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RESUMO A identificação de pacientes portadores de doença renal crônica (DRC) ou em risco para o seu desenvolvimento pode ser feita por meio de testes simples na rotina clínica. A importância do diagnóstico precoce da DRC está na possibilidade de instituição de intervenções clínicas que contribuem para o retardo da progressão da doença, postergando o início da terapia renal substitutiva e, portanto, trazem ganhos para a qualidade de vida do paciente, contribuindo com redução de custos do sistema público de saúde. No entanto, uma parcela importante dos pacientes é encaminhada tardiamente ao nefrologista. Mesmo com o encaminhamento tardio, o tratamento da doença permite o controle da condição clínica do paciente. As diversas complicações que ocorrem ao longo da evolução da DRC chamam atenção para a importância do tratamento especializado e multifacetado, realizado por equipe interdisciplinar. A baixa adesão dos pacientes ao tratamento de doenças crônicas reforça a importância desse tipo de abordagem. Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivos apresentar estratégias que possam envolver mais os pacientes no seu auto-cuidado, aumentar a adesão ao tratamento e otimizar o trabalho da equipe interdisciplinar. Descritores: Doença renal crônica. Progressão. Prevenção. Aspectos nutricionais. Equipe interdisciplinar. ABSTRACT Simple and cost-effective laboratorial parameters can be used by the clinical practitioner for screening and diagnosing chronic kidney disease (CKD). The importance of diagnosing CKD, still in early stages, lies in the possibility of delaying progression of the disease, postponing the beginning of renal replacement therapy, and therefore, improving the patient’s quality of life and lowering costs of the public health care system. In addition, early detection of CKD allows for better control of the disturbances commonly developed as renal function decreases. However, an important proportion of patients are referred to the nephrologists only when the kidney function is markedly decreased. Even considering this late referral, treatment before the beginning of renal replacement therapy allows for better control of the patient’s overall clinical state. Such treatment can achieve better results when a multidisciplinary team is present. This is particularly important when considering multiple aspects of CKD and the low adherence of the patients to the treatment of chronic diseases in general. Accordingly, this study proposes a series of strategies to enhance the patient’s adherence to the treatment and, ultimately, improve the results and patient outcome. Keywords: Chronic kidney disease. Progression. Prevention. Nutritional aspects. Interdisciplinary team. Tratamento da Doença Renal Crônica: Estratégias para o Maior Envolvimento do Paciente em seu Auto-Cuidado Chronic Kidney Disease Treatment: Strategies for Increasing the Patient’s Participation in Self-Care Comunicação Breve Recebido em 09/11/07 / Aprovado em 20/02/08 Endereço para correspondência: Frances Valéria Costa e Silva Rua Ferreira Pontes, 317 - casa 3 20541- 280, Andaraí, Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Frances Valéria Costa e Silva 1 , Carla Maria Avesani 2 , Cristina Scheeffer 3 , Carla Cavalheiro S. Lemos 4 , Bárbara Vale 5 , Maria Inês Barreto Silva 6 , Rachel Bregman 7 Ambulatório de Tratamento Conservador da Doença Renal Crônica da Disciplina de Nefrologia, Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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RESUMO

A identificação de pacientes portadores de doença renal crônica (DRC) ou em risco para o seu desenvolvimento pode ser feita por meio de testes simplesna rotina clínica. A importância do diagnóstico precoce da DRC está na possibilidade de instituição de intervenções clínicas que contribuem para o retardoda progressão da doença, postergando o início da terapia renal substitutiva e, portanto, trazem ganhos para a qualidade de vida do paciente, contribuindocom redução de custos do sistema público de saúde. No entanto, uma parcela importante dos pacientes é encaminhada tardiamente ao nefrologista.Mesmo com o encaminhamento tardio, o tratamento da doença permite o controle da condição clínica do paciente. As diversas complicações que ocorremao longo da evolução da DRC chamam atenção para a importância do tratamento especializado e multifacetado, realizado por equipe interdisciplinar. Abaixa adesão dos pacientes ao tratamento de doenças crônicas reforça a importância desse tipo de abordagem. Neste sentido, o presente trabalho temcomo objetivos apresentar estratégias que possam envolver mais os pacientes no seu auto-cuidado, aumentar a adesão ao tratamento e otimizar o trabalhoda equipe interdisciplinar.

Descritores: Doença renal crônica. Progressão. Prevenção. Aspectos nutricionais. Equipe interdisciplinar.

ABSTRACT

Simple and cost-effective laboratorial parameters can be used by the clinical practitioner for screening and diagnosing chronic kidney disease (CKD). Theimportance of diagnosing CKD, still in early stages, lies in the possibility of delaying progression of the disease, postponing the beginning of renalreplacement therapy, and therefore, improving the patient’s quality of life and lowering costs of the public health care system. In addition, early detection ofCKD allows for better control of the disturbances commonly developed as renal function decreases. However, an important proportion of patients arereferred to the nephrologists only when the kidney function is markedly decreased. Even considering this late referral, treatment before the beginning ofrenal replacement therapy allows for better control of the patient’s overall clinical state. Such treatment can achieve better results when a multidisciplinaryteam is present. This is particularly important when considering multiple aspects of CKD and the low adherence of the patients to the treatment of chronicdiseases in general. Accordingly, this study proposes a series of strategies to enhance the patient’s adherence to the treatment and, ultimately, improve theresults and patient outcome.

Keywords: Chronic kidney disease. Progression. Prevention. Nutritional aspects. Interdisciplinary team.

Tratamento da Doença Renal Crônica: Estratégias para o MaiorEnvolvimento do Paciente em seu Auto-Cuidado

Chronic Kidney Disease Treatment: Strategies for Increasing the Patient’sParticipation in Self-Care

Comunicação Breve

Recebido em 09/11/07 / Aprovado em 20/02/08

Endereço para correspondência:

Frances Valéria Costa e SilvaRua Ferreira Pontes, 317 - casa 3 20541- 280, Andaraí, Rio de JaneiroE-mail: [email protected]

Frances Valéria Costa e Silva1, Carla Maria Avesani2, Cristina Scheeffer3, Carla Cavalheiro S.Lemos4, Bárbara Vale5, Maria Inês Barreto Silva6, Rachel Bregman7

Ambulatório de Tratamento Conservador da Doença Renal Crônica da Disciplina de Nefrologia, Hospital UniversitárioPedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Cartão de Tratamento Conservador84

J Bras Nefrol 2008;30(2):83-87

INTRODUÇÃO

A doença renal crônica (DRC) é uma síndromeclínica caracterizada pela perda lenta e irreversível dafunção renal. Segundo os guias norte americanos deconduta em aspectos da DRC (NKF/DOQI – NationalKidney Foundation / Clinical Practices Guidelines forChronic Kidney Disease), a DRC caracteriza-se pela pre-sença de dano renal ou redução da função renal por umperíodo igual ou superior a três meses, independente desua etiologia1,2.

A ocorrência de DRC tem chamado atenção dadoo aumento de sua prevalência no Brasil e no mundo.Dados do censo realizado em 2006 pela SociedadeBrasileira de Nefrologia mostraram uma prevalência de383 pacientes em tratamento dialítico por milhão dehabitantes no Brasil3. Desses, 90,7% estão em programade hemodiálise e 10,3%, em programa de diálise peri-toneal. Chama atenção o crescimento de aproximada-mente 40% no número de pacientes em diálise no períodode 2000 a 20063.

A prevalência de DRC na fase não dialítica tam-bém é elevada e preocupante. No Brasil, estima-se quecerca de 1,4 milhão de indivíduos apresentem algum graude disfunção renal4,5 . Esses números fazem da DRC umproblema de saúde pública 6 e alertam para a importânciade estratégias que reduzam sua incidência.

Dessa forma, a DRC constitui um problema, cujoimpacto no plano individual e coletivo pode ser expressopelo sofrimento que a enfermidade acarreta, bem comopelos custos crescentes associados não só à terapia renalsubstitutiva (TRS), mas também às comorbidades pre-sentes nesta população7,8. Seu enfrentamento implica anecessidade de desenvolver estratégias com ações quefavoreçam e priorizem o enfoque individual e coletivo eque diminuam a morbidade e mortalidade pela DRC.

Pesquisas recentes têm demonstrado que o diag-nóstico precoce da disfunção renal e a concomitanteintrodução de cuidados que tratam e previnem as compli-cações clínicas decorrentes da perda de função renal podemretardar a evolução da doença8,9. Estes aspectos são parti-cularmente importantes aos pacientes idosos, os quaisapresentam maiores complicações na TRS8. Além disso, aoferta deste atendimento tem repercussão positiva no âmbi-to coletivo e na redução de custos dos sistemas de saúde.No entanto, faz-se necessário refletir sobre estratégias quecontribuam para maior efetividade deste tratamento.

Sendo assim, o presente trabalho tem comoobjetivo descrever propostas de intervenções baseadasnuma relação horizontal entre a equipe de saúde e opaciente, de forma a torná-lo capaz de compreender a suacondição de saúde e de se responsabilizar por seu

cuidado. Em última instância, pretende-se alcançar umamudança de comportamento e, conseqüentemente, maiorefetividade do tratamento.

A abordagem do problema

A intervenção que este trabalho propõe englobatrês elementos: 1. acompanhamento do paciente por equipeinterdicisplinar; 2. debates entre os profissionais da saúdee os pacientes, enquanto estes aguardam para atendimentona sala de espera; 3. implantação de um cartão de acom-panhamento do tratamento, no qual o paciente poderáacompanhar sua condição de saúde, com maior ênfasepara os aspectos relacionados à DRC.

Equipe interdisciplinar

O acompanhamento por equipe interdisciplinar sejustifica pela complexidade da DRC, que compreendediferentes facetas em seu tratamento e incorporamúltiplos campos de conhecimento, incluindo aspectosrelacionados à condição clínica, nutricional, emocional ede adesão à terapia medicamentosa9-11.

No Brasil, são poucos os serviços que contam comessa equipe para o atendimento da clientela com DRC. NoEstado do Rio de Janeiro, a Disciplina de Nefrologia doHospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) dispõe deum serviço estruturado, que vem realizando acom-panhamento de pacientes com DRC nos últimos dez anos,a partir de uma abordagem interdisciplinar, contando coma participação de nefrologistas, nutricionistas, psicólogo,odontologista e enfermeiro12.

Mesmo com essa estrutura, a equipe percebia adificuldade de adesão dos pacientes ao tratamento, o quelevou à busca de explicações e soluções para o problema.Entre as explicações elaboradas, uma pareceu passível deintervenção em curto prazo: a dificuldade da clientela emcompreender o discurso técnico-científico sobre a evolu-ção da doença renal. Para os profissionais de saúde, agravidade da doença é demarcada pela redução da taxa defiltração glomerular; mas, para a população acompanhadano ambulatório, este marco parece ser a redução devolume urinário e a presença de edema, sintomas que sóse apresentam em fase bastante avançada da doença.Sendo assim, enquanto não houver expressão física dadoença (sintomas clínicos), o paciente não valoriza asmodificações prescritas pela equipe interdisciplinar,resultando na baixa adesão ao tratamento.

Pensando nisso, duas novas estratégias foram ela-boradas visando favorecer a compreensão do discurso téc-nico pela clientela. As estratégias, uma de caráter coletivoe outra com foco individual, serão descritas a seguir.

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Debates na sala de espera

Os debates na sala de espera, implantados há cercade um ano, representam a intervenção coletiva onde sebusca a troca de conhecimento entre pessoas que viven-ciam situações semelhantes, tendo como mediadores osprofissionais da saúde. Nesse espaço, temáticas comoalimentação, uso de medicamentos, explicações sobre afunção renal, cuidados com higiene bucal, entre outrosassuntos, são abordadas com a clientela que espera oatendimento. Para tanto, adota-se linguagem simples ecoloquial, contando com recursos visuais de baixo custo,como álbuns seriados preparados pelos profissionais desaúde. Embora preliminar, essa abordagem vem semostrando positiva, em razão da participação ativa dospacientes e de seus familiares12.

Cartão de acompanhamento

O “cartão de acompanhamento do tratamento”(Figura 1) representa uma estratégia de cunho individual.A sua elaboração se baseou no “Cartão da Criança”utilizado para acompanhamento de crescimento edesenvolvimento infantil, além do controle de estadovacinal. Este cartão, adaptado para a população comDRC, visa apresentar, a partir de uma escala visual, oestágio da doença renal, representado pela taxa defiltração glomerular estimada. A pressão arterial, aadequação do peso corporal (a partir do índice de massacorporal) e da distribuição de gordura (avaliada pelacircunferência da cintura) também serão demonstradas.Na face externa, serão inseridos os dados pessoais e decontrole vacinal. A implantação do cartão será gradativa:inicialmente para todos os pacientes atendidos pelaprimeira vez e/ou com taxa de filtração glomerular abaixode 60mL/min e, posteriormente, para o restante daclientela acompanhada. O cartão será fornecido durante aconsulta com o enfermeiro e nutricionista, quando serádado explicação sobre a interpretação das informaçõescontidas nos cartão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto apresenta a proposta desenvolvida noHUPE, com vistas a qualificar o atendimento ao clientecom DRC, tornando-o mais efetivo. As mudançasnecessárias para adoção dessas estratégias implicam areconstrução do processo de trabalho e do padrão derelacionamento entre o profissional e o cliente. Acredita-se que essas estratégias, com ênfase para o cartão deacompanhamento, constituam mais um passo para omaior envolvimento da clientela em seu tratamento.

REFERÊNCIAS

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3. Sociedade Brasileira de Nefrologia. Censo SBN – 2006[acesso em 21 maio 2008]. Disponível em:http://www.sbn.org.br/Censo/2006/censosbn2006.ppt

4. Romao JEJ, Pinto SWL, Canziani ME, Praxedes JN, SantelloJL, Moreita JCM. Informações epidemiológicas das unidadesde diálise do Brasil. J Bras Nefrol. 2003;25:188-99.

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11. Levin A. The need for optimal and coordinated managementof CKD. Kidney Int Suppl. 2005;(99):S7-10.

12. Silva FVC, Scheeffer C, Santos FK, D’Angeles R, Bregman R.Importância do atendimento do paciente com doença renalcrônica por uma equipe multiprofissional. In: TV MED. Anaisdo XXIII Congresso Brasileiro Nefrologia, 2006 Out.7-11;Gramado, Brasil. CDROM.

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Figura 1. Face Externa - Cartão de acompanhamento do Tratamento

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Face Interna - Cartão de acompanhamento do Tratamento

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