28
Truques da escrita

TRUQUES_DA_ESCRITA

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Gardner - truques de escrita .

Citation preview

  • Truques da escrita

  • ColeoANTROPOLOGIA SOCIAL

    fundada por Gilberto Velhodirigida por Karina Kuschnir

    O Riso e o Risvel Verena Alberti

    Falando da Sociedade Outsiders Segredos e Truques da Pesquisa Truques da Escrita Howard S. Becker

    Antropologia Cultural Franz Boas

    O Esprito Militar Os Militares e a Repblica Celso Castro

    Nas Redes do Sexo Mara Elvira Daz-Bentez

    Bruxaria, Orculos e Magia entre os Azande E.E. Evans-Pritchard

    Futuros Antropolgicos Michael M.J. Fischer

    Nova Luz sobre a Antropologia Observando o Isl Clifford Geertz

    O Cotidiano da Poltica Karina Kuschnir

    Cultura: um Conceito Antropolgico Roque de Barros Laraia

    Guerra de Orix Yvonne Maggie

    Evolucionismo Cultural L.H. Morgan, E.B. Tylor, J.G. Frazer

    A inveno de Copacabana De Olho na Rua Julia ODonnell

    A Teoria Vivida Mariza Peirano

    Cultura e Razo Prtica Histria e Cultura Ilhas de Histria Metforas Histricas e Realidades Mticas Marshall Sahlins

    Antropologia Urbana Um Antroplogo na Cidade Desvio e Divergncia Individualismo e Cultura Projeto e Metamorfose Rio de Janeiro: Cultura, Poltica e Conflito Subjetividade e Sociedade A Utopia Urbana Gilberto Velho

    Pesquisas Urbanas Gilberto Velho e Karina Kuschnir

    O Mistrio do Samba O Mundo Funk Carioca Hermano Vianna

    Sociedade de Esquina William Foote Whyte

  • Howard S. Becker

    Truques da escritaPara comear e terminar teses, livros e artigos

    Traduo:Denise Bottmann

    Reviso tcnica:Karina Kuschnir

  • Ttulo original: Writing for Social Scientists(How to Start and Finish Your Thesis, Book, or Article)

    Traduo autorizada da segunda edio revista, publicada em 2007 por The University of Chicago Press,de Chicago, Estados Unidos

    Copyright 986, 2007, The University of Chicago

    Copyright da edio em lngua portuguesa 205:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Marqus de S. Vicente 99 o | 2245-04 Rio de Janeiro, rjtel (2) 2529-4750 | fax (2) [email protected] | www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados.A reproduo no autorizada desta publicao, no todoou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.60/98)

    Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa

    O primeiro captulo deste livro foi publicado numa verso ligeiramente diferente em The Sociological Quarterly vol.24 (outono 983) e reproduzido aqui com a permisso da Midwest Sociological Society.

    Preparao: Mariana Oliveira | Reviso: Dbora de Castro Barros, Carolina SampaioIndexao: Nelly Praa | Capa: celso longo + daniel trench

    cip-Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

    Becker, Howard S.B356t Truques da escrita: para comear e terminar teses, livros e artigos/

    Howard S. Becker; traduo Denise Bottmann; reviso tcnica Karina Kuschnir. .ed. Rio de Janeiro: Zahar, 205.

    (Antropologia social)

    Traduo de: Writing for social scientists: how to start and finish your thesis, book, or article

    Inclui bibliografia e ndiceisbn 978-85-378-394-2

    . Pesquisa Metodologia. 2. Redao tcnica. 3. Escrita. i. Ttulo. ii. Srie.

    cdd: 808.0664-7086 cdu: 808.

  • 7Prefcio edio brasileira

    uma enorme satisfao poder apresentar este livro a pro-fessores e estudantes brasileiros. Sempre admirei a escrita dos grandes socilogos brasileiros do passado (meus favoritos so Srgio Buarque de Holanda e Antonio Candido), bem como a slida tradio da cincia social contempornea. Eu ficaria muito feliz se percebesse que consegui ser til s futuras ge-raes de pesquisadores e acadmicos em seu desafio de dar continuidade a esta notvel tradio.

    Escrevi o livro, como digo no incio, porque meus alunos (e tambm muitos colegas) tinham problemas terrveis para co-mear a escrever qualquer texto acadmico e dificuldades cons-tantes medida que avanavam. Tinham a sensao de que era algo impossvel. No ficavam satisfeitos com o resultado obtido depois de tanto esforo. Tinham medo de mostrar aos outros o que haviam escrito, temendo que os amigos e princi-palmente os professores rejeitassem o trabalho. E eu mesmo conhecia muito bem esses receios, por experincia prpria. O livro apresenta ideias que reuni ao longo de anos que passei escrevendo, ensinando estudantes de sociologia a escrever e oferecendo uma espcie de terapia diletante aos desesperados por alguma ajuda.

    A principal mensagem que sempre procurei passar que os problemas que as pessoas tm ao escrever no derivam de

  • 8 Truques da escrita

    alguma deficincia delas, de falta de dedicao, pouco talento ou de qualquer um dos vrios defeitos que elas possam ima-ginar como causa de suas dificuldades. Lembro-lhes a ideia de C. Wright Mills, a qual, na formulao mais pertinente neste contexto, consistiria em que os problemas pessoais so problemas da organizao social. Ou seja, as dificuldades que voc enfrenta para escrever no so culpa sua nem resultado de uma inabilidade pessoal. A organizao social na qual voc escreve est criando essas dificuldades para voc.

    Este livro, baseado em minha experincia lecionando para estudantes americanos de cincias sociais alguns anos atrs, evidentemente est desatualizado. No traz os ltimos dados sobre os detalhes das exigncias que nos fazem as organizaes sociais onde todos ns estudantes, professores, pesquisadores

    trabalhamos. E, claro, trata de estudantes dos Estados Unidos, porque so os que eu conheo. Mas isso significa apenas que os leitores tero de pesquisar algumas coisas, para perceber como o ambiente em que esto inseridos interfere e dificulta o trabalho que tm a fazer. E, tambm, para que encontrem formas de melhorar a situao.

    Um exemplo muito claro o modo como os estudantes ficam isolados, sentados sozinhos olhando a tela do computador, es-crevendo frase aps frase e apagando logo em seguida. Por qu?

    Eis meu palpite. Talvez no se aplique sua situao, mas lhe dar um ponto de partida para comear sua investigao. Voc escreve a frase, a pensa em algum e imagina essa pessoa lendo: pode ser um professor que voc admira ou um colega que todo mundo acha que timo. E ento duas coisas vm sua mente. Primeiro, que ao escrever eles nunca tm as mesmas dvidas que voc tem sobre o valor do prprio

  • Prefcio edio brasileira 9

    texto no, eles simplesmente escrevem e acham que est perfeito. E, voc pensa, todo mundo vai concordar com eles. Mas claro que isso no verdade. Por exemplo, essa frase que voc acabou de ler, reescrevi seis vezes at ficar assim. E posso mudar mais uma vez!

    E a voc imagina essas mesmas pessoas lendo sua frase e rindo. Claro que isso no acontece, mas, s para garantir, voc apaga rapidinho.

    Agora voc sumiu com aquela frase desagradvel e se ps a salvo das risadas imaginrias. Mas, claro, agora voc ficou sem frase nenhuma. Ento precisa recomear. Adiante, voc vai ver o caso de algumas pessoas que sentem tanto medo da reao alheia que, se chegam ao final do dia com uma nica frase, j muita sorte.

    Esse problema nasce das condies de isolamento em que muitas vezes trabalhamos: enclausurados sozinhos num apo-sento onde ningum v o que estamos fazendo. Os estudantes escondem seus textos uns dos outros, nunca veem os profes-sores com a mo na massa nem o trabalho que tm antes de o texto deles ser publicado.

    essa privacidade socialmente organizada a origem do pro-blema! Se os estudantes soubessem que os colegas esto tendo as mesmas dificuldades que eles bom, seria como uma dessas viroses que dizem que anda dando por a, o que significa que todo mundo pega, se sente mal por alguns dias e ento passa. Se os estudantes soubessem que seus professores escrevem muitas frases pssimas, mas ento reescrevem vrias vezes, perceberiam que suas frases ruins tambm podem ser corri-gidas. Voc continua com o problema, com a dificuldade, mas agora sabe que no irremedivel. Sabe como tratar!

  • 10 Truques da escrita

    E que isso sirva de modelo para todos os seus problemas de redao! Encontre a situao que gera seu problema e mude-a.

    Examine os pontos onde voc est travando. Voc acha que depois de escrever uma verso de alguma coisa no vai poder mud-la? Mude e veja o que acontece. No vai acontecer nada de ruim. Voc ter um texto melhor, o que no nenhum problema.

    Bom trabalho!So Francisco, 2014

  • 21

    . Introduo redao para estudantes de ps-graduao

    Um caso e duas teorias

    Dei vrios seminrios sobre redao para estudantes de ps- graduao. Isso exige uma certa cara de pau. Afinal, quando se ensina um assunto, supe-se que a pessoa saiba alguma coisa a respeito. Como eu escrevia profissionalmente, como socilogo, fazia quase trinta anos, isso me dava alguma base. Alm disso, vrios professores e colegas no s tinham feito reparos a meu tipo de texto, mas tambm me ensinaram in-meras maneiras de melhor-lo. Por outro lado, todo mundo sabe que os socilogos escrevem muito mal, e o pessoal de literatura, diante de um texto ruim, faz piada dizendo que

    sociologia, como os comediantes de vaudeville costumavam arrancar risadas dizendo Cucamonga (ver, por exemplo, a crtica de Cowley 956 e a rplica de Merton 972). A experin- cia e as lies no me salvaram das falhas que ainda divido com meus colegas.

    Apesar disso, aproveitei a ocasio, motivado pelas histrias dos problemas crnicos que discentes e colegas docentes en-frentavam na escrita. Ofereci o curso.

    O perfil dos inscritos na primeira turma me surpreendeu. Alm dos dez ou doze ps-graduandos que se matricularam, a turma tinha tambm uns dois ou trs pesquisadores em ps-doutorado e at alguns de meus colegas mais jovens, e

  • 22 Truques da escrita

    esse perfil se manteve nos anos seguintes. Seus problemas e preocupaes com a redao superavam o medo de passarem vergonha voltando aos bancos de escola.

    Minha cara de pau no se limitou a dar um curso sobre um assunto que eu no dominava: sequer preparei o curso, pois, sendo socilogo e no professor de redao, no fazia ideia de como ensinar a escrever. Ento, no primeiro dia de aula, entrei na sala sem saber o que ia fazer. Depois de algumas observa-es iniciais meio atrapalhadas, tive uma luz. Durante anos, eu havia lido as Entrevistas com escritores da Paris Review e sempre sentira um interesse levemente lascivo pelas coisas que os entrevistados revelavam sem o menor pudor sobre seus hbitos de escrita. Assim, eu me virei para uma velha amiga e ex-aluna da graduao, sentada minha esquerda, e perguntei:

    Louise, como voc escreve? Expliquei que no estava interes-sado em nenhuma linda histria sobre a preparao acadmica, e sim nos detalhes que realmente interessam: se ela datilogra-fava ou escrevia a mo, se usava algum tipo especial de papel ou trabalhava em alguma hora especfica do dia. No sabia o que ela ia dizer.

    A tentativa deu certo. Sem maiores hesitaes, ela descreveu longamente uma rotina complicada que devia ser cumprida risca. Mesmo no estando constrangida em falar, alguns cole-gas se mostravam inquietos na cadeira, enquanto ela explicava que s escrevia em blocos de papel ofcio amarelo, pautado, usando uma hidrogrfica verde, que antes precisava limpar a casa (coisa que veio a se mostrar uma preliminar recorrente entre as mulheres, mas no entre os homens, mais propensos a apontar vinte lpis), que s conseguia escrever entre tais e tais horas, e assim por diante.

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 23

    Vi que a coisa prometia e passei para a vtima seguinte, um rapaz. Um pouco mais relutante, ele exps seus hbitos igual-mente peculiares. O terceiro pediu desculpas, mas disse que preferia pular sua vez. No deixei. Ele tinha boas razes, como se viu depois. Todos tinham. quela altura, dava para ver que as pessoas estavam expondo coisas embaraosas, nada que desse muita vontade de comentar na frente de vinte colegas. Fui implacvel, fazendo todo mundo contar tudo, sem poupar a mim mesmo.

    Esse exerccio gerou um grande nervosismo, mas tambm muito divertimento, enorme interesse e, por fim, uma des-contrao surpreendente. Comentei que todos estavam ali-viados, e deviam estar mesmo, pois, se seus piores medos serem loucos de pedra eram reais, em compensao no eram mais loucos do que ningum. Era uma doena comum. Assim como as pessoas se sentem aliviadas quando desco-brem que alguns sintomas fsicos alarmantes que costumam ocultar so apenas algo que anda acontecendo, saber que os outros tm hbitos de escrita malucos devia ser, e visivel-mente era, uma boa coisa.

    Prossegui com minha interpretao. De certo ponto de vista, os participantes estavam descrevendo sintomas neur-ticos. Mas, de uma perspectiva sociolgica, tais sintomas eram rituais mgicos. Segundo Malinowski (948, p.25-36), as pessoas fazem esses rituais para influir no resultado de algum processo sobre o qual julgam no ter meios de controle racionais. Ele descreveu o fenmeno que observou nas Ilhas Trobriand:

    Assim, na construo de canoas, o conhecimento emprico do

    material, da tecnologia e de certos princpios de estabilidade e

  • 24 Truques da escrita

    hidrodinmica funciona associado e intimamente ligado com a

    magia, mas sem se afetarem mutuamente.

    Por exemplo, eles entendem com plena clareza que, quanto

    mais larga a toleteira, maior a estabilidade, embora menor a re-

    sistncia tenso. Podem explicar claramente por que precisam

    dar toleteira uma determinada largura tradicional, medida em

    fraes do comprimento da embarcao. Tambm sabem expli-

    car, em termos rudimentares, mas nitidamente mecnicos, como

    precisam se conduzir durante uma ventania sbita, por que a

    toleteira precisa ficar sempre a barlavento, por que um tipo de

    canoa consegue resistir e outro no. Dispem, de fato, de um

    sistema completo de princpios de navegao, incorporado numa

    terminologia complexa e variada, transmitido pela tradio e obe-

    decido de modo to racional e metdico quanto os marinheiros

    modernos em relao cincia moderna

    Mas, mesmo com todo o seu conhecimento sistemtico, apli-

    cado de maneira metdica, ainda ficam merc de correntes

    fortes e incalculveis, de vendavais repentinos durante as mon-

    es e de recifes desconhecidos. E aqui entra a magia deles, que

    executam sobre a canoa durante sua construo, realizam no

    comeo e durante as expedies e qual recorrem em momentos

    de verdadeiro perigo. (p.30-)

    Assim como os marinheiros trobriandeses, os socilogos que no conseguiam lidar racionalmente com os perigos de escrever usavam sortilgios mgicos, que os livravam da an-siedade, embora no afetassem o resultado.

    Ento perguntei turma: o que vocs tanto temem no conseguir controlar racionalmente, a ponto de usarem todos esses rituais e frmulas mgicas? No sou freudiano, mas achei

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 25

    que eles teriam resistncia em responder. No, no tiveram. Pelo contrrio, falaram bastante sobre isso e com muita fran-queza. Para resumir o extenso debate que se seguiu, eles ti-nham medo de duas coisas. Temiam no conseguir organizar seus pensamentos, que escrever fosse ser uma confuso to grande que ficariam doidos. Falaram de um segundo medo: que o que escrevessem estivesse errado e que as pessoas (no especificadas) iriam rir deles. Isso, pelo visto, explicava um pouco mais o ritual. Outra moa, que tambm escrevia em blocos de papel ofcio amarelo pautado, sempre comeava na segunda folha. Por qu? Bom, disse ela, se algum passasse por ali, dava para abaixar a folha de cima e tampar o que estava escrevendo, para o outro no ver.

    Vrios rituais eram para assegurar que o texto no fosse tomado como produto acabado, pois assim ningum po-deria rir dele. A desculpa j estava embutida ali. Creio que por isso que mesmo os escritores rpidos na digitao muitas vezes usam mtodos demorados, como escrever a mo. evidente que qualquer coisa escrita a mo ainda no est pronta e, portanto, no pode ser criticada como se estivesse. Mas h uma maneira ainda mais segura de garantir que no se tome um texto como efetiva expresso das capacidades de seu autor: no escrever nada. Ningum pode ler o que nunca foi posto no papel.

    Acontecera uma coisa importante naquela turma. Como tambm comentei naquele primeiro dia, todos haviam contado algo embaraoso sobre si mesmos e ningum tinha morrido. (Nisso, era algo parecido com o que se pode chamar de novas terapias da Califrnia, em que a pessoa desnuda sua psique ou seu corpo em pblico e descobre que a revelao no mata.)

  • 26 Truques da escrita

    Fiquei surpreso que as pessoas daquela turma, vrias das quais se conheciam muito bem, no sabiam absolutamente nada so-bre os hbitos de trabalho dos colegas e, na verdade, nunca tinham lido seus textos. Decidi fazer algo a respeito.

    Inicialmente, eu dissera aos interessados que o curso daria nfase no redao, mas reviso e reelaborao de textos. Por isso, como requisito para frequentar o curso, eles teriam de entregar um artigo j escrito, para treinarem as correes. Mas, antes de pegar esses artigos, decidi mostrar o que era revisar e reescrever. Uma colega me emprestou um segundo rascunho de um artigo em que estava trabalhando. No comeo da segunda aula, distribu sua seo sobre a metodologia do trabalho, em trs ou quatro pginas, e passamos trs horas reescrevendo o texto.

    Normalmente, os socilogos usam vinte palavras quando duas bastariam, e passamos a maior parte daquela tarde cor-tando o excesso de palavras. Usei um mtodo que j tinha usado muitas vezes em aulas particulares. Com o lpis numa palavra ou orao, eu perguntava: Isso precisa estar aqui? Se no, vou eliminar. Frisei bem que, ao fazer alguma alterao, no podamos eliminar a mais leve nuance do pensamento do autor. (Aqui eu estava pensando nas regras que C. Wright Mills (959, p.27-3) seguira em sua famosa traduo de pas-sagens de Talcott Parsons.) Se ningum defendesse a palavra ou a frase, eu cortava. Mudei construes na voz passiva para a voz ativa, juntei frases, dividi frases longas todas as coisas que esses estudantes j tinham aprendido a fazer nas aulas de introduo redao. Depois de trs horas, tnhamos redu-zido quatro pginas a trs quartos de uma pgina, sem perder nenhuma nuance ou detalhe essencial.

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 27

    Trabalhamos numa frase longa em que a autora avaliava as possveis implicaes daquilo que o artigo colocara at o momento por um bom tempo, eliminando palavras e expres-ses at ficar reduzida a um quarto do que era. Por fim, sugeri (com uma ponta de malcia, mas eles no tinham muita certeza disso) que cortssemos toda aquela passagem e s pusssemos:

    E da?. Algum por fim rompeu o silncio de espanto: Voc pode tirar, mas a gente no poderia. Ento falamos sobre o tom, concluindo que eu tambm no poderia tirar, a menos que tivesse preparado o terreno para aquele tipo de tom e fosse apropriado para a ocasio.

    Os estudantes ficaram com muita pena de minha colega, que havia cedido as pginas para nossa cirurgia. Acharam que tinha sido humilhante para ela e que foi uma sorte que ela no estivesse l para morrer de vergonha. Compadecendo-se dessa maneira, eles estavam se baseando em seus prprios sentimen-tos no profissionais, sem perceber que, para as pessoas que escrevem profissionalmente, e escrevem muito, fazia parte da rotina reescrever o texto, tal como havamos feito. Eu queria que eles entendessem que aquilo no era incomum e que de-viam se acostumar ideia de reescrever muito, e por isso lhes contei (com sinceridade) que eu normalmente reescrevia umas oito ou dez vezes o manuscrito antes da publicao (mas no antes de mostr-lo a meus amigos). Ficaram surpresos, pois, como explicarei mais adiante, eles achavam que os bons es-critores (pessoas como seus professores) j conseguiam redigir tudo certo na primeira vez.

    Esse exerccio trouxe vrios resultados. Os estudantes fi-caram exaustos, pois nunca tinham passado tanto tempo ou examinado com tanta ateno um mesmo texto, nunca tinham

  • 28 Truques da escrita

    imaginado que algum era capaz de passar tanto tempo numa tarefa daquelas. Viram e testaram vrios procedimentos edi-toriais de praxe. Mas o resultado mais importante surgiu no final da tarde, quando uma estudante aquela maravilhosa es-tudante que diz o que os outros esto pensando, mas preferem ficar quietos falou em tom cansado: Puxa, Howie, quando voc diz assim, fica de um jeito que qualquer um poderia di-zer. , exato.

    Falamos sobre isso. O que era sociolgico: o que voc dizia ou como voc dizia? Pois veja s, no havamos substitudo ne-nhum termo tcnico da linguagem sociolgica. No era essa a questo (quase nunca ). Havamos substitudo redundncias,

    palavras bonitas, expresses pomposas (por exemplo, minha bte noire* pessoal, a maneira pela qual, que geralmente pode ser trocada por um simples como, sem nenhuma perda a no ser o tom pretensioso) qualquer coisa que pudesse ser sim-plificada sem prejuzo para a ideia. Conclumos que os autores tentavam dar corpo e peso ao que escreviam utilizando um tom acadmico, mesmo em detrimento do verdadeiro significado.

    Descobrimos mais algumas coisas naquela tarde intermi-nvel. Algumas daquelas longas expresses redundantes no podiam ser substitudas porque no havia nenhum sentido por trs delas. Estavam ali para preencher o espao, marcando um lugar onde o autor deveria dizer algo mais simples, mas, no momento, no tinha nada simples para dizer. Mesmo assim, esses lugares tinham de ser preenchidos, pois, do contrrio, o autor ficaria com a frase pela metade. Os escritores usavam essas expresses e frases sem sentido no por um simples capri-

    * Implicncia pessoal, em francs no original. (N.T.)

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 29

    cho ou porque tinham cacoetes indesejveis na escrita. Certas situaes exigiam a presena delas para preencher espao.

    Os escritores costumam usar expresses sem sentido para encobrir dois tipos de problemas. Ambos refletem srios dile-mas da teoria sociolgica. Um dos problemas tem a ver com o agente: quem fez as coisas que a frase afirma que foram feitas? Muitas vezes, os socilogos preferem locues que no do uma resposta clara a essa pergunta, em larga medida porque muitas de suas teorias no lhes dizem quem est fazendo o qu. Em diversas teorias sociolgicas, as coisas simplesmente acontecem sem serem feitas por ningum. difcil encontrar um sujeito para uma frase quando esto operando foras so-ciais mais amplas ou processos sociais inexorveis. Quando se evita dizer quem fez tal ou tal coisa, surgem dois defeitos tpicos da redao sociolgica: o costume de usar a voz passiva e substantivos abstratos.

    Se voc diz, por exemplo, que os desviantes foram rotula-dos, no precisa dizer quem os rotulou. um erro terico, e no s uma falha de redao. Um ponto importante na teoria de rotulao do desvio (destacado em Becker 963) justa-mente que algum rotula a pessoa de desviante, algum que tem o poder para tanto e boas razes para querer fazer isso. Se voc deixa esses agentes de fora, distorce a teoria, tanto na prtica quanto no seu princpio. Apesar disso, uma locu-o corrente. Os socilogos cometem erros tericos similares quando dizem que a sociedade faz isso ou aquilo ou que a cultura leva as pessoas a fazerem tais ou tais coisas, e eles escrevem assim o tempo inteiro.

    A incapacidade ou falta de vontade dos cientistas sociais de fazer afirmativas causais tambm leva a uma redao ruim.

  • 30 Truques da escrita

    O Ensaio sobre o entendimento humano, de David Hume, nos deixa aflitos na hora de afirmar que demonstramos as cone-xes causais, e, embora poucos socilogos sejam to cticos quanto Hume, em sua maioria eles julgam que, apesar dos esforos de John Stuart Mill, do Crculo de Viena e de todos os demais, correro srios riscos acadmicos se alegarem que A causa de B. Os socilogos encontram diversas maneiras de descrever covarincias, geralmente usando expresses va-zias que insinuam o que gostaramos de dizer, mas no temos coragem. Como receamos dizer que A causa B, dizemos: H uma tendncia de covariarem ou Parecem estar associados.

    As razes disso nos reconduzem aos rituais da escrita. Escre-vemos assim porque, se escrevermos de outra maneira, temos medo de que os outros nos flagrem em erros primrios e riam de ns. Melhor dizer algo incuo, mas seguro, do que algo mais arrojado, que voc talvez no consiga defender contra as crticas. Pois veja, no h problema em dizer A varia com B, se for realmente o que voc quer dizer, e faz todo sentido afirmar: Penso que A causa B e meus dados sustentam essa afirmao mostrando a covarincia deles. Mas muitos usam essas expresses para apenas sugerir asseres mais incisivas, pelas quais simplesmente no querem ser censurados. Querem descobrir causas, porque causas tm interesse cientfico, mas no querem a responsabilidade filosfica.

    Todos os professores e manuais de redao em ingls cri-ticam construes na voz passiva, substantivos abstratos e a maioria das outras falhas que citei. No inventei esses critrios. Na verdade, aprendi em cursos de redao. Embora tais cri-trios, portanto, sejam independentes de qualquer escola de pensamento, acredito que minha preferncia pela clareza e

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 31

    pelo tom direto tambm tem razes na tradio da sociologia interacionista simblica, que concentra seu enfoque em agen-tes reais em situaes reais. Meu colega brasileiro Gilberto Velho insiste que so critrios etnocntricos, muito favorecidos na tradio anglo-americana do discurso direto, justificando que o estilo indireto e mais floreado vem de tradies euro-peias. Penso que est errado, visto que alguns dos melhores escritores em outras lnguas tambm usam um estilo direto.

    Analogamente, Michael Schudson me perguntou, e com boa dose de razo, como deveria escrever algum que acredita que as estruturas relaes de produo capitalistas, por exemplo

    causam os fenmenos sociais. Esse terico deveria usar cons-trues na voz passiva para indicar a passividade dos atores humanos envolvidos? Essa pergunta requer duas respostas. A mais simples que poucas teorias sociais srias no deixam nenhum espao ao humana. A segunda, e mais impor-tante, que as construes na voz passiva chegam a ocultar o papel de agente atribudo aos prprios sistemas e estruturas. Suponha-se que um sistema rotula os desviantes. Dizer os desviantes so rotulados tambm encobre isso.

    Grande parte do que eliminamos do artigo de minha co-lega, durante a aula, consistia naquilo que, para as finalidades do curso, chamei de qualificaes furadas (bullshit qualifica-tions, tomando como precedente legitimador a crtica de Wayne Booth ao papo-furado polissilbico de raiz grega (Booth 979, p.277)), expresses vagas indicando uma pronta disposio a abandonar o aspecto apontado caso algum faa alguma obje-o: A tende a estar relacionado com B, A talvez possa tender a estar relacionado com B em certas condies e outras quali-ficaes igualmente tmidas. Uma qualificao efetiva diz que

  • 32 Truques da escrita

    A est relacionado com B, salvo certas circunstncias especifica-das: sempre compro comida na Safeway, a menos que ela esteja fechada; a relao positiva entre renda e instruo maior se voc for branco do que se for negro. Mas os estudantes, como outros cientistas sociais, geralmente usavam qualificaes me-nos especficas. Queriam dizer que a relao existia, mas sabiam que algum, mais cedo ou mais tarde, iria encontrar uma exce-o. O qualificador ritual, no especfico, lhes dava uma escapa-tria para qualquer eventualidade. Se fossem atacados, podiam dizer que nunca afirmaram que aquilo era sempre verdade. As qualificaes furadas, tornando as afirmaes vagas, ignoram a tradio filosfica e metodolgica segundo a qual fazer gene-ralizaes numa forma universal forte ajuda a evidenciar casos negativos que podem servir para aperfeio-las.

    Quando perguntei aos estudantes da turma por que escre-viam daquela maneira, vim a saber que haviam pegado muitos dos hbitos na escola e os consolidaram na faculdade. O que tinham aprendido a escrever eram trabalhos de semestre (ver a discusso de Shaughnessy (977, p.85-6) sobre as condies da redao na graduao). Voc escreve o trabalho do semes-tre fazendo todas as leituras ou pesquisas exigidas durante o perodo e, enquanto isso, vai montando mentalmente a mo-nografia. Mas depois escreve de uma vez s, s vezes a partir de um esboo geral, e geralmente na noite anterior data de entrega. Como uma pintura japonesa, voc faz, e fica bom ou no. Os estudantes de graduao no tm tempo de reescrever, visto que muitas vezes precisam entregar vrios trabalhos na mesma poca do ano. O mtodo funciona para a graduao. Alguns adquirem grande prtica nesse formato e entregam trabalhos respeitveis, bem acabados, formulando-os mental-

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 33

    mente enquanto andam pelo campus e pondo por escrito logo antes da data de entrega. Os professores sabem de tudo isso. Se no conhecem a mecnica da coisa, pelo menos conhecem os resultados e no esperam trabalhos com mais coerncia ou melhor acabamento do que esse mtodo permite.

    Os estudantes que costumam trabalhar dessa maneira ficam preocupados com a verso que redigem, o que compreens-vel. Eles sabem que poderia ser melhor, mas no ser. O que escrevem fica assim mesmo. Desde que esse documento se mantenha confidencial, na relao convencionalmente privada entre aluno e professor, no constranger demais o autor.

    Mas a organizao social da escrita e da reputao muda na ps-graduao. Os professores comentam os trabalhos dos estudantes com seus colegas e com outros estudantes, seja elo-giando ou criticando. Com sorte, eles vm a se transformar em trabalhos para a qualificao ou em dissertaes, lidos por vrios membros do corpo docente.

    Os estudantes da ps tambm redigem trabalhos mais lon-gos do que o pessoal da graduao. Os habituados ao trabalho semestral no tm a mesma facilidade para guardar na cabea um trabalho mais extenso. a que comeam a perder a facili-dade na escrita. No conseguem redigir o texto de uma tacada s sem sentir medo de despertar crticas e zombarias. Ento, no escrevem.

    No contei todas essas coisas aos estudantes nas primeiras aulas, s depois. O que fiz foi dar tarefas para que desistissem do mtodo de escrever o texto de uma vez s. Ento poderiam criar outras rotinas, menos penosas e igualmente eficazes para ganhar a recompensa acadmica. Em todas as turmas que tive, sempre havia alguns mais intrpidos que confiavam em mim a

  • 34 Truques da escrita

    ponto de prosseguir com as experincias. Minha fama de no ser um carrasco abrandava o medo tradicional dos estudantes pelos professores, e os que tinham feito outros cursos comigo confiavam em minhas excentricidades. Os professores que no dispem de tais vantagens provavelmente teriam mais proble-mas em usar alguns desses expedientes.

    Falei aos estudantes que no fazia muita diferena o que eles escrevessem num primeiro rascunho, pois sempre podiam modificar. Como o que colocavam no papel no era necessa-riamente definitivo, no precisavam se preocupar muito com o que escreviam. A nica verso importante era a final. J tinham visto uma amostra das mudanas que podiam fazer e prometi que mostraria mais.

    Nossa reviso em aula e minha respectiva interpretao acalmaram os estudantes. Pedi que trouxessem na prxima aula aqueles textos que eu exigira como pr-requisito para a inscrio no curso, mas que ainda no havia recolhido. (Alguns estudantes deram para trs. Na segunda vez em que dei o curso, uma aluna disse que no ia entregar o texto porque no tinha. Fiquei bravo: Qualquer um que frequenta a escola esse tempo todo tem montes de textos escritos. Traga um. Ento a verdadeira razo aflorou: No tenho nenhum que preste.) Depois de recolher os textos e misturar bem todos eles, dis-tribu as folhas turma, tomando cuidado para que ningum recebesse seu prprio texto. Na semana seguinte, eles os de-volveram aos respectivos autores. O pessoal ficou muito srio, olhando o que tinha sido feito. Muita coisa. Havia marcas de tinta vermelha do comeo ao fim.

    Perguntei como se sentiram copidescando o texto de outra pessoa. Falaram muito, e irritados. Tinham ficado surpresos

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 35

    com a trabalheira que deu e com a quantidade de erros bo-bos. Depois de uma hora de reclamaes, perguntei como se sentiram ao ter seus textos copidescados. Falaram, e tambm irritados, mas agora reclamando que quem lera o texto tinha sido impiedoso, no entendera o que eles queriam dizer, al-terara o texto com coisas que jamais tiveram a inteno de dizer. Os mais espertos logo perceberam que a carapua lhes servia, e todos ficaram em silncio quando se deram conta. Falei que deviam pensar naquela lio, e agora podiam ver que precisavam escrever de uma maneira que os copidesques bem- intencionados e deviam supor que os colegas eram bem-inten-cionados no se enganassem quanto ao sentido. Disse-lhes que, muitas vezes, seus trabalhos seriam revistos por colegas e preparadores de texto, e que era melhor irem se acostumando ideia, sem se sentir ofendidos por causa disso. Deviam era tentar escrever com clareza, para que ningum entendesse mal e fizesse alteraes que iriam desagrad-los.

    Ento falei que podiam comear escrevendo praticamente qualquer coisa, qualquer rascunho, por mais fraco e confuso que ficasse, e depois o transformariam em algo bom. Para provar, eu precisava de algum que fizesse um primeiro ras-cunho despreocupado, algumas ideias anotadas sem muito cuidado e sem nenhuma correo. Expliquei que esse rascu-nho os ajudaria a descobrir o que eles queriam dizer. (Essa foi uma das vezes em que inventei algo que eu no sabia que j estava sendo desenvolvido pelo pessoal da teoria da compo-sio. Linda Flower (979, p.36), por exemplo, expe e analisa o mesmo procedimento, chamando-o de prosa baseada no escritor, que d ao escritor liberdade de gerar uma grande amplitude de informaes e uma ampla variedade de relaes

  • 36 Truques da escrita

    possveis, antes de se prender a uma formulao prematura.) Levou algum tempo at encontrarmos algum disposto a en-frentar um processo to arriscado. Distribu na turma cpias do documento resultante.

    A moa que contribuiu com o texto fez algumas piadinhas nervosas sobre si mesma, sobre colocar-se em risco ao deixar que as pessoas o lessem. Para sua surpresa, os colegas ficaram admirados com o que ela tinha escrito. Podiam ver que estava mal redigido e confuso, mas tambm podiam ver, e dizer, que ela tinha ali algumas ideias realmente interessantes, as quais podiam ser desenvolvidas. Tambm manifestaram sua admira-o pela coragem dela. (Nos anos seguintes, outros estudantes destemidos causaram o mesmo efeito sobre os colegas.)

    O rascunho mostrava os rodeios da autora para abordar o tema (como os escritores descritos em Flower e Hayes 98), sem muita certeza do que queria dizer, repetindo a mesma coisa vrias vezes e de diversas maneiras. Na comparao entre as verses, ficou fcil enxergar a ideia que ela estava rodeando e chegar a uma formulao mais concisa. Com isso, encontramos trs ou quatro ideias a ser trabalhadas e pude-mos ver ou sentir algumas conexes entre elas. Concordamos que a maneira de trabalhar com aquele rascunho seria fazer anotaes nele, ver o que continha e depois montar um plano geral para outro rascunho. Para que se incomodar em evi-tar redundncias ou os outros defeitos que nos tinham dado tanto trabalho para eliminar na semana anterior, se, tendo agora adquirido essas novas habilidades, seria fcil se livrar deles mais adiante? Ficar se preocupando com essas falhas apenas retardaria seu ritmo, impediria que voc dissesse algo em alguma das maneiras que lhe dariam a pista de que pre-

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 37

    cisava. Melhor corrigir depois, e no durante. Os estudantes comearam a ver que a redao no precisa ser feita de uma tacada s, um lance de tudo ou nada. Podia ser em etapas, cada qual com seus critrios de excelncia (como Flower e outros poderiam lhes explicar, mas talvez fosse melhor des-cobrirem por experincia prpria). A insistncia na clareza e no acabamento, adequada para uma verso mais adiantada, era totalmente inadequada para as verses mais iniciais, cujo objetivo era colocar as ideias no papel. Chegando a tais con-cluses, eles reproduziram alguns dos resultados de Flower e comearam a entender que a preocupao com as regras de redao numa fase muito inicial do processo podia impedi-los de dizer o que realmente tinham a dizer (questo apontada na linguagem da psicologia cognitiva em Rose 983).

    No quero exagerar. Meus estudantes no jogaram fora as muletas e comearam a danar. Mas viram que seus proble-mas tinham soluo, e era s isso o que eu queria. Sabendo que era possvel, poderiam tentar. S saber no bastava, claro. Tinham de usar esses recursos, integr-los em sua rotina de escrita, talvez substituindo alguns dos elementos mgicos que havamos comentado.

    Fizemos muitas outras coisas no seminrio. Discutimos retrica, lendo Gusfield sobre a retrica das cincias sociais (98) e A poltica e a lngua inglesa de Orwell (954). Foi uma surpresa: Gusfield, o socilogo, teve mais impacto do que Orwell, o escritor. Ele mostrava como os escritores da mesma rea dos estudantes utilizavam recursos estilsticos para soar cientficos, em especial apontando como as cons-trues na voz passiva podiam criar uma fachada impessoal por trs da qual o investigador podia se esconder. Discutimos

  • 38 Truques da escrita

    a redao cientfica como forma de retrica, na inteno de persuadir, e quais eram as formas de persuaso tidas como legtimas ou ilegtimas pela comunidade cientfica. Insisti na natureza retrica da redao cientfica, embora os estudantes, como muitos docentes, acreditassem que algumas maneiras de escrever eram tentativas ilegtimas de persuadir, ao passo que outras se limitavam a apresentar os fatos e deixavam que eles falassem por si ss. (Esse aspecto foi extensamente exami-nado por socilogos da cincia e estudiosos da retrica. Ver, em especial, Bazerman 98, Latour e Bastide 983 e as referncias bibliogrficas ao final deste livro.)

    Aqui, tambm, quem me ajudou foi aquele tipo de estudante, que eu aprecio muito. Depois de passarmos um bom tempo discutindo a retrica da cincia, ele perguntou: Tudo bem, Howie, eu sei que voc nunca gosta de nos dizer o que fazer, mas voc vai dizer ou no? E eu: Dizer o qu? Como es-crever sem usar retrica! Tal como antes, todo mundo estava na expectativa de que eu revelasse o segredo. Na hora em que ouviram o colega comentar em voz alta, seus piores medos se confirmaram. No era possvel escrever sem usar retrica e, portanto, no havia como fugir s questes de estilo.

    Durante vrios anos ministrando o curso, desenvolvi uma teoria da composio que descreve o processo que gera o texto e tambm as dificuldades de redigi-lo. (Ela aparece, em forma mais geral, em Art Worlds (Becker 982a), como uma teoria de criao de todas as espcies de obras de arte. Embora derive de uma psicologia social muito diferente da psicologia cognitiva que predomina nos trabalhos em teoria da composio, minhas ideias so semelhantes s de Flower e Hayes e de seus colegas.) A forma final de qualquer obra

  • Introduo redao para estudantes de ps-graduao 39

    resulta de todas as escolhas feitas por todas as pessoas envol-vidas em sua produo. Quando escrevemos, fazemos esco-lhas constantes como, por exemplo, qual ideia tomaremos, e quando; que palavras usaremos para express-la, e em que ordem; quais exemplos daremos para deixar o significado mais claro. evidente que, na verdade, a redao posterior a um processo ainda mais longo de absoro e desenvolvi-mento das ideias, este por sua vez precedido por um processo de absoro e seleo das impresses. Cada escolha contribui para moldar o resultado.

    Se essa anlise fundada, estamos enganados ao pensar que, quando sentamos para escrever, vamos compor a partir do zero e podemos escrever qualquer coisa. Nossas escolhas an-teriores olhar tal coisa de tal maneira, pensar em tal exemplo para desenvolver nossas ideias, empregar tal maneira de reunir e armazenar dados, ler tal romance ou assistir a tal programa de tev excluem nossas outras escolhas possveis. A cada vez que respondemos a uma pergunta sobre nosso trabalho e o que andamos pensando ou descobrindo, nossa escolha de pa-lavras afetar a maneira como vamos descrev-lo da prxima vez, talvez quando estivermos tomando notas ou montando um plano geral.

    Os estudantes, em sua maioria, tinham uma viso mais con-vencional, encarnada na famosa mxima que diz: se voc pensa com clareza, escrever com clareza. Eles achavam que deviam elaborar tudo antes de escrever a Primeira Palavra, reunindo todas as suas impresses, ideias e dados, e resolvendo explici-tamente todas as questes tericas e empricas importantes. Do contrrio, podia sair errado. Encenavam ritualmente essa crena abstendo-se de comear a escrever enquanto no em-

  • 40 Truques da escrita

    pilhassem na mesa todos os livros e anotaes de que talvez viessem a precisar. Alm disso, achavam que tinham liberdade de escolha na maioria dessas questes, o que levava a obser-vaes como Creio que vou usar Durkheim em minha seo sobre a parte terica, como se j no tivessem resolvido muito tempo antes as questes tericas sugeridas pela invocao de Durkheim (ou de Weber ou Marx), na maneira como haviam feito o trabalho. (Os estudiosos de outras reas sabero quais Grandes Nomes podem usar aqui.)

    Minha teoria segue na direo oposta: ao se sentar para escrever, voc j fez muitas escolhas, mas provavelmente no sabe quais foram. natural que isso leve a alguma confuso, a um primeiro rascunho bem bagunado. Mas um rascunho confuso no vergonha nenhuma. Pelo contrrio, ele mostra quais foram suas primeiras escolhas, com quais ideias, pers-pectivas tericas e concluses voc j se comprometeu antes de comear a redigir. Ciente de que escrever muitos outros rascunhos, voc sabe que no precisa se preocupar se esse pri-meiro est muito cru e desconjuntado. Ele se destina a fazer descobertas, no a ser apresentado (a distino de C. Wright Mills (959, p.222), seguindo Reichenbach).

    Assim, a redao de um primeiro rascunho cru vai lhe mos-trar todas as decises anteriores que agora moldam o que voc pode escrever. No pode usar Marx se foram as ideias de Durkheim que moldaram seu pensamento. No pode escrever sobre coisas que seus dados coletados no revelam ou que seu mtodo de armazenamento de dados no permite demonstrar. Voc v o que tem e o que no tem, o que j fez e j sabe, e o que falta fazer. Voc v que a nica coisa que falta em-bora j tenha comeado a escrever deixar tudo mais claro.