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Trecho do livro "Contagem regressiva"

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Isso pede sabedoria. Se alguém tiver visão, que calcule o número da besta,

pois esse é o número do homem.

Apocalipse 13:18Novo Testamento, Nova Versão Internacional

Quando a sabedoria diz que você não precisa de mais filhos, a vasectomia é permissível.

Aiatolá Ali Khamenei, CA. 1989

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NOTA dO AUTOR

MUITOS lEITORES dEVEM SE lEMBRAR dO MEU úlTIMO lIVRO, O mundO

sem nós (The World without Us), como uma experiência reflexiva do que aconteceria se as pessoas desaparecessem do nosso planeta.

A ideia de teoricamente nos varrer da face da Terra foi para mos-trar que, apesar dos danos colossais que nós causamos, a natureza tem poderes incríveis de recuperação e cura. Quando aliviada das pressões que nós, humanos, diariamente despejamos sobre ela, sua restauração e renovação começam com rapidez surpreendente. Eventualmente, até novas plantas, criaturas, fungos e tudo mais evoluem para preencher os nichos vazios.

Minha esperança era de que os leitores, seduzidos pela maravilhosa possibilidade de uma Terra saudável e renovada, talvez então se pergun-tassem como nós poderíamos inserir o Homo sapiens de volta ao panora-ma – apenas em harmonia, não em combate mortal, com o restante da vida terrestre.

Em outras palavras, como poderíamos ter um mundo com a gente?

Bem-vindo a outra experiência reflexiva, exatamente sobre esse assunto. Só que, desta vez, não é imaginação: os cenários são reais. E além das pessoas que eu descrevo, dos locais e especialistas apresentados, existem

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todos os demais – incluindo você e eu. E, no fim das contas, todos nós fazemos parte da resposta para aquilo que basicamente foi resumido em quatro perguntas que fiz percorrendo o mundo – perguntas que alguns dos especialistas mencionados julgam as mais importantes.

“Porém, provavelmente”, disse um deles, “elas são impossíveis de responder.”

Quando ele fez essa observação, estávamos almoçando numa das mais antigas instituições de estudo superior do mundo, de cujo corpo docente ele faz parte. Naquele momento, fiquei feliz em não ser um espe-cialista. Jornalistas raramente alegam profundidade em qualquer campo: nossa função é buscar as pessoas que dedicam suas carreiras estudando – ou, na verdade, vivem – o que quer que estejamos investigando e fa-zer-lhes perguntas de senso comum, para que o restante de nós possa entender.

Se essas perguntas são as mais importantes do mundo, é irrelevante se os especialistas julgam suas respostas impossíveis: é melhor que a gen-te descubra. Ou que continuemos perguntando, até descobrirmos.

E foi o que eu fiz, em mais de vinte países, ao longo de dois anos. Agora, vocês mesmos podem perguntar, à medida que seguirem minhas viagens e averiguação.

Se no fim vocês acharem que chegamos às respostas – bem, estou certo de que irão perceber o que precisam fazer em seguida.

A.W.

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pRIMEIRA pARTE

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capítulo 1

Uma terra exausta de quatro perguntas

1. Batalha dos bebês

Faz uma tarde fria em Jerusalém, é sexta-feira, véspera do sabá judai-co. O sol de inverno, caindo no horizonte, dá à Cúpula da Rocha, acima do Templo do Monte, um tom de sangue alaranjado. Do lado leste, onde o chamado muezim vespertino para a prece dos muçulmanos acaba de cessar, sobre o Monte das Oliveiras, a Cúpula dourada está coberta por uma redoma rosada de poeira e fumaça de trânsito.

A essa hora, o Templo do Monte, em si, local mais sagrado para o judaísmo, é um dos pontos mais silenciosos dessa cidade antiquíssima e vazia, com exceção de poucos estudiosos vestindo sobretudo, apressados, com seus livros, atravessando a praça sombreada pelos ciprestes. Um dia, o tabernáculo original do Rei Salomão esteve erguido aqui. Ele guarda-va a Arca da Aliança, contendo as tabuletas de pedra sobre as quais se acredita que Moisés teria inscrito os Dez Mandamentos. Em 586 a.C. os invasores babilônios a destruíram e levaram o povo judaico prisioneiro. Meio século depois, Ciro, o Grande, imperador da Pérsia, os libertou para que regressassem e reconstruíssem seu templo.

Por volta do ano 19 da Era Cristã, o Templo do Monte foi restaurado e fortificado com um muro pelo Rei Herodes, apenas para ser demolido

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novamente pelos romanos após noventa anos. Embora o exílio da Terra Santa tenha ocorrido antes e depois da restauração do Templo, essa des-truição romana do Segundo Templo mais famoso de Jerusalém simboliza a diáspora que espalhou os judeus pela Europa, pelo nordeste da África e Oriente Médio.

Hoje, as reminiscências de fragmentos do Segundo Templo e seus dezoito metros de altura, ao longo da Velha Jerusalém, conhecido como Muro das Lamentações, é uma peregrinação obrigatória aos judeus que visitam Israel. No entanto, para que não pisem inadvertidamente onde o mais Sagrado dos Sagrados um dia pisou, um decreto oficial dos rabi-nos proíbe que os judeus subam ao Templo do Monte. Embora ele seja ocasionalmente desafiado e exceções possam ser abertas, isso explica por que o Templo do Monte é administrado por muçulmanos, que também o consideram sagrado. Dizem que dali, numa noite, o Profeta Maomé partiu para uma jornada, num cavalo alado, até o Sétimo Céu e voltou. Somente Meca e Medina, locais do nascimento e sepultamento de Mao-mé, são considerados mais sagrados. Em um acordo raro entre Israel e o Islã, somente os muçulmanos podem rezar nesse solo santificado que chamam de al-Haram al-Sharif.

Mas os muçulmanos não vêm tanto aqui, como costumavam vir. An-tes de setembro de 2000, eles chegavam aos milhares, perfilando-se diante de uma fonte, perto dos bancos de pedra, para fazer as purificações, antes de adentrar pelo tapete vermelho-carmim e a mesquita de mármore al--Aqsa, do outro lado da praça, oposta à Cúpula da Rocha. Eles vêm princi-palmente às sextas-feiras, ao meio-dia, para o sermão semanal do imã, um discurso sobre os acontecimentos atuais e também sobre o alcorão.

Um assunto frequente, relembra Khalil Toufakji, é o que as pessoas brincam chamando de “bomba biológica Yasser Arafat”. Só que não é brincadeira. Conforme relembra Toufakji, demógrafo palestino da Socie-dade de Estudos Árabes: “Na mesquita, na escola e em casa nos foi ensi-nado que devemos ter muitos filhos, por muitos motivos. Na América ou na Europa, se existe um problema, você chama a polícia. Em um lugar sem lei, para se resguardar, você recorre à sua família”.

Ele suspira, alisando seu caprichado bigode grisalho; seu pai era po-licial. “Aqui, você precisa de uma família grande para se sentir protegido.”

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“Em Gaza é até pior”, acrescenta ele. Lá, um líder do Hamas teve catorze filhos e quatro esposas. “Nossa mentalidade é da época dos beduínos. Se você tem uma tribo suficientemente grande, todos o temem.”

A melhor arma da Organização pela Libertação da Palestina era o útero palestino, conforme seu líder Arafat gostava de dizer.

Durante o ramadã, Toufakji e alguns de seus treze irmãos estariam entre o meio milhão de devotos que lotam a mesquita al-Aqsa, inun-dando a praça de pedras al-Haram al-Sharif. Isso foi antes daquele dia de setembro de 2000, quando o ex-ministro da Defesa israelense, Ariel Sharon, fez uma visita ao Templo do Monte, escoltado por mil policiais israelenses. À época, Sharon era candidato a primeiro-ministro. Em uma ocasião, ele havia sido propositalmente considerado negligente, por uma comissão israelense, por não proteger mais de mil refugiados civis pa-lestinos, massacrados pelos Falangistas Cristãos, durante a guerra civil do Líbano, em 1982, enquanto as forças de ocupação israelenses apenas assistiam. A viagem de Sharon ao Templo do Monte, que teve a intenção de afirmar o direito israelense histórico ao local, gerou demonstrações e apedrejamentos, que foram recebidos com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Quando as pedras do Templo do Monte foram arremessadas para baixo, sobre os judeus em culto no Muro das Lamentações, as balas ganharam vida.

O tumulto logo tomou grandes proporções, levando a centenas de mortes em Jerusalém, naquilo que ficou conhecido como a Segunda Inti-fada. Os bombardeios suicidas acabaram vindo – e, mais tarde, principal-mente depois que Sharon foi eleito primeiro-ministro, anos de retaliação mútua, com tiroteios, massacres, ataques de foguetes e mais bombardeios suicidas, até que Israel começou a se fechar dentro do muro.

Uma barreira imponente de concreto e arame de mais de duzentos quilômetros de comprimento agora praticamente cerca a Cisjordânia – exceto por onde ela corta a Linha Verde que demarca territórios tomados por Israel, ocupados desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, com seus adversários árabes ao redor. Há locais em que a linha faz zigue -zague passando por dentro de cidades como Bethlehem e a Grande Jerusalém, voltando a si mesma, para isolar bairros individuais, excluindo palestinos não apenas de Israel, mas uns dos outros e de seus campos e pomares,

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alegando que o propósito é incorporar território e confiscar fontes, assim como garantir a segurança.

Isso também impede a maioria dos palestinos de chegar à mesquita al-Aqsa, a não ser que vivam em Israel ou em partes do leste de Jerusa-lém, dentro dos limites da barreira de segurança. No entanto, desses, so-mente os homens palestinos acima de quarenta e cinco anos têm permis-são da polícia israelense para passar pelos detectores de metal nos portões do Templo do Monte. Oficialmente, isso é para prevenir que quaisquer jovens árabes sejam tentados a apedrejar judeus em culto – sobretudo turistas judeus estrangeiros, enquanto eles depositam suas preces escritas em frestas dos gigantescos blocos de pedras brancas do Muro das Lamen-tações, acima da praça adjacente.

Esse costume é particularmente popular à medida que começa o sabá. Porém, em anos recentes, chegar a qualquer lugar perto do Muro das Lamentações, numa sexta-feira, ao pôr do sol, tornou-se um desafio até para os judeus. A menos que você seja um haredi, e homem.

A palavra hebraica haredi significa, literalmente, “temor e tremor”. Na Israel de hoje, isso se refere aos judeus extremamente ortodoxos, de vestimenta sombria e fiéis fervorosos a Deus, ouvidos pelos séculos pas-sados e terras distantes, onde seus ancestrais viveram, durante dois mi-lênios de diáspora. Para apreensão dos judeus não haredi, o Muro das Lamentações foi eficazmente usurpado e convertido em uma sinagoga haredi. No sabá, dezenas de milhares de homens de batas pretas, com seus chapéus de abas largas e rituais que envolvem tudo, curvam-se, tremem, regozijam, cantam e louvam, exceto por um pequeno trecho cercado e reservado para as mulheres – quer dizer, para mulheres que se atrevem a se aproximar. Mulheres que insistem no direito judaico feminino de rezar com seus xales e filactérios – ou o horror haredi máximo: de tocar ou ler um pergaminho da Torá – podem receber cuspidas dos homens haredi, que já jogaram cadeiras nas blasfemadoras atrevidas, e são xingadas aos berros de piranhas pelos rabinos, que tentam afogar tudo com suas can-ções do sabá.

Os haredi extremistas acreditam que as mulheres devem ficar em casa preparando a refeição do sabá para seus homens devotos e famílias em rápido crescimento. Embora ainda minoria, os haredim de Israel es-

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tão implacavelmente empenhados em mudar isso. Sua tática é simples: procriação. As famílias haredi têm, em média, cerca de sete filhos e fre-quentemente chegam a números de dois dígitos. A prole multiplicadora é considerada uma solução para os judeus modernos, que desonram sua religião, e também a melhor defesa contra os palestinos, que ameaçam superar os judeus em proliferação, em sua histórica terra natal.

O Haaretz, jornal diário de Jerusalém, relata que um homem haredi ostenta 450 descendentes. Os números elevados forçam os políticos is-raelenses a incluir partidos haredi em coalizões que regem o governo de Israel. Tamanha influência ganhou privilégios dos ultraortodoxos que evocam uivos dos outros israelenses: isenção do serviço militar (eles supostamente defendem o judaísmo por meio do estudo incessante da Torá) e uma pensão do governo para cada criança israelense que chega ao mundo. Até 2009, esse subsídio subia a cada novo nascimento, até que o custo da escalada demográfica chocou até mesmo o primeiro-ministro conservador Benyamin Netanyahu, que o passou para uma taxa fixa. No Muro das Lamentações, onde milhares de garotos com solidéus pretos e cachos laterais rodopiam ao redor de seus barbudos e dançantes pais, ainda não se vê efeito algum da contenção reprodutiva haredi.

No alto do céu, acima da Velha Cidade murada, surge uma lua re-donda e amarelada como as pedras calcárias de Jerusalém, e os haredim começam a voltar para casa – a pé; nenhum transporte motorizado é au-torizado durante o sabá – para suas mulheres grávidas e filhas. A maioria segue rumo a Mea She’arim, um dos maiores bairros de Jerusalém, que visivelmente está se deteriorando sob a pressão de tanta gente. As bolsas de estudos da Torá pagam nada ou muito pouco; esposas haredi geral-mente trabalham em quaisquer empregos que consigam conciliar com a criação dos filhos, e mais de um terço das famílias vive abaixo da linha da pobreza. Saguões e escadarias de prédios surrados estão apinhados de carrinhos de bebê. O ar exala lixo, esgotos sobrecarregados e fumaça de óleo diesel – algo surpreendente para um local onde nenhum veículo pode circular durante o sabá. Como muitos haredim insistem que é um sa-crilégio que a Companhia de Eletricidade Israelense continue a funcionar durante o sabá, antes do pôr do sol eles acionam centenas de geradores portáteis, nos porões de Mea She’arim, para manter as luzes acesas. O

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tradicional z’mirot ouvido ao redor das mesas do sabá é cantado e se so-brepõe ao som monótono dos geradores.

Quatro quilômetros ao norte de Mea She’arim, o solo se eleva em cumes de cascalho. Uma colina logo do outro lado da Linha Verde, o Ramat Shlomo, é o local de uma antiga pedreira que abasteceu as lacas da fundação de quase seis metros de profundidade que Herodes usou para construir o muro do Segundo Templo. Em 1970, pouco tempo depois que a área foi tomada, Israel plantou uma floresta ali. Ao contrário das primeiras flo-restas do Fundo Judaico Nacional – fileiras de eucaliptos australianos ou pinheiros-de-alepo, pagos com moedas economizadas por crianças judias ao redor do mundo, em latinhas da coleção do FJN (ou JNF – Jewish Na-tional Fund) –, eram uma mata mista que incluía alguns carvalhos nati-vos, coníferas e terebintos. A jovem floresta foi declarada reserva natural, uma classificação com a qual os palestinos não concordaram, alegando que a verdadeira intenção era evitar o crescimento de Shuafat, um vilare-jo árabe próximo. A desconfiança deles foi confirmada quando, em 1990, a floresta foi derrubada para abrir caminho para um novo bairro haredi em Jerusalém – ou um novo assentamento na Cisjordânia, dependendo de quem o descreve.

“Pelaram a colina inteira”, admite o assentado de Ramat Shlomo e rabino hassídico Dudi Zilbershlag. Fundador da Haredim for the En-vironment, uma organização sem fins lucrativos, cujo nome também se traduz como Temor pelo Meio Ambiente, ele lamenta. “Mas, depois”, acres-centa, animando-se, “nós replantamos”.

Em sua sala de estar, Zilbershlag toma um gole de chá de rosa-mos-queta, cercado por estantes de madeira envidraçadas, que guardam filei-ras de literatura sobre Kabbalah e Talmude, em volumes encadernados em couro. Uma vitrine é dedicada aos menorás de prata, castiçais do sabá e copos do kiddush. Esse homem robusto, de cinquenta e poucos anos, sorriso largo, cachos grisalhos caindo das laterais do solidéu preto e uma barba grisalha que bate no colete preto sobre a camisa branca, também é o fundador da maior instituição de caridade de Israel: Meir Panim, uma rede de cozinhas comunitárias. Seu grupo ambiental ultraortodoxo en-foca principalmente as questões urbanas: ruído, poluição do ar, estradas

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congestionadas, queima de lixo a céu aberto e embalagens descartáveis de alimentos, jogadas por toda parte, nos bairros haredi. Mas seu próprio interesse vai além, até a preservação da natureza.

“Segundo a Gematria”, ele explica – numerologia cabalística –, “as palavras Deus e natureza são equivalentes. Portanto, a natureza é o mes-mo que Deus.”

Ele diz que você não precisa de milagres para saber que Deus existe. “Eu vejo Deus nos detalhes da natureza: nas árvores, nos vales, no céu e no sol.” No entanto, num mistério que talvez somente um cabalista possa resolver, ele frisa que a sobrevivência judaica vem dependendo de milagres envolvendo o domínio de Deus sobre a lei natural, ou até sua suspensão. “Um exemplo clássico é quando Israel deixou o Egito, Ele fez o mar se abrir.”

O ato foi precedido por outros milagres extraordinários: água se transformando em sangue, bandos de sapos no deserto, noite que durou três dias, granizo que caiu somente na plantação egípcia e a morte que só atingiu os animais egípcios e primogênitos egípcios. Todas essas inter-venções divinas são comemoradas na Páscoa judaica, que começa com as crianças judias fazendo quatro perguntas tradicionais sobre o simbolismo da noite. As respostas, dadas ao longo da refeição, recontam a libertação milagrosa de Israel da escravidão.

Em cada canto da casa de Dudi Zilbershlag há um lembrete – um carrinho de bebê, um chiqueirinho infantil, um berço – das crianças que faziam essas perguntas: ele e a esposa, Rivka, tiveram onze filhos e espe-ram ser avós de muitos. Ainda assim, nada é certo nessa terra mítica, onde a tensão entre dois povos que a reivindicam crepita na atmosfera. A cada dia, com o aumento da pressão e dos riscos – assim como dos números, com um querendo ultrapassar o outro –, também aumenta uma realidade que começou a ser assimilada tanto pelos judeus quanto pelos árabes, es-tendendo-se pelo espectro político e religioso de ambos os lados:

Na Palestina histórica – ou seja, entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, nas terras disputadas de Israel e da Palestina; uma distância que não chega a cinquenta milhas – hoje existem cerca de 12 milhões de pessoas.

Após a Primeira Guerra Mundial, os britânicos, que governavam a Palestina sob mandado internacional, acreditavam que essa terra, boa

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parte composta de deserto, poderia abrigar, no máximo, 2,5 milhões de pessoas. Durante os anos 1930, para persuadir a coroa britânica, em dú-vida quanto ali ser a terra para os judeus, o sionista David Ben-Gurion ar-gumentou que a determinação e ingenuidade judaicas para transformar o que os britânicos consideravam um lugar atrasado não deveriam ser desconsideradas.

“Não devemos negligenciar nem um centímetro quadrado de terra; nem uma única fonte de água deixaremos de perfurar; nem um pântano deixaremos de escoar; nem uma duna de areia deixaremos de frutificar; nem uma colina seca deixaremos de arborizar; nada ficará intocado”, es-creveu o futuro primeiro-ministro de Israel. Ben-Gurion estava se refe-rindo à capacidade de potencial do solo palestino e dos recursos de água para manter seres humanos – tanto os judeus quanto os árabes, que, nas primeiras escritas, ele imaginou coexistindo.

Ele estava convencido de que a terra poderia abrigar 6 milhões de pessoas. Mais tarde, como primeiro-ministro, Ben-Gurion viria a oferecer prêmios às “heroínas” israelenses que tivessem dez ou mais filhos (ofer-ta que acabou descontinuada, porque muitas vencedoras eram mulheres árabes). Hoje, a população haredi de Israel dobra a cada dezessete anos. Ao mesmo tempo, com metade de todos os palestinos apenas ingressan-do em seus anos reprodutivos ou aproximando-se deles, a população ára-be da Palestina histórica – Israel, Cisjordânia e a Faixa de Gaza – poderia superar a dos judeus israelenses até 2016.

A essa altura, projeções do lado vencedor dessa corrida demográ-fica – ou perdedor, dependendo do ponto de vista – ficam enevoadas. Historicamente, muito do crescimento de Israel tem dependido da imi-gração de judeus vindos de outros lugares. Mais de um milhão de russos chegaram, após a queda da União Soviética. No entanto, a tendência de judeus fazendo aliyah a Israel desacelerou dramaticamente. Muito mais judeus agora se mudam de Israel para os Estados Unidos do que o con-trário. Contudo, enquanto o coeficiente de natalidade haredim aumenta drasticamente, os judeus poderão reassumir como maioria em 2020. Ao menos, por um tempo.

Ainda mais importante do que quem lidera é algo que nem os demó-grafos judeus nem os árabes negam: se as coisas continuarem no rumo que

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estão, até a metade deste século o número de humanos espremidos entre o mar e o Jordão vai praticamente dobrar para pelo menos 21 milhões.

Talvez nem o milagre de Jesus, com os pães e peixes, chegue perto de suprir as necessidades dessa região. Uma aritmética tão implacável im-plora por um novo conjunto de quatro perguntas:

primeira pergunta

quantas pessoas essa terra realmente pode abrigar? Já que a influência dessa Terra Sagrada se estende muito além de suas fronteiras disputadas, quantas pessoas nosso planeta pode abrigar?

Essa é uma pergunta que, para se tentar responder, em qualquer lugar da Terra, exige um conhecimento panorâmico, expertise e imagina-ção. Que pessoas? O que elas comem? Como se abrigam e se deslocam? Onde elas obtêm sua água e quanta água há para elas? E o combustível: quanto há disponível e quão perigosa é sua descarga de gases? E – vol-tando à comida – as próprias pessoas plantam? Se for o caso, quanto po-dem armazenar, ou seja: quanto chove, quantos rios atravessam a terra, o quão férteis e fartos são os solos, que quantidade de fertilizante e outras formas de químicos estão envolvidos e qual é a desvantagem em usá-los?

A lista prossegue: que tipo de casas, de que tamanho? Feitas de quê? Se usarem material local, quanto há disponível? (Dica: embora metade de Israel seja um deserto, a cidade já se preocupa em ficar sem areia para cons-trução – que dirá água, para misturar o cimento). E quanto aos locais ade-quados para a construção – e todas as estradas, sistemas de saneamento, gás e redes elétricas a serem interligados? E a infraestrutura para que todas as escolas, hospitais e negócios atendam e empreguem... quantas pessoas?

Quaisquer respostas completas para tais perguntas exigem dados de ecologistas, geógrafos, hidrólogos e agrônomos, não apenas engenheiros e economistas. Mas em Israel e na Palestina – como em todos os outros lugares – a maioria das decisões não é tomada por nenhum deles. A polí-tica, que inclui estratégias militares, paralelamente aos negócios e à cul-tura, tem sido o árbitro máximo desde o início da civilização, e ainda é.

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O diretor de uma organização sem fins lucrativos, politicamente as-tuto e comercialmente sagaz, o rabino hassídico Dudi Zilbershlag, tam-bém é um realista cultural, pelo menos até certo ponto. Ele aceita que Israel precisa de judeus seculares, assim como os religiosos – quem mais irá apoiar todos os talmudes? –, e até acrescenta que seus filhos e os ára-bes terão de conviver. “Precisamos encontrar uma linguagem comum e deixar que a paz prevaleça.”

No entanto, o que ele não pode fazer é algum dia imaginar restrin-gir o número de filhos que seu povo coloca no mundo.

“Deus traz as crianças ao mundo. Ele encontrará lugar para elas”, diz a educadora ambiental haredim Rachel Ladani.

Se a frase controle populacional evoca tremores nos malthusianos, ou pesadelos de totalitarismo chinês em alguns, para judeus hassídicos, como Ladani e Dudi Zilbershlag, é simplesmente impensável. Ladani vive na ultraortodoxa Bnei Brak, cidade de população mais densa de Israel, um pouco mais central que a costeira Tel Aviv. Ela não vê conflito entre lecionar conscientização ambiental e ser mãe de oito. Seu estilo de vida hassídico significa ir a pé aos mercados, à escola e à sinagoga, raramente se aventurando além de seu bairro. Ninguém, incluindo Rachel, jamais esteve num avião. “Minhas duas filhas e seis filhos produzem menos dió-xido de carbono em um ano”, ela gosta de dizer, “do que alguém que vive na América e visita Israel, em um voo.”

Talvez. Mas todos eles comem e precisam de habitação, o que, por outro lado, exige material de construção e a infraestrutura de conexão – assim como exigirão seus incontáveis rebentos. E, apesar da proximidade dos serviços – em duas quadras há mercados, açougues kosher, lojas vegetarianas e muitas outras que vendem produtos de bebês e perucas (modestas coberturas de ca-beça para mulheres ortodoxas; a de Rachel é ruiva, com corte pajem) –, fica claro que a austera haredim não está imune às tentações modernas e famintas de energia. Em Bnei Brak há carros estacionados por toda parte: nos divisores das ruas, e com duas rodas nas calçadas. As motocicletas enxameiam as ruas apinhadas de casas, pontilhadas com antenas parabólicas.

Essa é a maior concentração humana na parte norte de Israel, onde não há deserto, com 740 pessoas por quilômetro quadrado, maior densi-

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dade populacional do que qualquer país do mundo ocidental (a Holanda é a mais densa da Europa, com 403 pessoas por quilômetro quadrado). Sendo assim, o que Rachel Ladani acha que acontecerá, quando a popu-lação de seu país dobrar até 2050? Ou, ao nosso mundo, onde, segundo as Nações Unidas, até meados do século, seremos 10 bilhões?

“Não preciso pensar nisso. Deus fez o problema e Ele irá resolvê-lo.” Um dia, havia uma floresta de pinheiros ali perto, onde a imigrante

russa e mãe de Rachel lhe ensinava os nomes das flores e dos pássaros. Quando tinha apenas dez anos, ela conheceu uma arquiteta paisagista e teve uma dupla revelação: ela não sabia da existência de algo como arqui-tetura de paisagismo, nem que mulheres trabalhavam. Quando se casou, aos dezenove anos, ela não disse ao rebbe que oficializou a união que tam-bém estava se matriculando no Technion, Instituto Tecnológico de Israel. Ela levou cinco anos para obter o diploma, já que durante esse tempo também teve três filhos.

Ela e o marido, Eliezer, diretor de uma escola de aprendizado para deficientes, conseguiram ter mais cinco filhos, enquanto Rachel trabalha-va para manter a beleza de sua cidade movimentada. Quando estava com quarenta anos, ela descobriu o centro de pesquisas ambientais de Israel, o Heschel Center for Environmental Learning and Leadership, em Tel Aviv. Assim como o Technion, ele não era ortodoxo, mas isso abriu seus olhos e mudou sua vida, sem mudar sua fé.

“O meio ambiente é como a Torá. É parte de você”, ela diz às me-ninas a quem leciona, em escolas religiosas. Em um país onde as crianças cantavam na escola canções patriotas sobre sionistas transformando a ter-ra ao cobri-la de concreto, ela as ensina a abrirem os próprios olhos, para observar as sementes germinando, para observar a natureza, até realmen-te enxergarem. Ela cita um midrash antigo, um comentário rabínico sobre a Torá, no qual Deus mostra a Adão as árvores do Éden dizendo: “Veja meus trabalhos, como são adoráveis. Tudo o que criei foi para você”.

No entanto, como observou Jeremy Benstein, fundador do Heschel Center, em seu livro The Way into Judaism and the Environment, de 2006, no mesmo midrash, Deus alerta Adão: “Tome cuidado para não corromper nem destruir Meu mundo, porque se você o arruinar, não haverá nin-guém para vir depois de você e consertá-lo”.

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Quando citou isso, Benstein estava respondendo ao otimismo teo-lógico dos profundamente devotos quanto a Deus não nos decepcionar, se estivermos fazendo as coisas certas, aos Seus olhos. “Nós somos convi-dados”, ele relembra em seu livro, “a não dependermos de milagres para solucionar nossos problemas. Deus deixa claro que não haverá ninguém para arrumar nossa bagunça.”

Benstein cresceu em Ohio e frequentou Harvard, antes de vir para Israel. Ele obteve seu doutorado em antropologia ambiental pela Univer-sidade Hebraica de Jerusalém. Com outros imigrantes da América, ele fundou o Heschel e lecionou no Arava Institute, um centro de pesquisas sustentáveis, em um kibbutz na parte sul de Israel. As Intifadas lhe esclare-ceram duas coisas relativas à população: elas tiveram um impacto imenso no ambiente conjunto, dos israelenses e palestinos, mas discutir isso é quase um tabu.

“Porque ainda estamos nos recuperando do massacre de um terço dos judeus do mundo”, diz ele, na biblioteca do Heschel Center, sentado numa cadeira com o espaldar apoiado ao seu peito. O Holocausto, que levou as Nações Unidas a cindir a Palestina em duas partes e criar a terra judaica, sempre será recente ali. “O significado de 6 bilhões”, ele escre-veu, em seu livro de 2006, “deve legitimamente ocupar o segundo lugar, atrás dos 6 milhões.” Principalmente, acrescenta ele, pelo fato de que um milhão dos judeus assassinados eram crianças.

“Hoje há menos judeus no mundo do que havia em 1939. Nós nos vemos como qualquer população indígena dizimada pela cultura ociden-tal. Temos direito de nos reabastecer.”

No entanto, Benstein, que é pai de gêmeos, sabe que só levou doze anos para que o mundo passasse de seis para sete bilhões de habitantes. Pesquisando a Torá e os estudos bíblicos em busca de orientação ambien-tal, como o édito que diz em Êxodos, 23:11, para se deixar a terra sem cultivo a cada sete anos, ele também buscou pistas do que Deus queria dizer, exatamente, quando orientou os humanos a serem prolíficos e se multiplicarem.

“Parece estar implícito que há um limite. Porque não se diz que fru-tifiquemos e nos multipliquemos infinitamente. Diz ‘Sejam fecundos e preencham a terra’”.

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Page 18: Trecho do livro "Contagem regressiva"

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CONTAGEM REGRESSIVA

Benstein, diplomado em linguística em Harvard, investigou a língua do Gênesis. “Se levarmos isso a sério, então haverá um tempo em que teremos cumprido inteiramente esse mandamento, e podemos parar. A pergunta passa a ser: quando? Já teremos chegado lá? E rabinos não po-dem responder à pergunta sobre a lotação da Terra. Essa é uma questão para ecologistas.”

No entanto, no Gênesis, ele encontra uma pista interessante. Ela surge após quarenta capítulos de homens tomando esposas e listas sub-sequentes de pais e gerações de filhos. O povo do Velho Testamento não tinha problema em obedecer ao mandamento da multiplicação, o que fazia com vigor e geralmente com cobiça. Porém, veio José, um dos treze filhos do patriarca Jacó.

José teve dois filhos antes de interpretar o sonho do faraó egípcio. A essa altura, Benstein escreve: “Ele parou de procriar antes de a fome que sabia vir pela frente. O Talmude usa esse exemplo para afirmar: ‘É proibi-do ter relações matrimoniais em tempos de fome’”.

Ele acrescenta uma passagem talmúdica paralela: “Veja a proibição como um chamado ao controle da população, afirmando diretamente: ‘Quando vires a fome entrando no mundo, mantenha sua esposa sem filhos’”.

Mas uma simples contagem de cabeças, diz Benstein, não explica inteiramente a fome e a sede que assolam grande parte da humanidade, com previsão para piorar seriamente durante este século. Embora a po-pulação humana tenha quadruplicado ao longo do último século, ele cal-cula que nosso consumo de recursos, medido pela combinação dos pro-dutos domésticos brutos ao redor do mundo, aumentou numa proporção de dezessete vezes. Esse devorar no banquete planetário foi desfrutado por apenas alguns, à custa de muitos. A distribuição desigual de bens, que causou aflições e guerras até mesmo em tempos bíblicos, jamais esteve tão distorcida quanto hoje.

No entanto, ele reconhece que o consumo e a população são duas faces da mesma moeda. E conforme a moeda gira mais veloz, ela levanta a questão que transcende sua nação dividida, pois o mundo inteiro está ficando tonto, por conta das forças que giram descontroladas.

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