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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA 1 Processo n.º 3880/03 – 3.ª Secção Relator: Carlos Rodrigues de Almeida Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO 1 – A União Indiana pediu ao Estado Português a extradição de “A” para que ele fosse julgado, nomeadamente, pelos crimes que constituíam o objecto do processo RC.1(S)/93/CBI/STF/MUMBAI. No pedido de extradição então apresentado, a União Indiana remeteu a indicação do objecto do pedido formulado para uma declaração ajuramentada que juntou da qual constavam os detalhes dos factos e dos crimes imputados ao extraditando nesse processo. Nessa declaração diz-se, nomeadamente, o seguinte: PROCESSO RC.1(S)/93/CBI/STF/MUMBAI

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA · Mumbai, deduziu acusação de conspiração criminal contra todos os arguidos que foram presentes ao Tribunal. Na acusação, refere-se que os referidos

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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1

Processo n.º 3880/03 – 3.ª Secção Relator: Carlos Rodrigues de Almeida

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

1 – A União Indiana pediu ao Estado Português a extradição de

“A” para que ele fosse julgado, nomeadamente, pelos crimes que

constituíam o objecto do processo RC.1(S)/93/CBI/STF/MUMBAI.

No pedido de extradição então apresentado, a União Indiana

remeteu a indicação do objecto do pedido formulado para uma

declaração ajuramentada que juntou da qual constavam os detalhes

dos factos e dos crimes imputados ao extraditando nesse processo.

Nessa declaração diz-se, nomeadamente, o seguinte:

PROCESSO RC.1(S)/93/CBI/STF/MUMBAI

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DECLARAÇÃO AJURAMENTADA DO SUPERINTENDENTE CHEFE DE POLÍCIA,

CENTRAL BUREAU OF INVESTIGATION, SPECIAL TASK FORCE, NOVA DELI,

ÍNDIA

Eu, “B”, Superintendente Chefe de Polícia, Central Bureau of Investigation,

Special Task Force, Nova Deli, e detendo o cargo adicional de Superintendente

de Polícia, Central Bureau of Investigation, Special Task Force, Mumbai, declaro

pela presente, solenemente e por minha honra:

1. Que tenho a meu cargo a supervisão da investigação e julgamento dos

Processos de Rebentamento de Bombas em Bombaim, e me ocupo também de

outros processos contra “A”e Outros, na qualidade de Nodal Officer desses

processos e que, nesta conformidade, estou a par dos factos e circunstâncias dos

referidos processos.

2. Que, na Cidade de Mumbai (Índia), se verificaram uma série de explosões de

bombas, a 12 de Março de 1993, de que resultaram a morte de 257 pessoas,

ferimentos de diversos tipos em 713 pessoas, e a destruição de património de

valor superior a 260 milhões de Rupias Indianas. As referidas explosões de

bombas foram provocadas em instalações do Governo e instalações públicas

vitais e em locais com um elevado índice populacional, na cidade de Mumbai e

nos seus subúrbios, com a intenção de semear o terror entre o público em geral.

Foram registados vinte e sete processos criminais nos respectivos Postos

Policiais, relativamente aos referidos incidentes relacionados com as explosões

de bombas e com a posterior recuperação de armas, munições e explosivos, que

foram ilegal e clandestinamente introduzidos na Índia, com o intuito de praticar

os referidos actos terroristas. A investigação dos processos foi posteriormente

entregue ao Central Bureau of Investigation, Special Police Establishment, tendo

sido registado um processo com o N.º R.C. 1(S)/93-STF/CBI/Mumbai, a 19 de

Novembro de 1993. Junta-se cópia do FIR sob o Anexo "A".

3. Que foi realizada a investigação dos referidos processos criminais de

explosões de bombas e a recuperação de grande quantidade de armas,

munições e explosivos. A investigação revelou que vários actos praticados pelos

arguidos resultaram de uma única conspiração, arquitectada por “A”e outros

arguidos, durante o período entre Dezembro de 1992 e Abril de 1993, com o

objectivo de criar perturbações de natureza grave, através da prática de actos

terroristas, tais como explosão de bombas, homicídio e destruição de património,

em todo o território da Índia, mediante utilização de explosivos. No

prosseguimento da referida conspiração criminal, foi ilegal e clandestinamente

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introduzida na Índia uma grande quantidade de armas, tais como Espingardas

AK-56, pistolas, granadas de mão, munições e explosivos RDX, por mar, em

Dighi Jetty e Shekhadi, no Estado Indiano de Maharashtra, durante os meses de

Janeiro e Fevereiro de 1993. As referidas armas e munições, ilegal e

clandestinamente introduzidas, foram mantidas e armazenadas por diversas

pessoas e em diferentes locais, com o objectivo da sua utilização na prática de

actos terroristas.

4. Que a investigação revelou ainda que, no prosseguimento da referida

conspiração criminal, um determinado número dos arguidos recebeu formação

na Índia e no estrangeiro, no manuseamento de armas e munições sofisticadas,

que foram ilegal e clandestinamente introduzidas na Índia, nos termos referidos

acima. Receberam igualmente formação para a fabricação de bombas mediante

utilização de explosivos RDX. Foram seleccionados locais estratégicos como alvos

para as explosões de bombas na cidade de Mumbai. Foram adquiridos veículos

novos (de quatro e duas rodas). Foram criadas cavidades falsas nos referidos

veículos que foram convertidos em veículos-bomba, mediante o enchimento das

mesmas com explosivos RDX, durante a noite dos dias 11 e 12 de Março de

1993. Houve malas de viagem que receberam igualmente enchimento com

explosivos RDX, sendo desta forma convertidas em bombas.

5. Que, a 12 de Março de 1993, foram deixados veículos e malas de viagem

cheios de RDX em locais estratégicos, tais como a Bolsa de Valores de Bombaim,

o Edifício da Air Índia, Near Shiv Sena Bhawan, Plaza Cinema, e locais

comerciais de grande movimento, tais como Zaveri Bazar, Sheikh Memon Street,

etc.. As malas-bomba foram colocadas em quartos de 3 hotéis de cinco estrelas,

nomeadamente, Hotel Sea Rock, Bandra, Hotel Juhu Centaur e Airport Centaur,

Mumbai. As explosões dos referidos veículos-bomba e malas-bomba foram

accionadas na tarde do dia 12 de Março de 1993 e, cerca de duas horas depois,

era possível constatar o elevado rasto de morte e destruição provocado, conforme

descrito anteriormente. Foram também lançadas granadas de mão em dois

locais – Sahar International Airport, Mumbai, e Fishermen Colony, Mahim,

Mumbai. As explosões provocadas por granadas de mão produziram também

idênticos resultados.

6. Que, no decurso da investigação dos processos acima referidos, foi

recuperada uma grande quantidade de armas, munições e explosivos que se

encontrava na posse dos arguidos, e/ou por intermédio dos mesmos, sendo os

respectivos dados os seguintes:

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(i) Espingardas AK-56 62

(ii) Câmaras (AK-56) 280

(iii) Projécteis Redondos (AK-56) 38.888

(iv) Granadas de Mão 479

(v) Pistolas 9MM 12

(vi) Câmaras (9MM) 15

(vii) Projecteis Redondos (9 MM) 150

(viii) Detonadores Eléctricos 1.100

(ix) Varetas de Limpeza (9 MM) 40

(x) RDX 2.313 kg

(xi) Gelatina 1.132,5 kg

(xii) Initiative Devices 50 kg

(xiii) Revólveres 4

(xiv) Projécteis Redondos para Revólver 53

(xv) Revólveres (country made) 1

(xvi) Granadas Yellow 17

(xvii) Carabina — 0,30 1

(xviii) Câmara — 0,30 3

(xix) Projécteis Redondos — 0,30 28

(xx) Timer Pencil 1

7. Que, nos termos das leis da Índia, não podem estar na posse de pessoas

individuais espingardas AK-56, granadas de mão, explosivos RDX, etc.. Este tipo

de armas e explosivos sofisticados só pode estar na posse das Forças Armadas

e de outros Organismos de Execução da Lei.

8. Que, para alcançar os objectivos da conspiração, os arguidos

desempenharam diferentes papéis.

9. Que a investigação revelou ainda que “A”, filho de “C”, de B-31304, …, …,

… [West], Mumbai, com residência permanente em 42, …, …, District …, …,

Índia, foi um dos principais autores da referida conspiração criminal. Foi-lhe

confiada a tarefa do transporte ilegal e clandestino de armas e munições, etc., a

sua armazenagem, e a sua distribuição pelos outros co-arguidos. “A”,

conjuntamente com outros co-arguidos, entregou 3 Espingardas de Assalto AK-

56, carregadores e diversas granadas de mão ao co-arguido “D”. Também

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entregou espingardas AK-56, munições e granadas de mão ao co-arguido “E”

alias dictus “E”, para armazenagem. Para pôr em prática a referida conspiração

criminal, “A” manteve armazenadas Espingardas AK-56 e munições na

residência da Sra. “F”, em Mumbai. As referidas armas e munições, etc., foram

ilegal e clandestinamente introduzidas na Índia para a prática de actos

terroristas.

10. Que, no decurso da investigação, os co-arguidos, “G”, “E” alias dictus “E” e

“H” (que faleceu desde então), “D” e “I”, admitiram o papel por eles

desempenhado para alcançar os objectivos da referida conspiração criminal, e

fizeram declarações de confissão que foram legalmente gravadas, nos termos da

secção 15 da Terrorist and Disruptive Activities (Prevention) Act, 1987, pelos

funcionários competentes para procederem à sua respectiva gravação. As

referidas confissões ilustram claramente o profundo envolvimento de “A”na

conspiração objecto do processo. O papel desempenhado por “A” foi descrito

pelos referidos co-arguidos, nas suas confissões. As confissões foram provadas e

apresentadas no decurso do julgamento, por intermédio dos funcionários

competentes que haviam procedido à sua respectiva gravação. Juntam-se as

referidas confissões sob os Anexos "B", "C", "D", "E" e "F".

11. Que, após conclusão da investigação, foi emitida pela Polícia uma única

Acusação no âmbito dos processos acima referidos contra “A”e 188 Outros, junto

do Tribunal designado do Juiz J. N. Patel, em Mumbai, a 4 de Novembro de

1993, pela prática de crimes puníveis nos termos das secções 120-B e 120(B),

em conjunto com as Secções 324, 326, 427, 435, 121, 121-A, 122, 307, 302 e

201 do Código Penal Indiano, em conjunto com os números 3, 4 e 5 da Terrorist

and Disruptive Activities (Prevention) Act, 1987, em conjunto com os números 3,

7(a), 25(1A), 25(1AA), 26, 29, 35 da Arms Act, 1959, em conjunto com os

números 3, 4, 5 e 6 da Explosive Substances Act, 1908. Os factos revelados no

decurso da investigação encontram-se referidos na Acusação. O nome de “A”é

referido no SI. No. 95 da Acusação. Junta-se cópia da Acusação sob o Anexo "G".

12. Que “A”se encontrava foragido, não tendo sido possível efectuar a sua

detenção, pelo que não foi igualmente possível proceder ao seu interrogatório.

Consta como foragido na Acusação emitida pela Polícia a 4 de Novembro de

1993, junto do Tribunal.

13. Que, com base nos factos declarados na Acusação, o Douto Juiz reconheceu

a admissibilidade dos crimes, a 4 de Novembro de 1993, e registou o processo

sob a referência BBC No. 1/1993, para efeitos de julgamento. O julgamento do

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processo está a decorrer. Junta-se cópia do despacho do Tribunal sob o Anexo

"H".

14. Que, uma vez que a detenção do arguido “A” não foi possível, apesar de

todos os esforços da Polícia, o Ilustre Juiz do Tribunal Designado, emitiu o

despacho de Pronúncia N.º 157777 de 1993, contra o mesmo, a 15 de Setembro

de 1993. Dado que “A” não compareceu no Tribunal apesar da pronúncia, foi,

conjuntamente com outros foragidos, declarado Prevaricador Pronunciado, a 15

de Outubro de 1993. Juntam-se cópias da Pronúncia e do despacho do Tribunal

sob o Anexo "I".

15. Que o Ilustre Juiz do Tribunal Designado, Mumbai, emitiu um Mandado de

Detenção contra “A”, com o N.º BBC/335/94, a 8 de Setembro de 1994. Juntam-

se cópias do Mandado de Detenção e da decisão judicial do Tribunal para a

emissão do referido Mandado sob os Anexos "J" e "K".

16. Que o referido Mandado de Detenção foi remetido às autoridades dos

Emiratos Árabes Unidos, no ano de 1997, não tendo sido devolvido pelas

mesmas. Assim, o Ilustre Juiz do Tribunal Designado, Mumbai, a pedido do

Ministério Público, emitiu um outro Mandado de Detenção contra “A”, com o N.º

BBC/MA/39/2002/50/2002, com data de 5 de Março de 2002. Juntam-se o

original do Mandado de Detenção e a decisão judicial emitida pelo Tribunal

Designado para a emissão de Mandado sob os Anexos "L" e "M".

17. Que o Secretariado-Geral da Interpol em Lyon, França, também emitiu uma

Notificação Red Corner com o N.º A-103/3-1995, para detenção de “A”. Junta-se

fotocópia da mesma sob o Anexo "N".

18. Que, no decurso do julgamento, após ouvir os advogados do Ministério

Público e da Defesa, de forma exaustiva, o Ilustre Juiz do Tribunal Designado,

Mumbai, deduziu acusação de conspiração criminal contra todos os arguidos que

foram presentes ao Tribunal. Na acusação, refere-se que os referidos arguidos,

conjuntamente com os arguidos foragidos, incluindo”A”, cometeram diversos

crimes puníveis nos termos da Terrorist and Disruptive Activities (Prevention) Act,

1987, do Código Penal Indiano, da Arms Act, 1959, da Explosives Act, 1884, da

Explosive Substances Act, 1908, e da Prevention of Damage to Public Properties

Act, 1984. Junta-se cópia da acusação deduzida pelo Tribunal sob o Anexo "O".

19. Que se juntam extractos das disposições legais relevantes sob o Anexo "P".

20. Que “A” é um cidadão da Índia. Os alegados crimes foram por ele cometidos,

em Mumbai (Índia), e o Tribunal Designado, Mumbai, tem jurisdição para o seu

julgamento. De facto, está a decorrer o julgamento de outros arguidos.

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21. Que se juntam as impressões digitais de “A” sob o Anexo "Q".

2 – Relativamente a esse processo, a senhora Ministra da Justiça,

por despacho de 28 de Março de 2003, considerou admissível a

extradição de “A” para a União Indiana com base na prática dos

seguintes crimes:

– Um crime de organização terrorista, um crime de homicídio,

um crime de homicídio na forma tentada e dois crimes de dano

agravado, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos

120.º-B, 302.º, 307.º, 435.º e 436.º do Código Penal indiano;

– Dois crimes de terrorismo, previstos e puníveis pelos n.ºs 2 e 3

do artigo 3.º do Terrorist & Disruptive Activities (Prevention) Act

de 1987;

– Um crime de explosão, previsto e punível pelo artigo 3.º do

Explosive Substances Act de 1908;

– Um crime de dano agravado, previsto e punível pelo artigo 4.º

do Prevention of Damage for Public Property Act de 1984.

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8.º, n.º 1,

alínea c), da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, e 117.º, n.º 1, alínea c), do

Código Penal de 1982, a senhora Ministra da Justiça não considerou

admissível o pedido de extradição para a União Indiana de “A” pela

prática de:

− Dois crimes de favorecimento pessoal, dois crimes de ofensas

corporais e um crime de dano, previstos e puníveis,

respectivamente, pelos artigos 201.º, 212.º, 324.º, 326.º e 427.º

do Código Penal indiano;

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- Um crime de favorecimento pessoal e dois crimes de detenção,

uso e porte de engenhos ou materiais explosivos, previstos e

puníveis, respectivamente, pelos artigos 3.º, n.º 4, 5.º e 6.º do

Terrorist & Disruptive Activities (Prevention) Act de 1987;

− Um crime de explosão (actos preparatórios) e um crime de

detenção, uso e porte de engenhos ou materiais explosivos,

previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 4.º e 5.º do

Explosive Substances Act de 1908;

- Um crime de detenção, uso e porte de engenhos ou materiais

explosivos, previsto e punível pelo artigo 9.º-B, 1, b) do Explosive

Act de 1884;

− Dois crimes de detenção, uso e porte de armas proibidas,

previstos e puníveis pelo artigo 25.º, 1-A e B do Arms Act de

1959;

3 – Em função dessa decisão, o Ministério Público pediu a

extradição de “A” para a União Indiana pela prática, entre outros, dos

seguintes crimes:

– Crime de organização terrorista: artigo 120.º-B do Código Penal

Indiano;

– Crime de homicídio: artigo 302.º do Código Penal Indiano;

– Crime de homicídio na forma tentada: artigo 307.º do Código

Penal Indiano;

– Crime de dano agravado: artigo 435.º do Código Penal Indiano;

– Crime de dano agravado: artigo 436.º do Código Penal Indiano;

– Crime de terrorismo: artigo 3.º, n.º 2 do Terrorist & Disruptive

Activities (Prevention) Act, 1987;

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– Crime de terrorismo: artigo. 3.º, n.º 3 do Terrorist & Disruptive

Activities (Prevention) Act, 1987;

– Crime de explosão: artigo 3.º do Explosive Substances Act,

1908;

– Crime de dano agravado: artigo 4.º do Prevention of Damage to

Public Property Act, 1984;

Sintetizou a matéria de facto que justificava aquela imputação da

seguinte forma:

«Entre Dezembro de 1992 e Abril de 1993, de colaboração com

outros 188 arguidos, em Mumbai, Índia, levou a cabo um

conjunto de actos violentos de forma a espalhar perturbação de

natureza grave e terror naquele País através de explosões de

bombas, com a utilização de um grande número de material

bélico apenas permissível às forças armadas mas

clandestinamente introduzido na Índia, assim causando

voluntariamente a morte de 257 pessoas, ferimentos noutras 713

e a destruição de património de valor superior a 260 milhões de

rupias indianas (Pontos 2 a 21 do dossier n.º 1, pág. 2 a 7)».

4 – O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Janeiro

de 2005, autorizou a extradição de “A” para a União Indiana com vista

ao seu julgamento pela totalidade dos crimes identificados no pedido do

Ministério Público.

Acrescentou que ficava, «porém, explícito que a admissão e a

concessão da extradição – na decorrência da própria aceitação das

garantias oferecidas – fica[vam] condicionadas (resolutivamente) ao

cumprimento, pelo Estado requisitante, das garantias prestadas1,

1 Com vista, nomeadamente, (I) ao cumprimento da regra da especialidade (ou seja, de não reextradição ou de não perseguição por outros crimes, salvo extensão da cooperação), (II) à não

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condicionamento que conferirá ao Estado requisitado (oficiosamente ou

a pedido do interessado), em caso de inobservância, o direito de,

oportunamente (e pelos canais diplomáticos ou judiciários), exigir a

devolução do extraditado2»

5 – No dia 10 de Maio de 2007, depois de ter sido entregue ao

Estado Indiano, “A” juntou a estes autos o requerimento que se

transcreve:

«”A”, extraditando no processo à margem identificado e já entregue à União

Indiana, vem, nos termos e com os fundamentos expressos infra, denunciar:

A VIOLAÇÃO DAS GARANTIAS PRESTADAS PELO ESTADO REQUERENTE A

PORTUGAL

Solicitando, em conformidade, que seja ordenada a sua imediata devolução às

autoridades portuguesas:

I – Dos crimes pelos quais foi ordenada a extradição de “A”:

1. Na sequência do pedido de extradição formulado em Dezembro de 2002 pela

União Indiana ao Estado Português, a Ex.ma Senhora Ministra da Justiça,

através do despacho constante de fls. 36 a 39 dos autos e datado de 28 de

Março de 2003, considerou admissível o pedido em apreço mas restringiu o leque

de crimes pelos quais “A” poderia ser entregue à União Indiana, para

julgamento.

2. Assim, considerando que “A”se encontrava indiciado no âmbito do:

a) Processo RC-1 (S) 93/CBI/STF/MUMBAI, pela prática de:

– Um crime de organização terrorista, um crime de homicídio, um crime

de homicídio na forma tentada e dois crimes de dano agravado, previstos

e puníveis, respectivamente, pelos artigos 120.º-B, 302.º, 307.º, 435.º e

436.º do Código Penal indiano;

– Dois crimes de terrorismo, previstos e puníveis pelos n.ºs 2 e 3 do

sujeição do extraditado a julgamento por tribunais de excepção e (III) à limitação administrativa da execução da pena global, se perpétua ou de duração indefinida (ou de morte), a 25 anos de prisão. 2 Cfr., no mesmo sentido, Supremo Tribunal de Justiça 01-03-2001, 03-07-03 e 08-09-2003, recursos 606/01-5, 2640/03-5 e 2916/03-5.

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artigo 3.º do Terrorist & Disruptive Activities (Prevention) Act de 1987;

– Um crime de explosão, previsto e punível pelo artigo 3.º do Explosive

Substances Act de 1908;

– Um crime de dano agravado, previsto e punível pelo artigo 4.º do

Prevention Damage to Public Property Act de 1984;

b) Processo RC-15 (S) 97/CBI/STF/NEW DEHLI, pela prática de um crime de

uso de documento falso e um crime de associação criminosa, previstos e

puníveis, respectivamente, pelos artigos 471.º e 120.º-B do Código Penal

indiano;

c) Processo RC-34 (A) 2002/CBI/HYDERABAD, pela prática de um crime de

burla, um crime de uso de documento falso e um crime de associação

criminosa, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 420.º, 471.º e

120.º-B, do Código Penal indiano;

d) Processo FIR 88/2002, pela prática de um crime de extorsão, um crime de

favorecimento pessoal e dois crimes de ameaça, previstos e puníveis,

respectivamente, pelos artigos 387.º, 201.º, 506.º e 507.º do Código Penal

indiano;

e) Processo FIR 39/2002, pela prática de um crime de extorsão, um crime de

ameaça e um crime de associação criminosa, previstos e puníveis,

respectivamente pelos artigos 387.º, 506.º e 120.º-B do Código Penal

indiano;

f) Processo FIR 850/98, pela prática de um crime de associação criminosa e

um crime de extorsão, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos

120.º-B, com referência ao 384.º do Código Penal indiano;

g) Processo CR 144/95, pela prática de:

– Um crime de homicídio e um crime de homicídio na forma tentada,

previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 302.º e 307.º do

Código Penal indiano;

– Dois crimes de terrorismo e um crime de organização terrorista,

previstos e puníveis, respectivamente, pelos n.ºs 2, 3 e 5 do artigo 3.º do

Terrorist & Disruptive Activities (Prevention) Act de 1987;

h) Processo CR 52/2001, pela prática de:

– Um crime de sequestro, um crime de ameaça, dois crimes de

falsificação de documento e um crime de uso de documento falso,

previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 342.º, 506.º (ii), 465.º,

468.º e 471.º do Código Penal indiano;

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– Três crimes de detenção, uso e porte de armas proibidas, previstos e

puníveis pelos artigos 25.º, 1-A e 27.º do Arms Act de 1959.

3. Não considerou admissível, por força das disposições conjugadas dos artigos

8.º, n.º 1, alínea c) da Lei 144/99, de 31 de Agosto, e 117.º, n.º 1, alínea c) do

Código Penal de 1982 (extinção do procedimento criminal por prescrição), o

pedido de extradição de “A”, pelos seguintes crimes:

a) Processo RC-1 (S) 93/CBI/STF/MUMBAI, pela prática de:

– Dois crimes de favorecimento pessoal, dois crimes de ofensas corporais

e um crime de dano, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos

201.º, 212.º, 324.º, 326.º e 427.º do Código Penal indiano;

– Um crime de favorecimento pessoal e dois crimes de detenção, uso e

porte de engenhos ou materiais explosivos, previstos e puníveis,

respectivamente pelos artigos 3.º, n.º 4, 5.º e 6.º do Terrorist & Disruptive

Activities (Prevention) Act de 1987;

– Um crime de explosão (actos preparatórios) e um crime de detenção,

uso e porte de engenhos ou materiais explosivos, previstos e puníveis,

respectivamente, pelos artigos 4.º e 5.º do Explosive Substances Act de

1908;

– Um crime de detenção, uso e porte de engenhos ou materiais

explosivos, previsto e punível pelo artigo 9.º-B, 1, b, do Explosive Act de

1884;

– Dois crimes de detenção, uso e porte de armas proibidas, previstos e

puníveis pelo artigo 25.º, 1-A e B do Arms Act de 1959;

b) Processo RC-15 (S) 97/CBI/STF/NEW DEHLI, pela prática de:

– Um crime de burla e um crime de falsificação de documento, previstos e

puníveis, respectivamente, pelos artigos 420.º e 468.º do Código Penal

indiano;

– Um crime de falsas declarações, previsto e punível pelo artigo 12.º, 1,

b) do Passport Act de 1967;

c) Processo CR 144/95, pela prática de:

– Um crime de introdução em casa alheia e um crime de ameaça,

previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 452.º e 506.º do

Código Penal indiano;

– Um crime de detenção, uso e porte de armas proibidas, previsto e

punível pelo artigo 25.º, 1-B, a), do Arms Act de 1959;

– Um crime de detenção, uso e porte de engenhos ou materiais

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

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explosivos, previsto e punível pelo artigo 5.º do Terrorist & Disruptive

Activities (Prevention) Act de 1987.

4. Mais, por não estarem cumulativamente verificados os requisitos

estabelecidos no artigo 33.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa

(crimes cujos factos estão excluídos do âmbito de aplicação da Convenção

Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba e puníveis

com pena de prisão perpétua conforme o disposto nos seus artigos 1.º e 2.º) não

considerou igualmente admissível a extradição do ora requerente, relativamente

aos seguintes ilícitos:

a) Processo FIR 88/2002, pela prática de um crime de associação criminosa,

previsto e punível pelo artigo 3.º, n.ºs 2 e 4 do Maharashtra Control of

Organized Crime de 1999;

b) Processo FIR 849/98, pela prática de um crime de associação criminosa e

um crime de homicídio, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos

120.º-B, com referência ao 302.º do Código Penal indiano;

c) Processo CR 52/2001, pela prática de:

– Um crime de homicídio e um crime de violação de domicílio, previstos e

puníveis, respectivamente, pelos artigos 302.º e 449.º do Código Penal

indiano;

– Um crime de homicídio, um crime de associação criminosa e um crime

de favorecimento pessoal, previstos e puníveis, respectivamente, pelos

n.ºs 1, 2 e 4 e 3, do artigo 3.º do Maharashtra Control of Organized Crime

Act de 1999.

5. O despacho da Ex.ma Sra. Ministra da Justiça foi publicado, como se

impunha, no Diário da República (cf. fls. 53 a 54 dos autos) e, a 10 de Abril de

2003 – cf. fls. 20 a 34 dos autos –, o Ministério Público promoveu, junto deste

Tribunal da Relação de Lisboa, o cumprimento do pedido de extradição de “A”

para a União Indiana, a fim de aí ser julgado pela prática dos crimes

considerados admissíveis naquela decisão ministerial.

6. Após várias decisões judiciais, os presentes autos culminaram com o trânsito

em julgado do acórdão proferido a 27 de Janeiro de 2005 pelo Supremo Tribunal

de Justiça (constante de fls. 1711 a 1730 dos autos), ordenando a extradição de

“A” para a União Indiana, a fim de aí ser julgado pela totalidade dos crimes

identificados no pedido do Ministério Público, isto é, aqueles admitidos no

despacho de 28 de Março de 2003.

7. Não obstante, os Ex.mos Senhores Conselheiros tiveram o cuidado de

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

14

consignar expressamente, na sua decisão, que "fica, porém, explícito que a

admissão e a concessão da extradição – na decorrência da própria aceitação das

garantias oferecidas – ficam consignadas (resolutivamente) ao cumprimento, pelo

Estado requisitante, das garantias prestadas, condicionamento que conferirá ao

Estado requisitado (oficiosamente ou a pedido do interessado), em caso de

inobservância, o direito de, oportunamente, (e pelos canais diplomáticos ou

judiciários), exigir a devolução do extraditado.

8. Em nota de rodapé (constante de fls. 39 da sua decisão), o Supremo Tribunal

de Justiça concretizou o significado da violação das garantias prestadas pelo

Estado requerente, referindo-se "nomeadamente, (I) ao cumprimento da regra da

especialidade (ou seja, de não reextradição ou de não perseguição por outros

crimes, salvo extensão da cooperação), (II) à não sujeição do extraditado a

julgamento por tribunais de excepção e (III) à limitação administrativa da

execução da pena global, se perpétua ou de duração indefinida (ou de morte), a

25 anos de prisão.

9. Por despacho de 15 Fevereiro de 2005, o Ministro da Justiça viria igualmente

a admitir um pedido de ampliação da extradição de “A”, o qual deu origem ao

processo n.º 10.885/04, da 3.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa.

10. Por acórdão proferido a 30 de Novembro de 2005 foi admitida a ampliação

da extradição por crimes investigados no processo 505/01:

– Falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 468.º do Código Penal

indiano com a pena máxima de 7 anos de prisão;

– Uso de documento falso, p. e p. pelo artigo 471.º do Código Penal indiano

com a pena máxima de 7 anos de prisão;

– Falsificação de documento p. e p. pelo artigo 12.º n.º 1 alínea b) do

Passport Act de 1967 com pena máxima de 2 anos de prisão;

11. E expressamente excluída, da ordem de extradição, a possibilidade de “A”

ser julgado pelo crime de burla p. e p. pelo artigo 420.º do Código Penal indiano

com a pena máxima de 7 anos de prisão, também constante do pedido de

extradição.

II – Das garantias prestadas pela União Indiana ao Estado Português:

12. O processo de extradição n.º 3880/03 foi instruído com:

– A garantia de que “A”, uma vez entregue à União Indiana, não seria

perseguido por ofensas diversas daquelas taxativamente indicadas na

ordem de extradição (cf. garantia transmitida pela Embaixadora indiana em

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

15

Portugal, Mrs …, em nome do Governo da União Indiana, constante de fls.

137 a 138 do volume I dos presentes autos);

– A garantia de que “A”, uma vez entregue à União Indiana, não seria

extraditado para um terceiro Estado (cf. garantia transmitida pela

Embaixadora indiana em Portugal, Mrs …, em nome do Governo da União

Indiana, constante de fls. 137 a 138 do volume I dos presentes autos);

– A garantia de que “A”, uma vez entregue à União Indiana, não seria

condenado em pena de morte, nem em pena de duração superior a 25 anos

de prisão (cf. garantia solene prestada no dia 17 de Dezembro de 2002, pelo

Vice Primeiro-Ministro, …, constante de fls. 8 e 9 do Apenso I do Volume I,

dos autos de extradição).

13. No processo de ampliação n.º 10885/04, o Governo da União Indiana

reiterou a garantia de que “A” não seria condenado na pena de morte; não lhe

seria aplicada uma pena de prisão superior a 25 anos de prisão; não seria

julgado por crimes não incluídos no pedido de extradição; não seria extraditado

para terceiro Estado.

14. Apesar da defesa do extraditando ter colocado, sucessivamente, em causa a

validade e a suficiência das garantias prestadas pela União Indiana, as mesmas

foram consideradas válidas e aceites por Portugal, quer na fase administrativa,

quer na fase judicial dos presentes autos de extradição.

15. Lamentavelmente, uma vez chegado à Índia e entregue às autoridades desse

país, “A” veio a confirmar os seus piores receios, concretamente a deliberada

violação do princípio da especialidade pela União Indiana.

16. Com efeito e como se pode comprovar pela análise da documentação em

anexo, as autoridades judiciais indianas já revelaram o seu firme propósito de

perseguir, julgar e condenar “A” por ilícitos criminais excluídos do despacho

ministerial que ordenou a sua extradição para aquele Estado requerente.

III – Da violação das garantias prestadas pela União Indiana ao Estado

Português: violação do princípio da especialidade.

17. Como se disse, apesar do Supremo Tribunal de Justiça ter definido expressa

e cautelosamente o leque de crimes pelos quais autorizava e não autorizava a

extradição do ora requerente,

18. Uma vez chegado à União Indiana, o ora requerente foi confrontado com o

aditamento mais crimes à sua acusação no processo BBC n.º 1 de

1993/CBI/STF/MUMBAI, em clara violação do princípio da especialidade.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

16

19. Com efeito, na peça acusatória então entregue a “A” (cf. documento junto em

anexo com o n.º 1 e respectiva tradução, o qual corresponde a uma nova

acusação de “A”) é-lhe imputada a prática, "no âmbito da conspiração criminosa

descrita em Acusação I", dos seguintes ilícitos criminais:

– 1 crime p. e p. pelo n.º 3 (3) da Lei da Prevenção do Terrorismo e

Perturbações da Ordem Pública – TADA (P) de 1987;

– 1 crime p. e p. pelo n.º 6 da lei TADA (P) de 1987;

– 1 crime p. e p. pelo n.º 4 da Lei TADA (P) de 1987;

– 1 crime p. e p. pelo n.º 5 da Lei sobre Substâncias Explosivas de 1908;

– 1 crime p. pelo n.º 25 (I-A) (I-B) (a) r/w Secção 3 e 7 da Lei sobre Armas de

1959;

– 1 crime p. pelo n.º 9 B da Lei sobre Explosivos de 1884,

20. Os quais não só não se enquadram no conjunto de crimes autorizados para a

entrega de “A”, neste processo de extradição,

21. Como são expressamente excluídos da autorização expressa no despacho

ministerial de 28 de Março de 2003 – cf. supra artigo n.º 3 do presente

requerimento.

22. Ora e tal aditamento de crimes teve origem no facto das autoridades

indianas – tal como é revelado na decisão proferida a 13 de Junho de 2006 junta

em anexo como documento n.º 2, bem como respectiva tradução – terem

prosseguido numa alegada investigação de “A”, já depois da sua entrega à

União Indiana.

23. A defesa de “A” na União Indiana teve acesso a esta decisão judicial, pelo

facto da mesma ter sido proferida na sequência da sua oposição ao julgamento

em separado dos restantes arguidos, no processo BBC 1/93,

24. Sendo a seguinte passagem reveladora da matéria aqui alegada:

“O relatório referente ao aprofundamento da investigação, apresentado pela

agência de investigação, a 1 de Março de 2006, revelou prima facie novas

provas relevantes não só em relação aos actos/crimes praticados pelos

arguidos “A”/R… S…, bem como (…)” – cf. página 2 do documento n.º 2.

25. Ou seja, apesar das nossas autoridades terem restringido a entrega de “A”

para o seu julgamento por crimes já determinados e objecto de uma investigação

e de uma acusação já concluídas,

26. A investigação do ora requerente prosseguiu, o que conduziu ao alargamento

da sua acusação:

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

17

“Tendo o supramencionado em consideração, após ouvidas as duas partes,

tornou-se ainda mais urgente que o tribunal alterasse a acusação Doc. 4

lavrada no julgamento predominantemente pelo crime de conspiração e actos

públicos praticados no âmbito da mesma, isto é efectivando a correcção

necessária, pela adição dos nomes dos arguidos recentemente detidos em

local apropriado da acusação principal de conspiração, lavrada em tribunal,

apagando o nome de “A” da lista de foragidos e adicionando acusações por

actos públicos cometidos”. Cf. página n.º 3 do documento n.º 2, com

sublinhado nosso.

27. Donde, sendo tão clara e evidente a violação das garantias prestadas pela

União Indiana de que “A” não seria julgado por crimes não incluídos no pedido

de extradição,

28. E tendo a sua entrega sido sujeita à condição resolutiva do cumprimento das

mesmas garantias (cf. decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça e

constante de fls. 1711 a 1730 dos autos), pelo Estado requerente,

29. Solicita-se, pelo presente, seja ordenada a imediata devolução de “A” ao

Estado Português, com fundamento na violação do princípio da especialidade por

parte da União Indiana».

Juntou a esse requerimento cópia da nova acusação deduzida, a

qual tem o seguinte teor:

Além da Acusação I, o arguido “A” é também acusado por ter cometido os

seguintes crimes, no âmbito da conspiração criminosa descrita na Acusação I:

SEGUNDO: O arguido “A” , no âmbito da conspiração criminosa

supramencionada e durante o período de Janeiro de 1993 a Março de 1993,

instigou e facilitou, de forma ciente e intencional, a prática de actos terroristas e

de actos de preparação de acções terroristas, ou seja, atentados à bomba e

outros actos cometidos em Bombaim e arredores a 12/03/1993 através dos

seguintes actos:

a) Na 2.ª semana de Jan. de 1993, o arguido deslocou-se a Bharuch

(Gujarat), juntamente com o arguido foragido “J”, num carro Maruti, com o

objectivo de receber armas, munições e explosivos e transportar os mesmos

para Bombaim de forma clandestina com vista à

distribuição/armazenamento dos mesmos entre os co-arguidos para a

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

18

prática de actos terroristas na cidade de Mumbai e, no âmbito da referida

conspiração criminosa, o arguido, em conjunto com outro co-arguido,

deliberadamente trocou o automóvel Maruti por uma carrinha Maruti do

arguido “K” para transportar armas e munições ilícitas para Mumbai.

b) O arguido recolheu nove espingardas AK-56, cerca de 100 granadas de

mão e várias caixas de cartuchos e carregadores da aldeia de S…, perto de

Bharuch (Gujarat), na 2.ª semana de Jan. de 1993 e transportou-as para

Bombaim, via Bhiwandi e Thane, devidamente dissimuladas em cavidades

falsas da carrinha Maruti branca com matrícula de Gujarat, que lhe foi dada

pelo arguido “K” com esta finalidade.

c) Após ter transportado as referidas armas e munições para Bombaim nas

cavidades falsas da carrinha Maruti branca, por instigação do arguido

foragido “J”, o arguido, juntamente com o co-arguido “G” e “E”, em

julgamento, entregou parte das armas e das munições ao co-arguido “D”, na

residência deste, na 2.ª semana de Jan. de 1993.

d) O arguido, juntamente com “I” e “H” (entretanto falecido), recuperaram

parte das armas e das munições dadas a “D” e guardaram as mesmas na

residência do co-arguido “F”, em … Apartment, …, por instigação do arguido

foragido “J” e de “L”.

PELO QUE o arguido cometeu um crime previsto e punível pelo N.º 3(3) da Lei da

Prevenção do Terrorismo e Perturbações da Ordem Pública, a TADA (P), de 1987,

e dentro da minha jurisdição.

TERCEIRO: O arguido “A” , na 2.ª semana de Janeiro de 1993, estava na posse

de nove espingardas AK-56, cerca de 100 granadas de mão e várias caixas de

cartuchos e carregadores que foram por ele transportados da aldeia de …, perto

de Bharuch (Gujarat), para Bombaim, especificada como uma área notificada

nos termos da Cláusula (f) da sub-secção (I) da Secção 2 da Lei TADA (P), de

1987, pelo que o arguido cometeu um crime previsto e punível pelo N.º 5 da Lei

TADA (P), de 1987, e dentro da minha jurisdição.

QUARTO: O arguido “A”, na 2.ª semana de Janeiro de 1993, com a intenção de

ajudar terroristas, violou as cláusulas da Lei sobre Armas de 1959, dos

Regulamentos sobre Armas de 1962, da Lei sobre Explosivos de 1884, da Lei

sobre Substâncias Explosivas de 1908, e das Normas sobre Explosivos de 1983,

através da participação no transporte de armas e munições de Bharuch (Gujarat)

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

19

para Bombaim e da subsequente entrega das mesmas ao co-arguido “D”, na sua

residência, após o que o arguido, juntamente com os co-arguidos “I” e “H”

(entretanto falecido) recuperaram parte das armas e das munições da residência

de “D”, guardaram-nas em casa do co-arguido “F”, em … Apartments, Bandra,

pelo que cometeu um crime previsto e punível pelo N.º 6 da Lei TADA (P), de

1987, dentro da minha jurisdição.

QUINTO: O arguido “A” , juntamente com outro co-arguido, na 2.ª semana de

Jan. de 1993 transportou nove espingardas AK-56, cerca de 100 granadas de

mão e várias caixas de cartuchos e carregadores da aldeia de …, no distrito de

Bharuch (Gujarat) para Bombaim, pelo que tinha em sua posse e sob o seu

controlo substâncias explosivas, como granadas de mão, com a intenção de as

usar para ameaçar vidas e causar graves prejuízos a propriedades na Índia e de

permitir que os restantes co-conspiradores ameaçassem vidas e causassem

graves prejuízos à propriedade, pelo que cometeu um crime previsto e punível

pelo número 4 da Lei TADA (P), de 1987, e dentro da minha jurisdição.

SEXTO: O arguido “A” , na 2.ª semana de Jan. de 1993, transportou nove

espingardas AK-56, perto de 100 granadas de mão e várias caixas de cartuchos

e carregadores da aldeia …, no distrito de Bharuch (Gujarat), para Bombaim

reconhecidamente em circunstâncias que levantariam suspeitas razoáveis

segundo as quais não tinha as mesmas em sua posse ou sob o seu controlo para

fins legais, pelo que cometeu um crime punível pelo N.º 5 da Lei sobre

Substâncias Explosivas de 1908, e dentro da minha jurisdição.

SÉTIMO: O arguido “A” , na 2.ª semana de Jan. de 1993, adquiriu, esteve na

posse e transportou nove espingardas AK-56, cerca de 100 granadas de mão e

várias caixas de cartuchos e carregadores de forma não autorizada, sendo essas

armas e munições proibidas, da aldeia de …,, no distrito de Bharuch (Gujarat)

para Bombaim, dissimuladas em cavidades falsas de uma carrinha Maruti, pelo

que cometeu um crime punível pelo N.º 25 (I -A) (I-B) (a) r/w Secção 3 e 7 da Lei

sobre Armas de 1959, e dentro da minha jurisdição.

OITAVO: O arguido “A” , no âmbito da supramencionada conspiração criminosa,

durante o período e no local referidos, em violação dos Regulamentos

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

20

enquadrados pelo N.º 5 da Lei sobre Explosivos de 1884, teve na sua posse

cerca de 100 granadas de mão e várias caixas de cartuchos, pelo que cometeu

um crime punível pelo N.º 9 B da Lei sobre Explosivos de 1884, e dentro da

minha jurisdição.

6 – Apreciando esse requerimento, o relator proferiu, no dia 18 de

Maio de 2007, o seguinte despacho:

«O extraditado “A”, alegando “clara e evidente violação das garantias prestadas

pela União Indiana”, nomeadamente violação do princípio da especialidade, veio,

a fls. 2490 e segs., requerer a este tribunal que fosse ordenada a sua imediata

devolução ao Estado Português.

Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que tal violação, a existir, nunca pode

fundamentar a consequência pretendida pelo requerente.

A nosso ver, essa alegada violação, a confirmar-se, apenas pode justificar a

responsabilização do Estado requerente no plano internacional, a qual não

depende da actuação de qualquer tribunal português, e a utilização pelo

extraditado dos meios de defesa adequados previstos no direito da União

Indiana.

Sintomática é a inexistência de qualquer norma interna portuguesa que legitime

a pretendida actuação deste tribunal.

Assim, e embora consideremos que «os poderes de um Estado Democrático não

podem alhear-se das consequências a que podem dar origem a suas actuações3»,

entendemos que este tribunal não tem competência para ordenar a devolução do

extraditado, razão pela qual se indefere o requerido».

Na sequência de um pedido do requerente, o relator aclarou o

despacho proferido anteriormente, dizendo o seguinte:

Depois de notificado do despacho proferido no passado dia 25 de Maio de 2007

(fls. 2581/2), o extraditado “A”, invocando o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1

e o n.º 3 do artigo 380.º do Código de Processo Penal, veio requerer que este

tribunal esclarecesse qual era a sua interpretação quanto «ao consagrado na

decisão do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente:

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

21

a) Se se considera que a União Indiana não está vinculada às condições

impostas para a entrega constantes da decisão do Supremo Tribunal de Justiça

que determinou a extradição do ora requerente.

b) Se se considera que a entrega do extraditando ao Estado Requerente com

explicitação (constante de decisão judicial) de que tal entrega é feita sob a

condição resolutiva do cumprimento das garantias prestadas não confere ao

Extraditado, por si só e independentemente de norma legal expressa, o direito de

exigir judicialmente a devolução ao Estado Requerido.

c) Em suma, se se considera ou não que a decisão do Supremo Tribunal de

Justiça que apôs como condição resolutiva de entrega do Extraditando o

cumprimento das garantias prestadas por aquele Estado ao Estado e Tribunais

Portugueses e que considerou que o incumprimento de tal condição era

judicialmente sindicável, confere ou não ao Requerente de reclamar junto dos

Tribunais Portugueses a sua devolução».

Interpretando esse requerimento no sentido de que o requerente pretende a

correcção do despacho proferido por insuficiência da sua fundamentação4 e a

aclaração do mesmo por, na sua óptica, ele padecer de obscuridade e

ambiguidade, importa dizer o seguinte:

a) De modo algum se questiona a força de caso julgado da decisão proferida em

27 de Janeiro de 2005 pelo Supremo Tribunal de Justiça, que consta dos pontos

13.1 e 13.2 do acórdão então proferido (fls. 1729 verso e 1730);

b) Tal não significa, porém, em nosso entender, que este tribunal possa impor

ao Estado requerente a entrega do extraditado;

c) De facto, a cooperação judiciária internacional em matéria penal, até por

imposição constitucional5, rege-se pelas normas dos tratados, convenções e

acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou

insuficiência, pelas disposições» da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, sendo

«subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal»;

d) Ora, nenhuma destas fontes normativas contém qualquer disposição que

permita uma tal decisão;

3 ROVIRA, António, in «Extradición y Derechos Fundamentales», Thomson-Civitas, Navarra, 2005, p. 33. 4 É o que se entende resultar da aplicabilidade da alínea a) do n.º 1 do artigo 380.º do Código de Processo Penal aos despachos judiciais e de os mesmos não se encontrarem sujeitos ao formalismo imposto pelo artigo 374.º, devendo, no entanto, ser fundamentados (artigo 97.º, n.º 4). 5 Alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

22

e) Isso não quer dizer, no entanto, que o Estado Português6, sendo o caso, para

além de extrair do incidente as necessárias consequências políticas, não possa

responsabilizar, no plano internacional, a União Indiana;

f) Isto muito embora se possa duvidar da possibilidade de, neste caso concreto,

se suscitar a intervenção do Tribunal Internacional de Justiça7 (apesar de os

dois Estados, em geral, se terem comprometido a conformar-se com as decisões

desse tribunal em qualquer caso em que fossem partes8).

g) Nada disto obsta, contudo, a que o extraditado faça valer, no plano interno

da União Indiana, quer perante os tribunais de 1ª instância, quer perante

tribunais de recurso, os seus direitos.

7 – O requerente interpôs recurso daquele despacho para o

Supremo Tribunal de Justiça.

Este tribunal, por acórdão de 13 de Dezembro de 2007, decidiu

dar parcial provimento ao recurso interposto pelo extraditado,

revogando o despacho recorrido e determinando que ele fosse

substituído por outro em que se tomasse posição sobre a alegada

violação do princípio da especialidade.

8 – Na sequência desse acórdão, o relator proferiu o despacho que

se transcreve:

«1 – Através do requerimento junto a fls. 2490 e segs., foi solicitado que este

Tribunal ordenasse «a imediata devolução de “A” ao Estado Português, com

fundamento na violação do princípio da especialidade por parte da União

Indiana».

Interposto recurso da decisão deste tribunal que indeferiu essa pretensão, o

Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 13 de Dezembro de 2007,

6 Os Tribunais são apenas um dos órgãos de soberania previstos na Constituição. 7 Dada a reserva feita pela União Indiana à Convenção de Nova Iorque, que se transcreve: "In accordance with Article 20 (2), the Government of the Republic of India hereby declares that it does not consider itself bound by the provisions of Article 20 (1) of the Convention" (http://untreaty.un.org/ENGLISH/bible/englishinternetbible/partI/chapterXVIII/treaty10.asp).

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

23

concedendo parcial provimento ao recurso, revogou o despacho recorrido, tendo

determinado que o mesmo fosse substituído por outro em que o tribunal tomasse

posição sobre a alegada violação do princípio da especialidade.

Para melhor se compreender o sentido dessa decisão, importa transcrever o

ponto 6 da fundamentação desse acórdão. Nele se diz o seguinte:

«Este S.T.J., sem querer inviabilizar a extradição de “A” , procurou no entanto

rodeá-la de garantias, a prestar pelo Estado solicitante, que afastassem a

eventualidade de o extraditado vir a sofrer tratamento, na União Indiana,

incompatível com os direitos do extraditado e os princípios de cooperação,

vigentes entre nós.

Entre essas garantias conta-se a do respeito pela regra da especialidade, da

parte da União Indiana. E também neste particular foram prestadas garantias

solenes ao Estado português.

Se, de facto, o Estado requisitante não cumpriu aquilo a que se comprometera,

não podem as instâncias judiciárias portuguesas considerar-se completamente

estranhas à situação.

Ora, a primeira questão que interessará apurar, é a de se saber se, realmente,

houve ou não violação da garantia prestada, nos termos da qual só haveria

procedimento contra o extraditado pelos factos apresentados como fundamento

da extradição.

Depois, uma vez concluído que o extraditando está a ser “perseguido, detido,

julgado, ou sujeito a qualquer outra restrição de liberdade por facto ou

condenação anteriores à sua saída do território português, diferentes dos

determinados no pedido de cooperação” (cf. artigo 16º n.º 2 da Lei 144/99 de 31

de Agosto), e não abrangidos por qualquer ampliação do pedido, então o Tribunal

da Relação de Lisboa deverá daí tirar as devidas consequências.

Pelo menos, declarará resolvida a autorização concedida, de extradição, o que

terá o significado de ter que se considerar a presença do recorrente, em território

da União Indiana, ilegal.

Esta declaração deverá depois ser devidamente encaminhada para as

instâncias do poder político, através da autoridade central em matéria de

cooperação judiciária penal internacional, que é a Procuradoria-Geral da

República, a fim de, pela via diplomática, o Estado português tomar a atitude

que for considerada mais conveniente»

8 Declaração da União Indiana de 15 de Setembro de 1974 e Declaração de Portugal de 18 de

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

24

2 – Depois de o extraditado ter apresentado a prova documental que considerou

pertinente, a União Indiana, alegando que a questão da eventual violação do

princípio da especialidade estava pendente de apreciação por parte do Supremo

Tribunal da Índia, quer por via do recurso que foi interposto pelo extraditado da

decisão do Tribunal de Mumbai, quer por via de um requerimento de conteúdo

idêntico por ele apresentado a essa alta instância, requereu que estes autos

aguardassem «a decisão que os Tribunais da União Indiana venham a proferir

sobre o recurso interposto pelo extraditado, para então, eventualmente, se

retirarem as devidas consequências».

Ouvido sobre a matéria, o Ministério Público disse que não via fundamento para

que se indeferisse a pretensão da União Indiana (fls. 3767).

O extraditado, por sua vez, aproveitando a oportunidade para rebater os

argumentos esgrimidos pela União Indiana e mostrando a sua disponibilidade

para, assim que dela tenha conhecimento, juntar a estes autos a decisão que

venha a ser proferida, sustentou que deveria prosseguir a apreciação deste

incidente porquanto a violação do princípio da especialidade decorria da «mera

circunstância de ter sido proferida nova acusação contra o extraditado em que se

inclu[íam] factos e crimes expressamente excluídos do despacho proferido pela

Exma. Senhora Ministra da Justiça portuguesa».

Importa, portanto, apreciar a questão suscitada pela União Indiana no ponto 38

do requerimento de fls. 2701 e segs.

3 – A nosso ver, como, de certa forma, se podia depreender dos despachos

proferidos em 18 de Maio e 12 de Junho de 2007, que, nessa parte, não foram

contrariados pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro

de 20079, só se pode responsabilizar um Estado pela violação das garantias

Fevereiro de 2005. 9 No ponto 5 da fundamentação afirma-se, nomeadamente, o seguinte: «A cooperação entre Portugal e os demais Estados rege-se, neste domínio, pelos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da Lei 144/99, para além das do C.P.P. (artigo 3º da referida lei). O nosso ordenamento não prevê qualquer consequência específica para a violação do princípio da especialidade por parte do Estado requerente da extradição. E isto, a nosso ver, devido à especificidade do relacionamento entre dois Estados soberanos, como é o caso na extradição, o que, no fundo, redunda na constatação das características inerentes ao ramo de direito que é o direito internacional público. Só que, nem por isso Portugal fica privado, enquanto Estado soberano solicitado, de reagir ao que se apure ter sido uma violação do princípio da especialidade.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

25

prestadas quando qualquer decisão dos seus tribunais que, eventualmente, as

contrarie tenha transitado em julgado.

Não basta, para tanto, a simples prolação de uma decisão por um tribunal de 1.ª

instância não transitada em julgado.

Por isso, independentemente do juízo que se vier a fazer quanto à alegada

violação do princípio da especialidade (que poderá não ter a rigidez que é

pressuposta pelo extraditado10), e porque da decisão do Tribunal de Mumbai foi

interposto recurso para o Supremo Tribunal da Índia, entidade que, tanto quanto

os autos revelam, ainda não o apreciou, deve este processo aguardar o trânsito

em julgado daquela decisão, só então, e se necessário, se apreciando a questão

colocada pelo extraditado».

9 – O Supremo Tribunal da União Indiana veio a apreciar o

recurso interposto pelo extraditado da decisão da 1.ª instância que

tinha admitido o julgamento pelos novos factos, dizendo o respectivo

relator, depois de fazer um relatório pormenorizado das vicissitudes do

processo, nomeadamente, o seguinte:

«23) A principal queixa do recorrente é a de que, na medida em que foi

extraditado especificamente para ser julgado apenas por determinados crimes, a

presente acção, levada a cabo pelo Tribunal Especial e pelo Ministério Público, de

acrescentarem outros crimes sem recorrerem a uma decisão específica do

Governo de Portugal, não tem sustentação legal. O douto representante do

recorrente submeteu a este Tribunal a lista dos crimes acordada pelo Governo de

Antes do mais, e em termos gerais, pela via político-diplomática. Por essa via, o Estado português, através da Procuradoria-Geral da República na qualidade de autoridade central, poderá pedir contas ao Estado relapso, solicitando-lhe a pertinente informação sobre a actuação dos seus tribunais, e no que toca ao que tiver sido alegado pelo extraditado. Depois, o Estado português poderá sempre invocar o desrespeito que tenha tido lugar, em futuros pedidos de extradição formulados pelo mesmo país, dificultando ou mesmo recusando novas extradições. Não está excluída, à partida, a intervenção de instâncias de jurisdição internacional, ou de tribunais internos do Estado inadimplente que o requerente accione». 10 Ver, sobre o conteúdo do princípio da especialidade, nomeadamente, BASSIOUNI, M. Cherif, in «International Extradition», 5ª Edição, 2007, Oceana, Oxford, p. 537 a 604, GARCÍA SÁNCHEZ, Beatriz, in «La Extradición en el Ordenamiento Interno Español, Internacional y Comunitario», Comares, Granada, 2005, p. 242 a 249, e o que hoje resulta quanto à delimitação de tal princípio, por exemplo, do artigo 6.º, n.º 3, da «Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa», assinada na Cidade da Praia em 23 de Novembro de 2005 (DR 1ª Série de 15/9/2008).

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

26

Portugal e reclamou que acrescentar novas acusações constitui uma

desobediência flagrante do artigo 21.º da Lei da Extradição, assim como da

garantia solene e soberana prestada pelo Governo da Índia. Segundo o

recorrente, as acusações feitas ao abrigo dos artigos 3 (4), 5 e 6 da Lei TADA,

dos artigos 4 (b) e 5 da Lei das Substâncias Explosivas, do artigo 25 da Lei das

Armas, do artigo 9B da Lei dos Explosivos e as acusações feitas ao abrigo dos

artigos 120B, 387 e 386 do Código Penal indiano e ao abrigo do artigo 5 da Lei

TADA são todas não admissíveis, contrárias à garantia solene e soberana, ao

despacho ministerial de extradição do recorrente, emitido pelo Governo de

Portugal, ao acórdão do Tribunal da Relação, assim como ao acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça.

24) As partes estão de acordo relativamente à aplicação do artigo 21.º da Lei da

Extradição de 1962 (o que aliás já foi referido na parte inicial da nossa sentença)

ao processo de extradição do recorrente de Portugal para a Índia em 11.11.2005.

Já realçámos o facto de que, dada a inexistência de um tratado formal entre a

Índia e Portugal, o pedido de extradição tinha sido feito ao abrigo da Convenção

Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba. Em virtude

da Notificação de 13.12.2002, o Governo da Índia regulou a aplicabilidade das

disposições da Lei da Extradição para efeitos da extradição do recorrente de

Portugal para a Índia. Realça-se ainda que no despacho ministerial com data de

28.03.2003, o Governo de Portugal rejeitou o pedido de extradição do recorrente

com base nos crimes previstos nos artigos 201, 212, 324, 326 e 427 do Código

Penal indiano, nos artigos 3(4), 5 e 6 da Lei TADA, nos artigos 4 e 5 da Lei das

Substâncias Explosivas, no artigo 9B da Lei dos Explosivos e no artigo 25 (1A) e

(1B) da Lei das Armas. De igual modo, o Governo de Portugal rejeitou o pedido de

extradição do recorrente com base nos crimes previstos nos artigos 120-B, 387 e

387 do Código Penal indiano e no artigo 5 da Lei TADA. A referida Notificação,

com data de 11.04.2003, foi publicada no jornal oficial do Governo de Portugal,

onde se especificavam os crimes pelos quais era requerido consentimento para a

extradição. O douto defensor do recorrente já salientou que o Tribunal da

Relação e o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal confirmaram o despacho

ministerial e as Notificações. O Supremo Tribunal de Justiça de Portugal referiu

especificamente o "Princípio da Especialidade" e as garantias dadas pelo

Governo indiano relativamente ao cumprimento da regra da especialidade. O

argumento do defensor do recorrente, na sua essência, é o de que, na medida em

que o recorrente foi trazido para a Índia com base no tratado de extradição, ele

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

27

só poderá ser julgado por crimes mencionados no despacho de extradição e que

deram sustentação ao pedido de extradição, e por nenhuns outros. O defensor

do recorrente salientou ainda que o Tribunal Especial não tem competência para

julgar o recorrente por esses crimes. Para esse efeito, foi buscar respaldo na

sentença deste Tribunal, no processo Daya Singh Lahoria vs. União Indiana e

Outros, (2001) 4SCC 516. O douto defensor socorreu-se dos seguintes princípios

em matéria da "Doutrina da Especialidade", de acordo com o debatido nas

páginas 521-522 da sentença:

"A doutrina da especialidade é uma outra regra do direito internacional

relativa à extradição. Assim, quando uma pessoa é extraditada por um

crime específico, ela só poderá ser julgada por esse mesmo crime. Caso o

Estado requerente considere desejável julgar o réu extraditado por outro

crime cometido antes da sua extradição, o réu deverá ser colocado no seu

status quo anterior, ou seja, deverá ser devolvido ao Estado que concedeu a

extradição, devendo ser requerido um novo pedido de extradição

relativamente ao referido crime. A Lei da extradição indiana estabelece uma

disposição específica para esse efeito. Tendo em consideração o artigo 21 da

Lei da Extradição indiana, de 1962, um réu extraditado não poderá ser

julgado na Índia por nenhum outro crime para além daquele pelo qual tenha

sido extraditado, salvo se tiver sido devolvido ou tiver tido a oportunidade

de ser devolvido ao Estado que o entregou. A doutrina da especialidade é de

facto um do princípio da dupla criminalidade e a doutrina acima referida

parte do pressuposto de que sempre que um Estado usa o seu processo

formal para entregar uma pessoa a outro Estado com base numa acusação

específica, o Estado requerente deverá levar a cabo o seu propósito de

accionar ou de punir o criminoso pelo crime de que foi acusado no seu

pedido de extradição e por nenhum outro. (ver M. Cherif Bassiouni –

International Extradition and World Public Order.) No livro International Law,

de D.P. O'Connell, o princípio da especialidade é descrito do seguinte modo:

"De acordo com este princípio, o Estado para o qual uma pessoa tenha sido

extraditada, sem o consentimento do Estado requerido, não poderá julgar

essa pessoa extraditada senão pelo crime pelo qual tenha sido extraditada.

Muitos tratados de extradição consagram esta regra e levanta-se a questão

se esta será uma questão de direito internacional ou não."

O Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos, apesar de não colocar a

regra no plano do direito internacional, chegou de facto à mesma conclusão

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

28

no processo Estados Unidos vs Rauscher. O Supremo Tribunal negou a

competência do tribunal que julgava o caso, embora o tratado não

estipulasse que não devesse existir julgamento e determinou: (US pp. 429-

30: L Ed. P. 432)

"O peso da autoridade e dos sãos princípios favorecem a premissa de que

uma pessoa que tenha sido feita comparecer perante um tribunal em função

de um processo no âmbito de um tratado de extradição só poderá ser

julgada por um dos crimes descritos nesse tratado, não podendo ser julgada

pelo crime do qual esteja a ser acusado no processo da sua extradição

enquanto não for devolvido ou tiver tido a oportunidade, após a sua

libertação ou julgamento relativamente a tal acusação, de regressar ao país

de cujo asilo foi compulsivamente removido, ao abrigo desse processo."

Face à posição acima referida no direito, quer em direito internacional, um

foragido trazido de volta a este país, ao abrigo de um despacho de

extradição, só pode ser julgado pelos crimes mencionados no despacho de

extradição e por nenhum outro crime, não tendo os tribunais criminais desse

país competência para julgar esse foragido por qualquer outro crime. Este

pedido e estes pedidos de licença especiais são regulamentados em

conformidade."

Se aplicarmos os princípios acima referidos nos termos do despacho do Governo

português, o Tribunal especial/Ministério Público não poderá ir para além dos

vários crimes mencionados no despacho de extradição. Gopal Subramaniam,

douto Solicitador-Geral, e H.P. Rawal, douto Solicitador-Geral Adjunto,

explicaram a "Regra da Especialidade". O douto Solicitador-Geral ilustrou os

seus argumentos recorrendo a um exemplo, nomeadamente o de um réu

extraditado para o Reino Unido, que tem direito à protecção da especialidade

prevista no artigo 146.º da Lei da Extradição de 2003 (C.41). Por outras

palavras, a seguir à sua extradição, ele só poderá ser julgado pelos crimes

especificados nesse artigo. Os crimes especificados no número 3 do artigo 146.º

são os seguintes:

a) o crime pelo qual o réu é extraditado;

b) um crime divulgado pela informação facultada ao território de categoria 1

relativa a esse crime;

c) um crime passível de extradição relativamente ao qual seja dado o

consentimento para o réu em causa ser processado, em nome do território e

em resposta a um pedido feito pelo juiz competente;

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

29

d) um crime que não seja punível com pena de prisão ou outra forma de

detenção;

e) um crime relativamente ao qual a pessoa em causa não vá ser detida em

ligação com o seu julgamento, sentença ou recurso;

f) um crime relativamente ao qual a pessoa renuncie ao direito que teria

(salvo na alínea f) do número 6 do artigo 146) de não ser processado pelo

crime.

25) A "regra da Especialidade foi sucintamente explicada no tratado "The Law of

Extradition and Mutual Assistance". (Segunda edição de CLIVE Nicholls QC,

Clare Montgomery QC, Julian Knowles – Oxford Publication) com o seguinte

exemplo:

"Neste contexto, o funcionamento do princípio da especialidade pode ser

ilustrado por um exemplo, baseado nos factos do processo Kerr e Smith

(1976) 62 Cr App R 210 (um processo ao abrigo da Lei da Extradição de

1870). Suponhamos que é submetido à Dinamarca um mandado de captura,

tendo em vista a entrega de D pelo cometimento de um crime de roubo, ao

abrigo do n.º 1 do artigo 8.º da Lei do Roubo de 1968. O mandado de

captura especifica apenas o crime de roubo. Contudo, a descrição factual do

crime remetida pelo Reino Unido à Dinamarca refere que D empunhou uma

espingarda de canos serrados no decurso do roubo. Trata-se de um crime

previsto no artigo 18.º da Lei das Armas de Fogo de 1968. A extradição é

concedida.

D pode ser julgado por roubo e pelo crime previsto no artigo 18.º, dado que

este constava da informação prestada à Dinamarca, pelo que aplicar-se-ia a

alínea b) do n.º 6 do artigo 146.º. Contudo, caso se viesse a apurar que

antes do roubo D tinha agredido a sua esposa, este não poderá ser julgado

por esse crime sem primeiro lhe ser concedida uma oportunidade de deixar o

Reino Unido após o cumprimento da pena pelo roubo, salvo se a Dinamarca

der o seu consentimento ou se D renunciar aos seus direitos. Isto porque o

crime de agressão não constava da informação prestada em suporte do

pedido da sua extradição."

Um princípio similar pode ser encontrado em Halsbury's Laws of England, 4.ª

edição, Vol. 18, P. 246:

"Extradição e Fugitivos

246. Julgamento por outras acusações. Quando uma pessoa acusada ou

condenada por um crime passível de extradição é entregue por um Estado

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

30

estrangeiro, enquanto não for devolvida ou enquanto não lhe for concedida a

oportunidade de regressar ao Estado estrangeiro, não é passível de ser

julgada, nem poderá ser julgada por nenhum crime cometido antes da sua

entrega em qualquer parte dos domínios de Sua Majestade, para além dos

crimes na base da sua extradição, conforme poderá ser provado pelos factos

que fundamentaram a sua extradição. Consequentemente, uma pessoa

extraditada com base numa acusação específica só é passível de ser

julgada por qualquer crime que possa ser provado pelos factos baseados

nos quais a sua entrega tenha sido feita. Quando o requerente alegar que

está ser julgado por um crime que não seja um crime passível de extradição,

o ónus da prova de que foi entregue ao abrigo da lei da extradição recairá

sobre ele."

De igual modo, a obra American Jurisprudence também reconhece que uma

ligeira variação na descrição do crime no processo de extradição e na acusação

ou informação subsequente não viola a Regra da Especialidade. O parágrafo 155

de American Jurisprudence, 2.ª ed., Vol. 31.º, é pertinente nesta matéria:

“155. Efeito de variações na acusação; acusações relacionadas e implícitas

Uma ligeira variação na descrição do crime no processo de extradição e na

acusação ou informação subsequente não viola a Regra da Especialidade.

Em geral será suficiente se os factos indicados no processo de extradição e

os factos em que se baseia a acusação no julgamento forem

substancialmente os mesmos, não obstante o crime em si poder ter uma

designação diferente no país cedente. Caso a extradição se baseie em várias

acusações, será irrelevante se o julgamento incidir sobre todas ou apenas

numa delas, apesar de normalmente um foragido devolvido poder ser

julgado por qualquer delito incluído no crime pelo qual tenha sido acusado.

Todavia, uma pessoa extraditada como cúmplice pode ser julgada como

autor principal, caso a distinção entre os dois tenha sido abolida no país

requerente. Aplicando um raciocínio semelhante, o facto de uma pessoa

extraditada não poder ser condenada por conspiração/associação, dado

que o país estrangeiro assumiu a posição de que a acusação de

conspiração/associação não estava incluída na lista de crimes que davam

origem à obrigação contratual de extraditar, não impediu os Estados Unidos

de utilizarem as provas de conspiração/associação para condenar o réu com

base nas acusações substantivas."

A Regra da Especialidade prevista no artigo 16.º da Lei 144/99 de Portugal

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

31

reconhece que o princípio da especialidade requer que as pessoas extraditadas

sejam julgadas pelo acto ou actos com base nos quais o pedido de colaboração

judiciária tenha sido feito. Salienta-se ainda que as acusações suplementares

não podem ultrapassar os factos com base nos quais o Governo indiano

preparou o pedido de extradição do recorrente. Reproduzimos a seguir a referida

lei portuguesa relativa à especialidade:

"Artigo 16 – Regra da Especialidade

1 – A pessoa que, em consequência de um acto de cooperação internacional,

comparecer em Portugal para intervir em processo penal como suspeito,

arguido ou condenado não pode ser perseguida, julgada, detida ou sujeita a

qualquer outra restrição da liberdade por facto anterior à sua presença em

território nacional, diferente do que origina o pedido de cooperação

formulado por autoridade portuguesa.

2 – A pessoa que, nos termos do número anterior, comparecer perante uma

autoridade estrangeira não pode ser perseguida, detida, julgada ou sujeita

a qualquer outra restrição da liberdade por facto ou condenação anteriores à

sua saída do território português diferentes dos determinados no pedido de

cooperação.

3 – Antes de autorizada a transferência a que se refere o número anterior, o

Estado que formula o pedido deve prestar as garantias necessárias ao

cumprimento da regra da especialidade.

4 – A imunidade a que se refere este artigo cessa quando:

a) A pessoa em causa, tendo a possibilidade de abandonar o território

português ou estrangeiro, o não faz dentro de 45 dias; ou

b) Regressa voluntariamente a um desses territórios;

c) O Estado que autoriza a transferência, ouvido previamente o suspeito,

o arguido ou o condenado, consentir na derrogação da regra da

especialidade.

5 – O disposto nos números 1 e 2 não exclui a possibilidade de solicitar,

mediante novo pedido, a extensão da cooperação a factos diferentes dos que

fundamentaram o anterior, pedido esse que será apresentado e instruído

nos termos do presente diploma.

6 – É obrigatória, no caso referido no número anterior, a apresentação de

auto de onde constem as declarações da pessoa que beneficia da regra da

especialidade.

7 – No caso de o pedido ser apresentado a um Estado estrangeiro, o auto a

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

32

que se refere o número anterior é lavrado perante o tribunal da relação onde

residir ou se encontrar a pessoa que beneficia da regra da especialidade."

Nesta matéria, será de assinalar o facto de a Lei da Extradição indiana de 1962

também reconhecer a Doutrina da Especialidade no artigo 21.º da Lei que já

citámos. A Doutrina da Especialidade é um princípio do direito internacional,

universalmente reconhecido, e abrange as doutrinas da dupla criminalidade e

da reciprocidade.

26) Contrariamente ao direito do Reino Unido, dos Estados Unidos e de Portugal,

o direito indiano só permite que a pessoa extraditada seja julgada por crimes de

menor gravidade revelados pelos factos provados para efeitos de garantir a sua

entrega. Para além do crime a ser deduzido dos factos provados pelas

autoridades indianas para fundamentar a entrega do foragido, a acusação

adicional, caso exista, terá de reportar-se a crimes menos graves que os crimes

com base nos quais a extradição foi requerida. Este Tribunal, ao apreciar uma

questão similar relacionada com a alínea b) do artigo 21.º da Lei da Extradição,

no processo Suman Sood e Kamaljeet Kaur vs. Estado de Rajasthan (2007) 5

SCC 634, declarou o seguinte:

"28. Em defesa de Suman Sood foi apresentado mais um argumento. Foi

alegado que, no seu caso, o despacho de extradição não referia o artigo

365.º do Código Penal indiano, mas que ambos os tribunais a condenaram

ao abrigo dos artigos 365.º/120-B do Código Penal indiano, o que constitui

uma ilicitude, é inválido e não tem execução judicial. Por consequência, a

sua condenação e a imposição da sentença por um crime punível ao abrigo

do artigo 365.º, em conjugação com o artigo 120-B do Código Penal indiano é

passível de ser anulada.

29. Também não encontramos qualquer fundamento para a referida

alegação. Não há dúvida que o artigo 365.º do Código Penal indiano não foi

mencionado no despacho de extradição. Contudo, já tínhamos visto que o

artigo 364-A do Código Penal indiano tinha sido incluído no despacho. Ora, é

um facto assente que se o réu for acusado de ter cometido um crime de

maior gravidade e o tribunal vier a apurar, com base nas provas produzidas

pelo Ministério Público, que o réu não cometeu esse crime, mas ficar convicto

de que cometeu um crime de menor gravidade, o réu poderá ser condenado

por tal crime menos grave. Deste modo, caso A seja acusado de ter cometido

o crime de homicídio qualificado de B e o tribunal decida que A não cometeu

o crime de homicídio previsto no artigo 300.º do Código Penal indiano, mas

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

33

fique convicto de que A cometeu um crime de homicídio por negligência, que

não corresponde ao crime de homicídio qualificado (conforme previsto no

artigo 299.º do Código Penal indiano), nada impede o tribunal de condenar A

pelo referido crime e A não poderá contestar tal condenação.

30. O mesmo princípio se aplica aos processos de extradição. O artigo 21.º

da Lei da Extradição de 1962, na sua versão original, era o seguinte:

"21: Réu ou pessoa condenada, entregue ou devolvida por outro Estado

ou país da Commonwealth, a não ser julgada por crimes anteriores

Sempre que qualquer réu ou pessoa condenada por um crime que, caso

fosse cometido na Índia, seria passível de extradição, seja entregue ou

devolvida por um outro Estado ou país da Commonwealth, enquanto não

for devolvido ou tiver tido a oportunidade de regressar a esse Estado ou

país, tal pessoa não será julgada na Índia por nenhum crime cometido

anteriormente à sua entrega ou devolução, para além do crime passível

de extradição provado pelos factos e com base nos quais a entrega ou a

devolução é pedida."

31. Contudo, este artigo foi alterado em 1993 pela Lei (Alteração) da

Extradição de 1993 (Lei n.º 66 de 1993). O artigo alterado tem a seguinte

redacção:

"21: Réu ou pessoa condenada, entregue ou devolvida por outro Estado, a

não ser julgada por determinados crimes

Sempre que qualquer réu ou pessoa condenada por um crime que, caso

fosse cometido na Índia, seria passível de extradição, seja entregue por

um outro Estado, enquanto não for devolvido ou tiver tido a oportunidade

de regressar a esse Estado, tal pessoa não será julgada na Índia por

nenhum outro crime para além do

(a) crime passível de extradição, relativamente ao qual foi entregue ou

devolvida; ou

(b) qualquer crime menos grave divulgado pelos factos comprovados

para efeito de garantir a sua entrega ou devolução, para além de

qualquer crime relativamente ao qual não seja possível emitir qualquer

ordem no sentido da sua entrega ou devolução; ou

(c) o crime relativamente ao qual o Estado estrangeiro tenha concedido

o seu consentimento."

32. Por consequência, toma-se evidente que o princípio geral de

administração da justiça penal aplicável, que se aplica também a todo o

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

34

direito interno e municipal, também se alarga ao direito internacional ou ao

direito das nações e aos processos cobertos por tratados de extradição.

33. Este Tribunal, no processo Daya Singh, face ao artigo 21.º da Lei da

Extradição, declarou: (SCC p. 519, parágrafo 3)

"A disposição do artigo acima referido coloca restrições ao julgamento da

pessoa extraditada e funciona como um factor impeditivo do julgamento

do foragido por qualquer outro crime até ao cumprimento da condição de

retorno ou da oportunidade de regresso. Por consequência, ao abrigo da

Lei alterada de 1993, um foragido poderá ser julgado por qualquer crime

menos grave revelado pelos factos provados ou até por crime

relativamente ao qual o Estado estrangeiro tenha concedido o seu

consentimento. Isto permite julgar o foragido por qualquer crime menos

grave, sem que seja necessário devolvê-lo ao Estado cedente, ou por

qualquer outro crime, caso o Estado em causa conceda o seu

consentimento."

34. Ora, não pode ser colocado em causa o facto de um crime previsto ao

abrigo do artigo 365.º do Código Penal indiano ser um crime menos grave do

que um crime punível ao abrigo do artigo 364-A do Código Penal indiano.

Visto que a extradição de Suman Sood foi autorizada por um crime punível

com uma pena mais grave (artigo 364-A do Código Penal indiano), a

acusação e o julgamento por um crime menos grave (artigo 365.º do Código

Penal indiano) não pode ser considerada sem execução judicial. Por

consequência, o argumento não tem valor e é por este meio impugnado."

(Nosso ênfase)

O raciocínio empregue no processo Suman Sood (supra) aplica-se directamente

ao presente processo.

27) A principal queixa do recorrente, como se refere em cima, é o facto de ter

sido extraditado ao abrigo da Convenção Internacional para a Repressão de

Atentados Terroristas à Bomba e, como tal, só poder ser julgado por crimes

previstos na referida Convenção. Esta alegação não tem fundamento. Caso fosse

aceite, seria contrária à sentença do Tribunal Constitucional de Portugal. Para

além do mais, revela ignorância por parte do recorrente relativamente à

Notificação do Governo indiano, com data de 13.12.2002, que confirmava a

aplicabilidade da Lei da Extradição de 1962, com excepção do Capítulo III, ao

Governo de Portugal. Têm razão os recorrentes quando salientam que o Tribunal

não concedeu a extradição com base apenas no Tratado de Extradição, mas

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

35

também na base da reciprocidade. Em conformidade com o artigo 3.º da Lei, a

notificação do Governo indiano GSR-822 (E), de 13.12.2002, foi aprovada e

publicada no sentido de assegurar o respeito do princípio da reciprocidade. Por

consequência, a queixa do recorrente não tem qualquer fundamento.

28) Conforme vimos anteriormente, é verdade que não existe um Tratado de

Extradição entre a Índia e Portugal. Contudo, as legislações de ambos os países

também permitem o processamento de pedidos de extradição de Estados não

signatários de tratado. O pedido de extradição foi submetido ao Governo de

Portugal pelo Governo da Índia, nos termos da Lei da Extradição aplicável a

países não signatários do tratado, ou seja, ao abrigo do artigo 19.º da Lei.

Conforme salientou o recorrido, apesar de a extradição ter por base a

Convenção, resulta óbvio do Pedido que este não assentou exclusivamente na

Convenção. Com efeito, a primeira consideração no pedido de extradição foi a

garantia de reciprocidade. A notificação de 13.13.2002 do Governo da Índia, que

confirmava que as disposições contidas na Lei da Extradição se aplicariam à

República de Portugal, ao ser emitida, tomava em consideração o referido

princípio da reciprocidade. Para efeitos do processo de extradição, o recorrente

“A” foi tratado como um réu contumaz, de acordo com o previsto na alínea f) do

artigo 20.º da Lei da Extradição de 1962. Já fizemos referência à Notificação

publicada no Jornal Oficial em 12.12.2002 que confirmava que as disposições da

Lei da Extradição se aplicariam à República Portuguesa, em conformidade com o

princípio da reciprocidade. Assim, as disposições da Lei aplicam-se à extradição

do recorrente “A”. O Tribunal da Relação de Lisboa reconheceu este princípio da

reciprocidade e a aplicabilidade das disposições da Lei da Extradição de 1962 à

República de Portugal. O Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal

Constitucional de Portugal também o aprovaram. Nenhum destes Tribunais

mencionou nas suas decisões que o réu não poderia ser julgado na Índia pelos

crimes com base nos quais, de acordo com o direito interno da Índia, o seu

julgamento poderia ser levado a cabo.

29) Já fizemos alusão ao artigo 21.º da Lei da Extradição. Uma mera leitura do

artigo acima referido indica-nos que o recorrente “A” pode ser julgado pelos

crimes pelos quais foi extraditado. O Supremo Tribunal de Justiça de Portugal

concedeu a extradição do recorrente “A” para todos os crimes mencionados no

parágrafo 1 do despacho de 27.01.2005. Para além disso, “A” também pode ser

julgado por crime(s) menos grave(s), ao abrigo do artigo 21.º da Lei da

Extradição, que decorram dos factos provados para assegurar a sua entrega.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

36

"Crime menos grave" significa um crime que é revelado a partir dos factos

provados e que é punível com uma pena mais leve, nomeadamente em

comparação com os crimes pelos quais o foragido foi extraditado. O crime tem de

ser um crime passível de extradição, de acordo com o estabelecido na subalínea

(ii) da alínea (c) do artigo 2.º da Lei, ou seja, um crime punível com pena de

prisão que não seja inferior a um ano, ao abrigo da legislação da Índia ou de um

Estado estrangeiro. O crime menos grave não pode ser equiparado ao termo

"delito menor" referido no artigo 222 do Código de Processo Penal. O legislador,

em vez de "menor", empregou deliberadamente a expressão "menos grave" na

alínea (b) do artigo 21.º da Lei da Extradição. Assim, é a punição prevista para o

crime que é relevante e não os ingredientes para efeitos da interpretação do

termo "crime menos grave".

30) A alegação do recorrente de que só pode ser julgado pelos crimes abrangidos

pelo número 1 do artigo 2.º da referida Convenção é falsa, na medida em que

não extraditado apenas com base na referida Convenção, mas também com base

no princípio da reciprocidade, que se tornou aplicável com a aplicação da Lei da

Extradição à República de Portugal. Uma leitura integral do artigo 2.º da referida

Convenção torna claro que esta não incide apenas sobre os réus que cometeram

os crimes materiais definidos no número 1 do artigo 2.º, incidindo também sobre

os conspiradores/associados e sobre aqueles que têm uma responsabilidade

presumida em relação ao cometimento dos crimes materiais previstos no número

3 do artigo 2.º da Convenção. Este facto foi igualmente referido pelo Supremo

Tribunal de Justiça de Portugal, no número 9.4 do seu acórdão. Para além disso,

a subalínea (d) do número 3 do artigo 1.º da Convenção torna claríssimo que o

dispositivo explosivo ou letal significa uma arma ou um dispositivo assim

designado que, através do seu rebentamento, tem a capacidade de provocar a

morte, ofensas corporais graves ou danos materiais avultados. As espingardas

AK-56 são as armas/dispositivos que têm a capacidade de provocar a morte e

ofensas corporais graves através do disparo de balas e encontram-se cobertas

pelo referido artigo. O recorrente foi acusado pela posse, transporte e distribuição

de espingardas AK-56, das suas munições, assim como de granadas de mão,

que foram introduzidas ilegalmente no país, na prossecução da

conspiração/associação criminosa.

31) Comprazemo-nos com a verificação de que não existe qualquer violação da

Regra da Especialidade e da Garantia Soberana e Solene dada pelo Governo da

Índia, na carta de 25.05.2003 da Embaixadora da Índia ao Governo de Portugal,

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

37

relativamente ao julgamento do recorrente “A”. A referida garantia da

Embaixadora da Índia foi dada no sentido de garantir que o recorrente não seria

julgado por nenhuns outros crimes para além daqueles com base nos quais a

sua extradição foi pedida e ainda de que não seria reextraditado para nenhum

país terceiro. Conforme bem salientou o Solicitador-Geral, não se verificou

nenhuma violação da Regra da Especialidade. De acordo com a Notificação

publicada no Jornal Oficial em 13.12.2002, é confirmada a aplicabilidade de

todas as disposições contidas na Lei da Extradição relativamente à extradição

de “A”, com excepção das contidas no Capítulo III da Lei. O Tribunal da Relação

de Lisboa reconheceu este princípio da reciprocidade e a aplicabilidade a

Portugal das disposições da Lei da Extradição. O Supremo Tribunal de Justiça e

o Tribunal Constitucional de Portugal também o aprovaram. Tendo em

consideração a confirmação da aplicabilidade a Portugal das disposições da Lei

da Extradição de 1962, as disposições contidas no artigo 21.º da Lei teriam de

se ser aplicadas na condução do julgamento do recorrente “A”.

32) Comprazemo-nos igualmente com o facto de o Juiz Nomeado ter concluído

correctamente que o recorrente “A” pode ser julgado por "crimes menos graves",

mesmo que estes não estejam incluídos no Despacho de Extradição, visto que os

mesmos são permitidos ao abrigo da alínea (b) do artigo 21.º da Lei da

Extradição. Os Tribunais Portugueses não colocaram nenhum entrave ao

julgamento de crimes de menor gravidade, em conformidade com as disposições

contidas na alínea (b) do artigo 21.º da Lei da Extradição, não obstante estarem

cientes das referidas disposições da Lei da Extradição.

33) Já salientámos o modo como o Governo da Índia e os Governo de Portugal

celebraram um acordo ao mais alto nível que mencionava os crimes em causa e

que o recorrente foi extraditado para a Índia para ser julgado. Também

salientámos a Notificação do Governo da Índia sobre a aplicabilidade da Lei da

Extradição de 1962. À luz da referida Notificação, as acusações adicionais que

foram deduzidas, satisfazem as condições da alínea (b) do artigo 21.º da Lei da

Extradição. Os crimes pelos quais foi deduzida acusação adicional contra o

recorrente são menos graves do que os crimes com base nos quais foi

extraditado. Para sermos claros, os crimes pelos quais foi deduzida acusação

são puníveis com uma pena mais leve do que os crimes com base nos quais foi

extraditado. A extradição concedida no presente caso teve em devida conta os

factos suscitados que abrangem os crimes com base nos quais foi deduzida

acusação contra o recorrente. Conforme salientado pelo douto Solicitador-Geral,

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

38

os crimes são revelados pelo mesmo grupo de factos que foram submetidos ao

Governo de Portugal. Estamos de acordo com a afirmação do douto Solicitador-

Geral e com a última decisão do Tribunal Especial.

34) …

35) Face ao acima exposto, somos de opinião que o recorrente foi acusado

dentro do âmbito permitido pela alínea (b) do artigo 21.º da Lei da Extradição e o

Tribunal Especial não cometeu nenhuma ilegalidade ao pronunciar as decisões

impugnadas. Consequentemente, todos os recursos, assim como o pedido são

passíveis de ser considerados improcedentes, pelo que improcedem. Dado que o

julgamento se encontra pendente desde o ano de 1983 e que já foram decididas

matérias conexas, instamos o Tribunal Especial a prosseguir sem demoras o

julgamento».

10 – Depois de ter sido junta aos autos a tradução da citada

decisão do Supremo Tribunal da União Indiana, o requerente

pronunciou-se sobre a questão por ele anteriormente suscitada.

O Ministério Público e a União Indiana pronunciaram-se sobre a

pretensão do requerente.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A questão a resolver

11 – O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 13 de

Dezembro de 2007, decidiu que compete a este tribunal apurar se, no

que respeita ao extraditado “A”, a União Indiana violou o princípio da

especialidade, extraindo daí, em caso afirmativo, as devidas

consequências que, no entender daquele tribunal, deverão passar, pelo

menos, pela declaração de resolução da autorização de extradição

anteriormente concedida.

Esta apreciação não é afastada por o Supremo Tribunal da União

Indiana ter considerado que os tribunais desse Estado podiam, nos

termos do artigo 21.º da actual redacção da sua Lei de Extradição,

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

39

julgar “A” por quaisquer outros crimes menos graves desde que eles

tivessem por base a prática dos factos por que ela tinha sido concedida

uma vez que se trata duas ordens jurídicas diferentes de dois Estados

soberanos, não existindo entre elas qualquer relação de subordinação

ou sequer de interdependência.

As perspectivas do Estado requerente e do Estado requerido sobre

a violação do princípio da especialidade no âmbito do direito interno de

cada um não têm necessariamente que coincidir, não existindo, a tal

respeito, qualquer caso julgado internacional que vincule o Estado

português e os respectivos tribunais.

Importa, por isso, que nos debrucemos sobre as questões

colocadas pelo requerente que, sinteticamente, se podem enunciar da

seguinte forma:

Tendo em conta o pedido formulado pela União Indiana, a posição

sobre ele assumida pela Senhora Ministra da Justiça no despacho

de 28 de Março de 2003 e o acórdão do Supremo Tribunal de

Justiça de 27 de Janeiro de 2005, o aditamento à acusação feito

no processo RC.1(S)/93/CBI/STF/MUMBAI violará o princípio da

especialidade?

E, em caso afirmativo, qual deverá ser a consequência dessa

violação à luz do direito português?

O princípio da especialidade no contexto internacional

12 – O princípio da especialidade «é tão largamente reconhecido

no direito e na prática internacionais que se transformou numa regra

de direito internacional consuetudinário»11, tendo obtido acolhimento

11 BASSIOUNI, M. Cherif, in «International Extradition – United States Law and Practice», Fifth Edition, Oceana, Oxford University Press, 2007, p. 538, que afirma que «[a] especialidade é

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

40

expresso na generalidade dos instrumentos convencionais em matéria

de extradição.

Tal consagração não significa, porém, que a determinação do seu

conteúdo seja, em Portugal e na generalidade dos países, isenta de

dúvidas12.

13 – No direito espanhol, por exemplo, as dúvidas surgem, desde

logo, a respeito da possibilidade de alterar a qualificação jurídica da

conduta com base na qual a extradição foi concedida.

Segundo Gimbernat Ordeig13, «existem duas teorias – nem sempre

claramente diferenciadas, porque as formulações são imprecisas – sobre

qual seja o conteúdo desse princípio». Para uma o princípio da

especialidade «só é violado se a pessoa for condenada por um crime

distinto daquele pelo qual se procedeu à entrega e que,

simultaneamente, não esteja incluído no catálogo dos crimes que no

correspondente tratado admitem a extradição». «Ao lado desta, existe

uma concepção mais rigorosa do princípio: a que afirma que não se

pode julgar por um crime distinto daquele pelo qual se efectuou a

entrega, esteja ou não esse crime abrangido pelo correspondente

tratado».

De acordo com este autor, a concreta extensão deste princípio

depende dos termos das pertinentes disposições do instrumento legal

aplicável. Nuns casos deve admitir-se, dentro de certos limites, o

frequentemente referida como princípio porque é tão amplamente reconhecida no direito internacional e na prática que se transformou numa regra do direito internacional consuetudinário». No mesmo sentido veja-se, por exemplo, SÁNCHEZ, Beatriz García, in «La Extradición en el Ordenamiento Interno Español, Internacional y Comunitario», Editorial Comares, Granada, 2005, p. 242 e ss. e CONSO, Giovanni e GREVI, Vittorio, in «Compendio di Procedura Penale», CEDAM, Padova, 2001, p. 923. 12 Neste mesmo sentido, veja-se Zaïri, Anna, in «Le Principe de la Spécialité de l’Extradition au regard des Droits de L’Homme», LGDJ, Paris, 1992, p. 30 e ss.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

41

procedimento por crimes distintos ao passo que em outros esse

procedimento não pode, de modo algum, ser aceite.

A questão da possibilidade de alteração da qualificação jurídica de

uma conduta não esgota, porém, o espectro das dúvidas existentes

nesse ordenamento jurídico. Elas versam também a questão de saber se

é legítimo imputar ao extraditado novos factos conexos com o facto

principal, nele não incluídos.

Segundo Beatriz Garcia Sánchez, «[n]a medida em que o facto

conexo constitui um facto distinto e anterior ao que fundamenta o

pedido de extradição, o julgamento por ele pressuporia uma violação do

princípio da especialidade»14.

14 – No direito norte-americano, «[e]ste princípio, que também é

referido como regra ou doutrina, traduz a asserção de que o Estado

requerente, que obtém a entrega de uma pessoa, só pode perseguir e

punir essa pessoa pelo crime ou crimes pelos quais ela foi entregue pelo

Estado requerido e deve conformar as respectivas sanções a qualquer

limitação que tenha sido estabelecida pelo Estado que procedeu à

entrega. Se o Estado requerente pretender afastar-se destes limites,

deve obter o consentimento do Estado que procedeu à entrega antes de

processar por outras acusações e antes de impor ou executar uma

sentença em desconformidade com qualquer limitação estabelecida pelo

Estado que procedeu à entrega. Em todos os casos, o Estado requerente

deve cumprir as garantias que prestou ao Estado que procedeu à

13 ORDEIG, Enrique Gimbernat, in «Estudios de Derecho Penal», 3.ª edición, Editorial Tecnos, Madrid, 1990, p. 120 e ss. 14 SÁNCHEZ, Beatriz García, ob. cit., p. 249, autora que admite que a solução desta questão é mais duvidosa do que a da mera alteração da qualificação jurídica.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

42

entrega como parte que é da extradição. Caso contrário, o Estado

requerente deve devolver a pessoa ao Estado que procedeu à entrega»15.

Este mesmo autor precisa, no entanto, que, «[e]m geral, o Estado

requerente pode processar a pessoa entregue por todos os crimes

menos graves que estejam contidos no crime imputado e que sejam

fundados em factos pelos quais ela foi extraditada, desde que as

infracções menos graves satisfaçam o requisito da “dupla incriminação”

e que o Estado que procedeu à entrega nada tenha dito em sentido

contrário na ordem de extradição»16.

15 – No Reino Unido, o princípio da especialidade, na sua forma

absoluta, exigia que o arguido apenas fosse julgado pelos crimes pelos

quais a extradição tinha sido concedida. «Todavia, a norma nos termos

expostos foi amplamente atenuada na moderna legislação de extradição,

inclusive na Lei de Extradição de 2003. Essa atenuação reflecte-se no

facto de que no domínio da Lei de Extradição de 2003 o Estado

requerente poder ser autorizado a processar o arguido por crimes que

vão para além daqueles pelos quais ele regressou desde que assentem

nos factos em que se baseou a entrega»17.

16 – No domínio da Convenção Europeia de Extradição, de 13 de

Dezembro de 1957, do Conselho da Europa, «[q]uando a qualificação

dada ao facto incriminado for modificada na pendência do processo, a

pessoa extraditada só será perseguida ou julgada na medida em que os

15 BASSIOUNI, M. Cherif, ob.cit., p. 537. 16 Ob. cit. p. 544. 17 NICHOLLS, Clive, MONTGOMERY, Clare, and KNOWLES, Julian B., in «The Law of Extradition and Mutual Assistance», second edition, Oxford University Press, Oxford, 2007, p. 82, e SAMBEI, Arvinder, and JONES, John R. W. D., in «Extradition Law Handbook», Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 60, tendo por base os artigos 17.º, 95.º e 146.º da Lei da Extradição de 2003.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

43

elementos constitutivos da infracção, segundo a nova qualificação,

permitam a extradição», o que é esclarecido nos comentários a este

artigo constantes do relatório explicativo nos seguintes termos:

«Parágrafo 3 trata dos casos em que a qualificação jurídica do crime é

alterada no decurso do processo. Por exemplo, uma pessoa extraditada

por assassínio é julgada por homicídio. O comité decidiu que tais

alterações só deviam ser permitidas na medida em que a extradição

pudesse ter sido permitida pela nova incriminação, tendo em conta os

seus elementos típicos»18.

O conteúdo do princípio da especialidade na Lei n.º 144/99,

de 31 de Agosto

17 – “A” foi extraditado pelo Estado português para a União

Indiana com base no artigo 9.º da Convenção Internacional para a

Repressão de Atentados Terroristas à Bomba, diploma que, dada a sua

natureza, não contém qualquer disposição sobre o princípio da

especialidade, e no estabelecido na Lei n.º 144/9919, de 31 de Agosto,

diploma este que, no seu artigo 16.º20, dispõe o seguinte:

Artigo 16.º

Regra da especialidade

18 Sobre esta Convenção, para além do respectivo relatório explicativo, que pode ser consultado no sítio do Conselho da Europa na internet (http://conventions.coe.int/Treaty/en/Reports/ Html/024.htm) pode ver-se, por exemplo, SAMANIEGO, José Luis Manzanares, in «El Convenio Europeo de Extradición», Bosch, Barcelona, 1986, p. 187 e ss. 19 O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 27 de Janeiro de 2005, considerou que o ordenamento jurídico português não condicionava a extradição à existência de um tratado entre o Estado solicitante e o Estado solicitado, razão pela qual não aplicou ao caso o disposto no n.º 2 do artigo 9.º da Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 40/2001, de 25 de Junho de 2001, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 31/2001, dessa mesma data), mas sim o n.º 3 desse mesmo preceito. 20 Sobre o princípio da especialidade, tal como ele está consagrado na Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, veja-se SERRANO, Mário Mendes, in «Extradição – Regime e Praxis», in «Cooperação Internacional Penal», Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2000, p. 40, nota 71.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

44

1 – A pessoa que, em consequência de um acto de cooperação,

comparecer em Portugal para intervir em processo penal como suspeito,

arguido ou condenado não pode ser perseguida, julgada, detida ou

sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto anterior à sua

presença em território nacional diferente do que origina o pedido de

cooperação formulado por autoridade portuguesa.

2 – A pessoa que, nos termos do número anterior, comparecer perante

uma autoridade estrangeira não pode ser perseguida, detida, julgada ou

sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto ou condenação

anteriores à sua saída do território português diferentes dos

determinados no pedido de cooperação.

3 – Antes de autorizada a transferência a que se refere o número

anterior, o Estado que formula o pedido deve prestar as garantias

necessárias ao cumprimento da regra da especialidade.

4 – A imunidade a que se refere este artigo cessa quando:

a) A pessoa em causa, tendo a possibilidade de abandonar o território

português ou estrangeiro, o não faz dentro de 45 dias ou regressa

voluntariamente a um desses territórios;

b) O Estado que autoriza a transferência, ouvido previamente o

suspeito, o arguido ou o condenado, consentir na derrogação da

regra da especialidade.

5 – O disposto nos n.ºs 1 e 2 não exclui a possibilidade de solicitar a

extensão da cooperação a factos diferentes dos que fundamentaram o

pedido, mediante novo pedido apresentado e instruído nos termos do

presente diploma.

6 – No caso referido no número anterior, é obrigatória a apresentação de

auto donde constem as declarações da pessoa que beneficia da regra da

especialidade.

7 – No caso de o pedido ser apresentado a um Estado estrangeiro, o

auto a que se refere o número anterior é lavrado perante o tribunal da

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

45

Relação da área onde residir ou se encontrar a pessoa que beneficia da

regra da especialidade.

Muito embora existam outras disposições deste mesmo diploma

que se referem21 ou que têm como fundamento22 o princípio da

especialidade, é este o preceito legal mais relevante para a sua

caracterização, se bem que, como qualquer outro, ele não possa deixar

de ser interpretado no contexto em que se insere, ou seja, enquanto

integrado na Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria

Penal.

Esta lei, como se sabe, exclui da cooperação, por princípio, as

infracções de determinada natureza23 e os crimes a que seja aplicável

pena de morte, pena de que possa resultar lesão irreversível da

integridade da pessoa e pena de carácter perpétuo ou indefinido24.

Exclui também os casos em que o procedimento se encontrar extinto,

nomeadamente por prescrição, certos casos em que estejam em causa

crimes particulares ou semi-públicos e os crimes de reduzida

gravidade25.

Por isso, a nosso ver, o princípio da especialidade no domínio da

Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, embora legitime que o Estado

solicitante proceda à alteração da qualificação jurídica dos factos

narrados no pedido formulado, exige, para além do escrupuloso respeito

pelas condições estabelecidas pelo Estado requerido, que a extradição

21 Nomeadamente o artigo 17.º desse mesmo diploma, que estabelece os «casos particulares de não aplicação da regra da especialidade». 22 A proibição de reextradição, estabelecida no artigo 34.º, também se fundamenta no princípio da especialidade. 23 V. artigo 7.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. 24 V. alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 6.º dessa mesma lei. 25 V. artigos 10.º e 31.º da mesma lei.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

46

pelos novos crimes descobertos em virtude do prosseguimento da

investigação26 pudesse ter sido concedida se oportunamente solicitada.

Consagra, no fundo, uma solução que, partindo da aceitação da

boa-fé dos Estados no cumprimento das obrigações que assumiram e

precavendo qualquer quebra de confiança27, tem a flexibilidade

característica do regime que se extrai do artigo 14.º, n.º 3, da

Convenção Europeia de Extradição de 1957.

Valoração do comportamento da União Indiana

17 – A esta luz, e no caso do extraditado “A”, para a valoração do

comportamento da União Indiana não podemos deixar de atender a que

a Senhora Ministra da Justiça, tendo em conta as «disposições

conjugadas dos artigos 8.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 144/99, de 31 de

Agosto, e 117.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal de 1982», considerou

não ser admissível a extradição de “A” com base em:

− Dois crimes de favorecimento pessoal, dois crimes de ofensas

corporais e um crime de dano, previstos e puníveis,

respectivamente, pelos artigos 201.º, 212.º, 324.º, 326.º e 427.º

do Código Penal indiano;

- Um crime de favorecimento pessoal e dois crimes de detenção,

uso e porte de engenhos ou materiais explosivos, previstos e

puníveis, respectivamente, pelos artigos 3.º, n.º 4, 5.º e 6.º do

Terrorist & Disruptive Activities (Prevention) Act de 1987;

− Um crime de explosão (actos preparatórios) e um crime de

detenção, uso e porte de engenhos ou materiais explosivos,

previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 4.º e 5.º do

26 A questão colocar-se-ia, naturalmente, em termos diferentes se a extradição se destinasse ao cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

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Explosive Substances Act de 1908;

- Um crime de detenção, uso e porte de engenhos ou materiais

explosivos, previsto e punível pelo artigo 9.º-B, 1, b) do Explosive

Act de 1884;

− Dois crimes de detenção, uso e porte de armas proibidas,

previstos e puníveis pelo artigo 25.º, 1-A e B do Arms Act de

1959;

Se, por efeito da prescrição do procedimento criminal, a

extradição por esses crimes não foi então considerada admissível, não

poderia a União Indiana, em momento posterior, imputar e julgar o

extraditado por crimes idênticos, se bem que fundados em factos

diferentes.

Trata-se de uma conclusão óbvia que resulta claramente da

análise do despacho da Senhora Ministra da Justiça, um dos actos

mais relevantes do processo de extradição28.

A esta luz, da nova acusação deduzida, a União Indiana, sem

violação do princípio da especialidade, só teria legitimidade para

imputar ao extraditado o crime narrado no seu ponto segundo, ou seja,

o crime p. e p. no n.º 3 do artigo 3.º do Terrorist & Disruptive Activities

(Prevention) Act de 1987, porque se tratava de um crime que se

fundamentava nos factos comunicados pela União Indiana no pedido

oportunamente formulado, não tinha sido excluído expressa ou

implicitamente por Portugal da ordem de extradição e esta poderia ter

sido concedida se oportunamente tivesse sido solicitada.

27 BASSIOUNI, M. Cherif, ob. cit. p. 541. 28 Tal como sustenta Anna Zaïri (ob. cit. p. 60), «[o] Estado requerido não é obrigado a exprimir-se de forma negativa enumerando todos os crimes pelos quais não autoriza a extradição», desde que tenha manifestado a sua vontade de forma explícita e detalhada em termos que o Estado requerente a possa conhecer, o que neste caso, manifestamente, aconteceu.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

48

Por isso se conclui que, à face do ordenamento jurídico

português, a União Indiana, ao não considerar os limites impostos pela

República Portuguesa à extradição de “A”, de que tinha perfeito

conhecimento e que pareceu ignorar, e ao processar e julgar o

requerente por crimes que não podiam ser objecto de extradição, violou

o princípio da especialidade consagrado no artigo 16.º da Lei n.º

144/99, de 31 de Agosto.

Determinação das consequências da violação verificada

18 – Esta lei, tal como foi dito no despacho do relator e reafirmado

no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não prevê, em termos

gerais29, «qualquer consequência específica para a violação do princípio

da especialidade por parte do Estado requerente da extradição».

Isto não obsta a que, em caso de violação, o Estado português,

para além de poder, eventualmente, vir a suscitar «a intervenção de

instâncias de jurisdição internacional»30 e de poder extrair do caso as

devidas consequências políticas, não possa vir a reagir pela via político-

diplomática, para o que será relevante o juízo formulado pelas

instâncias judiciárias portuguesas, que não podem «considerar-se

completamente estranhas à situação».

Tal juízo, em caso de comprovada violação do princípio da

especialidade, tal como ele é entendido pelo ordenamento jurídico

português, deve, de acordo com o Supremo Tribunal de Justiça,

fundamentar, pelo menos, a decisão de considerar ilegal o julgamento

29 A violação das condições em que a extradição foi concedida fundamenta, no entanto, a não detenção e reentrega do extraditado em caso de fuga – v. artigos 42.º e 66.º e ss. da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. 30 Nesse mesmo sentido veja-se SÁNCHEZ, Beatriz Garcia, ob. cit. p. 247. Sobre os princípios da responsabilidade internacional dos Estados, veja-se BASSIOUNI, M. Cherif, ob. cit. p. 266 e ss.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

49

pelos novos crimes e de resolver a autorização concedida para a

extradição31.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal

da Relação em considerar que a União Indiana, ao acusar e julgar

“A”pelos factos descritos nos pontos terceiro a oitavo da nova acusação

deduzida no processo RC.1(S)/93/CBI/STF/ MUMBAI, violou o

princípio da especialidade, tal como ele é entendido pelo ordenamento

jurídico português, razão pela qual consideram ilegais esses actos e

decidem resolver a autorização concedida para a extradição de “A” .

Sem custas.

Lisboa, 14 de Setembro de 2011

Carlos Rodrigues de Almeida

Horácio Telo Lucas

Fernando Estrela

31 V. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 2005 e de 13 de Dezembro de 2007.