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Roberto Winter Trinta mil vezes um enigma 1

Trinta mil vezes um enigma - Roberto Winter

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  • Roberto Winter

    Trinta mil vezes um enigma

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  • 3Desde muito antes das manifestaes de junho de 2013, de muito antes da Lei Cidade Limpa e mesmo muito antes de muita coisa, h uma frase que domina a cidade de So Paulo. Uma frase que se repete quase 30 mil vezes todos os dias.

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    A histria da relao do Estado com o transporte na cidade de So Paulo , salvo rarssimas excees, a histria da opo pelo transporte privado. Segundo o Ipea, Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada, o mesmo ocorre em todo o Brasil, onde, feitas todas as contas, o Estado investe apro-ximadamente doze vezes mais em transporte privado que em transporte pblico.1 Para entender como o Estado to incrivelmente onerado com a manuteno das condies do transporte privado, basta pensar em todos os milhares de equipamentos que devem ser mantidos para que apenas car-ros se beneficiem deles, ou ainda as muitas obras virias que servem apenas a eles como as recentes ponte estaiada e a ampliao das marginais do rio Tiet, que somadas custaram quase R$2 bilhes aos cofres da prefeitura de So Paulo.2

    1 Ver http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110525_co-municadoipea94.pdf ou http://www.meionorte.com/noticias/economia/carros/carros-tem-12-vezes-mais-incentivo-do-que-transporte-publico-133025.html 2 http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/node/16551

  • 4H ainda, no podemos esquecer, o incentivo indireto ao uso do transporte privado. A reduo (e at iseno) do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos veculos automotores um bom exemplo: em ltima anlise, reduzir o IPI o mesmo que subsidiar o transporte privado, j que a iseno do imposto dinheiro investido indiretamente pelo Estado. E no pouco dinheiro: apenas no primeiro semestre de 2009 foram cerca de R$1,8 bilhes que deixaram de ser arrecadados3 e que poderiam, por exemplo, ter sido usados para a melhoria das condies dos transportes pblicos.

    Por fim h uma espcie de investimento pervertido que , na realidade, o custo econmico e social da insistncia no investimento em transporte privado. Uma cidade como So Paulo chegou a perder entre R$30 e R$40 bilhes em 2012 com a lentido no trnsito, segundo estudo da Fundao Getlio Vargas (FGV-Eaesp).4 Nesse custo esto considerados os gastos com combustveis para carros, nibus e caminhes parados, as horas de salrio perdidas pelas pessoas sentadas nos carros sem trabalhar e tambm as estimativas dos gastos com sade pblica decorrentes da ao da poluio. Nos ltimos dez anos esse custo mais que duplicou, mostrando que, quaisquer que sejam, as polticas pblicas de incentivo ao transporte no esto se traduzindo em melhorias reais.

    3 http://ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/2009_nt015_agosto_dimac.pdf4 http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,transito-lento-faz-sp--perder-1--do-pib-do-pais-,1032592,0.htm

  • 5 Mesmo o investimento em transporte coletivo de natureza questionvel. Segundo dados recentes, apenas em 2012 os grupos que prestam o servio de transporte coletivo da cidade receberam mais de R$3,5 bilhes em repasses da prefeitura.5 Ao mesmo tempo, a partir de clculos com dados fornecidos pela prpria prefeitura, possvel estimar que as empresas que operam o sistema tem um lucro aproximado de mais de R$1,2 bilho por ano.6 Deve-se perguntar: por que a prefeitura faz repasses bilionrios a essas empresas se elas operam com lucros to altos? E quem usa ou v os nibus da cidade pode at dizer mas so tantos nibus, tantas empresas; esse lucro certamente se divide e se espalha e, no fim, no tanto quanto pode parecer, mas a verdade que as empre-sas de nibus de So Paulo fazem parte de conglomerados comandados por no mais que um nmero de pessoas que podem ser contadas nos dedos de uma mo. Jos Ruas Vaz, por exemplo, o dono de mais de cinco dezenas dessas empresas e recebe 56% dos repasses da prefeitura. Alm disso, tem um histrico de empresas quebradas, dvidas milionrias com o INSS e acusaes de fraude. Para completar, Vaz ainda ganha com a publicidade dos pontos de nibus na cidade,

    5 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1303687-empresario-domina--onibus-de-sp-mas-acumula-dividas-e-falencias.shtml6 http://quasi.rhwinter.com/OnibusSP (comparar com http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1314067-lucro-das-empresas-de-onibus-de-sao-paulo-cres-ce-247-em-um-ano.shtml)

  • 6como scio do consrcio Pra SP e tambm um dos donos da Caio Induscar, empresa que lidera a venda de nibus urbanos no pas.7 No foi toa que Marta Suplicy, quando tentou mudar o funcionamento do transporte coletivo da cidade sofreu ameaas de morte e chegou a ser obrigada a sair na rua com colete prova de balas.8

    Para alm da possvel existncia da uma mfia do trans-porte coletivo em So Paulo,9 o investimento pblico na rede ajuda na manuteno de um ciclo vicioso evidente. Conforme o tempo passa, mais cara a manuteno do sistema (sobem os preos de combustvel, peas, pneus, salrios de funcionrios etc.). Quanto mais cara a manuten-o do sistema, mais alta precisa ser a tarifa. Quanto mais alta a tarifa, menos passageiros podem pagar e mais passa-geiros potenciais so excludos do sistema. Quanto menos passageiros, menor a arrecadao, portanto mais cara ainda precisa tornar-se a tarifa. Quanto mais cara a tarifa, mais pressionada a prefeitura para aumentar os repasses. Quanto

    7 Ver http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1303687-empresario-domina--onibus-de-sp-mas-acumula-dividas-e-falencias.shtml8 Ver, por exemplo: http://www.terra.com.br/istoegente/280/reportagens/pers_mar-ta_suplicy.htm9 Alm das informaes da recente CPI instalada na Cmara dos Vereadores, ver http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/como-as--empresas-de-onibus-maquiam-custos/ e mesmo as suspeitas que levantam aes como http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,vereadores-de-sp-poem-em--sigilo-documentos-sobre-transporte-publico,1055151,0.htm

  • 7mais cara a tarifa, mais sentido faz usar o transporte privado; ou seja, melhora o custo/benefcio do transporte privado em comparao com o transporte coletivo10 logo: ainda mais carros na rua. E quanto mais carros, mais poluio e ainda mais engarrafamentos (contribuindo ainda mais para a piora do ciclo vicioso). E assim por diante, ad infinitum!

    Para qualquer pessoa que vive em So Paulo ou que j teve o desprazer de deslocar-se pela cidade durante algum perodo considervel, fato consumado que a situao dos transportes , para colocar em termos brandos, catastrfica.11 A locomoo pela cidade praticamente impossibilitada pela quantidade crescente de carros nas ruas que provocam engarrafamentos que batem novos recordes a cada dia e a ineficincia e precariedade do transporte pblico que, alm de confinado aos mesmos engarrafamentos, tambm cada vez mais caro (um dos mais caros em todo o mundo, diga-se12). E tudo se passava como se no houvesse nenhuma sada.

    10 Ver http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1306113-ipea-defende--divisao-de-custo-do-onibus-com-donos-de-automoveis.shtml11 Em 2009, quase um quarto dos deslocamentos para o trabalho demoravam mais de uma hora (apenas a ida!) http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=17212&catid=1&Itemid=712 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1296233-analise-a-tarifa-de--onibus-por-aqui-esta-entre-as-mais-caras-do-mundo.shtml

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    Se entendermos o transporte no seu sentido mais am-plo, como deslocamento, como aquilo que possibilita ir de um ponto a outro seja pelo meio que for: a p, de bicicleta, nibus, moto ou carro fcil conceber quo primordial a necessidade de transportar-se. Ora, para ir escola, ao hospital, a um parque ou a um museu necessrio transporte. Por isso possvel dizer que o transporte o direito base para o acesso a todos os outros direitos. Numa cidade como So Paulo, com suas dimenses colossais e as enormes distncias aos equipamentos que representam a garantia dos vrios direitos dos habitantes da cidade a biblioteca, a delegacia, a universidade, etc. , fica fcil perceber que andar a p no pode ser, para ningum, uma opo exclusiva para garantir o direito ao transporte, e, consequentemente, a todos outros. E qualquer outra op-o de transporte custosa, inclusive a bicicleta. Da uma das justificativas para a existncia do transporte pblico gratuito: ele garantiria a todos, de verdade, o direito aos outros direitos.

    A palavra gratuito aparece entre aspas pois eviden-temente no uma maneira adequada de qualificar como seria essa forma de transporte. Escola, hospital, cultura e segurana pblicos no so realmente gratuitos so mantidos pelo Estado por meio dos impostos pagos pelos cidados e por todos os cidados, inclusive aqueles que

  • 9eventualmente no utilizam esses servios. Podem ser enten-didos como gratuitos quando se observa exclusivamente o momento do uso, o que quer dizer que no necessrio pagar no momento em que se atendido num hospital pblico, durante os anos em que se estuda numa faculdade pblica ou quando se chama um policial para averiguar uma ocorrncia o pagamento feito ao longo do tempo por todos que pagam os impostos. E dessa linha de raciocnio surge uma das primeiras perguntas que se tornou to urgente colocar para uma cidade como So Paulo: por que o mesmo no pode ocorrer com o transporte pblico? Por que ele pago no momento de seu uso? Quem se beneficia e quem perde com isso?

    A prpria ideia de um transporte pblico inteiramente subsidiado pelo Estado (pra no insistir no grtis, palavra que parece deslegitimar a proposta logo de partida) um tabu. No muito fcil entender porque, ou assinalar uma razo clara, mas aparentemente fomos condicionados a acre-ditar que transporte pblico se deve pagar na hora em que se usa. Uma possvel explicao que estamos acostumados a entender que a educao, a sade e os outros direitos so garantidos com dinheiro de impostos enquanto o transporte coletivo no e nem poderia ser (ainda que os impostos se-jam sim investidos em transporte, mas majoritariamente no privado, como vimos antes). Um projeto como o Tarifa Zero, defendido pelo Movimento Passe Livre, ataca justamente

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    esse tabu histrico13. A ideia do projeto , basicamente, transformar o transporte em um direito como os outros (educao, sade, segurana etc.) garantido pelo Estado a todos os cidados mesmo queles que no podem pagar no momento do uso. Para isso, a dinmica do transporte coletivo seria alterada e os usurios deixariam de pagar ao embarcarem.

    Pode parecer uma concesso ou mesmo um contras-senso, mas, como se sabe, as manifestaes recentemente convocadas pelo mesmo Movimento Passe Livre reivin-dicavam (e alcanaram) a reduo do custo das passagens e no exclusivamente a gratuidade do transporte. Mas a justificativa para isso que ser contra o aumento da tarifa tambm ser, mesmo que indiretamente, a favor de algo como o Tarifa Zero. Enquanto a tarifa existir, ela sempre vai subir porque coloca em marcha um ciclo vicioso de aumen-to, como j vimos anteriormente. Alm disso no h meio de manter a tarifa congelada para sempre os repasses feitos pela prefeitura para segurar o aumento da tarifa, por exemplo, crescem a cada ano (e devem crescer cada vez mais14). Desse modo, a nica soluo real para que a tarifa pare de aumentar que ela deixe de existir da maneira que

    13 Ver http://www.tarifazerosp.net/ e http://www.tarifazero.org/, um vdeo expli-cativo pode ser encontrado em http://www.youtube.com/watch?v=GjRU4yMD2Lc14 Ver os valores citados em http://www.ebc.com.br/cidadania/2013/06/haddad--o-congelamento-da-tarifa-representaria-r-15-bilhao-de-subsidios

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    existe, s assim o problema do aumento injusto da tarifa tratado pela sua verdadeira raiz.

    Vale lembrar que o projeto Tarifa Zero apenas uma possibilidade dentre as muitas que poderiam ser criadas ou propostas para fazer com que o transporte pblico tenha sua dinmica alterada para que a tarifao seja mais adequada.15 Seja como for, essas possibilidades necessariamente passam pelo reconhecimento de que h de se criar maneiras de custear o transporte pblico (e aqui novamente fica claro o porqu de no se poder falar em transporte gratuito, j que sempre vai haver um custo que precisar ser pago de algum modo). E, ao contrrio do que pode parecer inicialmente, tambm existem muitas maneiras de fazer isso.

    Segundo a prpria Prefeitura, numa declarao recente do prefeito Fernando Haddad, o custo da Tarifa Zero seria de aproximadamente R$6 bilhes ao ano.16 Clculos feitos independentemente, baseados em dados tambm da prpria Prefeitura, mostram que esse valor est mais prximo de R$4 bilhes, se no menos.17 O fato que em comparao com o oramento anual de mais de R$40 bilhes da cidade

    15 Ver http://www.dw.de/modelo-atual-de-financiamento-de-passagens--insus-tentvel-diz-ipea/a-1693059816 Ver, por exemplo: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,para-haddad--reducao-da-tarifa-esta-fora-de-cogitacao,1042408,0.htm17 A partir de http://quasi.rhwinter.com/OnibusSP

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    para 201318 esse valor no to elevado, mas de todo modo preciso pensar em alternativas concretas para o custeio da Tarifa Zero.

    Um primeiro ponto que pode ser levantado a urgncia da reestruturao de gastos. Por exemplo, como j apontado antes, os gastos com transporte pblico so muito menores que os com transporte privado; um desequilbrio que ideal-mente precisaria ser revertido ou, pelo menos, diminudo considerando-se que a maior parte da populao tem acesso apenas ao transporte pblico. H ainda enormes gastos com itens questionveis, a Prefeitura de So Paulo, por exemplo, gasta anualmente algumas centenas de milhes de reais com propaganda.19

    A propaganda, inclusive, pode ser uma fonte de recursos a ser investido em transporte pblico. Como se sabe, desde a instaurao da Lei Cidade Limpa, h poucos e disputados espaos para a publicidade em So Paulo. Os nibus e os pontos de nibus certamente so muito privilegiados nesse aspecto. No apenas os vidros traseiros dos nibus e as paradas de nibus, mas tambm seus interiores poderiam ser mais inteligentemente utilizados como suportes de

    18 Ver http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/orcamento/orcamento_2013/lei15680.pdf ou http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,prefeitura-de-sp-tera-orcamento--de-r-42-bilhoes-em-2013,937332,0.htm 19 Ver http://www.redebrasilatual.com.br/cidades/2012/03/sp-gastos-da-prefeitura--com-publicidade-crescem-1100-em-sete-anos

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    propaganda, gerando recursos preciosos para a manuteno da Tarifa Zero.

    Ainda assim, a alternativa mais evidente para o custeio do Tarifa Zero seria resultado de uma reforma tributria. Seria preciso, antes de tudo, discutir e esclarecer o que justificaria os atuais gastos to elevados com transporte privado sendo que a maioria da populao, que paga muitos dos mesmos impostos que custeiam esses gastos, no tem acesso a ele. Uma outra maneira de entender o mesmo problema perceber que uma Tarifa Zero j existe para o transporte privado: um tnel construdo pela prefeitura foi pago por todos, mas o uso exclusivo por carros gratuito. Ao contrrio do nibus, que precisa ser pago ao se embar-car, esse tipo de infraestrutura disponibilizada sem custo adicional e, no raro, com exclusividade para os usurios do transporte privado. Seja como for, a introduo de um novo imposto, ou melhor, a reconfigurao de um imposto existente seria uma maneira de arrecadar o suficiente para custear completamente o transporte pblico. Quando foi feita a proposta original do Tarifa Zero, na gesto da prefeita Luiza Erundina no incio da dcada de 1990, o imposto a ser reconfigurado seria o IPTU.20 Isso porque o IPTU um imposto que proporcional riqueza de quem o paga, ou seja, quem tem mais paga mais e quem tem menos paga menos,

    20 Ver http://sandroni.com.br/?p=457

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    seria implantado ento um aumento progressivo.21 Assim, por exemplo, grandes corporaes (como bancos) pagariam mais e pessoas fsicas pagariam muito menos enquanto a populao de baixa renda no pagaria nada. No por acaso a proposta de Tarifa Zero de 1990 foi aceita, na poca, por quase 70% da populao da cidade.22

    Mesmo assim, a princpio, algumas dessas propostas de mudana tarifria podem parecer injustas. A possibilidade do aumento das taxas cobradas sobre a venda de gasolina para veculos privados uma delas. No entanto, para avaliar medidas como essas para a manuteno do Tarifa Zero, necessrio tambm ressaltar os seus benefcios, inclusive para o transporte privado. Como vimos, apenas a cidade de So Paulo perde cerca de R$30 bilhes com o congestionamen-to a cada ano, e importante especificar que, desse valor, cerca de R$10 bilhes representam o gasto com a gasolina desperdiada em veculos estacionados em engarrafamen-tos.23 Para entender o que uma proposta de subsdio do transporte pblico tem a ver com isso, preciso entender que uma vez que o sistema deixa de se estruturar pelo lucro

    21 Ver http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=2224622 Conforme pesquisa da Toledo & Associados, ver http://www.brasildefato.com.br/node/1348323 Ver http://exame.abril.com.br/economia/noticias/transito-faz-sao-paulo--perder-r-40-bilhoes-por-ano

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    dos empresrios e passa a ser de custo zero para o usurio, toda a sua estrutura modificada, com um enorme impacto em todo o trnsito da cidade.

    Talvez seja difcil conceber, mas um bom exemplo : por que s vezes num corredor de nibus h muita gente esperando no ponto e uma enorme fila de nibus parados (inclusive nibus sem tantos passageiros)? No metr isso nunca acontece todas as pessoas que esto na plataforma entram no primeiro trem que conseguem e a grande dife-rena que cada pessoa no ponto de nibus est esperando o seu nibus, para ir para o seu destino. J a fila do corredor de nibus acontece porque todos os nibus tm que esperar o movimento do nibus que est na frente, mas no neces-sariamente todos eles precisariam parar para embarque e desembarque de passageiros em todos os pontos. Assim, se apenas um nibus tiver que parar, todos os que esto atrs acabam tendo que parar, e param pelo mesmo tempo que os que esto frente (ou pior: a soma de todos esses tem-pos!). Como a malha de linhas de nibus estruturada para maximizar os lucros, a lgica do funcionamento das linhas traz consequncias muito perversas para todo o trnsito. Se a tarifa fosse zero isso no faria sentido nenhum, seria possvel ento reestruturar completamente a malha, que poderia at funcionar como uma espcie de metr, por exemplo. Esse seria o caso nos corredores de nibus: todos os nibus do corredor poderiam fazer o mesmo trajeto e os usurios poderiam embarcar em qualquer nibus para

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    chegar a qualquer outro ponto do corredor (como numa linha de metr). A partir dali poderiam fazer uma baldea-o para um outro corredor e importante lembrar que essa baldeao seria muito mais gil do as baldeaes entre nibus do sistema atual, j que o usurio poderia embarcar no primeiro nibus e no teria que esperar um outro nibus especfico como ocorre hoje.

    Alm de corredores de nibus melhor utilizados, podemos pensar tambm no funcionamento das linhas de nibus com trajetos direto entre bairros. H hoje na cidade inmeras linhas com trajetos centro-bairro e bairro-centro, mas praticamente no existem linhas que conectem os bairros diretamente. H um motivo evidente para esse tipo de estrutura: praticamente obriga-se muitos dos usurios a pagarem duas passagens, multiplicando consideravelmente o lucro das empresas de transportes. E no, o bilhete nico no resolve o problema: o uso do bilhete nico no torna a segunda viagem gratuita, j que ela sim paga aos empresrios pela prefeitura. Alm disso, certamente muito mais fcil para os responsveis pelo sistema simplesmente assumir que todos os usurios querem ir do bairro para o centro e vice-versa. Mas claro que desse modo aqueles que quiserem ir de um bairro a outro precisam ir primeiro ao centro e depois de l para o outro bairro ao qual querem chegar. Essa estruturao aumenta enormemente o nmero de nibus circulando nas regies centrais da cidade, que se tornam efetivamente enormes terminais de passageiros. Um sistema similar ao Tarifa Zero

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    permitiria reestruturar as linhas, com a introduo de linhas circulares (circuncntricas), que conectariam os bairros entre si. Essas linhas escoariam os deslocamentos entre os bairros e permitiriam que no apenas pudesse ser diminudo o nmero de linhas radiais (bairro-centro), mas tambm a quantidade de nibus nessas linhas. Assim, haveria menos volume de trnsito no centro e o deslocamento em toda a cidade seria mais fcil, seja em nibus ou qualquer outro transporte que utilize as ruas e avenidas.

    Os exemplos acima esclarecem apenas alguns dos muitos benefcios que justificam a racionalizao do sistema de trans-porte coletivo, mas que s so plenamente atingveis com uma modificao na dinmica da cobrana da tarifa, tornando o sistema verdadeiramente pblico. Tambm perfeitamente concebvel que se o transporte pblico no tivesse que ser pago ao ser utilizado, muitos carros deixariam de circular, j que as pessoas prefeririam a economia de andar nos nibus e metr ao custo e desconforto de dirigir seus carros o que melhoraria ainda mais a fluidez do trnsito. Levando adiante esse tipo de pensamento possvel conceber muitos outros benefcios, como, com menos nibus circulando, a diminuio do barulho e da poluio, o aumento na agilidade no deslocamento, com nibus mais vazios e mais frequentes, a facilitao dos deslocamentos com um sistema coletivo com linhas muito mais simples, menos congestionamentos etc.

    E mais: se as pessoas gastassem menos com transporte, no ajudariam no crescimento da economia, comprando

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    bens e servios? E, se o transporte fosse mais eficiente, no haveria mais tempo para trabalhar mais ou em melhores condies? Mais tempo para estudar e profissionalizar-se? Quanto dos bilhes perdidos anualmente com os engar-rafamentos poderiam ser recuperados pela economia? Quanto deixaria de ser gasto com sade com doenas provocadas pela poluio ou com acidentes de trnsito? E quanto desse valor seria revertido, por meio dos impos-tos, em mais melhoras no sistema de transporte? E quo grande seria a melhoria da qualidade de vida, j que uma parcela considervel da populao teria muito mais acesso a, alm da educao e sade, tambm lazer e cultura? Tudo isso torna evidente que o sistema de transporte pblico utilizado por todos os habitantes da cidade, seja direta ou indiretamente. E, mais ainda, que na maioria das vezes os que mais se beneficiam do sistema de transporte pblico so os seus usurios indiretos: sejam os grandes empresrios cujos funcionrios chegam ao trabalho por meio dele, os comerciantes cujos compradores alcanam suas lojas por meio dele, os patres e patroas de milhes de empregadas domsticas que dependem dele para ir ao trabalho, e assim por diante.

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    Desde muito antes de junho de 2013 uma frase domina So Paulo, repetida aproximadamente 30 mil vezes todos os dias, nas duas laterais dos quase 15 mil nibus que circulam na cidade:

    Transporte: um direito do cidado; um dever do Estado.

    Curiosamente, a Constituio Federal no explicita esse direito social.24 No seu captulo II, artigo 6 l-se que apenas a educao, a sade, a alimentao, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a assistncia aos desamparados e a proteo maternidade e infncia so direitos garantidos. Salta aos olhos que o transporte no figure nesse artigo, ainda que desde 2011 haja uma proposta de emenda constitucional que pretende incluir o transporte nesta lista, como um direito social, a PEC-90.25 Enquanto o transporte no se torna efetivamente um direito consti-tucional, a frase que os nibus carregam em suas laterais permanece uma espcie de enigma, um mistrio a ser

    24 Ver http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf25 Disponvel em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F4AD542A16B71D447F458150F1386E22.node1?codteor=925887&filename=PEC+90/2011

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    decifrado pelos que ali so chamados de cidados. Afinal, que direito esse? E, mais, que dever tem o Estado e como ele cumprido?

    Uma considerao cuidadosa dos possveis modos de funcionamento e dos enormes benefcios de um sistema de transporte coletivo inteiramente subsidiado pelo Es-tado permitem entrever que o crculo vicioso do sistema tarifrio e privante pode ser substitudo por um crculo virtuoso. Se o primeiro passo, reconhecer que o aumento da tarifa injusto e excludente, j foi dado quando as manifestaes do Movimento Passe Livre, em junho de 2013, alcanaram, com amplo apoio popular, a revogao do ltimo aumento j o segundo talvez seja muito mais difcil: a necessidade de se compreender que a modificao total do modo de custeio do transporte pblico acarretaria melhoras para o sistema de transporte como um todo, isto , tanto para os que se beneficiariam diretamente da Tarifa Zero quanto dos que acabariam por se beneficiar indire-tamente (os proprietrios de automveis, por exemplo). Um dos problemas principais que a materializao dos benefcios aconteceria a mdio ou longo prazo, enquanto o nus (por exemplo um possvel aumento de impostos) seria sentido quase imediatamente.

    Seja como for, quando a tarifa para uso do transporte pblico deixar de existir por completo, a frase Transporte: um direito do cidado; um dever do Estado ter seu sentido esclarecido: o transporte pblico gratuito direito primor-

  • dial de todos os cidados porque garante o acesso a todos os outros direitos e por isso dever do Estado prioriz-lo e garanti-lo como tal. Mas antes talvez seja necessrio repeti--la trinta mil vezes mais.

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    ,Aurora o espao de publicao do .Aurora organizado e cuidado por Claudia Afonso, Laura Davia, Jlia Ayerbe e pelos artistas Bel Falleiros, Diogo Lucato, Francesco Di Tillo e Gabriel Gutierrez. Entre suas linhas editoriais esto esta coleo, livros de artistas e mltiplos. Em consonncia com a proposta do .Aurora, a editora acolhe projetos editoriais afins com o intuito de formar uma rede de colaborao e divulgao de iniciativas independentes. Se voc gostou do projeto, envie sua proposta para [email protected]

    Projeto grfico Laura Davia

    Edio Jlia Ayerbe

    Produzido por ,Aurora

    So Paulo, outubro de 2013

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  • Roberto Winter, So Paulo, 1983, artista. Formou-se bacharel em Fsica pela USP em 2005. Acompanha o Movimento Passe Livre desde 2010. Pode ser contatado em [email protected]