chinaantes do dominicano, por vezes de uma forma bastantemais demorada. E entre eles encontravam-se missionáriosjesuítas, os religiosos que em primeiro lugar demandaramo litoral chinês. Alguns desses homens tinham mesmocomposto relações extensas sobre as respectivas andançaschinesas. Mas ninguém, até então, se abalançara à redac-ção de um tratado tão desenvolvido sobre a realidade chi-nesa. Fr. Gaspar, como resultado de uma estada de algu-mas semanas em território do Celeste Império, era oprimeiro a tomar a iniciativa de publicitar o resultado dassuas indagações.

É provável que o dominicano gozasse de uma maiorautonomia, em termos de produção escrita, do que ospadres jesuítas, submetidos a uma rígida máquina adminis-trativa, que impunha regras muito precisas ao trabalho inte-lectual dos seus membros. Aliás, a Companhia de Jesus sub-metia as suas publicações a uma lógica propagandísticamuito clara, apenas lhe interessando a edição de escritos

42 Tratado, caps. 23-26.43 Para uma perspectiva geral da imagem da China, vd. Rui Manuel Lou-

reiro, Fidalgos, Missionários e Mandarins, passim.

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onde fosse devidamente salientado o papel dos seus missio-nários nos progressos da evangelização dos territórios ultra-marinos.44 Ora, na China, por enquanto, nada havia a divul-gar, uma vez que os chineses se revelavam particularmenteavessos a todas as tentativas de cristianização.

Em todo o século XVI, antes ou depois de 1569-1570,nenhuma obra impressa seria exclusivamente dedicada aqualquer outra região asiática,45 apesar de existirem consi-deráveis materiais manuscritos, nomeadamente sobre asilhas de Malucas e o Japão.46 Aqui ainda, as circunstânciasparecem ter auxiliado Fr. Gaspar. As informações sobre oJapão quase constituíam, na prática, um monopólio daCompanhia de Jesus, que regulava soberanamente a suadifusão. Quanto às ilhas Malucas, permaneciam uma áreasensível, uma vez que os espanhóis continuavam a deman-dar aquele arquipélago oriental de uma forma regular, ten-tando estabelecer uma base firme nas Filipinas.47 Assim, asinformações respeitantes àquele arquipélago assumiamainda um carácter sigiloso, nada propício à respectiva difu-são em letra de forma.

A China como objecto literário, segundo parece, reu-nia todas as vantagens. Em primeiro lugar, os portugueses

44 Sobre as edições de cartas jesuítas, vd. José Manuel Garcia, Ao Encon-tro dos Descobrimentos, pp. 234-243; sobre a lógica editorial da Companhia deJesus, vd. Donald F. Lach, Asia in the Making of Europe, vol. 1, pp. 314-331.

45 Vd. José Manuel Garcia, Ao Encontro dos Descobrimentos, pp. 195-216.46 António Galvão compilara um extenso tratado sobre as ilhas de

Maluco. Quanto ao Japão, fora objecto de várias informações jesuítas. Sobreas fontes relativas a estas duas regiões asiáticas que estavam disponíveis emQuinhentos, vd. Donald F. Lach, Asia in the Making of Europe, vol. 1, pp. 592--623 (Maluco) e pp. 652-688 (Japão).

47 Em 1565, Fr. Andrés de Urdañeta, piloto da expedição de MiguelLópez de Legazpi, descobrira finalmente a rota de regresso ao litoral ameri-cano, permitindo, a partir de então, o estabelecimento dos espanhóis nas Fili-pinas. Vd. M. Lourdes Diaz-Trechuelo, “Filipinas y el Tratado de Tordesillas”,pp. 229-240.

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frequentavam livremente o litoral chinês, sem concorrên-cia de qualquer outra potência europeia. A supremacialusa naqueles longínquos mares não parecia estar minima-mente em causa. Em segundo lugar, os nossos navegado-res e viajantes tinham conseguido reunir um vastíssimocabedal de notícias sobre os mais variados aspectos da rea-lidade sínica. E Fr. Gaspar fora suficientemente diligentena procura e compilação de todo este material disperso.Em terceiro lugar, o Celeste Império continuava a ser umaregião marginal, relativamente aos interesses mais imedia-tos do Estado da Índia. Em princípio, nenhum motivoimpediria a divulgação de informações a seu respeito.Finalmente, a própria civilização chinesa, pelas suas carac-terísticas intrínsecas, impunha-se como um tema suficien-temente exótico para despertar a atenção de potenciaisleitores.

Enfim, poderia dizer-se que estavam reunidas todas ascondições para a redacção de um tratado, pois a matéria daChina apenas aguardava o aparecimento do seu cronista,papel que, inesperadamente, foi assumido por Fr. Gasparda Cruz. As condições materiais de publicação foramgarantidas por André de Burgos, impressor espanhol quepelo menos desde 1553 exercia intensa actividade editorialem Évora.48 É provável que o Tratado tivesse sido patroci-nado pelo monarca lusitano, que por esses anos estanciavafrequentemente naquela cidade49, e a quem, de resto, é diri-gida a obra. André de Burgos, sabendo do muito interesseque el-Rei demonstrava pelas “coisas novas”, e “em especialas da China”, determinara imprimir “este tratado em que se

48 A.J. Anselmo, Bibliografia, pp. 102-113.49 D. Sebastião residiu em Évora entre 5 de Novembro de 1569 e 23 de

Janeiro do ano seguinte; e de novo entre 7 de Fevereiro de 1570 e 31 de Marçodo mesmo ano (Joaquim Veríssimo Serrão, Itinerários del-Rei D. Sebastião,pp. 126-137 e 139-145). Assim, encontrava-se na cidade a 20 de Fevereiro de1570, quando foi concluída a impressão da obra de Fr. Gaspar da Cruz.

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contam as particularidades e grandezas dela”, solicitando o“real amparo” do jovem D. Sebastião.50

A demasiada extensão do Tratado das coisas da Chinadesaconselha, de imediato, qualquer tentativa de resumir orespectivo conteúdo; tal diligência seria, aliás, de uma duvi-dosa utilidade. Todavia, na medida em que Fr. Gaspar seassume claramente como um compilador de conhecimentosde variada origem, talvez seja mais interessante colocaralgumas questões à obra do dominicano. Por um lado,poder-se-á tentar estabelecer com exactidão as fontes a querecorreu, assim como o respectivo peso na redacção do Tra-tado. Por outro lado, de uma forma complementar, poderáexplicitar-se o específico contributo de Fr. Gaspar da Cruzpara um conhecimento mais rigoroso do Celeste Império,ou seja, determinar o contributo do nosso autor para a visãoportuguesa da China.

As fontes do Tratado

Fr. Gaspar da Cruz, nas primeiras páginas da obra queassina, tem o cuidado de justificar os seus intentos. Nodecorrer de longas viagens que efectuou pelos mares orien-tais, o dominicano tivera oportunidade de contactar comuma infinidade de povos. Mas havia ficado especialmenteimpressionado com “os chinas”, que a todos os outros exce-diam “em multidão de gente, em grandeza de reino, emexcelência de polícia e governo, e em abundância de pos-sessões e riquezas”. Uma vivência breve, mas intensa, darealidade cantonesa, assim como a leitura de diversos teste-munhos sobre o Império do Meio, tinham-no levado a con-

50 Tratado, Prólogo do impressor, pp. 57-58.

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cluir que “estas gentes têm muitas coisas muito dignas dememória”, das quais havia que “dar notícia geral”.51

O Tratado convoca explicitamente o interesse dos“curiosos”, que nele “acharão muitas coisas que folgarão deler”.52 Mas, para além destes objectivos didácticos, o nossoautor não se esquece de atribuir um motivo piedoso ao seuesforço de divulgação das realidades chinesas. A descriçãode “tanta gente e tão cega, sendo aliás políticos”, deveriasuscitar em Portugal um enorme movimento de apoio àsmissões ultramarinas.53 Contudo, atendendo à dimensão daobra e à profundidade com que os assuntos chineses sãonela abordados, é provável que os intuitos missionáriosconstituíssem apenas um mero pretexto para um trabalhoque, no fundo, pretendia difundir um vasto cabedal deconhecimentos geográficos e antropológicos, adquiridosem grande medida por experiência própria.

O nosso dominicano abre o Tratado com uma sucintaexposição a propósito da localização da China,54 na qualtenta conciliar, de uma forma algo confusa, os conheci-mentos adquiridos pelos portugueses ao longo do litoralasiático, com algumas noções de geografia clássica,apreendidas em compêndios e mapas medievais.55 Apesarde corrigir alguns erros difundidos por antigos “cosmó-grafos”, Fr. Gaspar apenas pode recorrer à experiência denavegação dos seus conterrâneos, e às “cartas de mareardos portugueses”, quando descreve as regiões litorais da

51 Tratado, Prólogo, p. 66.52 Tratado, Aviso aos leitores, pp. 69-70.53 Tratado, Prólogo, p. 67.54 Tratado, cap. 2.55 A principal fonte de Fr. Gaspar parece ter sido o Supplementum chro-

nicarum de Jacopo Filippo Foresti da Bergamo, uma volumosa obra sobremaravilhas orientais, editada pela primeira vez em Veneza, em 1483, e commuitas reedições posteriores. O dominicano, no entanto, não deixa de emen-dar as declarações que lhe parecem erróneas (cf. Tratado, cap. 2, pp. 82-86).

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Ásia.56 O interior do continente asiático, de difícil ouimpossível acesso, continuava a guardar ciosamente osseus segredos. Esta situação explica as contraditóriasasserções do autor do Tratado a respeito da geografia e dahidrografia da Ásia Maior. O frade de São Domingos,aliás, realiza os maiores malabarismos para convencer osseus leitores de que “a China confina com o último d’Ale-manha”57. Mas aqui estava apenas a repetir um tópicomuito comum entre outros observadores portugueses darealidade sínica.58

A matéria dos “confins da China” ocupa um espaçoalargado,59 onde Fr. Gaspar, apesar de continuar a alar-dear conhecimentos livrescos, utiliza sobretudo as obser-vações que efectuou no terreno, assim como as notíciasrecolhidas junto de informadores contactados no Oriente.Entre estes, destacam-se “um homem de boa discrição,veneziano mercador grosso”, com quem se cruzou emCantão;60 um tal Jorge de Melo, que havia sido “capitão daviagem de Pegu”;61 e vários asiáticos, como “um chinavelho” e “um senhor da Pérsia”.62 Além do mais, ao elabo-rar esta introdução geográfica, Fr. Gaspar deverá terrecorrido à Ásia — Década III de João de Barros, queestava disponível desde 1563, pois quase repete dois tre-chos do ilustre historiador, um a respeito da interrupçãoda expansão marítima chinesa,63 o outro relativo ao “muro

56 Tratado, cap. 2, p. 83.57 Tratado, cap. 3, p. 88.58 Duarte Barbosa, baseado em similitudes culturais entre chineses e ale-

mães, parece ter sido o primeiro escritor a avançar esta hipótese geográfica,que teria uma longa fortuna (cf. Rui Manuel Loureiro, Fidalgos, Missionários eMandarins, pp. 179-185).

59 Tratado, caps. 3-4 (citação na p. 97).60 Tratado, cap. 2, p. 84.61 Tratado, cap. 3, p. 91. 62 Tratado, cap. 4, p. 101.63 Tratado, cap. 2, pp. 80-81. Cf. João de Barros, Década III, liv. 2, cap. 7.

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de cem léguas de comprido”, que afirma existir “entre oschinas e tártaros”64.

Mas apesar de não romper completamente com a tradi-ção clássica, no que respeita à configuração do interior daÁsia, Fr. Gaspar não se inibe de criticar as suas fontes literá-rias, destacando devidamente o contributo das navegaçõesportuguesas para o avanço dos conhecimentos de geografiaextra-europeia. Conforme salienta, depois “que a Índia sedescobriu pelos portugueses”, muitas “coisas que daquelaspartes afirmavam ficaram fabulosas”. E logo enumeravaalguns exemplos retirados dos livros de maravilhas medie-vais, entre os quais se contavam homens “mui pequenosque pelejavam com os grifos por causa do ouro”, homensde boca tão diminuta que “comiam o comer sorvido porpipa e pisado” e seres que tinham “um pé grande que lhe[s]fazia sombra, alevantado sobre a cabeça”.65

Apesar das grandes viagens ibéricas do século XVIterem desvendado muitos recantos do mundo anterior-mente desconhecidos, comprovando, na prática, a inexistên-cia de tais monstros e fantasias, continuaram a correr na lite-ratura e na tradição oral lendas sobre seres e fenómenosmaravilhosos, que existiriam em longínquas regiões aindainexploradas. Muitos dos nossos escritores, incluindo algunsque possuíam uma longa experiência de vida no Oriente,deram crédito às mais incríveis fábulas.66 O ambiente deabertura do mundo que então se vivia, ao colocar os portu-gueses em confronto com os mais variados fenómenos natu-rais e com as mais exóticas realidades humanas, paradoxal-

64 Tratado, cap. 2, p. 85. Cf. João de Barros, Década III, liv. 2, cap. 7.65 Tratado, cap. 4, p. 104. Fr. Gaspar poderia ter recolhido estas fábulas

no citado Supplementum chronicarum de Jacopo Filippo Foresti; ou ainda nasEtimologias de Santo Isidoro.

66 Sobre a persistência deste tipo de mitos ao longo do século XVI, vd.Juan Gil, Mitos y utopías, vols. 1-3, passim.

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mente, parecia confirmar a possibilidade da existência dasmais incríveis maravilhas, em algum recanto ainda não atin-gido pelas viagens de exploração.67

O nosso dominicano, se exceptuarmos as suas diva-gações a respeito da geografia do interior da Ásia, onde,por uma espécie de vaidade intelectual, convoca algumasautoridades livrescas, não parece ter dado grande créditoa fábulas e invenções, baseando-se consistentemente nassuas próprias observações e no testemunho de “pessoasdignas de fé”68. Assim, durante uma curta estada no lito-ral chinês, para além de ter vagueado pela cidade de Can-tão, entrevistou alguns dos prisioneiros portugueses queali se encontravam detidos, na sequência dos violentosconfrontos luso-chineses ocorridos em 1549.69 A dadaaltura, com efeito, menciona informes recebidos de “umportuguês, que pela terra dentro fora levado cativo”70.Referir-se-ia, com toda a probabilidade, a Amaro Pereiraou a Mateus de Brito, que em 1556 estavam cativos emprisões cantonenses.71 Estes homens poderiam ter sidocontactados no decorrer de alguma das audiências judi-ciais a que o religioso português assistiu na grande metró-pole chinesa.72

67 Vd. J.S. Silva Dias, Os Descobrimentos, pp. 139-172; e Reijer Hooy-kaas, O Humanismo e os Descobrimentos, pp. 25-55.

68 Tratado, Prólogo, p. 66.69 Sobre este episódio, vd. Rui Manuel Loureiro, Fidalgos, Missionários e

Mandarins, pp. 421-442.70 Tratado, cap. 4, p. 103.71 Sobre Amaro Pereira e Mateus de Brito, vd. Rui Manuel Loureiro,

Fidalgos, Missionários e Mandarins, caps. 16, 19 e 20.72 Cf. Tratado, cap. 10.