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Ubiratan D’Ambrosio 1 Institucionalização da pesquisa e sua inserção social: da antiguidade aos dias de hoje * Ubiratan D’Ambrosio [email protected] Mikhail Leonidovich Gromov (nascimento 23/12/1943) é Professor do Institute des Hautes Études Scientifiques de Bûres-sur-Yvette, França e em 2009 recebeu o Prêmio Abel (equivalente a um Prêmio Nobel em Matemática) por “suas contribuições revolucionárias à geometria”. Em entrevista, Gromov diz: "A Terra vai ficar sem os recursos básicos, e não podemos prever o que vai acontecer depois disso. Vamos ficar sem água, ar, solo, metais raros, para não falar do petróleo. Tudo vai, essencialmente, chegar ao fim dentro de cinquenta anos. O que vai acontecer depois disso? Estou com medo. Tudo pode ir bem se encontrarmos soluções, mas se não, então tudo pode chegar muito rapidamente ao fim!” 1 Esta é uma preocupação real, sentida por todos nós. O pessimismo de Gromov não é uma afirmação leviana, jargão próprio de catastrofistas, nem uma visão apocalíptica, de cunho religioso. Vindo de uma pessoa seu status acadêmico, merece atenção. A pergunta que naturalmente segue é “O que podemos fazer?” O próprio Gromov comenta, nessa entrevista: “Estando em nossa torre de marfim, o que podemos dizer? Estamos nesta torre de marfim, e nos sentimos confortáveis nela. Mas, realmente, não podemos dizer muito porque não vemos bem o mundo. Temos que sair , mas isto não é tão fácil” * Palestra em Scientiarum Historia III realizada no CCMN/UFRJ Centro de Ciências da Matemática e da Natureza da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 13 e 15 de outubro de 2010 1 Interview of Mikhail Gromov given to M. Raussen and C. Skau. Notices of the AMS, v.57, nº 3, March 2010, pp.391-409.

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Institucionalização da pesquisa e sua inserção social: da antiguidade aos dias de hoje*

Ubiratan D’Ambrosio

[email protected] Mikhail Leonidovich Gromov (nascimento 23/12/1943) é Professor do Institute des Hautes Études Scientifiques de Bûres-sur-Yvette, França e em 2009 recebeu o Prêmio Abel (equivalente a um Prêmio Nobel em Matemática) por “suas contribuições revolucionárias à geometria”. Em entrevista, Gromov diz:

"A Terra vai ficar sem os recursos básicos, e não podemos prever o que vai acontecer depois disso. Vamos ficar sem água, ar, solo, metais raros, para não falar do petróleo. Tudo vai, essencialmente, chegar ao fim dentro de cinquenta anos. O que vai acontecer depois disso? Estou com medo. Tudo pode ir bem se encontrarmos soluções, mas se não, então tudo pode chegar muito rapidamente ao fim!”1

Esta é uma preocupação real, sentida por todos nós. O pessimismo de Gromov não é uma afirmação leviana, jargão próprio de catastrofistas, nem uma visão apocalíptica, de cunho religioso. Vindo de uma pessoa seu status acadêmico, merece atenção. A pergunta que naturalmente segue é “O que podemos fazer?” O próprio Gromov comenta, nessa entrevista:

“Estando em nossa torre de marfim, o que podemos dizer? Estamos nesta torre de marfim, e nos sentimos confortáveis nela. Mas, realmente, não podemos dizer muito porque não vemos bem o mundo. Temos que sair, mas isto não é tão fácil”

*Palestra em Scientiarum Historia III realizada no CCMN/UFRJ Centro de Ciências da Matemática e da Natureza da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 13 e 15 de outubro de 2010 1 Interview of Mikhail Gromov given to M. Raussen and C. Skau. Notices of the AMS, v.57, nº 3, March 2010, pp.391-409.

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Há muito tempo tenho utilizado uma metáfora, que chamo de “gaiolas epistemológicas”, equivalente à metáfora das torres de marfim, para definir conhecimento tradicional.

A METÁFORA DAS GAIOLAS EPISTEMOLÓGICAS. As disciplinas são como conhecimento “engaiolado” na sua fundamentação, nos seus critérios de verdade e de rigor, nos seus métodos específicos para lidar com questões bem definidas e com um código linguístico próprio, inacessível aos não iniciados. Os detentores desse conhecimento são como pássaros vivendo em uma gaiola: alimentam-se do que lá encontram, voam só no espaço da gaiola, comunicam-se numa linguagem só conhecida por eles, procriam e repetem-se, só vendo e sentindo o que as grades permitem, como é comum no mundo acadêmico. O que é mais grave, são mantidos pelos que possuem as gaiolas para seu entretenimento, como é o caso das artes, ou para seu benefício, como é o caso das ciências e da tecnologia. Obviamente, a crítica interna é limitada e exclui o questionamento da própria existência da gaiola. A crise provocada por Kurt Gödel (1906-1978) é ilustrativa dessa metáfora. Em 1931, ele mostrou que não há qualquer método de prova formal que possa demonstrar todas as verdades da matemática, nem mesmo a teoria dos números naturais.2 O trabalho de Gödel causou enorme desconforto e incertezas entre os matemáticos que tinham sensibilidade para as questões de fundamentos. Certamente pela sua dificuldade, e para conveniência dos guardiões das gaiolas, o trabalho foi ignorado pela maioria dos matemáticos, que continuam tranquilos na sua gaiola, beneficiando-se do suporte dos guardiões da gaiola e baseando seu fazer matemático nos critérios de rigor vigentes. O conceito de verdade matemática e a sua inegável beleza serviram e continuam servindo de argamassa para fazer subir o edifício da pesquisa

2 Kurt Gödel: “Über formal unentscheidbase Sätze der Principia Mathematica und verwandter Susteme I”, Monatshefte für Mathematik und Physik, vol.38 (1931), pp.173-198. O trabalho é muito técnico, difícil de ser entendido por não especialistas. Uma versão mais accessível encontra-se em Ernest Nagel and James R. Newman: Gödel’s Proof, New York University Press, New York, 1958.

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matemática ... mesmo que o alicerce tenha sido fragilizado. Essas observações também se aplicam às demais áreas do conhecimento. Num trabalho anterior discuto outros exemplos, inclusive sobre artes3. A capacidade de observação e interpretação é subordinada à práticas e metodologias bem definidas. Mas nem mesmo podem saber de que cor a gaiola é pintada por fora. Isso equivale ao que Gromov diz “não podemos dizer muito porque não vemos bem o mundo”, citado acima. A organização do conhecimento em disciplinas tem suas origens na antiguidade.4 Vai tomando os aspectos das disciplinas típicas de um departamento tradicional das universidades a partir do século XVI e só vai se articular com as características atuais no século XIX, particularmente quando se organiza a Universidade de Berlim. A necessidade de multidisciplinas já havia sido apontada por Fontenelle no século XVII e as interdisciplinas começam a ser identificadas no século XIX. Mas nada altera a metáfora. Pode-se identificar as multidisciplinas como uma justaposição de gaiolas disciplinares (como é praticada nas chamadas grades curriculares da educação) e as interdisciplinas são, metaforicamente, a passagem de uma gaiola para outra ... eventualmente criando um “viveiro”, na verdade uma gaiola maior.

TRANSDISCIPLINARIDADE, HISTÓRIA E FILOSOFIA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO. O sistema de conhecimento sobre o qual repousa a ciência moderna tem como suporte a matemática, que repousa sobre

• o determinismo newtoniano

• a lógica clássica

• os sistemas formais.

3 Ubiratan D’Ambrosio Teoria da Relatividade, o Princípio da Incerteza, O Expressionismo, org. J.Guinsburg, Editora Perpectiva, São Paulo, 2002; pp.103-120. 4 Ver o livro recente de G. E. R. Lloyd, Disciplines in the Making. Cross-cultural Perspectives on Elites, Learning and Innovation, Oxford: Oxford University Press, 2009.

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O tripé tem se mostrado insuficiente. De fato, fenômenos complexos, alguns não reconhecidos e nem mesmo notados previamente, não podem ser explicados pela ciência moderna, revelando, assim, a insuficiência do tripé. A ciência moderna não tem conseguido explicar a natureza e o comportamento humano em toda sua complexidade. Sistemas complexos têm vários elementos internos, todos interagindo localmente e consumindo energia para manter sua estabilidade. Os fenômenos podem apresentar comportamentos ordenados ou caóticos, alguns redutíveis, outros não, alguns previsíveis, outros não. Muitos revelam não-linearidade, holismo, incerteza, probabilidade. Faz-se necessário re-conceituar precisão, rigor, exatidão, em vista do reconhecimento de outros níveis de realidade, de fuzziness e de fractais, de uma lógica do terceiro incluído, e de técnicas de aproximação e de avaliação de possibilidades. Ao entrar na era de megas, gigas, taras … e nanos, a cultura material que possibilitou experimentos, suporte do conhecimento científico da modernidade, tornam-se insuficientes, quando não inoperantes. A incontrolável mobilidade de pessoas, idéias e conciliábulos fazem com que estados soberanos devam reconceituar prioridades e políticas públicas. A postura transdisciplinar de conhecimento aparece como uma forte possibilidade de lidar com todas essas mudanças que ocorrem a partir de meados do século XX. Um caminho para a transdiciplinaridade é encarar o conhecimento com uma postura mais ampla do que é possível estando nas gaiolas epistemológicas e nas torres de marfim.5 Os três temas maiores propostos por Gromov são:

• nesta torre de marfim

• temos que sair

• o que vai acontecer? Efetivamente, com esses três temas Gromov nos leva a refletir sobre o passado (as torres de marfim são construídas ao longo de uma história), sobre o presente, na forma de uma ação, e sobre o futuro.

5 Ubiratan D’Ambrosio: Transdisciplinaridade (2ª edição) Palas Athena, São Paulo, 2009.

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Padre Antonio Vieira, no seu monumental História do Futuro, diz:

“Nenhuma coisa se pode prometer à natureza humana mais conforme a seu maior apetite, nem mais superior a toda sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros.... O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo tempo ou o seu saber ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.”

Padre Antônio Vieira (1608-1697), História do Futuro.

O encadeamento PASSADO � PRESENTE � FUTURO caracteriza uma visão de história. Do PASSADO tentamos entender e explicar o que aconteceu, recorrendo à leitura de tudo que nos é accessível: fósseis, ruínas e monumentos; artefatos, decorações e danças; códigos; escritos, acadêmicos ou não, inclusive ficcionais; mitos e narrativas orais; e vestígios em geral, recorrendo à hermenêutica e à semiótica, inevitavelmente dando espaço à imaginação e à fantasia. No PRESENTE está a ação, cujos objetivos maiores são

• a procura de soluções para situações e problemas oriundos das necessidades ( ≈ sobrevivência) e da vontade (≈ transcendência) dos agentes; e

• a procura de entender e resolver os conflitos entre os agentes.

O FUTURO inclui e procura antecipar o complexo de fatos e fenômenos naturais, no qual se insere o homem. Cria-se um cenário de futuro no qual os interesses e desejos, os ideais e a utopia dos agentes, são realizados ou rechaçados. A história não é neutra e tem sido eminentemente política. As ações no presente, visando objetivos no futuro, são apreendidas e “justificadas” no passado. Um excelente exemplo nos é dado pela fábula O Lobo e o Cordeiro, de La Fontaine. A História tem servido, das mais diversas maneiras, a grupos sociais, desde família, tribos e comunidades, até nações e civilizações. A História tem sido fator de afirmação de identidade e respaldo histórico às ações.

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O respaldo histórico das ciências é ancorado na institucionalização, que se identifica com a metáfora das torres de marfim ou das gaiolas epistemológicas. Desde a antiguidade mais remota até o mundo atual identificamos exemplos.6

SUMÉRIA e EA A Suméria, no Sul da Mesopotâmia, e os sucessivos impérios Acádio, Assírio e Babilônico estavam localizados onde é hoje o Iraque. Suméria, considerada o berço da civilização, floresceu no 6º milênio a.C.. Aos sumérios e aos acádios é atribuída a escrita cuneiforme, em tabletes de argila. Graças a esses tabletes sabemos das atividades científicas / matemáticas da Mesopotâmia, desde o início do 3º milênio a.C., principalmente focalizando aritmética, contabilidade e soluções de problemas. No final do 4º e início do 3º milênios, uma classe de sacerdotes burocratas registrava e gerenciava aspectos quantitativos de terreno, agricultura e pecuária e trabalho, não apenas registrando dados, mas, também, aventurando-se em previsão agrícola e pecuária. O instituto de sacerdotes/escribas era preparado conforme sistemas escolares e mesmo currículo de formação. Era reconhecida a inspiração divina nessa preparação. Em alguns tabletes há agradecimentos a Ea, deus da sabedoria, e a Nisaba, deusa dos escribas. Quem é Ea? Ea é a figura central no episódio do dilúvio sumério, registrado na Epopéia de Gilgamesh. Na Epopéia de Gilgamesh (3º milênio a.C.), lemos como Ea instruiu Utanapishtin para construir a nau que deveria flutuar e salvar a ele, sua família e serviçais e a um casal de cada espécie animal.

6 Ubiratan D’Ambrosio: From Ea, through Pythagoras, to Avatar: Different Setting for Mathematics, Mathematics in Different Settings, Pinto, M.M.F.& Kawasaki, T.F.(eds.) Proceedings of the 34th Conference of the International Group for the Psychology of Mathematics Education/PME (4 volumes), Belo Horizonte, MG, Brazil, 2010; vol.1 pp.1-20.

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A maneira como Ea deu as instruções a Utanapshtin recorria à linguagem matemática. Ea deu as dimensões específicas para que a nau fosse construída adequadamente para sua missão de salvamento da espécie humana. A mensagem deste episódio implica temer e reverenciar os deuses, que detém um poderoso instrumento (a matemática) e são capazes de destruir ou salvar. Matemática é, assim, vista como um atributo divino, um instrumento no processo de seleção daqueles que devem sobreviver, enquanto aqueles que não servem adequadamente aos deuses devem ser eliminados. Essa imagem de matemática como um atributo dos mais dotados, daqueles que se aproximam do infalível, prevaleceu. A observação de Paulo Freire, numa entrevista de 1997, é atual:

“na minha geração de brasileiros do Nordeste, quando se falava em matemática, nós estávamos falando algo sobre deuses” Paulo Freire 1997

ANTIGUIDADE GREGA. A Grécia é vista como fundadora (incubadora?) da civilização ocidental. A Matemática grega é hoje identificada com uma narrativa específica, denominada estilo euclidiano, e que chegou até nós. Este tipo de discurso matemático era comum a uma pequena e restrita elite intelectual, distante de qualquer aplicação prática e de assuntos cotidianos.7 Essa pequena e restrita elite reunia-se em ambientes isolados, fora da visibilidade pública, que identificamos como academias (heka+demos). Preocupavam-se com questões abstratas. O exercício intelectual justificava as especulações. Ex-nihilo? Certamente não. Seriam questões existenciais maiores – não diferente do que chamamos filosofia.

7 Raviel Netz. The Shaping of Deduction in Greek Mathematics. A Study in Cognitive History, Cambridge University Press, 1999.

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O que se passava fora dessas academias? Como o povo lidava com o dia-a-dia? Quem eram os responsáveis pela produção e forte organização econômica e política, pelas construções e monumentos, que foram responsáveis pela hegemonia grega no Mediterrâneo? Com certeza eles não utilizavam conhecimento no “estilo euclidiano”. Como era o povo grego? Certamente, os membros da elite intelectual que se reuniam em academias eram parte do povo, participavam da sociedade e tinham trabalhos e funções que permitiam seu sustento. Mas então pergunta-se sobre o que movia a elite intelectual a um comportamento distante do dia-a-dia? Os nomes que ocorrem como “fundadores” da filosofia e da matemática grega são Tales, de Mileto (ca 625-547 a.C.) e Pitágoras, de Samos (ca 570-500 a.C.). Pitágoras é representativo da natureza abstrata e espiritual da matemática teórica da Antiguidade Grega, embora seu nome seja associado a coisas eminentemente práticas. Há também teoremas com aplicações práticas associados ao nome Tales. A historiografia mais atual descarta Tales e Pitágoras como matemáticos no estilo euclidiano, embora nos escritos de filósofos posteriores haja referências a eles. É possível que essas referências tenham sido responsáveis pela recusa Cristã da matemática no estilo euclidiano. Por exemplo, no argumento de Arnobius, no século III, quando diz que a matemática, baseada em Tales, que atribuía a origem de todas as coisas a fogo e água, e em Pitágoras, que afirmava que os números governam o que existe e acontece nos céus, era incompatível com o Cristianismo. Santo Agostinho retoma argumentos semelhantes. Um exemplo interessante sobre o que se passava na Grécia é Arquitas, de Tarento (ca430 - ca350 a.C.), um pioneiro do estilo euclidiano e, provavelmente, o primeiro a dar importância a demonstrações formais e a aplicar a redução ao absurdo. Arquitas é o caso típico de um indivíduo que usava seu tempo livre para a aventura intelectual da matemática acadêmica, enquanto tinha vida social definida (político, religioso, administrador). As academias tinham, provavelmente, um caráter ritualístico, com acesso restrito. A frase “Não entra aqui quem não conhecer geometria” é indicador de uma forma de iniciação, típica das “sociedades secretas”. O resgate de Platão por

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Arquitas também revela o espírito de solidariedade própria de confrarias. Assim, a idéia da Torre de Marfim, mencionada por Gromov, está surgindo. Os mosteiros medievais, as universidades, as academias (Accademia dei Lincei, 1603, Royal Society, 1660, Académie des Sciences, 1666 e outras) deram continuidade ao ambiente isolado formado por uma elite intelectual. A Casa de Salomão (Nova Atlândida, 1627, de Francis Bacon) é interessante, mostrando um caso de “realimentação” dos sábios por conhecimentos de fora. As universidades, institutos de pesquisa, sociedades e academias de hoje têm normas e regulamentos estritos, código linguístico próprio e critérios próprios de validação e reconhecimento e, embora tenham se tornado acessíveis, mantém critérios e rituais de seleção, admissão e iniciação, subordinados a controle de credenciamento e editoração semelhantes ao nihil obstat. A imagem da Torre de Marfim prevalece, o isolamento é operacional nessa situação. No caso específico da matemática, é o próprio Gromov que revela preocupação. Em 1998, Mikhail Gromov indicou um perigoso desequilíbrio:

“nós matemáticos muitas vezes temos pouca idéia sobre o que está se passando em ciência e engenharia, enquanto os cientistas experimentais e engenheiros muitas vezes não se apercebem das oportunidades oferecidas pelo

progresso da matemática pura. �

� Este é um perigoso desequilíbrio e o equilíbrio pode ser restaurado trazendo mais ciências para a educação dos matemáticos e expondo os futuros cientistas

e engenheiros à matemática central. �

� Isto requer novos currículos e um grande esforço de parte dos matemáticos para trazer a uma audiência maior as técnicas e idéias matemáticas fundamentais (principalmente aquelas desenvolvidas nas últimas

décadas).�”8 Como atingir uma audiência maior? É necessário que aquilo que se produz na “Casa de Salomão” (Francis Bacon (1561-1626),

8 Mikhael L. Gromov: Possible Trends in Mathematics in the Coming Decades, Notices of the American Mathematical Society, August 1998, p. 847.

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Nova Atlântida, 1627) ou na “Ivory Tower” (Mikhail Gromov, entrevista de 2010) seja apropriado pelo povo e transite entre os não-iniciados, servindo e ao mesmo tempo recebendo estímulos. Deve-se aventurar extra-muros, sair da Castália de Hermann Hesse, onde o maior status intelectual era o do mestre no Glasperlenspiel.9 Para isso é necessário superar a misticidade do código lingüístico próprio. A narrativa científica especializada utilizando linguagem específica tem como protótipo a narrativa matemática, com uma linguagem convencionada. Um indicador dessa linguagem é a existência de vários dicionários matemáticos. É muito relevante notar que a obra maior Éléments de mathématiques, de Nicolas Bourbaki, tem como primeiro fascículo o Fascicule dês résultats, um elenco de termos e resultados básicos que são essenciais para a leitura da obra. A linguagem e a codificação são a quintessência da mística matemática. Utilizo mística na accepção de Houaiss: “conteúdo de uma idéia, causa, instituição etc., ou a atmosfera ou aura de perfeição, verdade, excelência incontestável que as cerca, despertando nas pessoas respeito, adesão apaixonada, devotamento, sectarismo etc.” A necessidade de se aventurar extra-muros foi sutilmente reconhecida por David Hilbert (1862-1943), na sua antológica conferência no Congresso Internacional de Matemáticos em Paris, 1900, na qual ele formulou 23 problemas abertos que dominariam, como de fato dominaram, a matemática do século XX.10 Na introdução da conferência, Hilbert diz:

“Uma teoria matemática não pode ser considerada completa enquanto não for possível torná-la tão clara a ponto de poder ser explicada ao primeiro homem que se encontre na rua.”

A questão da inacessibilidade aos não iniciados é o busilis da questão. Isso foi notado pelo laureado físico Silvanus Thompson, FRS (1851-1916), um dos pioneiros da radiologia. Em

9 Hermann Hesse. O Jogo das Contas de Vidro, Editora Record, Rio de Janeriro, 2003. 10 Ver uma versão abreviada, traduzida por Sergio R. Nobre, em David Hilbert. Problemas Matemáticos, Revista Brasileira de História da Matemática, v.3, nº 5, 2003, pp.5-12.

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um livro publicado em 1910, Calculus Made Easy.11 No Prefácio do livro, Thompson diz:

“Alguns artifícios de cálculo são muito fáceis. Outros são enormemente difíceis. Os tolos que escrevem os livros-texto de matemática avançada – e esses tolos são geralmente talentosos – raramente têm o trabalho de mostrar quão fáceis os cálculos fáceis são. Ao contrário, eles parecem querer dar a impressão de seu enorme talento mostrando isso da maneira mais difícil.”

O livro, obviamente, provocou grande controvérsia no ambiente matemático acadêmico da época.12

O CÓDIGO LINGUÍSTICO PRÓPRIO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO EXCLUDENTE. O código linguístico próprio, responsável pela inacessibilidade da matemática, é, paradoxalmente, associado aos avanços da matemática, sem preocupação com sua utilidade. Os vários redirecionamentos da matemática ao longo da história têm muito a ver com o enriquecimento da linguagem comum, como bem estudado por Ladislav Kvaz (2008). À guisa de uma definição, pode-se dizer que narrativa científica é o discurso caracterizado pela organização formal, procurando evitar redundâncias e metáforas e, naturalmente, fantasias. O protótipo de narrativa científica é a narrativa matemática, que é associada, e de certo modo responsável, ao progresso da matemática. Isso também ocorre com as demais ciências, em menor grau. A menção a metáforas e fantasias é de muita importância. As metáforas têm sido utilizadas na pesquisa matemática, porém

11 Silvanus P. Thompspn e Martin Gardner: Calculus Made Easy. New York: St. Martin’s Press, 1998. (que contém a obra original de S.P.Thompson, publicada em 1910, com pseudônimo do autor F.R.S.–Fellow of the Royal Society mais comentários de M. Gardner). 12 Gustavo Alexandre de Miranda: Silvanus Phillips Thompson e a Desmistificação do Cálculo: Resgatando uma História Esquecida, Dissertação de Mestrado, EM/PUC, São Paulo, 2004.

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raras vezes são mencionadas. A fantasia, elemento essencial na criatividade, é explicitamente reconhecida pelo consagrado matemático norueguês Sophus Lie (1842-1899), quando ele diz:

“Sem fantasia ninguém pode se tornar um matemático, e o que me garantiu um lugar entre os matemáticos dos nossos dias, apesar de minha falta de conhecimento e de forma (≈palavra), foi a audácia do meu pensamento.”13

A fantasia está presente na narrativa ficcional. A ficção é um estímulo para criar o novo e escapar da mesmice repetitiva que caracteriza muitas supostas inovações científicas. A demanda de energia intelectual e emocional na busca de aprimoramento e detalhes é uma característica do que poderíamos chamar o barroco da ciência moderna, que parece atingir sua exaustão. Como diz Richard van Oort,

“a ficção parece criar um mundo ex nihilo, isto é, ela parece desafiar as condições normais de referência que restringem os atos da fala convencional a um mundo empírico”14

A partir da modernidade as modalidades de narrativa são discriminadas. Particularmente a narrativa científica e a narrativa literária-artística, que inclui fantasia e ficção, ocupam universos distintos, como bem ilustrou C.P. Snow ao conceituar duas culturas.15 Sair da torre de marfim implica a superação do distanciamento entre as duas culturas. Como diz G.E.R.Lloyd 16, uma estratégia para superar o distanciamento é o reconhecimento da complexidade de explicações e da variedade de modos de explicação de diferentes estilos de questionamento que se contempla em

13 Arild Stubhaug. The Mathematician Sophus Lie, Springer-Verlag, New York, 2000. 14 Richard van Oort. The Anthropology of Speech-Act Literary Criticism: A Review Article, Anthropoetics I, no. 2 (December 1995). 15 C.P.Snow: As duas culturas e uma segunda leitura, EDUSP, São Paulo,1995 (orig.1959). 16 G.E.R. Lloyd. Cognitive variations: reflections on the unity & diversity of the human mind. Oxford: Clarendon Press, 2007

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grupos culturais distintos. O enfoque da Etnomatemática (Etnociências) realiza essa estratégia.17 Outra estratégia para levar a uma audiência maior os grandes avanços da ciência e ao mesmo tempo alertar para os grandes riscos que corremos é o recurso à ficção. Um exemplo é discutir, num curso de ciências, o filme Avatar (James Cameron, 2009). Acredito que o recurso à ficção seja a melhor forma de difusão e de crítica aos avanços da ciência e uma eficiente estratégia para que a institucionalização não seja excludente e para se estabelecer o diálogo benéfico para todos.

17 Ubiratan D’Ambrosio: A Historiographical Proposal for Non-western Mathematics. Mathematics Across Cultures. The History of Non-Western Mathematics, ed.Helaine Selin, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 2000; pp.79-92.