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Tudo que eu digo, acreditem, Teria mais solidez Millôrimg.travessa.com.br/capitulo/SEXTANTE/CARA_DO_RIO_A-9788543103150.pdfNASCIMENTO E INFÂNCIA DO RIO 33 Lembremos que seu tio,

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  • Tudo que eu digo, acreditem, Teria mais solidez

    Se, em vez de carioquinha, Eu fosse um velho chinês.

    Millôr

  • AGRADECIMENTOS

    Este livro não seria possível sem o amor incondicional ao Rio e o fas-cínio pela sua história que meu pai me ensinou. Devo também agra-decer ao precioso acervo de títulos sobre a cidade que ele me deixou, elemento essencial para o ponto de partida. Jamais haverá um japonês tão carioca e apaixonado como ele, Nobuo Oguri, que faleceu em 2014, mas cuja memória e legado são eternos. Obrigada, pai. E mais, como meu velho Oguri conhecia Ricardo e eles tinham uma relação de extre-ma simpatia, essa relação foi inspiradora para que eu me envolvesse neste delicioso trabalho.

    Raquel Oguri

    Ricardo Amaral e Raquel Oguri agradecem a toda a equipe que tra-balhou meses a fio para dar vida a este A cara do Rio, à equipe da Biblio-teca Nacional, ao sebo Berinjela, à Casa Ramos Pinto, à Fundação Casa de Rui Barbosa, ao Itaú Cultural, à empresa Tempo Composto, à família da Tia Ciata, a Angela e Gisela Porto, a Fernando Barrozo do Amaral, a Flavia Cox, a Haroldo Carneiro da Silva, a Haroldo Costa, a Marcelo Guedes, a Martha Ribas, a Maurilia Castello Branco, a Michael Koell-reuter, a Milton Teixeira, a Olavo Egydio Monteiro de Carvalho, a Ra-chel Valença, a Roberto Dieckman, a Rodrigo Ferrari e a Ruy Castro. To-dos companheiros fundamentais neste passeio pelos bastidores da mui leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

  • A CARA DO RIO14

    PREFÁCIO

    É bom lembrar às patrulhas de qualquer espécie que este não é um livro com pretensões acadêmicas. Como cada vez mais nosso humor empobrece e somos dominados pelo politicamente correto, há que se deixar isso claro.

    Aliás, em matéria de doutorado e falando de academia, os cariocas têm duas vertentes no sangue. Uma encontrada no mais carioca dos compositores, Miguel Gustavo, que, na canção intitulada “Café Soçai-te”, diz: “Doutor em anedotas e em champanhota, estou acontecendo no Café Soçaite (…).” Já academia é algo muito familiar para os habitantes da cidade, que frequentam com a mesma desenvoltura as academias de ginástica e a Academia da Cachaça.

    Escrevemos, acima de tudo, porque amamos nos deliciar com as histórias do Rio. Principalmente com suas entrelinhas e peculiaridades. Bastidores, então, melhor ainda!

    Como bons cariocas que somos, não vemos sentido em rir sozinhos. Redescobrir anedotas sobre a nossa cidade não teria a menor graça se não pudéssemos compartilhar esses saborosos momentos.

    Estamos falando de pequenas grandes histórias perdidas em lu-gares como livros não mais editados, revistas cobertas de poeira e ar-tigos científicos desafiadores. Afinal, foram horas intermináveis nos

  • PREFÁCIO 15

    debatendo com temas e termos como “o texto como objeto de significa-ção”, “teoria semiótica francesa” ou “paideia humanista moderna”.

    Tudo isso para dizer que o trabalho por trás da nossa (re)contação de história, embora divertido, é fruto de uma pesquisa insana (com di-reito a deliciosas horas no inestimável sebo Berinjela) em busca de in-formação histórica quente!

    Esperamos que o calor que colocamos em cada palavra tenha como efeito colateral acender dentro do leitor o afeto pela memória da cidade, criando para ela uma cara. Que aumente seu interesse em busca da sua história. Que atice sua vontade de descobrir a origem do nome da sua rua, que abra seus olhos para as maravilhas do Centro do Rio, que o encoraje a percorrer as ruas e livrarias da cidade. E que o efeito atinja também os moradores de qualquer cidade ou povoado. Ou, quem sabe, o faça buscar a simples história falada, através de seus pais, avós, bisavós… Guardiões de baús contendo tesouros, como fotos e postais de suas origens.

    A verdade é que nosso modelo é livre, bem carioca. Ao terminar, percebemos o quanto é eclética essa nossa seleção de historinhas. Quem sabe mesmo estapafúrdia. É uma colagem despretensiosa de fatos bus-cando encontrar uma cara para o Rio. Um verdadeiro vaudeville onde nos permitimos estabelecer uma enorme intimidade com os persona-gens, pessoas notáveis que contribuíram para o carioquismo – o maior patrimônio da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. O que importa é que o livro estimule sua memória afetiva e sirva ao menos para lhe ar-rancar algumas risadas!

    Ricardo Amaral e Raquel Oguri

    Em tempo! Como eu vivi intensamente os bastidores da cidade nos últi-mos cinquenta e tantos anos, assumo a narração na primeira pessoa em alguns momentos. A dose de pimenta é razoável e, provavelmente, vai aparecer batom na cueca!

    Ricardo Amaral

  • A CARA DO RIO32

    OS “BONS COMPANHEIROS” DE ESTÁCIO DE SÁ

    Os franceses só queriam roubar o pau-brasil. Mem de Sá bem que tentou expulsá-los, mas quebrou a cara!

    Seu sobrinho, Estácio de Sá, trouxe uma turma da pesada e conseguiu. Mas acabou morto por uma flecha perdida.

    A precursora das balas perdidas! Não fosse isso, cá estaríamos falando francês, o que não deixa de ser uma opção simpática!

    Quando pensamos nos desbravadores do Rio de Janeiro, tendemos a imaginar uma visão romântica de heróis lusos. Aventureiros certamen-te eles eram, pois passar meses dentro de um navio nas condições pre-cárias da época exigia alma de Indiana Jones.

    Boa parte dos mais de cem europeus companheiros de Estácio de Sá era um bando de degredados. Eram homens com problemas com a justiça em Portugal, uma turma formada na maior parte por bandidos lusos. E bandidos da pesada! Afinal de contas, o comandante do navio não precisava de homens elegantes e muito menos de títulos de nobre-za, mas sim de espírito guerreiro. A tarefa de Estácio de Sá e sua trupe, que era expulsar os franceses da baía, em 1565, não seria nada mole, ele sabia disso…

  • NASCIMENTO E INFÂNCIA DO RIO 33

    Lembremos que seu tio, Mem de Sá, já havia tentado antes, em 1560, acabar com a “praga” dos franceses que não largavam o osso – ou melhor, o Rio! Tio Sá não conseguiu exterminar por completo o que chamamos hoje de roubalheira generalizada por parte dos franceses, que a Coroa portuguesa denominava “ladroeira barra afora”. A colônia francesa continuava contrabandeando a torto e a direito o pau-brasil para a Europa. E, claro, o tesouro precisava urgentemente mudar de mãos. Tarefa essa que, posteriormente, o bravo sobrinho Estácio de Sá e seus bons companheiros conseguiram executar. Podemos assim dizer que, graças a ele ou, se preferirem, por causa dele, o Rio não foi colonizado pelos franceses.

    Finalizemos agora com a épica morte do grande aventureiro luso Estácio de Sá, que levou uma flechada perdida ali onde hoje é o outeiro da Glória e bateu as botas. Flecha envenenada, esse era o meio de defesa eficiente dos índios.

    O curioso na trajetória do Rio de Janeiro, que se confunde com a do Brasil, é que muito mais tarde, com a vinda da família real, ficou cada vez mais acentuada a queda pela França. Até o começo dos anos 1940, a influência francesa foi marcante! Os galicismos sempre imperaram, até os puteiros foram batizados de “rendez-vous”!

    ÍNDIO “SABER” TUDO!

    Muitos chegavam a 120 anos. É mole?

    Vale fazer justiça com os antepassados indígenas e lembrar que, apesar da imagem de selvagens e brucutus que tinham, eram dotados de uma inteligência muito peculiar e uma sabedoria fora do comum.

    No quesito saúde, por exemplo. Se hoje lutamos a todo custo contra o envelhecimento e tanto investimos na busca pela dieta perfeita, tal-vez devêssemos perder mais tempo estudando nossas raízes indígenas,

  • A CARA DO RIO34

    pois nisso certamente eles eram superiores. Não à toa, o francês Jean de Léry, em visita ao Brasil em 1578, registrou em seu diário o espanto diante da boa saúde e da longevidade dos tupis:

    (…) os selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados Tupinam-bás, (…) não são maiores nem mais gordos do que os europeus; são po-rém mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem-dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar a idade pela lunação), poucos são os que na velhi-ce têm os cabelos brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o bom clima da terra (…), mas ainda que pouco se preocupam com as coisas deste mundo. E de fato nem bebem eles nessas fontes lamacentas e pes-tilenciais que nos corroem os ossos, debilitam a medula, enfraquecem o corpo e consomem o espírito, essas fontes em suma que nas cidades nos envenenam e matam e que são: a desconfiança, a avareza, os processos e intrigas, a inveja e a ambição. Nenhuma dessas coisas os inquieta e me-nos ainda os apaixona e domina (…), parece que haurem todos eles na fonte da juventude.

    Pena que o homem de hoje não seja sensível como Jean de Léry. Passaram-se mais de quatrocentos anos e, ao que parece, continuamos sem interesse no que os índios têm a dizer ou ensinar.

    Mas uma coisa aprendemos muito bem. Os europeus tinham horror a banho. Havia mesmo a crença de que as doenças vinham através da pele e não se devia tomar banho constantemente. Culti-var uma crosta na pele era normal. Já os índios se banhavam inúme-ras vezes ao dia. Além disso, se depilavam com escama de pirarucu. O que hoje virou normal eles já praticavam lá atrás! As índias, bem fogosas e de uma liberalidade total, é que tinham dificuldades de en-carar um portuga!

  • NASCIMENTO E INFÂNCIA DO RIO 35

    SOBRE PADRES E CABRAS-MACHOS

    Padre Anchieta foi um barato! Administrar a cultura de poder ter várias mulheres e inibir as índias não foi mole!

    Criou o teatro anchietano alegórico, precursor do catolicismo carnavalizado! Ele foi um dos primeiros a dar uma cara ao Rio.

    Imagine um padre jesuíta nascido no século XVI entrando na máquina do tempo para se reunir com alguns padres de hoje? Seria no mínimo curioso pensar na sua reação ao ver como está essa nova geração de pa-dres-celebridade que mais parecem galãs de novela, devidamente sara-dos e vaidosos. Lembremos que, na época do “era uma vez”, nem sequer existia a preocupação de culto ao corpo. Para um padre viver da fé nas belas e virgens terras, abarrotada de selvagens, imprescindível era ter espírito de aventura. Espelho para se cultuar a própria imagem, isso, claro, já existia. Mas os desafios eram tantos que os padres tinham mui-to mais o que fazer. Além do que, os espelhos tinham melhor serventia como armas poderosas na negociação com os índios.

    No que diz respeito ao histórico da religião católica, reconhecer que houve uma catequização imposta goela abaixo dos índios é algo indiscutível e não se pode voltar atrás. Mas, por outro lado, há que se exaltar o valor de um jesuíta fora do comum, o padre Anchieta. Vamos falar aqui não do santo, pois ele já foi inclusive canonizado pelo papa Francisco, em 2014. O que vale são as aventuras desse homem para lá de bem preparado.

    Padre Anchieta nasceu em 1534, nas Ilhas Canárias. Frequentou a Universidade de Coimbra, onde estudou latim, dialética e filosofia. Aos 17 anos, entrou para a Companhia de Jesus, na época recém-fundada pelo padre Inácio de Loyola.

    Tanto atuou firmemente na expulsão dos franceses, que dominaram o Rio desde 1555, como participou ativamente da fundação da cidade de São Paulo. Mesmo tendo se tornado refém dos tamoios aos 21 anos, aca-bou por dar proteção aos índios. Após seu incansável trabalho na cidade

  • A CARA DO RIO36

    paulista, fundou com o padre Manuel da Nóbrega, em 1567, o Colégio do Rio, do qual foi reitor por três anos. Depois, seguiu para São Vicente em mais uma missão e lá se dedicou à catequese dos índios tapuias.

    E é justamente a catequização dos indígenas a parte mais árdua de sua missão. Apenas a título de refrescar a memória do leitor, vale lem-brar que, nas sociedades tribais, tanto os índios podiam ter várias mu-lheres, como, de forma igualitária, as índias podiam ter vários homens. Vivia-se, pode-se dizer, em uma cultura avançada no que se referia aos direitos sexuais das mulheres.

    As palavras do querido padre Anchieta, registradas nas cartas que enviava ao padre Inácio de Loyola, nos dão uma ideia da dimensão dos conflitos com que precisava lidar e quão persistente e predestinado esse homem devia ser:

    (…) as mulheres andam nuas e não se sabem negar a ninguém, antes elas mesmas acometem e importunam aos homens, lançando-se com eles nas redes, porque têm honra dormir com os cristãos.

    E, como se não bastasse, para os índios ser parente não era impedi-mento algum para, digamos, dar uma trepadinha. Como observa padre Anchieta:

    Juntam-se a isto os matrimônios contraídos com os mesmos consanguí-neos até primos direitos, de maneira que, se queremos receber algum para o batismo, por causa do laço de sangue é dificílimo encontrar-se mulher com o qual possa casar. O que é para nós não pequeno impedi-mento, pois não podemos admitir ninguém à recepção do batismo con-servando a concubina.

    E, para piorar a situação do querido jesuíta, muitos portugueses que chegavam ao Brasil se “convertiam” à cultura local. Era comum que lusitanos, casados em Portugal, quando aportavam em nossas calien-tes terras tropicais, se amancebassem com as índias. Alguns, inclusive, abandonavam por completo a cultura portuguesa e tornavam-se índios.

  • NASCIMENTO E INFÂNCIA DO RIO 37

    O que, cá entre nós, era uma opção maravilhosa: vir ao paraíso e viver com uma depiladinha.

    Mas mesmo diante de tal cenário, sob o ponto de vista da Igreja aterrorizante, o padre exemplar jamais se deu por vencido. Valendo-se de toda a sua cultura e facilidade no domínio de línguas, inventou uma eficiente forma de conversão: os autos teatrais jesuíticos. O que signifi-ca dizer que foi o precursor da dramaturgia no nosso país.

    Padre Anchieta usava de forma criativa o medo cósmico, inerente à cultura indígena, nas suas representações. Com isso, conseguia infundir de forma lúdica no índio as noções cristãs de morte e de vida eterna. A encenação teatral era assim o veículo perfeito para tornar “real” a ideia de um reino de anjos e demônios, banhados por um Cristo poderoso ca-paz de ressuscitar individualmente cada um. E um Tupã que destruía em dimensões cósmicas.

    Muitos especialistas em dramaturgia chamam o teatro anchietano de alegórico, precursor do chamado catolicismo carnavalizado. Seus au-tos eram carregados de simbolismo cristão, como o fogo, a cruz, o san-gue derramado. Tudo em nome do Pai. O elenco, diga-se de passagem, muitas vezes era formado por índios.

    Podemos nos arriscar a dizer que, se estivesse vivo hoje, padre An-chieta precisaria de apenas mais um elemento para ter sucesso em seus enredos divinos: a força de uma bateria nota 10. E certamente tendo à frente uma boa madrinha! Embora tenha se dividido entre Rio e São Paulo, é importante registrar que Anchieta, com essa iniciativa precur-sora, foi meio que o fundador do carioquismo.

    ESSE ERA MACHO! HANS STADEN ERA “O CARA”!

    Se hoje basta o homem cultuar uma barba, malhar num confortável salão com ar-condicionado e colocar uma camisa xadrez para parecer viril, com ares de lenhador ou, como dizem os modernos, um lumbersexual, antiga-mente era preciso ter bem mais testosterona para enfrentar o mundo.

    Que o diga Hans Staden, esse homem do qual pouco se fala, mas que merece ser lembrado (na verdade só é conhecido porque dá

  • A CARA DO RIO38

    nome a uma simpática rua em Botafogo). Principalmente por ser um dos melhores representantes do verdadeiro homem coragem.

    É bem verdade que se tratava de um alemão, que para os brasileiros significa dureza e frieza. Mas sua história e sua aventura nos mostram que a macheza não se media pelo volume do bíceps nem pela barba, mas sim pela armadura invisível que era preciso desenvolver para sobre-viver. Os relatos que deixou também nos dão uma boa noção de como eram bravos e temíveis muitos dos índios que habitavam estas terras. Não se trata aqui de colocar os índios como vilões, muito pelo contrá-rio. Afinal, é sabido que precisavam se defender dos cruéis forasteiros. E para isso tinham que lutar com unhas e dentes. Principalmente dentes, pois comiam, inclusive, seus inimigos abatidos.

    O ano era 1549, quando o barco em que Hans Staden viajava naufra-gou nas águas da terra brasilis. E assim começou sua triste aventura jun-to ao que ele chamava de selvagens. Para se ter uma ideia do ambiente hostil, ao ser levado pelos índios, Hans Staden era obrigado a anunciar aos gritos: “Aju ne xepeeremiurama.” Traduzindo: “Eu, a sua comida, es-tou chegando.”

    Os relatos dele são inacreditáveis. Talvez nem o cineasta Quentin Ta-rantino com toda sua criatividade conseguisse chegar a tamanho requin-te de crueldade para criar um roteiro tão impactante. Dizer que o alemão sofreu o pão que o diabo amassou nas mãos dos índios seria pouco.

    Comecemos então por uma passagem leve. Mais especificamen-te, quando Hans Staden, ainda refém, foi chamado pelo chefe Cara-ma-cui na sua cabana. O índio queria desabafar, andava muito preo-cupado. Contou ao seu prisioneiro alemão que havia algum tempo, numa expedição de guerra, havia aprisionado um português, que ma-tou com as próprias mãos. Até aí, nada além do normal. O problema do índio era com o fato de ter comido carne demais. Para quem não entendeu, ele se referia a carne humana! Do prisioneiro português! O chefão indígena reclamou que ainda sentia seu peito doente por conta disso. No mínimo um apavorante desabafo, considerando que estava conversando sobre canibalismo justamente com uma das pró-ximas vítimas a ser por ele digerida.

  • NASCIMENTO E INFÂNCIA DO RIO 39

    Mas Hans Staden, mesmo na posição de futuro frango de padaria, conseguiu ter serenidade suficiente para consolá-lo. E ainda, com mui-ta coragem (e de certa forma ironicamente), ousou receitar que o chefe fizesse jejum de carne humana.

    Mas, que fique claro, apesar de toda a violência, não é nossa intenção tiranizar os índios. Como eles dizem no seu próprio ritual de banquete (cujo prato principal é o inimigo), ao segurar o porrete o índio-golpea-dor repete sempre a mesma fala, que por si só explica bem o ponto de vista da tribo: “Aqui estou eu, vou matar você, pois os seus companhei-ros mataram e devoraram muitos amigos meus.”

    E, para quem gosta de detalhes sórdidos, deixemos aqui “os melho-res momentos” do ritual. Aviso aos curiosos: os trechos a seguir podem causar náuseas.

    Após a fala acima, é a vez de o prisioneiro responder: “Se morro, também tenho muitos amigos que vão me vingar.” Em seguida é golpea-do por trás na cabeça, nas palavras de Hans Staden: “fazendo os miolos soltarem pra fora.” E continua o detalhamento do bizarro ritual:

    Imediatamente as mulheres pegam o corpo, arrastam-no para o fogo e raspam sua pele. Fazem-no ficar completamente branco, tapando-lhe o traseiro com um pedaço de madeira para que não saia nada. Quando a pele está retirada, um homem pega o morto e corta as pernas acima do joelho e os braços junto ao corpo, então vem quatro mulheres, apanham essas quatro partes e correm com elas em volta da cabana sob grandes gritos de alegria. Em seguida, os homens separam as costas com o tra-seiro da parte frontal e repartem a carne entre si. Mas são as mulheres que levam as vísceras, das quais, depois de cozidas, fazem uma papa de-nominada mingau, que elas e as crianças bebem.

    Apesar da crueza dos relatos de Hans Staden, é curioso que Monteiro Lobato, nosso maior mestre da literatura infantil, indicas-se que a obra devia ser lida nas escolas, pois dizia que nenhuma outra seria capaz de dar aos meninos a sensação da terra que foi o Brasil em seus primórdios.

  • A CARA DO RIO40

    (Neste capítulo foram retirados trechos do grande livro de Hans Staden, cujas proporções caracterizam inclusive o título, que aliás mais parece nome de enredo de escola de samba: A verdadeira história dos selvagens nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no novo mun-do, a América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os últimos dois anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em Hessen, os conheceu, e agora os traz ao conheci-mento do público por meio da impressão deste livro.)

    Mas e aí, que fim levou o alemão?Após muitos infortúnios e muita, mas muita reza (que chegava até a irri-tar os índios) foi que Hans Staden, com seus algozes em um barco próxi-mo a Niterói, se encheu de esperança quando soube da chegada de uma embarcação de franceses.

    Um pequeno parêntese: isso tudo ocorreu em 1554, onze anos an-tes da fundação do Rio e um ano antes da criação da França Antártica. Estácio de Sá iria lutar bravamente contra os franceses e fundar a cida-de de São Sebastião do Rio de Janeiro só em 1565.

    Voltando ao prisioneiro alemão, depois de alguma negociação, os franceses com muita lábia convenceram os índios a libertarem Hans Staden em troca, obviamente, de preciosos presentinhos como facas, machados e pentes. E, claro, a indispensável moeda: o desejado e valio-so espelho.

    ÁGUAS MÁGICAS

    As águas do tesão! Ayres Saldanha peitou a Coroa e criou o aqueduto!

    Um dos maiores atrativos desta terra é sem dúvida a beleza de suas águas. Bem tão abundante e precioso, mas do qual infelizmente não cuidamos. Os antecessores primordiais, os índios, tinham uma relação

  • NASCIMENTO E INFÂNCIA DO RIO 41

    quase mitológica com alguns rios. A fascinação deles era especifica-mente pelo rio Carioca (esse hoje tão tristemente esquecido rio), que segundo a lenda indígena dava “boas vozes aos cantores e mimoso ca-rão às damas”. E se um colonizador português ou qualquer outro fo-rasteiro ousasse entrar naquela água, seria imediatamente fisgado por uma seta envenenada.

    Propriedades mágicas? A lenda é forte! A virilidade, o testo dos in-dígenas locais favoreciam a crença. O comportamento dos portugueses por aqui confirmava!

    Provavelmente não só por suas propriedades mágicas, mas dada a importância de se distribuir boa água para a população, desde o primei-ro governo de Martim Correia de Sá já se cogitava a adução das águas do rio Carioca. Como sempre, o maior entrave foi o histórico e complica-do emaranhado das obras públicas. Governo vai, governo vem, e nada acontecia. Mas eis que o Rio ganha um notável governador, Ayres Salda-nha, que chama para si o problema.

    Mesmo contra as ordens do rei D. João V, que ainda não estava convencido sobre a prioridade que devia ser dada à construção dos Arcos da Carioca, o corajoso governador peitou “Sua Majestade”. Sem dizer nada ao rei, em 1719 reiniciou as obras, que vinham se arrastan-do havia mais de trinta anos, e apenas oito meses e meio depois lhe informou. Inteligentemente, o governador argumentou com D. João que havia retomado a obra para não perder todo o material já inves-tido ali. Pediu então que o rei enviasse de Portugal alguns chafarizes, pois em breve haveria abundante quantidade de água na cidade. Não foi atendido de imediato, mas continuou incessantemente com sua meta. Algum tempo depois, Ayres Saldanha escreveu ao rei informan-do que havia usado canos de pau como chafarizes e feito dezessete bi-cas junto à ladeira do Convento de Santo Antônio. Em suas palavras,

    “com grande comodidade e conveniência deste povo, em cujos terre-nos ficam sendo desnecessários os chafarizes, que se pediram”. Gra-ças à persistência do governador foram concluídos o aqueduto, com 6.600 metros de extensão, os Arcos, em dupla arcada com 270 metros de comprimento, e o chafariz da Carioca.