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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE MEDICINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE DA MULHER LUCIANA DE PAULA LIMA GAZZOLA MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS: reflexões médicas, jurídicas e bioéticas em busca da autonomia na gestação e na abordagem neonatal Belo Horizonte 2019

UCIANA DE AULA IMA AZZOLA...contribuição ao que hoje busco, defendo e acredito. Aos amigos, antigos e novos, pela rica convivência. Aos alunos, por carinhosa e despretensiosamente

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE MEDICINA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE DA MULHER

LUCIANA DE PAULA LIMA GAZZOLA

MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS:

reflexões médicas, jurídicas e bioéticas em busca da autonomia na gestação e na abordagem neonatal

Belo Horizonte 2019

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LUCIANA DE PAULA LIMA GAZZOLA

MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS:

reflexões médicas, jurídicas e bioéticas em busca da autonomia na gestação e na abordagem neonatal

Versão final

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde da Mulher da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Medicina.

Area de concentracao: Perinatologia

Linha de pesquisa: Malformacoes congenitas: aspectos geneticos, bioquimicos e emocionais.

Orientador: Professor Doutor Henrique Vitor Leite

Coorientador: Professor Doutor Glaucio Ferreira Maciel Goncalves

Belo Horizonte 2019

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Henrique Vitor Leite, baluarte no campo da Medicina Fetal, pela tão generosa oportunidade de integrar seu grupo de trabalho e por enriquecer minha carreira profissional com zelo e dedicação. Toda minha admiração!

Ao Professor Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves, por lançar luzes sobre os questionamentos que sempre apresentei, desde a graduação em Direito; pelo incentivo e amizade, pelas palavras serenas e tranquilizadoras da ansiedade.

Aos professores das Faculdades de Medicina e Direito da UFMG e aos membros do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, pela exemplar e determinante contribuição ao que hoje busco, defendo e acredito.

Aos amigos, antigos e novos, pela rica convivência.

Aos alunos, por carinhosa e despretensiosamente me estimularem a prosseguir aprendendo, para que eu me entenda capaz de ensinar.

A meus pais – meu maior esteio – e minha amada família, pelo mais profundo sentimento que não se pode expressar em palavras. Dedico especial atenção a meus avós, especialmente Francisco Guedes que muito se orgulharia dessa trajetória, e minha tia e madrinha, Ana Lúcia Gazzola, pela inspiradora vivência universitária.

Ao Fred, por ser meu mais terno torcedor.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para a realização do trabalho, que nunca é obra exclusiva de quem se declara autor.

Meu mais sincero muito obrigada.

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RESUMO

O diagnóstico seguro de malformações congênitas possibilitado pelo avanço

tecnológico da propedêutica fetal permite o exercício da autonomia reprodutiva da

gestante, embora suscite dilemas éticos e jurídicos de difícil solução, como a opção

pelo aborto e a tomada de decisões em neonatos com escassas possibilidades de

sobrevivência.

A partir da decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a antecipação

terapêutica do parto em casos de anencefalia, com principal fundamento na

incompatibilidade da anomalia fetal com a vida extrauterina, passou-se a questionar

a possibilidade de se estender o entendimento para outras malformações

congênitas. Faz-se fundamental, portanto, analisar as formas de diagnóstico

intrauterino das principais malformações fetais graves e incuráveis, a abordagem

obstétrica da gestante de feto malformado, bem como se é realmente possível

definir objetivamente a letalidade de uma anomalia fetal.

Por fim, realizou-se uma análise transdisciplinar, sob os prismas médico, jurídico e

bioético, do recém-nascido malformado, também sob o enfoque dos direitos das

pessoas com deficiência e do direito à morte digna. Foram estudadas, ainda, as

possibilidades de inserção, no direito brasileiro, das ações civis indenizatórias

relacionadas ao diagnóstico e ao aconselhamento genético, como as ações

provenientes do direito estrangeiro por “wrongful conception”, “wrongful birth” e

“wrongful life”.

A temática é atual e relevante por envolver aspectos referentes aos princípios da

autonomia e dignidade, que fundamentam o reconhecimento pleno de direitos

individuais a serem constitucionalmente garantidos.

Palavras-chave: anormalidades congênitas, aborto, autonomia pessoal, pessoas

com deficiência.

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ABSTRACT

The diagnostic certainty of congenital malformations, made possible by technological

advances in fetal propaedeutics, enables the exercise of reproductive autonomy by

the pregnant woman, although it results in ethical and legal dilemmas that are difficult

to solve, such as the option for abortion, and the decision-making regarding

newborns with meager survival possibility.

Starting with the Brazilian Supreme Court’s decision authorizing early therapeutic

delivery in cases of anencephaly, which was mainly based on the incompatibility of

this fetal anomaly with extrauterine life, we went on to interrogate the possibility of

extending this understanding to other congenital malformations. Therefore, it became

essential to analyze not only the types of intrauterine diagnosis of the main fetal

malformations that are severe and incurable, but also the obstetrical approach to the

woman who is pregnant with a malformed fetus, as well as the question regarding

whether it is really possible to objectively define how lethal a fetal anomaly is.

Finally, we performed a transdisciplinary analysis of the malformed newborn from the

medical, judicial, and bioethical standpoints, also under the focus of the rights

enjoyed by handicapped persons, and the right to dignified death. Furthermore, we

studied the possibility of inserting, in Brazilian law, compensation lawsuits related to

diagnosis and genetic counseling, like the lawsuits seen in foreign law for "wrongful

conception," "wrongful birth," and "wrongful life."

The topic is current and relevant, given that it involves aspects related to the

principles of autonomy and dignity, which are the bases for fully recognizing

individual rights that in the future might be constitutionally ensured.

Keywords: congenital abnormalities, abortion, personal autonomy, disabled persons.

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RESUMEN

El diagnóstico efectivo de malformaciones congénitas que resulta del avance

tecnológico de la propedéutica fetal posibilita el ejercicio de la autonomía

reproductiva de la mujer embarazada, aunque presente dilemas éticos y jurídicos de

solución difícil, como la opción por el aborto y la toma de decisiones en casos de

recién nacidos con baja posibilidad de sobrevivir.

A partir de la decisión del Supremo Tribunal Federal que ha autorizado la

anticipación terapéutica del parto en casos de anencefalía, con fundamento principal

en la incompatibilidad de la anomalía fetal con la vida extrauterina, se ha pasado a

cuestionar la posibilidad de extender esa comprensión para otras malformaciones

congénitas. Es fundamental, así, analizar las formas de diagnóstico intrauterino de

las principales malformaciones fetales graves e incurables, el abordaje obstétrico de

la mujer embarazada con feto malformado, e igualmente verificar como sería

objetivamente posible definir la letalidad de una anomalía fetal.

Finalmente, se ha realizado un análisis transdisciplinario del recién nacido

malformado, bajo los prismas médico, jurídico y bioético, y aún bajo el enfoque de

los derechos de las personas con discapacidad y del derecho a una muerte digna.

Han sido estudiadas, adicionalmente, las posibilidades de inserción, en el derecho

brasileño, de las acciones civiles de indemnizaciones referentes al diagnóstico y a la

orientación genética, como las acciones provenientes del derecho extranjero por

“wrongful conception”, “wrongful birth”, y “wrongful life”.

La temática es actual y relevante por involucrar aspectos referentes a los principios

de autonomía y dignidad, que fundamentan el reconocimiento pleno de derechos

individuales que deben ser constitucionalmente garantizados.

Palabras clave: anomalías congénitas, aborto, autonomia personal, personas con

discapacidad.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

AGU – Advocacia-Geral da União

ANADEP – Associação Nacional dos Defensores Públicos

CEMEFE-HC – Centro de Medicina Fetal do Hospital das Clínicas da Universidade

Federal de Minas Gerais

CFM – Conselho Federal de Medicina

CPB – Código Penal Brasileiro

CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil

IEG – Interrupção eugênica da gestação

ISG – Interrupção seletiva da gestação

ITG – Interrupção terapêutica da gestação

IVG – Interrupção voluntária da gestação

OMS – Organização Mundial de Saúde

PEC – Proposta de Emenda à Constituição

PL – Projeto de Lei

PGR – Procuradoria Geral da República

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

SUS – Sistema Único de Saúde

TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TJMG – Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

TJRJ – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

UTI – Unidade de Terapia Intensiva

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...............................................................................................

TÍTULO I: APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA ............................................

TÍTULO II: A ABORDAGEM MÉDICA DAS MALFORMAÇÕES

CONGÊNITAS FETAIS ..................................................................................

1 O diagnóstico pré-natal das malformações congênitas fetais: o feto

como paciente ..............................................................................................

1.1 Propedêutica fetal .....................................................................................

1.2 Anomalias do sistema nervoso central .....................................................

1.3 Malformações cardíacas ..........................................................................

1.4 Displasias ósseas .....................................................................................

1.5 Anomalias do sistema urinário .................................................................

1.6 Defeitos de parede abdominal ..................................................................

1.7 Doenças genéticas cromossômicas .........................................................

1.8 Infecções congênitas ................................................................................

2. As relações médico-paciente e materno-filial diante do diagnóstico

de uma anomalia fetal ..................................................................................

Título III: A ABORDAGEM JURÍDICA E BIOÉTICA DAS

MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS FETAIS ..................................................

1 Aborto seletivo, aborto eugênico ou antecipação terapêutica do

parto? ............................................................................................................

1.1 Considerações conceituais sobre o aborto e terminologia bioética ........

1.2 O aborto em anomalias fetais no direito estrangeiro ...............................

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1.3 Principais argumentos contrários à interrupção da gestação em

anomalias congênitas .....................................................................................

1.4 Principais argumentos favoráveis à interrupção da gestação em

anomalias congênitas .....................................................................................

1.5 A anencefalia, a Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental no 54 e o Supremo Tribunal Federal .........................................

1.6 Abordagem judicial de malformações congênitas ....................................

1.7 A infecção pelo vírus Zika, a Ação Direta de Inconstitucionalidade no

5.581 e o Supremo Tribunal Federal ..............................................................

2 Abordagem jurídica e bioética pós-natal: o recém-nascido com

malformações graves, os cuidados paliativos e os direitos das

pessoas com deficiência no Brasil .............................................................

2.1 Tomada de decisões e cuidados paliativos em Neonatologia nas

malformações congênitas graves ...................................................................

2.1.1 Ortotanásia e cuidados paliativos neonatais..........................................

2.1.2 Distanásia, obstinação terapêutica e autoridade parental .....................

2.2 Os direitos das pessoas com deficiência no Brasil ..................................

3 Propostas legislativas em pauta e a “derrotabilidade” das normas jurídicas .........................................................................................................

3.1 A interpretação das normas jurídicas e a ideia de defeasibility ................

3.2 Projetos de lei sobre aborto em malformações congênitas ......................

4 O instituto da responsabilidade civil na Medicina Fetal ........................

4.1 A responsabilidade civil médica e o diagnóstico de anomalias fetais ......

4.1.1 A teoria da perda de uma chance no âmbito da Medicina Fetal ...........

4.2 As ações civis indenizatórias e o aconselhamento genético ....................

4.2.1 Concepção indevida (wrongful conception) ...........................................

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4.2.2 Nascimento indevido (wrongful birth) ....................................................

4.2.3 Vida indevida (wrongful life) e o “direito de nao nascer” .......................

4.3 A responsabilidade civil da gestante por sua conduta .............................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................

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INTRODUÇÃO

A moderna Medicina Fetal tem condições de fornecer dados médicos

diagnósticos seguros acerca de malformações congênitas fetais graves e incuráveis,

a fim de subsidiar tratamento jurídico isonômico, sob os prismas judicial e sobretudo

legislativo, para que gestantes possam optar, no exercício de sua autonomia e de

seus legítimos direitos reprodutivos, pela interrupção da gravidez ou antecipação

terapêutica do parto.

A partir de tal hipótese central e do questionamento sobre se há possibilidade

de se ampliar o rol normativo de permissões de interrupção da gestação no Brasil,

sem que a conduta seja criminalmente tipificada como aborto, a problemática deste

trabalho foi desenvolvida. Uma das questões a ser debatida diz respeito à

possibilidade de se definir critérios objetivos de letalidade intrauterina nas mais

diversas anomalias congênitas fetais, já que, ao decidir a ação que pleiteava a

possibilidade de interrupção da gravidez de um feto anencéfalo, o Supremo Tribunal

Federal (STF) alçou, como forte e principal argumento condutor da linha decisória, a

inviabilidade da vida extrauterina nessa anomalia congênita.

Embora no Brasil a legislação quanto ao aborto seja restritiva, apenas se

permitindo a interrupção da gravidez em casos de estupro, anencefalia fetal e para

salvar a vida da mãe de um risco iminente de morte, é necessário fomentar o debate

sobre a possibilidade de se permitir a interrupção nas demais malformações

congênitas fetais graves, como já se admite em outros ordenamentos jurídicos

ocidentais. O Poder Judiciário brasileiro já vem enfrentando a questão há alguns

anos, carecendo de subsídios técnico-científicos e de compreensão sobre aspectos

médicos das doenças e fazendo com que a matéria seja tratada de forma casuística

no país, com evidente prejuízo à isonomia e à segurança jurídica.

A temática do aborto é, portanto, absolutamente relevante no âmbito deste

trabalho e constituiu o mote principal de sua elaboração. Embora se trate de matéria

de ampla e secular discussão, sua importância permanece incontestável e reside em

diversos aspectos: (i) na complexidade e transdisciplinaridade da matéria, agindo

como uma espécie de termômetro do multiculturalismo bioético; (ii) na ação como

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base de discussão e modelo de tomada de decisões em saúde pública, subsidiando

definição de papéis de gestores, profissionais da saúde, bioeticistas e juristas; (iii) na

delimitação dos contornos sociais e evolução histórica na busca de formas de

abordagem de temas aporéticos e paradoxais por natureza; (iv) na atuação como

modelo de conduta em quaisquer temas em que há notório tensionamento entre

princípios e direitos fundamentais, entre as esferas pública e privada, entre

contrários posicionamentos de ordens filosófica, política e até mesmo religiosa,

progressistas ou conservadores, (v) na necessidade de discussão jurídica no país

acerca do grau de proteção de princípios fundamentais como a autonomia e a

dignidade dos indivíduos de forma geral e, em particular, da mulher.

A atualidade do tema é também inegável e pode ser constatada pelos novos

dilemas bioéticos surgidos com o desenvolvimento das técnicas diagnósticas e de

abordagem fetal intrauterina, além do atual recrudescimento do debate na esfera

política, nos âmbitos dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Discussões

sociais midiáticas se avolumam, decisões judiciais relevantes são proferidas – por

vezes, com base em premissas fáticas médicas equivocadas –, novos projetos de lei

são propostos, as fronteiras da ação do Estado na individualidade se tornam

nebulosas.

A aproximação dialógica entre a Medicina, o Direito e a Bioética se afigura

necessária até mesmo como forma de buscar pacificação social e subsidiar escolhas

políticas constitucionalmente amparadas e garantidoras de princípios fundamentais.

Entretanto, a questão ainda está longe de ser pacificada no país, sobretudo

após a recente epidemia pelo vírus Zika e a comprovação da transmissão vertical da

infecção ao feto, que poderá desenvolver anomalias e deficiências neurológicas

ainda de âmbito pouco conhecido. A questão é tormentosa e reascendeu o debate

sobre o aborto no Brasil, inclusive com a propositura de projetos de lei e propostas

de emenda constitucional, em tramitação no Congresso Nacional, visando à ampla

proteção do nascituro desde a concepção e a criminalização da interrupção da

gestação de fetos com quaisquer anomalias congênitas. A despeito de, sob o ponto

de vista de frequência e gravidade de doenças fetais por fatores ambientais, a

síndrome Zika ter menos relevância do que outras infecções congênitas que serão

analisadas no estudo, trata-se de temática que foi levada a discussão perante o

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Supremo Tribunal Federal, sendo significativas as circunstâncias jurídicas que

envolvem o tema e relevantes as potenciais consequências jurídicas da decisão,

sobretudo diante da constatação da escassa proteção estatal das famílias

acometidas e das crianças com deficiências neurológicas causadas pela doença.

A partir do estudo sobre o aborto, a antecipação terapêutica do parto ou

interrupção seletiva da gestação e as malformações congênitas fetais com variados

índices de letalidade intrauterina ou no período neonatal, outras questões

exsurgiram no debate, pois os dilemas bioéticos e jurídicos que envolvem o feto e o

recém-nascido malformados não se esgotam na discussão sobre a licitude da

interrupção da gestação.

Os questionamentos sobre a (im)possibilidade de se definir um “indice de

letalidade” das anomalias fetais e predizer tal questao com objetividade e alguma

segurança, as formas de comunicação de más notícias à família e como tal fato

influencia a decisão da gestante na manutenção da gravidez, as relações médico-

paciente e materno-filiais diante do diagnóstico da anomalia fetal, a tomada de

decisões médicas limítrofes em neonatos gravemente malformados, a proteção dos

direitos das pessoas com deficiência e a responsabilidade civil médica no

aconselhamento genético enriquecem as polêmicas que circundam a matéria.

Após o nascimento de uma criança com graves e incuráveis anomalias,

mostra-se relevante perquirir a aceitação da família acerca dos cuidados paliativos e

a possibilidade de se garantir uma morte digna no país – sobretudo em recém-

nascidos –, mesmo sem legislação formal que a ampare e ainda que o conteúdo da

dignidade seja algo fluido e carente de definição universal. Ainda, a responsabilidade

médica pelo dever de informar no aconselhamento genético pode ter sua

aplicabilidade avaliada no Brasil por meio de análise do instituto da responsabilidade

civil e de casos exemplares no direito estrangeiro, sobretudo diante da constatação

atual do aumento exponencial de demandas que discutem o direito médico perante o

Judiciário brasileiro.

Todos os temas e discussões propostos serão conduzidos em torno de um

ponto comum: o diagnóstico médico de uma malformação congênita fetal. Para tal, a

imersão do jurista em um Centro de Referência na área da Medicina Fetal

configurou relevante estratégia metodológica prática para o desenvolvimento do

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estudo, já que o tema, por sua amplitude e complexidade, deve ser analisado de

forma transdisciplinar, congregando a Medicina, o Direito, a Bioética e a Patologia.

Aproximar tais ciências – a princípio tão díspares embora necessitem na atualidade

dialogar e carrear vocabulários comuns –, é um dos principais escopos do trabalho,

visando fornecer subsídios para a compreensão plural do assunto.

Realizou-se um estudo jurídico-teórico, argumentativo e interpretativo,

visando abordar o tema de forma neutra e, dentro do possível, isenta de questões

morais, religiosas ou emocionais, sem a pretensão de esgotar a matéria em todos os

seus âmbitos, mas de contribuir e inovar no debate e na formação de arcabouço

científico médico que subsidie os debates jurídicos sobre as malformações

congênitas.

O trabalho foi, assim, organizado em três grandes títulos que compõem o eixo

da tese e pretendem um estudo amplo do feto e do recém-nascido portadores de

malformações congênitas, sob os âmbitos médico, bioético e jurídico.

O primeiro título destina-se à apresentação do problema, das perguntas

formuladas e dos objetivos primordiais do estudo, por meio da introdução de como é

tratado o tema da condição jurídica do feto e do recém-nascido malformado no

Brasil.

O segundo título trata da abordagem médica do feto malformado: analisam-se

as técnicas diagnósticas pré-natais, os grupos mais comuns de malformações

congênitas multissistêmicas graves, assim como a abordagem do binômio materno-

fetal, o que tangencia a relação médico-paciente e o acolhimento da família, também

depois do parto no período puerperal.

No Título III, a abordagem do feto e do neonato malformados é feita sob os

âmbitos jurídico e bioético: trata-se da problemática que envolve o aborto, da forma

como o Poder Judiciário brasileiro enfrenta a matéria, do conteúdo dos projetos de

lei em tramitação no Congresso Nacional e sua interpretação para eventual

superação argumentativa, bem como dos direitos das pessoas com deficiência e da

responsabilidade civil médica no diagnóstico obstétrico e no aconselhamento

genético.

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Pretende-se, assim, um estudo analítico argumentativo das malformações

congênitas no Brasil, desde a fase fetal até o período neonatal, especialmente sob

os prismas jurídico e bioético, perpassando também por aspectos médicos e de

diagnóstico pré-natal das principais e mais graves anomalias fetais, convidando à

reflexão.

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TÍTULO I: APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA

O grande desafio será o de viver na ambiguidade, evitando a paralisia de julgamento, por um lado, e a tirania dos preconceitos, por outro.1

A possibilidade jurídica de se permitir, no Brasil, a interrupção da gestação em

casos de malformações congênitas fetais é assunto recorrente na doutrina e na

jurisprudência. Isso porque o Código Penal Brasileiro (CPB) de 19402, publicado

segundo os hábitos e costumes dominantes na década de 30 do passado século,

não abarca a possibilidade de aborto em situações além das já previstas

excludentes especiais de ilicitude do aborto necessário – quando não há outro meio

de salvar a vida da gestante – e do aborto humanitário ou sentimental – quando a

gravidez resulta de estupro e há consentimento da gestante ou de seu representante

legal, em caso de sua incapacidade civil.

Nos quase oitenta anos passados da publicação do CPB, cuja Parte Especial

ainda se encontra em vigor, os valores da sociedade se modificaram e, junto com

eles e de forma ainda mais significativa, a ciência e a tecnologia evoluíram, de forma

a produzir uma verdadeira revolução na ciência médica e na Medicina baseada em

evidências3.

O Direito Penal não pode ficar alheio a esse dinamismo social, ao

desenvolvimento da ciência e à evolução histórica e jusfilosófica do pensamento e

dos aspectos socioculturais da sociedade contemporânea. Frequentemente, surgem

questões que reclamam a aplicação de normas penais outrora editadas, que devem

ser analisadas hermeneuticamente a fim de se encontrar seu verdadeiro sentido,

ajustado ao momento atual. Já dizia Nelson Hungria, em sempre clara e atual

advertência:

1 Cahill L. The embryo and the fetus: new moral contexts. Theological Studies 1993; 54: 124-142.

2 Brasil. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. [acesso em 26 abr 2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm

3 Há diversas ideias que visam esclarecer o conceito de Medicina baseada em evidências. Trata-se de modelo que busca conduzir a tomada de decisões e tem como principais fundamentos a orientação da prática clínica assistencial com base na eficiência e eficácia, associando conhecimentos multidisciplinares que envolvem epidemiologia, áreas básicas, estatística, bioética, dentre outros, e aliando pesquisa e prática de forma crítica, analítica e sistemática.

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“A lei nao pode ficar inflexível e perpetuamente ancorada nas ideias e conceitos que atuaram em sua gênese. Não se pode recusar, seja qual for a lei, a denominada interpretação evolutiva (progressiva, adaptativa). A lógica da lei, conforme acentua Maggiore, não é estática e cristalizada, mas dinâmica e evolutiva”.4

Nesse contexto, era certo que o debate sobre a possibilidade de se

interromper a gestação em situações além das legalmente previstas seria levado ao

Poder Judiciário, que passou a enfrentar tais pedidos em casos de anomalias

congênitas fetais.

A decisão emblemática que embasa parte da discussão que ora se trava foi

proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no bojo da Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 545, em 2012, ocasião em que

se decidiu pela inconstitucionalidade da interpretação de que a interrupção da

gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128,

incisos I e II, do CPB6, dispositivos que tipificam o crime de aborto e arrolam as

hipóteses de exclusão de sua ilicitude. Reconheceu-se o direito da gestante de

interromper a gravidez após o diagnóstico por profissional habilitado, sem que esteja

compelida à apresentação de autorização judicial ou de qualquer outra forma de

permissão do Estado.

4 Hungria N. Comentários ao código penal. Vol. 5, 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense; 1958. p. 87-88.

5 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

6 CPB/1940. [...] Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. [...] Aborto provocado por terceiro Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. [...] Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

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Embora a decisão não tenha sido proferida à unanimidade, a premissa que se

adotou em juízo foi a norteadora do voto condutor do acórdão, de relatoria do

Ministro Marco Aurélio de Mello, de que o feto anencéfalo não teria potencialidade

de vida extrauterina, não se mostrando razoável a proteção de sua incolumidade

física, a qualquer custo e em detrimento de direitos básicos da mulher. “Anencefalia

e vida sao termos antiteticos”7, afirmou o nomeado ministro ao proferir seu voto em

Plenário, decidindo pela procedência do pedido.

Contudo, no atual momento em que o assunto novamente cresce em debate

– sobretudo em razão da epidemia pelo vírus Zika que acometeu gestantes

brasileiras em 2015 e 2016, com comprovada transmissão vertical ao feto –, importa

ressaltar a existência de várias outras síndromes malformativas que também podem

acarretar consequências médicas à gestante e ao feto, análogas às acarretadas pela

anencefalia. Índices variáveis de mortalidade fetal ou neonatal precoce, maior

probabilidade de complicações maternas físicas e psíquicas durante a gestação, o

parto e o puerpério, além de restrição ao exercício da autonomia da mulher e

representação idealizada da gravidez, são alguns dos fatores que confrontam mãe e

concepto em dilemas que beiram uma verdadeira aporia.

Nesse contexto, também consideradas a possibilidade de intervenção sobre a

vida humana incipiente e a evolução dos métodos diagnósticos em Medicina Fetal,

indagações éticas e jurídicas se avolumam e reanimam a discussão sobre a licitude

da interrupção da gravidez em anomalias congênitas fetais que, ressalte-se, são

doenças espectrais, em que formas leves plenamente compatíveis com a vida

convivem com formas graves de prognóstico reservado e alta letalidade ante ou

perinatal.

São numerosos os questionamentos e o tema convida à reflexão, pois, até

mesmo em malformações congênitas graves habitualmente tidas por letais, são

descritos casos de sobrevivência além do período neonatal, sobretudo quando

oferecido tratamento de suporte.

7 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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O que seria, assim, uma anomalia congênita realmente letal? No

aconselhamento de uma família que recebe o diagnóstico de que seu filho é

portador de uma anomalia congênita, devem efetivamente ser utilizados os termos

“malformacao letal” e “doenca incompativel com a vida”? Há possibilidade técnica de

se definir, por critérios diagnósticos médicos pré-natais, e especialmente com a

certeza e a segurança jurídica que o direito demanda, síndromes malformativas

congênitas letais que sejam certa e claramente incompatíveis com a vida

extrauterina? É possível conciliar a proteção da autonomia e dignidade da mulher e

seu direito ao próprio corpo com um imperativo democrático de tolerância e de se

acolher a deficiência e a diversidade humana? Há limites éticos e estatais às

escolhas pessoais ou o indivíduo é totalmente autônomo em suas decisões? Qual é

o conteúdo da dignidade humana?

A “potencialidade de vida extrauterina” 8, como afirmou o STF no julgamento

da ADPF 54, existe até mesmo no anencéfalo, se for considerada a vida sob um

prisma estritamente biológico e de alguma manutenção de atividades celulares vitais

após o nascimento. Dessa forma, questiona-se também se é a vida biológica em

potencial a que deva ser juridicamente protegida, ou se a proteção estatal destina-se

a um conceito de vida não meramente biológico – de um ser humano formado por

células vivas –, mas também à morte digna e segura e à vida relacional.

Ponto basilar e inafastável, que se mostra além da discussão sobre a

(im)possibilidade de se afirmar a letalidade de uma malformação congênita fetal, é a

necessidade de se garantir à mulher plenas condições de exercício de sua

autodeterminação, qualquer que seja o conteúdo moral de sua decisão autônoma a

respeito de seu próprio corpo.

O problema apresentado adquire ainda mais relevância ao se pretender

confrontar os direitos reprodutivos e a autonomia da mulher à garantia de proteção

dos direitos das pessoas com deficiência, aplicáveis às hipóteses de crianças

nascidas com anomalias que permitem a vida com variados graus de

comprometimentos neurológicos e físicos, como, a título de exemplo, na maior parte

8 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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dos casos das crianças com síndrome neurológica Zika, questão cuja abordagem

judicial se aproxima.

Questiona-se também sobre a efetividade de ordenamentos jurídicos

restritivos quanto à proteção da autonomia e da pessoalidade, em um mundo

globalizado em que é possível a busca da tutela transnacional de direitos

existenciais, ultrapassando-se as fronteiras nacionais. E diante de toda a polêmica

que perpassa o tema, perquire-se sobre o papel do médico e sua responsabilidade

no diagnóstico pré-natal e aconselhamento genético e sobre as novas formas de

dano oriundas do direito estrangeiro.

Sendo esses os principais problemas que se apresentam ao debate, refletir

sobre cada um deles demanda a inicial compreensão sobre as anomalias congênitas

graves mais comuns em nosso meio, suas formas de diagnóstico e abordagem

médica pré-natal do feto e da família, o que será desenvolvido no próximo Título.

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Título II: A ABORDAGEM MÉDICA DAS MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS

FETAIS

Se puderes olhar nas sementes do tempo E dizer qual semente irá germinar e qual não irá

Fale então comigo.9

Com a evolução do conhecimento médico e das técnicas de diagnóstico

intrauterino, bem como do exercício da Medicina Fetal como área de atuação

médica no âmbito da Obstetrícia moderna, hoje já se mostra possível diagnosticar,

ainda antes do nascimento, um amplo espectro de malformações congênitas no

nascituro, muitas delas graves e por alguns consideradas “incompatíveis com a

vida”, outras perfeitamente compatíveis com o pleno desenvolvimento extrauterino,

não causando prejuízos significativos às funções orgânicas do indivíduo.

As malformações congênitas fetais são anomalias estruturais de origem pré-

natal e podem ser classificadas em três grandes grupos com base em sua etiologia:

genética, ambiental ou multifatorial. Sua gravidade varia de acordo com numerosos

fatores, dentre eles a fase do desenvolvimento embrionário em que elas se

manifestam e se são oriundas de alterações gênicas, cromossômicas ou de fatores

extrínsecos ambientais, como o uso de drogas teratogênicas pela gestante, a

contaminação por metais pesados, a exposição a radiação ionizante e a presença

de determinadas doenças infecciosas, como a rubéola, a citomegalovirose, a sífilis e

a toxoplasmose. Muitas anomalias multifatoriais são de etiologia desconhecida,

podendo estar relacionadas a interações entre fatores genéticos e ambientais10. São

isoladas quando afetam somente um sistema orgânico; múltiplas quando

multissistêmicas.

Anormalidades estruturais na embriogênese dividem-se, ainda, de acordo

com sua origem e podem ser classificadas como malformações, deformações e

9 William Shakespeare. Macbeth.

10 Moorthie S, Blencowe H, Darlison MW, Lawn J, Morris JK, Modell B, et al. Estimating the birth prevalence and pregnancy outcomes of congenital malformations worldwide. J Community Genet. 2018; 9(4): 387-396.

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disrupturas11; em algumas classificações, incluem-se também as displasias. Nas

malformações, há com frequência alterações genéticas que geram defeitos

estruturais primários e persistentes, como aqueles no fechamento do tubo neural,

nos quais se inclui a anencefalia. Distúrbios cromossômicos que geram síndromes

também estão incluídos nessa categoria. Nas deformações, o ser é geneticamente

normal, mas ocorre um estímulo externo que gera uma alteração anatômica ou

funcional, que pode, em alguns casos, regredir. Nas disrupturas, a possibilidade de

regressão do defeito não ocorre; haverá a destruição ou alteração de estruturas já

formadas e normais, como, por exemplo, em caso de redução de membros por

anomalias vasculares. Por fim, nas displasias tem-se a organização anormal de

componentes teciduais, exemplificadas pelas displasias ósseas (algumas delas

graves e de alta letalidade) e os rins policísticos.

As anomalias congênitas fetais podem ser isoladas ou múltiplas; nesse caso,

podem se agrupar sob as denominações de síndrome, sequência ou associação12.

Nas síndromes, o conjunto de defeitos habitualmente se repete em um padrão

constante, compartilhando uma etiologia específica. As sequências ocorrem com

efeitos “em cascata” a partir de uma determinada causa, sendo exemplos as

sequências de prune belly (anteriormente descrita como síndrome) e de Pierre

Robin. Na associação, os defeitos se apresentam simultaneamente, de forma não

aleatória, com maior frequência do que se ocorressem ao acaso e isoladamente; a

associação VACTERL é um exemplo, em que ocorre a associação de pelo menos

três dos seguintes defeitos: vertebrais, atresia anal, cardíacos, fístula traqueo-

esofágica, anomalias renais e dos membros.

As anomalias fetais mais comuns são as cardíacas e os defeitos de

fechamento do tubo neural, que são malformações do sistema nervoso fetal das

quais a mais conhecida é a anencefalia. Há, entretanto, outras malformações graves

que, embora menos incidentes que a anencefalia e com variáveis índices de

letalidade intrauterina, merecem atenção quando se discute a possibilidade de

interrupção da gestação, como a agenesia renal bilateral, a trissomia do

11 Jones KL, Adam MP. Evaluation and diagnosis of the dysmorphic infant. Clin Perinatol. 2015;42(2):243–viii.

12 Stevenson RE, Hall J, Goodman RM. Human Malformations and Related Anomalies. New York: Oxford University, 1993.

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cromossomo 18 (Síndrome de Edwards), a trissomia do cromossomo 13 (Síndrome

de Patau) e algumas displasias ósseas letais.

Serão analisados os principais métodos diagnósticos disponíveis em nosso

meio e as doenças fetais causadoras de anomalias graves, especialmente as que

subsidiam pedidos judiciais de interrupção da gestação no Brasil.

1 O DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL DAS MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS FETAIS:

O FETO COMO PACIENTE

Com a maior compreensão da fisiologia da gestação e o desenvolvimento do

aconselhamento genético e de técnicas diagnósticas e de cirurgia fetal, luzes foram

lançadas sobre a gravidez e o feto passou a ser visto como um paciente, ainda que

em condições especiais. Tal reconhecimento é fenômeno concomitante ao

desenvolvimento da Medicina Fetal como área de atuação médica autônoma e

trouxe novos contornos jurídicos e atribuição de direitos e componentes da

personalidade ao nascituro. Coexistem duas realidades distintas e o feto não mais é

considerado “parte das entranhas maternas”. Aquela existencia ate entao invisivel

dá lugar a um ser que assume papel de destinatário direto de uma abordagem

médica especificamente voltada a ele. A visão do feto como paciente surge, assim,

junto ao início da Medicina Fetal em 1984, quando os professores californianos

Mitchell Golbus, Michell Harrison e Roy Filly publicam a obra “The fetus as patient”13.

A partir dos novos conhecimentos obstétricos sobre o binômio materno-fetal e

do surgimento de novas formas de avaliar a doença fetal e de se adentrar nas

peculiaridades de seu desenvolvimento, estabelecendo-se métodos diagnósticos e

terapêuticos, emerge a especialidade que enfatiza o paciente ainda não nascido e

reúne saberes multidisciplinares.

Essa nova postura médica inaugura, contudo, novos dilemas que envolvem o

próprio binômio materno-fetal; o tratamento de uma doença materna, a título de

13 Cabral ACV. Medicina Fetal: o feto como paciente. Belo Horizonte: Coopmed, 2005. p. 01.

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exemplo, envolve conflitos entre o benefício da mãe e o do feto. E a despeito de o

feto ser visto como uma individualidade, não se pode afastar sua inter-relação física

e social com a gestante. Tampouco sua visão como paciente pode afastar ou

diminuir a individualidade materna e os direitos da mulher diante de uma gravidez.

Há quem defenda, inclusive, que o feto apenas pode ser visto como paciente após

sua viabilidade ou, antes de tal período, quando a mãe decide por continuar a

gestação de seu feto pré-viável14 . Surgem, portanto, novas discussões éticas e

jurídicas acerca dos direitos da mãe e do nascituro e respostas simples não são

possíveis.

Uma das questões atuais que suscita novas e relevantes discussões éticas foi

propiciada pelo avanço tecnológico em exames de imagem, que impulsionou, por

sua vez e a partir do início dos anos 1980, o aprimoramento de técnicas de cirurgia

fetal visando à correção de anomalias ainda no ambiente intrauterino. Dilemas éticos

referentes a potencial conflito de interesses entre mãe e feto, risco materno e fetal,

avaliação da possibilidade de dor fetal e resposta ao estresse e insuficiência de

dados sobre resultados fetais e potenciais complicações a longo prazo merecem

reflexão15.

Enquanto procedimentos invasivos no útero materno, o risco de

prematuridade e dano fetal como complicações possíveis deve ser avaliado, sendo a

cirurgia fetal, em alguns centros, indicada quando o prognóstico da doença fetal já

se mostra reservado 16 . Tendo sido inicialmente realizada a céu aberto – com

abertura cirúrgica da cavidade uterina e exposição fetal direta –, atualmente já é

possível a cirurgia fetal por uso de técnicas minimamente invasivas, com uso da

fetoscopia ou cirurgia endoscópica fetal, procedimento guiado por ultrassonografia e

14 Moaddab A, Nassr AA, Belfort MA, Shamshirsaz AA. Ethical Issues in Fetal Therapy. Best Practice & Research Clinical Obstetrics & Gynaecology. 2017; 43: 58-67.

15 Chervenak FA, McCullough LB. The ethics of maternal-fetal surgery. Seminars in Fetal and Neonatal Medicine. 2018; 23(1): 64-67.

16 O norteamericano Michael Harrison é considerado o pioneiro no desenvolvimento da cirurgia fetal na Universidade de São Francisco, no início dos anos 1980. Em 1991, definiu critérios indicativos para a abordagem cirúrgica fetal, que foram aprovados pela Sociedade Internacional de Medicina e Cirurgia Fetal (International Fetal Medicine and Surgery Society – IFMSS) e correspondem às seguintes indicações: diagnóstico preciso e estadiamento da anomalia, exclusão de outras anormalidades estruturais associadas, conhecimento da história natural da doença, prognóstico estabelecido, ausência de tratamento eficaz pós-natal, cirurgia previamente experimentada e eficaz em modelos animais, consentimento dos pais, aprovação do procedimento pelo Comitê de Ética local, procedimento realizado em centros com equipe multiprofissional especializada. (Moise Jr KJ. The history of fetal therapy. Amer J Perinatol. 2014; 31(07): 557-566).

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realizado com uso de instrumento denominado fetoscópio, para visualização e

acesso direto ao feto, com indicação terapêutica e diagnóstica.

Em grandes centros especializados, a terapia cirúrgica fetal tem encontrado

bons resultados em casos de correção de mielomeningocele e de hérnia

diafragmática congênita (com colocação de balão intratraqueal), além de abordagem

intrauterina de cardiopatias fetais, de doenças obstrutivas do trato urinário e de

tumores como teratoma sacrococcígeo. Fora do âmbito das malformações

congênitas, a fotocoagulação a laser de anastomoses placentárias na síndrome de

transfusão feto-fetal – complicação de gestações gemelares monocoriônicas com

elevados índices de mortalidade, em que há um estabelecimento de fluxo sanguíneo

desigual entre os gêmeos – também é um dos principais procedimentos descritos de

abordagem cirúrgica fetal intrauterina17.

Considerando que o escopo principal deste trabalho diz respeito a questões

jurídicas e bioéticas que circundam o feto e o recém-nascido malformado no Brasil,

não se mostra adequado inaugurar tal discussão sem conhecer, sob o ponto de vista

médico, as principais anomalias congênitas graves a serem juridicamente debatidas

e os métodos propedêuticos mais utilizados para diagnosticá-las, bem como suas

indicações e potenciais riscos.

1.1 Propedêutica fetal

São diversas e atuais as possibilidades tecnológicas de rastreamento de

anomalias congênitas fetais; a análise da indicação propedêutica laboratorial e de

imagem passa pela anamnese direcionada e pelo exame físico, com avaliação do

risco de ocorrência de malformações.

A propedêutica fetal compreende métodos não invasivos e invasivos e

possibilita o diagnóstico intrauterino, favorecendo o planejamento e a abordagem do

prognóstico fetal, especialmente em situações em que a terapêutica é possível,

17 Rocha L, Amorim Filho A, Bunduki V, Carvalho MH, Lopes MA, Zugaib M, et al. Cirurgia fetal no contexto atual. Revista de Medicina. 2018; 97(2): 216-225.

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como em algumas infecções congênitas. Dentre os métodos não invasivos mais

relevantes em Medicina Fetal, tem-se a ultrassonografia morfológica, a

ecocardiografia fetal e marcadores sorológicos maternos; já os invasivos

compreendem a amniocentese, a cordocentese, a biópsia de vilo corial ou punção

de estruturas fetais.

Métodos não invasivos no diagnóstico de anomalias congênitas incluem a

ultrassonografia morfológica fetal e a ecocardiografia, relevantes para o diagnóstico

precoce, já que a morfogênese fetal já se mostra completa com 11 semanas de

gestação e mais de 80% das malformações desenvolvem-se antes dessa fase18.

Considerando-se, sobretudo, que a maior parte das malformações congênitas ocorre

em gestações sem claros fatores de risco, os exames de imagem de rotina são

fundamentais.

O ultrassom morfológico é um exame operador-dependente e consiste na

análise ordenada e sistemática de todas as estruturas fetais anatomicamente

reconhecíveis. Possibilita o diagnóstico de desvios anatômicos da normalidade,

incluindo ausência ou alterações de estruturas orgânicas, da biometria fetal ou

detecção de estruturas anormais 19 . Contudo, a despeito da experiência do

ultrassonografista, nem todas as síndromes genéticas fetais podem ser

diagnosticadas durante o pré-natal e mesmo síndromes comuns podem não ter

achados típicos ao exame de imagem.

A fase da gravidez em que o exame é utilizado tem importância na acurácia

diagnóstica. Ultrassonografias feitas no primeiro trimestre da gestação são utilizadas

para análise de translucência nucal, com eficácia para a triagem de condições

cromossômicas aneuplóides, como a trissomia do 21. No segundo trimestre,

recomenda-se a realização de ultrassom morfológico fetal, após cerca de 18

semanas. No terceiro trimestre, o exame é indicado para acompanhar a evolução

18 Jones KL. Morphogenesis and dysmorphogenesis. In: Smith DW, editor. Recognizable patterns of human malformation. Philadelphia: WB Saunders, 1997. p. 695-705.

19 Okumura M, Bunduki V. Ultrassonografia morfológica fetal. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 113-122.

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das anomalias fetais identificadas, embora tenha utilidade limitada, nesse período,

como ferramenta de triagem para síndromes genéticas fetais20.

Além da translucência nucal – que consiste no acúmulo fisiológico de líquido

no subcutâneo de fetos entre 11 e 14 semanas de gestação, cuja medida é usada

especialmente no rastreamento da trissomia do 21 ou Síndrome de Down –, há

outros marcadores ultrassonográficos, como o osso nasal e alterações no fluxo

sanguíneo no ducto venoso, dados também usados para avaliação de anomalias

cromossômicas.

A ultrassonografia tridimensional e a ressonância magnética fetal também

podem ser utilizadas, sendo a última apenas um método complementar à

ultrassonografia bidimensional, especialmente em alterações do sistema nervoso

central, sua principal indicação clínica. Recente estudo prospectivo duplo-cego

norte-americano objetivou comparar a acurácia da ultrassonografia bi e

tridimensional e da ressonância magnética no diagnóstico de malformações

congênitas fetais e demonstrou que o ultrassom bidimensional e a ressonância

magnética apresentaram sensibilidade semelhante, sendo ambos mais sensíveis

que a ultrassonografia tridimensional, no diagnóstico de anomalias congênitas em

geral. Contudo, a ressonância mostrou-se significativamente mais sensível que a

ultrassonografia nas alterações do sistema nervoso central, proporcionando

informações adicionais relevantes ao prognóstico, aconselhamento e manejo dos

casos em 22% dos casos, embora também tenha proporcionado maior índice de

resultados falso-negativos21.

Sendo diagnosticada uma anomalia ao ultrassom bidimensional morfológico,

deve-se realizar estudo anatômico fetal minucioso, pois o encontro de outras

malformações associadas, incluindo as do tipo minor, é relevante para o diagnóstico

de síndromes e associações e para o aconselhamento genético. Indicada está,

também, a ecocardiografia fetal, uma vez que a associação entre anomalias

extracardíacas e cardíacas é frequente. Ademais, quando uma malformação

20 Conner SN, Longman RE, Cahill AG. The role of ultrasound in the diagnosis of fetal genetic syndromes. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2014; 28(3): 417-428.

21 Gonçalves LF, Lee W, Mody S, Shetty A, Sangi-Haghpeykar H, Romero R. Diagnostic accuracy of ultrasonography and magnetic resonance imaging for the detection of fetal anomalies: a blinded case-control study. Ultrasound Obstet Gynecol. 2016; 48(2): 185-192.

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extracardíaca não letal é identificada, o diagnóstico de doença cardíaca estrutural

influencia a sobrevida a longo prazo e possibilita a adoção de medidas terapêuticas

neonatais22.

A ecocardiografia fetal é o estudo funcional e anatômico do coração do feto.

Dada a incidência estimada de doença cardíaca congênita em 6 a 12 para cada

1.000 nascidos vivos, bem como a mortalidade infantil por doença congênita

causada em 42% dos casos por anomalias cardíacas23, o ecocardiograma fetal é

uma das principais ferramentas diagnósticas das patologias cardiovasculares. Tais

índices fundamentam discussões acerca da indicação de rastreio ou screening de

cardiopatias congênitas em populações de baixo risco, quando não há, a título de

exemplo, fatores de risco maternos, familiares ou fetais, como outras anomalias

detectadas24. Algumas das principais condições clínicas que aumentam o risco para

cardiopatia fetal, justificando a realização da ecocardiografia, são diabetes materno,

fenilcetonúria materna de difícil controle, rubéola materna no primeiro trimestre da

gravidez, cardiopatia congênita em parente de primeiro grau, doenças maternas

autoimunes, cariótipo fetal alterado, gestação gemelar monocoriônica e ingestão

materna de determinados medicamentos, como ácido retinoico, lítio e

anticonvulsivantes25.

A realização da ecocardiografia fetal e o avanço das técnicas cirúrgicas

cardíacas modificaram consideravelmente a abordagem do feto portador de

anomalias cardíacas e o manejo perinatal, melhorando também significativamente o

prognóstico das mais comuns malformações congênitas fetais.

Dentre métodos não invasivos, é possível, ainda, a obtenção e análise de

células fetais e de DNA e RNA fetais livres no sangue periférico materno, mesmo em

fases precoces da gestação. O DNA fetal livre pode ser utilizado para determinação

do sexo fetal e também para rastreamento de aneuploidias fetais (doenças em que o

22 Copel JA, Pilu G, Kleinman CS. Congenital heart disease and extracardiac anomalies: mortality and morbidity and classification. Am J Obstet Gynecol. 1986; 154(5): 1121-1132.

23 Rosano A, Botto LD, Botting B. Infant mortality and congenital anomalies from 1950 to 1994: an international perspective. J Epidemiol Community Health. 2000; 54: 660-666.

24 Randall P, Brealey S, Hahn S, Khan KS, Parsons JM. Accuracy of fetal echocardiography in the routine detection of congenital heart disease among unselected and low risk populations: a systematic review. BJOG. 2005; 112(1): 24-30.

25 Pedra SRFF, Zielinsky P, Binotto CN, Martins CN, Fonseca ESVB, Guimarães ICB et al. Diretriz Brasileira de Cardiologia Fetal - 2019. Arq Bras Cardiol. 2019; 112(5): 600-648.

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número de cromossomos é anormal), como trissomias do 21 e do 13, bem como

diagnóstico de microdeleções e distúrbios monogênicos de herança paterna. As

pesquisas nesse campo são promissoras para contribuir para o diagnóstico genético

pré-natal não invasivo26,27.

Para o diagnóstico de malformações fetais, um dos métodos invasivos mais

utilizados é a amniocentese, que consiste em um procedimento ambulatorial de

introdução, guiada por ultrassom, de uma agulha pelo abdome da gestante para

acesso à cavidade amniótica visando, especialmente, à obtenção de material para

realização do cariótipo fetal. Há, contudo, outras indicações para o método, como

avaliação de maturidade pulmonar, pesquisa de infecções congênitas,

amniodrenagem em casos de polidrâmnio e amnioinfusão, pesquisa de doenças

metabólicas e gênicas e teste de paternidade28.

São descritas complicações do procedimento que devem ser avaliadas em

conjunto com o benefício diagnóstico em sua realização e incluem rotura de

membranas, infecção, lesão fetal direta ou indireta e perda gestacional, sendo a

amniocentese precoce menos segura do que aquela realizada no segundo

trimestre29. Contudo, o risco exato de perda gestacional pela amniocentese não é

conhecido e tem sido estimado em faixas que variam entre 1:100 a 1:1600 30 .

Informações precisas acerca dos riscos e benefícios diagnósticos devem ser

fornecidas à gestante. Por vezes, questões relacionadas a opiniões pessoais sobre

a possibilidade de interrupção da gestação, bem como o medo da perda fetal

iatrogênica e o histórico de prévios abortos espontâneos são fatores que influenciam

26 Wright CF, Burton H. The use of cell-free fetal nucleic acids in maternal blood for non-invasive prenatal diagnosis. Hum Reprod Update. 2009; 15(1): 139-151.

27 Breveglieri G, D'Aversa E, Finotti A, Borgatti M. Non-invasive Prenatal Testing Using Fetal DNA. Mol Diagn Ther. 2019; 23(2): 291-299.

28 Kiyohara M, Liao AW, Toma O. Amniocentese e amnioinfusão. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 635-640.

29 Alfirevic Z, Navaratnam K, Mujezinovic F. Amniocentesis and chorionic villus sampling for prenatal diagnosis. Cochrane Database Syst Rev. 2017;9(9):CD003252

30 Odibo AO, Gray DL, Dicke JM, Stamilio DM, Macones GA, Crane JP. Revisiting the fetal loss rate after second-trimester genetic amniocentesis: a single center’s 16-year experience. Obstet Gynecol. 2008; 111: 589-595.

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30

a decisão pela recusa na realização do método propedêutico invasivo 31 . Essas

pacientes podem se beneficiar de métodos diagnósticos não invasivos.

A biópsia de vilo corial também é método invasivo que possibilita a realização

de cariótipo fetal por meio da obtenção de células trofoblásticas. As principais

indicações são para detecção de doenças gênicas ou de aneuploidias, essas

especialmente em casos de idade materna avançada, translucência nucal

aumentada, ultrassom morfológico alterado, rastreamento bioquímico positivo ou

antecedente de cromossomopatia diagnosticada em material de abortamento ou

filho anteriormente nascido. A técnica pode ser realizada por via transabdominal ou

por via transcervical e as complicações descritas incluem dor, sangramento vaginal,

rotura prematura de membranas, infecção, perda fetal e defeitos de extremidades

fetais em procedimentos realizados precocemente, antes da 9a semana de

gestação, contudo em proporções que não diferem das observadas na

amniocentese32.

Estudo retrospectivo realizado em Portugal com 491 casos de biópsias de vilo

corial concluiu ser este um procedimento seguro e confiável para o diagnóstico pré-

natal de anormalidades cromossômicas e distúrbios genéticos no primeiro trimestre

da gravidez e em casos de elevado risco genético, com baixos índices de perda fetal

– de cerca de 0,5% –, possibilitando, ainda, a decisão do casal pela interrupção

segura e precoce da gravidez quando legalmente permitida33.

A cordocentese ou funiculocentese, por sua vez, consiste na punção por

agulha de vasos do cordão umbilical para coleta de sangue fetal, sendo realizada

menos frequentemente que a amniocentese e a biópsia de vilo corial. Tem

indicações assemelhadas às da amniocentese, além de também ser usada para

31 Sadlecki P, Grabiec M, Walentowicz P, Walentowicz-Sadlecka M. Why do patients decline amniocentesis? Analysis of factors influencing the decision to refuse invasive prenatal testing. BMC Pregnancy Childbirth. 2018;18(1):174.

32 Kohatsu MHY, Carvalho MHB. Biópsia de vilo corial. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 641-645.

33 Jorge P, Mota-Freitas MM, Santos R, Silva ML, Soares G, Fortuna AM. A 26-Year Experience in Chorionic Villus Sampling Prenatal Genetic Diagnosis. J Clin Med. 2014; 3(3): 838-848.

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31

tratamento de distúrbios hematológicos fetais e do feto sobrevivente de gestação

gemelar monocoriônica com óbito recente de um dos fetos34.

Métodos propedêuticos não invasivos são difundidos e bem aceitos sob o

prisma da ética médica e pelos pacientes; já as técnicas invasivas têm suscitado

discussões éticas diante da possibilidade, ainda que pequena, de risco à saúde e à

vida do feto, bem como de se permitir à gestante o questionamento sobre a

interrupção da gestação, sobretudo quando não há – o que ocorre na maior parte

dos casos diagnosticados – possibilidade de tratamento curativo ou resolutivo da

doença congênita fetal.

Por meio dos métodos descritos, permite-se o diagnóstico de grande parte

das anomalias fetais sistêmicas que serão analisadas por grandes grupos de acordo

com o sistema orgânico de acometimento. Serão descritas ainda as principais

doenças genéticas, especialmente as cromossômicas, bem como as infecções

congênitas geradoras de maior morbidade fetal. Os grupos descritos foram

escolhidos com base em dados estatísticos da literatura médica especializada e na

observação da frequência de casos graves atendidos no Centro de Medicina Fetal

do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais – CEMEFE, onde

este trabalho foi desenvolvido.

1.2 Anomalias do sistema nervoso central

No Brasil, a mais conhecida malformação congênita do sistema nervoso

central – mesmo fora do ambiente médico – é a anencefalia, grave defeito de

fechamento do tubo neural que foi objeto de amplo debate jurídico e bioético pelo

Supremo Tribunal Federal há quase uma década. Realmente, os defeitos de

fechamento do tubo neural estão entre as malformações congênitas mais frequentes

e constituem doenças heterogêneas e espectrais que resultam da incompleta fusão

34 Liao AW, Kang H, Toma O. Cordocentese. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 641-645.

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32

do tubo neural durante fases precoces do crescimento e do desenvolvimento

embrionário.

Neste tópico, a exposição das síndromes será limitada aos defeitos de

fechamento do tubo neural, embora existam outras anomalias do sistema nervoso

central, como ventriculomegalias, malformações de fossa posterior, lesões císticas e

holoprosencefalia – essa última potencialmente grave quando associada a

síndromes cromossômicas e graves anomalias faciais, como a ciclopia. Há, ainda,

associação de anomalias encefálicas múltiplas, como a síndrome de Arnold-Chiari,

em que defeitos de desenvolvimento e posição cerebelar de graus variáveis podem

se associar com defeitos de fechamento do tubo neural. Também com

acometimento cerebelar e na fossa posterior tem-se a malformação de Dandy-

Walker, caracterizada pela tríade agenesia do vermis cerebelar, dilatação do quarto

ventrículo e alargamento da fossa posterior com deslocamento de estruturas

encefálicas.

Os principais defeitos de fechamento do tubo neural são a anencefalia,

iniencefalia, encefalocele e as mielomeningoceles.

A anencefalia é o mais comum deles e se caracteriza pela ausência de crânio

(acrania) e hemisférios cerebrais ausentes ou apenas rudimentares; o tronco

encefálico geralmente está presente. Incide em cerca de um a cada 1.000 nascidos

vivos especialmente do sexo feminino e tem um padrão etiopatogênico multifatorial,

com influência de fatores genéticos e ambientais, como a deficiência de ácido

fólico 35 . Complicações maternas quando a gestação não é interrompida são

descritas e incluem polidrâmnio, hipertensão, diabetes, descolamento de placenta,

partos prematuros e distócicos 36 . Dados sobre a mortalidade serão abordados

quando da análise da decisão judicial que possibilitou, no Brasil, a interrupção da

gestação de fetos anencéfalos.

A iniencefalia é defeito grave e complexo da junção craniovertebral, de

elevada letalidade intrauterina, em que se associam anomalias vertebrais e

35 Bunduki V, Requeijo MJR, Pinto FCG. Defeitos de fechamento do tubo neural. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 365-374.

36 Ekmekci E, Gencdal S. What's Happening When the Pregnancies Are Not Terminated in Case of Anencephalic Fetuses? J Clin Med Res. 2019; 11(5): 332-336.

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33

torácicas, pescoço curto e retroflexão acentuada da cabeça, espinha bífida e outras

anomalias extraneurais, como hipoplasia pulmonar, malformações cardíacas,

defeitos faciais e de parede abdominal. Embora grave e de elevada letalidade, são

descritos raros casos de sobrevida em portadores da anomalia, até mesmo até a

fase adulta37.

Nas encefaloceles, ocorre defeito aberto no crânio com extrofia ou herniação

externa de parte do tecido cerebral. Variam de tamanho e localização e podem

constituir defeito isolado ou fazer parte de síndromes como, por exemplo, a de

Meckel-Gruber, grave doença de herança autossômica recessiva em que a anomalia

se associa a polidactilia e rins policísticos38.

As mielomeningoceles são formas abertas de espinha bífida – formação

inadequada de estruturas que protegem a medula espinhal e fechamento ósseo

incompleto na coluna – que podem resultar em graves sequelas neurológicas,

embora tenham tratamento cirúrgico neonatal e até mesmo antenatal, consistente no

reposicionamento da medula e das raízes espinhais dentro do canal raquidiano, com

fechamento do saco dural e composição de revestimento cutâneo39. A incidência, a

gravidade, o prognóstico e os índices de morbimortalidade variam de acordo com a

extensão do defeito e associação com prematuridade e com outras anomalias

neurológicas ou extraneurais, como hidrocefalia, anencefalia e disfunção

esfincteriana vesical e anal.

1.3 Malformações cardíacas

Cardiopatias congênitas são as anomalias congênitas mais comuns na

infância, com incidência média de 8 a cada 1.000 nascidos vivos, cerca de 30%

deles com formas graves de malformações cardíacas de prognóstico reservado e

37 Holmes LB, Toufaily MH, Westgate MN. Iniencephaly. Birth Defects Res. 2018; 110(2): 128-133.

38 Hartill V, Szymanska K, Sharif SM, Wheway G, Johnson CA. Meckel-Gruber Syndrome: An Update on Diagnosis, Clinical Management, and Research Advances. Front Pediatr. 2017 20; 5: 244.

39 Moldenhauer JS, Adzick NS. Fetal surgery for myelomeningocele: After the Management of Myelomeningocele Study (MOMS). Semin Fetal Neonatal Med. 2017; 22(6): 360-366.

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34

elevadas mortalidade e morbidade, a despeito dos avanços em cirurgia cardíaca

pediátrica40. Podem se apresentar de forma isolada ou como parte de síndromes ou

doenças genéticas, havendo também em sua etiopatogênese influência ambiental,

como uso de medicamentos e infecções maternas, especialmente a rubéola.

São numerosas as cardiopatias congênitas e a mais comum delas é a

comunicação interventricular – associada ou não a outras anomalias –, de pequeno

risco e baixa gravidade. Tetralogia de Fallot e obstrução da via de saída do

ventrículo direito são também frequentes em estudos realizados em populações

brasileiras. Uma das síndromes clínicas em que a associação com cardiopatias é

comum – além das cromossomopatias – é a Síndrome de Noonan, doença genética

autossômica dominante caracterizada por baixa estatura, anomalias cardíacas,

faciais e esqueléticas41,42.

Recente estudo internacional de coorte retrospectivo, realizado a partir de

dados de 12 países da Europa, Américas do Norte e do Sul e Ásia, analisou mais de

18 mil casos de defeitos cardíacos congênitos graves, demonstrando que a maioria

das anomalias identificadas apresentaram-se como isoladas, embora o diagnóstico

seja mais frequentemente realizado no pré-natal quando os defeitos são graves,

extensos e fazem parte de síndromes clínicas. Das anomalias graves e de elevada

letalidade, a mais frequentemente diagnosticada no pré-natal foi a síndrome de

hipoplasia do coração esquerdo (SHCE) 43 . Trata-se de cardiopatia complexa

considerada fatal na totalidade dos casos, antes do advento da cirurgia de Norwood,

em 1981, que passou a proporcionar a sobrevivências das crianças por vários anos,

embora com comorbidades associadas. Apesar de sua incidência global não ser

elevada, é responsável por até 23% das mortes por doença cardíaca durante a

40 Lopes LM. Malformações cardíacas e arritmias fetais. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 383. 41 Huber J, Peres VC, Santos TJ, Beltrão LF, Baumont AC, Cañedo AD, et al. Cardiopatias congênitas em um serviço de referência: evolução clínica e doenças associadas. Arq Bras Cardiol. 2010; 94(3): 333-338.

42 Amorim LF, Pires CA, Lana AM, Campos AS, Aguiar RA, Tiburcio JD, et al. Presentation of congenital heart disease diagnosed at birth: analysis of 29,770 newborn infants. J Pediatr (Rio J). 2008; 84(1): 83-90.

43 Bakker MK, Bergman JEH, Krikov S, Amar E, Cocchi G, Cragan J, et al. Prenatal diagnosis and prevalence of critical congenital heart defects: an international retrospective cohort study. BMJ Open. 2019; 9(7): e028139.

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35

primeira semana de vida. As anomalias cardíacas presentes na síndrome incluem

atresia mitral e aórtica e hipodesenvolvimento do ventrículo esquerdo44.

A anomalia de Ebstein é também uma das formas de pior prognóstico fetal,

com frequente evolução para óbito intrauterino. Caracteriza-se por defeito grave da

valva tricúspide, cardiomegalia, insuficiência cardíaca e hipoplasia pulmonar,

podendo também se acompanhar de arritmias graves, que contribuem para o pior

prognóstico.

1.4 Displasias ósseas

Anormalidades do sistema esquelético são um grupo extremamente

heterogêneo e espectral de doenças, compreendendo formas leves e isoladas até

anomalias que acarretam a morte intrauterina ou neonatal precoce. Sendo diversas

as osteocondrodisplasias diagnosticadas ainda na vida intrauterina por meio de

propedêutica de imagem, a questão referente à eventual possibilidade de

interrupção da gestação é debatida nos casos mais graves. Grande parte dessas

doenças apresenta herança genética autossômica e as mais graves sob o ponto de

vista da letalidade são a displasia tanatofórica, a acondrogênese e a osteogênese

imperfeita de tipo II, algumas delas conhecidas pelo Judiciário brasileiro em pedidos

de autorização judicial de interrupção da gravidez.

A displasia tanatofórica, doença óssea letal mais frequente em cuja

etiopatogênese são descritas mutações genéticas, é usualmente diagnosticada por

achados ultrassonográficos característicos com posterior confirmação por exame

necroscópico. As anomalias compreendem grave encurtamento e curvatura dos

ossos longos, tórax hipoplásico e abdome protuberante, macrocrania e sinostose

craniana. Achados necroscópicos neurológicos associados compreendem displasia

44 Saraf A, Book WM, Nelson TJ, Xu C. Hypoplastic left heart syndrome: From bedside to bench and back. J Mol Cell Cardiol. 2019; 135: 109-118.

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36

do hipocampo, polimicrogiria, hiperplasia do lobo temporal, ventriculomegalia e

hipoplasia do cerebelo45.

A acondrogênese tipo 1A, por sua vez, é doença rara autossômica recessiva

caracterizada pela presença de graves micromelia (membros curtos) e

desmineralização óssea, hipocalcificação e fraturas de ossos longos, tórax curto,

crescimento intrauterino retardado e polidrâmnio46.

Por derradeiro, fetos com osteogênese imperfeita de tipo II apresentam-se

com membros curtos, curvados e deformados, frequentemente fraturados e com

angulações. Tórax hipoplásico, desmineralização e redução da densidade óssea

esquelética são também achados comuns47.

O diagnóstico ultrassonográfico antenatal traz frequentes dificuldades dada a

raridade das síndromes clínicas, com superposição de achados semelhantes nas

diversas osteocondrodisplasias; os estudos genético e necroscópico pós-natal são

importantes para definição diagnóstica e posterior aconselhamento genético do

casal.

1.5 Anomalias do sistema urinário

As anomalias do sistema nefro-urológico correspondem a cerca de 20% das

anormalidades estruturais diagnosticáveis à ultrassonografia antenatal e se agrupam

em doenças obstrutivas e não obstrutivas, que não cursam com dilatação do sistema

coletor48. Trata-se de amplo grupo de malformações nas quais arrolam-se agenesia

renal uni ou bilateral, rins poli ou multicísticos, displasia renal, anomalias de fusão e

posição renal, hidronefrose e uropatias obstrutivas por diversas causas – como

45 Wainwright H. Thanatophoric dysplasia: a review. S Afr Med J. 2016; 106(6 Suppl 1): S50-3.

46 Vanegas S, Sua LF, López-Tenorio J, Ramírez-Montaño D, Pachajoa H. Achondrogenesis type 1A: clinical, histologic, molecular, and prenatal ultrasound diagnosis. Appl Clin Genet. 2018 May 25;11:69-73.

47 Hurst JA, Firth HV, Smithson S. Skeletal dysplasias. Semin Fetal Neonatal Med. 2005; 10(3): 233-241.

48 Yoshisaki CT, Bunduki V, Giron AM. Malformações nefrourológicas. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 461.

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estenose de junção ureteropélvica e válvula de uretra posterior –, dentre outras

condições menores.

Diante do escopo deste trabalho e seu foco em doenças graves com eventual

possibilidade de se franquear à gestante a interrupção da gravidez, a anomalia

urinária que adquire relevância é a agenesia renal bilateral, doença rara que pode se

afirmar ser incompatível com a vida, cursando invariavelmente com oligo ou

anidrâmnio de origem renal e hipoplasia pulmonar.

Estudos de revisão de literatura sobre a doença demonstram que os índices

de mortalidade são de 100% no período neonatal, sem qualquer intervenção.

Estima-se a média de sobrevida pós-natal em 24 horas, com menos de 5% dos

neonatos sobrevivendo até uma semana. Sobrevidas por maior tempo devem-se a

intervenções agressivas, com entubação neonatal, ventilação mecânica invasiva e

diálise peritoneal 49 . Eventuais intervenções pré-natais incluem amniocenteses e

infusões seriadas de líquido amniótico, que não demonstraram interferências

positivas significativas no prognóstico, sobretudo devido à raridade da condição e à

inexistência de estudos bem conduzidos com número significativo de casos

devidamente acompanhados50.

Preconiza-se que a condução pré-natal dos casos compreenda a ampla

informação da gestante sobre a gravidade da condição fetal e eventuais riscos de

procedimentos seriados de amnioinfusão, incluindo infecções, e que o procedimento

não é curativo ou resolutivo da doença fetal. As gestantes devem compreender que

não há claras evidências científicas de efetivo benefício fetal ou neonatal em tais

intervenções. A interrupção da gestação pode ser judicialmente pleiteada.

49 Nguyen JE, Salemi JL, Tanner JP, Kirby RS, Sutsko RP, Ashmeade TL. Survival and healthcare utilization of infants diagnosed with lethal congenital malformations. J Perinatol. 2018; 38(12): 1674-1684.

50 Thomas AN, McCullough LB, Chervenak FA, Placencia FX. Evidence-based, ethically justified counseling for fetal bilateral renal agenesis. J Perinat Med. 2017 26; 45(5): 585-594.

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1.6 Defeitos de parede abdominal

Os defeitos de parede abdominal correspondem principalmente a

gastrosquise e onfalocele, incidem em cerca de três a cada 100.000 nascimentos e

estão frequentemente associados a outras malformações congênitas fetais,

sequências e síndromes 51 . Outros exemplos são extrofia de bexiga ou cloaca,

anomalias de pedúnculo (como a sequência limb body wall complex) e a sequência

de prune belly.

Na onfalocele, anomalia frequentemente associada a outras malformações –

especialmente cardiovasculares – e alterações cromossômicas como as trissomias

do 18 e do 13, ocorre um defeito de fechamento da parede abdominal anterior, com

persistência da herniação do conteúdo abdominal além do período fisiológico. Diante

do diagnóstico ultrassonográfico de onfalocele, o oferecimento à gestante de

propedêutica para realização do cariótipo é relevante, assim como a ecocardiografia

fetal.

A gastrosquise, anomalia de etiopatogênese desconhecida, consiste em uma

fenda em toda a espessura da parede abdominal, sem envolver o cordão umbilical.

Ao contrário da onfalocele, a gastrosquise raramente se associa a anomalias

cromossômicas e a malformações de outros sistemas orgânicos, sendo fundamental

o diagnóstico diferencial ultrassonográfico entre ambas para o adequado manejo da

gestação e do recém-nascido.

O tratamento cirúrgico de ambas é viável mesmo em casos mais graves,

sendo também possível o manejo da maioria das malformações cardíacas, urinárias

e gastrointestinais associadas. A evolução do manejo clínico-cirúrgico de recém-

nascidos portadores de defeitos de parede abdominal garante que a maioria

sobreviva e atinja a idade adulta52.

51 Prefumo F, Izzi C. Fetal abdominal wall defects. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2014; 28(3): 391-402.

52 Gamba P, Midrio P. Abdominal wall defects: prenatal diagnosis, newborn management, and long-term outcomes. Semin Pediatr Surg. 2014; 23(5): 283-290.

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39

A sequência limb body wall complex, outrora denominada anomalia body

stalk, foi objeto de litígio judicial fartamente noticiado no Brasil, com decisão

confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2016 – que será objeto de análise

em título próprio deste trabalho. Embora rara, trata-se de anomalia grave e

considerada letal, em que há extenso defeito de parede abdominal anterior com o

feto unido à placenta, ausência ou escassez do cordão umbilical e diversas

anomalias graves associadas, como cardíacas, ósteo-esqueléticas, do sistema

nervoso central e do trato geniturinário. Diversas hipóteses são aventadas para

esclarecer a etiopatologia da anomalia, ganhando relevo na literatura médica a

rotura amniótica precoce e a formação de bandas amnióticas53.

1.7 Doenças genéticas cromossômicas

As doenças genéticas podem ser subdivididas em anomalias gênicas e

doenças cromossômicas. De modo geral, mutações gênicas são as anomalias que

ocorrem dentro de um gene, enquanto as mutações cromossômicas ocorrem em

uma região do cromossomo que abarca múltiplos genes. A maior parte destas é

causada por alterações no número de cromossomos ou na estrutura cromossômica,

sendo que as primeiras compreendem as aneuploidias, anormalidades genéticas

mais comumente detectadas durante o pré-natal e importantes no âmbito deste

trabalho.

Constituem aneuploidias as monossomias (falta de um dos cromossomos do

par) e as trissomias (presença de um cromossomo extra), como as Síndromes de

Down (trissomia do 21), de Edwards (trissomia do 18) e de Patau (trissomia do 13).

São essas as aneupolidias trissômicas que podem gerar sobrevida ao nascimento,

53 Rittler M, Campaña H, Poletta FA, Santos MR, Gili JA, Pawluk MS, et al. Limb body wall complex: Its delineation and relationship with amniotic bands using clustering methods. Birth Defects Res. 2019 Mar 1; 111(4): 222-228.

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embora as duas últimas acarretem anomalias físicas e mentais graves e de alta

mortalidade. Todas as demais trissomias humanas acarretam a morte intrauterina54.

Considerado o principal recorte metodológico deste estudo como a discussão

de aspectos éticos e jurídicos de malformações congênitas graves que suscitam

discussões sobre a interrupção da gestação e a não adoção de medidas

terapêuticas extraordinárias neonatais, a análise das trissomias se restringirá às dos

cromossomos 13 e 18, já que a Síndrome de Down (trissomia do 21) é compatível

com a vida extrauterina e apresenta como principais achados ultrassonográficos a

braquicefalia, face plana, leve ventriculomegalia, edema de nuca, membros curtos,

atresia duodenal e clinodactilia (curvatura palmar) do quinto dedo.

A trissomia do 18 ou Síndrome de Edwards é a segunda trissomia mais

frequente depois da Síndrome de Down, com prevalência em nascidos vivos

estimada em 1 a 6.000 ou 1 a 8.000, embora a prevalência geral seja maior, em

razão da alta frequência de perdas fetais 55 .Caracteriza-se pela presença de

malformações multissistêmicas maiores e menores – nenhuma delas patognomónica

da doença –, sendo as primeiras cardiovasculares e renais, enquanto as do grupo

minor incluem anomalias craniofaciais, ósseas e de extremidades, especialmente os

punhos cerrados com sobreposição do segundo dedo sobre o médio e do quinto

sobre o quarto, apresentando todos unhas hipoplásicas. Pé torto congênito e

proeminencia do calcanhar, com aspecto em “mata borrao” ou “cadeira de balanco”

são achados comuns. Malformações do sistema nervoso central, como hidrocefalia e

hipoplasia de cerebelo, e graves hipotonia e retardo no desenvolvimento

neuropsicomotor são também frequentes.

Na trissomia do 13 – Síndrome de Patau – é clássico o achado da tríade

constituída por microftalmia, fissura labial ou palatina e polidactilia, sendo também

encontradas anomalias cardiovasculares, urogenitais, faciais e do sistema nervoso

central, além de deficit neurológico e psicomotor. São também elevadas as taxas de

abortamento espontâneo e morte intrauterina e curta a sobrevida após o

nascimento. Duque et al, em estudo de coorte retrospectivo realizado em hospital

público brasileiro com análise de dados coletados em 23 anos, observaram taxa de

54 Strachan T, Read A. Genética molecular humana. [trad Marasini AB et al]. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 52.

55 Cereda A, Carey JC. The trisomy 18 syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2012 Oct 23; 7: 81.

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54% de nascidos vivos, com morte em 24 horas em 71% deles. A média de

sobrevida nos casos analisados foi de um dia e 90% dos recém-nascidos morreram

na primeira semana de vida56.

Em ambas as trissomias, o diagnóstico pré-natal é fundamental e permite a

programação da tomada de decisões no caso de nascimento com vida, considerado

o prognóstico reservado das síndromes. Contudo, dada a escassez de recursos em

saúde pública no Brasil – o que reflete na qualidade da atenção à gestante e do

acompanhamento pré-natal –, o início tardio no acompanhamento gestacional e o

atraso no diagnóstico são uma realidade, ainda mais dramática em razão da

ausência de programas estruturados de triagem pré-natal para a detecção precoce

de aneuploidias57.

Discute-se a indicação de intervenções obstétricas ou neonatais, clínicas ou

cirúrgicas, nas aneuploidias descritas, diante dos elevados índices de mortalidade; a

título de exemplo, intervenções cirúrgicas cardíacas e medidas de reanimação

neonatal.

Há estudos que demonstram não haver diferença significativa nas taxas de

sobrevida entre os neonatos que receberam intervenções médicas agressivas

neonatais ou obstétricas 58 , 59 , tampouco melhora da qualidade de vida dessas

crianças após os procedimentos; ao contrário, observou-se significativo aumento dos

custos no tratamento das crianças acometidas e da morbidade60, com significativa

incidência de complicações referentes a hipertensão pulmonar, falência renal aguda,

56 Duque JAP, Ferreira CF, Zachia SA, Sanseverino MTV, Gus R, Magalhães JAA. The natural history of pregnancies with prenatal diagnosis of Trisomy 18 or Trisomy 13: Retrospective cases of a 23-year experience in a Brazilian public hospital. Genet Mol Biol. 2019; 42 (1 suppl 1): 286-296.

57 Duque JAP, Ferreira CF, Zachia SA, Sanseverino MTV, Gus R, Magalhães JAA. The natural history of pregnancies with prenatal diagnosis of Trisomy 18 or Trisomy 13: Retrospective cases of a 23-year experience in a Brazilian public hospital. Genet Mol Biol. 2019; 42 (1 suppl 1): 286-296.

58 Subramaniam A, Jacobs AP, Tang Y, Neely C, Philips III JB, Biggio JR, Robin NH, Edwards RK. Trisomy 18: A single-center evaluation of management trends and experience with aggressive obstetric or neonatal intervention. Am J Med Genet Part A. 2016; 170A: 838–846.

59 Nguyen JE, Salemi JL, Tanner JP, Kirby RS, Sutsko RP, Ashmeade TL. Survival and healthcare utilization of infants diagnosed with lethal congenital malformations. J Perinatol. 2018; 38(12): 1674-1684.

60 Graham EM. Infants with Trisomy 18 and complex congenital heart defects should not undergo open heart surgery. The Journal of Law, Medicine & Ethics, 44 (2016): 286-291.

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parada cardíaca e infecções hospitalares após cirurgias cardíacas em crianças com

trissomia do 13 ou do 1861.

1.8 Infecções congênitas

A despeito do considerável avanço no diagnóstico e abordagem terapêutica

das infecções adquiridas pela gestante com potencial de transmissão vertical ao

feto, a temática ainda é um grave problema de saúde pública no Brasil e tema de

programas nacionais de controle e manejo de doenças.

Infecções plenamente tratáveis durante a gestação ainda têm sido foco de

preocupação em Obstetrícia e Medicina Fetal; o recente e notório aumento do

número de casos de sífilis no Brasil é um exemplo de doença grave e evitável e

demonstra a baixa qualidade da assistência, de condições sanitárias da população e

de esclarecimento sobre as formas de contágio da doença. Ainda, o foco no controle

sanitário apenas em períodos de epidemias e a redução da vigilância contínua e em

períodos interepidêmicos contribuem para o agravamento do quadro.

São numerosas as infecções virais, bacterianas e parasitárias que podem ser

transmitidas verticalmente da gestante ao embrião ou feto, em diferentes fases da

gestação. Toxoplasmose, rubéola, citomegalovirose, herpes simples e sífilis são

exemplos de doenças infecciosas com patogênese fetal conhecida e bem

determinada, compreendidas pelo acrônimo ToRCHS.

A toxoplasmose tem como agente etiológico o Toxoplasma gondii, parasita

intracelular obrigatório que tem como hospedeiros definitivos os gatos e outros

felinos. A infecção é bastante prevalente em nosso meio e habitualmente

assintomática. Entretanto, ocorrendo a primoinfecção materna durante a gestação, o

feto pode ser gravemente acometido, transformando a questão em grave problema

de saúde pública em razão dos comprometimentos visual, auditivo, mental e

neuromotor do feto. Hidrocefalia, calcificações intracranianas, inflamações oculares

61 Furlong-Dillard J, Bailly D, Amula V, Wilkes J, Bratton S. Resource Use and Morbidities in Pediatric Cardiac Surgery Patients with Genetic Conditions. J Pediatr. 2018; 193: 139-146.e1.

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43

na retina e na coróide e convulsões são sinais encontrados na toxoplasmose

congênita, embora frequentemente ausentes ao nascimento e de desenvolvimento

tardio62.

Dados de prevalência sorológica em gestantes demonstram um declínio nas

últimas três décadas em países europeus, o que subsidiou, inclusive, a

descontinuação de programas governamentais em saúde pública de controle da

doença nesses países. O fato, contudo, não ocorreu no Brasil, sobretudo em razão

da manutenção no país de condições desfavoráveis que constituem fatores de risco

para a infecção, como hábitos alimentares e sanitários inadequados e contato com

solo e água contaminados, além da própria virulência do patógeno, sendo ainda

preocupantes as formas graves de toxoplasmose congênita no país63. Não se trata,

ainda, de doença de notificação compulsória, o que dificulta o real dimensionamento

do problema no Brasil.

O diagnóstico materno é sorológico e o rastreamento durante a gravidez

deveria ser sistemático, permitindo-se o diagnóstico precoce da infecção aguda e o

tratamento intrauterino. Este é realizado com drogas de baixo custo, que podem

reduzir a taxa de transmissão vertical e alterar a história natural do

comprometimento fetal – mesmo em países em que o screening sistemático e o

tratamento não são rotineiros –, reduzindo a incidência de formas graves da doença

fetal e de sequelas permanentes, que influenciam o prognóstico da infecção

congênita64.

A rubéola congênita é doença viral cujo patógeno foi o primeiro vírus

teratogênico descrito, com elevado índice de acometimento fetal quando a infecção

materna ocorre no primeiro trimestre da gravidez e especial e potencialmente grave

quando adquirida nas primeiras oito semanas, em que o risco de malformações

62 Andrade GMQ, Tonelli E, Oréfice F. Toxoplasmose congênita, In: Couto JCF, Andrade GMQ, Tonelli E. Infecções perinatais. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. p. 471-492.

63 Avelino MM, Amaral WN, Rodrigues IM, Rassi AR, Gomes MB, Costa TL, Castro AM. Congenital toxoplasmosis and prenatal care state programs. BMC Infect Dis. 2014; 18; 14:33.

64 Olariu TR, Press C, Talucod J, Olson K, Montoya JG. Congenital toxoplasmosis in the United States: clinical and serologic findings in infants born to mothers treated during pregnancy. Parasite. 2019; 26:13.

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congênitas fetais é bastante elevado 65 . A síndrome da rubéola congênita é

representada classicamente pela tríade surdez, cardiopatia (persistência do canal

arterial, estenose do infundíbulo da artéria pulmonar, coarctação da aorta e defeitos

dos septos interatrial e interventricular) e catarata bilateral. Outras manifestações

descritas são retinopatia, microcefalia, microftalmia, meningoencefalite e lesões

ósseas.

O diagnóstico clínico materno da rubéola pode ser difícil nos períodos

interepidêmicos com gestantes oligossintomáticas, sendo o screening sorológico

laboratorial precoce fundamental para o diagnóstico. Trata-se de doença de

notificação compulsória e o diagnóstico da infecção fetal é realizado por meio da

técnica de PCR (reação em cadeia da polimerase) do líquido amniótico, sendo

inespecíficos os achados ultrassonográficos.

Não há tratamento eficaz específico para a rubéola congênita, sendo a

vacinação – universal das crianças e de mulheres em idade fértil – o único método

efetivo para seu controle e prevenção. Dados do Ministério da Saúde comprovam a

eficácia do programa de vacinação no país, que recebeu, em 2015, o documento da

verificação da eliminação da rubéola e da síndrome da rubéola congênita da

Organização Panamericana da Saúde (OPAS)66.

A citomegalovirose congênita é doença causada por vírus da família

Herpesviridae considerado o mais comum agente patogênico causador de infecção

congênita no homem, com uma prevalência estimada de 1 a cada 200 nascidos

vivos67, e uma das principais causas de surdez e comprometimento neuropsicomotor

na infância. Outras manifestações clínicas da infecção congênita são prematuridade,

65 Yazigi A, De Pecoulas AE, Vauloup-Fellous C, Grangeot-Keros L, Ayoubi JM, Picone O. Fetal and neonatal abnormalities due to congenital rubella syndrome: a review of literature. J Matern Fetal Neonatal Med. 2017; 30(3): 274-278. 66 Desde janeiro de 2009 o Brasil não apresenta casos confirmados de rubéola, sendo que 96,7% da população foi vacinada em 2008 em grande campanha nacional de vacinação de bloqueio. Em 2014, um caso foi identificado e confirmado em um tripulante de navio proveniente das Filipinas, tendo sido realizada vigilância epidemiológica e bloqueio vacinal eficaz em todos os contatos e demais tripulantes. Fonte: Ministério da Saúde. Disponível em: http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/rubeola [acesso 08 set 2019].

67 Muldoon KM, Boppana SB, Spytek KH, Fowler KB. Maternal cytomegalovirus infection and fetal impairment: uncertainty remains. Clin Infect Dis. 2019; 15. pii: ciz400.

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hepatoesplenomegalia, microcefalia, lesões cutâneas, calcificações cranianas,

convulsões e pneumonite68.

A soroprevalência na citomegalovirose é muito variável em distintas

populações e estudos já demonstraram positividade sorológica de mais de 90% em

mulheres em idade reprodutiva e de baixos níveis socioeconômico e

educacional 69 , 70 . O diagnóstico materno é sorológico, sendo o rastreamento

laboratorial de rotina discutido para gestantes de risco, mas não determinado de

forma sistemática, regular e universal em programas de saúde pública; tampouco é

recomendado o uso rotineiro de imunoglobulina profilática. Isso porque, a despeito

de eventual diagnóstico da infecção aguda materna, a detecção do vírus no líquido

amniótico não é capaz de avaliar a gravidade da infecção fetal, além do fato de que

não há tratamento fetal clara e comprovadamente eficaz, tampouco diretrizes

universalizáveis definidas para a abordagem terapêutica71.

Já no caso do herpes vírus, a infecção materno-fetal pode ocorrer pelas vias

intrauterina (transplacentária ou por via ascendente proveniente do colo uterino),

perinatal ou pós-natal, sendo a expressiva maioria de transmissão durante o parto,

quando há lesão genital herpética materna em atividade, especialmente no colo

uterino. A tríade de lesões características da infecção viral congênita compreende

vesículas cutâneas, dano ocular e lesões diversas no sistema nervoso central72.

Por fim, a sífilis congênita é doença bacteriana causada pelo Treponema

pallidum, adquirida de uma gestante infectada em qualquer fase da gravidez, por via

transplacentária ou à ocasião do parto. Tratando-se a sífilis de doença sexualmente

transmissível, é prevenível e evitável por meio de um pré-natal adequado com

orientações claras sobre as formas de contágio, realização de testes de triagem

sorológica (VDRL) e tratamento oportuno da gestante e do parceiro com penicilina,

68 Mussi-Pinhata MM, Yamamoto AY. Citomegalovirose congênita. In: Couto JCF, Andrade GMQ, Tonelli E. Infecções perinatais. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. p. 187.

69 Lantos PM, Hoffman K, Permar SR, Jackson P, Hughes BL, Swamy GK. Geographic Disparities in Cytomegalovirus Infection During Pregnancy. J Pediatric Infect Dis Soc. 2017; 6(3): e55-e61.

70 Cannon MJ. Congenital cytomegalovirus (CMV) epidemiology and awareness. J Clin Virol. 2009; 46 Suppl 4:S6-10.

71 Rawlinson WD, Boppana SB, Fowler KB, Kimberlin DW, Lazzarotto T, Alain S, et al. Congenital cytomegalovirus infection in pregnancy and the neonate: consensus recommendations for prevention, diagnosis, and therapy. Lancet Infect Dis. 2017; 17(6): e177-e188.

72 Purewal R, Costello L, Garlapati S, Mitra S, Mitchell M, Moffett KS. Congenital Herpes Simplex Virus in the Newborn: A Diagnostic Dilemma. J Pediatric Infect Dis Soc. 2016; 5(3): e21-3.

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droga de baixo custo e facilmente disponível. Por tais razões, a sífilis congênita é

considerada um “evento sentinela” preditor da qualidade do cuidado pre-natal73. E a

despeito da relativa facilidade do diagnóstico e do tratamento, dados estatísticos que

quantificam índices de sífilis gestacional e congênita no Brasil ainda são alarmantes

e se mostram crescentes nos últimos anos74.

A doença é causa de morte no período pré-natal – com abortamentos

espontâneos –, e pós-natal precoce, além de prematuridade. Se a gestante tem

doença sintomática tanto nas fases primária quanto secundária da doença, as taxas

de transmissão vertical são elevadas e podem ultrapassar 90%. As principais

manifestações clínicas no recém-nascido com sífilis congênita precoce são

potencialmente graves e incluem lesões ósseas e mucocutâneas, anemia, icterícia,

hepatoesplenomegalia, linfadenomegalia e leptomeningite sifilítica. Já a sífilis

congênita tardia manifesta-se especialmente com anormalidades dentárias (dentes

de Hutchinson, com alteração na forma e tamanho dentários), lesões oculares, rinite,

surdez e lesões osteoarticulares.

A infecção congênita pelo vírus Zika, por ter fundamentado o ajuizamento de

demanda perante o Supremo Tribunal Federal, será analisada em tópico próprio.

73 Bezerra MLMB, Fernandes FECV, de Oliveira Nunes JP, de Araújo Baltar SLSM, Randau KP. Congenital Syphilis as a Measure of Maternal and Child Healthcare, Brazil. Emerg Infect Dis. 2019; 25(8): 1469-1476.

74 Milanez H. Syphilis in Pregnancy and Congenital Syphilis: Why Can We not yet Face This Problem? Rev Bras Ginecol Obstet. 2016; 38(9): 425-427.

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2 AS RELAÇÕES MÉDICO-PACIENTE E MATERNO-FILIAL DIANTE DA

DESCOBERTA DE UMA ANOMALIA FETAL

Analisados os principais grupos de malformações congênitas, em frequência

e gravidade, bem como os métodos diagnósticos habitualmente utilizados na

Medicina Fetal para se constatar a doença ainda no período pré-natal, torna-se

fundamental perquirir sobre os meios de comunicação de uma má notícia à família e

a relação materno-filial que se institui diante do diagnóstico. Isso porque a forma de

elaboração da notícia pela mãe e a eventualidade de sua opção pela interrupção da

gravidez poderão ser diretamente influenciadas pelo modo como o fato lhe foi

comunicado pela equipe médica75.

A relação médico-paciente, pilar do cuidado médico e merecedora de grande

atenção, abandonou a assimetria e a verticalidade para se tornar horizontal e

privilegiar o paciente como sujeito autônomo de seu processo terapêutico e das

decisões a serem tomadas, que são compartilhadas76. Tem natureza jurídica de

negócio jurídico bilateral e é uma relação contratual, ainda que considerada especial

por envolver direitos personalíssimos e elaborada na forma de um contrato intuitu

personae, em que a pessoa do contratante é fundamental e exerce decisiva

influência no consentimento da outra parte. Sendo uma relação contratual, os

princípios da boa-fé objetiva e da liberdade contratual a ela se aplicam, sendo que o

75 Guerra FAR, Mirlesse V, Baião AER. Breaking bad news during prenatal care: a challenge to be tackled. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2011; 16 (5), p. 2361-2367. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011000500002.

76 A Medicina, foi, por muito tempo, paternalista, preponderantemente familiar e domiciliar e era exercida pelo médico que cuidava de todos os membros de uma mesma família, sem quaisquer questionamentos por parte do paciente, sem desconfiança e até mesmo com um certo temor reverencial e irrestrita confiabilidade. Com a evolução técnico-científica e a partir da especialização da ciência médica, bem como com o surgimento de novos atores nessa relação, como planos de saúde e grandes hospitais, esse distanciamento de uma relação familiar passou a ser observado e a verticalização e unilateralidade do cuidado médico cedeu lugar a uma relação mais horizontalizada e bilateral. A relação médico-paciente se impessoaliza, o direito consumerista passa a ser aplicado à Medicina e a relação personalíssima toma ares de uma prestação de serviços. Os pacientes também mudaram e “a medicina hospitalar passou a ser dirigida aos consumidores” [Souza, IA. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth) e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014. p. 9].

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primeiro impõe aos contratantes deveres anexos de proteção, cooperação,

confiança, informação e lealdade a guiarem seu comportamento77.

A despeito da natureza do vínculo jurídico que se forma entre o médico e o

paciente, o fato é que ele ultrapassa um viés puramente obrigacional para abarcar

uma relação que deve se pautar pela confiança e pela segurança, que apenas

podem ser garantidas se também o for a busca pela autodeterminação e

subjetividade, para que o paciente possa manifestar sua vontade livre, consciente,

isenta de quaisquer coações e após amplo esclarecimento78.

É o paciente o principal sujeito dessa relação baseada em seu consentimento

livre e esclarecido, que, por sua vez, fundamenta o dever de informação do médico.

O médico tem o dever de informar, de esclarecer todas as especificidades do caso

e, em consequência, de manter o sigilo sobre as informações obtidas no exercício

de sua profissão. A comunicação, portanto, é um dos mais basilares aspectos nesse

contexto, por ser elemento fundamental das relações humanas.

Durante a gravidez, período de transição pleno de significados distintos na

vida da mulher, a ambivalência de sentimentos já é uma constante; “a gestante

deseja a crianca, ao mesmo tempo em que a rejeita e teme”79, segundo Antônio

Carlos Vieira Cabral. Se a gravidez é cercada de riscos e da notícia de uma doença

fetal, o medo e a ansiedade são potencializados.

A comunicação à gestante de que seu feto é portador de uma anomalia

congênita é fato difícil e delicado, por se enquadrar no que se entende por má

notícia, definida por Robert Buckman como “qualquer informacao que afeta

seriamente e de forma adversa a visão de um indivíduo sobre seu futuro” 80 .

Sentimentos de medo, fracasso e impotência são compartilhados pelo médico e pela

família quando a doença que se comunica é grave e não dispõe de tratamento

curativo.

77 Teixeira ACB, Rodrigues RL. Análise do ordenamento jurídico brasileiro: o conteúdo jurídico do direito fundamental à liberdade no processo de morrer. In: Godinho AM, Leite GS, Dadalto L. Tratado brasileiro sobre o direito fundamental à morte digna. São Paulo: Almedina, 2017. p. 363-386.

78 Milagres MO. Proteção da confiança nas relações médicas. Revista de Direito Privado. 2010; 44: 298-308.

79 Cabral ACV. Medicina Fetal: o feto como paciente. Belo Horizonte: Coopmed, 2005. p. 295.

80 Buckman R. Breaking bad news: a guide for health care professionals. Baltimore: Johns Hopkins University Press. 1992. p. 15.

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A gravidez é um período marcado de expectativas para o futuro de um projeto

idealizado de parentalidade, que se frustra e é abalado diante da notícia de que o

feto é portador de uma anomalia congênita. Não se trata, contudo, de um símbolo

harmonioso de fecundidade e plenitude, mas de um período de extrema

complexidade e ambivalências, com diversidade de sentimentos e repleto de

fragilidades.

Muito antes da concepção, o bebê já existe para a mulher, que se imagina

mãe e constrói uma imagem de seu futuro filho e de sua família, após a chegada da

criança. Trata-se do filho idealizado, esperado e perfeito, que, após um processo de

luto inaugurado pela notícia da anomalia fetal, será substituído pelo filho real e

imperfeito que talvez nem venha a nascer. Inicia-se um conflito entre a criança

imaginária e a que está presente no útero, que por vezes é rejeitada por não

corresponder exatamente à desejada81.

É inegável o sofrimento acarretado aos pais, pois o luto não faz parte do

curso normal e esperado de uma gravidez. “O sentimento e de traicao: ao inves de

preparar um enxoval e o batizado, planeja-se um funeral”82, ressalta Antônio Carlos

Vieira Cabral.

Assim, a ideia de que o casal vai receber um filho que se mostra diferente

daquele esperado e por eles idealizado pode representar, ainda que

momentaneamente, a quebra de expectativas legítimas, a vivência do luto pela

perda irreparável do filho imaginário, a culpa por gerar um filho malformado e o

temor das dificuldades inerentes à criação de uma criança com deficiências.

Sentimentos e reações vivenciados pelo casal perpassam o choque, a descrença e

a negação, a frustração, a raiva, a culpa e até mesmo a irritabilidade direcionada ao

médico portador da má notícia, em um primeiro momento.

A súbita quebra das expectativas de uma gravidez desejada e sua

substituição pelos sentimentos antagônicos citados geram na mãe reações e

condutas também ambivalentes: ora querendo proteger, ora rejeitando o filho, ela

81 Berti SM. Responsabilidade civil pela conduta da mulher durante a gravidez. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 21

82 Cabral ACV. Medicina Fetal: o feto como paciente. Belo Horizonte: Coopmed, 2005. p. 297.

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questiona a possibilidade de não prosseguir com a gestação e se culpa também por

tal pensamento83.

Os mesmos estudos que mostram que os médicos são pouco preparados, em

sua formação acadêmica, para a comunicação de más notícias, demonstram que

pacientes guardam memórias negativas do momento em que recebem a notícia, não

apenas por seu teor, mas pela forma como ela é transmitida, com inabilidade e

insensibilidade84,85. Quem recebe uma notícia traumática muito dificilmente esquece

as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o fato ocorreu86. A pressa e a falta

de privacidade no momento da comunicação também são relatadas como fatores

que influenciam negativamente a percepção das famílias quanto à equipe de saúde,

prejudicando a higidez da relação médico-paciente e a metabolização da informação

pelos atingidos87.

Para minimizar tais repercussões negativas, protocolos de orientação foram

desenvolvidos com vistas à orientação da equipe de saúde sobre comunicações de

más notícias. O mais conhecido foi publicado em 1992 por Buckman e é

denominado protocolo Spikes, termo que representa um acrônimo em inglês das

seis etapas a serem observadas: setting up, perception, invitation, knowledge,

emotions e strategy/summary88 ,89,90 . A primeira etapa é a abordagem inicial do

paciente e a forma como o profissional prepara o ambiente, preservando o sigilo e a

privacidade e visando acolher e amparar. A segunda preconiza que se analise a

concepção e a percepção do sujeito sobre sua própria condição de saúde e suas

possibilidades futuras. Na terceira fase, deve-se analisar o quanto o indivíduo deseja

83 Statham H, Solomou W, Chitty L. Prenatal diagnosis of fetal abnormality: Psychological effects on women in low-risk pregnancies. Baillère’s Clinical Obstetrics and Gynaecology. 2000; 14(4): 731-747.

84 Guerra FAR, Mirlesse V, Baião AER. Breaking bad news during prenatal care: a challenge to be tackled. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2011; 16 (5), p. 2361-2367. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011000500002.

85 Garwick AW, Patterson J, Bennett FC, Blum RW. Breaking the news: how families first learn about their child’s chronic condition. Arch Pediatr Adolesc Med. 1995; 149(9): 991-997.

86 Almanza-Muños MJJ, Holland CJ. La comunicación de las malas noticias en la relación medico-paciente. III. Guía clínica práctica basada en evidencia 1999; 53(3): 220-224.

87 Fallowfield L, Jenkins V. Communicating sad, bad and difficult news in medicine. The Lancet. 2004; 363(9405): 312-319.

88 Em tradução livre: configuração, percepção, convite, conhecimento, emoções e estratégias/resumo.

89 Buckman R. Breaking bad news: a guide for health care professionals. Baltimore: John Hopkins University Press 1992.

90 Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Beale EA, Kudelka AP. SPIKES - A six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. Oncologist. 2000;5(4): 302–311.

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saber sobre sua doença e, em sequência, a quarta etapa é a notícia propriamente

dita, que deve ser transmitida com linguagem compreensível para o paciente, de

forma realista, empática e afável. A partir da recepção da notícia, o médico deverá

amparar as emoções do paciente, qualquer que seja sua reação. E a sexta e última

fase refere-se às estratégias que podem ser adotadas para conduzir o tratamento do

paciente e minimizar a dor, o receio e a ansiedade que a notícia provoca.

Uma das etapas mais difíceis para o médico é a quinta fase do protocolo

Spikes, quando ele deve amparar as mais diversas reações emocionais do paciente

e coaduná-las com suas próprias emoções. Não é raro que o paciente desenvolva

reações de raiva direcionadas contra o médico, portador da má notícia, e passe a

enxergá-lo, ao menos em um momento inicial, como um traidor e não como um

aliado91. Para minimizar tal reação, a empatia, a verdade e a linguagem utilizada são

fundamentais, pois deve-se certificar que o paciente compreendeu a doença para

participar do processo compartilhado de tomada de decisões.

A linguagem adotada pelo médico também pode influenciar a ideia da mãe

sobre interromper ou manter a gestação. O processo de compreensão da gestante

sobre os fatos é dinâmico e não ocorre fora de seu horizonte histórico de vivências e

crenças; a conexão entre tal percepção histórica e a realidade vivida no presente é

mediada pela linguagem. As próprias falas e prescrições do médico se modificam a

partir da interpretação que delas é feita pelo paciente.

Termos como “doenca letal” e “incompativel com a vida” tem sido proscritos

do aconselhamento médico, por terem o condão de influenciar a gestante, nela

incutindo a ideia de que “se a morte e certa, nenhuma escolha me resta”. E a opcao

pela adoção de cuidados paliativos é sempre uma escolha de algo que ainda se

pode fazer para propiciar conforto e dignidade na morte e nos momentos que a

circundam.

Ao assim considerar, a gestante e a família vivenciam um luto do filho

imaginado, acreditando que a morte ocorrerá no ambiente intrauterino. Se a criança

nasce viva e sobrevive, por exemplo, por alguns meses, alguns desfechos se

91 Lino CA, Augusto KL, Oliveira RAS de, Feitosa LB, Caprara A. Uso do Protocolo SPIKES no Ensino de Habilidades em Transmissão de Más Notícias. Rev Bras Educ Med. 2011; 35: 52–57. [acesso 19 mai 2019]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022011000100008&nrm=iso

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mostram possíveis: a mãe pode criar fortes vínculos afetivos com esse filho vivo

deficiente que ela não mais esperava e que necessita de cuidados intensivos e

adicionais e, novamente, vivenciará um segundo luto quando do falecimento da

criança, por vezes ainda mais traumático. Outras vezes, a equipe tanto enfatizou a

probabilidade da morte intrauterina e a letalidade da doença que os pais

anteciparam a vivência do luto e não se prepararam para a sobrevivência, o que

dificulta o vínculo com o filho nascido e pode gerar, inclusive, maior distanciamento

dos familiares e abandono da criança na instituição92.

Os pais devem, portanto, ser informados de todas as situações que eles

poderão vivenciar, como uma provável morte intrauterina ou a sobrevivência por

períodos variáveis e a impossibilidade de se predizer, com certeza, qual será o

resultado dessa gestação e quando ocorrerá a morte do feto ou da criança, ainda

que ela seja certa.

Ainda quanto à forma de comunicar a notícia, é de se ressaltar que a

Medicina adota terminologias próprias que carregam, para o ideário comum e leigo,

noções que não são propriamente adequadas ao que o termo científico significa. É o

caso, a título de mero exemplo, dos termos anemia “perniciosa” ou penfigo “vulgar”,

em que as palavras são adotadas com um significado absolutamente distinto do

corriqueiro. Diz-se isso para demonstrar que a linguagem e o uso das palavras,

mesmo quando adotadas em sentido técnico por quem as profere, têm o condão de

alterar completamente a percepção do destinatário. Quando o médico afirma a

letalidade de uma condição de forma peremptória, ele interfere de forma perigosa no

julgamento da família, predizendo como uma condição médica inexorável algo que,

em verdade, está no âmbito do exercício da autonomia decisória dos pais:

interromper ou não uma gravidez93.

Há gestantes que, mesmo em casos de anomalias fetais graves e

habitualmente tidas por letais, optam por vivenciar a gestação até seu termo; se a

criança nasce viva, deve-se garantir, inclusive, que os pais tenham um contato

92 Rini A, Loriz L. Anticipatory mourning in parents with a child who dies while hospitalized. Journal of Pediatric Nursing. 2007; 22(4): 272-282.

93 Koogler TK, Wilfond BS, Ross LF. Lethal language, lethal decisions. The Hastings Center Report. 2003; 33(2): 37-41.

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amoroso e sereno com seu filho, durante o tempo que ele viver. Os cuidados

paliativos se tornam essa sede de respeito e cuidado94.

Outro ponto relevante diz respeito à comunicação e à tomada de decisão para

a realização de um exame invasivo visando a um diagnóstico genético. No

aconselhamento genético, a informação e a comunicação são fundamentais,

constituindo fases do próprio procedimento. Há casos em que a gestante opta por

não realizar uma amniocentese, justamente em razão do fato de que a antecipação

do diagnóstico frequentemente não é acompanhada de uma efetiva possibilidade

terapêutica. Se não há tratamento, há mulheres que preferem não realizar o exame

invasivo e não saber o diagnóstico preciso da condição de seu feto.

Nesse ponto, posicionamentos divergentes quanto à importância da

informação se estabelecem: o médico entende fundamental a realização precoce do

diagnóstico, até mesmo para que a família se prepare para receber uma criança com

necessidades especiais. Tal preparação psíquica pode não ter o mesmo sentido

para a mulher, que pode preferir não se submeter a exame invasivo de risco – que

inclui o risco psicológico de enfrentar o diagnóstico, bem como a negação de sua

condição95. A própria percepção de uma situação de risco depende do contexto

social e das experiências de cada indivíduo. Os exames diagnósticos acabam não

tendo, nesses casos, um sentido de tranquilização e preparo, mas de risco e

estresse adicionais.

O direito de não saber também faz parte do aconselhamento e da relação

médico-paciente. A opção de não se submeter a exame invasivo pode ser uma

escolha difícil para a gestante, que vivencia a dúvida e a incerteza junto ao medo e à

desilusão pela possibilidade do diagnóstico de uma condição não desejada.

O momento do parto é também angustiante e ansiogênico, pois pode ser a

hora de trazer o bebê à morte. Antônio Carlos Cabral relata o caso de uma mãe que

94 A médica obstetra Quésia Tamara Mirante Villamil redigiu obra relatando sua experiência entre o diagnóstico da ancenfalia de sua filha e o nascimento da criança Esther, que viveu 40 minutos, bem como sua opção pela manutenção da gravidez até o termo final. (Villamil QTM. Os últimos quatro meses: diário da gravidez de um bebê com anencefalia. 2012: Folium, 237 p.).

95 Corrêa MCDV, Guilam MCR. O discurso do risco e o aconselhamento genético pré-natal. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2006; 22(10): 2141-2149. [acesso 17 jun 2019]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006001000020&lng=en.

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afirmou: “se eu pudesse, ficaria com ele na barriga para sempre, porque aqui eu sei

que ele vive”96.

No período pós-parto, é importante respeitar a decisão da mulher de ver ou

não o filho morto, embora a primeira opção seja relevante para a elaboração do luto

e aceitação do fato. A família deve ser orientada quanto a essa importância e

também esclarecida sobre a possibilidade de realização de necropsia clínica para

elucidação da doença, confirmação dos achados diagnosticados pela

ultrassonografia obstétrica e até mesmo acréscimo de dados anteriormente não

detectados em exames de imagem. Tratando-se, contudo, de necropsia clínica e

não forense ou médico-legal, é obrigatória a autorização dos familiares por meio de

termo de consentimento livre e esclarecido. Realizada a necropsia clínica, a

declaração de óbito será emitida pelo médico patologista, em casos de exames de

neomortos ou natimortos com idade gestacional igual ou superior a 20 semanas ou

feto com peso corporal igual ou superior a 500 (quinhentos) gramas e/ou estatura

igual ou superior a 25 cm97.

No período neonatal, se a criança mantém-se viva por variáveis períodos de

tempo, mas o prognóstico indica que a morte ocorrerá brevemente, é necessário que

a família seja amparada e orientada sobre os cuidados paliativos – a serem

desenvolvidos em tópico próprio neste estudo.

Nessa fase, considerando-se sobretudo a impossibilidade de exercício da

autonomia pelo direto titular desse direito – o recém-nascido –, a doença pode

configurar ameaça à autodeterminação, facilitando o exercício do paternalismo e de

uma superproteção por parte dos profissionais de saúde98, sem que a família seja

devidamente ouvida sobre seus desejos quanto ao período de fim de vida da

criança.

96 Cabral ACV. Medicina Fetal: o feto como paciente. Belo Horizonte: Coopmed, 2005. p. 298.

97 A Resolução n. 1.779 do Conselho Federal de Medicina, de 05 de dezembro de 2005, regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento da Declaração de Óbito e determina a atribuição do médico que prestou assistência à mãe para emitir o documento em mortes fetais, nas hipóteses citadas no texto. Tendo sido realizada uma necropsia clínica, contudo – para fins de esclarecimento diagnóstico, melhor elucidação de anomalias ou de mecanismos causadores da morte –, é o médico patologista que emitirá o documento, após a realização de exame cadavérico completo. Laudo necroscópico emitido após estudos complementares finaliza o processo.

98 Kovács MJ. O papel do psicólogo diante de situações terminais. In: Teixeira ACB, Dadalto L. Dos hospitais aos tribunais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013: p. 395.

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É importante valorizar a subjetividade e a maneira como os pais vivenciam a

preparação para a morte do filho com empatia. A morte digna – ou a ausência de

sua possibilidade, em países onde a autonomia não é pautada como preceito

fundamental nas relações médicas – é tema que merece reflexão no âmbito deste

trabalho.

Quando a gestante optar por interromper a gravidez – sendo ou não

necessário obter um alvará judicial, a depender do caso e do ordenamento jurídico –

a atitude da equipe multidisciplinar também deve ser de isenção moral, compaixão,

acolhimento e respeito, pois a decisão pelo aborto não é definitivamente um ato

banal e é também acompanhada de muita dor e sofrimento da gestante. O

bioeticista portugues Rui Nunes relembra que, nao obstante, “o médico deve poder

sempre fazer apelo ao seu legítimo direito à objeção de consciência, providenciando

o atendimento subsequente da mulher gestante por um clínico que subscreva esta

prática”99.

E, por mais que o casal, mãe e pai, sejam ambos afetados negativa e

pessoalmente pela notícia da malformação fetal, a primazia dos efeitos ora

debatidos na decisão pela interrupção da gestação recai sobre a gestante. O

assunto é espinhoso e certamente não se pretende excluir a contribuição masculina

sobre a questão, pois a reprodução deve ser pensada sob o âmbito relacional e não

como responsabilidade da mulher. Há vozes, contudo, que entendem que inserir o

homem no debate poderia deslocar ou silenciar a questão feminina, além de retirar

da mulher sua pièce de résistance100.

O fato é que as experiências vividas no aborto não são simétricas entre

homens e mulheres, especialmente as complicações legais e as circunstâncias

médico-biológicas corporais. Em estudo antropológico sobre o lugar dos discursos

feminino e masculino sobre o aborto voluntário, Martha Celia Ramírez afirma:

99 Nunes RML. Questões éticas do diagnóstico pré-natal da doença genética. Tese [Doutorado]. Porto: Faculdade de Medicina do Porto; 1995. p. 230.

100 Ramírez-Gálvez MC. Os impasses do corpo: ausências e preeminências de homens e mulheres no caso do aborto voluntário. Dissertação [Mestrado]. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas; 1999. p. 84-85.

O termo pièce de résistance não foi traduzido pela autora e tampouco o será neste trabalho, pela inexistência de expressão na língua portuguesa que denote o real significado da expressão francesa utilizada em debates feministas; relaciona-se à centralidade da mulher no ato reprodutivo e no evento do nascimento.

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“O debate acerca do aborto envolve questoes no plano da ordem politica e do poder, uma vez que sua descriminacao permitiria desligar as mulheres da teleologia propria das funcoes reprodutivas, colocando em discussao o sentido da maternidade como uma escolha pessoal e nao como destino natural. Introduzir a perspectiva masculina na discussao sobre o aborto torna mais complexo o debate sobre os direitos reprodutivos do que ja e, porque nao e possivel ignorar o contexto politico em que ele surge: a reivindicacao pela autonomia corporal e, portanto, a livre escolha, como condicao para a autodeterminacao e cidadania das mulheres”.101

A questão acrescenta um complicador ao âmbito da relação médico-paciente,

pois a equipe de saúde também precisará lidar com eventuais relações de poder

existentes entre gestante e o pai da criança e divergências de opinião entre eles no

tocante à continuação da gestação. A isenção na abordagem será a tônica da

relação médico-paciente, embora a prudência e a atenção sejam necessárias para

se avaliar a existência de coação da mulher ou alguma espécie de violência de

gênero.

Após o óbito do feto ou do recém-nascido, o cuidado com a elaboração do

luto e a compreensão do ocorrido é fundamental, sendo importante a marcação de

uma consulta de retorno com os pais para informação e esclarecimento de eventuais

dúvidas. A percepção dos pais de uma atitude acolhedora, empática e afetiva da

equipe de saúde durante a doença e a morte da criança tem sido correlacionada à

diminuição da intensidade do luto parental, tanto logo após a morte quanto em maior

prazo102. Ainda nesse momento de elaboração do luto, os pais costumam buscar

amparo no sentido de confirmar que as decisões foram tomadas corretamente e que

nenhum outro plano de ação poderia ter alterado o desfecho e a evolução da doença

da criança103. Buscam também informações sobre risco de reincidência e formas de

prevenção dos acontecimentos em novas gestações, ganhando relevo o

aconselhamento genético por equipe especializada.

101 Ramírez MC. A propriedade do corpo. O lugar da diferença nos discursos de homens e mulheres acerca do aborto voluntário. Cadernos Pagu. 2000; 15: 297-335.

102 Meert KL, Thurston CS, Thomas R. Parental coping and bereavement outcome after the death of a child in the pediatric intensive care unit. Pediatr Crit Care Med. 2001; 2:324-328.

103 Meert KL, Eggly S, Pollack M, Anand KJS, Zimmerman J, Carcillo J, et al. Parents' perspectives regarding a physician-parent conference after their child's death in the pediatric intensive care unit. J Pediatr. 2007; 151(1): 50-55.

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É fundamental, portanto, que a equipe de saúde esteja preparada para

fornecer amparo e suporte emocional à família, com acompanhamento

multiprofissional, abordagem psicológica e de assistência social, incluindo também o

acompanhamento genético e de planejamento familiar para gestações futuras. Por

vezes, a mãe deseja uma nova gravidez, mas acaba por rechaçar a possibilidade

pelo temor que a experiência se repita.

Um ambiente acolhedor multidisciplinar em que a gestante possa ser ouvida,

amparada e orientada é de suma importância.

Dilemas éticos envolvendo a relação médico-paciente são comuns, sobretudo

no tocante à temática da morte digna em crianças. Nesse potencial conflito de

interesses, a busca pela melhor conduta deve ser orientada pela relação dialógica

entre todos os atores e clara definição dos objetivos de cuidados e dos valores e

expectativas da família. Deve-se buscar um consenso e, em caso de persistência

das divergências e conflitos éticos, a comissão de ética da instituição e o Conselho

Regional de Medicina devem ser consultados.

Prudência é uma característica norteadora da busca da melhor solução que

contemple o contexto da família e lealdade ao paciente também é fundamental na

construção de uma relação de confiança, não havendo propriamente decisões

universalmente corretas, mas prudentes quando ao conteúdo e à informação.

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Título III: A ABORDAGEM JURÍDICA E BIOÉTICA DAS MALFORMAÇÕES

CONGÊNITAS FETAIS

Onde estará o ainda sujeito, quando lhe é progressivamente dissociado o corpo,

tratado cada vez mais como uma coisa e cada vez menos em relação com a pessoa?104

Analisada a abordagem médica das malformações congênitas fetais sob os

âmbitos obstétrico e neonatal, pretende-se, neste Título, demonstrar o tratamento

jurídico atribuído ao feto e ao recém-nascido malformado no Direito brasileiro. A

reflexão proposta visa analisar o tema também sob o prisma da Bioética, buscando

fornecer elementos para a atuação médica rotineira e, sobretudo, para a devida

compreensão do ordenamento jurídico vigente e interpretação argumentativa e

evolutiva das normas105.

1 ABORTO SELETIVO, ABORTO EUGÊNICO OU ANTECIPAÇÃO

TERAPÊUTICA DO PARTO?

O aborto é um dos temas de maior repercussão jurídica e discussão bioética

no Brasil e no mundo, não constituindo, todavia, matéria de fácil e simples

abordagem acadêmica e social, dada a dificuldade de se estabelecer consensos

frente a posições morais distintas, repletas de tensões argumentativas e

frequentemente fundadas em bases eminentemente religiosas, de sacralidade e

104 Ost F. A natureza à margem da lei. A ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 95.

105 A interpretação evolutiva da norma jurídica, também chamada adaptativa ou progressiva, é uma forma de exegese que visa evidenciar o real significado legal e coaduná-lo à evolução social e às transformações científica e jurídica. Luís Roberto Barroso, em conferência proferida em Poitiers, na Franca, em 2010, afirmou que, “uma vez posta em vigor, a lei se liberta da vontade subjetiva que a criou e passa a ter uma existência objetiva, autônoma, que permite que ela se adapte à realidade, dentro das possibilidades semânticas do seu texto”. Barroso, LR. Transformações da interpretação constitucional nos países de tradição romano-germânica. Poitiers, fevereiro de 2010.

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intangibilidade da vida humana106. A questão moral relacionada ao aborto é histórica

e não pode ser debatida sem se considerar os diferentes posicionamentos éticos na

abordagem médica e as variações socioculturais envolvidas.

O diploma legal que regulamenta a matéria é o Código Penal Brasileiro

(CPB), Decreto-lei n. 2.848 de 7 de dezembro de 1940107, editado segundo os

costumes dominantes na década de 1930, que tipifica a conduta como crime nos

artigos 124 a 126. Trata-se dos tipos penais do aborto provocado pela própria

gestante, do aborto consentido – quando o agente da conduta é um terceiro, que a

realiza com o consentimento da gestante – e do aborto sofrido, também provocado

por outra pessoa, porém sem o consentimento da mãe. As condutas são

qualificadas se sobrevém a morte da gestante ou se, em razão do ato, ela sofre

qualquer lesão corporal de natureza grave, situações em que a pena atribuída ao

sujeito ativo do crime é majorada.

Por outro lado, o CPB admite o aborto em duas situações especiais em que

se aplicam causas excludentes de ilicitude aptas a amparar a interrupção médica da

gestação, descritas nos incisos do artigo 128: quando há risco iminente de morte

materna e quando a gestação é decorrente de estupro; não previu o legislador, à

época, outras hipóteses em que a cessação da gravidez poderia ser licitamente

considerada.

Contudo, nos quase 80 anos passados após a publicação do CPB, não há

como negar o relativo anacronismo social e até mesmo ético de parte de seus

dispositivos atualmente em vigor. Embora diversas alterações legislativas tenham

sido promovidas na lei penal, especialmente em suas proposições gerais a partir de

1984, pouco se alterou no capítulo dos crimes contra a vida. No mesmo período, os

valores da sociedade se modificaram de forma significativa e, muito mais

rapidamente, a ciência e a tecnologia evoluíram, de modo a promover uma

106 Gazzola LPL. Aborto legal no Brasil sob a perspectiva da Bioética. In: Fernandes EG, Brito LSL. Direito e Medicina em dueto: grandes temas de direito médico. Belo Horizonte: Coopmed; 2018. p. 63.

107 Brasil. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. [acesso em 26 abr 2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm

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verdadeira revolução no conhecimento médico, amparando questionamentos acerca

de novas possibilidades de interrupção da gravidez108.

Segundo Claudio Macedo, “o significado da norma penal e concebido

culturalmente” 109 , sendo um produto objetivado configurado por influências de

questões históricas, sociais e culturais, concretizando a relação do dever-ser com o

ser e, assim, como os demais ramos do Direito, carecendo de interpretação.

Por outro lado, o Direito Penal, pela gravidade que emprega na repressão das

condutas e intervenção drástica nos direitos mais elementares, rege-se pelo

princípio da legalidade estrita ou da reserva legal, de modo de que não pode haver

crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal110, sendo

que qualquer interpretação normativa para a aplicação concreta da lei penal deve se

amparar nesse princípio.

Tal ideia também fundamenta a impossibilidade de se utilizar a analogia como

forma de suprir lacunas no texto legal, para criar normas incriminadoras, e nas

situações excepcionais. Ou seja, em hipóteses não contempladas pelas normas de

exceção – e são assim consideradas as que dispõem sobre a permissão do aborto

legal – não se admite a aplicação de analogia, pois o que não está abarcado pela

exceção é tratado pela norma geral.

Carlos Maximiliano há muito afirma que o direito excepcional deve ser

interpretado de forma estrita, que não dilata o significado da norma para abranger

outras circunstâncias nao previstas, porque “resulta de motivos ou consideracoes

particulares, contra outras normas juridicas ou contra o direito comum” 111. Ainda,

ressalta o autor que “nao se aplica uma norma juridica senao a ordem de coisas

para a qual foi estabelecida”112 e, sobretudo quando tal norma é excepcional, o

108 Gazzola LPL. Aborto legal no Brasil sob a perspectiva da Bioética. In: Fernandes EG, Brito LSL. Direito e Medicina em dueto: grandes temas de direito médico. Belo Horizonte: Coopmed; 2018. p. 64.

109 Macedo C. Direito Penal no Mercosul: uma metodologia de harmonização. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. p. 46-47.

110 Bitencourt CR. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 13a ed. São Paulo: Saraiva; 2008. p. 11.

111 Maximiliano C. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 164.

112 Maximiliano C. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 173.

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recurso à analogia é ainda mais claramente vedado: quando o texto legal penal só

encerra exceções, os casos não incluídos entre elas estão sujeitos à norma geral.

Cezar Roberto Bitencourt diferencia a analogia e a interpretação analógica,

que é uma espécie de interpretação extensiva possível, pois decorrente de

determinação expressa na própria lei. O autor afirma que a analogia apenas é

permitida no Direito Penal in bonam partem, eis que não agrava a situação do

infrator. Do contrário, não se permite, em razão do princípio da legalidade, a

analogia para integrar a norma de uma tese incriminadora que ela não prevê. Já a

interpretação analógica – que não é tese integrativa mas sim interpretativa – é

admissível quando a lê expressamente assim determina, não sendo incomum que a

norma penal disponha sobre casos especificados e possibilite sua aplicação a outros

semelhantes113.

Aplicando-se a teoria da interpretação penal às normas que incriminam o

aborto, constata-se que não há expresso permissivo legal para a admissão da

interpretação analógica no tocante às excludentes de ilicitude do aborto descritas

nos incisos do artigo 128 do CPB114. E, tratando-se de normas que excepcionam

uma conduta ilícita, devem ser interpretadas restritivamente, não havendo que se

falar em ampliação integrativa de seu conteúdo por analogia.

Portanto, originalmente, não haveria que se falar na admissibilidade da

permissão de aborto além das duas situações já legalmente previstas pelo CPB,

enquanto causas de exclusão de ilicitude.

Daí advém a necessidade de se debater juridicamente o tema do aborto sob

duas formas, visando à aplicação geral e abstrata – e não casuística – da tese: por

meio de abordagem legislativa, com reforma da lei penal em vigor, ou por

interpretação constitucional dos limites e do âmbito de aplicação da norma penal

pelo órgão jurisdicional apto a tal atribuição, o Supremo Tribunal Federal (STF).

113 Bitencourt CR. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 13a ed. São Paulo: Saraiva; 2008. p.156-159.

114 CPB 1940. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

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Ocorre que, antes que tal entendimento geral, amplo e abstrato fosse

elaborado pelo Poder Legislativo ou por decisão emanada do STF em sede

adequada – a título de exemplo, por meio de ação direta de inconstitucionalidade ou

arguição de descumprimento de preceito fundamental –, os Tribunais estaduais

brasileiros passaram a se deparar com pedidos de autorização para que gestações

fossem interrompidas antes de seu termo final. Isso porque, com a tecnologia então

existente em 1940, não se pensava na possibilidade de se diagnosticar, com certeza

e segurança, anomalias fetais que pudessem ser eventualmente consideradas

incompatíveis com a vida. Era inimaginável para o legislador do CPB prever tal

possibilidade diagnóstica que fornecesse alguma segurança e certeza jurídica.

Contudo, como evidenciado no Título I deste trabalho, a propedêutica fetal evoluiu

sobremaneira nas últimas décadas, sendo hoje possível se diagnosticar

malformações congênitas fetais em que a letalidade fetal é elevada, ainda no

período pré-natal.

Passou-se a discutir, assim, a licitude da interrupção da gestação quando o

feto é portador de malformações congênitas, compatíveis ou não com a vida. E, uma

vez que o Direito Penal não deve permanecer alheio ao dinamismo social e à

evolução jusfilosófica e histórica do pensamento, novas teses surgiram objetivando

diferenciar o aborto criminoso de condutas que não se mostram reprováveis ou

aptas a atrair a incidência de um ramo do Direito que deve ser considerado a ultima

ratio, ou seja, deve atuar de forma mínima e subsidiária.

A transdisciplinaridade da Bioética fornece elementos para que a

problemática seja debatida, facilitando o tratamento da questão na prática. A análise

conceitual do aborto fundamentada na classificação terminológica bioética contribui

para o entendimento do tema.

1.1 Considerações conceituais sobre o aborto e terminologia bioética

A princípio e para fins de conceituação, ressalte-se que a utilização técnica

mais adequada das palavras abortamento e aborto é no sentido de se utilizar a

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primeira para se referir ao ato de se interromper a gestação, enquanto a segunda –

aborto – deveria ser reservada para nomear apenas o produto gestacional expelido.

Apesar de tal consideração etimológica, o Código Penal e a literatura jurídica em

geral utilizam o termo aborto de forma indistinta, sem efetiva diferenciação técnica,

razão pela qual tal nomenclatura será também adotada no presente trabalho,

sobretudo diante do viés jurídico que ora se discute.

Considerando-se a terminologia mais utilizada no discurso médico oficial, bem

como a classificação conceitual seguida por juristas e bioeticistas115, as situações de

abortamento podem ser agrupadas em quatro principais tipos, nos quais se

enquadram condutas ilícitas vedadas pelo ordenamento jurídico e atos legalmente

permitidos, pois abarcados por excludentes especiais de ilicitude.

O primeiro grande grupo é denominado aborto eugênico ou interrupção

eugênica da gestação (IEG) e compreende situações em que a gravidez é

interrompida por motivos efetivamente preconceituosos e fundados em (des)valores

étnicos, sexistas ou racistas.

No grupo nomeado como abortamento necessário, terapêutico ou profilático –

interrupção terapêutica da gestação (ITG) –, tal ocorre por razões de saúde materna,

constituindo verdadeiro estado de necessidade, como causa excludente da ilicitude

penal. Trata-se de situação de urgência médica e não apenas prognóstico de risco

futuro possível à vida da mãe. O risco de morte deve ser provável e concreto e não

meramente possível, abstrato ou estatístico. Transfere-se ao médico, assim, a

decisão pela interrupção, já que se tem uma situação emergencial que excepciona,

inclusive, a obrigatoriedade de obtenção do consentimento informado.

Em terceiro lugar, tem-se a denominada interrupção seletiva da gestação

(ISG), classicamente representada pela cessação voluntária de gestações de fetos

com anomalias congênitas tidas como incompatíveis com a vida, sendo a

anencefalia seu exemplo mais emblemático.

Por fim, tem-se o abortamento voluntário ou interrupção voluntária da

gestação (IVG), ocorrido em nome da autonomia reprodutiva da gestante e/ou do

115 Diniz D; Almeida M. Bioética e aborto. In: Costa SIF, Oselka G; Garrafa V (Coords.). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 125-137.

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casal, sendo esse o grupo em que limites éticos e jurídico-penais, rígidos ou mais

flexíveis, são impostos em grande parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais.

Permite-se, assim, a interrupção precoce da gestação independentemente de

qualquer motivação ou condição patológica específicas, da mãe ou do feto. A

hipótese de gravidez que se segue a estupro é também inserida nessa

subclassificação, pois a interrupção nesse caso é dependente da vontade materna.

Há propostas legislativas em tramitação no Congresso Nacional, que, inclusive, já

obtiveram pareceres favoráveis de representantes da comunidade médica

nacional 116 , acerca da descriminalização do abortamento voluntário quando

realizado nas primeiras 12 semanas de gestação, desde que se comprove, por meio

de entendimento fundamentado de equipe multidisciplinar de saúde, que a gestante

não dispõe de condições pessoais e/ou psicológicas de manter a gestação até seu

termo final.

Em alguns ordenamentos jurídicos, não ocorre a distinção precisa entre a ITG

e a ISG, pois as normas permitem ambos os tipos. Contudo, a diferenciação é

relevante para a Bioetica, que considera ISG aqueles casos em que a “selecao”

ocorreu, por vontade da paciente, em razão de uma anomalia incompatível com a

vida ou que dificulte grandemente a qualidade de vida após o nascimento117. Já na

ITG, a cessação da gravidez ocorre por risco de morte materna, sendo despiciendo,

inclusive, o consentimento da gestante. Trata-se de um protocolo de conduta

médica, em que se opta por salvar a vida da mulher em detrimento de uma futura e

hipotética vida fetal.

Da mesma forma, a ISG deve ser diferenciada da IEG e tal distinção reside,

primordialmente, na potencialidade de vida do feto malformado. Na primeira,

discursa-se a favor da interrupção embasada na letalidade da doença e, algumas

vezes, até mesmo na baixa qualidade de vida, impossibilidade de desenvolvimento e

extrema desinserção social a serem vivenciadas por uma criança com anomalias

muito graves. Na IEG, a anomalia permite a vida com deficiência, a ser

116 Conselho Federal de Medicina (Brasil). Portal Médico [homepage na internet]. CFM esclarece posição a favor da autonomia da mulher no caso de interrupção da gestação. [acesso em 04 jul 2018]. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id= 23663:cfm-esclarece-posicao-a-favor-da-autonomia-da-mulher-no-caso-de-interrupcao-da-gestacao& catid=3:portal

117 Diniz D; Almeida M. Bioética e aborto. In: Costa SIF, Oselka G; Garrafa V (Coords.). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 125-137.

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legitimamente protegida. Ocorre que, como observado no Título I deste trabalho,

algumas anomalias fetais constituem um espectro de doenças em que não há uma

linha nítida que separe, com clara segurança e certeza, os casos letais daqueles que

irão permitir a vida extrauterina, ao menos por algum tempo.

A questão referente à proteção dos direitos das pessoas com deficiência será

desenvolvida em tópico próprio.

1.2 O aborto em anomalias fetais no direito estrangeiro

Em diversos países ocidentais, o aborto por anomalias fetais é permitido, ora

em um contexto amplo de possibilidade de interrupção voluntária da gestação de

modo geral, ora de forma específica em casos de anomalias congênitas graves,

incuráveis e de elevada letalidade. A referência ao direito estrangeiro não visa a uma

análise formal de direito comparado, mas demonstrar modelos de como a questão

vem sendo tratada em diferentes ordenamentos constitucionais, possibilitando o

diálogo com as normas brasileiras.

Na França, o aborto é permitido desde 1975, pela chamada Loi Veil, que

passou a incorporar o Código Sanitário Francês e foi considerada consentânea com

a Convenção Europeia de Direitos Humanos. A interrupção voluntária, àquele

momento, poderia ser feita até a 10a semana de gestação e, em caso de risco à

saúde materna ou anomalia fetal grave e incurável – condições que deveriam ser

atestadas por dois médicos –, poderia ser realizada a qualquer momento, mesmo

após o citado período gestacional118. Em 2001, houve alteração legislativa de modo

a estender o período de permissão de 10 para 12 semanas de gestação.

118 Há alguns artigos no Código de Saúde Pública francês que fundamentam a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez: “Art. 162-1. Uma mulher grávida que está em estado de angústia pode pedir ao médico que interrompa a gravidez. Esta interrupção só pode ser realizada antes do final da décima semana de gravidez. Art. 162-2 - A interrupcao voluntaria da gestacao so pode ser realizada por um medico; Art. 162-12 - A interrupcao voluntaria da gestacao pode, a qualquer momento, ser praticada se dois medicos atestarem, depois de exame e discussao, que o prosseguimento da gravidez coloca em perigo grave a saude da mulher ou que existe uma grande probabilidade de que a crianca que

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O Reino Unido sancionou o Abortion Act em 1967, que foi posteriormente

modificado em 1990 pelo Human Fertilization and Embryology Act, de modo a

permitir o aborto até a 24a semana de gestação, se dois médicos atestarem uma

necessidade médica referente a um risco na continuação da gravidez à saúde física

ou mental da gestante ou de seus outros filhos. A interrupção acima de 24 semanas

é excepcionalmente permitida em casos de risco à vida da mãe ou em anomalias

fetais extremas. Em 2008, ocorreu um debate parlamentar a fim de reduzir o limite

da interrupção voluntária para 20 ou 22 semanas de idade gestacional; contudo, não

houve alteração legislativa nesse sentido119.

Nos Estados Unidos da América, a seu turno, o caso emblemático que levou

à permissão do aborto foi a decisão proferida pela Suprema Corte em 1973, no caso

Roe vs. Wade, que intensificou os debates sobre o aborto no país. Declarou-se a

inconstitucionalidade de uma lei texana que criminalizava a prática do aborto. A

análise judicial ocorreu quanto a cada um dos trimestres da gravidez: no primeiro,

afirmou-se a impossibilidade de proibição do aborto; no segundo, os governos

poderiam exigir regulamentações em matéria de questões de saúde materna, que

fossem consideradas razoáveis, visando à proteção da saúde da gestante; já no

terceiro trimestre – a partir da viabilidade da vida fetal extrauterina –, poder-se-ia

proibir totalmente o aborto, desde que as leis previssem exceções para autorizar a

interrupção nos casos de risco de morte materna. A Suprema Corte americana

classificou como fundamental o direito de escolha da gestante pelo aborto120. É

digno de apontamento, ainda, o reconhecimento da inconstitucionalidade de lei que

condicionava o direito da gestante ao aborto ao expresso consentimento do pai do

nascituro121. Contudo, nos Estados Unidos a feroz divergência social sobre o aborto

nascera seja vitima de uma doenca particularmente grave, reconhecida como incuravel no momento do diagnostico”. [tradução livre]. Disponível no sítio eletrônico da Corte de Cassação Francesa: https://www.courdecassation.fr/jurisprudence_publications_documentation_2/bulletin_information_cour_cassation_27/bulletins_information_2000_1245/no_526_1362/ [acesso 21 jun 2019]

119 Reino Unido, Abortion Act. Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/abortion-act-1967-as-amended-termination-of-pregnancy [acesso 09 jul 2019].

120 Chemerinsky E. Constitutional Law: Principles and Policies. 5. ed. New York: Wolters Kluwer, 2015. p. 854-855.

121 Sarmento D. Legalização do aborto e Constituição. Rev Dir Adm. 2005; 240: 43-82. p. 48.

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continua uma realidade; “parte da razao encontra-se no paradoxo característico da

ambivalência desse pais diante da religiao”122.

A Espanha aprovou projeto de lei que alterou o Código Penal em 1985,

permitindo o aborto em qualquer momento, em casos de risco à vida ou à saúde

física ou psíquica. Em casos de estupro, permitia-se até a 12a semana de gestação

e quando o feto fosse portador de anomalias congênitas (não se afirmando o

requisito de letalidade), nas primeiras 22 semanas. A legislação foi impugnada

judicialmente e acabou por ser declarada a inconstitucionalidade parcial da norma

em razão da ausência de previsão, nos casos de aborto terapêutico ou seletivo, do

diagnóstico prévio por médico distinto do que realizaria o procedimento de

interrupção. Logo após a decisão judicial, novo projeto de lei foi elaborado de modo

a sanar o vício apontado 123 . Contudo, em 2010, foi publicada a Lei Orgânica

02/2010, dispondo sobre a saúde sexual e reprodutiva da mulher e a interrupção

voluntária da gravidez, reconhecendo expressamente no artigo 3o o direito à

maternidade livremente decidida. Passou-se a permitir, contudo, a interrupção

voluntária apenas até a 14a semana e, em “causas medicas” (risco a saude ou a

vida da mãe e em anomalias fetais), admite-se até a idade de 22 semanas, com a

exigência de dois médicos afirmando que a doença fetal é grave e incurável. Ainda

nos casos de anomalias fetais, deve ser formado um comitê clínico integrado por

obstetras e pediatras para confirmar a gravidade da doença124. Uma das polêmicas

122 Dworkin R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 5.

123 Sarmento D. Legalização do aborto e Constituição. Rev Dir Adm. 2005; 240: 43-82. p. 56.

124 Assim dispõe a legislação espanhola: “Artículo 15. Interrupción por causas médicas. Excepcionalmente, podrá interrumpirse el embarazo por causas médicas cuando concurra alguna de las circunstancias siguientes: a) Que no se superen las veintidós semanas de gestación y siempre que exista grave riesgo para la vida o la salud de la embarazada y así conste en un dictamen emitido con anterioridad a la intervención por un médico o médica especialista distinto del que la practique o dirija. En caso de urgencia por riesgo vital para la gestante podrá prescindirse del dictamen. b) Que no se superen las veintidós semanas de gestación y siempre que exista riesgo de graves anomalías en el feto y así conste en un dictamen emitido con anterioridad a la intervención por dos médicos especialistas distintos del que la practique o dirija. c) Cuando se detecten anomalías fetales incompatibles con la vida y así conste en un dictamen emitido con anterioridad por un médico o médica especialista, distinto del que practique la intervención, o cuando se detecte en el feto una enfermedad extremadamente grave e incurable en el momento del diagnóstico y así lo confirme un comité clínico”. Espanha. Ley Orgánica 02/2010, de 3 de marzo. Boletín Oficial des Estado. Núm. 55. Sec. 1. Pág 21001. Disponível em: https://www.boe.es/boe/dias/2010/03/04/pdfs/BOE-A-2010-3514.pdf [acesso 09 jul 2019].

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objeto de discussão foi a permissão para que adolescentes entre 16 e 18 anos

também pudessem realizar o aborto voluntário até 14 semanas de gestação. Após

discussões e tentativas de reversão dos permissivos normativos, a única alteração

relevante na legislação espanhola foi o aumento da idade de consentimento para 17

anos.

Portugal vivenciou um período de seguidas e progressivas reformas no

tocante à análise constitucional do aborto, por meio da jurisprudência do Tribunal

Constitucional e visando compatibilizar a proteção pela Constituição tanto da vida

intrauterina como dos direitos reprodutivos das mulheres. Segundo Rubio-Marín125, o

aborto no país era proibido até 1984, quando foi introduzido na legislação um

modelo normativo que possibilitava o aborto para proteger a vida ou a saúde da

mulher, em caso de malformação fetal grave e incurável ou quando a gravidez era

resultante de estupro. O autor esclarece que, nesse período e até 2007, ocorreram

debates sociais por meio de referendos e decisões judiciais emblemáticas que

reconheceram o poder discricionário do Legislativo para favorecer meios mais

eficazes do que a criminalização para impedir os abortos no início da gravidez, bem

como que as discussões sobre o aborto não poderiam se limitar ao argumento de

proteção da vida intrauterina. Editou-se a Lei 16/2007 normatizando, em resumo, a

permissão do aborto até a 10a semana de gestação e para gestantes com mais de

16 anos de idade, após aconselhamento obrigatório e período de reflexão de três

dias e uma cláusula de objeção de consciência como direito do médico. O Tribunal

Constitucional confirmou a constitucionalidade da norma em 2010, afirmando que o

período de aconselhamento da gestante já constituía uma proteção ao nascituro. Em

2015, tentativas de reformas ocorreram, mas foram rechaçadas, prevalecendo a

norma na forma anteriormente editada.

O aborto feito por médico é legal na Bélgica até 12 semanas após a

concepção ou 14 semanas depois do último período menstrual, se a gestação

determina um “estado de angustia” materna, conceito de interpretacao subjetiva, ja

que a lei belga não define objetivamente o âmbito de aplicabilidade de tal termo126.

125 Rubio-Marín R. Abortion in Portugal: New Trends in European Constitutionalism. In: Cook RJ, Erdman JN, Dickens BM. Abortion Law in Transnational Perspective: Cases and Controversies. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2014, p. 36-55.

126 Dispoe o Codigo Penal belga, em seu art. 350, que “il n’y aura pas d’infraction lorsque la femme enceinte, que son etat place en situation de detresse, a demande a un medecin d’interrompre sa

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Por outro lado, não há limite temporal para a interrupção quando há sério risco à

saúde materna pela permanência da gestação, bem como na hipótese de doença

fetal grave e incurável, devendo, em ambas as circunstâncias, haver parecer com

concordância diagnóstica e opinião de um segundo médico127.

Na América Latina, tem-se o caso do Uruguai, em que o aborto voluntário

passou a ser permitido a partir do fim de 2012, com a publicação da Lei 18.987 de

22 de outubro de 2012, que expressamente garantiu o direito à reprodução

consciente e responsável e o valor social da maternidade e dos direitos

reprodutivos128. Permite-se o aborto no país por mera expressão da autonomia da

gestante, nas primeiras 12 semanas de gestação. Como requisitos, há a

obrigatoriedade de avaliação multidisciplinar para que a gestante conheça os riscos

do procedimento e as alternativas e opções disponíveis a uma gestação indesejada,

incluindo os programas disponíveis de apoio social e econômico, e a necessidade de

se aguardar um período de reflexão mínimo de cinco dias após as consultas e

orientações, para a realização do procedimento 129 . Admite-se a interrupção da

gestação, ainda, em caso de estupro nas primeiras 14 semanas de gestação ou

quando há grave risco à saúde da mulher e em hipóteses de malformações fetais

incompatíveis com a vida; nessas duas últimas hipóteses, não há limite temporal

para o ato médico.

Observa-se que, nos casos de malformações congênitas fetais, alguns

ordenamentos jurídicos estrangeiros estabelecem o requisito de letalidade e outros

apenas mencionam a gravidade e incurabilidade da doença fetal como justificativa

para a interrupção. Embora se pretenda analisar o tratamento jurídico e bioético de

tais condições no Brasil, a análise das normas estrangeiras pode embasar a

discussão e nortear os fundamentos decisórios e normativos pátrios. Vê-se que o

grossesse” (em traducao livre, “nao havera infracao quando a mulher gravida, em condicao de angústia, solicitar a um médico que interrompa sua gravidez”).

127 International Planned Parenthood Federation. Abortion Legislation in Europe (updated January 2012). Brussels: IPPF European Network, 2012. [acesso 27 set 2019]. Disponível em: https://ippfen.org/sites/ippfen/files/2016-12/Final_Abortion%20legislation_September2012.pdf.

128 Presidencia de la República Oriental del Uruguay. Ley n. 18.987, 22 oct 2012. Ley de interrupción voluntaria del embarazo. [acesso 27 set 2019]. Disponível em: http://www.mysu.org.uy/wp-content/uploads/2014/11/Ley-de-Interrupci%C3%B3n-Voluntaria-del-Embarazo-18.987-promulgada-por-el-Poder-Ejecutivo-2012..pdf

129 Fiol V, Rieppi L, Aguirre R, Nozar M, Gorgoroso M, Coppola F, et al. The role of medical abortion in the implementation of the law on voluntary termination of pregnancy in Uruguay. Int J Gynecol Obstet. 2016; 134: S12-S15.

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abandono do requisito da letalidade intrauterina é realidade em vários sistemas

jurídicos contemporâneos.

1.3 Principais argumentos contrários à interrupção da gestação em anomalias

congênitas

Um dos maiores obstáculos à realização do aborto de fetos com anomalias

congênitas é de ordem moral e circunda a preocupação de que tal permissão atribua

desvalor à vida das pessoas com deficiência, perpetuando condutas discriminatórias

e preconceituosas.

Tal corrente doutrinária questiona a própria eticidade da realização do

diagnóstico pré-natal das malformações congênitas. Anne Dusart representa uma

dessas vozes e afirma que os métodos propedêuticos fetais têm duplo aspecto,

preditivo e seletivo. O aspecto preditivo decorre da possibilidade de se prever uma

doença da qual o feto será portador, permitindo alguma intervenção, ainda que

escassa. Já o âmbito seletivo proporcionaria a decisão pela interrupção da gestação,

nos países em que o ato é permitido. A autora ainda tangencia a ideia eticamente

questionável de utilização dos métodos como parte de uma política pública de

prevenção de deficiências130.

Outra relevante opositora aos métodos diagnósticos pré-natais aptos a

proporcionarem a prática do aborto de fetos com deficiências foi Adrienne Asch, cuja

opinião é favorável à prática do aborto de forma geral, embora contrária à

interrupção da gestação em casos de anomalias fetais. Sua tese refere-se à

existência de uma presunção de que a vida com deficiência seria algo indesejável

por seu desvalor, visão combatida pela autora por meio da rejeição de um modelo

que considera a deficiência algo que possa ser licitamente evitado. Nas palavras da

bioeticista:

130 Dusart A. La détection des anomalies foetales: analyse sociologique. Paris: CTNERHI Centre Technique National d’Etudes et de Recherches sur les handicaps et les inadaptations. 1995. p. 02-03.

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“My moral opposition to prenatal testing and selective abortion flows from the conviction that life with disability is worthwhile and the belief that a just society must appreciate and nurture the lifes of all people, whatever the endowments they receive in the natural lottery”131,132.

A preocupação dos opositores à interrupção da gravidez em casos de

anomalias fetais baseia-se nas possíveis consequências negativas para as pessoas

com deficiências, que poderiam se tornar alvo de injustiça, desinserção social e

discriminação. Tal argumento funda-se na teoria da ladeira escorregadia – slippery

slope –, termo proposto por Frederick Schauer 133 em 1985, para explicar a

possibilidade de ocorrência de um efeito em cascata, quando um ato isolado e

aparentemente isento de qualquer desvalor pode acarretar um conjunto de eventos

futuros indesejáveis.

A adoção dessa ideia justificaria a não realização de concessões

aparentemente inócuas e sem grandes consequências em temas eticamente

sensíveis, pois a teoria argumentativa poderia transportar, pelo discurso,

fundamentos decisorios a outros casos analogos ou nao, com efeitos “deslizantes”,

ampliando o âmbito de incidência do argumento inicial134.

Há uma preocupação da doutrina de que a decisão proferida pelo STF na

ADPF n. 54, não obstante as tentativas dos ministros de contenção dos argumentos

apenas aos casos de anencefalia, tenha o condão de acarretar decisões similares

em outras anomalias fetais, por seu efeito persuasivo no convencimento dos juízes

dos Tribunais estaduais, prorrogando os casos de aborto para além dos limites

legais, com efeitos deslizantes indesejados135.

131 Asch A. Prenatal Diagnosis and Selective Abortion: A Challenge to Practice and Policy. Am J Public Health; 1999; 89(11): 1649-1657.

132 “Minha oposição moral aos testes diagnósticos pré-natais e ao aborto seletivo decorre da convicção de que a vida com deficiência vale a pena e por acreditar que uma sociedade justa deve apreciar e cultivar a vida de todas as pessoas, qualquer que seja o legado recebido pela loteria natural da existencia” (tradução livre).

133 Schauer F. Slippery slopes. Harvard Law Review. 1985; 99: 361-383.

134 Volokh E. The mechanisms of the slippery slope. Harvard Law Review. 2003; 116: 1026-2003. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: http://www2.law.ucla.edu/volokh/slippery.pdf

135 Glatz RS. A permissão do aborto de fetos anencéfalos na ADPF n. 54: uma análise à luz da teoria da ladeira escorregadia e seus efeitos deslizantes. Rev SORBI. 2014; 2(2): 52-62. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: http://www.sorbi.org.br/revista/index.php/revista_sorbi/article/view/35/42

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Para os adeptos dessa corrente, é eticamente mais seguro que não se

permita qualquer mudança legislativa ampliativa do direito ao aborto em anomalias

congênitas.

Parte da doutrina também caracteriza como eugênica qualquer hipótese de

interrupção da gravidez em razão de uma anomalia fetal, independente da

viabilidade ou da possibilidade de vida após o nascimento. O vocábulo denotaria a

eliminação de fetos portadores de determinadas características consideradas

indesejáveis e, para os que defendem tal posicionamento, como Anne Dusart, ainda

que não haja um projeto estatal imposto de forma oficial, apto a atrair a aplicação do

termo eugenia enquanto politica de Estado, ocorreria uma verdadeira “eugenia de

fato”136.

Na mesma linha, Eduardo de Oliveira Leite enfatiza o perigo na utilização de

terminologias diferenciadas, como a ISG, pretendendo camuflar uma verdadeira

eugenia, pois a seleção de indivíduos com características desejáveis acaba por abrir

um precedente para que pessoas acometidas por doenças graves (e não se diz de

letalidade) também possam ser sistematicamente eliminadas da sociedade137.

Também Jean Marie Le Méné afirma a ocorrência de discriminação contra

deficientes quando a legislação é amplamente permissiva do aborto, por gerar uma

“inversao de valores e prioridades” 138 , desenvolvendo-se pesquisas voltadas ao

diagnóstico da anomalia e não à descoberta de possibilidades de tratamento, já que

a mera eliminação do portador da anomalia se mostra possível e é, inclusive,

cientificamente “mais facil”.

Ainda, defende-se que a utilizacao dos termos “malformacao letal” e “doenca

incompativel com a vida” teria um poder persuasivo na decisao dos pais, levando-os

a acreditarem que, não havendo nada a ser feito pela saúde e vida de seu filho,

resta-lhes apenas a interrupção da gravidez. É nesse contexto que Stéphanie

Hennette Vauchez entende que pode haver uma falta de transparência na

comunicação do diagnóstico da anomalia aos pais, propiciando a sustentação de

136 Dusart A. La détection des anomalies foetales: analyse sociologique. Paris: CTNERHI Centre Technique National d’Etudes et de Recherches sur les handicaps et les inadaptations. 1995. p. 03-04.

137 Leite EO. Eugenia e Bioética: os limites da ciência em face da dignidade humana. Revista dos Tribunais. 2004; 93 (824): 82-95.

138 Le Méné JM. Nascituri, te salutant! La crise de conscience bioéthique. Paris: Salvator. 2009. p. 22.

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uma possível eugenia pela confusão entre a gravidade de uma deficiência e a

letalidade139.

Ressalte-se como argumento relevante, ainda, a proteção ampla do

nascituro enquanto sujeito de direitos, por determinação legal expressa do artigo 2o

do Código Civil Brasileiro de 2002 140 . O Direito, reconhecendo a qualidade de

pessoa natural, a ela atribui personalidade jurídica e confere consequências

inerentes à atribuição de direitos subjetivos. Enquanto a personalidade natural inicia-

se na origem do ser humano, a personalidade civil – criação do Direito – começa no

nascimento com vida.

Afirma Roberta Villaverde que “o reconhecimento da personalidade do

anencefalo e decorrencia de sua dignidade, da certeza de que a existência de um

ser humano, por mais singela e volátil que seja, merece respeito e proteção”141, bem

como a garantia de gozo e fruição de todos os direitos destinados à pessoa, termo

precioso no ordenamento jurídico.

Autores que preconizam tal ampla proteção, em regra, não diferenciam as

malformações congênitas fetais letais daquelas que permitem a vida com

deficiência. Embora reconheçam a diferenciação para fins estritamente médico-

científicos, defendem que o critério da viabilidade da vida fetal, originário do direito

romano142 , 143 já foi há muito abolido da maioria dos ordenamentos jurídicos no

período das codificações144. Cunham tal critério como arbitrário, pois a determinação

da letalidade ou possibilidade de cura de uma doença depende, sobretudo, da

139 Hennette-Vauchez S. Le droit de la bioéthique. Paris: La Découverte, 2009. p. 57.

140 Brasil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. [acesso em 5 mai 2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm “Art. 2o. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepcao, os direitos do nascituro”.

141 Villaverde RMB. Personalidade jurídica do anencéfalo. Tese [Doutorado em Direito]. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; 2011. p. 307

142 Admite-se alguma controvérsia sobre o início da personalidade no Direito Romano, mas, majoritariamente, reconhecia-se uma personalidade condicional e o fato de que o feto era parte das “entranhas maternas”, ainda nao sendo considerado pessoa. Ademais, nao bastava o nascimento com vida, mas o neonato devia manter forma humana e viabilidade, para que pudesse continuar a viver, depois de nascido. (Semião SA. Os direitos do nascituro: aspectos cíveis, criminais e do biodireito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. p. 26-27).

143 Alves JCM. Direito Romano. Volume 1. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 109.

144 Beviláqua C. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 75 e ss.

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evolução tecnológica e da ciência, não dispondo da generalização necessária e

permanência no tempo145.

Finalizam afirmando que, sendo o Direito uma ciência do dever-ser, tem uma

base moral fundada na pessoa humana e na garantia de que seus direitos não

podem ser restringidos, devendo a Medicina ser utilizada para erradicar doenças e

buscar tecnologia para tratá-las e não para eliminar doentes146.

Embora haja argumentos consistentes e legalmente fundamentados na

defesa da vedação ao aborto em malformações congênitas, não é razoável cunhar

como eugênica toda forma de interrupção, tampouco desconsiderar a autonomia da

mulher, alçando o direito à vida biológica do feto a um patamar superior a outros

direitos fundamentais igualmente tutelados e integradores do conteúdo da dignidade

humana.

1.4 Principais argumentos favoráveis à interrupção da gestação em anomalias

congênitas

Os principais argumentos desenvolvidos na doutrina como aptos ao amparo

da interrupção da gestação em casos de malformações congênitas fetais guiam-se

pelo princípio da autonomia, pelo direito da mulher ao próprio corpo e pela proteção

dos direitos reprodutivos.

A autonomia fundamenta-se, segundo Pedro Pais de Vasconcelos, no

personalismo etico, que, “ao exigir o reconhecimento originario e inerente da

personalidade, da igualdade e da paridade de todas as pessoas, de sua dignidade e

liberdade, implica o reconhecimento da autonomia de todos e de cada um” 147.

145 Pereira CMS. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 220.

146 Madeira JAA. O nascituro portador de malformações no cenário jurídico atual. Dissertação [Mestrado em Direito]. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais; 2011. p. 173.

147 Vasconcelos PP. Teoria geral do Direito Civil. 4.ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 15.

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A proteção da autonomia legitima o direito da mulher ao próprio corpo e ao

exercício de seus direitos reprodutivos, sendo que, para tal exercício, são

fundamentais a liberdade e o discernimento, pois não há como se exercer o direito a

uma escolha autônoma com coação externa e sem que se conheçam as

possibilidades existentes. Nesse contexto e segundo Friedman Ross, os métodos de

diagnóstico pré-natal se mostram indispensáveis à tomada de uma decisão

reprodutiva esclarecida e informada148.

Há ainda vozes na doutrina que afirmam que o feto e o embrião não são

pessoas, mas apenas uma expectativa de o serem futuramente caso nasçam com

vida, expectativa que sequer estaria claramente presente nos casos de

malformações congênitas graves. Afirmam o predomínio da teoria natalista da

personalidade civil sobre a teoria concepcionista e, sob essa ideia, interpretam os

dispositivos do CPB, afirmando que o tipo penal do aborto existe pelo simples fato

de que o nascituro nao se enquadra no conceito de “alguem”; do contrario, a

conduta de interromper sua vida estaria enquadrada no tipo penal do homicídio.

Continuam aduzindo que apenas o aborto provocado por terceiro e qualificado pela

morte da gestante tem pena igual à cominada ao homicídio simples – de 6 a 20 anos

de reclusão –, razão pela qual entendem que a morte que se valora no tipo penal é a

da gestante e não propriamente a do nascituro 149 . Não parece ser a melhor

explicação, mostrando-se reducionista por não enfatizar a autonomia da mulher e

não explicando propriamente a tipificação contemporânea do aborto como crime

contra a pessoa. Ademais, perfilha-se ao entendimento de Ronald Dworkin, que

assim dispõe:

“Seria inteligente deixar de lado a questão de saber se o feto é uma pessoa, não por tratar-se de uma questão irrespondível ou metafísica, (...) mas por ser demasiado ambígua para ser útil. Em vez disso, devemos fazer novamente as perguntas-chave de natureza moral por mim distinguidas: o feto tem interesses que devam ser protegidos por direitos, inclusive pelo direito à vida? Devemos tratar a vida de um feto como sagrada, tenha ele ou não interesses? Outra vez, não precisamos decidir se o feto é uma

148 Ross LF. Prenatal testing and newborn screening. In: Singer PA, Viens AM. The Cambridge Textobook of bioethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 105.

149 Semião SA. Os direitos do nascituro: aspectos cíveis, criminais e do biodireito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. p.129.

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pessoa para responder a essas perguntas, que são as que contam”.150

Lynn Gillam argumenta sobre três principais fundamentos que justificariam o

aborto de fetos com anomalias congênitas: o mais defensável diz respeito ao melhor

interesse da mãe, com proteção de sua autonomia, saúde física e mental e bem-

estar. Outros dois referem-se ao melhor interesse da “futura crianca” (child-to-be) e à

comparação com uma criança sem deficiências151.

Os argumentos referentes à criança deficiente e a comparação de sua vida à

de uma criança sem deficiência fundam-se na ideia de que há algumas

malformações congênitas tão graves que, embora permitam a vida extrauterina, a

tornam muito difícil e geradora de grande sofrimento a todos os atores desse

cenário, sendo cruel a imposição à mãe da manutenção da gestação 152 . Seria

legítimo à mãe, assim, preferir e optar pelo nascimento de uma criança sem

deficiência, independentemente das razões e do conteúdo moral de tal decisão.

Tratar-se-ia a interrupção da gestação, assim, de uma forma de inexigibilidade de

conduta diversa, instituto do Direito Penal que exclui a culpabilidade.

Da mesma forma, argumenta-se que seria uma conduta cruel e desarrazoada

a imposição à mãe da manutenção de uma gestação fadada ao insucesso e à morte

neonatal precoce. Até mesmo na ADPF n. 54, a hipótese de que tal obrigatoriedade

pode corresponder a uma espécie de tortura foi ventilada pelos ministros em

Plenário, tendo o Ministro Marco Aurélio ressaltado o direito humano à não

submissão à tortura e a definição de violência abarcando também condutas que

causam sofrimento psíquico153.

150 Dworkin R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 30-31.

151 Gillam L. Prenatal diagnosis and discrimination against the disabled. Journal of Medical Ethics.1999; 25: 163-171. p. 167.

152 Glover J. Future people, disability and screening. In: Harris J. Bioethics. Oxford: Oxford University Press. 2001. p. 440.

153 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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No Brasil, considerada até mesmo a carga argumentativa desenvolvida no

julgamento da ADPF n. 54 – que será a seguir analisada – os partidários da

possibilidade de aborto em malformações congênitas, regra geral, admitem a

conduta quando a malformação é incompatível com a vida extrauterina – embora tal

certeza diagnóstica possa ser questionada. E quanto às malformações

habitualmente tidas por letais, há autores que afirmam a certeza da letalidade em

razão da inexistência de adultos portadores das respectivas anomalias154.

Nesses casos, defende-se a possibilidade da interrupção por se considerar

que a hipótese sequer configuraria aborto, ato que pressupõe a potencialidade de

vida extrauterina. Nelson Hungria, um dos mais importantes penalistas brasileiros e

um dos autores do anteprojeto do Código Penal de 1940, já desde a década de 50

afirmava situação em que o termo aborto não deveria ser empregado, sendo

elucidativas as suas palavras:

“No caso de gravidez extrauterina, que representa um estado patológico, a sua interrupção não pode constituir o crime de aborto. Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que caracterize aborto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuacao da vida do feto”.155

Da mesma forma, afirma-se que a interrupção não pode ser cunhada de

eugênica, por não se tratar de verdadeira eugenia. As palavras carregam um

significado emotivo, além de seu mero propósito descritivo, que tem o condão de

provocar, em quem as ouve, reações emocionais. Eugenia é um desses vocábulos

que carregam um alto grau de rejeição emocional – além de um viés ideológico-

político –, vinculado ao uso que dele foi feito na Alemanha nazista, tornando-se um

“termo tabu”. Nao se fala em aborto eugenico com a finalidade de se obter uma raça

pura e superior, tampouco como política de estado ou sequer com intenção

154 Karagulian PP. Aborto e legalidade: malformação congênita. São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2007. p. 157.

155 Hungria N. Comentários ao Código Penal: artigos 121 a 136. Vol. 4, 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense; 1958. p. 297-298.

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claramente discriminatória e dolosamente preconceituosa da gestante. Não é disso

que ora se trata.

Rui Nunes afirma, quanto ao diagnóstico pré-natal, que, “desde que o objetivo

principal não seja a diminuição da incidência do nascimento de deficientes, não se

pode considerar que esteja em causa uma mentalidade eugenica” 156 . Contudo,

entende o autor que, considerada a grande dificuldade de se definir com clareza

limites aceitaveis para variacoes individuais, apenas “casos flagrantes de ma

qualidade de vida individual devem poder originar um pedido de interrupção da

gravidez”, pois tal situacao configuraria uma proporcionalidade racional na execucao

do ato.

Pode-se, ainda, rebater os argumentos fundados na teoria da slippery slope

por meio da tese de que não é possível adotar a premissa de que a consequência

final da ladeira escorregadia será algo necessariamente ruim e moralmente

indesejável. Ainda que possam ocorrer consequências inicialmente não previstas

pela transposição de fundamentos argumentativos a casos análogos, tais

consequências não serão sempre deletérias, podendo inclusive oxigenar e atualizar

entendimentos anacrônicos.

Os defensores da tese da slippery slope afirmam a necessidade de cautela na

tomada de decisões, já que um acontecimento A pode gerar, por deslizamento de

seus efeitos, o acontecimento B, moralmente rechaçável e indesejado. Contudo, há

que se considerar a ideia da “ineficiencia da ladeira escorregadia” (slippery slope

inefficiency) citada por Eugene Volokh, que explica que o próprio acontecimento A

pode, por si só, ser socialmente benéfico. Assim, não faria sentido defender seu

afastamento (do acontecimento benéfico A) pela mera possibilidade de ocorrência

de um acontecimento B supostamente indesejado, que pode, inclusive, ser gerado

de outras formas não controláveis e por vias transversas157.

156 Nunes RML. Questões éticas do diagnóstico pré-natal da doença genética. Tese [Doutorado]. Porto: Faculdade de Medicina do Porto; 1995. p. 228-230.

157 Volokh E. The mechanisms of the slippery slope. Harvard Law Review. 2003; 116: 1026-2003. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: http://www2.law.ucla.edu/volokh/slippery.pdf

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Os posicionamentos divergentes descritos foram levados a debate perante o

STF, que proferiu decisão histórica com fundamentos relevantes, embora o que ora

se defende é que o julgado não atingiu o ponto fulcral da temática.

1.5 A anencefalia, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no

54 e o Supremo Tribunal Federal

Em junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde –

CNTS ajuizou, perante o STF, arguição de descumprimento de preceito fundamental

(ADPF) visando à aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição,

para “assentar a premissa de que apenas o feto com capacidade potencial de ser

pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto” 158 , declarando-se a

inconstitucionalidade da tipificação, como crime de aborto, da interrupção da

gestação de fetos portadores de anencefalia.

Convocada audiência pública em 2008, objetivando levantar argumentos

técnicos aptos a subsidiar a decisão e ouvir setores da sociedade civil sobre matéria

tão sensível, participaram representantes de diversos segmentos sociais, religiosos

e científicos. À ocasião, discutiu-se a possibilidade de antecipação do parto com

argumentos tais como o de que o feto anencéfalo pode ser considerado um

natimorto biológico e de que haveria ampliação dos riscos para a saúde materna nos

casos de manutenção da gravidez, tendo em vista a possibilidade de complicações

no parto, bem como a maior vulnerabilidade da gestante a estados patológicos de

depressão e outros quadros psiquiátricos.

Médicos representantes do Conselho Federal de Medicina, da Federação

Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, da Sociedade Brasileira de

Medicina Fetal e da Sociedade Brasileira de Genética Clínica afirmaram que são

inúmeras as repercussões de uma gestação anômala na vida da gestante: aumento

158 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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da morbidade; aumento dos riscos durante a gestação pela presença de

polidrâmnio, maior risco de hipertensão, diabetes, descolamento de placenta,

transfusões sanguíneas e partos prematuros; aumento dos riscos obstétricos no

parto, partos distócicos e consequências psicológicas significativas, como altos

índices de depressão, angústia, culpa, pensamentos suicidas e comprometimento da

vida conjugal.

Em 12 de abril de 2012, o STF iniciou o julgamento da referida ADPF. Em

Plenário, o então advogado Luís Roberto Barroso, hoje Ministro da mesma Corte,

sustentou a evolução do direito das mulheres na sociedade contemporânea, em

defesa do pedido. Alegou que a possibilidade jurídica de se antecipar licitamente o

parto de fetos anencéfalos não se trata propriamente de aborto e é a posição de

todos os países democráticos e desenvolvidos do mundo, sendo que “a crescente

criminalizacao e um fenômeno do subdesenvolvimento”159.

Naquela data, a Suprema Corte, proferindo decisão histórica por maioria

(havendo dois votos em sentido contrário, proferidos pelos Ministros Cezar Peluso e

Ricardo Lewandowski), deixou assentado que a antecipação terapêutica do parto,

quando há diagnóstico de anencefalia, é fato penalmente atípico e não constitui

aborto, uma vez que esse tipo penal pressupõe potencialidade de vida extrauterina.

“Anencefalia e vida sao termos antiteticos”, afirmou o Relator da acao,

Ministro Marco Aurélio de Mello, ao proferir seu voto em Plenário, decidindo pela

procedência do pedido 160 . Ressaltou-se que o conflito de normas e de direitos

fundamentais debatidos era apenas aparente, já que, em contraposição aos direitos

decisórios da mulher no exercício de sua autonomia, não se encontrava o direito à

vida de quem está por vir, justamente em razão da inexistência de viabilidade de

vida.

159 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

160 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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Decidiu-se que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto não

devem incidir nesses casos, pois o termo aborto pressupõe a potencialidade de vida

plena extrauterina. A própria denominação aborto, portanto, não seria adequada

nessas situacoes, uma vez que se trata de “feto sem vida”, não se tratando de vida

em potencial, mas de morte segura. Afirmou-se que a terminologia a ser utilizada,

em verdade, e a denominada “antecipacao terapeutica do parto”, na medida em que

“o anencéfalo, tal qual o morto encefálico, não teria atividade cortical”: faltam-lhe os

fenômenos da vida psíquica, a sensibilidade, a mobilidade e a integração de todas

as funções corpóreas, que são apenas rudimentares.

Salientou-se tratar de doença congênita letal, tendo o voto condutor do

acórdão embasado a alegação em dados trazidos por médicos na audiência pública,

especialmente José Aristodemo Pinotti e Thomaz Rafael Gollop, que enfatizaram

que “inexiste presuncao de vida extrauterina”, “e uma patologia letal em 100% dos

casos, quando o diagnostico e correto” e que a anencefalia “e incompativel com a

vida, não há atividade cortical, corresponde à morte cerebral; ninguém tem nenhuma

duvida acerca disso”161.

Ressaltou-se que a chamada “Lei dos Transplantes de Órgaos” autoriza a

extração destes a partir do diagnóstico da morte encefálica, considerada a morte

legal, consagrando-se o reconhecimento de que a vida não se encerra apenas

quando “o coracao para”, como ja entendido em tempos remotos.

Dessa forma, o STF entendeu que, havendo diagnóstico médico definitivo

atestando a inviabilidade de vida após o período normal de gestação, a indução

antecipada do parto não tipificaria o crime de aborto, uma vez que a morte do feto

seria inevitável, em decorrência da própria patologia.

Afirmou-se, ainda, não se tratar de aborto eugênico, na medida em que não

se observa o viés ideológico e político estampado na palavra eugenia, não havendo

qualquer eleição de padrões de vida baseada em questões imorais, tampouco

seleção de seres que distanciem desses supostos padrões.

161 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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O STF, portanto, não examinou a descriminalização do aborto, mas a

interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, que anteciparia o momento

oportuno do parto, qual seja, o fim natural da gestação. Aduziu-se, ainda, não se

tratar de um dever da gestante de interromper a gestação; apenas se autoriza e

faculta a cessação da gestação, em prol da dignidade da mulher e com o objetivo de

minorar seu provável sofrimento, caso esse seja o seu desejo. A autonomia da

paciente e o respeito à pessoa foram algumas das questões mais relevantes e

discutidas durante o julgamento, embora não tenham sido alçadas como o principal

argumento fundante da procedência do pedido.

Por fim, sustentou-se que a República Federativa do Brasil é um estado laico

e que se, ao consagrar a laicidade, a Constituição impede que o Estado intervenha

em assuntos religiosos, isso também significa que dogmas de fé não podem

determinar o conteúdo de atos estatais. Assim, concepções morais ou religiosas,

quer unânimes, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo

ficar circunscritas à esfera privada. Dessa forma, também as autoridades incumbidas

de aplicar o direito devem se despojar de suas próprias convicções de ordem

religiosa.

Ressalte-se que foram proferidos dois votos divergentes em Plenário, da lavra

dos Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que se basearam,

principalmente, nos argumentos da impossibilidade de o Poder Judiciário usurpar

competência privativa do Congresso Nacional para criar uma causa de exclusão de

ilicitude, não cabendo à Corte atuar como legislador positivo, bem como na

existência de vida no feto anencéfalo, até mesmo extrauterina.

O voto contrário proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski – ainda que não

tenha nomeado expressamente a teoria – adentrou na possibilidade de ocorrência

de efeitos em cascata descritos no argumento da “ladeira escorregadia” (slippery

slope), afirmando que eventual decisao de procedencia do pedido formulado “abriria

as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem

ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum

modo, levem ao encurtamento de sua vida”162.

162 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ

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Já o Ministro Cezar Peluso, também contrário ao pedido formulado, afirmou

ser “assombrosa a semelhança entre aborto de anencéfalo e práticas eugênicas”163,

e que o tempo de vida também é reduzido em diversas outras situações, como

doencas fatais incuraveis que nao autorizam a “antecipacao terapeutica da morte”,

vista como reprovável eutanásia.

Quanto à existência de opiniões médicas divergentes no tocante à

inviabilidade de vida pós-natal e constatações de anencéfalos com períodos

variáveis de vida fora do útero, ventilou-se a ideia de que a sobrevivência, mesmo

que por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo e em

detrimento dos direitos básicos da mulher, como a dignidade da pessoa humana, a

liberdade no campo sexual, a autonomia, a privacidade, a integridade física,

psicológica e moral e a saúde. Tal fato, no entanto e infelizmente, não foi mais

amplamente debatido, tendo prevalecido o argumento da inviabilidade da vida

extrauterina.

Em resumo, o STF, por maioria, julgou procedente a ADPF n. 54 e declarou a

constitucionalidade da antecipação terapêutica do parto nos casos de gestação de

feto anencéfalo, o que não caracteriza o aborto tipificado nos artigos 124, 126 e 128

(incisos I e II) do Código Penal, nem se confunde com ele.

No tocante à suposta violação aos direitos das pessoas com deficiências, o

Ministro Relator consignou não se aplicar à hipótese tal discussão, não se cabendo

questionar suposta discriminacao em funcao de deficiencia diante da “total falta de

expectativa de vida fora do utero”, tendo sido citadas as palavras de Lia Zanotta

Machado, para quem “deficiencia e uma situacao onde e possivel estar no mundo;

anencefalia, nao”164.

30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

163 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

164 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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Ocorre que a anencefalia, como visto no Título II deste trabalho, é doença

caracterizada por um defeito de fechamento do tubo neural, com ausência dos

hemisférios cerebrais e da parte superior da calota craniana, havendo,

habitualmente, algum tecido nervoso, mesmo que rudimentar. Não se trata de um

“morto encefalico” sem qualquer autonomia cardíaca e respiratória, pois a situação

do anencéfalo não se encaixa de forma hermética nesse conceito.

Assim, embora a expressiva maioria dos anencéfalos evoluam para

abortamento ou natimortos, alguns podem sobreviver no ambiente extrauterino por

períodos variáveis, especialmente se medidas de suporte são oferecidas, como

demonstrado por Dominic Wilkinson 165 . A autora sugere que os termos

“malformacao letal” e “doenca incompativel com a vida” devem ser, assim, evitados

no aconselhamento genético – mesmo em caso de anencefalia – e questiona o que

seria uma anomalia fetal habitualmente chamada de letal, que pode compreender

desde condições que invariavelmente acarretam a morte ainda no ambiente uterino

até aquelas têm sido associadas com morte fetal ou no período neonatal. Em relatos

de casos e revisões bibliográficas também conduzidas por Wilkinson166 e por outros

grupos de pesquisadores167,168, demonstrou-se que algumas dessas doenças tidas

como letais, como a própria anencefalia e as trissomias do 13 e do 18, podem

proporcionar, mesmo que de forma rara, sobrevivência por períodos variáveis,

havendo casos de anencéfalos que sobreviveram por vários meses (7 meses, 10

meses e 2 anos) e das citadas trissomias com períodos semelhantes de vida

extrauterina.

A confusão terminológica gerada nos pacientes pela afirmação da letalidade

da doença pode ser significativa, sobretudo ao não se explicitar a questão temporal

de tal letalidade: quando a morte do concepto ocorrerá?

165 Wilkinson D, Thiele P, Watkins A, De Crespigny L. Fatally flawed? A review and ethical analysis of lethal congenital malformations. BJOG. 2012; 119(11): 1302-1308.

166 Wilkinson D, DeCrespigny L, Xafis V. Ethical language and decision-making for prenatally diagnosed lethal malformations. Semin Fetal Neonatal Med. 2014; 19(5): 306-311.

167 McAbee G, Sherman J, Canas JA, Boxer H. Prolonged survival of two anencephalic infants. Am J Perinatol. 1993; 10(2): 175-177.

168 Wu J, Springett A, Morris JK. Survival of trisomy 18 (Edwards syndrome) and trisomy 13 (Patau syndrome) in England and Wales: 2004-2011. Am J Med Genet A. 2013; 161A(10): 2512-2518.

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Tracy Koogler et al., também observando que as malformações tidas por

letais nem sempre acarretam a morte antes do nascimento, asseveram que, além de

inadequado, o uso do termo “letal” e perigoso justamente por retratar, como uma

incontestável condição médica, algo que pode constituir, em verdade, um julgamento

sobre a qualidade de vida da criança, subtraindo dos pais uma decisão que deveria

ser apenas deles169.

Considerados os dados objetivos demonstrados, a decisão do STF, embora

tenha ventilado a relevância do direito da mulher, pode ter se amparado em

premissa fática equivocada: a de que a anencefalia é malformação congênita

absolutamente incompatível com a vida extrauterina. Ou, mais precisamente, o

conceito de vida que se debateu na ocasião não pode ser entendido como a mera

vida biológica ou a possibilidade de sobrevivência extrauterina. Uma vez que os

julgadores, na ocasião, discorreram sobre a impossibilidade de desenvolvimento de

vida ‘plena’ extrauterina, tal plenitude da vida consistiria na possibilidade de se

atingir a vida adulta com pleno desenvolvimento psiconeurológico? De fato, tal

possibilidade é nula na anencefalia. O que se protege, portanto, é a vida enquanto

perspectiva de pleno desenvolvimento após o parto ou apenas seu aspecto

meramente biológico?

Contudo, o principal argumento utilizado em juízo para se afastar eventual

discriminacao em funcao de deficiencia foi justamente a “total falta de expectativa de

vida fora do útero”170, o que não se sustenta. Efetivamente, a anencefalia é doença

que acarreta a letalidade em todos os casos, não havendo possibilidade de vida

além de períodos curtos e diante do oferecimento de suporte terapêutico. Contudo,

quando o STF utiliza o argumento de “total falta de expectativa de vida fora do utero”

para eventual interrupção da gestação, cria-se a dúvida – e a expectativa – acerca

da possibilidade de a Medicina Fetal predizer, com absolutas certeza e segurança

que o Direito requer, quais doenças acarretarão de forma certa e necessária a morte

ainda antes do nascimento. Em casos de pedidos de autorização judicial para

169 Koogler TK, Wilfond BS, Ross LF. Lethal language, lethal decisions. The Hastings Center Report. 2003; 33(2): 37-41.

170 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

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interrupcao da gravidez em outras anomalias fetais, tal “requisito” nao seria possivel

de ser preenchido.

Vê-se que a utilização de argumentos metajurídicos de autoridade baseados

em depoimentos médicos e científicos obtidos na audiência pública tiveram o

condão de conferir credibilidade aos votos proferidos na ação, de forma objetiva.

Partindo-se de premissas verossímeis – ainda que não universalizáveis no plano dos

fatos –, chega-se a conclusões também verossímeis, através da argumentação e da

linguagem171.

Há que se perquirir se a questão não deveria ter sido tratada pelo STF na

ADPF n. 54 – embora pudesse encontrar óbice em razão da necessidade de

observância da decisão aos limites do pedido formulado – de duas formas: primeiro,

pelo caráter não absoluto do direito à vida, já que os sistemas jurídicos ocidentais

não admitem valores absolutos; em segundo lugar, como uma decisão exclusiva e

autônoma da mulher, a ser amparada pelo estado, qualquer que seja o seu

conteúdo moral ou ético. Em verdade, o que deveria sobrelevar quando se debate o

tema do aborto – tendo o feto ou não malformação congênita – é o direito da mulher

de autodeterminação, escolha e ação de acordo com sua vontade, seus valores e

suas crenças.

Entretanto, decidiu o STF pela procedência da ação com fundamento nos

principais argumentos de ausência de vida em potencial e inviabilidade de vida

‘plena’ extrauterina do anencefalo. O STF não examinou na ADPF n. 54 a

descriminalização do aborto – e nem poderia fazê-lo –, mas a interrupção da

gravidez em casos de anencefalia, autorizando e facultando a cessação da

gestação, em prol da dignidade da mulher e com o objetivo de minorar seu provável

sofrimento, caso esse seja o seu desejo, diante do argumento da ausência de

potencialidade de vida.

A partir desta decisão, portanto, cabe ao médico realizar o diagnóstico de

certeza da anencefalia, bem como ao Sistema Único de Saúde (SUS) promover a

política pública de saúde adequada ao suporte e tratamento da gestante, devendo

171 Ferreira TA. Análise argumentativa do discurso jurídico: a polêmica sobre o aborto de fetos anencéfalos. Dissertação [Mestrado em Linguística do texto e do discurso]. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais; 2013. p. 116 e 129.

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haver orientação e apoio psicológico e obstétrico para que ela tenha a liberdade de

adotar a decisão que melhor se ajuste à sua convicção particular.

Hoje, a interrupção da gravidez não é mais uma decisão estritamente judicial

– como era feito no país há mais de 20 anos, em que tais pedidos deviam ser

invariavelmente apreciados pelo Poder Judiciário –, mas um protocolo dos

programas de saúde pública, o que exige definição de critérios diagnósticos pelo

órgão competente de regulamentação do exercício profissional.

Durante os debates em Plenário na Suprema Corte, os ministros Gilmar

Mendes e Celso de Mello ressaltaram a necessidade de se fixarem critérios

diagnósticos objetivos para que a gestante de feto anencéfalo tivesse o direito de

interromper a gravidez. Afirmou Celso de Mello que “a malformacao fetal deve ser

diagnosticada e comprovadamente identificada por profissional médico legalmente

habilitado”172.

Sendo assim, o Conselho Federal de Medicina (CFM), diante da necessidade

de se garantir certeza e segurança aos critérios diagnósticos de anencefalia,

permitindo a interrupção da gravidez a pedido da gestante, sem a necessidade de

autorização estatal, aprovou, por unanimidade, a Resolução CFM n. 1989173, de 14

de maio 2012, atendendo a importante demanda jurídica e social.

Tal norma definiu diretrizes para o diagnóstico da malformação fetal,

ressaltando que este deverá ser realizado por meio de exame ultrassonográfico

efetivado a partir da 12ª semana de gestação, por dois médicos capacitados para

tal, o que objetivou assegurar o direito a uma segunda opinião e não retirar a

suficiência do diagnóstico feito por apenas um médico.

Diante desse diagnóstico de imagem, a gestante terá o direito de buscar outra

opinião ou solicitar a realização de junta médica, tendo-lhe sido prestados todos os

esclarecimentos devidos e os que forem porventura solicitados. Dessa forma, o CFM

172 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF. Peças processuais. Relator Min. Marco Aurélio. Julgada em 12 de abril de 2012. DJ 30/04/2013. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/ downloadPeca.asp?id= 136389880&ext=.pdf

173 Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução n. 1.989, de 14 de maio de 2012. Dispõe sobre o diagnostic de anencefalia para a antecipação terapêutica do parto e dá outras providências. Diário Oficial da União 14 mai 2012; Seção 1. [acesso 11 mai 2019]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1989_2012.pdf

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ressaltou a importância de se fornecer o conhecimento amplo à gestante, a fim de

que ela tenha garantido o seu direito de decidir livremente sobre a conduta a ser

adotada, em uma decisão compartilhada. Caso a gestante opte pela manutenção da

gravidez até o seu termo final, deverá ser assegurada assistência médica pré-natal

compatível com o diagnóstico, uma vez que a gestação em comento é considerada

de risco.

No texto normativo, o CFM ressaltou que a gestante, uma vez esclarecida do

diagnóstico, tem o direito de interromper a gravidez imediatamente, independente do

tempo de gestação, podendo, também, adiar sua decisão para momento posterior.

Caso opte pela antecipação terapêutica do parto, deverá ser realizada ata do

procedimento, com seu consentimento por escrito, que integrará seu prontuário

médico, juntamente com o laudo e as fotografias do exame de imagem. Tal

procedimento apenas poderá ser realizado em hospital que disponha de estrutura

adequada ao manejo de eventuais complicações inerentes ao ato médico.

Há de se ressaltar também, nesse contexto, a relevância dos dados

anatomopatológicos obtidos por meio de necropsia perinatal, uma vez que, apesar

dos inegáveis progressos alcançados com a aplicação dos recursos diagnósticos em

vida, ainda se nota significativo índice de discordância entre os diagnósticos clínicos

e a necropsia, variando entre 10 a 30%, razão pela qual continua a necropsia a ser

um objeto de grande valor para o estudo sistemático da patologia e o aprimoramento

do trabalho médico. A despeito da persistência de índices relativamente elevados de

discrepância entre o diagnóstico clínico e o necroscópico, as taxas de realização de

necropsia clínica estão em declínio nas estimativas mundiais174.

174 Diversos trabalhos demonstram a variabilidade entre os achados necroscópicos e os diagnósticos realiados em vida, por exames clínicos, laboratoriais e de imagem, a despeito dos avanços tecnológicos na medicina diagnóstica. Não se trata de fenômeno exclusivo da medicina brasileira, mas observado mundialmente, assim como o declínio das taxas de realização de necropsias clínicas (em mortes por antecedentes patológicos), por diversas e complexas razões que envolvem questões econômicas, culturais, administrativas e religiosas. São estudos relevantes que comprovam o fato: Carlotti APCP, Bachette LG, Carmona F, Manso PH, Vicente WVA, Ramalho FS. Discrepancies between clinical diagnoses and autopsy findings in critically ill children: a Prospective Study. Am J Clin Pathol. 2016; 146(6): 701-708. Felipe-Silva A, Ishigai M, Mauad T. Academic autopsies in Brazil – a national survey. Rev Assoc Med Bras. 2014; 60(2):145-150. Fares AF, Fares F, Fares GF, Cordeiro JA, Nakazone MA, Cury PM. Clinical and pathological discrepancies and cardiovascular findings in 409 consecutive autopsies. Arq Bras Cardiol. 2011; 97: 449-453.

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No âmbito da Patologia Fetal e Perinatal, essa importância é ainda mais

visível, uma vez que a necropsia é o meio capaz de fornecer estudo detalhado das

síndromes malformativas fetais, proporcionando análise pormenorizada das

alterações sindrômicas e favorecendo o aconselhamento genético das pacientes.

Mesmo que seja realizado um diagnóstico preciso no período pré-natal por exames

genéticos ou de imagem, após uma interrupção (espontânea ou não) da gestação,

os pais desejam saber se o diagnóstico pré-natal foi correto e quais as implicações

para as futuras gestações.

Antônio Carlos Vieira Cabral preconiza que a necropsia seja realizada em

todos os casos de perda fetal, qualquer que seja a fase da gestação, mediante

obtenção de autorização dos pais quando o natimorto tiver acima de 20-22 semanas

de idade gestacional ou peso maior que 500 gramas. O autor arrola como fatores

que fundamentam a realização da necropsia, além dos acima citados, a validação de

uma terapêutica fetal e a identificação de complicações de procedimentos invasivos

realizados durante o pré-natal175.

Dessa forma, permanece a relevância da necropsia perinatal para a avaliação

das anomalias congênitas, sendo de grande importância para se confirmar o

diagnóstico pré-natal, reconhecer anomalias adicionais internas, propiciar

associações com síndromes genéticas e cromossômicas e auxiliar no

aconselhamento genético para futuras gestações.

Diante desse contexto e devido ao avanço da medicina diagnóstica fetal,

aliado aos estudos necroscópicos do produto da concepção, possibilita-se conhecer

algumas situações em que os desdobramentos médicos e sociais ocasionados ao

feto e à gestante podem ser bastante semelhantes aos observados na anencefalia.

Roulson J, Benbow EW, Hasleton PS. Discrepancies between clinical and autopsy diagnosis and the value of post mortem histology; a meta-analysis and review. Histopathology. 2005; 47(6): 551-559.

175 Cabral ACV. Medicina Fetal: o feto como paciente. Belo Horizonte: Coopmed, 2005. p. 277-278.

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1.6 Abordagem judicial de malformações congênitas

A partir do entendimento firmado pelo STF de que a interrupção da gestação

em casos de feto portador de anencefalia não se amolda à conduta típica delituosa

do aborto, descrita no Código Penal, não se mostra necessário obter qualquer

autorização estatal para que o procedimento seja realizado, após o diagnóstico

firmado de acordo com norma infralegal emanada do CFM.

Observa-se, contudo, que algumas gestantes não conseguem obter a

pretendida antecipação do parto, mesmo quando o feto é portador de anencefalia.

Isso ocorre, sobretudo, em razão do exercício da escusa de consciência por parte do

médico ou até mesmo por desconhecimento sobre a desnecessidade de autorização

judicial para o procedimento que, repise-se, não configura conduta criminosa176.

Nesse contexto, há de se considerar, também, a influência que o grau de

conhecimento da equipe médica e multidisciplinar de saúde exerce na decisão da

paciente e no desfecho do caso concreto. Isso porque questões diversas de cunho

ético, moral, religioso e cultural podem exercer influência sobre a percepção da

temática pelos profissionais de saúde e suas consequentes condutas.

Some-se a isso o fato de que há situações em que o caso é levado ao

Judiciário e o magistrado, entendendo corretamente pela desnecessidade de

concessão de alvará judicial – por se tratar de uma decisão personalíssima da

gestante, já autorizada, a priori, pela Suprema Corte –, extingue o feito sem

resolução do mérito, deixando a decisão a cargo da paciente e seu médico.

Perante o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) e mesmo

após a publicação da decisão proferida pelo STF na ADPF n. 54, foram identificados

pedidos de autorização judicial para interrupção da gravidez em casos de

anencefalia. A título de exemplo, registre-se caso em que o pedido formulado em

sede de Habeas Corpus foi extinto, sem resolução do mérito, justamente em razão

de ser desnecessária a autorização judicial para tal ato médico:

176 Gazzola LPL. Aborto legal no Brasil sob a perspectiva da Bioética. In: Fernandes EG, Brito LSL. Direito e Medicina em dueto: grandes temas de direito médico. Belo Horizonte: Coopmed; 2018. p. 70.

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“[...] No caso em comento, nao se verifica ameaca a direito da gestante de interromper sua gravidez. Isso porque, em consonância com o julgado do STF e sob o pálio do Estado Laico, a conduta em questão não se enquadra em nenhuma tipificação do Código Penal.

Sendo a vontade da gestante, e ressalto, apenas da gestante, e sendo idôneos os documentos apresentados que atestam a anencefalia do feto [...], não resta ao Judiciário caminho outro a seguir que não o do indeferimento do presente feito, por entender que não cabe a valoração de uma conduta já apreciada pelo STF.

Não havendo, pois, ameaça do poder público ao direito da gestante, o presente Habeas Corpus carece de raison d’être, não sendo possível sua apreciação pois não se constatou nenhum óbice que impeça a interrupção da gravidez no caso em análise.

Pelo exposto, indefiro o presente Habeas Corpus e extingo o presente feito sem resolução de mérito com aplicação de analogia nas iras do art. 485, I, do Codigo de Processo Civil.” 177

Por vezes, a falta de informação precisa e de capacitação jurídica dos

profissionais da saúde aliada ao estigma observado na matéria acarretam a

inefetividade de um direito da gestante, já garantido no ordenamento jurídico

brasileiro. Inegável a importância da criação de Centros de Referência com corpo

técnico especializado para a adequada condução das gestantes de fetos com

malformações congênitas.

Passou-se a questionar, ainda, sobre a possibilidade de extensão do mesmo

entendimento proferido pelo STF na ADPF n. 54 a casos em que o feto é portador

de outras anomalias congênitas graves e incuráveis, também frequentemente tidas

como “incompatíveis com a vida extrauterina”, embora muitas sejam doencas

espectrais.

Há caso emblemático analisado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de

Justiça – STJ e proveniente do estado de Goiás, em que a possibilidade de

interrupção da gestação em malformação congênita foi debatida, embora sob outro

prisma, o da responsabilidade civil e reparação por danos morais.

177 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Habeas Corpus. Processo n. 0711624-66.2018.8.13.0024. Juizo sumariante do II Tribunal do Juri, Juiz Âmalin Aziz Sant’Ana. j. 20/07/2018 [acesso em 13 mai 2019]. Disponível em: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/downloadArquivo.do?sistemaOrigem=1&codigoArquivo=33245647&hashArquivo=b3ae4c43e4468c8f0433ace14015723c

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Em 2005, uma paciente teve a notícia de que seu feto era portador da

síndrome de body stalk – atualmente denominada sequência limb body wall complex

–, doença grave e incurável, com múltiplas e extensas anomalias fetais. Solicitado

alvará judicial para interrupção da gestação, o pedido foi deferido e a autora foi

internada para iniciar o procedimento médico. Contudo, no terceiro dia de internação

da gestante, o padre que geria uma associacao “pro-vida” da localidade obteve

medida judicial liminar em habeas corpus, para suspender o já iniciado tratamento

de indução do parto e garantir o prosseguimento da gestação. A paciente recebeu

alta hospitalar e, uma semana depois, após iniciado espontaneamente o trabalho de

parto, a criança nasceu com vida e morreu após uma hora e 40 minutos de seu

nascimento. Posteriormente, o casal ajuizou ação de reparação de danos morais

contra o padre por suposto abuso de direito, que foi julgada improcedente na

primeira e na segunda instâncias, motivando a interposição de recurso especial

perante o STJ.

Relatado pela Ministra Nancy Andrighi e julgado à unanimidade pela Terceira

Turma do STJ, o acórdão consignou, inicialmente, a possibilidade de extensão do

entendimento da ADPF 54 a outros casos análogos de doenças fetais que

“inviabilizam a vida extrauterina”. Registre-se que tal inviabilidade de vida da criança

nao foi considerada como garantia de letalidade intrauterina, mas como “certeza

médica de que a condição física do feto não lhe dará oportunidade de ter nenhuma

vida pós-parto, sendo questão de tempo o óbito da criança nascida sob o signo

dessa condição”178.

Considerou-se, ainda, que, diante da gravidade da doença fetal e do já

iniciado procedimento de indução do parto, foi temerária a conduta do padre e

causadora de grande sofrimento à gestante, que recebeu alta hospitalar e

permaneceu por uma semana sem acompanhamento médico até que iniciasse

novamente o trabalho de parto, com grande sofrimento físico e mental. Afirmou-se

que a intimidade, a vida privada e a honra do casal foram vulneradas pelo padre,

que buscou a prevalência, em um estado laico, de seu posicionamento particular,

impondo à gestante sofrimento inócuo e desarrazoado, em clara violação de seus

178 Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.467.888/GO. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 20 de outubro de 2016. [acesso 27 set 2019]. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201401589820&dt_publicacao=25/10/2016

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direitos da personalidade, e atuando em abuso do direito de ação. Foi fixado o

quantum indenizatório, a título de compensação pelos danos morais sofridos, em 60

mil reais, com incidência de correção monetária e juros de mora a partir do dia em

que a gestante deixou o hospital.

A laicidade estatal, fundamental à garantia das liberdades públicas, foi

corretamente ressaltada como um dos principais argumentos decisórios. E é

inequívoca a existência de limites para o exercício do direito de ação, que não foram

observados por quem, em um estado laico, busca a tutela estatal visando à

prevalência de seus posicionamentos existenciais particulares, de cunho religioso ou

moral. Corretas a sanção e a reprimenda judicial à ingerência externa desarrazoada

e à imposição a outrem de valores próprios.

Também relevante para a decisão supracitada foi a produção de ampla prova

sobre a condição médica do feto. Sob o prisma do contexto probatório para o

ajuizamento de ações com pedido de interrupção da gravidez, deve a petição inicial

ser instruída com provas médicas densas e claras acerca do diagnóstico da

malformação que acomete o feto, a possibilidade de letalidade com base na

Medicina baseada em evidências e as potenciais complicações para a mãe em caso

de manutenção da gravidez, bem como sua gravidade.

Tem se observado, em grande parte dos julgados nos Tribunais brasileiros, a

adoção da tese de que é possível a aplicação dos fundamentos decisórios adotados

pelo STF na ADPF n. 54, desde que haja documentação médica suficiente nos autos

que assegure que a doença que acomete o feto também acarreta “impossibilidade

de vida extrauterina” – afirmação médica que pode ser temerária – e complicações

materno-fetais análogas às ocasionadas pela anencefalia.

As que mais comumente são levadas a discussões judiciais, enquanto

anomalias graves com elevados índices de letalidade intrauterina e que merecem

atenção quando se discute a possibilidade de interrupção da gestação, são a

agenesia renal bilateral, a trissomia do cromossomo 18 (Síndrome de Edwards), a

trissomia do cromossomo 13 (Síndrome de Patau) e algumas displasias ósseas,

como a tanatofórica.

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A título meramente exemplificativo, colacionam-se julgados proferidos por

juízes brasileiros sobre a matéria. Diante dos propósitos do trabalho e dos limites a

ele inerentes, não se efetuou pesquisa jurisprudencial global no país, limitando-se as

referências aos julgados proferidos pelos Tribunais de Justiça dos Estados de Minas

Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, em razão do local de realização do estudo e da

significativa abrangência populacional desses órgãos jurisdicionais no sudeste

brasileiro. Optou-se pela seleção de julgados proferidos a partir do julgamento da

ADPF n. 54 pelo STF em abril de 2012, realizando-se pesquisa com malformações

congênitas exemplificativas dos tipos mais graves e de elevada letalidade: agenesia

renal bilateral, trissomias do 13 e do 18, gemelaridade imperfeita e displasia óssea

tanatofórica. Foram analisados, ainda, os casos em que os profissionais do Centro

de Medicina Fetal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais

(CEMEFE-HC) atuaram na instrução probatória de pedidos de interrupção da

gestação de pacientes acompanhadas pelo serviço.

Ressalte-se que alguns dos julgados ora analisados foram proferidos por

câmaras colegiadas nos Tribunais, demonstrando a existência de controvérsia e não

aceitação da sentença, com interposição de recurso. O fato é bastante relevante,

pois o tempo de tramitação do processo na primeira e segunda instâncias, muitas

vezes, torna inefetivo o direito pleiteado, ainda que porventura seja judicialmente

deferido.

Emblemático é o caso de paciente acompanhada pelo CEMEFE-HC, onde o

presente trabalho foi conduzido. A gestante era diabética e o feto portador de

encefalocele, tendo sido afirmados nos autos o mau prognóstico pós-natal, o baixo

potencial de sobrevida do feto e a comorbidade materna. Solicitada a autorização

judicial para interrupção da gravidez, o pedido foi negado pelo juiz sentenciante, o

que suscitou a interposição de recurso pela gestante. Ocorre que, durante a

tramitação processual e a despeito da opinião favorável do Desembargador Relator

sobre a possibilidade de deferimento do pedido, ocorreu a morte fetal, restando

prejudicado o recurso. Merecem literal transcrição as palavras do julgador, que foi

acompanhado à unanimidade por seus pares:

“[...] Junto com o relatorio medico veio a fotografia do feto morto e a olhos vistos se constata a absoluta impossibilidade de sobrevida.

Com a morte do feto, a postulação da apelante perdeu o objeto.

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Com isso, fica prejudicado o recurso, de modo que, debalde tenha reconhecido o direito da apelante, sua pretensão queda derruída.

Entretanto, permaneçam os fundamentos deste voto para que sirvam de alerta à necessidade de uma alteração não só legislativa, a respeito do tema, mas, também, nos paradigmas dos órgãos judicantes, tudo para que a eventual vitória de pessoas como a apelante, ao fim de seus pleitos judiciais, não seja como aquela glória de que falava Balzac, glória essa que, como o sol dos mortos, quando vem tarde ja vem fria”.179

Em outro caso também acompanhado pelo CEMEFE-HC, o diagnóstico era

gemelaridade imperfeita, a gestante tinha 16 anos de idade e o pedido de

antecipação do parto foi indeferido em sentença. Após a interposição de recurso, a

Turma julgadora reformou a sentença, com base nos seguintes argumentos:

“[...] Assim, esta bem demonstrado, atraves dos laudos apresentados, que ha um extremo risco para a gestante se a gravidez evoluir ate o final. Apesar de tudo, e preciso constatar que ha a vida dos fetos em desenvolvimento, que tambem e importante para o direito. Sucede que, diante das circunstâncias, e preciso buscar preservar a vida da gestante, em razao do risco e probabilidade medica de complicacoes no parto que podera acarretar os obitos dos envolvidos. Assim, a antecipacao de gravidez buscada pelo medico responsavel e medida que se ampara no ordenamento juridico”.180

O terceiro caso recente em que paciente acompanhada pelo CEMEFE-HC

obteve alvará autorizativo de antecipação terapêutica do parto deveu-se ao

diagnóstico de trissomia do 18 ou síndrome de Edwards. A gestante tinha 41 anos

de idade, estava em sua terceira gestação e o feto era polimalformado. Juntou-se

aos autos relatório médico esclarecendo a alta letalidade da doença e a ausência de

propostas terapêuticas pós-natais efetivas, bem como afirmando a existência de

relatos de casos na literatura médica com sobrevivência relativamente prolongada,

embora com grave comprometimento neuromotor. Ressalte-se que, a despeito

dessa informação e da afirmação de impossibilidade de se garantir, sob o ponto de

179 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Apelação Cível n. 1.0027.12.032088-5/001. 17a Câmara Cível. Rel. Des. Luciano Pinto, j. 31/01/2013. [acesso 19 mai 2019]. Disponível em: https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_complemento2.jsp?listaProcessos= 10027120320885001

180 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Apelação Cível n. 1.0362.18.004437-6/001. 6a Câmara Cível. Rel. Des. Sandra Fonseca, j. 21/09/2018. [acesso 19 mai 2019]. Disponível em: https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_movimentacoes2.jsp?listaProcessos= 10362180044376001

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vista médico, a letalidade intrauterina na condição, o magistrado entendeu que as

chances de sobrevivência do feto eram pequenas e que os prejuízos emocionais

sofridos pela gestante eram relevantes e potencialmente geradores de danos

irreparáveis. Afirmou que impor a continuidade da gestação seria um sacrifício

“desnecessário e desarrazoado, (...) causando à gestante dor, angústia e frustração,

resultando violência às vertentes da dignidade da pessoa humana, em cerceio à

liberdade e autonomia da vontade”. Por fim, fundamentou o deferimento do pedido

no fato de que “manter a aplicação da lei seria induzir a formação do sentimento

materno na autora, sentimento que será subtraído subitamente após o nascimento, o

que se mostra paradoxal e contrario a qualquer definicao de Justica”181.

Os dois julgados a seguir descritos foram proferidos pelo Tribunal de Justiça

do Estado do Rio de Janeiro em 2015 e analisaram casos de gemelaridade

imperfeita do tipo bicefalia e de agenesia renal bilateral, doenças muito graves e

sem qualquer tratamento, com elevado índice de mortalidade pré-natal. Em ambos

os casos, ainda que as crianças nascessem com vida, ela provavelmente não se

sustentaria por mais do que poucas horas:

“HABEAS CORPUS. GEMELARIDADE IMPERFEITA, ALTAMENTE RARA E GRAVE. IMPETRANTE QUE SE INSURGE CONTRA A SENTENÇA NA QUAL A MM. JUÍZA JULGOU EXTINTO, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO, O PROCESSO EM QUE SE PRETENDIA A OBTENÇÃO DE ALVARÁ JUDICIAL, COM O FIM DE AUTORIZAR A INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. ORDEM CONCEDIDA. […] os gemeos siameses sao portadores de uma anomalia insuperável, que não os permitirá sobreviver após o parto, independentemente de qualquer intervencao medica. […] Ha que se destacar a grande similitude entre a hipótese dos autos e os casos de interrupção de gravidez decorrentes de anencefalia, cujas consequências são absolutamente idênticas, ou seja, a morte do feto apos o parto.” 182

“Trata-se de pedido de autorização para interrupção de gravidez formulado por gestante e seu companheiro, e o foi com apoio em laudo médico exarado em exame de ultrassonografia a que se submeteu a requerente, o qual atesta tratar-se de feto portador de

181 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Alvará. Processo n. 5132540-51.2019.8.13.0024, 3a Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, Juiz Átila Andrade de Castro, j. 17/09/2019. [acesso 27 set 2019]. Disponível em: https://pje.tjmg.jus.br:443/pje/Processo/Consulta Documento/listView.seam?x=19091713470210000000083060113 182 Rio de Janeiro. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. TJRJ, HC 0023285-95.2015.8.19.0000, 8a Câmara Criminal, Rel. Des. Claudio Tavares De Oliveira Junior, j. 27/05/2015. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx? N=201505906568

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Agenesia Renal Bilateral […] a condicao diagnosticada e incompatível com a vida em 100% dos casos, levando a óbito intra-utero ou no periodo neonatal precoce. […] facil perceber que impor a gestante a manutenção de uma gravidez fadada ao insucesso, dado que a morte do feto é inevitável, afronta claramente a sua dignidade. Sentença concessiva do pedido inicial, para autorizar a interrupção da gestacao.” 183

Decisões semelhantes concessivas do pedido formulado também têm sido

proferidas em casos de trissomia do cromossomo 18 (Síndrome de Edwards). Há

algumas decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em que, embora

se tenha utilizado os termos “aborto terapeutico”, “aborto profilatico” e “aborto

eugenico”, que nao se aplicavam propriamente as hipoteses, afirmou-se a

impossibilidade de o Judiciário proferir juízo moral acerca da conduta da gestante, o

que coaduna com o que ora se defende:

“Mandado de Seguranca Interrupcao de gravidez de 22ª semanas indeferida pela origem Feto portador de trissomia do cromossomo 18 (Síndrome de Edwards) Aborto eugênico - Liminar concedida Medida convalidada Ordem concedida.”184

“Habeas Corpus Preventivo. Pedido de interrupcao de gravidez. O feto padece de ‘Trissomia do Cromossomo 18’ ou ‘Sindrome de Edwards’. Relatorio de Acompanhamento Genetico aponta para inviabilidade de sobrevida ao feto, classificando o caso como emergência obstétrica grave diante do risco à vida da gestante. Presente a hipótese legal de aborto terapêutico ou profilático. Ordem concedida, referendada a liminar.”185

“HABEAS CORPUS - Pedido de gestante para interrupção de gravidez por ser o feto portador da Síndrome de Edwards - Liminar concedida - Inviabilidade de sobrevida ao feto - Riscos de saúde e possível dano psicológico à gestante - Abortamento terapêutico - Manutenção da concessão em definitivo - Necessidade - Impossibilidade ao Poder Judiciário de fazer juízo moral, devendo se

183 Rio de Janeiro. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. TJRJ, Processo n. 0356331-96.2015.8.19.0001, 4a Vara Criminal, Juíza Elizabeth Machado Louro, j. 28/08/2015. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?v=2& FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProcesso=2015.001.322632-2

184 São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. TJSP, Mandado de Segurança Criminal 2029986-77.2014.8.26.0000, 16ª Câmara Criminal. Rel. Des. Pedro Menin, j. 08/04/2014. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=7488417&cdForo=0

185 São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. TJSP, Habeas Corpus Criminal 0045924-20.2012.8.26.0000, 1ª Câmara Criminal; 1ª Vara Tribunal do Juri. Rel. Péricles Piza, j. 23/04/2012. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao= 5853132&cdForo=0

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ater à legalidade ou não da conduta - Ordem concedida em definitivo.” 186

Por outro lado, notam-se decisões em sentido contrário baseadas em alguma

possibilidade de vida extrauterina, ainda que por pouco tempo, na mesma anomalia

acima descrita, a trissomia do cromossomo 18, em caso examinado pelo TJMG em

2016:

“APELAÇÃO CÍVEL. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. FETO PORTADOR DE SÍNDROME DE EDWARDS. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE RISCO IMINENTE À GESTANTE. GESTAÇÃO EM ESTÁGIO AVANÇADO. IMPROCEDÊNCIA. SENTENÇA MANTIDA. - A interrupção da gravidez é tipificada no Código Penal, que estabelece, todavia, duas exceções, o aborto terapêutico ou necessário, quando há sério e grave perigo para a vida da gestante e o aborto humanitário, quando a gravidez resulta de estupro. - O aborto terapêutico somente tem cabimento quando necessário para salvar a vida da gestante, não sendo suficiente, para tanto, a existência de gravidez de risco. - Afastada a hipótese de aborto necessário, ilegítimo o seu consentimento com base na tese do aborto eugenésico, porquanto o direito à vida é garantido constitucionalmente, não havendo permissivo legal para a interrupção da gestação, em caso de má formação de nascituro. - De acordo com a orientação médica, o aborto provocado só é recomendável até 18 semanas de gestação, o que nao ocorre no presente caso”.187

Também a Síndrome de Patau (trissomia do cromossomo 13), que

frequentemente cursa com formas graves e letais, já foi objeto de análise pelo

TJMG, que decidiu pela impossibilidade de antecipação terapêutica do parto, nos

termos seguintes:

“AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE ABORTO - MÁ FORMAÇÃO DO FETO - AUSÊNCIA DE COMPROVADO RISCO DE MORTE DA GENITORA - NÃO-CABIMENTO - ARTIGO 128, I, DO CP - ABORTO EUGENÉSICO - AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL - PRESERVAÇÃO DO DIREITO À VIDA GARANTIDO CONSTITUCIONALMENTE - DESPROVIMENTO DA APELAÇÃO. Em que pese incontroversa, diante dos laudos médicos acostados

186 São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. TJSP, HC 0046549-25.2010.8.26.0000, 16ª Câmara Criminal. Rel. Des. Edison Brandão, j. 08/06/2012. [acesso 15 mai 2019]. Disponível em: http://brs.aasp.org.br/netacgi/nph-brs.exe?d=AASP&f=G&l=20&p=53&r=1045&s1=&s2=sp&u=/ netahtml/aasp/aasp1.asp

187 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Apelação Cível n. 1.0459.16.000396-6/001. 9a Câmara Cível. Rel. Des. Luiz Artur Hilário, j. 17/05/2016. [acesso 19 mai 2019]. Disponível em: https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_resultado2.jsp?listaProcessos= 10459160003966001

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aos autos, a inexistência de vida pós-parto do feto, que apresenta "alterações morfológicas graves com características de Síndrome de Patau (Trissomia do 13)" (f. 22), o fato é que disso não advém, comprovadamente, perigo iminente de morte da mãe, ou seja, que o aborto é o único meio de salvar sua vida, conforme preceitua o artigo 128, I, do Código Penal. Nesse caso, por óbice legal, não tem cabimento a autorização judicial para a interrupção da gravidez. Afastada a hipótese de aborto necessário, ilegítimo o seu consentimento com base na tese do aborto eugenésico, porquanto o direito à vida é garantido constitucionalmente, não havendo permissivo legal para a interrupção de gestação no caso de má formacao do nascituro”.188

Embora o caso anteriormente citado tenha sido julgado nos idos de 2005, ele

foi ora mencionado por ser ainda frequentemente citado como precedente em

decisões recentes do mesmo Tribunal, visando fundamentar o indeferimento do

pleito das gestantes. Outro caso de Síndrome de Patau foi mais recentemente

analisado pela mesma Turma Julgadora do TJMG: a despeito das evidências

médicas sobre a gravidade e incurabilidade da doença, além de parecer opinativo do

Ministério Público favorável à medida requerida pela gestante, o feito foi extinto sem

resolução do mérito, tendo sido declaradas a carência de ação da autora e a

impossibilidade jurídica de seu pedido. Os principais argumentos foram a

inexistência de norma que autoriza a antecipação do parto por anomalia fetal, a

proteção do direito do feto de nascer e o fato de que eventual concessão do pedido

da gestante prestaria para “livra-la do sofrimento da gestação e não para lhe garantir

a sobrevivencia”189.

Pela análise dos acórdãos citados, constata-se no meio jurídico alguma

confusão terminológica acerca dos vocábulos aborto eugênico (ou IEG), aborto

terapêutico (ou ITG) e “aborto” seletivo (ou ISG), sem que se realize,

sistematicamente, uma adequada diferenciação técnica entre os termos. Tal fato

contribui para a violação à isonomia, já que a interpretação equivocada do que

188 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Apelação Cível n. 1.0166.05.008655-1/001. 16a Câmara Cível. Rel. Des. Batista de Abreu, j. 14/09/2005. [acesso 19 mai 2019]. Disponível em: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJ EspelhoAcordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico= 1.0166.05.008655-1%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar

189 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Apelação Cível n. 1.0024.12.122923-1/001. 16a Câmara Cível. Rel. Des. Batista de Abreu, j. 24/10/2012. [acesso 27 set 2019]. Disponível em: https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_complemento2.jsp?listaProcessos= 10024121229231001

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configura o pedido de interrupção pode proporcionar resultados díspares em casos

análogos.

Defende-se que a nomenclatura ITG seja adotada apenas para os casos em

que se configura um estado de necessidade como excludente de ilicitude pelo risco

iminente de morte materna, hipótese em que o aborto é permitido pelo próprio CPB,

sem qualquer necessidade de autorização judicial. Por outro lado, os termos ISG e

IEG são adotados quando o feto é portador de malformação congênita letal ou não,

respectivamente, embora sejam relevantes as ressalvas sobre a incerteza da

letalidade e a impossibilidade de se prognosticar quando a morte ocorreria, se no

ambiente uterino ou após variáveis períodos de vida após o nascimento. Preconiza-

se, contudo, que o termo IEG seja proscrito da terminologia juridicamente adotada,

em razão do debatido alhures sobre a conotação social da palavra eugenia.

Ressalte-se, por fim, que o entendimento judicial sobre a necessidade de

demonstração, por afirmações médicas contundentes, que a anomalia que acomete

o feto é totalmente incompatível com a vida extrauterina também acarreta

inefetividade do direito pleiteado, diante da impossibilidade de tal afirmação na

expressiva maioria das anomalias multissistêmicas. Ademais, o questionamento

sobre a letalidade da doença acarreta confusão em razão do alcance temporal e

terminológico do que se entende por letalidade.

Contudo, a comprovação da gravidade e da incurabilidade da doença – e não

de sua certa letalidade intrauterina – é possível e factível por exames médicos pré-

natais e deveria ser alçada como prova suficiente e apta ao amparo do pedido, como

se nota em diversos ordenamentos jurídicos ocidentais.

1.7 A infecção pelo vírus Zika, a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 5.581

e o Supremo Tribunal Federal

O Brasil enfrentou, em 2015 e 2016 e especialmente na região Nordeste, uma

epidemia de graves repercussões decorrentes da transmissão vertical da infecção

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pelo vírus Zika em mulheres grávidas, considerada pela Organização Mundial de

Saúde uma emergência em saúde pública de preocupação internacional190,191.

A relação entre a infecção viral e o desenvolvimento de malformações

congênitas fetais foi amplamente demonstrada192,193, sendo a microcefalia apenas

um dos sinais clínicos da síndrome congênita Zika, em consequência de um

espectro de danos neurológicos que envolvem ventriculomegalia, hipoplasia

cerebelar e do corpo caloso e atrofia cortical, além de outros achados como

alterações oftalmológicas e restrição ao desenvolvimento neuromotor194,195.

A despeito de, em maio de 2017, o Ministério da Saúde ter noticiado o fim do

estado de Emergência Nacional em Saúde Pública em decorrência da expressiva

queda do número de novos casos registrados 196 , é certo que a proliferação

desenfreada do mosquito vetor ainda persiste. Ademais, ainda não há estudos

suficientes acerca das potenciais consequências, em médio e longo prazos, à saúde

das pessoas infectadas, sobretudo crianças nascidas de mães que adquiriram a

infecção ainda durante a gestação. O problema permanece atual e pesquisadores

190 World Health Organization. Media Centre. WHO Director-General summarizes the outcome of the Emergency Committee regarding clusters of microcephaly and Guillain-Barre syndrome. [acesso 2 mai 2019]. Disponivel em: http://bit.ly/1SowcKJ

191 Castro MC. Zika Virus and Health Systems in Brazil: From Unknown to a Menace. Health Systems & Reform. 2016; 2(2): 119-122.

192 Martines RB, Bhatnagar J, Ramos AMO, Davi HPF, Iglezias SD, Kanamura CT, et al. Pathology of congenital Zika syndrome in Brazil: a case series. Lancet. 2016; 388: 898-904.

193 Broutet N, Krauer F, Riesen M, Khalakdina A, Almiron M, Aldighieri S, et al. Zika Virus as a cause of neurologic disorders. N Engl J Med. 2016; 374(16): 1506-1509.

194 Melo ASO, Aguiar RS, Amorim MMR, Arruda MB, Melo FO, Ribeiro STC, et al. Congenital Zika Virus Infection: Beyond Neonatal Microcephaly. JAMA Neurol. 2016; 73(12): 1407-1416.

195 Brasil P, Pereira JP, Moreira ME, Nogueira RMR, Damasceno L, Wakimoto M, et al. Zika Virus Infection in Pregnant Women in Rio de Janeiro. N Engl J Med 2016; 375: 2321-34. DOI: 10.1056/NEJMoa1602412

196 Em 11 de maio de 2017, o Ministério da Saúde declarou o fim do estado de Emergência Nacional para Zika e microcefalia – que havia sido decretado em 11 de novembro de 2015 –, em razão da queda de 95% do número de casos registrados nos primeiros meses do ano, em comparação com o ano anterior. A decisão foi informada à Organização Mundial de Saúde (OMS), 18 meses após a decretação da emergência em saúde pública nacional. O Ministério da Saúde considerou que, à ocasião, não mais estaria presente um dos critérios da avaliação de risco adotada pela OMS, o de que o evento fosse considerado incomum ou inesperado. A declaração foi amplamente noticiada na imprensa e pode ser encontrada no endereço eletrônico: http://portalms.saude.gov.br/noticias/svs/ 28348-ministerio-da-saude-declara-fim-da-emergencia-nacional-para-zika-e-microcefalia [acesso 22 mai 2019].

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têm desenvolvido novas e mais sensíveis técnicas de detecção viral, que reduzem o

custo e o tempo para o diagnóstico da infecção197.

Certamente, o foco das atenções na microcefalia subestima a real magnitude

da doença 198 . O acompanhamento médico após o nascimento demonstrou a

existência de crianças nascidas com perímetro cefálico normal e aparentemente

sem alterações, mas que passaram a desenvolver sintomas como choro frequente,

hiperreflexia, hipertonia, surdez, convulsões, irritabilidade, atraso de

desenvolvimento e alterações neurológicas e oculares nos primeiros meses de

vida199. A epidemia é recente no Brasil e ainda pouco se conhece sobre a história

natural da doença, a evolução dessas crianças e eventuais complicações futuras.

Tais questões apenas poderão ser definidas de forma clara e precisa com o

seguimento de grandes coortes por longos períodos.

Nesse contexto de emergência em saúde pública e consequências que então

se apresentavam claramente nefastas, era premente a necessidade de instituição de

políticas públicas que garantissem o amplo esclarecimento da população sobre a

forma de transmissão da doença, as possíveis consequências advindas da infecção

durante a gravidez e a prevenção da ocorrência de novos casos. O desafio era

inegável e as medidas não foram efetivas no tocante à garantia de acolhimento às

famílias, cuidado das crianças acometidas e acesso às políticas públicas200,201.

197 Pesquisadores brasileiros da Fundação Oswaldo Cruz desenvolveram técnica de amplificação isotérmica mediada por alça (RT-Lamp), que se mostrou mais rápida, mais sensível e mais barata que a PCR – reação em cadeia da polimerase, até então considerada o melhor método para o diagnóstico da infecção viral. Silva SJR, Paiva MRS, Guedes DRD, Krokovsky L, Melo FL, Silva MAL, et al. Development and Validation of Reverse Transcription Loop-Mediated Isothermal Amplification (RT-LAMP) for Rapid Detection of ZIKV in Mosquito Samples from Brazil. Nature Scientific Reports. 2019; 9(4494): 1-12. DOI 10.1038/s41598-019-40960-5

198 França GVA, Schuler-Faccini L, Oliveira WK, Henriques CMP, Carmo EH, Pedi VD, et al. Congenital Zika virus syndrome in Brazil: a case series of the first 1501 livebirths with complete investigation. Lancet. 2016; 388: 891–97.

199 Einspieler C, Utsch F, Brasil P, Aizawa CYP, Peyton C, Hasue RH, et al. Association of Infants Exposed to Prenatal Zika Virus Infection With Their Clinical, Neurologic, and Developmental Status Evaluated via the General Movement Assessment Tool. JAMA Netw Open. 2019; 2(1): e187235.

200 Mendes AG, Moreira MELM, Campos DS, Silva LB, Arruda LO. Enfrentando uma nova realidade a partir da síndrome congênita do vírus zika: a perspectiva das famílias. Cien Saude Colet. 2019. [acesso 3 mai 2019]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/enfrentando-uma-nova-realidade-a-partir-da-sindrome-congenita-do-virus-zika-a-perspectiva-das-familias/17145

201 Diniz D, Gumieri S; Bevilacqua BG; Cook RJ; Dickens BM. Zika virus infection in Brazil and human rights obligations. Int J Gynecol Obstet. 2017; 136: 105-110.

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A um cenário de graves consequências às famílias – socialmente vulneráveis

e economicamente hipossuficientes – atingidas pela epidemia, somam-se as

discussões sobre a possibilidade de realização do aborto, diante de uma legislação

restritiva e de conflitos fundamentados em argumentos morais que tangenciam uma

ideia de sacralidade e intangibilidade da vida humana. Ao mesmo tempo, discutem-

se a autonomia reprodutiva e a tomada de decisões na gravidez, em um país onde

as desigualdades sociais são notáveis e o princípio bioético da justiça não se

materializa em amplo e equânime acesso às políticas públicas de saúde.

Ana Cristina González Vélez e Simone Diniz202 afirmam que a América Latina

já foi reconhecida pela Comissão Econômica das Nações Unidas como a região de

maior desigualdade no mundo, expressa, dentre outras formas, por diferenças

socioeconômicas e de gênero na efetivação de direitos, ora analisados sob o prisma

dos direitos reprodutivos da mulher e sua autonomia corporal. As autoras ressaltam

que os índices de mortalidade materna e acesso ao aborto legal são tradutores

dessa ideia e comprovam que a população mais afetada pela inefetividade dos

direitos ora debatidos são mulheres negras, pobres e adolescentes.

Mulheres vitimadas pelo Zika ou por outras doenças em situações de crise em

saúde pública habitualmente vivenciam assimetrias em suas relações sociais e de

poder que, com frequência, as impedem de decidir livremente sobre suas vidas,

seus corpos, sua sexualidade e a reprodução enquanto projeto autônomo de

maternidade. Tal vulnerabilidade social associa-se com frequência à violência de

gênero e à gravidez indesejada, situações em que as mulheres buscam por formas

de interromper a gravidez, lícitas ou não.

A epidemia e o relativo desconhecimento sobre seus efeitos à época de seu

auge fez com que se recomendasse que mulheres adiassem seus projetos parentais

por algum tempo203,204. Tais recomendações de que se evitasse a gravidez não se

acompanharam de ampla informação acerca da doença ou sobre métodos

contraceptivos, tampouco de acolhimento àquelas mulheres que, já grávidas,

202 Velez ACG, Diniz SG. Inequality, Zika epidemics, and the lack of reproductive rights in Latin America. Reproductive Health Matters. 2016; 24:57–61.

203 Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. Brazilian women avoiding pregnancy during Zika epidemic. J Fam Plann Reprod Health Care. 2017; 43:80.

204 McNeil Jr DG. Zika: a epidemia emergente [trad Rosaura Eichenberg]. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2016. p. 141-168.

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constatavam a situação de desamparo social a que estavam submetidas. O

questionamento sobre a possibilidade de aborto e exercício de autonomia

reprodutiva tornou-se uma realidade, reascendendo na pauta pública os debates

sobre a interrupção da gravidez em casos de anomalias congênitas fetais205.

É nesse ponto que se consideram também os casos de gravidez desejada,

enquanto expressão do planejamento familiar e da autonomia reprodutiva do casal,

que se tornam projetos parentais frustrados diante do diagnóstico de uma anomalia

fetal grave 206 , de consequências por vezes pouco conhecidas ao neonato,

propiciadas por um contexto de ineficiência de políticas sanitárias de controle do

vetor da doença, o mosquito Aedes aegypti.

A epidemia pelo vírus Zika descortinou a inefetividade do Estado em garantir

ampla informação à população das áreas de risco, a falência das políticas públicas

sanitárias de prevenção e controle da epidemia, além da omissão na garantia de

métodos contraceptivos reversíveis de longa duração. Em meio a tais

consequências sociais, há ainda a insuficiência de mecanismos e políticas públicas

de inclusão social para crianças que nasceram com variados graus de deficiências

neurológicas.

Alguns desses argumentos foram levados a debate perante a Suprema Corte

brasileira, sendo fundamental a análise da abordagem judicial da matéria, que

poderá servir de paradigma a casos análogos futuros, sobretudo considerando-se o

protagonismo do STF em matéria de direitos fundamentais, em um sistema com

jurisdição verticalizada.

Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n. 5.581) 207 foi ajuizada

perante o STF pela Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP,

visando à discussão jurídica de dispositivos da Lei Federal n. 13.301 de 2016208, que

205 Carabali M, Austin N, King NB, Kaufman JS. The Zika epidemic and abortion in Latin America: a scoping review. Glob Health Res Policy. 2018; 3:15.

206 Félix VPSR, Farias AM. Microcefalia e dinâmica familiar: a percepcao do pai frente a deficiencia do filho. Cad. Saude Publica 2018; 34(12): e00220316.

207 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.581. Peças processuais. Relatora Ministra Carmem Lúcia [acesso 13 mai 2019]. Ajuizada 24/08/2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=5581&processo=5581

208 Brasil. Lei n. 13.301, de 27 de junho de 2016. Dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito

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dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância epidemiológica e controle sanitário

do mosquito vetor dos vírus da dengue, Chikungunya e Zika.

As alegações da ANADEP no questionamento da lei perpassam pela

inefetividade das políticas públicas de controle de doenças com potencial de se

tornarem pandêmicas, insuficiência de dotação orçamentária para a proteção dos

direitos da população afetada, omissão estatal na garantia de informação à

população e insuficiência de acesso a mecanismos de inclusão social, sobretudo

para crianças afetadas pela síndrome congênita Zika209.

Quanto à possibilidade de interrupção da gestação de grávidas infectadas

pelo vírus Zika, a Associação autora requer que o fato não se enquadre no tipo

penal do aborto, assentando que a conduta constituiria estado de necessidade

justificante, que é uma causa especial de exclusão da ilicitude da conduta.

Preconiza-se a proteção dos direitos da mulher à vida digna, à liberdade, à

autodeterminação pessoal e sexual e à autonomia reprodutiva, sob o principal

argumento de que a vida não se trata de um direito absoluto e a criminalização da

conduta constitui afronta à razoabilidade e à proporcionalidade.

Durante o trâmite processual, a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou

parecer contrário à pretensão da requerente e em defesa da norma210, com os

principais argumentos de impossibilidade de atuação do Poder Judiciário como

legislador positivo, sob pena de grave violação ao princípio da separação dos

poderes, e do respeito às limitações orçamentárias diante da grave e notória crise

econômica que o país enfrenta. Quanto ao aborto, ressaltou a inocorrência de

inviabilidade para a vida, mas apenas a possibilidade de danos neurológicos

permitindo a vida com deficiência, que deve ser protegida pelo Estado e por toda a

sociedade.

transmissor do vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika; e altera a Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977. Diário Oficial da União 28 jun 2016. [acesso 13 mai 2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13301.htm

209 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.581. Peças processuais. Relatora Ministra Carmem Lúcia [acesso 13 mai 2019]. Ajuizada 24/08/2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=5581&processo=5581

210 Registre-se que o artigo 103, § 3o, da Constituição de 1988 determina a participação do Advogado-Geral da União em Ação Direta de Inconstitucionalidade como curador da lei, ou seja, obrigatoriamente em defesa da constitucionalidade da norma impugnada.

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Já a Procuradoria-Geral da República (PGR) manifestou-se em sentido

favorável ao pedido formulado, defendendo a possibilidade de constatação judicial

de proteção deficiente de direitos fundamentais em políticas públicas – sobretudo no

que diz respeito à garantia do mínimo existencial –, o que permite ao Judiciário

impor seu cumprimento aos entes estatais.

Quanto à possibilidade da pleiteada legalização da interrupção da gravidez

em casos de comprovada infecção pelo vírus Zika, os principais argumentos da PGR

foram a possibilidade de aplicação analógica do aborto ético ou humanitário –

permitido em gestações que se seguem a um estupro – , caso em que se opta pela

proteção da saúde psíquica da gestante em angústia e sofrimento moral, em

detrimento da vida de um feto normal, plenamente viável e sem nenhum tipo de

malformação congênita. Ainda, defendeu-se a incidência do estado de necessidade

como excludente de ilicitude, amparando a conduta de uma mãe que age em intenso

sofrimento psíquico, desamparada por um ato omissivo do Estado.

Não se pode olvidar que as anomalias ocasionadas pela infecção congênita

pelo vírus Zika não são análogas, na expressiva maioria dos casos, à anencefalia.

Embora existam casos descritos de abortos espontâneos de fetos cujas mães

tinham o diagnóstico da infecção viral211, as principais manifestações da síndrome

neurológica são na forma de anomalias plenamente compatíveis com a vida

extrauterina, não apresentando elevada mortalidade, mas significativa morbidade.

As crianças com microcefalia, uma das complicações frequentemente

observadas, são pessoas com deficiência e, como tal, devem ser foco de políticas

públicas que visam promover a igualdade, a inclusão social e a reabilitação, de

modo a impedir tratamento discriminatório. Há um verdadeiro compromisso da

sociedade brasileira com a proteção constitucional da pessoa com deficiência, o que

não pode ser afastado da discussão sobre o aborto em casos de anomalias

compatíveis com a vida e causadoras de variáveis graus de deficiências físicas e

mentais212.

211 Martines RB, Bhatnagar J, Ramos AMO, Davi HPF, Iglezias SD, Kanamura CT, et al. Pathology of congenital Zika syndrome in Brazil: a case series. Lancet. 2016; 388: 898-904.

212 Gazzola LPL. Aborto legal no Brasil sob a perspectiva da Bioética. In: Fernandes EG, Brito LSL. Direito e Medicina em dueto: grandes temas de direito médico. Belo Horizonte: Coopmed; 2018. p. 80.

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Dessa forma, a eventual permissão da interrupção da gestação nessas

hipóteses mais se aproxima da discussão em torno de uma descriminalização mais

ampla do aborto do que, verdadeiramente, de uma ISG, por não se tratar a hipótese

de uma doença incompatível com a vida.

Da mesma forma entende Liliane Bernardes ao analisar a petição inicial da

ADI n. 5.581. Para a autora:

“(...) aparentemente, o que o grupo advoga e que o tipo de interrupção de gestação que a ADPF propõe não é do tipo seletivo (ISG), mas sim uma interrupção voluntária da gestação (IVG). Se assim o é, essa interrupção, caso solicitada, é motivada pelo fato de a gestante ou o casal não desejarem a gestação. A grande questão que emerge é: por que essa gestante ou casal não desejam a gestação? Obviamente todo o contexto da epidemia do vírus Zika tem um grande peso nessa motivação, mas o fato de centenas de bebês estarem nascendo com alterações congênitas, com impedimentos físicos, sensoriais e cognitivos, somado ao estigma que a sociedade imputa às pessoas com deficiência não seriam também uma importante motivação? De fato, seria difícil distinguir se a gestante ou a família estariam optando por um aborto seletivo (ISG) ou por uma interrupção voluntária da gestacao (IVG).” 213

Ainda não tendo o STF se manifestado sobre a matéria até a conclusão deste

trabalho, chama a atenção a atuação da PGR na ação, opinando pela procedência

do pedido com base na proteção da saúde – inclusive no plano mental – da mulher e

de sua autonomia reprodutiva. Trata-se de posicionamento inovador do Ministério

Público e em sentido absolutamente contrário ao adotado na discussão travada

sobre a anencefalia, afirmando-se, ainda, a possibilidade de entendimento de que

haveria um estado de necessidade214, apto a amparar e justificar a conduta materna.

213 Bernardes LCG. Bioética, deficiência e políticas públicas: uma proposta de análise a partir da abordagem da capacidade. Tese [Doutorado em Bioética]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Bioética; 2016. p. 143.

214 O estado de necessidade é uma causa de exclusão de ilicitude ou de justificação de uma conduta, configurada quando há colisão de interesses juridicamente relevantes, sendo um deles sacrificado em prol da proteção do outro. Cezar Roberto Bitencort esclarece que “o Direito nao exige renuncias heroicas” e faculta ao individuo escolher sacrificar um interesse legitimo, quando nao lhe e exigivel que sacrifique o que lhe está em contraposição (Bitencourt CR. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva; 2008. p. 311). No caso concreto, a hipótese também se aproxima da inexigibilidade de conduta diversa, enquanto causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Poder-se-ia defender que a mãe de uma criança com síndrome neurológica Zika adquirida por uma omissão estatal em garantir políticas eficazes de saúde pública e controle da infecção, apesar de cometer um fato típico e ilícito – o aborto – não seria

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O julgamento da ação pelo STF foi agendado para 22 de maio de 2019, o que

suscitou manifestações públicas de grupos sociais e lideranças que se denominam

“pro-vida”, contra um ativismo judicial supostamente apto a legitimar a conduta por

eles rechaçada. No mesmo mês, a ADI 5.581 foi retirada de pauta215, mais uma vez

contribuindo para a dilação do tempo processual e confirmando a ineficiência de

respostas estatais tardias. A inércia no julgamento na ação proposta, após quatro

anos do auge da epidemia, contribui para a afirmação de um ideário social

equivocado de que a doença não é mais um risco ou que suas consequências não

são juridicamente relevantes216.

Ainda que numericamente e sob o estrito ponto de vista médico a questão já

tenha sido minimizada ou não seja mais relevante do que outras infecções

prevalentes em nosso meio na gestação, a epidemia causada pelo vírus Zika pode

inaugurar um “modelo” de atencao em saude publica em doenças emergentes.

Ademais, a forma como o Judiciário definirá a questão é absolutamente

relevante para questões análogas futuras, diante dos efeitos sociojurídicos de uma

decisão proferida pela Suprema Corte em seu protagonismo, mesmo em um país de

tradição jurídica romano-germânica. Uma decisão judicial proferida em sede de

controle concentrado de constitucionalidade é um dos instrumentos delimitadores de

um novo horizonte de possibilidades jurídicas de um ordenamento, conferindo

validade aos atos estatais, além de harmonia e coesão ao sistema jurídico. É forma

culpável por não lhe ser razoável exigir a conduta de manter a gestação em condições sociais tão adversas.

215 Em 8 de outubro de 2019, a ação foi novamente incluída em pauta para sessão de julgamento. Contudo, no dia 14 do mesmo mês, o feito foi mais uma vez retirado de pauta, sendo esse o andamento processual observado até a data de conclusão deste trabalho, que pode ser consultado e está disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5037704 [acesso 06 nov 2019].

216 Ressalte-se que mesmo que a epidemia pelo vírus Zika não mais constitua uma situação atual de emergência nacional, a preocupação com seus efeitos – jurídicos e em saúde pública – ainda não pode ser minimizada. A doença demonstrou um baixo potencial do estado de lidar, de forma rápida e efetiva, com novas e emergentes doenças de potencial epidêmico. Nesse sentido, interessantes os dizeres de Paola Minoprio, pesquisadora brasileira do Instituto Pasteur, fundação francesa que inaugurou parceria com a Universidade de São Paulo, em julho de 2019, para investigar os danos neurológiocos causados pelo virus Zika e manifestações de outros agentes etiológicos potencialmente perigosos. Afirmou a pesquisadora, em notícia veiculada pela Folha de São Paulo que anunciou a recente parceria: “após a epidemia de Zika e febre amarela, outros vírus aparecerão, como o mayaro e o west nile (da febre no Nilo Ocidental). Alguns podem ser trazidos por aves, que migram por causa das mudanças climáticas. Assim, doenças passam a ocorrer onde antes não existiam” (Folha de Sao Paulo, caderno Ciencia, 03 jul 2019. Disponivel em: www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/07/usp-e-instituto-pasteur-lancam-parceria-para-investigar-zika-e-outras-doencas.shtml [acesso 05 jul 2019]).

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eficaz, ainda, de concretizar direitos fundamentais. E, muitas vezes, a discussão do

STF, embora processualmente encerre um debate jurídico, é o início da discussão

social sobre a matéria.

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2 ABORDAGEM JURÍDICA E BIOÉTICA PÓS-NATAL: O RECÉM-NASCIDO

COM MALFORMAÇÕES GRAVES, OS CUIDADOS PALIATIVOS E OS DIREITOS

DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL

Conforme demonstrado no capítulo anterior, a epidemia causada pelo vírus

Zika lançou novas luzes na abordagem do recém-nascido malformado, que vão

muito além da discussão sobre a potencialidade ou não de vida extrauterina, já que

a síndrome congênita Zika é configuradora, na maior parte dos casos, de deficiência

neurológica e não de letalidade intrauterina. Nesse contexto, afigura-se fundamental

analisar a abordagem ética das crianças que desenvolverão graus variáveis de

deficiências compatíveis com a vida adulta, bem como daquelas portadoras de

malformações congênitas graves, de alta letalidade e prognóstico reservado no

período neonatal precoce.

A adoção de cuidados paliativos e a suspensão de medidas extraordinárias

de suporte à vida em casos limítrofes devem ser eticamente debatidas, garantindo-

se o direito à morte digna quando o prognóstico é extremo. Prolongar o sofrimento

de um paciente em processo de morte já iniciado – já que a morte é uma sucessão

de eventos e não um instante único e estanque no tempo – é ato desprovido de

propósito e desarrazoado, mesmo quando realizado a pedido da família.

Ademais, não é possível se afastar a discussão sobre o custo da manutenção

de neonatos gravemente malformados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs)

neonatais, sobretudo em um país onde a saúde pública enfrenta grave crise de

contingenciamento de recursos.

Vários países contam com protocolos definidos que abordam as decisões de

reanimar ou não um recém-nascido prematuro extremo ou portador de anomalias

congênitas. Embora tais protocolos internacionais sejam aceitos no Brasil para fins

de orientação terapêutica, a realidade ainda demonstra grande dificuldade em sua

adoção clara e transparente, por meio de critérios objetivos e discussão com a

família, sobretudo em razão de resquícios de uma medicina paternalista que

minimiza a autonomia do paciente.

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A linha que separa uma malformação grave daquela configuradora de uma

vida com deficiência pode ser tênue e, por vezes, bastante difícil de ser traçada. Por

outro lado, se a criança é portadora de anomalias de graus mais leves,

configuradoras de uma vida com deficiência e não de letalidade precoce, todos os

esforços devem ser envidados para se preservar a vida e garantir inclusão social e

medidas terapêuticas de reabilitação.

Será abordada a possibilidade de adoção de critérios para a difícil tomada de

decisões limítrofes e de cuidados paliativos em Neonatologia, bem como a

aplicabilidade da proteção dos direitos dos deficientes aos recém-nascidos

malformados.

2.1 Tomada de decisões e cuidados paliativos em Neonatologia nas

malformações congênitas graves

Uma das mais intrigantes questões bioéticas contemporâneas que permeiam

a abordagem médica em Neonatologia refere-se à tomada de decisão em casos de

recém-nascidos portadores de malformações congênitas com elevado índice de

letalidade e neonatos em limite de viabilidade. Mesmo com o expressivo

aprimoramento tecnológico que a especialidade observou nos últimos anos, é certo

que não é possível extirpar totalmente a álea inerente aos procedimentos médicos

de risco, sobretudo em casos de nascimento no limite de viabilidade e de

malformações congênitas graves, incuráveis e terminais, com elevado índice de

letalidade neonatal precoce.

O avanço da ciência e da tecnologia médica em geral – embora permita um

diagnóstico com alto grau de precisão e confiabilidade, bem como uma abordagem

terapêutica precoce em alguns casos –, suscita dilemas éticos e jurídicos, como a

possibilidade de se demandar judicialmente a interrupção de uma gestação e a

decisão pela adoção de cuidados paliativos neonatais e descarte de intervenções

extraordinárias dispendiosas em pacientes com escassas possibilidades de

recuperação e sobrevivência.

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A dificuldade bioética em se estabelecer limites para a atuação médica que

vise prolongar a vida em recém-nascidos malformados e criticamente enfermos tem

diversas razões: o sentimento de frustração da equipe médica ao entender

erroneamente a morte como um fracasso, a prática de uma medicina

intervencionista que privilegia o excesso de procedimentos e não valora

devidamente os cuidados paliativos, o temor da judicialização e do entendimento da

família de que não teriam sido utilizados todos os métodos terapêuticos disponíveis

e o predomínio da autoridade parental e do poder decisório dos pais diante da

impossibilidade de exercício da autonomia do recém-nascido. A esse cenário já

repleto de incertezas, somem-se questões referentes ao escasso conhecimento dos

profissionais sobre os cuidados paliativos neonatais, à obstinação terapêutica fútil e

à dignidade em fim de vida, em um período em que essa vida deveria estar apenas

começando.

Tais decisões, muitas vezes, envolvem conflitos entre os familiares e a equipe

médica, ocasionando choque entre a autoridade parental, a correta indicação clínica

e o melhor interesse da criança. A situação se complica quando há interferências do

Estado em questões privadas; a título de exemplo, quando os conflitos são

judicializados em torno de discussões sobre a licitude da obstinação terapêutica217.

Na Neonatologia, tais questões mostram-se ainda mais nevrálgicas, por

envolverem a frustração de um projeto parental do casal, a dificuldade das culturas

ocidentais em lidar com a morte – sobretudo em crianças – e o compartilhamento

com os pais de uma tomada de decisão que envolve direitos da personalidade e

impossibilidade de exercício da autonomia pelo direto titular do direito, o recém-

nascido malformado.

Pouco se debate acerca dos cuidados paliativos em Neonatologia, sendo

ainda comum, em UTIs neonatais, a adoção de procedimentos de obstinação

terapêutica baseados em um conceito – por vezes errôneo – de beneficência218 e

217 Dadalto L, Affonseca CA. Considerações médicas, éticas e jurídicas sobre decisões de fim de vida em pacientes pediátricos. Revista Bioética (Impr.). 2018; 26 (1): 12-21.

218 A beneficência é um dos pilares da Bioética principialista, da visão clássica da atividade médica e da ética médica hipocrática, sendo entendida como compromisso de usar a ciência médica em benefício do doente. Provém do latim bonum facere e tem íntima relação conceitual com o brocardo da não maleficência, primum non nocere: não causar prejuízo ou dano intencional ao paciente. A beneficência é vista como um ideal de ação que supera a mera obrigação médica e encontra

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medidas fúteis que não têm o condão de alterar o curso natural da doença; ao

contrário, acarretam sofrimento adicional à família e ao doente, tornando ainda mais

doloroso seu já iniciado processo de morte. Pode-se dizer que ainda se observam

resquícios de uma medicina brasileira paternalista e unilateral219, quando o princípio

da autonomia há muito foi alçado como fundamental à saudável relação médico-

paciente.

Na prática rotineira em Neonatologia, são comuns divergências entre a

vontade dos pais e o que a equipe médica entende como a melhor alternativa

terapêutica para o recém-nascido.

A literatura médica especializada tem se debruçado em discutir dilemas éticos

dos cuidados neonatais em fim de vida, especialmente em recém-nascidos com

graves e multissistêmicas malformações congênitas de elevado índice de letalidade,

como algumas doenças cromossômicas. Uma das grandes dificuldades é encontrar

critérios objetivos que permitam compatibilizar a proteção dos direitos e do melhor

interesse do paciente, as expectativas dos pais – que buscam legitimamente

minimizar sua dor –, e a tentativa da equipe médica de não incorrer em técnicas

terapêuticas fúteis. Certamente, uma boa relação médico-paciente fundada na

ampla informação e no diálogo podem auxiliar no encontro desse difícil justo-meio.

Casos emblemáticos são os recém-nascidos portadores de trissomias do

cromossomo 18 (Síndrome de Edwards) ou do cromossomo 13 (Síndrome de

Patau), as mais frequentes doenças cromossômicas graves em nascidos vivos.

Ambas apresentam elevado índice de mortalidade fetal, com apenas uma em cada

12 crianças sobrevivendo por mais de um ano e taxa de sobrevida pós-natal média

de duas semanas220 . Por serem doenças emblemáticas dos dilemas éticos ora

abordados, a questão referente à tomada de decisões em Neonatologia será

abordada a partir de tais diagnósticos.

fundamento na dignidade humana e no conceito de dever, conforme estabelecido por David Ross em 1930, em sua clássica obra The right and the good.

219 Diz-se sobre resquícios de uma medicina paternalista em razão de ainda se observar uma conduta médica com a intenção de beneficiar o paciente – portanto, amparada na ideia de beneficência –, mas ditando a ele o que deve ou não ser feito e dele retirando o processo decisório enquanto sujeito, sob a finalidade de protegê-lo.

220 Cavadino A, Morris JK. Revised estimates of the risk of fetal loss following a prenatal diagnosis of trisomy 13 or trisomy 18. American Journal of Medical Genetics. 2017 (173A): 953-958.

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A Síndrome de Edwards é doença cromossômica de elevada letalidade e,

conforme configurada no Título II deste trabalho, acarreta graves anomalias

estruturais que, se não forem objeto de suporte terapêutico avançado,

provavelmente resultarão em morte precoce.

Estudos mostram que a adoção de intervenções obstétricas ou neonatais,

agressivas ou não, não tem o condão de alterar o curso natural da doença e as

taxas de sobrevida neonatal permanecem semelhantes nos pacientes que sofreram

intervenções cirúrgicas e naqueles que não foram tratados com medidas

extraordinárias221,222.

A despeito das graves complicações e do mais frequente desfecho dos

pacientes portadores da cromossomopatia, relevante estudo realizado com

neonatologistas norte-americanos demonstrou que, em 44% dos casos,

intervenções sabidamente sem resultados úteis foram realizadas nos neonatos com

a trissomia, em razão de pedidos e desejos dos pais223. Da mesma forma, estudo

realizado na Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido demonstrou que, embora a

grande maioria dos obstetras e neonatologistas acreditem que a trissomia do 18 é

doença letal, inclusive com possibilidade de oferecer à gestante a interrupção da

gestação (em locais em que o ato é permitido), cerca de 80% desses mesmos

médicos oferecem tratamento fetal ou neonatal para maximizar a sobrevida dos

fetos e recém-nascidos, se assim solicitado pelos pais224. A principal razão para o

ato diz respeito à aceitação da mera solicitação dos pais; médicos preferem acatar

tal manifestação de vontade ao delicado enfrentamento de questões de cunho moral

ou religioso e ao esclarecimento do casal ou da gestante sobre as reais condições

do recém-nascido e a futilidade da abordagem. O temor de consequências jurídicas

– que também poderiam ser minimizadas por uma adequada e transparente relação

221 Subramaniam A, Jacobs AP, Tang Y, Neely C, Philips III JB, Biggio JR, et al. Trisomy 18: A single-center evaluation of management trends and experience with aggressive obstetric or neonatal intervention. Am J Med Genet Part A. 2016; 170A:838–846.

222 Graham EM. Infants with Trisomy 18 and complex congenital heart defects should not undergo open heart surgery. The Journal of Law, Medicine & Ethics, 44 (2016): 286-291.

223 McGraw MP, Perlman JM. Attitudes of neonatologists toward delivery room management of confirmed trisomy 18: Potential factors influencing a changing dynamics. Pediatrics. 2008; 121: 1106-1110.

224 Wilkinson D, DeCrespigny L, Lees C, Savulescu J, Thiele P, Tran T, et al. Perinatal management of trisomy 18: A survey of obstetricians in Australia, New Zealand, and the UK. Prenatal Diagnosis. 2014; 34: 42-49.

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médico-paciente – também é motivo frequentemente citado. A proteção ao melhor

interesse da criança tem cedido à vontade não questionada dos pais, o que gera

profundas implicações éticas.

Diante de dados médicos científicos que demonstram a inexistência de

intervenções obstétricas ou neonatais que possam efetivamente alterar o curso

natural dessas graves cromossomopatias, o Consenso Europeu de Ressuscitação,

formulado em 2015, preconiza a não iniciação de medidas de reanimação em casos

de anencefalia e trissomias dos cromossomos 18 e 13225. Trata-se de abordagem

que não viola os preceitos bioéticos, pois as citadas patologias estão associadas a

uma morte precoce praticamente certa e um elevado grau de morbidade, nos

poucos pacientes que sobrevivem por alguns meses226.

Da mesma forma, protocolos de tratamento em Neonatologia preconizam a

adoção de cuidados paliativos em neonatos com múltiplas e complexas

malformações incompatíveis com a vida sustentada, situações em que cuidados

extraordinários intensivos não afetarão positivamente o desfecho a médio prazo,

como em casos de doenças genéticas como trissomias do 13, do 15 e do 18,

triploidias, displasias tanatofóricas e casos letais de osteogênese imperfeita227.

Por outro lado, há que se considerar, no manejo pós-natal das crianças com

trissomias do 13 e do 18, o grau de proteção da autonomia decisória dos pais e a

qualidade de vida dos pacientes. Estudo conduzido por Janvier et al. reportou as

experiências e perspectivas dos pais de crianças com as citadas síndromes, após

terem recebido a notícia, ainda durante o pré-natal, de que seus filhos eram

portadores de doenças incompatíveis com a vida (87% dos casos) ou de que teriam

uma vida “vegetativa” (50%) ou baixa expectativa de vida neonatal (60%). Desses

225 Wyllie J, Bruinenberg J, Roehr CC, Rüdiger M, Trevisanuto D, Urlesberger B. European Resuscitation Council Guidelines for Resuscitation 2015: Section 7. Resuscitation and support of transition of babies at birth. Resuscitation. 2015; 249-263.

226 Irving C, Richmond S, Wren C, Longster C, Embleton ND. Changes in fetal prevalence and outcome for trisomies 13 and 18: a population-based study over 23 years. The Journal of Maternal-Fetal & Neonatal Medicine. 2011; 24:1, 137-141.

227 Catlin A, Carter B. Creation of a neonatal end-of-life palliative care protocol. Journal of Perinatology. 2002; 22: 184-195.

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pais, 30% solicitaram intervenções médicas extraordinárias em seus filhos após o

nascimento e 97% os descreveram como “criancas felizes”228.

Outro estudo também conduzido pelo mesmo grupo de pesquisadores aplicou

questionários aos pais de neonatos trissômicos (cromossomos 13 e 18) visando

demonstrar as expectativas das famílias. Indagados sobre seus anseios e

impressões após o diagnóstico, as principais respostas foram as seguintes: ver seus

filhos vivos, ainda que por algum tempo (80% dos casos em que o diagnóstico foi

feito no pré-natal), viver algum tempo como uma família (72%), levar seus filhos para

casa (52%) e dar a eles uma vida com qualidade (66%)229.

As legítimas expectativas das famílias quanto ao convívio com seus filhos

gravemente enfermos e malformados devem ser tuteladas pela equipe de saúde, de

forma respeitosa e apta a propiciar um ambiente acolhedor, pelo tempo possível. É

nesse contexto que os cuidados paliativos relevam em importância, por protegerem

o melhor interesse da criança em fim de vida, proporcionando uma morte digna.

No Brasil, contudo, não há legislação específica sobre a morte digna, que

venha a conferir certeza e segurança jurídica à equipe de saúde na adoção de

cuidados paliativos e no abandono de medidas terapêuticas extraordinárias.

Questões referentes à distanásia, à ortotanásia e à temática do direito de morrer são

debatidas em bases doutrinárias da proteção integral e tutela da dignidade humana

e embasadas por normas infralegais emanadas sobretudo do Conselho Federal de

Medicina (CFM).

Apesar da ausência de regulamentação legal específica, o que ora se

defende é que a adoção de medidas de não reanimação e cuidados paliativos em

Neonatologia não é considerada preditiva de uma ideia de desvalor da vida da

pessoa com deficiência, pois determinada em situações extremas de terminalidade

da vida, com respeito à dignidade na morte e à autonomia relacional.

228 Janvier A, Farlow B, Wilfond BS. The experience of families with children with trisomy 13 and 18 in social networks. Pediatrics. 2012; 130: 293–298.

229 Janvier A, Farlow B, Barrington KJ. Parental hopes, interventions, and survival of neonates with trisomy 13 and trisomy 18. Am J Med Genet Part C (Semin Med Genet). 2016; 9999C: 1-9.

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2.1.1 Ortotanásia e cuidados paliativos neonatais

A Organização Mundial de Saúde conceitua cuidado paliativo como uma

abordagem que objetiva melhorar a qualidade de vida do paciente e seus familiares

que enfrentam problemas associados a doenças crônicas ameaçadoras da vida.

Trata-se de prevenir e aliviar o sofrimento por meio da abordagem precoce e

tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais230.

Segundo Adriano Marteleto Godinho, “o paradigma dos cuidados paliativos

proporciona o abandono do exacerbado tecnicismo da medicina moderna e da

obsessão pela cura, dando-se espaço à noção do bem cuidar”231, com aceitação da

finitude humana e adoção de procedimentos que visam proporcionar conforto e

priorizar o doente e sua família e não a doença.

Constituem fundamentos básicos dos cuidados paliativos: controle dos

sintomas e da dor, aceitação da morte com naturalidade, não abandono do paciente,

integração de questões físico-biológicas, existenciais e psicológicas do paciente,

ênfase na comunicação e no paciente – e não da doença –, aceitação das decisões

de fim de vida do doente, apoio à família e multidisciplinaridade232,233.

É a ortotanásia234 o locus dos cuidados paliativos: por permitir a ocorrência

natural da morte a seu tempo, sem antecipação ou prolongamento de um processo

já iniciado, garante-se, em prol do paciente, a adoção de cuidados básicos que lhe

propiciem conforto e dignidade, abandonando-se medidas que arrastam um

processo de morte sem qualidade. Os cuidados paliativos se afiguram, portanto,

como uma resposta ética ao sofrimento.

230 World Health Organization. Palliative care [Internet]. 2018 [acesso 23 mai 2019]. Disponível em: https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care

231 Godinho AM. Ortotanásia e cuidados paliativos. In: Godinho AM, Leite GS, Dadalto L. Tratado brasileiro sobre o direito fundamental à morte digna. São Paulo: Almedina, 2017. p. 138.

232 Klaschik E. A condição humana: ética, saúde e interesse público. Lisboa: Dom Quixote, 2009. p. 379.

233 Pessini L. Distanásia: até quando investir sem agredir? Revista Bioética. 1996: 4(1): 31-43.

234 O termo ortotanásia advém da junção dos radicais gregos orthos (correto) e thanatos (morte).

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Não se admite a confusão terminológica, por vezes afirmada por alguns

profissionais, entre a ortotanásia e a eutanásia passiva. Nesta, omitem-se

tratamentos ou cuidados ordinários e indicados ao caso que, se adotados, teriam o

condão de realmente preservar a vida do doente. Os cuidados que são afastados na

ortotanásia são os extraordinários e desproporcionais, que não seriam eficazes à

manutenção da vida. O direito à morte digna é expressão que pode ser

compreendida, portanto, no âmbito da ortotanásia, que não é sinônimo de eutanásia

passiva.

Em Pediatria e Neonatologia, a adoção de cuidados paliativos e a decisão

pela ortotanásia são cercadas de dificuldades, sobretudo em razão da

impossibilidade de exercício da autonomia pelo sujeito do direito, a criança, bem

como pelo comum desconhecimento dos profissionais de saúde sobre os benefícios

e indicações de tais cuidados. Também a cultura de negação da morte em crianças

e a autoridade parental tornam conflituosa a questão. O desenvolvimento de novos

métodos de tratamento intensivo neonatal, permitindo a sobrevivência de crianças

malformadas e prematuros extremos, vem, contudo, confrontando cada vez mais a

equipe de saúde com esses dilemas.

Em neonatos com malformações congênitas graves em terminalidade da vida,

é imperativo bioético que sejam garantidas condições de qualidade de vida,

proporcionando conforto no convívio da criança com os pais, também importantes

alvos de proteção pela equipe de saúde. As propostas gerais de cuidados paliativos

neonatais incluem analgesia e sedação, se necessária 235 ; cuidados básicos de

Enfermagem; alimentação enteral quando possível; aquecimento e tratamento

sintomático diante de desconforto aparente; hidratação endovenosa e manutenção

de suporte ventilatório já iniciado.

Considerando que os casos que são objeto deste trabalho – malformações

graves de elevada letalidade pré ou pós-natal – são frequentemente diagnosticados

235 Há diversos escores de avaliação de dor em Neonatologia, sendo as escalas Nips (neonatal infant pain score) e Pipp (premature infant pain profile) exemplos das mais utilizadas. Nelas, avaliam-se dados como expressão facial da criança, choro, respiração, movimentação de braços e pernas, estado de consciência e alerta, idade gestacional, frequência cardíaca e saturimetria. Esclarecimentos adicionais sobre o tema suplantam o âmbito deste estudo e podem ser consultados em: Anand KJ. Pain assessment in preterm neonates. Pediatrics. 2007; 119: 605-607. Silva TP, Silva LJ. Pain scales used in the newborn infant: a systematic review. Acta Med Port. 2010; 23: 437-454.

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ainda durante o pré-natal, é nessa fase que a família deve ser amplamente orientada

sobre todas as possibilidades existentes de abordagem de seu filho. Fazer com que

a família saiba que não será abandonada e proporcionar tempo para que todos

possam refletir sobre o diagnóstico são medidas importantes. Explicar que o médico

não pode alterar o curso natural da doença, mas pode oferecer conforto e dignidade

à curta vida da criança, é um modo empático de abordar o cuidado paliativo.

Anita Catlin e Brian Carter observaram que há ações que confortam e

encorajam as famílias, quando a ciência nada mais pode fazer para alterar eficaz e

objetivamente o curso natural da doença grave e terminal de um neonato: dentre

elas, validar a perda do sonho de uma criança saudável como um sentimento

legítimo e explicar que a interrupção de intervenções extraordinárias que prolongam

a dor é uma ação corajosa e amorosa dos pais diante do sofrimento de seu filho.

Nas palavras originais dos autores: “encourage parentes do be a family as much as

possible. Refer the newborn by name. Assist them to plan what they would like to do

while the infant is still alive”236.

Os cuidados paliativos se estendem, ainda, além do momento do óbito da

criança, pois o apoio à família para vivência e superação do luto deles faz parte. As

principais vantagens dessa abordagem estão relacionadas à informação à família e

ao sentimento dos pais de valorização, conforto e compreensão de que a melhor

conduta foi tomada em prol da dignidade de seu filho no inevitável momento da

morte237.

236 “Encoraje os pais a serem uma família, tanto quanto possível. Refira-se ao recém-nascido pelo nome. Ajude-os a planejar o que gostariam de fazer enquanto o bebe ainda estiver vivo”. (tradução livre). Catlin A, Carter B. Creation of a neonatal end-of-life palliative care protocol. Journal of Perinatology. 2002; 22: 184-195.

237 Piva JP, Lago PM. Cuidados de final de vida na criança. In: Moritz RD. Conflitos bioéticos do viver e do morrer. Conselho Federal de Medicina. Brasília: CFM, 2011. p. 113-127.

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2.1.2 Distanásia, obstinação terapêutica e autoridade parental

A multiplicidade de recursos médicos tecnológicos disponíveis favorece a

ideia leiga e errônea de que a ciência pode postergar a morte e predizer o exato

momento de sua ocorrência. E esse elastecimento, muitas vezes, não é de uma vida

com qualidade, mas sim de um já iniciado processo de morte.

Leo Pessini afirma que o termo distanásia foi cunhado pela primeira vez em

1904 por Morache, em sua obra Naissance et mort238. Conceitualmente, a distanásia

pode ser entendida como o oposto da ortotanásia, por configurar a adoção de

condutas médicas que prolongam o processo de morte e a vida biológica para além

de um termo que seria o natural, causando significativo sofrimento ao doente.

Os limites da atuação médica benéfica ao paciente em situação de

terminalidade da vida são muito difíceis de serem traçados e, na prática, embora não

haja trabalhos científicos que demonstrem o fato, pode-se dizer que a prática

distanásica é bastante comum nos hospitais brasileiros 239 . Em Pediatria e

Neonatologia, sobretudo, a dificuldade de manejo de fim de vida diz respeito à falta

de treinamento e ensino de estratégias assistenciais paliativistas e à ênfase em uma

medicina intervencionista e curativa, além de receios de ordem ética e legal240.

Muitas vezes, a familia solicita que “tudo seja feito” por seu parente gravemente

enfermo e o médico, temendo que os familiares interpretem eventual conduta

omissiva como negligência, pratica distanásia e não respeita a condição clínica do

paciente.

Por julgamento do profissional ou a pedido da família, não raras vezes

pacientes em fim de vida são submetidos a tratamentos desnecessários e fúteis, sob

o argumento de que deve ser tutelado e garantido o direito à vida a qualquer custo.

A futilidade terapêutica é de difícil conceituação, por não poder ser definida a priori,

uma vez que tratamentos são úteis ou fúteis a depender da condição clínica do

238 Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Loyola, 2001.

239 Dadalto L, Savoi C. Distanásia: entre o real e o ideal. In: Godinho AM, Leite GS, Dadalto L. Tratado brasileiro sobre o direito fundamental à morte digna. São Paulo: Almedina, 2017. p. 152.

240 Piva J, Lago P, Othero J, Garcia PC, Fiori R, Fiori H, et al. Evaluating end of life practices in ten Brazilian paediatric and adult intensive care units. Journal of Medical Ethics. 2010; 36: 344-348.

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paciente no qual eles são aplicados241. Cabe ao médico, portanto, a partir do pleno

conhecimento do paciente e da doença que o acomete, determinar quando o

tratamento se torna fútil e obstinado, o que não é tarefa fácil. Nas palavras de

Joaquim Antônio César Mota:

“A necessidade de tomar decisoes rapidas, a gravidade e a singularidade que caracterizam cada situacao clinica, os conflitos de valores e interesses que envolvem a relacao entre os profissionais de saude, o paciente, a familia, a sociedade e o Estado favorecem esse sentimento. Esses fatores, aliados ao fato dos atos medicos gerarem consequencias que so parcialmente podem ser previstas, tornam dificil demarcar, com nitidez, durante o tratamento, a linha entre o util e o futil. Essa indefinicao de limites leva a que, frequentemente, pacientes criticamente enfermos sejam submetidos a tratamentos que, apesar de motivados pelo desejo de fazer o bem, apenas acrescentam sofrimentos a esses doentes”242.

A ação médica, portanto, deve ser avaliada por seus efeitos benéficos ou

maléficos ao doente. Há limites para um tratamento obstinado que estão justamente

colocados nesses efeitos maléficos da ação médica. Encontrar esses limites é tarefa

mais árdua do que dominar a tecnologia disponível nas ciências da sáude.

Ao não se impor limites a uma conduta médica potencialmente danosa a um

paciente em fim de vida, incorre-se em obstinação terapêutica, geralmente

causadora de distanásia. Por outro lado, a análise crítica proposta na limitação de

esforços terapêuticos é consentânea com a ideia de que procedimentos devem ser

suspensos caso não haja indicação para mantê-los ou quando eles apenas mantêm

a vida biológica e não biográfica de um indivíduo243.

Normas emanadas do Conselho Federal de Medicina orientam o

comportamento do médico diante de pacientes em fim de vida. A Resolução CFM no

1.805/2006 permite ao médico a limitação ou suspensão de procedimentos que

prolonguem a vida de paciente com enfermidade grave e incurável, em

terminalidade da vida, após ampla informação ao paciente ou seus responsáveis

241 Lima C. Medicina high tech, obstinação terapêutica e distanásia. Medicina Interna. 2006; 13(2): 79-82.

242 Mota JAC. Quando um tratamento torna-se fútil? Revista Bioética. 1999; 7(1). [acesso 24 mai 2019]. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/291/430

243 Dadalto L, Savoi C. Distanásia: entre o real e o ideal. In: Godinho AM, Leite GS, Dadalto L. Tratado brasileiro sobre o direito fundamental à morte digna. São Paulo: Almedina, 2017. p. 164.

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legais244. Também o Código de Ética Médica (Resolução CFM no 2.217/2018) orienta

sobre a prevalência do conforto do paciente e abandono de medidas de

prolongamento de uma vida biológica sem qualidade245.

A suspensão ou não iniciação de procedimentos de suporte de vida tem sido

discutida na Neonatologia, especialmente em casos de recém-nascidos prematuros

extremos em limite de viabilidade e em malformações congênitas graves de elevada

letalidade neonatal. A grande dificuldade é explicar para a família que a adequação

ou limitação terapêutica não é um ato negligente de desistência e abandono da

criança.

Em Neonatologia e Pediatria, conciliar os interesses da família e os do

paciente é tarefa ainda mais tormentosa: quais são os reais interesses de uma

criança que, por óbvio, jamais expressou sua vontade? Quem os define? Não é raro

que a vontade da família, sobretudo quando não devidamente esclarecida sobre a

doença que acomete a criança, conflite com o entendimento médico sobre a melhor

conduta.

Hoje já é possível reconhecer que, em decisões de fim de vida, deve

prevalecer a autodeterminação enquanto expressão da autonomia do indivíduo em

sua realização pessoal e não no cumprimento de expectativas familiares, em razão

do caráter personalíssimo de tais decisões. Ocorre que tal assertiva não é aplicável

a recém-nascidos.

Muitas vezes e sobretudo quando a comunicação entre equipe de saúde e

família é falha, a prática da distanásia é amplamente solicitada pelos pais, que

passam a enxergar a morte como um fato a ser superado.

E, dado que o que se defende no presente estudo é a valorização da

autonomia privada em todos os âmbitos, como conciliar o melhor interesse da

244 Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução no 1.805, de 09 de novembro de 2006. Diário Oficial da União 28 nov 2006; Seção 1, p. 169. [acesso 24 mai 2019]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2006/1805

245 Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução no 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União 01 nov 2018; Seção 1, p. 179. [acesso 24 mai 2019]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217 Capítulo I. Princípios fundamentais. XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.

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criança com a autonomia da família quando esta é expressa pelo reiterado pedido

de distanásia? Se a criança não pode manifestar autonomia, esta deve ser

totalmente substituída pela autonomia da família e pela expressão da autoridade

parental?

A resposta a tais questionamentos perpassa pela razão de ser da autonomia

enquanto fundamento da dignidade da pessoa humana. A autonomia é princípio por

excelência e não admite sua constituição pela determinação ética heterônoma,

tampouco pode ser reduzida a uma ideia de mera competência para tomada de

decisões246. Apresenta, ainda, dois aspectos importantes sob o ponto de vista ético:

o respeito à vontade individual e a proteção daqueles que têm autonomia

diminuída247.

Na criança, a impossibilidade de exercício pessoal da autonomia impõe que

seja ela substituída pelo seu melhor ou superior interesse, expressão que abarca

aspectos médicos e quaisquer outros relacionados ao seu bem-estar, fator que deve

prevalecer ao se tomar uma decisão. E o melhor interesse da criança está longe de

ser compreendido como o prolongamento de seu processo de morte com sofrimento.

Não se trata, portanto, de desvalorizar a autonomia dos pais em eventual escolha

pela distanásia, mas de considerar o risco de dano e a probabilidade de benefício

como orientadores do superior interesse da criança.

O que ora se defende é que há limites à autoridade parental quanto aos

direitos existenciais da criança, quando estão em debate sua vida e morte dignas. E

tais limites residem justamente no bem-estar e singularidade da criança e na

necessidade de sua proteção integral. A autoridade parental deve ser exercida de

acordo com a parentalidade responsável, que abrange não apenas a decisão sobre

ter um filho, mas especialmente os efeitos e deveres posteriores ao seu nascimento,

que devem ser exercidos no superior interesse do menor248. Os filhos não são objeto

de uma relação de propriedade, mas detentores do direito subjetivo à proteção

246 Sarlet GBS. A filiação e a parentalidade no ordenamento jurídico brasileiro: uma análise jurídico-bioética da obstinação terapêutica em crianças. Direitos Fundamentais & Justiça. 2017; 11(37): 363-387.

247 Alves RGO, Fernandes MS, Goldim JR. Autonomia, autodeterminação e incapacidade civil: uma análise sob a perspectiva da Bioética e dos direitos humanos. R. Dir. Gar. Fund. 2017; 18(3): 239-266.

248 Teixeira ACB. Família, guarda e autoridade parental. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 85.

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responsável 249 . Com base em tais premissas, torna-se eticamente possível,

portanto, que o médico não acate medidas fúteis solicitadas pelos genitores, quando

inexiste benefício à criança.

Ainda sobre a tematica da “distanasia a pedido”, e relevante a analise dos

custos financeiros envolvidos nesses casos. Embora não seja objeto específico

deste trabalho, o custo da manutenção de pacientes em situação de terminalidade

da vida em UTIs neonatais não pode ser olvidado, sobretudo diante da atual crise de

subfinanciamento da saúde pública no Brasil.

O próprio CFM, ao editar a Resolução no 2.156/2016, determinando critérios

de admissão e alta de pacientes críticos em UTI, ressaltou, como critérios para a

priorização das internações, a disponibilidade de leitos e de recursos, em

associação ao estado geral do doente e o potencial efetivo de benefício. Na

exposição de motivos da norma, afirmou o CFM que, uma vez que os recursos são

limitados e os leitos de UTI são de alto custo, as internações devem ser realizadas

com racionalidade, o que é um complexo desafio250.

As práticas intervencionistas neonatais têm observado expressiva evolução

tecnológica e, da mesma forma, exponencial aumento de seus custos operacionais.

É significativa a alocação de recursos financeiros para a manutenção das

tecnologias utilizadas na abordagem de um recém-nascido gravemente enfermo,

sem que tais práticas sejam revertidas a uma efetiva melhora em sua condição de

saúde. É inegável que a distanásia aumenta os custos do tratamento. E em saúde

pública, especialmente, a análise atuarial deve ser feita visando otimizar a aplicação

dos recursos públicos.

Trata-se de tema que, embora de repercussões orçamentárias óbvias na

saúde pública, mostra difícil abordagem prática com os usuários, sem suscitar o

temor de que o profissional seja considerado um “mercenario” despreocupado com o

bem-estar de seu paciente.

249 Busnelli FD. De quem é o corpo que nasce? Do dogma jurídico da propriedade à perspectiva bioética da responsabilidade. In: Martins-Costa J, Möller LL. Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 358-359.

250 Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução no 2.156, de 28 de outubro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva. Diário Oficial da União 17 nov 2016; Seção 1, p. 138-139. [acesso 25 mai 2019]. Disponível: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/ resolucoes/BR/2016/2156

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Aliado aos elevados custos de manutenção de uma UTI neonatal e aos

dilemas éticos que envolvem decisões em fim de vida, tem-se o difícil delineamento

da separação entre os casos sem claras possibilidades terapêuticas efetivas e

aqueles em que a vida com deficiência será possível e, em razão disso, deve ser

protegida.

2.2 Os direitos das pessoas com deficiência no Brasil

A atual legislação protetiva dos direitos das pessoas com deficiência no

Brasil, amparada pela Lei 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com

Deficiência) busca a inclusão social e o extermínio da estigmatização e de qualquer

forma de discriminação de pessoas com deficiências de quaisquer ordens, sejam

físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais. Deve-se analisar a amplitude da

aplicação da norma aos recém-nascidos portadores de malformações congênitas

graves e sua compatibilidade com eventual decisão materna pela interrupção da

gestação ou por condutas restritivas na conduta e abordagem médica terapêutica

neonatal.

Em vigor no Brasil desde 2016, a citada lei veio consolidar os direitos à

acessibilidade e saúde, dentre outros, da pessoa com deficiência, visando a sua

inclusão social em condições de isonomia, sem qualquer forma de discriminação. No

tocante à saúde e à proteção da vida, a pessoa com deficiência é considerada

vulnerável em situações de risco, para fins de proteção estatal prioritária251.

A norma foi editada após quase duas décadas de tramitação no Congresso

Nacional e ganhou relevo a partir da maior inclusão, nos últimos dez anos, das

políticas públicas voltadas para deficientes na pauta governamental, sobretudo após

a ratificação pelo Brasil, em 2008, da Convenção Internacional sobre os Direitos das

251 Brasil. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 07 jul 2015. [acesso 07 jul 2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.

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Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York em

30 de março de 2007252.

A norma determina a promoção de ações articuladas no Sistema Único de

Saúde para fins de garantir a reabilitação do deficiente, seu diagnóstico e

intervenção precoces e a adoção de medidas que busquem o desenvolvimento de

aptidões para compensar a limitação funcional. O texto legal cita a palavra

autonomia por onze vezes, demonstrando a relevância do princípio no ordenamento

jurídico brasileiro – que, contudo, apenas tem sido valorizado e preconizado de

forma seletiva e não em todas as circunstâncias.

Número considerável de anomalias congênitas fetais incuráveis mas não

letais, diagnosticáveis durante a gravidez, proporciona o nascimento de neonatos

com alterações que permitem seu enquadramento no conceito de pessoa com

deficiência, como aquela que possui alguma característica geradora de obstáculos

para sua colocação em condições de igualdade com as demais pessoas em

sociedade253.

Admite-se, portanto, o rompimento de um modelo médico clássico de

deficiência, cedendo lugar ao conceito social254, que posiciona a deficiência como

252 O Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em agosto de 2008 e, por meio da edição do Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, incorporou a norma no ordenamento jurídico interno nos termos do artigo 5o, § 3o, da Constituição de 1988, com status de emenda constitucional. O citado dispositivo dispoe que “os tratados e convencoes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. O inteiro teor do decreto está disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. [acesso 07 jul 2019].

253 Borcat JC, Martha ACA. As pessoas com microcefalia e o novo conceito de deficiência sob o enfoque do princípio da igualdade à luz do direito a diferença. Direitos e garantias fundamentais I. XXV Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: CONPEDI, 2016. p. 116-135. Disponível em: http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/y0ii48h0/54u7u299/ Kc9Dv4k7tRc8pJ7O.pdf. [acesso 07 jul 2019].

254 Segundo Lynn Gillam, o conceito de deficiência foi classicamente construído com base em duas concepções dominantes: uma médica e outra social. A primeira denota uma carga de incapacidades organica e biologicamente explicadas, que geram sofrimento e que não podem ser afastadas da comprensão da deficiência. O foco do conceito médica seria a doença em si e as restrições que ela acarreta. A segunda concepção, contudo, diz respeito à visão e às expectativas sociais das pessoas em relação às outras, que afetam a percepção das capacidades do deficiente, pois algumas pessoas podem ser consideradas deficientes apenas por serem diferentes dessas expectativas sociais. Dessa forma, a avaliação da deficiência não é apenas médico-biológica e objetiva, mas sobretudo social, em razão da compreensão – frequentemente equivocada e com enfoque nas limitações causadas pela doença – de determinada sociedade sobre a vida e as potencialidades de um deficiente. (Gillam L. Prenatal diagnosis and discrimination against the disabled. Journal of Medical Ethics. 1999; 25: 163-171).

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um problema não exclusivo da pessoa doente e desamparada, mas como uma

questão de toda a sociedade, que, segundo Kazumi Sassaki, cria problemas para

pessoas com necessidades especiais na medida em que lhes causa desvantagem

no desempenho de seus papeis sociais, por práticas discriminatórias255.

Tal modelo social vai além de um modelo meramente médico-biológico de

caracterização da deficiência e vai ao encontro de um modelo de cunho

afirmativo256, que enfatiza os direitos dos deficientes e visa igualar oportunidades de

inserção social e de reabilitação. Garante-se sobretudo o direito à diferença, como

consectario inseparavel da isonomia. Nas palavras de Flavia Piovesan, “o direito a

igualdade pressupõe o direito à diferença, inspirado na crença de que somos iguais,

mas diferentes, e diferentes, mas sobretudo iguais”257.

A igualdade de direitos e a vedação à discriminação devem ser amplamente

garantidas à pessoa com deficiência, já que, no Brasil, apenas se permite a restrição

dos direitos de uma pessoa por eventuais condições distintas, com a clara e única

finalidade de protegê-la. A teoria das incapacidades, inclusive, tem esse objetivo; de

proteção do incapaz.

A discussão sobre a garantia dos direitos das pessoas com deficiências em

recém-nascidos com malformações congênitas tomou ainda mais relevância no

Brasil após a epidemia pelo flavivírus Zika. Considerados os impedimentos físicos,

neurológicos e sensoriais das crianças vitimadas pela transmissão vertical do vírus

durante a gravidez, aliados ao desamparo e à vulnerabilidade social das famílias

atingidas, mostra-se clara a necessidade de alocação de recursos sanitários para a

255 Sassaki RK. Atualizações semânticas na inclusão de pessoas: deficiência mental ou intelectual? Doença ou transtorno mental?. Revista Nacional de Reabilitação. 2005; IX (43): p. 9-10.

256 Descrevem-se modelos teóricos para se explicar a deficiência, sendo os mais citados os modelos médico, social, biopsicossocial e afirmativo. O primeiro enfatiza as limitações físicas e/ou intelectuais que a realidade biológica do indivíduo acarreta, sob um ponto de vista individual e reducionista, sob risco de situar o deficiente sempre na condição de doente. O modelo social foi construído sob múltiplos enfoques e vê a deficiência como uma construção social que requer mudança do padrão da sociedade para a efetiva inclusão do deficiente, sob pena de opressão. No modelo biopsicossocial, os fatores determinantes para a saúde são avaliados em suas esferas biológica, pessoal e social, buscando uma análise relacional. O modelo afirmativo, por fim, origina-se de uma ideia de “orgulho da deficiencia”, com acoes positivas que buscam a compreensao da deficiencia como uma experiência valorosa que não pode ser vista sob uma perspectiva trágica. Afirma-se a diferença como forma de se impor e se situar na sociedade. (Bernardes LCG. Bioética, deficiência e políticas públicas: uma proposta de análise a partir da abordagem da capacidade. Tese [Doutorado em Bioética]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Bioética; 2016. p. 20-35).

257 Piovesan F. Temas de Direitos Humanos. Guarulhos: Max Limonad, 1998. p. 137.

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reabilitação dessas crianças e sua devida inserção social, por meio de políticas

públicas garantidoras dos direitos das pessoas com deficiência também no período

neonatal. A epidemia lançou luzes a um dos grandes desafios que o país enfrentará

no tocante ao tema da deficiência, que é a ação programática e a definição de

políticas públicas que efetivem os direitos até então apenas positivados na

legislação.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência é plenamente aplicável no período

neonatal precoce em casos de recém-nascidos com deficiências decorrentes de

malformacoes congenitas nao letais, fundamentando, segundo Liliane Bernardes, “a

necessidade de fatores de conversão para a equalização de oportunidades

praticas”258, bem como a garantia de condições que possibilitem o desenvolvimento

de suas capacidades.

Sendo assim, questiona-se se é possível compatibilizar a proteção e a

inclusão das pessoas deficientes vulneráveis com a defesa dos direitos reprodutivos

da mulher e com as condutas restritivas a tratamentos extraordinários neonatais.

Há uma legítima preocupação das pessoas com deficiências com o estigma

social a elas dirigido e com o fortalecimento de uma consciência coletiva de que a

vida com deficiencia “nao merece ser vivida”. A presunção de que a deficiência é

indesejável e a vida de um deficiente é mais difícil e sofrida é uma constante e

acarreta, por vezes, atitudes de piedade e rejeição.

Ativistas pelos direitos das pessoas com deficiências afirmam que a defesa do

aborto em casos de anomalias fetais reforça tanto esse ideário equivocado como a

crença de que a qualidade de vida dessas crianças será necessariamente inferior e

que criar uma criança deficiente é uma experiência indesejável259. Esses autores

afirmam que a avaliação da qualidade de vida das pessoas com deficiências seria

imprecisa e impregnada de uma visão social preconceituosa, enquanto elas próprias

mostram-se satisfeitas com suas vidas e experiências260.

258 Bernardes LCG. Bioética, deficiência e políticas públicas: uma proposta de análise a partir da abordagem da capacidade. Tese [Doutorado em Bioética]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Bioética; 2016. p. 167.

259 Hubbard R. Abortion and Disability: Who should and should not inhabit the world? In: Davis LJ. The Disabilities Studies Reader. Nova York: Routledge. 2010: 107-119.

260 Albrecht GL, Devlieger PJ. The Disability Paradox: High Quality of Life against All Odds. Social

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O aborto por anomalias congênitas e também as condutas ortotanásicas no

período neonatal – por vezes erroneamente compreendidas como eutanásicas – são

vistos, assim, como potenciais geradores de consequências negativas para os

deficientes, que poderiam se tornar alvo de ainda mais preconceito e discriminação

social, por reforçarem a ideia de que suas vidas são de pior qualidade e cuidar de

uma criança deficiente é algo penoso e indesejável.

Contudo, a defesa da interrupção voluntária da gestação como ato de

autonomia reprodutiva da mulher não é incompatível com a defesa da proteção e

garantia integral dos direitos das pessoas com deficiências.

Colocar a questão como um mero paradoxo e um conflito entre grupos

distintos é simplificar em demasia as complexas questões do aborto e da deficiência.

A defesa de direitos reprodutivos não é um ato eugênico de desvalor à vida da

pessoa com deficiência. O diálogo deveria ser de aproximação e não de

segregação, pois ambos os grupos tendem a lutar pela inclusão, autonomia e

afirmação de direitos de pessoas pouco ouvidas historicamente: as mulheres e os

deficientes.

Uma das formas de compatibilizar as perspectivas dos defensores dos

direitos das pessoas com deficiência e dos direitos reprodutivos é mudar o enfoque

da questão de meramente individual para social, valorizando políticas públicas de

saúde e educação que propiciem apoio às famílias que optam por interromper uma

gravidez ou que têm dentre seus membros pessoas com deficiências.

Sujatha Jesudason e Julia Epstein afirmam ser possível a libertação desse

aparente paradoxo da deficiência nos debates sobre o aborto. A principal forma de

aproximação seria por meio de mudanças de estratégias sociais e de discurso,

sobretudo afastando-se de uma ideia de julgamento da mulher que busca o aborto e

de “demonizacao” da deficiencia e buscando-se o foco no desenvolvimento de

políticas públicas que apoiem todas as pessoas na construção autônoma de suas

vidas e famílias. Inclusive, serviços de apoio a mulheres que buscam o aborto

podem incluir informações de pessoas sobre seu grau de satisfação com suas vidas

com deficiências. Ainda, as autoras preconizam a redefinição de um conceito de

Science & Medicine. 1999; 48: 977-988.

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saúde para incluir a ênfase na variação humana e o abandono de uma concepção

puramente normativa e descontextualizada de saúde. Afastando-se da ideia

medicalizada da anomalia congênita e letalidade fetal e da deficiência em si – que

podem desviar a atenção da mensagem central do problema, que é a promoção da

autodeterminação para todos os grupos – concentra-se no aspecto social e em ter

empatia com grupos e pessoas diferentes e que manifestam escolhas diferentes. Do

contrário, a própria defesa do acesso ao aborto pode privilegiar um grupo limitado de

mulheres com “problemas classicos de saude” diagnosticados, esquecendo das

mulheres que optam pelo aborto pelos mais distintos motivos261.

A ideia, portanto, é de garantia de autodeterminação para todos e de defesa

da diversidade de famílias e de suas escolhas, forma de compatibilizar e

compreender em conjunto pautas apenas aparentemente antagônicas, priorizando-

se políticas públicas e o aspecto social dos direitos reprodutivos e da deficiência.

Tais reflexões – embora tenham sido previstas pelas citadas autoras em um

contexto estatal de legislação mais permissiva quanto ao aborto –, constituem

ponderações relevantes no panorama brasileiro, em que a discussão judicial sobre o

aborto em casos de anomalias congênitas não letais está em pauta e políticas

públicas não têm sido eficazes no controle de doenças emergentes aptas a

ocasionarem efeitos teratogênicos ainda pouco conhecidos.

261 Jesudason S, Epstein J. The paradox of disability in abortion debates: bringing the pro-choice and disability rights communities together. Contraception. 2011; 84: 541-543.

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3 PROPOSTAS LEGISLATIVAS EM PAUTA E A “DERROTABILIDADE” DAS NORMAS JURÍDICAS

A partir da abordagem do tratamento jurídico conferido aos portadores de

malformações congênitas, antes e após o nascimento, é relevante ressaltar a forma

de coadunar hermeneuticamente as regras e princípios em vigor, quando, em casos

difíceis, afigura-se um conflito de normas potencialmente incidentes na hipótese.

No mesmo capítulo, serão também analisados os principais projetos de lei em

tramitação no Congresso Nacional e as possibilidades de avanço ou retrocesso no

tratamento legislativo da matéria.

3.1 A interpretação das normas jurídicas e a ideia de defeasibility

De forma geral, uma norma jurídica é um conteúdo extraído de um texto que

descreve uma hipótese abstrata e incide ao caso concreto quando tal hipótese

ocorrer no mundo dos fenômenos. Trata-se da hipótese de incidência da norma, que

atrairá a aplicação dos efeitos nela descritos.

Tomando como ponto de partida a ideia de que o texto normativo deve ser

interpretado no caso concreto para que dele se retire o conteúdo da norma

jurídica262, a linguagem e a hermenêutica são fundamentais para a própria existência

da norma e sua aplicação. Isso porque a mera existência de um texto normativo

positivado não garante certeza ou segurança jurídica, sobretudo em razão de

262 Texto normativo e norma são conceitos distintos. A norma não é o texto em si, mas o sentido construído a partir dele, passível de variabilidade de interpretações. O enunciado normativo, segundo Thomas Bustamante, é a expressão verbal de uma norma (Bustamante TR. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 232). Também Luis Roberto Barroso afirma que “enunciado normativo é o texto ainda por interpretar. Já a norma é o produto da incidência do enunciado normativo sobre os fatos da causa, fruto da interação entre texto e realidade (…) A demonstracao do argumento se faz a partir da constatacao de que de um mesmo enunciado se podem extrair diversas normas”, após um processo de interpretação e argumentação jurídica. (Barroso LR. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 231).

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variações da interpretação da linguagem utilizada e da impossibilidade de previsão

pelo legislador de todas as circunstâncias fáticas casuísticas que podem existir

quando da solução de um caso concreto.

É possível se conceber a existência de exceções implícitas no texto normativo

que podem ser extraídas pela hermenêutica, sem que se esgote sua força

normativa. Trata-se da admissibilidade de um caráter derrotável dos conceitos e da

norma jurídica, introduzido doutrinariamente por Herbert Hart em sua obra The

ascription of responsibility and rights sob o termo defeasibility263 , que tem sido

traduzido para o português ora pelo neologismo derrotabilidade, ora como

superabilidade.

Segundo Rodrigo Telles de Souza, a ideia hartiana “deriva da impossibilidade

do estabelecimento de uma lista de condições necessárias e suficientes para a

aplicação do Direito”264, sendo sempre identificável uma espécie de cláusula na

norma contendo exceções que não puderam ser previstas e que, caso ocorressem,

acabariam por derrotar o padrão normativo geral.

Na completude do sistema jurídico composto por regras e princípios265, uns

podem excepcionar os outros, incidindo, inclusive, em aparentes conflitos que

263 Hart HLA. The ascription of responsability and rights. Proceedings of the Aristotelian Society. 1948; 49: 171-194.

264 Souza RT. A distinção entre regras e princípios e a derrotabilidade das normas de direitos fundamentais. Boletim Cientifico ESMPU, Brasilia. 2011; 10 (34): 11-35. p. 22.

265 Ronald Dworkin e Robert Alexy discorrem classicamente sobre a distinção entre normas-regras e normas-princípios, sob diversos e profundos fundamentos teóricos em Hermenêutica Constitucional e Filosofia do Direito, que fogem ao escopo deste trabalho. De todo modo, o argumento mais comumente utilizado – e considerado mais frágil –, abordado também por Norberto Bobbio, refere-se ao grau de abstração ou generalidade, sendo os princípios normas mais abstratas e gerais, enquanto as regras são particulares e específicas. Em relação à aplicação, o argumento é mais forte e a distincao e dinâmica, residindo no fato de que regras seriam aplicadas na forma de “tudo ou nada”, enquanto princípios têm uma dimensão de importância e peso e, quando entram em conflito, ambos permanecem válidos, mas deve ser analisado o peso de cada um. Os princípios são mandamentos de otimização, que podem ser cumpridos em diferentes graus, consideradas as circunstâncias fáticas e jurídicas; já as regras são ou não cumpridas, enquanto mandamentos de determinação. Se há conflitos entre regras, ou uma delas e declarada invalida ou em alguma se insere uma “clausula de excecao”. No caso de conflitos entre princípios, nenhum deles é declarado inválido, também não sendo necessário criar uma cláusula de exceção; serão estabelecidas certas condições de prioridade, como afirma Thomas Bustamante, pelos mecanismos de ponderação e avaliação do peso de cada princípio no caso concreto. Logo, as regras são mandamentos definitivos que se aplicam por subsunção direta e os princípios por ponderação, devendo ser estes aplicados em sua máxima medida e no maior peso possível, diante de eventual conflito. A proporcionalidade deverá, assim, ser considerada e será importante ferramenta na ponderação entre princípios e para equacionar direitos fundamentais ou normas constitucionais em colisão. Portanto, há normas que, não passando por um processo de objetivação suficiente para que determinem um comando comportamental concreto, se

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devem ser resolvidos pela interpretação normativa. Ou seja, se diante de um caso

concreto, mais de uma norma-regra ou norma-princípio se apliquem, deve-se utilizar

a hermenêutica e a argumentação buscando a superação de uma norma ou a

ponderação ou sopesamento de interesses em conflito. Tanto regras como

princípios, diante de casos concretos complexos, são, portanto, derrotáveis266, ainda

que vinculem direitos fundamentais, que não são absolutos267.

Logo, diante de um caso concreto e da argumentação desenvolvida, uma

norma que protege um direito fundamental pode ser superada em razão de outro

direito fundamental em conflito ou outro interesse legítimo também consagrado

constitucionalmente. Por óbvio que tal ideia não significa o completo

enfraquecimento da proteção do direito fundamental em discussão, mas sua

ponderação em termos de razoabilidade e proporcionalidade em casos difíceis, por

meio de densa fundamentação argumentativa racional.

Para que se admita uma completude racional e argumentativa de um sistema

jurídico, impõe-se a aceitação de um dinamismo apto à acomodação de

peculiaridades anteriormente não previstas e que não podem acarretar a ruptura

lógica do sistema. O desenvolvimento do Direito e a maleabilidade social permitem

que regras sejam excepcionadas no caso concreto, sem que sejam consideradas

inválidas.

constituem como princípios, com potencial de irradiação sobre todo o ordenamento jurídico. São ponderáveis no caso concreto; neles, o processo de defeasibility não é visto como excepcional, mas ínsito à sua própria aplicação prática. (Bustamante TR. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 340-350). Ressalte-se que parte da doutrina entende que os princípios não comportam defeasibility, pois sua aplicação por otimização – para realizar um fim de maneira ótima – implica considerar todas as circunstâncias relevantes conhecidas e, sendo assim, não poderia haver exceções. Ademais, os princípios não teriam hipóteses definidas de incidência. De acordo com Carsten Bäcker, “um principio nunca precisa ser revisado”. (Bäcker C. Regras, Princípios e Derrotabilidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos. 2011; 102: 55-82. p. 71).

266 Souza RT. A distinção entre regras e princípios e a derrotabilidade das normas de direitos fundamentais. Boletim Cientifico ESMPU, Brasilia. 2011; 10 (34): 11-35. p. 26.

267 O constitucionalista Virgílio Afonso da Silva afirma que quaisquer direitos fundamentais podem ser restringidos, sendo todos eles regulamentáveis e passíveis de relativização diante de outros direitos fundamentais ou de interesses protegidos constitucionalmente (Silva VA. Direitos fundamentais: conteudo essencial, restricoes e eficacia. 2. ed. Sao Paulo: Malheiros, 2010. p. 246). Da mesma forma já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao entender que, considerando o substrato ético que informa as liberdades publicas, limitacoes de ordem juridica e social podem incidir, “pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem publica ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros” (STF, Pleno, Mandado de Seguranca n. 23.452/RJ, Relator Min. Celso de Mello, j. 16.9.1999, pub. DJU 12 maio 2000, p. 20).

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Ou seja, ainda que a norma seja considerada existente, válida e eficaz, será

episodicamente afastada diante do caso concreto e da justiça que se espera em sua

solução, como se o texto carregasse a expressão implicita “a menos que”. Nas

palavras de Carsten Bäcker, “derrotabilidade deve ser entendida como a capacidade

de acomodar excecoes”268.

Tratando-se, em verdade, de uma técnica de solução judicial de conflitos

contra legem que não tem previsão expressa no ordenamento jurídico positivado,

não é comum que os Tribunais brasileiros expressamente mencionem o termo

defeasibility em seus julgados, embora a tese seja admissível no direito brasileiro em

caráter excepcional, por meio de densa argumentação jurídica. A aplicação,

portanto, deve ser racional e não meramente casuística, pois a própria exceção

implícita considerada deve poder ser ampliada para os demais casos semelhantes,

sob pena de que o seu reconhecimento viole a segurança jurídica.

Ressalte-se que a derrotabilidade de uma norma não é incompatível com o

Direito Penal, a despeito do princípio da legalidade estrita que o rege. Um claro

exemplo são as causas supralegais de exclusão da culpabilidade, hipóteses aceitas

pela doutrina e pela jurisprudência. Por óbvio, nem toda norma penal admite a

existência de exceções implícitas, não se admitindo a criminalização de uma

conduta não expressamente normatizada, pois o Direito Penal Constitucional não

tolera a ideia de interpretação extensiva ou analogia prejudiciais ao réu269.

Uma das dificuldades da aplicação prática da tese diz respeito a discernir se o

silêncio do legislador foi devido à impossibilidade de previsão do desfecho à época

de se definir a mens legis, ou se foi proposital, não prevendo a hipótese excepcional

exatamente para que a norma geral se aplicasse de forma ampla. Para tal

diferenciação entre imprevisibilidade da exceção e silêncio eloquente, contribuem a

interpretação histórica da norma e seu contexto social de elaboração, bem como a

análise de sua exposição de motivos.

268 Bäcker C. Regras, Princípios e Derrotabilidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos. 2011; 102: 55-82. p. 60.

269 Fonteles SS. O dilema do Ministério Público diante da derrotabilidade das regras (defeasibility). Revista do Ministério Público do RS. 2016; 79: 55-84. p. 74.

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Peng-Hsiang Wang, citado por Carsten Bäcker, afirma não ser possível que

uma norma não comporte exceções implícitas e que o legislador preveja e crie uma

regra que jamais admita quaisquer exceções270. O argumento é aceitável, pois a

realidade é muito mais rica do que a normatividade positivada e exceções podem

surgir em casos futuros justamente diante da limitada capacidade humana de prever

o que está por vir.

É exatamente essa a ideia que norteia a admissibilidade de hipóteses

normativas excepcionais relacionadas ao aborto, mesmo em sistemas legais

restritos quando ao procedimento, como o brasileiro. A possibilidade de um

diagnóstico seguro de malformações congênitas graves ainda durante a gestação

não era passível de ser prevista pelo legislador do Código Penal de 1940 e,

portanto, claramente enquadra-se na tese.

Admitindo-se que o legislador tivesse a possibilidade de prever a evolução

dos métodos diagnósticos pré-natais em 1940 e, ao considerar tal informação,

tivesse excepcionado a regra incriminadora do aborto, a decisão judicial autorizando

a interrupção da gestação em tais casos pode ser considerada absolutamente

legítima. Do contrário, ao se pensar que o legislador poderia ter previsto e mesmo

assim não teria abarcado a possibilidade como excludente de ilicitude, o órgão

julgador não poderia decidir pela interrupção da gestação, pois, assim, estaria

criando um novo direito em ativismo judicial e usurpação de competência legislativa.

No caso da anencefalia, o STF claramente entendeu que a hipótese se

enquadra em uma exceção implícita que teria sido admitida como excludente de

ilicitude no Código Penal de 1940, se o legislador a tivesse previsto.

Embora a tese não tenha sido expressamente nomeada no acórdão da ADPF

54 por nenhum dos Ministros julgadores, o fato de que o legislador de 1940 não teria

como prever a possibilidade diagnóstica pré-natal de anencefalia foi mencionado

como um dos fundamentos secundários da decisão. Afirmou-se serem inimagináveis

à época os desdobramentos da evolução tecnológica na Medicina Fetal, aptos a

propiciarem o diagnóstico intrauterino de ampla gama de doenças fetais. Trata-se,

em verdade, de adoção implícita da tese da derrotabilidade.

270 Bäcker C. Regras, Princípios e Derrotabilidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos. 2011; 102: 55-82. p. 67.

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Considerada a decisão do STF na ADPF 54, o temor de que outras hipóteses

de malformações congênitas sejam admitidas como causas justificadoras de aborto

– pela admissão da derrotabilidade da norma geral incriminadora no caso concreto

ou pela sustentação da possibilidade de ocorrência de “efeitos deslizantes” da

decisão do STF na ADPF n. 54 – fundamentou a propositura de novos projetos de lei

que objetivam impedir a interrupção da gestação em anomalias fetais, de forma

ampla. É relevante a análise de tais projetos e suas possíveis consequências

sociojurídicas.

3.2 Projetos de lei sobre o aborto em malformações congênitas

Tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal vários projetos de

lei que versam sobre a temática do aborto, de forma geral ou centrando a análise

nas malformações congênitas, sobretudo após a decisão do STF na ADPF 54 e o

ajuizamento da pretensão de tornar lícita a interrupção da gestação em casos de

anomalias pelo vírus Zika.

Vários dos projetos apresentados têm redação assemelhada e foram

anexados a outros mais abrangentes ou já existentes, razão pela qual não serão

analisados todos os já propostos na temática, mas apenas os que centralizam os

debates e abordam o tema objeto deste trabalho – as malformações congênitas – e

que não se encontrem em situação atual de arquivamento em alguma das casas

legislativas.

Um dos projetos de lei (PL) mais debatidos sobre o tema é o denominado

“Estatuto do Nascituro”, PL 478 de 2007, apresentado pelos Deputados Luiz

Bassuma e Miguel Martini em março de 2007 e ao qual há 13 outros projetos

apensos. Tramitando por 12 anos e já tendo sido arquivado na Câmara por três

vezes, recebeu recentemente parecer do relator Deputado Diego Garcia pela sua

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aprovação, encontrando-se sob análise pela Comissão de Defesa dos Direitos da

Mulher271.

O projeto preconiza a integral proteção do nascituro – sobretudo quanto aos

direitos da personalidade –, e insere no ordenamento o conceito expresso do termo,

entendido como ser humano concebido mas ainda não nascido e incluindo

expressamente os concebidos in vitro, por técnicas de reprodução humana assistida.

Disposições pertinentes ao âmbito deste trabalho são a vedação a qualquer

forma de discriminação ou privação do nascituro da expectativa de algum direito, em

razão de sexo, idade, etnia, origem, deficiência física ou mental ou probabilidade de

sobrevida fora do útero (artigo 9o), bem como a tipificação como crime dos atos de

“congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentacao” (artigo

25). O projeto cria, ainda, a modalidade de aborto culposo, atualmente punido

criminalmente apenas a título de dolo.

Considerada a redação dos dispositivos citados, dois dos principais pontos

relevantes dizem respeito ao retrocesso, caso o projeto seja plenamente aprovado,

no tocante à proibição de interrupção da gestação de anencéfalos e à inviabilização

ou extrema dificultação dos procedimentos de fertilização in vitro e das pesquisas

com células-tronco, já discutidas pelo STF quando do julgamento da Ação Direta de

Inconstitucionalidade 3.510 272 . A ação teve como objeto o debate sobre a

constitucionalidade do artigo 5o da Lei de Biossegurança, Lei n. 11.105 de 2005273,

que permite a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões

humanos produzidos por fertilização in vitro – inviáveis ou congelados há mais de

três anos – e não utilizados no respectivo procedimento, para fins de pesquisa e

terapia. O dispositivo teve sua constitucionalidade questionada pela Procuradoria-

271 A completa tramitação do projeto e seu inteiro teor normativo podem ser acompanhados pelo endereço eletrônico https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao= 345103. A última movimentação mencionada foi consultada no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados em 05 de julho de 2019.

272 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510/DF. Peças processuais. Relator Min. Ayres Britto. Julgada em 29 de maio de 2008. DJ 28/05/2010. [acesso 05 jul 2019]. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723

273 Brasil. Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005. Dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança e dá outras providências. Diário Oficial da União 28 mar 2005. [acesso 05 jul 2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.htm

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Geral da República sob o principal argumento de violação frontal do direito à vida,

defendida a partir da fecundação.

No julgamento da citada ADI, consignou-se que o embrião in vitro e “um bem

a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a

Constituicao” 274 . Merecedor de uma particular tutela por se tratar de material

humano, embora não o seja no mesmo sentido do embrião humano em

desenvolvimento no útero materno. Definiu-se que a proteção aos direitos da

personalidade do nascituro é devida após a implantação uterina e que, apesar de ter

havido a fecundação, não foi desencadeado o processo vital se o embrião

criopreservado não foi implantado no útero e não sofreu nidação.

O Estatuto do Nascituro vai de encontro, portanto, a uma tese já pacificada

pelo STF, inviabilizando a manipulação embrionária in vitro em pesquisas com

células-tronco, os métodos de diagnóstico pré-implantatório e até mesmo as

técnicas de reprodução assistida, em que habitualmente são fertilizados embriões

em maior número do que os implantados no útero, em cada procedimento. Também

no tocante à interrupção da gestação em casos de anencefalia ou outras

malformações congênitas graves e incuráveis em que se observa o deferimento

judicial dos pleitos, tal ato restaria impossibilitado diante da vedação da privação da

274 (…) “A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À VIDA E OS DIREITOS INFRACONSTITUCIONAIS DO EMBRIÃO PRÉ-IMPLANTO. O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria "natalista", em contraposição às teorias "concepcionista" ou da "personalidade condicional"). E quando se reporta a "direitos da pessoa humana" e até dos "direitos e garantias individuais" como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais "à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança ("in vitro" apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituicao. (...)”. (STF, ADI 3510, Relator(a): Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2008, DJe 28-05-2010).

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expectativa de vida do nascituro em razão de probabilidade de sobrevida fora do

útero materno.

Recente projeto de autoria do Senador Flavio Arns pretende a “criminalizacao

do aborto provocado que seja motivado por malformacao fetal”, apenas

acrescentando ao Código Penal norma com o supracitado texto. Trata-se do PL

2.574 de 2019, que se encontra em fase de designação de relator na Comissão de

Constituição, Justiça e Cidadania275.

Na exposição de motivos do projeto, constata-se claramente a intenção de

afastar a tese da defeasibility da interpretação do artigo 128 do CPB, afirmando-se

que o Legislativo já definiu todas as hipóteses de incidência da permissão do aborto

“de forma inequivoca e contundente”, nao cabendo ao Judiciario qualquer outra

interpretacao com fundamento em “inexistentes brechas” do ordenamento juridico

brasileiro, visando autorizar a interrupção de gestações de fetos com anomalias por

Zika vírus ou síndrome de Down, expressamente mencionadas pelo autor do

projeto276. Afirma-se que as duas únicas possibilidades de interrupção são as já

legalmente previstas do aborto necessário e aborto humanitário, colocando-se como

inviável, portanto, também a interrupção em casos de anencefalia, já pacificada pelo

STF.

De propositura suscitada pelo ajuizamento da ADI 5.581 perante o STF – que

discute a interrupção da gestação e outras medidas estatais em casos de infecção

materna pelo vírus Zika –, o PL 4.396 de 2016 visa à inclusão no Código Penal de

causa de aumento de pena de um terço até a metade em caso de aborto cometido

“em razao de microcefalia ou anomalia do feto”. Afirma-se na exposição de motivos

a intencao de “inibir movimentos pro-aborto” e de nao permitir a progressiva

ampliação do rol de casos permitidos, além dos legalmente previstos277. O projeto

275 A completa tramitação do projeto e seu inteiro teor normativo podem ser acompanhados pelo endereço eletrônico https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136519. A última movimentação mencionada foi consultada no sítio eletrônico do Senado Federal em 05 de julho de 2019.

276 Exposição de motivos e justificativas do PL 2.574/2019 disponíveis em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7945772&ts=1560549139079&disposition= inline. [acesso 05 jul 2019].

277 “O que temos testemunhado, recentemente, com a comocao publica em torno dos milhares de caso de microcefalia, é que a cada nova enfermidade ou doença que acomete a vida fetal, um novo movimento se estrutura em prol de novas hipóteses que autorizam o aborto. Hoje é a microcefalia, amanhã outro mal (que apenas atesta a nossa incapacidade de enfrentar problemas graves de saúde

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tramita apensado ao PL 1459 de 2003, que objetiva a aplicação de pena de reclusão

a abortos provocados por anomalias fetais278.

Há, ainda, duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC n. 29/2015 e PEC

n. 181/2015) que debatem o reconhecimento do direito à vida desde a concepção,

pretendendo sua inclusão no texto constitucional. A primeira preconiza a inclusão do

termo “desde a concepcao” no artigo 5o da Constituição, que garante a

inviolabilidade do direito à vida279. A segunda – PEC 181 de 2015 – originou-se da

PEC 99 de 2015, proposta pelo Senador Aécio Neves, e foi responsável por

recentes discussoes e manifestacoes sociais, tendo recebido a alcunha de “cavalo

de Troia”, em razao de sua proposicao inicial ser referente a ampliacao da licença

maternidade em caso de parto prematuro, tendo sido o projeto posteriormente

ampliado para a inclusão da definição e proteção da vida desde a concepção.

A PEC 181 teve seu texto-base aprovado pelo Plenário do Senado Federal

em 2015 e foi remetida à Câmara dos Deputados. Nesta Casa, em 2017, recebeu

proposta de substitutivo ao seu texto original, para que fosse incluido o termo “desde

a concepcao” nos artigos 1o, inciso III, e 5o da Constituição da República, que

dispõem sobre a dignidade da pessoa humana e inviolabilidade do direito à vida,

respectivamente280.

publica) autorizara o exterminio da vida como uma especie de alibi estatal”. Deputado Anderson Ferreira, justificativas do PL 4.396/2016. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ prop_mostrarintegra?codteor=1433470&filename=PL+4396/2016. [acesso 05 jul 2019].

278 PL 1459/2003. Autor Deputado Severino Cavalcanti. Inteiro teor disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=124063&ord=1. [acesso 05 jul 2019].

279 Tramitação, exposição de motivos e justificativas da PEC 29/2015 disponíveis em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/120152. [acesso 07 jul 2019].

280 A justificativa do substitutivo à PEC 181 de 2015, proposto por seu Relator na Câmara dos Deputados, Deputado Jorge Tadeu Mudalen, baseia-se na necessidade ampla de proteção da vida e da dignidade humana e em um afirmado ativismo judicial, com “intrusao desrespeitosa e desmedida do Poder Judiciário nas atribuições do Poder Legislativo, de forma a causar verdadeiras anomalias institucionais”. O texto do substitutivo tem o seguinte teor: “Art. 1º O inciso XVIII, do art. 7º da Constituicao Federal, passa a vigorar com a seguinte redacao: ‘Art. 7º (...) XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias, estendendo-se, em caso de nascimento prematuro, à quantidade de dias que o recém-nascido passar internado, não podendo a licença exceder a duzentos e quarenta dias.’ Art. 2º Dê-se a seguinte redação ao inciso III do art. 1º da Constituição Federal: ‘Art. 1º (...) III- dignidade da pessoa humana, desde a concepção;’ Art. 3º Dê-se a seguinte redação ao caput do art. 5º da Constituição Federal:

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Para análise da PEC, foi criada uma Comissão Especial em 30 de novembro

de 2016 – “um dia apos o STF decidir pela descriminalização do aborto durante o

primeiro trimestre de gestação” 281,282, conforme noticiado pela própria Câmara dos

Deputados. A Proposta ainda se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados

e, caso aprovada, deverá retornar ao Senado Federal para votação de seu texto

substitutivo.

Em sentido contrário – ampliando-se, portanto, as hipóteses de aborto legal –,

encontra-se em tramitação no Senado Federal o Anteprojeto do Novo Código Penal,

PL 236 de 2012, que prevê três novas excludentes de ilicitude no artigo 128 do CPB,

que tipifica o crime de aborto, além das já existentes do aborto necessário e do

aborto ético ou humanitário. As novas hipóteses seriam: em caso de emprego não

consentido de técnica de reprodução assistida; se comprovada a anencefalia ou

outra “grave e incuravel anomalia que inviabilize a vida extrauterina”, quando

atestado por dois médicos; e pela vontade da gestante até a 12a semana de

gestação, mediante constatação de médico ou psicólogo de que a mulher não

apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade283.

‘Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:’” A tramitação da PEC e seu inteiro teor estão disponíveis em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2075449 [acesso 07 jul 2019].

281 Notícia disponível em https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/551535-DISCUSSOES-SOBRE-PEC-DA-LICENCA-PARA-MAE-DE-PREMATURO-DEVEM-SER-RETOMADAS-EM-2018.html [acesso 07 jul 2019].

282 A citada decisão do STF diz respeito ao julgado proferido pela Primeira Turma, seguindo voto do Ministro Luís Roberto Barroso, no bojo do Habeas Corpus 124306/RJ. O caso referia-se à revogação da prisão de médicos e funcionários detidos em operação policial que investigou uma clínica clandestina. A decisão diz respeito apenas ao caso concreto levado ao STF e não tem efeitos gerais erga omnes. No acórdão, afirmou-se que a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre deve ser excluída do âmbito de incidência das normas penais que criminalizam o aborto, por violar direitos fundamentais e a autonomia da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. Ressaltou-se, ainda, o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres.

283 PL 236 de 2012, Anteprojeto do Novo Código Penal Brasileiro. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3515262&ts=1560373292895&disposition= inline [acesso 07 jul 2019].

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Ressalte-se que, à época, o Conselho Federal de Medicina manifestou

posicionamento favorável à autonomia da mulher nas primeiras 12 semanas da

gestação, em concordância com o citado texto do anteprojeto penal284.

Destaca-se também o Projeto de Lei n. 882/2015, de autoria do Deputado

Federal Jean Wyllys, que “estabelece as politicas publicas no âmbito da saude

sexual e dos direitos reprodutivos”285. Pretende-se garantir o direito à reprodução

consciente e responsável e a possibilidade de interrupção voluntária da gestação

nas primeiras 12 semanas de gravidez (artigo 11) e “a qualquer tempo, nos casos de

incompatibilidade e/ou inviabilidade do feto com a vida extrauterina, comprovado

clinicamente”.

As questões debatidas são extremamente sensíveis e socialmente relevantes

e devem ser decididas por meio do devido processo legislativo acompanhado de

audiências públicas e debates com a sociedade civil, ponto este que não tem sido

observado na maior parte dos projetos de lei citados.

284 Notícia publicada em 2 de março de 2013 e disponível no sítio eletrônico do CFM: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=%2023663:cfm-esclarece-posicao-a-favor-da-autonomia-da-mulher-no-caso-de-interrupcao-da-gestacao&catid=3. [acesso 07 jul 2019].

285 PL 882 de 2015. Autor Deputado Jean Wyllys. Inteiro teor disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=D2D7216D6888A57F35FAC7F1AB5C3380.proposicoesWebExterno1?codteor=1313158&filename=PL+882/2015. [acesso 12 ago 2019].

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4 O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NA MEDICINA FETAL

A responsabilidade civil é um dos temas mais importantes e problemáticos da

ciência jurídica devido à grande expansão do instituto no Direito moderno e seus

reflexos na atividade humana graças ao avanço tecnológico que impulsiona o

progresso material, gerador de utilidades, mas também de riscos.

A tentativa de se definir o instituto da responsabilidade civil em um conceito

único é infrutífera; sua ideia é proveniente de séculos de debates, é fruto de uma

construção social imposta ao Direito que um conceito estático não seria capaz de

abarcar. A necessidade de se responsabilizar quem causa um dano a outrem já

permeava as mais primitivas relações humanas. Com a evolução e maior

complexidade das relações sociais, a noção de responsabilidade civil se solidifica

juntamente com a evolução do conceito primitivo de vingança e justiça privada para

a efetiva e privativa aplicação da justiça pelo Estado 286 . Washington de Barros

Monteiro sintetiza precisamente essa ideia: “a ação de ressarcimento nasceu no dia

em que a repressão se transferiu das maos do ofendido para o Estado”287.

A noção de responsabilidade civil advém da própria etimologia da palavra

construída do latim respondere; entende-se como uma imposição social de

responder pelos seus atos e reparar prejuízos causados a outrem, no âmbito cível,

oferecendo à vítima algum tipo de compensação. Ofensas injustas configuram danos

que geram prejuízos (ou consequências) à vítima; estes, por sua vez, podem ser

indenizáveis288. Embora por vezes os termos sejam tidos por sinônimos, o dano

constitui, em verdade, a ofensa material ao bem jurídico da vítima; o prejuízo é a

consequência do dano, a ofensa jurídica.

286 Gazzola LPL, Maciel-Gonçalves, GF. Culpa médica e sua apuração processual: uma análise das teorias da prova. Rev Bras Dir Proc. 2014; 25: 89-117. p. 91.

287 Monteiro WB. Curso de Direito Civil: Direito das obrigações. Vol. 5, 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 392.

288 Milagres MO. Breves notas sobre a (des)patrimonialização da responsabilidade civil: ainda a fundamentalidade do dano. In: Rosenvald N, Milagres M. Responsabilidade civil: novas tendências. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2017. p. 175-182.

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São pressupostos clássicos da responsabilidade civil o ato contrário à norma,

o dano/prejuízo – ainda que de ordem não material – e o nexo causal entre eles289.

As normas cíveis que determinam a responsabilidade civil elegem o dano como

elemento central, sendo que o dano presumido (in re ipsa) apenas afasta a

necessidade de prova do prejuízo (enquanto consequência do dano), mas não a sua

existência enquanto pressuposto. Não se pode admitir a responsabilidade sem dano

e essa é uma ideia fundamental à responsabilidade médica.

Classicamente, a responsabilidade civil fundou-se na doutrina da culpa, em

sentido estrito em suas formas de imperícia, imprudência e negligência,

fundamentando a responsabilidade subjetiva pelo descumprimento de um dever de

cuidado ou como expressão da consciência e vontade dirigidas a um fim (dolo). No

entanto, a culpabilidade não é elemento indispensável para que nasça o dever de

indenizar, sendo a responsabilidade subjetiva insuficiente para abarcar todos os

casos passíveis de reparação e toda a gama de danos ressarcíveis.

Buscando uma maior cobertura para a reparação dos danos, surge a teoria

objetiva, que encontra amparo na doutrina do risco e na ideia de que os riscos de

cada atividade devem ser suportados por quem a realiza ou por quem deles se

beneficia290. Mesmo uma atividade lícita, portanto, pode causar risco a terceiros e

um dano injusto a ser reparado. Foram criadas diversas teorias do risco, que

perpassaram pelo risco-proveito, risco social, risco profissional e risco criado, todas

elas contribuindo para o nascedouro e consagração da teoria da responsabilidade

objetiva.

289 A responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro encontra-se fundamentada, especialmente, nos seguintes artigos do Código Civil, Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (...) Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (…) Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.”

290 Stoco R. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 149-151.

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De qualquer forma, independente da presença ou ausência da culpa como

configuradora de cada uma das formas de responsabilidade civil, tem-se em mente

que a busca da reparação integral do dano norteia o instituto, devendo a vítima ser

restituída ao seu estado anterior ao dano da forma mais exata possível: a punição

do agente de um ato ilícito cede lugar à proteção da vítima de um dano injusto.

Na responsabilidade contratual – em que ora se defende situar a

responsabilidade médica –, o tipo de obrigação assumida é relevante: se a

obrigação é de meio, o objetivo final é a atividade em si, a ser prestada de forma

diligente, com observância dos preceitos técnicos adequados, independentemente

do resultado obtido. Quando o foco da obrigação está na obtenção desse resultado

e a atividade é um simples meio para alcançá-lo, tem-se uma obrigação de

resultados291.

Tal diferenciação interfere na distribuição do ônus da prova, mas não rompe

com a teoria da culpa292. Tanto na obrigação de meios como na de resultado, a

existência de culpa em sentido amplo, incluindo o dolo, se impõe. A

responsabilidade do profissional estará, portanto, ancorada na culpa: na atividade de

meios, culpa-se o agente pelo erro de percurso, mas não pelo resultado, pelo qual

não se responsabilizou. Na atividade de resultado, culpa-se pelo erro de percurso e

também pela não obtenção ou insucesso do resultado, porque este era o fim

avençado293.

291 Lôbo PLN. Direito Civil: Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 37.

292 Rui Stoco afirma que “nao obstante o alcance que a obrigacao tenha (de meios ou tambem de resultado), impõe-se a existência de culpa do obrigado civil, seja presumida ou demonstrada pelo credor”. Para o autor, na obrigacao de meios, cabe ao credor demonstrar a culpa do devedor. Já na obrigação de resultado, presume-se a culpa do devedor se não houve a obtenção do resultado, invertendo-se o ônus da prova. Caberá ao devedor provar que não agiu com culpa ou a ocorrência de caso fortuito ou força maior ou culpa exclusiva do credor (Stoco R. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 160-161).

293 Gazzola LPL, Maciel-Gonçalves, GF. Culpa médica e sua apuração processual: uma análise das teorias da prova. Rev Bras Dir Proc. 2014; 25: 89-117. p.95.

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4.1 A responsabilidade civil médica e o diagnóstico de anomalias fetais

São notórias as mudanças contemporâneas na relação médico-paciente e

seus reflexos nas consequências jurídicas dela advindas: a massificação das

relações sociais, o ato médico enquadrado ao direito consumerista, o

desenvolvimento técnico-científico na Medicina e a hiperespecialização, o

automatismo no atendimento de saúde, a publicidade e divulgação de resultados, a

globalização da informação, a intervenção de novos atores (planos de saúde,

seguradoras, grandes hospitais) gerando impessoalidade em uma relação outrora

personalíssima; são todos fatores que aumentam a complexidade da ação médica,

os riscos e as consequências jurídicas. Ainda, o paciente de hoje mostra-se cada

vez mais consciente de seus direitos – reais ou fictícios – e mais esperançoso e

exigente de resultados. Acrescente-se a tudo isso a disposição da mídia em

transformar infortúnios em escândalos e facilmente entende-se a explicação para o

vultoso incremento do número de demandas judiciais versando sobre o Direito

Médico.

Embora a Medicina tenha se tornado ciência ainda mais complexa, os

mesmos resultados aleatórios de outrora ainda podem ser observados, pois o

avanço tecnológico não é capaz de suprimir por completo a álea. A medicina não é

ciência exata, afirmam os médicos; não há doenças, há doentes: pessoas

acometidas da mesma condição reagem de forma diversa ao mesmo tratamento. A

maioria dos atos médicos inevitavelmente implica algum risco para o paciente e nem

sempre a ocorrência de um dano em um tratamento ou intervenção médica indica a

presença de culpa294.

Na Medicina Fetal, os riscos podem acometer duas individualidades ao

mesmo tempo, o que agrava a questão. As peculiaridades da atuação da

especialidade sobre um contexto biológico ainda frágil, instável e em construção,

associado ao psiquismo da gestante a colaborar, voluntaria ou involuntariamente, na

resposta à abordagem médica, são fatores que tornam a relação ainda mais

294 Gazzola LPL, Maciel-Gonçalves, GF. Culpa médica e sua apuração processual: uma análise das teorias da prova. Rev Bras Dir Proc. 2014; 25: 89-117. p. 90.

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complexa. Em porção considerável dos casos, o médico poderá apenas informar e

amenizar uma situação desfavorável preexistente.

A culpa médica na área da Medicina Fetal é, no entanto e apesar de todas as

particularidades, apreciada como qualquer outra e sob seus mesmos pressupostos.

A responsabilidade do médico é, em regra, subjetiva e depende da análise da culpa,

que deve ser certa, ainda que não seja necessariamente grave. E quanto à forma da

obrigação pactuada, é considerada de meios, devendo o médico prestar sua

atividade de forma consciente, cuidadosa, diligente, valendo-se dos conhecimentos

técnicos consagrados em sua ciência e não se comprometendo a garantir o

resultado.

Questão tormentosa que se coloca na doutrina e jurisprudência é a potencial

configuração da obrigação de resultados em exames diagnósticos, extremamente

relevantes na prática em Medicina Fetal. Os Tribunais pátrios têm sufragado o

entendimento de que, em quaisquer exames diagnósticos – sejam eles laboratoriais

ou de imagem, como ultrassonografias, tomografias e ressonâncias –, a obrigação

pactuada resume-se em fornecer o resultado correto, não havendo que se falar em

apenas ser diligente para tal. Nesse caso, o médico continua a responder de forma

subjetiva, com a análise de sua culpa na elaboração de um diagnóstico errôneo,

sendo objetiva a responsabilidade da pessoa jurídica, como o laboratório

responsável pela realização do exame, alegando-se como justificativa para tal o

risco da atividade laboratorial e a incidência do Código de Defesa do Consumidor à

relação295.

295 São numerosos os exemplos de julgados em que os Tribunais adotam o entendimento narrado. Considerando o recorte deste trabalho e a análise de julgados de Tribunais Superiores e estaduais de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro – em razão da grande abrangência populacional –, colacionam-se trechos exemplificativos de julgados representativos da jurisprudência dominante dos citados órgãos julgadores estaduais: “(...) Tratando-se de diagnóstico por imagem, a doutrina e parcela da jurisprudência têm se posicionado no sentido de que a obrigação destes profissionais é de resultado, isso porque o médico utiliza-se de sua técnica com uma finalidade certa: diagnosticar e emitir um parecer sobre determinado órgão ou circunstância do paciente. Nessa trilha, o que se espera do médico especialista em radiologia para a realização de diagnóstico por imagem, é que apresente um parecer preciso sobre a imagem estudada, quando da realização do exame, ou seja, espera-se uma obrigação de resultado. Se as imagens obtidas na ultrassonografia são inconclusivas, deveria o médico/réu solicitar exames mais complexos - o que não fez - de forma a evidenciar que teve certeza da conclusão por ele obtida quando emitiu o laudo.” (TJMG - Apelação Cível 1.0324.14.011546-4/001, 12a Câmara Cível; Relator Des. José Augusto Lourenço dos Santos, j. 16/08/2017, publ. 23/08/2017).

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Ocorre que é um equívoco equiparar exames de imagem operador-

dependentes a exames laboratoriais automatizados, para fins de determinação de

obrigação de resultados. Exames ultrassonográficos não são automatizados e

realizados da mesma forma que um hemograma ou uma dosagem de marcadores

em fluidos humanos, como sangue e urina. O exame de ultrassonografia, entre

todas as técnicas laboratoriais e radiológicas de imagem, destaca-se por ser

inteiramente operador-dependente, ou seja, depende da experiência do examinador.

As imagens são produzidas em tempo real e sua interpretação requer prática e

conhecimentos profundos para correlação clínico-radiológica.

A doutrina e a jurisprudência não têm feito tal distinção e os julgados limitam-

se, majoritariamente, a repetir de forma acrítica a jurisprudência dominante no STJ

de que “configura obrigação de resultado, a implicar responsabilidade objetiva, o

diagnóstico fornecido por exame médico”296 e que “o diagnóstico inexato fornecido

por laboratório radiológico levando a paciente a sofrimento que poderia ter sido

evitado, dá direito à indenização. A obrigação da ré é de resultado e de natureza

objetiva”297.

O próprio STJ não realiza tal diferenciação, fundamental para se constatar

que, em casos de exames médicos operador-dependentes, é equivocada a

“(...) Reafirma-se, ademais, ser a obrigação dos laboratórios de resultado, por se tratar de atividade altamente especializada e desenvolvida. Não bastasse, pode também se encarar a responsabilidade objetiva em razão do risco da atividade (artigo 927, parágrafo único do CC). (...) No caso em apreço, a responsabilidade objetiva não deriva propriamente da atividade de risco, ou perigosa, mas sim do risco da atividade. A empresa que, no âmbito de sua organização, ocasiona danos com uma certa regularidade, deve assumir o consequente risco e traduzi-lo em um custo. Por conseguinte, quem deve arcar com as consequências danosas da inexatidão dos exames que erroneamente detectam óbito de embriões e/ou fetos não é o paciente, mas sim os laboratórios e hospitais, por embutirem tais riscos no preço de seus servicos.” (TJSP, Apelação Cível 0003983-58.2009.8.26.0659; 6ª Câmara de Direito Privado; Relator: Francisco Loureiro; j. 06/09/2012). “Apelação Cível. Relação de Consumo. Ação Indenizatória (dano moral). Erro de diagnóstico. Exame laboratorial. Sexagem fetal. Fato incontroverso. Sentença de procedência. Irresignação da Ré. Manutenção do julgado. Falha na prestação do serviço. Responsabilidade civil objetiva por erro de diagnóstico laboratorial, respaldada em obrigação de resultado. Teoria do risco da atividade. (...)” (TJRJ, Apelação Cível 0284845-80.2017.8.19.0001; 21a Câmara Cível; Relatora Des. Regina Lucia Passos; j. 21/05/2019).

296 STJ, AgRg nos EDcl no REsp 1.442.794/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 16/12/2014, DJe de 19/12/2014. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/servlet/ BuscaAcordaos?action=mostrar&num_registro=201400595704&dt_publicacao=19/12/2014. [acesso 29 jun 2019].

297 STJ, AgRg no AREsp 317.701/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 03/10/2013, DJe 08/11/2013. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/ ?num_registro=201300812226&dt_publicacao=08/11/2013. [acesso 29 jun 2019].

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atribuição de uma obrigação de resultados, pois o ato mais se assemelha a um ato

médico de definição diagnóstica clínica e de conduta do que a um exame laboratorial

completamente automatizado e sem qualquer participação pessoal em sua

realização. A obrigação, em casos de exames de imagem operador-dependentes,

deveria ser claramente de meios e não de resultados. A jurisprudência dominante

está amparada, portanto, em premissas fáticas equivocadas quanto a esse tema e

continua a ser repetida de forma automática e sem uma densa carga argumentativa

que a legitime.

Outra questão fundamental e potencial geradora de responsabilização médica

na esfera cível é a violação ao dever de informar. O direito de informação é um

direito básico das relações obrigacionais e é, inclusive, corolário do princípio da boa-

fé objetiva, presente nas relações médico-paciente e um dos princípios basilares do

direito privado relacional. A outra face desse direito é o dever de informar.

Afirma Ruy Rosado de Aguiar Jr. que, enquanto a principal prestação do

médico é a prática do ato médico em si, a obrigacao “acessória mais importante é a

de prestar informação adequada e obter o consentimento informado do seu

paciente”298. Isso porque os deveres de proteção, informação, cooperação e cuidado

são deveres laterais ou anexos à obrigação contratual principal de realizar o próprio

ato médico.

O dever de esclarecer tem natureza instrumental, por permitir liberdade e

conhecimento a quem consente, para que possa tomar suas decisões e participar do

processo compartilhado de condutas terapêuticas. Pode ser materializado por meio

do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), forma de comunicação de

notícias que envolvem diagnóstico, prognóstico, meios e finalidades do tratamento,

opções terapêuticas e condutas disponíveis, bem como seus riscos e benefícios. A

linguagem deve ser acessível ao paciente, devendo o médico se certificar de que ele

compreendeu todas as informações fornecidas, não havendo obrigatoriedade

normativa de que o consentimento seja reduzido a termo, ou seja, por escrito. Isso

porque a comunicação é um processo de construção gradual, sendo praticamente

impossível que seja integralmente reproduzida em um documento escrito.

298 Aguiar Jr RR. Consentimento informado. In: Godinho AM, Leite GS, Dadalto L. Tratado brasileiro sobre o direito fundamental à morte digna. São Paulo: Almedina, 2017. p. 339-362.

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Aplicando-se a ideia à Medicina Fetal e uma vez que o direito à informação

tem guarida constitucional e se funda nos princípios de dignidade e liberdade, negar

eticidade à própria realização dos métodos diagnósticos pré-natais – com o

argumento de que eles proporcionariam a tomada de “escolhas eugenicas” – é ideia

descabida e desarrazoada.

A gestante tem o direito autônomo de conhecer seus dados biomédicos, o

que fundamenta o amplo dever de informar do médico. Já que todo ato médico deve

ser consentido, não há como afastar o dever de informar da necessidade de

obtenção do consentimento. E também após o nascimento, a família tem o direito de

conhecer a amplitude da condição médica do recém-nascido, para que possa

exercer a parentalidade com responsabilidade.

A relação médico-paciente, como já afirmado, tem natureza jurídica de

negócio jurídico bilateral e é uma relação contratual, ainda que considerada especial

por envolver direitos personalíssimos. A ela se aplicam os princípios da boa-fé

objetiva e da liberdade contratual, sendo que o primeiro impõe aos contratantes

deveres de proteção, cooperação, informação e lealdade299.

A violação dos deveres anexos ao contrato médico é uma forma de violação

positiva do contrato ou adimplemento ruim, ainda que a prestação principal tenha

sido adimplida e que não tenha havido má prática na obrigação principal do ato

médico 300 . No âmbito jurisprudencial e doutrinário, inclusive, adota-se o

entendimento de que o dever de informar já configura, por si só, uma obrigação de

resultados, ainda que a obrigação médica, de forma geral, seja de meios301. O

médico se compromete com a informação em si e não a diligenciar ou a fazer o

melhor possível para que ela seja fornecida.

A violação do direito à autonomia já representa um dano de ordem moral por

si, passível de reparação cível. Surgirá o dever de reparar o dano moral, assim,

quando há lesão à liberdade de escolha do paciente, ocorrida em razão da omissão

299 Teixeira ACB, Rodrigues RL. Análise do ordenamento jurídico brasileiro: o conteúdo jurídico do direito fundamental à liberdade no processo de morrer. In: Godinho AM, Leite GS, Dadalto L. Tratado brasileiro sobre o direito fundamental à morte digna. São Paulo: Almedina, 2017. p. 363-386.

300 Facchini Neto E, Eick LG. Responsabilidade civil do médico pela falha no dever de informação, à luz do princípio da boa-fé objetiva. Revista da AJURIS. 2015; 42(138): 51-86.

301 Marques CL. A responsabilidade civil dos médicos e do hospital por falha no dever de informar ao consumidor. Revista dos Tribunais. 2004; 827: 11-48.

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no dever de prestar informações ou quando são prestadas de forma incorreta

apenas para que seja obtido o consentimento do paciente302.

Há clássicas críticas doutrinárias ao consentimento informado resumidas na

obra de Lorenzetti, que menciona que a informação costuma ser dada depois que a

decisão médica já foi tomada e não chega a mudar a decisão do paciente, além de

que a comunicação é feita por meios complexos e o processo apenas constitui uma

ritualização e burocratização, simplesmente para evitar demandas judiciais, não

satisfazendo seu real objetivo 303 . Tais críticas, em verdade, dizem respeito

especialmente ao modo equivocado de elaborar a comunicação e cumprir com o

dever de informar e não ao consentimento informado em si.

Também no âmbito ético-profissional, a inobservância do dever de informação

constitui ato ilícito. O novo Código de Ética Médica, introduzido no ordenamento pela

Resolução CFM n. 2.217/2018, dispõe ser vedado ao médico deixar de esclarecer o

paciente sobre determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença,

além de deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente

sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-

lo304.

Assim, o dever de informar posiciona-se como instrumento de concretização

da relação médico-paciente e da autonomia privada enquanto direito fundamental do

paciente, sendo sua violação passível de responsabilização nos âmbitos cível e

ético-profissional.

Vê-se, assim, que a responsabilidade médica é uma espécie de

responsabilidade profissional pela prestação de um serviço, categoria na qual

também se enquadra, por exemplo, a responsabilidade de advogados e analistas

financeiros. Mas em razão de questões técnicas inerentes a cada uma das áreas

que prestam serviços profissionais contratuais ou extracontratuais, a criação de um

corpo normativo único a toda a responsabilidade profissional pode apresentar

302 Bernardo WOL. Dano moral por quebra do dever de informação na relação médico-paciente. In: Teixeira ACB, Dadalto L. Dos hospitais aos tribunais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. p. 89-106.

303 Lorenzetti RL. Responsabilidad Civil de los Médicos, tomo I. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 1997.

304 Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM n. 2.217, de 01 de novembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/ resolucoes/BR/2018/2217 [acesso 30 jun 2019].

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entraves e deficiências. Mostra-se possível a criação de um conjunto de deveres de

comportamento, mas que não poderá ser unitário, em razão de deveres peculiares a

cada profissão.

Uma das formas de contornar tais dificuldades assenta-se na doutrina do

jurista português Manuel Carneiro da Frada, que apresenta a teoria da

responsabilidade civil fundada na confiança, como pressuposto universal e

fundamental para a convivência humana cooperativa e fator primeiro da ordem

social. O modelo promove a proteção das expectativas e se pretende homogêneo e

global, para além da tutela da boa-fé como principio garantidor de homogeneidade

sistemática305. Quem suscita a legítima confiança de outra pessoa e a frustra, deve

responder por eventuais danos causados.

A responsabilidade médica pelo diagnóstico e conduta terapêutica pode ser

bem explicada pela doutrina da confiança. Na relação médico-paciente e

especialmente na Obstetrícia e Medicina Fetal, em que um dos binômios da relação

– o feto – ainda não tem existência visível, a legítima confiança e as expectativas da

gestante depositadas na fala médica, por muitas vezes suprimirem a própria

expressão de sua autodeterminação, devem ser tuteladas.

Assim considerada, a frustração das expectativas legítimas da mãe é passível

de gerar dever de indenizar pelo médico, que, contudo, pode se mostrar muito fluido

e não mensurável.

A responsabilidade pelo dever de informar também se enquadraria, de acordo

com Frada, na doutrina da confiança – talvez por fugir às regras da responsabilidade

contratual e da aquiliana –, especialmente quando decisões são tomadas

alicerçadas na confiança nas informações prestadas306.

De qualquer forma, sobreleva em importância a análise do dano, não havendo

que se falar em responsabilização civil do médico sem que ocorra um dano. Ainda,

não se pode perder de vista que nem todo dano causado por um ato médico é

indenizável. Atos médicos trazem consigo uma margem de erro que pode ser

diminuída, mas decerto nunca eliminada por completo. E o que muitas vezes se

305 Frada MACPC. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2004. p. 33.

306 Frada MACPC. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2004. p. 159.

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considera erro é, na verdade, um acidente ou uma complicação. Não se espera, não

se deseja, mas é previsível que possa ocorrer. Nesse contexto, não se justifica

transferir integralmente para o médico todos esses riscos, áleas e possibilidades.

E a despeito da importância do instituto da responsabilidade civil na proteção

da vítima e reparação dos prejuízos a ela causados, o surgimento contemporâneo

de novas formas fluidas e abstratas de dano acarreta a legítima preocupação com o

exagero no reconhecimento e na expansão desses danos307, o que é notório na área

do direito médico. Como será demonstrado, a teoria da perda de uma chance na

área médica e as ações que envolvem o aconselhamento genético abarcam

exemplos dessa perigosa inflação dos danos tidos por reparáveis na seara da

responsabilização civil.

A própria adoção irrestrita da doutrina da confiança na responsabilidade civil

pode gerar ampliação perigosa do dever de reparar, sobretudo pela

desmesurabilidade do dano, pelo caráter aberto da doutrina e pela dificuldade

probatória de uma realidade psicológica de confiança. A proteção da confiança é

fundamental nas relações médicas e atua como princípio interpretativo, mas talvez

não possa ser alçada como fundamento único da obrigação indenizatória.

4.1.1 A teoria da perda de uma chance no âmbito da Medicina Fetal

A teoria da perda de uma chance é originária do direito francês e foi

transposta para a seara médica, em 1965, pela Câmara Civil da Corte de Cassação

Francesa sob a rubrica de perte d’une chance de survie ou guérison, ou seja, perda

de uma chance de cura ou sobrevivência308 . Sua aplicação clássica ocorre em

hipóteses em que um ato ilícito do agente retira da vítima a oportunidade de obter

uma vantagem ou um desfecho futuro melhor ou mesmo evitar uma perda.

307 Carrá BLC. Todo dano é dano indenizável? In: Rosenvald N, Milagres M. Responsabilidade civil: novas tendências. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2017. p. 129-139.

308 Kfouri Neto M. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 97.

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A ideia é que a pessoa lesada teria a possibilidade de alcançar um resultado

favorável que apenas não sobreveio em razão do comportamento de um terceiro,

gerando-lhe o direito a uma indenização. E tal indenização não diz respeito ao

ressarcimento do dano na integralidade do prejuízo final – pois não há certeza de

sua ocorrência –, mas sim à chance perdida309.

Classicamente, a supressão da chance seria, assim, um dano autônomo e

indenizável, desvinculado do resultado final sob o ponto de vista indenizatório,

embora não possa ser completamente divorciado deste, por dele depender para a

quantificação da oportunidade perdida.

Aplicada ao direito médico de forma doutrinária e jurisprudencial – pela

insuficiência de arcabouço legal específico –, tem encontrado guarida em hipóteses

de erros diagnósticos e de condutas terapêuticas.

A despeito de constituir um novo olhar sobre a responsabilidade civil e

privilegiar o aspecto da proteção integral da vítima – o que fornece uma “resposta”

ao paciente, vulnerável e hipossuficiente quanto ao médico na relação jurídica –, a

tese pode fomentar a litigância já excessiva no âmbito médico e ampliar de forma

perigosa a responsabilização civil médica. Isso por mitigar a certeza do nexo causal

e flexibilizar esse requisito, uma vez que o dano não estaria vinculado de maneira

tão clara ao ato médico, mas sim de forma provável. Mesmo assim, o dano seria

passível de indenização, ainda que distanciada de sua reparação integral. E, não

sendo total a reparação, a aplicação escorreita da teoria demanda a quantificação

da chance perdida, com a dupla finalidade de proporcionar a ampla defesa e o

contraditório e permitir quantificar o valor fixado a título de indenização.

Não se desconhece o posicionamento jurisprudencial de que a perda de uma

chance não estaria relacionada à mitigação do nexo causal, mas apenas constituiria

uma modalidade autônoma de dano. A explicação é que o agente não responde pelo

resultado, mas pela chance privada do paciente, quando não se pode apurar a

responsabilidade direta do agente pelo dano final 310 . Não se adere a esse

309 Savi S. Responsabilidade civil por perda de uma chance. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 40.

310 Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.254.141-PR. 3a Turma. Relator Min. Nancy Andrighi. j. 04/12/2012. [acesso em 11 jun 2019]. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1199921&num_registro=201100789394&data=20130220&formato=PDF

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posicionamento neste trabalho. Isso porque, uma vez que a chance perdida é

justamente apurada a partir do resultado benéfico esperado, não há como

desvincular aquele dano (chance perdida) desse resultado, inclusive para fins de

quantificação da indenização. E estando ambos intrinsecamente relacionados

(resultado esperado e chance perdida), não há como se afastar a análise do nexo

causal, que se encontra claramente relativizado na teoria. Anderson Schreiber

menciona fenômeno que se aplica à temática e o nomeia de “erosao dos filtros da

responsabilidade civil”311, um perigoso afrouxamento dos pressupostos para sua

configuração.

Por tal razão, deve-se diferenciar uma chance real e séria de um mero risco

ou uma chance hipotética. Apenas a primeira é indenizável. Não é qualquer chance

perdida que autoriza a fixação de um valor a título de reparação; a oportunidade

perdida deve ser revestida de forte probabilidade de ocorrência e não mera

eventualidade ou possibilidade. Afirmam Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga

Netto e Nelson Rosenvald:

“Chances nao equivalem a expectativas subjetivas; (...) somente se tornam ressarcíveis quando o processo que conduza a elas já se tenha deflagrado. Caso contrário, ficamos no campo dos danos hipoteticos”312.

A medicina, mesmo com toda a evolução tecnológica contemporaneamente

observada, não é capaz de extirpar por completo a álea dos procedimentos médicos.

Um ato médico não é isento de riscos e a mera criação de um risco abstrato não

configura efetiva perda de um ganho esperado. A própria escolha médica sempre

implica o descarte de várias outras possibilidades, que não necessariamente

constituiriam efetivas chances de um desfecho médico melhor.

Há hipóteses em que a teoria foi aplicada no Brasil em processos médicos

que tangenciam a Medicina Fetal, o diagnóstico e a conduta obstétrica, bem como

outros serviços prestados na gravidez ou no parto. Julgados foram analisados a

311 Schreiber A. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 5.

312 Farias CC, Braga Netto FP, Rosenvald N. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 268-269.

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título meramente exemplificativo e como fundamento para afirmar que há alguma

fragilidade e inadequação na abordagem jurisprudencial da teoria, sobretudo no

tocante à objetivação do quantum de chance perdida, para fixação do valor

reparatório.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicou a teoria, revertendo os julgados

proferidos em primeira e segunda instâncias, para condenar uma empresa a

reparação cível por não ter promovido a coleta de células-tronco embrionárias do

bebê na ocasião de seu nascimento, conforme contratado pelos pais. O juízo

sentenciante e o Tribunal de Justiça condenaram a ré ao pagamento de danos

morais aos pais, mas julgaram improcedente o pedido indenizatório formulado em

nome do bebê. O julgado no STJ foi proferido por maioria, tendo o Tribunal Superior

reconhecido o dano extrapatrimonial da criança pela chance perdida de ter suas

células embrionárias colhidas e armazenadas para que, no futuro e caso venha a

precisar, delas fazer uso em tratamento de saúde de uma patologia grave313.

Apesar de os requisitos da teoria terem sido debatidos profundamente pelos

julgadores, afirmando-se a certeza da possibilidade perdida quanto a um benefício

futuro, não foi adequada a aplicação da tese no julgado.

Não se olvida ou questiona a possibilidade de fixação de danos de ordem

moral ao bebê, pela legitimidade da tutela jurídica de seus direitos da personalidade.

313 Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.291.247-RJ. 3a Turma. Relator Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. 19/08/2014. [acesso em 11 jun 2019]. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1336307&num_registro=201102672798&data=20141001&formato=PDF O acórdão restou assim ementado: “RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PERDA DE UMA CHANCE. DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO DE COLETA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS DO CORDÃO UMBILICAL DO RECÉM NASCIDO. NÃO COMPARECIMENTO AO HOSPITAL. LEGITIMIDADE DA CRIANÇA PREJUDICADA. DANO EXTRAPATRIMONIAL CARACTERIZADO. 1. Demanda indenizatória movida contra empresa especializada em coleta e armazenagem de células tronco embrionárias, em face da falha na prestação de serviço caracterizada pela ausência de prepostos no momento do parto. 2. Legitimidade do recém nascido, pois "as crianças, mesmo da mais tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os quais se inclui o direito à integralidade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua violacao" (…). 3. A teoria da perda de uma chance aplica-se quando o evento danoso acarreta para alguém a frustração da chance de obter um proveito determinado ou de evitar uma perda. 4. Não se exige a comprovação da existência do dano final, bastando prova da certeza da chance perdida, pois esta é o objeto de reparação. 5. Caracterização de dano extrapatrimonial para criança que tem frustrada a chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se for preciso, no futuro, fazer uso em tratamento de saúde. 6. Arbitramento de indenização pelo dano extrapatrimonial sofrido pela criança prejudicada. 7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 8. Recurso Especial provido”.

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O que se debate é que o STJ privilegiou uma pretendida vantagem e não uma

chance séria e real perdida, já que a chance de perder um resultado benéfico futuro

não era uma realidade no caso. Ela apenas ocorreria se a criança desenvolvesse

uma doença futura e também se tal patologia pudesse ser tratada por meio das

células-tronco. As hipóteses são muito distantes, abstratas e conjecturais.

Marcos Catalan, em análise da decisão em comento, ressaltou a ausência de

alusão aos critérios objetivos para aferição da suposta chance perdida, além da

indeterminação do valor da condenação, o que já impossibilitaria – além da própria

abstração e incerteza da oportunidade supostamente suprimida – a alocação da

hipotese nos limites construidos pela dogmatica francesa. “Perdeu-se, na pior das

situacoes, a chance de ter uma chance!”, afirma o autor314.

No sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, foi realizada

pesquisa jurisprudencial a partir dos termos “perda”, “chance”, “gravidez” e “feto”,

buscados em conjunto nas decisões. Foram encontrados e analisados 31 acórdãos

proferidos entre 2003 e 2019; desse total, oito aplicaram a teoria da perda de uma

chance como claro fundamento para a procedência do pedido dos autores, de forma

expressa ou por meio de seus fundamentos teóricos 315 . Dois acórdãos

expressamente refutaram a aplicabilidade da teoria ao caso de lesão ou morte fetal,

após o debate teórico de seus requisitos316. E, dos oito que aplicaram a tese, apenas

um acórdão debateu expressamente a quantificação do dano indenizável, em

percentual fixado em 50% do que seria a integralidade do dano317.

Em um dos julgados do TJMG analisados, exame ultrassonográfico

morfológico feito no pré-natal afirmou a presença de quatro câmaras cardíacas no

314 Catalan M. Um ensaio inconclusivo a partir de fragmentos de uma decisão judicial: entre chances perdidas, realidades não vividas e a gênese (ou não) do dever de reparar. In: Rosenvald N, Milagres M. Responsabilidade civil: novas tendências. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2017. p. 183-189.

315 Os acórdãos do TJMG que aplicaram a teoria da perda de uma chance ou seus fundamentos, em casos relacionados à gestação com algum tipo de dano fetal, foram os seguintes: Apelação Cível 1.0024.06.307984-2/001; Apelação Cível 1.0024.12.180793-7/001; Apelação Cível 1.0324.14.011546-4/001; Apelação Cível 1.0327.08.035401-9/001; Reexame Necessário-Cv 1.0073.08.035770-7/002; Apelação Cível 1.0686.06.180708-3/001; Apelação Cível 2.0000.00.311532-0/000; Apelação Cível 1.0024.08.230904-8/001.

316 Julgados do TJMG que refutaram a aplicabilidade da teoria da perda de uma chance ao caso concreto: Apelação Cível 1.0439.08.087136-1/001; Ap Cível/Rem Necessária 1.0433.14.027282-7/002.

317 No julgamento da Apelação Cível 1.0024.12.180793-7/001, o Relator mencionou expressamente a redução proporcional do valor da indenização em percentual referente à chance que se entendeu perdida.

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coração do feto, sendo que, depois do nascimento, veio a se descobrir que ele tinha

ventrículo único. A criança morreu supostamente em razão da anomalia cardíaca,

não havendo no acórdão explicação clara sobre o contexto do falecimento. Afirmou-

se o “completo desrespeito ao dever do médico [ultrassonografista] em agir com

diligencia”, bem como a chance de vida da crianca caso a anomalia tivesse sido

diagnosticada no pré-natal, razão pela qual a teoria da perda de uma chance foi

aplicada 318 . Não se debateu de forma clara, contudo, quais seriam as reais e

concretas chances de tratamento cirúrgico curativo da criança, considerando-se,

especialmente, que o diagnóstico correto foi realizado precocemente no período

neonatal. Mais uma vez, a teoria foi em tese aplicada meramente por seus

fundamentos teóricos, sem um debate claro sobre as reais circunstâncias do caso

concreto.

Em outro caso, a gestante estava em trabalho de parto, com colo uterino

parcialmente dilatado mas “apagado”, tendo sido realizada amniotomia com saida de

liquido amniótico claro, o que demonstrava ausência de sofrimento fetal naquele

primeiro momento. A tentativa de parto normal progrediu com uso de fórceps em

razão de distócia fetal, mas, tendo ocorrido parada de progressão, foi indicada

cesariana de urgência, que foi finalizada 40 minutos após a constatação de

sofrimento fetal. A criança nasceu viva, mas faleceu em razão de encefalopatia

318 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Apelação Cível 1.0324.14.011546-4/001. 12a Câmara Cível. Rel. Des. José Augusto Lourenço dos Santos, j. 16/08/2017. [acesso 11 jun 2019]. Disponível em: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/ ementaSemFormatacao.do?procAno=14&procCodigo=1&procCodigoOrigem=324&procNumero=11546&procSequencial=1&procSeqAcordao=0 O acórdão restou assim ementado: “APELAÇÃO CÍVEL - PEDIDO DE INDENIZAÇÃO - ERRO DE DIAGNÓSTICO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (CDC) - INCIDÊNCIA - CLÍNICA DE ULTRASSONOFRAFIA - MÉDICO CONTRATATO PARA REALIZAÇÃO DO EXAME - MÁ-FORMAÇÃO DO FETO - AUSÊNCIA DE UM VENTRÍCULO - DEVER DE INFORMAÇÃO - DESCUMPRIMENTO - POSSIBILIDADE DE SOBREVIDA, COM CUIDADOS MÉDICOS - TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE - APLICAÇÃO - DANO MORAL - CONFIGURADO - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA CLÍNICA E DO MÉDICO - CARACTERIZADA. Comprovado erro de diagnóstico por médico que realizou a ultrassonografia fetal, configurado está o dano moral sofrido pelos pais. A margem de erro de 15% no exame não pode servir para justificar a não identificação da má-formação no feto. Caso não possa verificar-se por meio de exame de ultrassonografia a má-formação fetal, o médico deve solicitar exame mais sofisticado. A falta de informação no laudo de ultrassom quanto à possibilidade de falha no patamar de 15% no exame resulta no descumprimento do dever de informação. A falha no diagnóstico enseja a perda da oportunidade de cura ou mesmo de alongamento da vida. A teor do art. 14, caput, do CDC, tem-se que o hospital responde objetivamente pelos danos causados ao paciente-consumidor em casos de defeito na prestação do serviço."

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hipóxico-isquêmica e insuficiência respiratória319. Foi também aplicada a teoria da

perda de uma chance, entendendo-se que a demora na realização da cesariana de

urgência retirou a chance de sobrevivência da criança. Contudo, no próprio voto

condutor do acórdão, constava informação retirada de diretrizes da Associação

Médica Brasileira e do Conselho Federal de Medicina de que a cesariana é indicada

no menor tempo possível em caso de sofrimento fetal agudo, tendo a literatura

demonstrado que intervalos de 30 minutos parecem adequados à maioria dos casos.

Não se discutiu, de forma pormenorizada, o quanto o tempo de 40 minutos até o fim

do procedimento cirúrgico, no caso concreto, poderia ter contribuído para o desfecho

inesperado, tendo sido arbitrado um quantum indenizatório sem parâmetros

objetivos.

Na maior parte dos julgados pesquisados no TJMG em que a teoria foi

aplicada, não se observou a quantificação devida da chance perdida e do percentual

de redução aplicável a título de indenização, que foi fixada de forma arbitrária, sob o

frequente argumento de ser o valor “habitualmente arbitrado” por aquele juizo para

reparação de danos de ordem extrapatrimonial.

E, considerando a ausência de legislação específica sobre a perda de uma

chance, a precisa aplicação de seus critérios pelo Judiciário se mostra ainda mais

fundamental, em razão da construção argumentativa de sua base teórica.

Defende-se neste trabalho que, no âmbito da Medicina Fetal e do diagnóstico

pré-natal, a aplicação da teoria se mostra temerária, justamente pela flexibilização

do nexo causal e pela tentativa de objetivar uma relação que, por si só, é subjetiva,

considerando o obstetra uma espécie de garantidor universal da higidez na

gestação. Ademais, para que a teoria seja corretamente aplicada, o dano e a chance

perdida devem ser objetivamente mensuráveis, requisito que, inclusive, não parece

ter sido adequadamente observado nas decisões judiciais mencionadas.

Em outras hipóteses em que se questiona a aplicação da teoria, poder-se-ia

sustentar, ainda, que eventual erro diagnóstico de uma malformação congênita

grave supriria a chance de a mulher decidir pelo aborto. Esse é, inclusive, um dos

319 Minas Gerais. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. TJMG, Reexame Necessário-Cv 1.0073.08.035770-7/002. 7a Câmara Cível. Rel. Des. Peixoto Henriques, j. 03/03/2015. [acesso 11 jun 2019]. Disponível em: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/ementaSem Formatacao.jsp?numero=undefined

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argumentos que sustentam a responsabilização civil pelo nascimento indevido

(wrongful birth), a ser analisado em tópico próprio. Contudo, não é possível

mensurar objetivamente, para fins de reparação cível, a chance de interromper a

gestação, o que, no Brasil e para casos além da anencefalia, depende de

autorização judicial. Ademais, na hipótese citada, o médico não pode ser

responsabilizado por não possibilitar à gestante uma chance de interromper a

gravidez, pois tal resultado não depende exclusivamente de sua ação. Não é dever

ético ou jurídico do médico em relação à paciente possibilitar a chance de

interrupção da gravidez, mas sim agir com diligência e cuidado buscando proteger a

saúde do binômio mãe-feto. Nesse caso, a chance configuraria um dano hipotético

abstrato e não real ou provável, não sendo passível de indenização.

Conclui-se que, a despeito de existir espaço para a aplicação da teoria da

perda de uma chance na Medicina, seus pressupostos devem ser adequadamente

observados, sob pena de se ampliar de forma temerária a responsabilização médica,

prejudicando, inclusive, a ampla defesa e o contraditório. Tais requisitos podem ser

resumidos, na seara médica, aos seguintes: ato médico danoso, efetiva

probabilidade de ocorrência do resultado benéfico perdido, chances sérias e reais

perdidas e quantificação do dano com percentual da chance suprimida320.

Não se olvida ou tampouco se questiona o inegável e imensurável sofrimento

dos pais pela morte de um filho. Ocorre que a Obstetrícia não é ciência

universalmente garantidora de desfechos positivos para o binômio materno-fetal e a

perda de um filho, por si só, não é causa suficiente para a imposição ao médico do

dever de indenizar. É notória a dificuldade em se aceitar a morte de uma criança

pela álea ou por razões que fogem ao ato médico321. É visível a busca de alguém a

ser responsabilizado.

320 Silva RP. Responsabilidade civil pela perda de uma chance: uma análise do direito comparado e brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 145.

321 Trata-se de questão que diz respeito a uma dificuldade cultural em lidar com a morte em parte das sociedades ocidentais, em que ela é vista como algo a ser debatido e enfrentado pelo médico. Sobretudo quando a morte ocorre em recém-nascidos, a primeira ideia que se tem é buscar se ocorreu algum “erro medico” na conducao do nascimento. De julgado proferido pelo TJMG, retira-se trecho que corrobora o que ora se afirma: “(...) os apelantes sofreram a perda de um filho, que constitui causa suficiente para o dever de indenizar, revelado pela dor moral que é a perda de uma criança, gerada e amada durante os nove meses de gestação, embalada com sonhos e esperancas...” (grifo nosso). TJMG, Apelacao Civel 2.0000.00.311532-0/000, 4a Câmara Cível,

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4.2 As ações civis indenizatórias e o aconselhamento genético

Como se discutiu no tópico anterior, a busca de responsabilização do médico

quando algum desfecho inesperado ou indesejado ocorre em torno da gravidez e do

nascimento é um fato comum. A gravidez é vista como um fato absolutamente

natural da vida da mulher; o imaginário leigo tende a não aceitar a álea como

configuradora de maus resultados nesse período: se algo não ocorreu conforme o

esperado, o inconformismo leva a crenca quase imediata de que um “erro” medico

pode ter acontecido.

Já se nota no Brasil expressivo aumento numérico de demandas judiciais

envolvendo a responsabilidade pelo exercício da Medicina e pode-se imaginar

diversas causas para tal: má qualidade do ensino médico, subfinanciamento dos

serviços públicos de saúde, aumento da procura dos serviços pela população em

geral, mais facilidade de acesso à Justiça e maior conhecimento dos cidadãos sobre

seus direitos322.

Nas áreas que envolvem o binômio materno-fetal esse aumento é revestido

de maior sentimentalismo e insatisfações por vezes dramáticas e delicadas por seus

próprios fundamentos. Historicamente, o primeiro caso relevante de discussão da

responsabilidade civil médica envolveu justamente a Obstetrícia, em leading case

francês que proporcionou uma mudança de entendimento sobre as consequências

jurídicas do ato médico naquele país323.

Na Medicina Fetal, a responsabilidade civil adquire contornos peculiares,

sobretudo em razão das questões que envolvem o diagnóstico e o aconselhamento

Relator Des. Alvimar de Ávila, j. 25/10/2000. [acesso 11 jun 2019]. Disponível em: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/ementaSemFormatacao.jsp?numero=undefined

322 Cavalieri Filho S. Programa de responsabilidade civil 13. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 384.

323 Trata-se de caso amplamente noticiado na doutrina especializada, ocorrido em 1832, quando um médico foi chamado à residência de uma paciente gestante que estava em trabalho de parto, tendo chegado ao local apenas três horas após o chamado. Notando que a criança apresentava-se com o membro superior direito em apresentação no canal vaginal e sendo infrutíferas as manobras de versão, o médico decidiu pela amputação do membro, sendo que, posteriormente, também o braço esquerdo fora amputado. A criança sobreviveu ao tocotraumatismo e a família Foucault ajuizou demanda visando à responsabilização do médico, que foi condenado pelo Tribunal de Domfront. Citado por: Triginelli GS. Do abuso do direito de ação e a litigância de má-fé nas demandas judiciais com pedido de erro medico. In: Fernandes EG, Brito, LSL. Direito e Medicina em dueto: grandes temas de direito médico. Belo Horizonte: Coopmed, 2018. p. 173-187.

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gestacional. Por óbvio, os requisitos jurídicos do instituto devem estar presentes –

conduta comissiva ou omissiva do médico, resultado danoso e nexo de causalidade,

além da culpa em sentido amplo –, não havendo que se falar em mitigação de tais

pressupostos em razão das peculiaridades de uma especialidade médica. Contudo,

tais particularidades da especialidade trazem à tona novas formas de

responsabilização outrora sequer aventadas, como a reparação civil pela concepção

ou pelo nascimento de uma criança. O rápido e intenso desenvolvimento científico

da Genética Médica contribui para esse cenário de novas incertezas jurídicas.

A fim de se avaliar a aplicabilidade no Brasil de ações civis indenizatórias

decorrentes de falhas no processo de aconselhamento genético, desenvolvidas no

direito estrangeiro, mostra-se relevante explicitar as espécies existentes de

aconselhamento, que são métodos que objetivam a investigação genética de

doenças ou condições clínicas específicas.

Em todos os métodos de aconselhamento genético, distintas fases se

sucedem, envolvendo aspectos referentes à realização de exames preditivos sobre

causas de infertilidade, cálculos de riscos familiares de doenças ou alterações

genéticas, diagnóstico genético embrionário, valoração dos resultados e o

aconselhamento em sentido estrito, com orientações do casal quanto aos riscos

envolvidos, alternativas possíveis e procedimentos324,325.

As espécies de aconselhamento genético que geram discussões éticas e

jurídicas na esfera cível são o pré-concepcional, pré-implantatório e pré-natal. O

pós-natal, realizado após o nascimento com vida buscando o diagnóstico ou

predisponibilidade genética da criança a alguma patologia, não é objeto das ações

reparatórias cíveis ora debatidas. Também não se discutem neste trabalho os

aspectos éticos de possível seleção de características e traços cognitivos, físicos ou

de comportamento interferindo na seleção embrionária em procedimentos de

diagnóstico genético pré-implantatório. O que se busca avaliar é a possibilidade de

324 Walker AP. Genetic counseling. In: Rimoin DL, Connor JM, Pyeritz RE, Korf BR, editors. Emery and Rimoin’s principles and practice of medical genetics. Philadelphia: Churchill Livingstone-Elsevier; 2007. p. 717-746.

325 Than NG, Papp Z. Ethical issues in genetic counseling. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2017; 43: 32-49.

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aplicação no Brasil de ações reparatórias cíveis por falhas no processo de

diagnóstico genético em malformações fetais.

O aconselhamento pré-concepcional faz parte da ideia de planejamento

familiar e é realizado antes da concepção, buscando avaliar possíveis riscos de

gerar uma prole com anomalias genéticas, por meio do estudo do material genético

paterno e materno. O método é útil, por exemplo, em casos de casais

consanguíneos ou que pertencem a grupos étnicos com riscos de doenças

genéticas. Detectando-se alguma alteração, o casal pode recorrer, por exemplo, a

técnicas de reprodução assistida e seleção terapêutica embrionária, esta suscitando

dilemas éticos, apesar das tentativas de se lhe atribuir uma concepção de

neutralidade, desvinculando-a de qualquer ideia eugênica.

O aconselhamento pré-implantatório detecta anomalias em embriões in vitro,

antes da transferência ao útero materno, visando à implantação de embriões sadios.

Quanto à seleção terapêutica de embriões, ressalte-se a inexistência de lei que a

regule, havendo apenas atos infralegais emanados do Conselho Federal de

Medicina, especialmente a Resolução CFM n. 2.168 de 2017, que dispõe ser vedada

a seleção de sexo ou de qualquer outra característica biológica do futuro filho,

exceto para evitar doenças no possível descendente. A mesma norma permite o

diagnóstico genético pré-implantacional de embriões para seleção daqueles com

alterações causadoras de doenças – sendo que os doentes podem ser descartados

ou doados para pesquisas – e para tipagem e seleção dos compatíveis com algum

irmão já afetado por doença cujo tratamento efetivo seja o transplante de células-

tronco326.

Diante da fragilidade das normas que regulamentam a matéria, a prática do

aconselhamento genético pré-implantatório causa preocupação ética referente à

tentativa eugênica de melhoramento da espécie e possibilidade de se descartar um

embrião que poderia dar lugar a uma pessoa com deficiência ou que até mesmo

jamais viesse a desenvolver a enfermidade temida327. O objetivo da técnica deve ser

326 Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução no 2.168, de 21 de setembro de 2017. Adota as normas eticas para a utilizacao das tecnicas de reproducao assistida e dá outras providências. Diário Oficial da União 10 nov 2017; Seção 1, p. 73. [acesso 17 jun 2019]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/ 2017/2168_2017.pdf

327 Cirión AE. Consideraciones bioéticas y jurídicas sobre la biotecnología con fines eugenésicos. Acta Bioethica. 2015; 21 (2): 247-257.

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de proporcionar eventual solução a problemas reprodutivos ou a uma enfermidade

genética detectada.

Por derradeiro, tem-se o aconselhamento genético pré-natal, feito no

nascituro a partir da implantação e nidação embrionária no útero materno. Para tal,

podem ser usadas técnicas não invasivas, como exames de imagem, ou invasivas,

como a amniocentese e a biópsia de vilo corial. Os métodos invasivos não são

isentos de riscos obstétricos, descritos em capítulo próprio.

Aitziber Emaldi-Cirión, citado por Iara Antunes de Souza, sintetiza as

espécies de aconselhamento genético e suas consequências jurídicas da seguinte

forma:

1) Em casos de erro pré-concepcional, retira-se do casal o direito de não ter

descendentes ou de realizar algum método de terapia gênica nos gametas, tratando-

se de “concepcao indevida” (wrongful conception).

2) Se a falha é no aconselhamento e diagnóstico pré-implantatório, fala-se em

“nascimento indevido” (wrongful birth), não desejado ou por restar suprimida a

possibilidade de eventual terapia gênica embrionária.

3) Com erros de aconselhamento genético pré-natal, tem-se o “nascimento

indevido” de uma crianca, por supressão do direito dos genitores de interromper a

gravidez ou utilizar terapias genicas fetais, ou a “vida indevida” (wrongful life), em

razão de alegação da própria criança sobre seu direito de não nascer com

deficiências e direito de nascer sadia328.

Um ponto a ser também considerado diz respeito à ampla gama de métodos

diagnósticos e de testagem, em dimensão muito superior às possibilidades

terapêuticas existentes. E já que o resultado do exame genético não se acompanha

frequentemente da possibilidade de tratamento eficaz e a restrição normativa ao

aborto é clara no Brasil, é viável e efetivo o ajuizamento de pedidos indenizatórios

em face dos médicos brasileiros, em equívocos diagnósticos de malformações

congênitas? Tal questão deve ser analisada sob o prisma das ações por concepção,

328 Souza, IA. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth) e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014. p. 02-03.

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nascimento e vida indevidos, originárias do direito estrangeiro, especialmente norte-

americano.

Algumas dessas ações, quando encontram guarida no direito brasileiro, são

debatidas sob a rubrica da perda de uma chance, com os problemas a ela inerentes.

Mas, com a legislação restritiva quanto ao aborto no Brasil, é desarrazoado imputar

ao médico a responsabilidade por suprimir da gestante a chance de abortar, fato que

não está sob sua exclusiva decisão, analisando-se a questão sob o prisma do aborto

legal no país.

Em diversos ordenamentos jurídicos, especialmente nos Estados Unidos, na

Inglaterra e na França, há precedentes judiciais que envolvem erros diagnósticos no

processo de aconselhamento genético, especialmente em casos de diagnóstico

falso-negativo, em que se suprime a possibilidade de interromper a gestação de um

feto malformado. Alguns desses paradigmáticos precedentes serão analisados para

fins de compreensão dos institutos e avaliação da possibilidade de aplicação dos

fundamentos decisórios no Brasil. Não se trata de um estudo de direito comparado,

mas de avaliar os fundamentos decisórios a fim de se identificar se há unidade das

razões de decidir, que possa ser transposta ao ordenamento jurídico brasileiro.

4.2.1 Concepção indevida (wrongful conception)

Casos de concepção indevida são também conhecidos pelo direito de origem

anglo-saxônica como wrongful pregnancy, uma vez que é a própria gravidez o ato

indesejado. Os casos mais comumente associados à concepção indevida não são

propriamente decorrentes de erros no aconselhamento genético, mas em

procedimentos de esterilização cirúrgica, que culminam com o nascimento de uma

criança sem qualquer anomalia, porém indesejada pelos pais, no exercício livre e

autônomo de seu planejamento familiar329.

329 Souza, IA. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth) e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014. p. 52.

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A jurisprudência estrangeira é repleta de casos em que casais submetidos a

procedimentos contraceptivos de ligadura tubária ou vasectomia mal sucedidos

ajuízam demandas indenizatórias por danos morais e materiais pela formação

indesejada de uma prole330.

Iara Antunes de Souza, na análise jurisprudencial de casos exemplares

estrangeiros, identificou que as razões de decidir em casos de procedência do

pedido não eram homogêneas e compreendiam reparações por danos morais pela

violação ao livre planejamento familiar, além de oscilação no entendimento quanto

aos danos materiais: ora se entende que o nascimento de um filho não é dano a ser

repassado ao médico, havendo também contrapartidas benéficas aos pais; ora se

define que as perdas patrimoniais pelo nascimento não desejado e planejado de

uma criança são reais e decorrem diretamente da má prática médica 331 . Como

justificativa de indeferimento do pleito reparatório, é também comum o argumento de

que a concepção e o nascimento de uma crianca sao um “evento abencoado”,

acontecimento benéfico que não se enquadra nos limites dos danos juridicamente

indenizáveis.

Os fundamentos decisórios em tais casos são claramente aplicados no direito

brasileiro, se demonstrados os requisitos configuradores da responsabilidade civil.

Em pesquisa realizada no sítio eletrônico do TJMG com os termos

“indenizacao” e “vasectomia” buscados nas ementas dos julgados colegiados e sem

limitação temporal, foram encontrados 32 acórdãos em que se buscava indenização

por suposta falha no procedimento de vasectomia com posterior gravidez. Em

nenhum deles, o pedido foi julgado procedente. As principais razões decisórias

foram a obrigação de meios no procedimento cirúrgico, a possibilidade

cientificamente reconhecida de reversão espontânea do procedimento e a ausência

de prova de erro cirúrgico ou qualquer falha técnica do médico.

330 Os casos norteamericanos mais debatidos historicamente sobre as wrongful conception actions são Coleman vs. Garrison (1974), por dano decorrente de falha em método anticoncepcional; CAM vs. RAM (1990), em que o pai havia sido submetido a cirurgia de vasectomia; e Moorman vs. Walker (1989), em que a mãe alegava ser infértil. Os casos podem ser encontrados no sítio eletrônico www.findlaw.com [acesso 22 jun 2010].

331 Souza, IA. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth) e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014. p. 61.

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Realizada a mesma pesquisa com os termos “laqueadura” ou “ligadura”, dos

51 acórdãos encontrados, cinco conferiram indenização à paciente ou ao casal,

todos eles por violação do médico ao dever de informar, por não ter orientado os

pacientes quanto à possibilidade de recanalização tubária e de falha posterior no

método contraceptivo. Os danos cuja reparação foi deferida eram

predominantemente de ordem moral, embora também tenha havido pensionamento

mensal até a maioridade da criança332.

De fato, embora a falha em um procedimento de esterilização cirúrgica possa

constituir, em tese, um dano indenizável, a grande dificuldade processual nos casos

analisados diz respeito à confecção da prova certa e segura de que o nascimento da

criança foi devido ao erro cirúrgico no procedimento, pois este tem razoável

possibilidade de reversão333. Em razão disso, a maior parte dos casos não gera

condenações ao médico, a não ser quando se comprova a omissão no dever de

informar os riscos de reversão da cirurgia, a chance de que não ocorra a

esterilização definitiva e os cuidados a serem observados nos períodos pós-

operatórios precoce e tardio.

No Brasil, caso emblemático cujas repercussões jurídicas tornaram-se

públicas foi o ocorrido em 2007 envolvendo a empresa Schering do Brasil, fabricante

do contraceptivo de nome comercial Microvlar, que ficou conhecido como “o caso

das pilulas de farinha”. Ajuizada pela Fundacao de Proteção e Defesa do

332 Os acórdãos proferidos pelo TJMG, em que se deferiu o pleito indenizatório, são: Apelação Cível 1.0479.06.121331-6/002; Apelação Cível 1.0431.06.030997-5/001; Ap Cível/Reex Necessário 1.0024.03.168623-1/001; Apelação Cível 1.0394.05.045183-7/001; Apelação Cível 2.0000.00.338950-2/000.

333 A literatura médica demonstra a possibilidade de reversão espontânea por recanalização em procedimentos cirúrgicos de vasectomia e, em consequência, a necessidade de que tal fato seja explicado aos pacientes. A orientação inclui, inclusive, o uso de outros métodos contraceptivos até que a oclusão canalicular seja confirmada periodicamente por exames pós-operatórios de pesquisa de espermatozoides, sendo que o prazo da cirurgia até a completa azoospermia pode variar de semanas a meses. Tomando-se todas as precauções recomendadas no pós-operatório, utilizando-se a técnica cirúrgica mais eficaz e realizando-se exames periódicos para comprovação de uma sustentada azoospermia, a chance de gravidez posterior será de 1 a cada 2.000 procedimentos. Johnson D, Sandlow JI. Vasectomy: tips and tricks. Johnson D, Sandlow JI. Vasectomy: tips and tricks. Transl Androl Urol. 2017; 6(4): 704-709. Já nos casos de esterilização cirúrgica feminina pela laqueadura tubária, revisões de literatura mostram recanalização e índices de falha de 0,1 a 0,8%, taxas também dependentes do tipo de técnica cirúrgica utilizada. O tempo médio de intervalo entre a cirurgia e a gravidez indesejada varia entre 1 e 10 anos, havendo casos documentados em que a gravidez ocorreu duas décadas após o procedimento cirúrgico. Date SV, Rokade J, Mule V, Dandapannavar S. Female sterilization failure: Review over a decade and its clinicopathological correlation. Int J Appl Basic Med Res. 2014; 4(2) :81-85.

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Consumidor de São Paulo – Procon/SP e pelo Estado de São Paulo contra a

empresa, a ação civil pública debateu as consequências jurídicas da distribuição de

pílulas anticoncepcionais desprovidas do princípio ativo, utilizadas como teste de

maquinário, que foram equivocadamente distribuídas a consumo e não tinham o

condão de impedir a gravidez nas consumidoras. Após julgamento pelas instâncias

ordinárias, a empresa interpôs recurso no Superior Tribunal de Justiça, que não

conheceu as alegações e confirmou o entendimento de que houve dano difuso à

segurança do consumidor e ao direito de informação, sendo relevante citar trecho do

voto condutor do acórdão – julgado à unanimidade –, proferido pela Ministra Nancy

Andrighi:

“(...) O dever de compensar danos morais, na hipótese, não fica afastado com a alegação de que a gravidez resultante da ineficácia do anticoncepcional trouxe, necessariamente, sentimentos positivos pelo surgimento de uma nova vida, porque o objeto dos autos não é discutir o dom da maternidade. Ao contrário, o produto em questão é um anticoncepcional, cuja única utilidade é a de evitar uma gravidez. A mulher que toma tal medicamento tem a intenção de utilizá-lo como meio a possibilitar sua escolha quanto ao momento de ter filhos, e a falha do remédio, ao frustrar a opção da mulher, dá ensejo à obrigação de compensação pelos danos morais, em liquidação posterior”334.

Nesse caso, foi admitida a condenação genérica com possibilidade de

posterior liquidação e execução individual da decisão pelas consumidoras lesadas,

com base em argumento jurídico que é o fundamento da tese da concepção

indevida.

Falhas no diagnóstico genético pré-conceptivo também estão relacionadas,

no direito estrangeiro, a demandas judiciais pela concepção indevida, em casos em

que se alega que a concepção e a gravidez não teriam ocorrido, caso o diagnóstico

nos genitores tivesse sido adequadamente realizado.

Ressalte-se que termo wrongful conception ou suas traduções correlatas não

foi encontrado em nenhuma das decisões judiciais pesquisadas. Apesar de os

fundamentos decisórios serem aplicáveis ao direito brasileiro, observa-se resistência

334 Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 866.636/SP. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 29 de novembro de 2007. [acesso 21 jun 2019]. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200601043949&dt_publicacao=06/12/2007

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quanto à utilização do instituto conforme definido e nomeado pelo direito anglo-

saxônico.

4.2.2 Nascimento indevido (wrongful birth)

As ações cíveis relacionadas ao nascimento indevido são as que mais se

aproximam do escopo do presente trabalho, já que estão mais intimamente

relacionadas ao aconselhamento genético pré-natal – e secundariamente ao pré-

implantatório –, a equívocos no diagnóstico de anomalias congênitas fetais e a

dilemas éticos, sociais e jurídicos que circundam as discussões sobre o aborto no

país.

Falhas no aconselhamento genético pré-concepcional ou pré-natal com

resultados falso-negativos são o fundamento da ação por wrongful birth, cuja

principal razão de pedir refere-se ao dano causado pelo médico ao não proporcionar

à gestante o conhecimento da anomalia da qual seu feto é portador, permitindo-lhe a

realização do aborto legal no tempo devido (em ordenamentos em que o ato é

permitido até determinada semana de gestação) ou a qualquer tempo. Alega-se que

a omissão médica negligente no diagnóstico ou no dever de informar suprimiu o

direito dos genitores de tomar uma decisão autônoma e esclarecida sobre continuar

ou não a gravidez. Pleiteiam-se danos morais, pela violação ao direito de ser

informado e decidir livremente, bem como danos materiais, pelas despesas na

continuação da gravidez e no cuidado de um filho deficiente ou doente. Em geral,

trata-se de gravidez planejada e desejada, mas com falha médica durante o pré-

natal ou equívocos em testes genéticos, resultando no nascimento de uma criança

doente ou portadora de deficiências.

A conduta médica omissiva também pode consistir em não informar sobre as

possibilidades existentes e disponíveis de exames diagnósticos em pacientes

alocadas em grupos de riscos genéticos ou até mesmo não esclarecer sobre o

resultado do teste diagnóstico realizado.

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Na França, há precedentes judiciais de cariótipo falso-negativo e posterior

diagnóstico de Síndrome de Down e erros sorológicos no diagnóstico de rubéola

congênita, suprimindo a possibilidade de interrupção da gravidez, permitida no país.

Em um dos casos, a mãe tinha 42 anos de idade e, por receio do aumento da

chance de anomalias fetais em razão de sua idade, realizou testes genéticos que

não demonstraram defeitos cromossômicos. O caso foi julgado em 1997, tendo o

Conselho de Estado deferido reparação por danos morais aos genitores e

pensionamento mensal por toda a vida da criança. Outro caso decidido no mesmo

país deferiu o pleito indenizatório a genitores que buscavam saber quais as chances

de seu filho desenvolver o mesmo problema genético do qual o pai era portador,

tendo o médico diagnosticado que não haveria chance de transmissão paterna à

prole. Alguns anos depois, o casal gerou um filho com o mesmo diagnóstico

genético dos pais335.

Nos Estados Unidos da América, o posicionamento jurisprudencial majoritário

admite a tese do nascimento indevido, sob os principais argumentos de preservação

da autonomia reprodutiva do casal e da responsabilização pelo ato médico

negligente. No país, o primeiro caso foi julgado em 1967, ocasião em que uma mãe

que adquiriu rubéola no primeiro trimestre de gestação recebeu a informação de que

seu filho estaria protegido da doença. A criança nasceu com retardo mental e

deficiências auditiva e visual336.

Um caso emblemático norte-americano ocorreu em 1988, no estado do

Colorado, onde um casal procurou o aconselhamento genético pré-natal com a

finalidade de saber se a cegueira do primeiro filho era congênita e poderia ser

também identificada em filhos subsequentes. Com a informação de que o quadro

não tinha causas hereditárias, o casal optou pela segunda gravidez, tendo a criança

também nascido cega. Exames realizados durante a gravidez não demonstraram a

patologia fetal. Ambos os filhos foram diagnosticados, algum tempo depois, com um

tipo de cegueira hereditária congênita, tendo sido admitida a negligência médica no

335 Jourdain P. Le prejudice resultant de la naissance d’un enfant atteint d’un handicap congenital. RTD Civ. 1996: p. 623. [acesso 18 jun 2019]. Disponível em: https://actu.dalloz-etudiant.fr/fileadmin/actualites/pdfs/11.2016/12-82.600_RTD_civ..pdf

336 Trata-se do Caso Gleitman vs. Cosgrove, julgado pela Suprema Corte de New Jersey. Hensel WF. The disabling impact of wrongful birth and wrongful life actions. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review. 2005; 40: p. 143.

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aconselhamento337. A doutrina trata o caso sob o prisma do wrongful birth, embora

ele deva ser mais claramente enquadrado sob a hipótese de wrongful conception.

Em Portugal, dois casos foram julgados em 2012, tendo sido reconhecido o

direito à reparação dos casais pelo nascimento indevido de um filho malformado,

embora o pedido formulado em nome do próprio filho por sua vida indevida tenha

sido rejeitado. Nesse país, não há um rol de doenças ou malformações definidas

que permitam o aborto, ficando a cargo dos comitês de ética hospitalares a

avaliação do caso. Dessa forma, a alegação dos médicos e dos hospitais nos casos

julgados foi de que as anomalias fetais nao eram “tao graves” a ponto de justificar o

aborto. O Tribunal Superior de Lisboa desconsiderou tal alegação, afirmando que,

permitindo a lei o aborto, não cabe a comitês de ética suplantar a prerrogativa

autônoma dos pais de decidir pelo procedimento, restringindo o conteúdo da lei338.

Nos casos mais emblemáticos de nascimento indevido, com gravidez

desejada pelo casal mas criança nascida com uma deficiência inesperada e

indesejada – o que, se sabido pelo casal, poderia dar ensejo ao aborto –, os dilemas

éticos mais relevantes dizem respeito ao aborto tido por eugênico e à discriminação

contra os deficientes e presunção de que a vida com deficiência gera um desvalor.

Sobretudo ao se deferir indenização apenas no caso de os pais afirmarem uma

“menor valia” de seus filhos apta a configurar um dano indenizavel, como ocorre em

parte dos estados norte-americanos339, a polêmica ética se estabelece.

E já que o objetivo primordial dos pais que ajuízam a ação pelo nascimento

indevido seria ter interrompido a gravidez, no Brasil sua aplicação prática se mostra

pouco promissora, já que o aborto voluntário é, em regra, vedado e criminalmente

tipificado. Para a utilização de tais institutos, os genitores devem estar em condições

legais de exercício do direito ao aborto.

337 Trata-se do caso Lininger vs. Eisenbaum, julgado em 1988 pela Suprema Corte do Colorado. Strasser M. Wrongful life, wrongful birth, wrongful death, and the right to refuse treatment: can reasonable jurisdictions recognize all but one? Missouri Law Review. 1999: 64(1): p. 57. [acesso 18 jun 2019]. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/3a5b/ f9dfdd7ea5f91ca6c296b6263cea1b9a025d.pdf

338 Raposo VL. Wrongful birth and wrongful life actions (the experience in Portugal as a continental civil law country). The Italian Law Journal. 2017; 03(02): 421-450. [acesso 18 jun 2019]. Disponível em: http://theitalianlawjournal.it/data/uploads/3-italj-2-2017/pdf-singoli/421-raposo.pdf

339 Hensel WF. The disabling impact of wrongful birth and wrongful life actions. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review. 2005; 40: 171-172.

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172

Entretanto, conforme estudado em tópico deste trabalho referente à análise

jurisprudencial de pedidos de interrupção da gravidez em malformações congênitas

além da anencefalia, há casos em que se defere a possibilidade de interrupção da

gestação, condicionada pelo Judiciário à demonstração de inviabilidade de vida

autônoma extrauterina.

Doutrinariamente, afirma-se, portanto, que a omissão do médico em realizar

corretamente o diagnóstico da malformação fetal pode dar azo à sua

responsabilização por tirar da gestante, ao menos, a possibilidade de pleitear

judicialmente eventual interrupção da gravidez, sobretudo se há inviabilidade de vida

extrauterina, como assevera Iara Antunes de Souza340. A própria autora afirma que,

contudo, a indenização deverá ser calculada de forma proporcional, aferindo-se a

chance perdida, a ser quantificada no caso concreto. Ocorre que tal quantificação

não é possível. Não nos parece razoável a hipótese; tratar-se-ia de possibilidade

deveras generica e embasada em “chance sobre a chance”; possibilidades remotas

e impassíveis de avaliação objetiva e quantificação. Não encontramos decisões

judiciais proferidas pelos Tribunais estaduais de Minas Gerais, São Paulo e Rio de

Janeiro ou pelo STJ acerca de responsabilização médica pela perda da chance de

se pleitear judicialmente outra hipotética chance de realizar um aborto. Entende-se

que tal hipótese sequer doutrinariamente poderia ser defendida.

Outra situação fática também considerada possível no direito brasileiro refere-

se à não realização de exames pré-natais para o diagnóstico de infecções fetais

tratáveis durante a gestação. Nesse ponto, ressalta-se haver divergência de

posicionamento doutrinário quanto ao enquadramento dessa situação nas hipóteses

de wrongful birth. Neste trabalho, adere-se ao posicionamento de Vera Lúcia

Raposo, de que a negligência médica em abordar uma doença fetal infecciosa

plenamente tratável é amparada pela responsabilidade civil médica clássica341. Nas

ações por nascimento indevido, tem-se uma nova espécie de dano e de

responsabilização, quando não há nenhuma chance de que a criança nasça

340 Souza, IA. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth) e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014. p. 122.

341 Raposo VL. Wrongful birth and wrongful life actions (the experience in Portugal as a continental civil law country). The Italian Law Journal. 2017; 03(02): 421-450. [acesso 18 jun 2019]. Disponível em: http://theitalianlawjournal.it/data/uploads/3-italj-2-2017/pdf-singoli/421-raposo.pdf

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saudável, não tendo o médico responsabilidade direta pela doença que acomete a

criança. A deficiência ou a doença seriam, portanto, um fato natural e não um dano

causado pela ação médica, como, por exemplo, em casos de prescrição médica de

medicamentos teratogênicos.

4.2.3 Vida indevida (wrongful life) e o direito de não nascer

As ações judiciais que envolvem a vida indevida são ajuizadas pelo próprio

filho nascido doente ou com deficiência, representado por seus pais ou responsáveis

legais, contra os próprios pais, o médico negligente ou o serviço de saúde, por uma

vida prejudicial que lhe teria sido destinada a viver.

Quando ajuizada contra o médico, não se trata de ação por responsabilidade

civil médica, nos termos já explicitados, por ter havido eventual má prática

causadora da doença em si; trata-se, em verdade, da ideia de que a negligência

médica deu causa ao nascimento e não à enfermidade. É como se o filho viesse a

defender seu direito de não ter nascido e, apenas secundariamente, de ter nascido

saudável.

Sendo ajuizada em face dos pais, defende-se a ideia de que a opção do casal

por manter a gestação teria dado azo ao nascimento do filho enfermo, como se

existisse uma obrigação dos pais tanto de realizar exames para diagnosticar

enfermidades fetais, como de interromper a gravidez se elas forem detectadas.

Questiona-se a “irresponsabilidade” dos pais de permitir o nascimento de uma

criança cuja vida terá dificuldades, quando sabiam antecipadamente que a

descendência teria graves deficiências.

Aitziber Cirión menciona casos excepcionais em que um casal portador de

determinada deficiência ou condição genética opta pela procriação consciente de

que o filho seria também portador da anomalia, com o fim de buscar uma maior

integração familiar e sob o argumento de que um filho não afetado poderia sofrer em

uma família de afetados, pois se enxergaria diferente de seus genitores. Dessa

forma, eventual seleção embrionária dirigida deliberadamente a buscar filhos

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doentes ensejaria a essa criança o direito de reparação do dano causado por seus

pais342.

Não é difícil perceber que as implicações da teoria do wrongful life são

radicais e desarrazoadas.

Jeremy Williams chama a atenção também para o fato de que a tese viola os

direitos reprodutivos da mulher. O autor ressalta que a teoria é habitualmente

defendida por liberais que preconizam a impossibilidade de se impor a uma criança

uma existência de má qualidade; contudo, tal defesa liberal irrestrita significaria um

dever/obrigação da mulher de realizar o aborto, suprimindo-lhe o direito autônomo

de escolher recusar o procedimento, o que seria uma contradição com a defesa

também liberal da autonomia corporal, sexual e reprodutiva da mulher343. De fato, a

decisão de não optar por interromper a gestação é da mulher e faz parte de sua

autodeterminação e do direito de direção e controle sobre sua própria vida344.

Um dos casos mais emblemáticos e que deu origem ao denominado direito de

não nascer ocorreu na França e foi julgado em 2000 pela Corte de Cassação

Francesa: trata-se do caso Perruche, que não tinha precedentes no direito europeu

e inaugurou as discussões sobre a matéria345.

Nicolas Perruche nasceu em 1983 com graves sequelas de rubéola

congênita: deficiência mental grave, cardiopatia, surdez e cegueira quase completas.

Sua mãe, Josette Perruche, havia manifestado o desejo de interromper a gestação –

fato permitido na França desde 1975 pela Loi Veil –, após saber que contraíra a

doença no início da gravidez, caso seu filho também tivesse contraído. A rubéola

não fora diagnosticada ao primeiro exame da gestante; mas, após ser

posteriormente detectada durante a gravidez, por erro de interpretação laboratorial e

do médico assistente, entendeu-se que ela estaria imunizada e que não se tratava

de uma infecção recente, não havendo chance, portanto, de a criança contrair a

342 Cirión AE. Consideraciones bioéticas y jurídicas sobre la biotecnología con fines eugenésicos. Acta Bioethica. 2015; 21 (2): 247-257. p. 253.

343 Williams J. Wrongful life and abortion. Res Publica. 2010; 16: 351-366.

344 Mannsdorfer TM. Responsabilidad por lesions prenatales: fundamento, wrongful life y tendencias. Revista de Derecho y Genoma Humano. 2001; 15: 85-119.

345 O acórdão está disponível no sítio eletrônico da Corte de Cassação francesa: https://www.courdecassation.fr/jurisprudence_publications_documentation_2/bulletin_information_cour_cassation_27/bulletins_information_2000_1245/no_526_1362/ [acesso 21 jun 2019].

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doença. Ela se tranquilizou, decidiu prosseguir com a gestação e Nicolas nasceu

gravemente enfermo.

A ação judicial foi ajuizada por Nicolas Perruche, representado por seus pais,

contra o médico, o laboratório e as seguradoras dos profissionais de saúde e do

laboratório, sob o fundamento de que sua mãe não pudera exercer o direito ao

aborto, pelo erro diagnóstico, deixando-o nascer com uma vida com graves

deficiências. O ponto principal a ser debatido naquele momento não era mais o

direito ao aborto, mas o direito de não nascer.

Houve relevante discussão nas diversas instâncias judiciais que apreciaram o

caso de Nicolas Perruche e decisões em sentidos distintos foram proferidas no caso.

Contudo, a decisão final da Corte de Cassação Francesa admitiu ter havido, pela

omissão do médico no dever de informar, violação ao direito subjetivo da mãe de

Nicolas de optar pela interrupção da gravidez, aceitando a legitimidade da criança de

figurar no polo ativo da demanda, em razão de sua vinda injusta e indevida ao

mundo. Colaciona-se trecho do acórdão, em livre tradução:

“PROFISSOES MEDICAS E PARAMEDICAS – Medico cirurgiao – Responsabilidade contratual – Erro – Nexo de causalidade – Mulher gravida – Concurso de erros de um laboratorio e de um medico – Crianca nascida com deficiencia – Direito a reparacao. (...) A partir do momento em que os erros cometidos por um medico e um laboratorio na execucao de contratos firmados com uma mulher gravida tenham impedido esta de exercer sua escolha de interromper a gravidez com o objetivo de evitar o nascimento de uma crianca atingida por uma deficiencia, esta ultima pode requerer a reparacao do dano resultante dessa deficiencia e causada pelos erros considerados (...)”346.

O precedente propiciou uma cadeia de ações judiciais de famílias francesas

pleiteando indenizações por filhos deficientes, além de reações de empresas

346 “PROFESSIONS MEDICALES ET PARAMEDICALES. - Médecin chirurgien. - Responsabilité contractuelle. - Faute. - Lien de causalité. - Femme enceinte. - Concours de fautes d'un laboratoire et d'un praticien. - Enfant né handicapé. - Droit à reparation. (…) Dès lors que les fautes commises par un médecin et un laboratoire dans l'exécution des contrats formés avec une femme enceinte avaient empêché celle-ci d'exercer son choix d'interrompre sa grossesse afin d'éviter la naissance d'un enfant atteint d'un handicap, ce dernier peut demander la réparation du préjudice résultant de ce handicap et causé par les fautes retenues”. Disponível em https://www.courdecassation.fr/ jurisprudence_publications_documentation_2/bulletin_information_cour_cassation_27/bulletins_information_2000_1245/no_526_1362/ [acesso 22 jun 2019].

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seguradoras, por não ser possível cobrir financeiramente profissionais médicos

diante de tal ampla possibilidade reparatória347. As repercussões foram intensas e

geraram reação do Parlamento Francês, que acabou por aprovar, em março de

2002, uma lei que ficou conhecida por “Lei Anti-Perruche”, determinando

expressamente que “ninguem pode reivindicar lesao apenas por causa de seu

nascimento” 348 . Tal disposição, inclusive, passou a integrar o Code de l’Action

Sociale et des Familles francês, sepultando, de forma definitiva naquele país, o

ainda embrionario “direito de nao nascer”.

Ressalte-se tratar-se de um caso isolado que provocou a alteração de uma

estável legislação civil em vigor em todo um país, exemplo concreto que permite

compreender o quanto uma decisão judicial pode influenciar as opções do legislador,

assim como a percepção social sobre o tema.

Apesar de ser esse o caso com maior repercussão doutrinária sobre a vida

indevida, registre-se que o direito norte-americano já havia enfrentado, em 1967,

caso bastante semelhante, inclusive envolvendo o mesmo diagnóstico de rubéola

congênita. Contudo, a decisão foi em sentido diverso, tendo a Corte rejeitado o

pedido feito em nome da criança sob o principal argumento de que seria impossível

“medir a diferenca entre a vida com deficiencia do menino em relacao a completa

privacao da nao existencia”349.

Curioso que, mesmo no país de origem de tais ações e regido por uma visão

individualista, liberalista e patrimonialista do direito, a tendência é de rejeição das

ações intentadas pelos filhos (wrongful life actions), mas de aceitação dos pleitos

dos genitores pela concepção ou nascimento indevidos. Isso em razão do

fundamento distinto: nessas últimas, a discussão principal era sobre o direito de

347 Tascher M. Les revirements de jurisprudence de la Cour de Cassation. Droit. Université de Franche-Comté, 2011. [acesso 21 jun 2019]. Disponível em: https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-00790014/document

348 Tradução livre do art. 1o da “Lei Anti-Perruche”, Lei n. 2002-203, que assim dispõe: nul ne peut se prévaloir d’un préjudice du seul fait de sa naissance.

349 Trata-se do caso Gleitman vs. Cosgrove, julgado pela Suprema Corte de New Jersey, que constitui um verdadeiro precedente do caso francês Perruche. À ocasião, tanto o menino nascido com deficiência como seus pais ajuizaram ações por vida indevida e nascimento indevido em face do médico, pela falha no diagnóstico de rubéola e supressão da possibilidade de se realizar o aborto. A Suprema Corte rejeitou o pedido, entendendo ser logicamente impossível measure the difference between his life with defects against the utter void of nonexistence. Disponível em: www.findlaw.com [acesso 21 jun 2019].

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liberdade e autodeterminação dos pais. Na ação por vida indevida, trata-se de uma

comparação entre a existência e a não existência de uma criança, impossível de ser

calculada350.

Em Portugal, também o primeiro caso julgado de ações que debatem novos

danos em aconselhamento genético envolveu justamente a vida indevida. O caso,

julgado em 2001, refere-se a ação ajuizada pelos pais em nome de seu filho,

nascido com malformações congênitas múltiplas não diagnosticadas durante o pré-

natal realizado em clínica particular. O pedido foi julgado improcedente sob os

seguintes três principais argumentos: de que o “aborto embriopatico” – assim

nomeado no feito, por anomalias congênitas fetais – é permitido em benefício da

mãe e visando proteger sua autonomia e não em benefício da criança; que o

hipotético direito de não nascer não encontra guarida no sistema legal; e que o

direito pleiteado seria personalíssimo e não passível de representação, na forma

pleiteada.

Vê-se que a própria existência de tais ações reparatórias no direito

estrangeiro, independentemente de seu resultado prático, conferem um viés jurídico

patrimonialista, liberal e individualista às questões que envolvem a gravidez e o

nascimento.

A teoria da wrongful life não encontra guarida no ordenamento jurídico

brasileiro. Como salienta Iara Antunes de Souza, ainda que se viesse a admitir no

país o aborto em casos de anomalias congênitas, de forma ampla, tal permissivo

não seria uma imposição, mas uma forma de tornar lícita e possível uma decisão

pessoal da mulher, no âmbito de sua autonomia corporal e reprodutiva351. É da

gestante a autonomia de decidir realizar um aborto – ainda que de forma ilícita.

Ademais, não há meios de se quantificar a não existência humana para fins

de reparação patrimonial.

350 Godoy GG. Acórdão Perruche e o direito de não nascer. Dissertação [Mestrado em Direito]. Curitiba: Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná; 2007. p. 34.

351 Souza, IA. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (wrongful conception), nascimento indevido (wrongful birth) e vida indevida (wrongful life). Belo Horizonte: Arraes, 2014. p. 84.

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Por derradeiro, se o titular do dano que se defende na teoria da vida indevida

é o próprio filho, não há como se admitir que a criança teria a possibilidade de

exercer autonomia e escolher entre nascer ou não. Tampouco há como garantir que

seus representantes judiciais estão efetivamente defendendo seu real interesse – e

é essa a razão de ser da ideia de representação. A personalidade do nascituro não

pode ser invocada contra ele, mas em seu interesse352.

Ainda, o titular do direito não tinha como exprimir sua vontade e exercê-lo e,

ainda que apenas hipoteticamente tivesse, a ideia de procedência de seu pedido

corresponderia à extinção de sua existência, de forma prévia. Não há maior

contradição.

Tais ações, como um todo, são exemplos de uma tendência de excessiva

judicialização da vida, situando quaisquer conflitos em uma perspectiva contratual

patrimonial e em uma visão equivocada de que o Judiciário sempre pode garantir as

mais acertadas decisões, quando até mesmo os titulares dos supostos direitos em

conflito não as alcançaram.

Gabriel Godoy questiona: “quanto vale a vida e quem decide sobre a

vida?”353. Acrescente-se a pergunta sobre se o direito à vida pode ser transformado

em um dever imposto e regulado pelo Estado. Nesse ponto, o direito ao aborto e o

direito à morte digna, assim como outras questões aporéticas, se aproximam. A

Suprema Corte norte-americana, inclusive, já debateu sobre tal aproximação,

afirmando ser legítima a variação da permissividade estatal nos dois casos, a

depender do ciclo da vida e da piora das condições de saúde de uma pessoa que se

deteriora (e deseja o direito de ser eutanasiada) e também da fase e progressão da

gravidez quando a mulher deseja o direito ao aborto354.

352 A ideia vem da regra do infans conceptus, proveniente do Direito Romano, segundo a qual a personalidade jurídica inicia-se com o nascimento, mas são resguardados interesses ao nascituro como se ele já tivesse nascido. Ou seja, considera-se como já nascida a criança apenas concebida, para que a ela possam ser garantidas prerrogativas somente reservadas às pessoas, sempre no interesse dela e nunca em seu prejuízo ou em benefício de terceiros.

353 Godoy GG. Acórdão Perruche e o direito de não nascer. Dissertação [Mestrado em Direito]. Curitiba: Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná; 2007. p. 16.

354 “In right-to-die cases the outcome of the balancing test may differ at different points along the life cycle as a person's physical or medical condition deteriorates, just as in abortion cases the permissibility of restrictive state legislation may vary with the progression of the pregnancy. Equally important, both types of cases raise issues of life and death... Both also present basic questions about an individual's right of choice”. Disponível em: www.findlaw.com [acesso 21 jun 2019].

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4.3 A responsabilidade civil da gestante por sua conduta

A relação entre mãe e filho durante a gestação, como se viu em tópico

próprio, reveste-se de complexidade, singularidade e pluralidade de sentimentos,

podendo ambos apresentar interesses – enquanto bens juridicamente protegidos –

antagônicos. Em Obstetrícia, o próprio tratamento pode representar um conflito entre

o benefício da mãe e o do feto, fato que também interfere no comportamento da

gestante.

No organismo materno, as alterações multissistêmicas relacionadas à

gestação interferem no metabolismo de substâncias químicas em geral e o período

embriogênico é extremamente sensível a tais interferências, sobretudo em razão da

formação dos órgãos e sistemas e da velocidade em que ocorre a multiplicação

celular nessa fase.

Considerando-se tal questão, é fácil perceber que a conduta da mulher

relaciona-se diretamente à higidez da gestação e hoje já se admitem efeitos jurídicos

a essa conduta, como, v.g., o uso de drogas durante a gravidez.

Desobediência a prescrições médicas, uso de álcool, tabaco e drogas ilícitas

e exposição a situações de risco são condutas maternas potencialmente lesivas à

saúde do feto355, falando-se em possibilidade de responsabilização civil materna por

355 Recente estudo de coorte retrospectivo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) em junho de 2019, analisando dados de mais de 660 mil mulheres canadenses, demonstrou um aumento do uso de maconha na gestação, fato também já observado em outras localidades, como nos Estados Unidos. As consequências obstétricas mais observadas pelos pesquisadores canadenses, na comparação com o grupo controle de mulheres que não fizeram uso da droga, foram: aumento do número de partos prematuros e de descolamento prematuro de placenta, maior número de neonatos que necessitaram internação em UTI neonatal, APGAR de 5 minutos 28% mais baixo nos bebês das gestantes fumantes e maior número de crianças nascidas pequenas para a idade gestacional. (Corsi DJ, Walsh L, Weiss D, Hsu H, El-Chaar D, et al. Association between self-reported prenatal cannabis use and maternal, perinatal and neonatal outcomes. JAMA. 2019; E1-E8. DOI: 10.1001/jama.2019.8734).

Publicações brasileiras também demonstram os efeitos teratogênicos de diversas outras substâncias químicas lícitas ou ilícitas (drogas de abuso) e medicamentos, cujo efeito lesivo depende de fatores como idade gestacional, dose da droga ou magnitude da exposição, tempo e frequência do uso e características específicas do agente químico. O etanol ou álcool etílico é causa de restrição de crescimento fetal, retardo mental, microcefalia, lesões nasais e articulares e cardiopatias fetais. O cigarro e seus numerosos compostos químicos tóxicos estão associados a abortamento espontâneo, baixo peso ao nascimento, hidrocefalia fetal, defeitos de parede abdominal com

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tais comportamentos. Questiona-se também se poderia a gestante recusar

tratamento médico destinado à promoção da saúde do feto e se, em razão de tal

recusa, pode ser civilmente responsabilizada.

Conferem-se direitos ao nascituro: há, portanto, possibilidade de que ele

venha a reivindicar, após o nascimento, reparação de danos que lhe foram causados

por sua mãe no útero?

Nos Estados Unidos no início do século XX, adotou-se a doutrina da

imunidade parental, fundada no interesse público de salvaguardar a autoridade

parental e preservar a unidade familiar e a manutenção de sua paz e harmonia356. A

tese não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro e, mesmo no país de

origem, vivenciou franco declínio anos após sua admissão.

Segundo Silma Mendes Berti, configurando-se contra o feto um dano pessoal,

suficientemente certo e resultante de violação a um interesse legítimo do feto pelo

comportamento abusivo ou negligente de sua mãe, é possível sua

responsabilização, embora o tema seja cercado de contradições357. Efetivamente,

não há qualquer diferenciação quanto aos requisitos gerais da responsabilidade civil

subjetiva e, estando eles configurados, a incidência do instituto é juridicamente

gastrosquise e onfalocele, além de complicacões obstétricas como placenta prévia e descolamento prematuro de placenta. A cocaína e o crack, drogas psicoanalépticas ou estimulantes do sistema nervoso central, já foram associados a descolamento prematuro de placenta, abortamento, prematuridade e malformações fetais como microcefalia, anomalias cardíacas, sequência de prune belly, alterações cognitivas e atraso no desenvolvimento. Há, ainda, medicamentos com efeitos teratógenos amplamente descritos, sendo os mais clássicos alguns fármacos da classe dos anticonvulsivantes; agentes quimioterápicos – sendo relevante a discussão sobre as possibilidades, os riscos e os benefícios para o binômio materno-fetal do tratamento oncológico em gestantes –; antibióticos como sulfas e tetraciclinas; talidomida (imunomodulador usado no tratamento da hanseníase cujo efeito teratogênico foi classicamente descrito na década de 1960) e misoprostol, droga que induz aborto e anomalias congênitas quando utilizada no primeiro trimestre da gestação. (Lopes MAB, Brizot ML. Teratógenos e drogas na gravidez. In: Zugaib M, editor. Medicina Fetal. 3. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2012. p. 339-349).

356 Trata-se da parental immunity doctrine, que determinava que, durante o período da vigência do poder familiar, filhos não poderiam demandar qualquer responsabilização civil dos pais, ficando a cargo do Estado – sobretudo sob o ponto de vista da tutela penal – a proteção das crianças e adolescentes e a repressão de condutas abusivas e violentas dos genitores. (Hollister GD. Parent-child immunity: a doctrine in search of justification. Fordham Law Review. 1982; 50 (4): 489-532. Disponível em: https://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=4553&context=flr. [acesso 1 jul 2019].

357 Berti SM. Responsabilidade civil pela conduta da mulher durante a gravidez. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 188.

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possível, apenas observadas questões quanto a capacidade e legitimidade

processuais.

A autora não reconhece a possibilidade de se imputar à gestante

responsabilização pelo nascimento em si, com base na tese do direito de não nascer

– pelas mesmas razões já analisadas quando da responsabilização médica –, mas

sim de ressarcimento por reparação dos danos que foram causados à criança in

utero pelos “efeitos do comportamento” da gestante. Assim afirma:

“Lesoes fetais bastante significativas podem resultar da desnutrição da mãe, da desinformação, da falta de cuidados pré-natais, da prática de certas atividades físicas, da conduta negligente, da transmissão de uma doença, de uma condição genética ou ainda a exposição a um ambiente perigoso para a saúde da criança por nascer. A quem atribuir responsabilidade por tais atos?

(...)

A tendência atual, em alguns países, é resolver problemas dessa natureza a favor das crianças, invocando a responsabilidade civil do médico, ao lado da responsabilidade da mulher: logo, uma responsabilidade civil compartilhada”. 358

Berti reconhece a polêmica e a extrema dificuldade em encontrar respostas

que compatibilizem os interesses extremos em conflito. Sua obra, contudo – a

despeito de seu inegável valor acadêmico jurídico-civilista –, centraliza as complexas

questoes que circundam o tema em ideias conservadoras sobre ser a gravidez “um

privilegio”, a “grandeza de ser mae” e a perplexidade em se admitir uma

“desmaternalizacao do espirito feminino”, talvez pouco considerando a diversidade

humana e tratando de forma reducionista a multiplicidade de percepções femininas

sobre a maternidade.

Não se olvida que a liberdade de ação também acarreta responsabilidade

pelos atos livremente praticados, como expressão de um personalismo ético.

Contudo, ao se defender a ampla responsabilidade civil da gestante por atos lesivos

à saúde do nascituro, parece que se confere uma maior relevância à função punitiva

do instituto em detrimento de sua função efetivamente reparatória. É a necessidade

358 Berti SM. Responsabilidade civil pela conduta da mulher durante a gravidez. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 200-201.

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de punir, de alguma forma e em algum momento – ainda que civilmente –, a conduta

da mulher que atente contra a saúde do feto; não parece ser a efetiva reparação ao

filho que se busca. Também não se observa defesa doutrinária, na mesma medida,

de uma efetiva punição à conduta do pai que fuma durante a gravidez de sua

companheira ou que insere a gestante em situações de risco ou violência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não sou nada. Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada. À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.359

A vida antes do nascimento hoje é amplamente conhecida, estudada,

abordada; até mesmo manipulada. Olha-se para o nascituro com ávidos e

questionadores olhos médicos, jurídicos, ético-filosóficos; indaga-se se ele é ou não

juridicamente pessoa. Mas ainda não é possível o encontro de um elemento

norteador universal, tampouco o será. Diversos questionamentos permanecem, há

séculos, sem uma resposta consensual, sobretudo ao se debater assunto nebuloso

e transcendental afeto à ciência, à religião, à filosofia e até mesmo à política.

Sendo o nascituro portador de uma malformação congênita, exsurgem fatos

complicadores: a possibilidade de a ciência predizer o quantum de vida extrauterina

será possível, a proteção à pessoa com deficiência e a compatibilização de tal

proteção com a autonomia e a liberdade decisória.

Este trabalho não tem nenhuma pretensão de definir a vida, até mesmo

porque tal definição não é o cerne da questão – tampouco possível, uma vez que há

varios “inicios da vida”, ao se considerar aspectos cientificos, filosoficos, religiosos,

normativos –, mas sim em que medida e em que aspectos ou momentos o Direito a

protege (proteção e não definição, pois não cabe ao Direito fazê-lo).

A Constituição da República não diz quando começa a vida humana; a norma

não o faz, tampouco a Filosofia. E a Filosofia realmente não almeja fornecer

respostas; estas, enquanto soluções sob o âmbito prático e normativo do dever-ser,

denominam-se Direito. A solução será, portanto, jurídica.

A resposta deve ser dada pelo Direito e não pela Filosofia ou pela Medicina.

Quando se afigura um conflito entre o interesse individual de proteção da liberdade e

da autonomia decisória e o interesse estatal na irrestrita proteção da vida, é o Direito

359 Fernando Pessoa, em “Tabacaria”.

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que é chamado para solucionar a questão e fornecer uma resposta. E a resposta

jurídica a ser elaborada, quando se trata de direitos existenciais, deve favorecer as

regras de origem privada e não as de produção pública360, pois o direito não é

apenas a normatização emanada do Estado. Nesse ponto, o princípio da

proporcionalidade pode ser uma ferramenta de contenção racional do poder estatal.

A vida do nascituro é um bem constitucionalmente protegido; mesmo assim, é

admissível a ponderação entre a vida embrionária/fetal e outros direitos

fundamentais da gestante que não a própria vida. Não se olvida que a vida é um

pressuposto para o exercício dos demais direitos da personalidade; contudo, isso

não significa que ela tenha status jurídico superior aos demais direitos fundamentais.

Não se afirmando o caráter absoluto de nenhum dos direitos ou interesses em

conflito, o intérprete constitucional deverá ponderar, harmonizando-os ou

estabelecendo condições para que um ou outro prevaleçam, em determinadas

circunstâncias. Não se trata de estabelecer diferentes pesos de valores para os bens

jurídicos, mas de buscar um critério decisório argumentativo. Ocorre que, em casos

de malformações congênitas fetais, a condição da potencialidade ou não de vida

extrauterina – critério definido pelo STF ao debater a anencefalia – não se sustenta

integralmente e em todos os casos.

A Medicina Fetal tem condições de diagnosticar com segurança, certeza e

acurácia anomalias fetais graves e incuráveis. E não há dúvidas de que há

malformações nas quais nem o decurso do tempo nem qualquer procedimento

médico terão o condão de alterar o desfecho ou gerar efetivo ganho de vitalidade. A

anencefalia e a agenesia renal bilateral são exemplos.

Contudo, o que ora se defende é que, quando o Direito cobra da Medicina

uma afirmação da letalidade de uma doença ou potencialidade de vida extrauterina,

transfere a ela – visando conferir legitimidade científica à decisão – o requisito para

uma escolha que deveria se situar no âmbito individual da mulher. A questão deve

360 Rodotà S. Palestra, Rio de Janeiro, 2003. Tradução Myriam de Filippis. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/151613/DLFE-4314.pdf/GlobalizacaoeoDireito.pdf. [acesso 03 out 2019].

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ser tratada sob o prisma da autonomia e da liberdade. “A ciencia poe-se a serviço da

autonomia e da dignidade da pessoa humana”361.

Exigir a certeza da letalidade de uma anomalia fetal para se permitir a

interrupção da gestação, além de acarretar confusão em razão do alcance temporal

e terminológico do que se entende por letalidade, perpetua a colocação da hipótese

dentro da esfera de uma indicação médica – por vezes de afirmação perigosa e

inviável – reafirmando o quão constrita é a autonomia reprodutiva da mulher no

Brasil. E a gravidez não é um dever.

É possível se ampliar o rol normativo de possibilidades de aborto no Brasil,

mas com base na valorização da autonomia e da vida biográfica relacional e não por

meio da definição de critérios médicos objetivos de afirmação de letalidade

intrauterina de uma anomalia fetal. É também eticamente possível e legítima a

proteção estatal da construção de uma vida biográfica fora do útero materno, não

cabendo ao Estado, contudo, obrigar uma existência em sofrimento atroz e garantir

uma vida meramente biológica em detrimento de direitos fundamentais da mulher.

Não se está a desconsiderar a dignidade intrínseca da vida humana no

estágio fetal; é claro que o feto é digno de proteção e o ordenamento jurídico

brasileiro reconhece a necessidade de tutela do nascituro. Mas o que se valora

enquanto conteúdo de uma vida digna não é a mera vida em seu conceito

puramente biológico, mas sua qualidade, dignidade e exercício biográfico com

autonomia e plenitude. A ideia que ora se defende coaduna-se com os dizeres do

constitucionalista Jose Afonso da Silva, para quem a “vida no texto constitucional

não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante autoatividade

361 A ideia é de Brunello Stancioli, ao fundamentar a possibilidade de renúncia das pessoas ao exercício de direitos da personalidade, classicamente tidos como, em regra, intransmissíveis e irrenunciáveis. O autor afirma que, embora o corpo humano esteja sendo levado a limites extremos de manipulação pela evolução tecnológica na Medicina, ainda reside na pessoa a decisão e o poder de se autorrealizar. A caracterização do ser humano não reside na natureza corpórea, mas na autonomia e reconhecimento de sua dignidade, em um “feixe de valores” constitutivos. A tese do autor aplica-se a ideia que ora se defende, ao afirmar que “as pessoas sao os unicos seres que podem ser o que quiserem”. A renuncia ou o exercicio de direitos da personalidade estao na esfera da escolha individual da vida que cada um julga valer a pena ser vivida. E tal escolha apenas seria possível em comunidade (alteridade, quando todos os interlocutores são realmente livres e chamados à fala e à participação social), quando podem escolher (autonomia) sua própria ideia de vida boa (dignidade). Autonomia, dignidade e alteridade são, para o autor, os eixos fundantes da pessoa.

Stanciolli B. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 122-125.

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funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais

compreensiva”362.

Biograficamente considerada, trata-se, portanto, de vida com característica

relacional e agregação social empírica. Embora seu significado seja de difícil

compreensão e definição, defende-se que essa ideia de vida biográfica é um

conceito subjetivo e individual, de conteúdo que apenas pode ser descrito por cada

pessoa; aspecto vital que detém a gestante, inequivocamente, em maior grau do que

o feto, que nao e uma “pessoa em sua plenitude moral, com direitos e interesses de

importância igual aos de qualquer outro membro da comunidade moral”363.

Desde 2008, quando do julgamento da ação que questionava dispositivos da

Lei de Biossegurança, o STF vem ressaltando a importância e prevalência da tutela

da vida biográfica enquanto vida relacional, interativa e autônoma. Ronald Dworkin

tambem ja mencionava a relevância do “investimento pessoal significativo”364 na vida

humana, apto a garantir uma crescente proteção da vida biográfica e não

meramente biológica. Não se proíbe, assim, que determinados estágios da vida

humana possam ter maior proteção do que outros. Ademais, o que se questiona é

como o Estado deve ou pode atuar nessa proteção.

Há muito que as mulheres reafirmam que não desejam ser reduzidas a fetal

containers durante a gravidez e ter seu corpo sob forte controle social. A quem

compete regular as relações entre a mãe e o feto durante essa fase, quando o

direito de uma se opõe ao do outro? Ao Estado? É legítimo um controle coercitivo

sobre o ato de ser ou não mãe? As decisões quanto ao tema têm sistematicamente

sido transferidas ao Estado, em suas expressões legislativa ou judiciária. Mas

considerando-se o aborto como direito de cunho negativo – em contraposição aos

positivos, que obrigam a uma ação ou intervenção positiva –, tal ideia deveria

implicar o afastamento do Estado em relação à mulher no momento de sua decisão.

Trata-se da utilização do princípio da proporcionalidade como ferramenta de

contenção racional do poder estatal, em uma ideia de garantismo negativo. Assim

362 Silva JA. Curso de Direito Constitucional Positivo, 41. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 199.

363 Dworkin R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 15.

364 Dworkin R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 122.

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considerado, a decisão seria, então, inteiramente da mulher? Pode-se a ela conferir

o poder de dispor de um direito do qual não é diretamente titular? Não sendo

possível, se está retirando da mulher o direito fundamental à autodeterminação?

Diversos questionamentos permanecem sem uma resposta que se pretenda

universal ou, ao menos, que coadune completamente todos os direitos e princípios

em suposto conflito, sem que algum se sobreponha a outros. Afinal, os direitos à

liberdade e ao planejamento familiar com paternidade responsável também têm

guarida constitucional.

O personalismo e a autonomia apenas podem ser exercidos legitimamente se

mediados pelo princípio da responsabilidade. Mas paternidade responsável não

pode ser interpretada simplesmente como a permanência a todo custo de uma

gravidez, mas como a possibilidade de projetar a família com responsabilidade

dentro das possibilidades e disponibilidades dos genitores, em quaisquer âmbitos.

O pressuposto que deve ser adotado é o da parentalidade responsável, de

uma mulher ou um casal em exercício de sua autonomia e voluntariedade, e não a

premissa equivocada e leviana de que a mulher sempre buscará eliminar seu feto,

de forma criminosa e irresponsável. Não se deve partir de uma presunção de que a

vontade livre da mulher tem um potencial criminoso de extermínio e sempre se volta

a eliminar seu filho e à realização de abortos inconsequentes e frequentes. Isso

perpetua uma visão excludente da autonomia da mulher. O pressuposto de partida é

o de que a mãe é a pessoa que, em regra, mais protege o próprio filho e não o de

que a criança é quem deve ser protegida contra sua mãe. É a mãe o ator social com

maior potencial de proteção do seu concepto; o Estado e suas representações

políticas não são mais capazes do que ela de garantir tal tutela. Ainda que, sob o

ponto de vista fático e em hipóteses de descriminalização mais ampla do aborto,

possam ocorrer interrupções de gestações em casos que não seriam tidos como

eticamente aceitáveis, o fato é que o Direito não pode se guiar por casuísmos.

A gravidez não é um ato jurídico ou um acontecimento social cercado de

normas estatais, mas um fato natural que se realiza no interior do corpo da mulher.

Ela também não se limita ao espaço físico do útero materno, mas está ainda inserida

no espaço psíquico da gestante e a opção pelo aborto é também cercada de

grandes dificuldades, incertezas, traumas e intenso sofrimento. A opção pelo aborto,

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em regra, não é tomada por razões frívolas e triviais. É a mulher quem passará pelo

sofrimento e pelo conflito da decisão de prosseguir ou não com a gravidez e ser

sancionada moral, jurídica e socialmente por sua escolha.

A decisão pelo aborto não é um ato displicente e indiferente; não é usada

como contraceptivo. E criminalizar tal decisão é considerar a gestação como uma

obrigação da mulher, além de perpetuar um ideário social leigo equivocado de que o

Direito Penal é uma panaceia para todos os males; um Direito Penal simbólico em

uma espécie de populismo penal vingativo e punitivo, que rompe com os princípios

da razoabilidade e proporcionalidade. A criminalização, ademais, não tem o condão

de realmente garantir a tutela do bem jurídico que se afirma proteger, a vida do feto,

especialmente a do malformado. Criminalizar a conduta, portanto, rompe com a ideia

de adequação – tão relevante na estrutura do princípio da proporcionalidade

entendido como adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito365 –

, pois o ato estatal não será apto a fomentar o fim desejado.

Importa ressaltar, ainda, a ineficácia de restrições estatais a direitos

individuais quando há outros países em que o ato ou direito que se busca garantir é

permitido. Não são raros os relatos e estudos que mostram uma acentuação de

deslocamentos e movimentos migratórios de indivíduos em busca de um direito

vedado em seu país de origem 366 , como se observa em situações envolvendo

eutanasia, suicidio assistido e aborto, em um verdadeiro “turismo de direitos” ou

“direito à la carte”. Tais expressoes nao sao novas e foram cunhadas pelo jurista,

filósofo e cientista político italiano Stefano Rodotà, conhecido por suas decisivas

contribuições em prol da solidariedade como alicerce axiológico das sociedades e da

“liberdade existencial longe da interferencia do direito”367. Não se trata de legitimar a

ausência de normas regulamentadoras das condutas humanas, mas de assegurar

365 O princípio da proporcionalidade, importante instrumento de Hermenêutica Constitucional, é compreendido como instruído por três componentes ou subprincípios: a adequação, entendida como a análise de se o ato estatal é adequado a fomentar e garantir efetivamente o fim que se almeja; a necessidade, que diz respeito à escolha menos gravosa dentre todas as possibilidades existentes para alcançar o fim almejado; e a proporcionalidade em sentido estrito, quando a ponderação será realmente utilizada, como uma relação de custo-benefício a partir do sistema de valores constitucionais.

366 Barr-Walker J, Jayaweera RT, Ramirez AM, Gerdts C. Experiences of women who travel for abortion: A mixed methods systematic review. PLoS One. 2019; 14(4):e0209991.

367 Tepedino G. Editorial: Stefano Rodotà e sua obra imortal. Rev Bras Direito Civil. 2017; 13: 11-13.

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uma verdadeira e legítima liberdade individual constitucional para a construção da

vida biográfica, que não seja suplantada pela vontade externa estatal.

O jurista afirma que restrições jurídicas estatais à pessoalidade mostram-se

desafiadas pela realidade transnacional e pela notável evolução tecnológica:

“qualquer restricao nacional ja esta fadada a entrar cada vez mais em concorrência

com as disciplinas menos rigidas oferecidas por outros paises”368. E tais restrições

infladas podem transformar o direito em um instrumento ideológico de componentes

da sociedade que almejam restringir, autoritariamente, valores que dizem respeito à

existência e à autonomia.

Recente estudo realizado na Inglaterra entrevistou mulheres provenientes de

14 países da Europa e do Oriente Médio e não residentes no Reino Unido, que para

lá haviam viajado para realização de aborto, por diversas razões: as mais citadas

foram a ilegalidade do aborto em seu país de origem, a gestação em período

temporal acima do legalmente permitido, a necessidade de privacidade e anonimato

e o exercício de objeção de consciência por parte dos médicos369. Certamente que o

alcance de tais buscas transnacionais pela realização de direitos restringe-se a

grupos economicamente privilegiados; mas não se pode negar o efeito jurídico-

social dessa realidade.

Mudanças, avanços e novas demandas sociais implicam o reconhecimento de

novos direitos. A evolução científico-tecnológica exige do Direito uma constante

releitura interpretativa. E esse mesmo Direito a ser oxigenado deve ser também

conciliado com a ética humanista, com a justiça enquanto princípio bioético e com a

solidariedade e a liberdade.

Uma sociedade mais solidária e justa também se constrói com a garantia da

autonomia e do direito de cada pessoa de viver suas escolhas e possibilidades. É a

autonomia o ponto de conexão entre duas realidades aparentemente antagônicas: o

aborto de fetos com malformações congênitas e a proteção das pessoas com

368 Rodotà S. Palestra, Rio de Janeiro, 2003. Tradução Myriam de Filippis. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/151613/DLFE-4314.pdf/GlobalizacaoeoDireito.pdf. [acesso 03 out 2019].

369 Gerdts C, DeZordo S, Mishtal J, Barr-Walker J, Lohr PA. Experiences of women who travel to England for abortions: an exploratory pilot study. The European Journal of Contraception & Reproductive Health Care. 2016; 21(5): 401-407.

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deficiências. A defesa da diversidade de pessoas e de escolhas autônomas é a

única forma de compatibilizar o aspecto social dos direitos reprodutivos e da

deficiência, garantindo uma sociedade inclusiva e que privilegia a empatia, a

aceitação e a solidariedade.

Considerando a autonomia como o ponto fulcral da questão, negar eticidade à

própria realização dos métodos diagnósticos pré-natais – com o argumento de que

eles proporcionariam a tomada de “escolhas eugenicas” – é ideia descabida e

desarrazoada, diante do direito autônomo da gestante de conhecer seus dados

biomédicos, que fundamenta o amplo dever de informar do médico. Já que todo ato

médico deve ser consentido, não há como afastar o dever de informar da

necessidade de obtenção do consentimento. O direito de informação é um direito

básico das relações contratuais e é, inclusive, corolário do princípio da boa-fé

objetiva, presente nas relações médico-paciente, fundamentando a

responsabilização civil médica pela violação ao dever de informar.

No período neonatal em crianças nascidas com malformações congênitas

graves, a autonomia é também o ponto nevrálgico do debate, diante da inexistência

de autoconsciência do titular do direito. A autonomia deve ser traduzida, quando da

tomada de decisões de fim de vida em período neonatal, no princípio do melhor

interesse da criança e na parentalidade responsável. Trata-se do único modo de

preservar a autonomia existencial da criança diante da irreversibilidade da doença.

Além da autonomia, também a possibilidade de se fixar o sentido e o

conteúdo da dignidade humana está subjacente a todas as questões ora discutidas,

bem como em quaisquer debates moralmente complexos acerca de direitos

existenciais, sobretudo quando se contrapõe a vida e a morte. Aceitando-se o risco

da simplificação excessiva, a autonomia é o elemento ético e o fundamento da visão

kantiana de dignidade e de sua ideia de que o homem é um fim em si mesmo, por

ter a dignidade como valor intrínseco absoluto370.

A dignidade, segundo Luís Roberto Barroso, é conceito multifacetado e,

embora seja valor fundamental e princípio jurídico constitucional, também não é

370 A ideia ora mencionada foi aduzida da compreensão da autora da obra de Immanuel Kant que explicita grande parte de sua teoria ética e filosófica: Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial e Barcarolla, 2009.

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absoluta. O autor arrola três ideias como elementos do conceito de dignidade: o

valor intrínseco, a autonomia e o valor social ou comunitário371. Trata-se de princípio

que tem como principais papeis funcionar como fonte de direitos e agir como

fundamento interpretativo, especialmente quando há colisões entre direitos ou

“desacordos morais”. O autor afirma que, em questoes controversas – como o

aborto, a eutanásia e a pena de morte –, sempre existirao “desacordos morais”.

Cabe ao Estado, nesses casos, se afastar do controle exclusivo de um dos

posicionamentos e “estabelecer um regime jurídico que permita aos indivíduos dos

dois lados em disputa exercerem sua autonomia pessoal”372.

Nos casos da interrupção seletiva da gestação (ISG) em malformações

congênitas graves e incuráveis, os três elementos da dignidade estariam na escolha

e autodeterminação reprodutiva da gestante (autonomia), no direito à sua

integridade psíquica (valor intrínseco da dignidade e da vida biográfica da gestante

suplantando o valor intrínseco da vida em potencial do feto) e na falta de um forte

consenso social acerca da matéria (valor social da dignidade). A ideia é geradora do

desacordo moral denominado por Barroso, que impõe tanto o afastamento do

Estado enquanto ente coator heterônomo, como a tutela da vontade livre e

autônoma da mulher.

E tal desacordo moral tem instado o Poder Judiciário a fornecer respostas

sobre a temática, desde os juízes na primeira instância até a Suprema Corte, diante

de omissões e morosidades legislativas. Exercendo um papel ora garantista,

representativo e contramajoritário na proteção dos direitos das minorias e da

democracia em sua acepção substancial, ora em exacerbado e inaceitável ativismo

judicial, o fato é que as decisões que versam sobre direitos reprodutivos têm

inegáveis efeitos sociais e jurídicos.

O Supremo Tribunal Federal proferiu históricas decisões no tocante à

pesquisa com células-tronco embrionárias na ADI 3510, à anencefalia na ADPF 54 e

371 Barroso LR. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza juridica, conteudos minimos e criterios de aplicacao. Versao provisoria para debate publico. Mimeografado, dezembro de 2010. [acesso 10 out 2019]. Disponível em: https://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf

372 Barroso LR. Aqui, lá e em todo lugar: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais. 2012; 919: 127-195.

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até mesmo à interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre – embora esta

tenha sido proferida em caso específico e sem efeitos erga omnes373. Encontra-se

novamente instado a se manifestar sobre a interrupção da gravidez na infecção pelo

vírus Zika (ADI 5581) e na descriminalização do aborto voluntário nas primeiras 12

semanas de gestação (ADPF 442)374, embora tais julgamentos possam não atingir a

decisão de mérito por questões processuais e seja premente a abordagem

legislativa da matéria, como garantia de isonomia, segurança e legitimidade

democrática.

É inegável a existência de setores sociais que anseiam por mudanças no

tratamento estatal de direitos fundamentais, que integram o patrimônio jurídico

inviolável de cada pessoa e, como tal, têm uma carga de diversidade e pluralismo

que deve ser garantida, impondo limites à repressão normativa estatal. A

solidariedade e o reconhecimento do outro podem alicerçar as transformações

sociais almejadas em busca da garantia dialógica da autonomia, ora debatida

especialmente sob o prisma dos direitos reprodutivos da mulher. Não é sensato,

contudo, acreditar que a questão será resolvida por meio de soluções extrajurídicas

conciliatórias, diante de tamanha polarização contemporaneamente observada na

matéria.

A apreciação verdadeira da autonomia e da dignidade está na base da

questão: a dignidade sendo considerada em favor da liberdade individual e não da

coerção heterônoma.

373 Trata-se da decisão proferida pela Primeira Turma do STF no Habeas Corpus 124.306/RJ, de relatoria do Ministro Marco Aurélio e redação do acórdão pelo voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso, que concedeu a ordem de ofício para desconstituir a prisão preventiva de profissionais de saúde que mantinham clínica clandestine de aborto e haviam sido presos em flagrante. Os principais fundamentos decisórios foram a violação à proporcionalidade e a direitos fundamentais, à igualdade e à autonomia da mulher, bem como o impacto da criminalização em mulheres pobres. O caso foi julgado em novembro de 2016 e o inteiro teor do acórdão está disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345 [acesso 11 out 2019].

374 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 foi ajuizada em março de 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), sob o principal fundamento de que o aborto nas primeiras 12 semanas de gestação deve ser considerado ato lícito, pois sua criminalização pelos artigos 124 a 126 do CPB viola a dignidade, a liberdade e a autonomia da mulher, além de seus direitos à saúde e ao livre planejamento familiar. Afirma-se, ainda, que a criminalização não é consentânea com a interpretação atual da lei penal, além de afetar de forma desproporcional mulheres pobres, negras e que se utilizam de abortos clandestinos e inseguros, em afronta ao princípio da não discriminação. A ação foi distribuída à relatoria da Ministra Rosa Weber e sua tramitação pode ser acompanhada no endereço eletrônico: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865. [acesso 11 out 2019].

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Buscou-se, por meio de questionamentos, problematizar o discurso – de um

tema contemporâneo já ferozmente debatido – e contribuir academicamente a um

espaço social de tensão, visando ressaltar aspectos que se pretende defender: o

principal é a autonomia, talvez ainda uma ficção de caráter instrumental. Que a

dúvida presente neste trabalho seja bem-vinda e as hesitações admitidas,

estimulando a busca por novas – mas jamais definitivas – respostas.

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