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Internacional Le malaise français O mal-estar francês diante da violência nos subúrbios é analisado por professores da UFRJ. Pág. 2 e 3 É essa a conclusão que se chega a julgar os últimos eventos que marcaram a IV Cúpula da Américas, quando o assunto é o Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca). Pág. 4 e 5 ALCA Um acordo Gabinete do Reitor – Assessoria de Comunicação da UFRJ • Setor de Mídia Impressa – Ano 2 – nº 11 • Dezembro de 2005 Pág. 24 Personalidade A cor, a imagem e a poética de Hélio Oiticica Para o professor Luiz Antonio Cunha, da Faculdade de Educação da UFRJ, a universidade brasileira ainda está em construção. Esta conclusão está na entrevista que o professor concedeu ao Jornal da UFRJ. Jornal da UFRJ http://www.jornal.ufrj.br Universidade Brasileira : reformas e desafios Entrevista Marco Fernandes Luiz Antonio Cunha Pág. 18 e 19 Ciência Bioma mais diverso que a Amazônia Com uma biodiversidade variada, a Mata Atlântica consegue ser, em se tratando de variedade de espécies, maior que a Floresta Amazônica. Pág.15 Mata Atlântica Faculdade de Medicina Um prédio em algum lugar no passado... Um pouco da história da Faculdade de Medicina da UFRJ contada a partir de seu demolido prédio na Praia Vermelha. Pág. 22 Já se vão 15 anos desde a última tentativa de mudança na ortografia da Língua Portuguesa. A TV digital sai ou não dos laboratórios? Nacional Pág. 8 e 9 O Futuro é digital Cultura Pág. 21 Tecnologia WikipediA Informação para todos Enciclopédia digital reúne informações em mais de 200 idiomas e chega aos 60 milhões de acessos diários. caiu Reforma ortográfica no ostracismo e no presente Pág. 12, 13 e 14 em desacordo

UFRJ Jornal da - Universidade Federal do Rio de Janeiro · para a Europa, e a França, em particular: a reconstrução do continente, arrasado pela guerra e carente de mão-de-obra,

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Internacional

Le malaise françaisO mal-estar francês diante da violência

nos subúrbios é analisado por professores da UFRJ.

Pág. 2 e 3

É essa a conclusão que se chega a julgar os últimos eventos que marcaram a IV Cúpula da

Américas, quando o assunto é o Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca).

Pág. 4 e 5

ALCAUm acordo

Gabinete do Reitor – Assessoria de Comunicação da UFRJ • Setor de Mídia Impressa – Ano 2 – nº 11 • Dezembro de 2005

Pág. 24

Personalidade

A cor, a imagem e a poética de Hélio Oiticica

Para o professor Luiz Antonio Cunha, da Faculdade de Educação da UFRJ, a universidade brasileira ainda está em construção. Esta conclusão está na entrevista que o professor concedeu ao Jornal da UFRJ.

Jornal da

UFRJhttp://www.jornal.ufrj.br

Universidade Brasileira:reformas e desafios

Entrevista

Mar

co F

erna

ndes

Luiz Antonio Cunha

Pág. 18 e 19

Ciência

Bioma mais diverso que a Amazônia

Com uma biodiversidade variada, a Mata Atlântica

consegue ser, em se tratando de variedade de espécies, maior que

a Floresta Amazônica.Pág.15

Mata Atlântica

Faculdade de MedicinaUm prédio em algum lugar no passado...

Um pouco da história da Faculdade de Medicina da UFRJ contada a partir de seu demolido prédio na Praia Vermelha.

Pág. 22

Já se vão 15 anos desde a última tentativa de mudança na ortografia da Língua Portuguesa.

A TV digital sai ou não dos laboratórios?

Nacional

Pág. 8 e 9

O Futuro é digital

Cultura

Pág. 21

Tecnologia

WikipediA I n fo r m a ç ã o p a ra to d o s

Enciclopédia digital reúne informações em mais de 200 idiomas e chega aos 60 milhões de acessos diários.

caiu

Reformaortográfica

no ostracismo

e no presente

Pág. 12, 13 e 14

em desacordo

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2 Dezembro•2005UFRJJornal da

Reitor: Aloísio Teixeira – Vice-Reitor: Sylvia da Silveira Mello Vargas – Pró-Reitoria de Graduação – PR-1: José Roberto Meyer Fernandes - Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2: José Luiz Fontes Monteiro – Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR-3: Joel Regueira Teodósio – Pró-Reitoria de Pessoal – PR-4: Luiz Afonso Henriques Mariz – Pró-Reitoria de Extensão – PR-5: Laura Tavares Ribeiro Soares – Superintendente de Graduação SG-1: Deia Maria Ferreira dos Santos – Superintendente de Ensino SG-2: Leila Rodrigues da Silva – Superintendente Administrativa SG-2:

Regina Dantas – Superintendente SG-3: Almaísa Monteiro de Souza – Superintendente SG-4: Roberto Antônio Gambine Moreira – Superintendente SG-5: Isabel Cristina Azevedo – Superintendência Geral de

Administração e Finanças – SG-6: Milton Flores – Chefe de Gabinete: João Eduardo do Nascimento Fonseca – Forum de Ciência e Cultura: Carlos Antônio Kalil Tannus – Superintendente do FCC: Marcos Maldonado – Prefeitura Universitária: Hélio de Mattos Alves – Escritório Técnico da Universidade /ETU: Maria Angela Dias – Sistema de Bibliotecas e Informação/SiBI: Paula Maria Abrantes Cotta de Melo – Assessor de Comunicação: Fernando Pedro Pahl Campos Lopes

ExpedienteJORNAL DA UFRJ é UMA PUBLICAçãO MENSAL DO SETOR DE MÍDIA IMPRESSA DA ASSESSORIA DE COMUNICA-çãO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – Av. Brigadeiro Trompovsky, s/n. Prédio da Reitoria - Andar Térreo - Cidade Universitária - Ilha do Fundão - CEP 21941-590 - Rio de Janeiro - RJ – Telefones: (21) 2598 1621 - 2598 1894 – Fax: (021) 2598 1605 – [email protected] – Editor/Jornalista Responsável: Fortunato Mauro – Reg. 20732 MTb – Pauta: Fortunato Mauro e Francisco Conte – Editoria de arte/projeto gráfico: José Antonio de Oliveira – Secretaria gráfica: Soraya Rodrigues – Ilustração: Jefferson Nepomuceno – Reportagem: Coryntho Baldez, Joana Jahara, Rafaela Pereira e Rodrigo Ricardo – Estagiários de jornalismo ECO/UFRJ: Bruno Franco, Carla Marques, Carlos Eduardo Cayres, Diego do Carmo e Luciana Campos – Estagiários de arte, ilustração e fotografia: Anna Carolina Bayer, Pina Brandi, Marco Fernandes e Fábio Portugal (EBA/UFRJ) – Estagiária de revisão de texto: Daniele Robert (Faculdade de Letras/UFRJ) – Estagiário de web: Virgílio Fávero Neto (Instituto de Matemática/UFRJ) – Resenhas: Francisco Conte

Fotolito e Impressão – JORNAL DO COMMERCIO – 12 mil exemplares

Notas

ilustração Jefferson NepomucenoBruno Franco

O anteprojeto de Reforma da Educação Superior, que estava na Casa Civil, foi devol-vido ao Ministério da Educação, no início de novembro, para ser submetido a ajustes jurídi-cos. Apesar da alegação oficial, o texto deverá passar por novas rodadas de negociação dentro do governo.

As divergências parecem girar em torno dos recursos a serem disponibilizados pela União para o financiamento das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). Alguns

Reforma universitáriaem compasso de espera

setores da comunidade acadêmica já chegam a admitir a possibilidade de que a reforma não saia do papel nem em 2006. O ano eleitoral seria o maior entrave para que o projeto entre em discussão e seja aprovado no Congresso Nacional.

Sobre possíveis mudanças no texto, o mi-nistro da Educação, Fernando Haddad, não se opõe “a aperfeiçoar ou adequar a redação, desde que isso não coloque em risco os prin-cípios e os eixos norteadores do projeto”.

No dia 27 de outubro – e mais ainda nos dias que se seguiram – o país das luzes surpreendeu o mundo, e não de uma forma positiva. As luzes, que chama-ram a atenção da opinião pública internacional, vinham dos diversos focos de incêndio espalhados pelos subúrbios das principais cidades francesas.

O estopim da revolta foi a morte de dois jovens muçulmanos, eletrocutados em uma estação elétrica, Zyed Benna, de 17 anos, e Bouna Traore, 15 anos. A versão mais aceita é de que os adolescentes fugiam da polícia para evitar uma das fre-qüentes blitzen realizadas nos subúrbios, e que podem reter indivíduos suspeitos de envolvimento em delitos, para até quatro horas de interrogatórios.

A indignação, com a morte dos rapazes, desencadeou uma onda de violência. Armados com coquetéis Molotov, adolescentes – filhos e netos de imigrantes – fizeram a França arder em chamas. Após 19 noites consecutivas de brutalidade, 8.970 carros foram incendiados, bem como escolas, centros culturais e repartições públicas.

Conforme afirmou em editorial o jornal inglês The Guardian, “os distúrbios jogaram por terra a cortina que existe entre as cidades ricas e os bairros de su-búrbio que abrigam em sua maioria imigrantes que nunca puderam se integrar à sociedade francesa, e se transformaram em uma subclasse acostumada com a discriminação e falta de esperanças”.

De acordo com Antônio Celso Pereira, professor de Política Internacional do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), os jovens, responsáveis pelos distúrbios, sofrem problemas psicológicos graves.

Descendentes de imigrantes – em geral, oriundos do Magreb (Norte da África) – de segunda e terceira gerações, eles não apenas enfrentam dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e às universidade, “enfrentam uma igualmente danosa crise de identidade. Embora possuam documentos franceses, não são aceitos como tais pela sociedade. Além disso, não possuem laços que os identifiquem com os países de seus pais e avós. Na maioria dos casos, nunca estiveram no Magreb”, explica o professor.

Na visão de Antônio Celso, esses jovens são rejeitados pelas camadas médias, cujo conservadorismo encontra seu porta-voz no ministro do Interior, e provável candidato às próximas eleições, Nicolas Sarkozy que os qualificou como “escória”, e “ralé que deve ser varrida dos subúrbios”. Ironicamente, o inimigo da imigração é ele próprio, descendente de imigrantes, húngaros.

Sarkozy é atualmente o ministro com maior popularidade, além de ser o pre-sidente da Union pour un Mouvement Populaire (UMP), o partido governista, que o credencia para as próximas eleições. De acordo com o professor Geraldo Nunes, coordenador do Setor de Convênios e Relações Internacionais (SCRI), da UFRJ, os incidentes nos subúrbios franceses explicitam uma revolta contra o establishment. “Essa não é uma revolta desorganizada, ela é política, e tem como alvo o ministro Sarkozy, que é um fascista, e é popular junto à classe média que tem horror a pobre”, enfatiza. Segundo Nunes, há certo niilismo, no sentido de que não existe palavra de ordem. “Queimaram carros, porque era o símbolo do Consumismo. Era um objeto de desejo que o jovem desempregado é estimulado a comprar, mas não pode fazê-lo”, afirmou o coordenador.

Primeiro a imigração, depois a degradaçãoApós o fim da Segunda Guerra Mundial, dois fatores favoreceram a imigração

para a Europa, e a França, em particular: a reconstrução do continente, arrasado pela guerra e carente de mão-de-obra, e as lutas por independência nas colônias européias, na África e na Ásia.

Le malaisefrançais

Mal-estar. Foi com este termo que a imprensa francesa – Libération e L´Express

– definiu a repercussão da eclosão de violência nos subúrbios do país

Internacional

O Jornal da UFRJ obteve o 3º lugar no Des-taque Andifes de Jornalismo 2005.

O Destaque foi criado em 2005 com o objetivo de estimular a mídia impressa das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), reconhecendo e valorizando o traba-lho realizado por profissionais de veículos

Jornal da UFRJ é premiado

CEG, Consuni e Faculdade de Educação se unem para formar comissão que vai acompa-nhar a atuação da UFRJ nos cursos a distância do Consórcio Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Cederj), que caminha para sua sexta edição.

Os cursos são vinculados também a Secre-taria Estadual de Ciência, Tecnologia e Inova-ção (Secti) e as outras universidades públicas do Estado (Uenf, Uerj, UFF, UFRRJ e Unirio). A UFRJ ficou responsável pelos cursos de li-

UFRJ discute cursos a distânciaRafaela Pereira

cenciatura em Ciências Biológicas e Licencia-tura em Física.

O grupo composto por membros do Con-suni (Belkis Valdman, Chantal Russi e Edwaldo Cafezeiro), do CEG (Deize Vieira, Luiz Felipe de Souza Coelho, Marta Maria Souza Santos e Vera Lúcia Vieira Barradas) e representes da Faculdade de Educação (Herli Joaquim de Menezes e Maria da Glória Botelho), teve sua primeira reunião no dia quatro de novembro, na sala dos Conselhos, na Reitoria.

de comunicação impressa institucional, que estabelecem processo de comunicação entre a comunidade acadêmica e a sociedade.

A Universidade de Brasília (UnB) ficou com a primeira colocação e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),com a segunda.

Alunos, professores e técnico-administra-tivos da Escola de Comunicação (ECO) foram às urnas, no início de dezembro, e elegeram a professora Ivana Bentes como diretora para os próximos quatro anos. Sua chapa, compos-ta também pelo professor Fernando Fragozo, teve 42,31% dos votos contra os 31,26% da chapa encabeçada pelo atual diretor, profes-sor José Amaral Argolo.

Escola de Comunicaçãotem nova direção

“Precisamos mudar a imagem interna e externa da ECO”, disse Ivana Bentes referindo-se à crise política que, segundo ela, “deixou a escola muito vulnerável e mal vista dentro da comunidade acadêmica da UFRJ. Mas para isso é necessário também uma mudança concreta em toda a unidade”.

A nova diretora toma posse e assume a unidade em janeiro de 2006.

Coryntho Baldez

Diego de Carmo

Fortunato Mauro

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 33UFRJJornal da

Internacional

Antônio Celso Pereira destaca que as primeiras levas de muçulmanos, a chegarem à França, eram formadas por trabalhadores leais à metró-pole, que não puderam permanecer em seus países após as lutas por independência.

Com o processo de descolonização, houve um forte processo mi-gratório da África para a França, na qual foram construídos grandes conjuntos habitacionais. De acordo com Antônio Celso, eles foram dotados com infra-estrutura adequada para a época. “No entanto, ao longo de mais de 30 anos, vem ocorrendo um processo de degradação desses conjuntos”, ressalva o professor.

A Europa Ocidental, desde o pós-guerra, alimenta-se de trabalho imigrante. Contudo, na opinião de Antônio Celso Pereira, houve desde o começo a visível intenção de segregar os recém-egressos aos bairros periféricos. Geraldo Nunes destaca que existiu política habitacional, a princípio, para os estrangeiros, e a conjuntura era de pleno emprego, do chamado “milagre europeu”. “A descontinuidade dessa política soma-da ao desemprego estrutural e a escassez de opções de lazer e cultura levaram à ‘guetização’ dos subúrbios”, esclarece o professor.

Soma-se a isso a dificuldade de sociabilização de imigrantes e seus descendentes. Embora, a França seja referência mundial por seus ideais progressistas, e Paris foi o berço de diversos movimentos políticos de vanguarda, o cidadão francês manifesta conservadorismo, reserva e mesmo aversão àquele que qualifica como o outro, quando este não é um turista ocasional e sim um vizinho, e concorrente no mercado de trabalho e acesso aos serviços de ensino, saúde, seguridade social e lazer. “Contraditoriamente aos valores – de liberdade (azul), igualda-de (branco) e fraternidade (vermelho) – expressos em sua bandeira, a sociedade francesa é fechada, conservadora e preconceituosa”, afirma Antônio Celso.

Ilustrando essa afirmação, o professor sublinha que mes-mo os comunistas gauleses não aceitavam que fossem da-das condições de trabalho e sociabilização iguais aos imigrantes e seus descendentes, desprezando o axioma básico do marxismo, “proletários do mundo, uni-vos”.

Causas e conseqüênciasO que desponta como óbvio é que o surto de

violência dos banlieues (subúrbios) não foi pura e simplesmente causado pela morte de dois rapazes. Antônio Celso Pereira e Geraldo Nunes fazem coro à imprensa francesa ao apontarem a degradação con-tínua do tecido social francês como responsável por um evento, cujas condições de materialização há tempos estão presentes.

Geraldo Nunes acredita que há uma razão profunda para o que ocorreu. A causa é o isolamento desses adolescentes em rela-ção ao que se passa no centro de Paris. “Esses subúrbios oferecem opções medíocres de lazer e cultura”, critica o professor. São jovens que não conseguem emprego formal e – como a estrutura da economia francesa não admite infor-malidade no grau que se vê no Brasil – ficam completamente ocio-sos. “Esses jovens se sentem desprotegidos, despreparados, inúteis, e isto gera uma possibilida-de permanente de conflito nas periferias de cidades como Paris, Marselha e Lyon”, analisa Nunes.

Os acontecimentos trouxeram grande preocupação às autoridades dos principais Estados europeus, e o alarde não é injustificado.

Há a possibilidade do conflito se espalhar, pois as condições que o fizeram germinar na França, também se encontram no Reino Unido,

com paquistaneses, na Alemanha, com turcos, e na Itália, com albaneses. “Esses imigrantes querem um padrão de vida compatível com o nível do país”, afirma Geraldo Nunes, que descreve os conjuntos habitacionais dos subúrbios parisienses como sendo “pavilhões penitenciários sem grades”. O cenário urbano de Clichy-sous-Bois, onde o conflito começou, com seus muros grafitados, jovens encapuzados, e nenhuma estação de metrô, confirma a descrição do professor.

O problema do desemprego e da segregação dos imigrantes tende a piorar. Antônio Celso ressalta que à medida que aumentar a integração européia, principalmente com a adesão dos países do Leste Europeu, mais precárias serão as condições de vida para os imigrantes, sobre-tudo magrebinos e aqueles cuja fisionomia e cultura distingui-los dos

europeus.Geraldo Nunes, por sua vez, faz um prognóstico, até certo ponto,

otimista, posto que não crê na resolução definitiva da problemática dos guetos e do preconceito contra eles dirigido. Para ele, a poli-

tização da sociedade francesa, a abertura, a manutenção de um espaço público de debates e reivindicações, criam possibilidades de atenuação dos problemas sociais em um futuro próximo.

Esse é um debate longo, que vem dominando o horário nobre das emissoras francesas. “Enquanto, o telespectador

brasileiro assiste novelas, o francês discute importantes questões políticas”, ressalta Nunes. Os programas trazem ministros, deputados e jovens imigrantes ao debate público. Mesmo presidentes franceses costumam ser sabatinados por públicos plurais, sem desqualificarem as críticas que lhes são feitas. “Pelo nível de debates, é provável que a situação

dos subúrbios apresente alguma melhora e adie a eclosão de novos episódios de violência. No entanto, os fatores de tensão continuarão lá”, acredita o professor, que lamenta que a cobertura da imprensa brasileira, principalmente

nos telejornais, traçando paralelos entre os distúrbios na França e a violência no Brasil, dizendo que “o padrão de violência é diferente. Lá não houve ônibus queimado com pessoas dentro”, remetendo ao lamen-tável episódio ocorrido no bairro carioca da Penha.

Geraldo Nunes critica ainda, a proliferação da men-talidade americana no mundo, com a hegemonia do

neoliberalismo, o que minou a solidariedade social que norteia a mentalidade francesa.

Possíveis soluçõesO governo francês já iniciou estudos para

discernir os focos estruturais das desigualda-des que geraram a violência. O primeiro pas-

so foi o incremento no número de bolsas universitárias por excelência. Contudo,

Geraldo Nunes conclui que não basta somente a ação do Estado. “É preciso

que a sociedade inteira entenda que ela também é responsável pela

questão e aceite colaborar da for-ma mais efetiva”, afirma o pro-

fessor. Por isso esperam 4,5 milhões de muçulmanos

que vivem nos subúrbios franceses.

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4 Dezembro•2005UFRJJornal da

um acordoInternacional

A Cúpula das Américas, em Mar Del Plata (Argentina), aprofundou

divergências dos países americanos quanto à criação do

Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca). O Mercosul e a

Venezuela fazem frente ao bloco do Nafta e se recusam a retomar

as negociações enquanto os Estados Unidos não abolirem suas práticas protecionistas, sobretudo

no setor agrícola. Especialistas também estão divididos, enquanto

a diplomacia brasileira firma tratados alternativos com países

do Terceiro Mundo.

caso a Alca entrasse em vigor. Ao lado dos Esta-dos Unidos, estão mais 28 países, in-cluindo o México e o Canadá. O Cone Sul e a Venezuela se recusam a retomar as negociações enquanto os subsídios agrícolas ameri-canos não forem suspensos, sob a alegação de que este tipo de prática prejudica a concor-rência dos países dependentes da exportação agrícola. Em Mar Del Plata, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, afirmou que “a Alca está morta e estamos enterrando-a aqui”. Em contrapartida, Vicente Fox, presidente do México, se manifestou publicamente a favor do acordo e saiu em defesa dos Estados Unidos. Fox, que traz em seu currículo a presidência da Coca-Cola mexicana, foi chamado por Chávez de “filhote de império”. O episódio terminou com a retirada dos embaixadores dos dois países.

As discussões acaloradas sobre a Alca são es-timuladas por questões ideológicas, mas também por impasses mercadológicos. A agenda do acordo é complexa e multitemática, como explica o professor do Instituto de Economia da UFRJ, João Bosco Macha-do: “em alguns aspectos, os Estados Unidos querem negociar regras que vão além do que é tratado na Orga-nização Mundial do Comércio”. Questões como meio ambiente e propriedade intelectual nos países mais po-bres são pontos de tensão nas negociações para a Alca. Em compensação, os Estados Unidos praticam o que é chamado de “proteção seletiva”. O país possui uma economia aberta, em que as médias tarifárias de im-portação giram em torno de 5%. Contudo, há barreiras impostas a determinados setores que são estratégicos para a economia brasileira e a de outros países lati-no-americanos. Produtos siderúrgicos e camarão, por exemplo, são sobretaxados entre 6% e 142% além da tarifa de importação. Laticínios e carne também sofrem taxações mais elevadas. Açúcar, fumo e produtos têxteis são importados por quotas. Existem ainda barreiras sanitárias para verduras, frutas e legumes.

Carla Marquesilustração Zé Antonio

A a b e r-

tura da e c o n o -

m i a a o s produtos bra-

sileiros também é comprometi-da pelas medi-das domésticas

que protegem o algodão, o fran-

go e uma série de gêneros agrícolas.

O s s u b s í d i o s e a s políticas de assistência

agrícola consomem, na União Européia e nos

Estados Unidos, US$ 350 bilhões ao ano. Ao levar em consideração que os Estados

Unidos são o principal consumi-dor brasileiro, absorvendo 20% das expor tações do país, Ma-

chado acredita que “o Brasil tem grande interesse no acesso ao mercado americano, sobretudo na maior inserção de produtos

industr ia l izados. O total das importações dos Estados Unidos

foi, no último ano, da ordem d e U $ S 1 , 5 t r i l h ã o. A par ticipação do Brasil

foi de US$ 20 bilhões, o que ainda é muito pouco”.

A IV Cúpula das Américas, que reuniu em Mar Del Plata os representantes dos 34 países membros da Or-ganização dos Estados Americanos (OEA), extremou uma crise que se arrasta desde 1998. A discussão so-bre a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), uma iniciativa de Washington, divide as na-ções americanas e culminou, após o encontro na Ar-gentina, em uma ruptura diplomática entre Venezuela e México. O projeto inicial previa a implantação da Alca em janeiro de 2005, mas até hoje enfrenta a opo-sição feita pelos países do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) e pela Venezuela. De acordo com o Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, o acordo é “desequilibrado” na forma como é proposto pelos Estados Unidos. Amorim defende ainda que as perdas para o Brasil seriam superiores às vantagens

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 5

Internacional

Projetos de integração comercial baseados apenas em aberturas

comerciais, por definição, estão

fadados ao fracasso.

em desacordoNa opinião de João Bosco, o balanço entre

riscos e oportunidades é favorável à cria-ção da Alca. “No setor financeiro, por exemplo, o Brasil poderia ganhar com o estímulo saudável à concorrência. é uma área ainda muito fechada aqui”. Os defensores brasileiros da Alca apontam um possível cresci-mento das exportações de bens industrializados para os Estados Unidos. Aeronaves, veículos e autopeças, por exemplo, já são destaques na pauta de exportações brasileiras.

A face humana dos projetos de integraçãoAté mesmo no Instituto de Economia da

UFRJ, não há consenso sobre a Área de Li-vre Comércio das Américas. Para o profes-sor José Eduardo Cassiolato, “projetos de integração comercial baseados apenas em aberturas comerciais, por defini-ção, estão fadados ao fracasso”. Cas-siolato diferencia a Alca da União Européia: “a União Européia não foi apenas um projeto de integra-ção econômica, como a Alca. No caso europeu, foi um pro-cesso que durou 40 anos para ser consolidado. Foi tomada uma série de medidas para diminuir as discrepâncias re-gionais, incluindo a transfe-rência de recursos dos países mais ricos para os mais pobres”. Ele enfoca também a face humana des-te tipo de acordo, relembrando que na União Européia não ocorre somen-te o livre trânsito de mercadorias, mas também o de pessoas.

“ A A l c a é um projeto que c o m e ç o u c o m o Bush pai, em 1990. Foi pensa-da há 15 anos. De certa maneira, uma parte da agenda inicial já foi atendida nos anos 90, principalmente pelo governo Fernando Henrique Cardoso”, afirma José Eduardo Cassiolato. Nesse sentido, o professor se refere à onda de privatizações e de liberalizações ocor-ridas na última década. Sobre a possibilidade de maior acesso brasileiro ao mercado de consumo americano, o economista considera se tratar de uma “ingenuidade política”: “havia uma agenda neoliberal em aberto e o que restou dela é uma desgraça, como o desemprego e a pobreza. Vai abrir mais para ter o quê? Uma guerra civil aqui dentro?”.

Apesar de entender a Alca como um “projeto enlata-do”, o professor apóia a integração regional, pois “cria a possibilidade de ampliar mercado e negociar interes-ses comuns”. Ele ressalta, contudo, que são interesses também geopolíticos e não exclusivamente econômi-cos. A integração é um dos caminhos para diminuir as desigualdades das Américas e, por isso, acredita que os acordos com países com as mesmas características

que o Brasil podem ter vantagens mútuas. O Uruguai, exemplifica Cassiolato, é um país com indicadores

sociais muito superiores aos do Brasil, especial-mente no que diz respeito à educação pública.

Estas referências também devem constar como moeda de troca no relacionamento entre países.

Nafta: o ensaio geralO Nafta (North American Free Trade

Agreement), tanto para quem defende como para quem se opõe à Alca, é visto como um ensaio geral para o li-vre comércio das Américas. Em vigor desde 1994, o Nafta envolve os Estados Unidos, o Canadá e o México. O eco-nomista João Bosco Machado destaca a aceleração da economia mexicana e, principalmente, a mudança do perfil das exportações para os Estados Uni-dos com o incremento da comerciali-zação de bens industrializados.

Já para José Eduardo Cassiolato, o Nafta é um exemplo de integração que não deu certo, pois foi incapaz de favorecer, em maneira similar, a todos os países do bloco. “O México exporta muito para os Estados Unidos, é verdade, porém importa mais. Existem ainda as empresas maquiladoras, que só fazem a fase final do processo produtivo no México, apro-veitando a mão-de-obra barata”. No setor agrícola, os números apontam um déficit para o México de US$ 4,1 bilhões, em 2001. Enquanto o produtor mexicano médio recebe US$ 722 dólares em subsídios anuais, os fazendeiros americanos podem obter US$ 20.800 no mesmo período.

O Itamaraty vem buscando parceiros comerciais alternativos, dentro e fora da América Latina. Firmou acordos com a África do Sul, a Índia e a Venezuela, além de buscar o fortalecimento do Mercosul. “é o caminho correto tentar explorar mais mercados, normalmente, não atingidos. Uma das tristezas do subdesenvolvimen-to é que nossas relações com estas nações são feitas via Norte, passando sempre pelos Estados Unidos e pela Europa antes”, defende Cassiolato.

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6 Dezembro•2005UFRJJornal da

Nacional

Brasil

contemporâneaLuciana Camposfoto Marco Fernandes

Em 12 de fevereiro deste ano, foi assassinada, com sete tiros, a irmã Doroty Stang, no município de Anapu, no Pará. A missionária norte-americana, que chegou ao Brasil em 1966, participou ativamente de movimentos sociais junto aos trabalhadores rurais na região norte do país.

No último dia 10 de dezembro, no segundo dia de julgamento, Rayfran das Neves Sales, que confessou ter atirado na irmã Dorothy, foi condenado pela Justi-ça do Pará a 27 anos de prisão. Clodoaldo Carlos Ba-tista, que estava com Rayfran no momento em que a freira foi morta, foi condenado a 17 anos. Vitalmiro Bastos de Moura e Regivaldo Pereira Galvão, fazendei-ros acusados de serem os mandantes do assassinato, e Amair Feijolí, acusado de ter intermediado o crime, ainda aguardam julgamento.

O assassinato de Doroty Stang, além de confirmar um grave problema, os violentos conflitos rurais, também colocou de volta no centro da discussão as péssimas condições a que estão submetidos grande parte dos trabalhadores do campo no Brasil.

Foram registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), organismo da Igreja Católica, até o final do mês de agosto de 2005, 28 assassinatos, um a mais que o registrado em igual período no ano passado. O estado do Pará, onde a freira foi morta, apresenta o maior número de trabalhadores rurais assassinados, além de ser o campeão em denúncias de trabalho escravo. Apenas este ano, foram 95 casos, e 2.500 pessoas em condições degradantes de trabalho foram libertadas. Nos últimos 33 anos, o estado teve 772 casos de assassinatos de trabalhadores rurais e de ativistas que os apoiavam, revela o Relatório dos Direitos Humanos de 2005, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, composta por várias entidades da socie-dade civil, divulgado no início de

dezembro.

A escravidão no campo brasileiro não é uma novi-dade. Até o final do século XIX, este tipo de relação trabalhista tinha respaldo legal. Os escravos negros eram considerados propriedades dos grandes produ-tores rurais, que os compravam a peso de ouro. Mesmo depois da assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, que deveria ter extinto a escravidão no país, esse tipo de relação jamais deixou de efetivamente de existir.

Segundo a professora Neide Esterci, do Depar-tamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Socais (IFCS), da UFRJ, e consultora do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (Geptec), do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH/UFRJ), afirma que “durante muito tempo, teve trabalho escravo e a gente não viu. Nós não tínhamos percebido que aquele tipo de relação era algo berrante”, diz a professora.

Visões diferenciadasSobre esse tipo de relação trabalhista no campo,

Esterci lembra que a percepção que as pessoas tinham não é a mesma de hoje, sendo novo o conceito que se usa para definir o trabalho escravo e a postura que a sociedade assume diante dele. Para Esterci, “nem sem-pre, a população estranhou essa relação, chegando a considerá-la normal e, por isso, não a denunciava”.

O conceito de escravidão foi sendo construído ao longo dos anos. Em seu livro, Escravos da desigualdade (CEDI, 1994), Neide Esterci defende que a escravidão tornou-se uma categoria eminentemente política; faz parte de um campo de lutas e é utilizada para desig-nar toda sorte de trabalho não-livre, de exacerbação da

exploração e da desigualdade entre os homens. Muitas vezes,

sob a designação de escravidão, o que

se vê mais en-faticamente

denun-

ciado são maus-tratos, más condições de trabalho, de remuneração, de transporte, de alimentação e de alojamento não condizentes com as leis e os costumes, relata a antropóloga.

Essa mudança no conceito se deve a uma transfor-mação da sociedade que leva hoje o trabalho escravo ser visto como uma situação de inaceitável perversi-dade a que são submetidos os trabalhadores rurais, além de ter sido incluído em textos legais, e ser co-dificado em leis que condenam esse tipo de trabalho, afirma Neide.

Escravidão contemporâneaHoje, os escravos não são apenas negros, como no

passado, mas brancos, amarelos que têm em comum a situação de extrema miséria em que vivem. E, dife-rentemente do que ocorria no século XIX, a escravidão contemporânea por dívida distingue-se das anterio-res porque, em geral, é de curta duração, ilegal, não é fruto de uma guerra e nem sempre é motivada por sequestro, afirma o professor da PUC-Rio, Ricardo Re-zende Figueira, em sua tese de doutorado, orientada pela professora Neide Esterci, Pisando fora da própria sombra — a escravidão por dívida no Brasil contem-porâneo, que virou livro (publicado pela Civilização Brasileira, 2004), indicado ao Prêmio Jabuti, na cate-goria Ciências Humanas, em setembro passado.

Gelba Cavalcanti de Cerqueira, professora da Es-cola de Serviço Social da UFRJ e coordenadora do Geptec, concorda com Rezende sobre a definição de escravidão contemporânea. A docente lembra ainda que, antigamente, ter escravos no Brasil representava status, pois apenas os tinham aqueles que pertenciam às classes sociais mais abonadas. O escravo de hoje é descartável, porque é barato. Os fazendeiros, para adquirirem esse tipo de trabalhador, não gastam mais que a gasolina do caminhão que os leva até suas pro-priedades e a pensão onde eles ficarão, afirma ela.

Para a professora Neide, a diferença entre a escra-vidão dos tempos coloniais, que tinha como vítimas

os negros vindos

escravidão

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 7

Números da escravidão no Brasil do século XXISegundo a Organização Internacional do Trabalho, OIT, há cerca de 40 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo no

Brasil. Desde a sua criação, em 1995, o Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho já libertou quase 18 mil trabalhadores escravos. Abaixo, seguem os resultados da fiscalização do trabalho nestes 10 anos de atividade.

da África, e a dos dias de hoje, que é feita com brasi-leiros, independente da cor, é o critério utilizado que se baseia nas necessidades das empresas capitalistas, capazes de adquirir grandes extensões de terras por preços baixos ou arrendá-las, pagando alguma quantia ao Estado, já que boa parte delas pertence a União.

Os escravos chegam ao local onde irão trabalhar já endividados. “A pensão, viagem, comida, instrumen-tos de trabalho e até mesmo sua própria liberdade são alguns dos itens que constam na lista de dívidas ad-quiridas pelos trabalhadores a seus aliciadores. Essa é a chamada escravidão por dívida. Se o trabalhador tentar sair ele morre”, diz Gelba.

Às vezes, nem tentam fugir, pois acreditam que estejam realmente devendo aos fazendeiros e, por se considerarem pessoas de bem, honestas, devem quitar suas dívidas, completa a pesquisadora do Geptec, So-nia Benevides, que lembra de casos em que as mães dos trabalhadores tentam de todas as formas conse-guir o dinheiro para que seus filhos possam pagar o que, supostamente, devem.

Esta é uma das maneiras utilizadas pelos aliciadores para manterem os trabalhadores na fazenda. Há outras formas de coerção, como a presença na propriedade de homens armados intimidando os trabalhadores. “A vulnerabilidade das pessoas aumenta pela distância entre a fazenda e o local de recrutamento, pois, não apenas estão longe de suas cidades, mas de uma rede de solidariedade que poderia ser acionada, composta por seus parentes, amigos e conhecidos”, informa Re-zende na introdução de sua tese.

GeptecCriado há apenas dois anos, o Grupo de Pesquisa

Trabalho Escravo Contemporâneo, Geptec, já é um centro de referência nacional no estudo de escravi-dão no Brasil dos anos 70 até os dias de hoje. A UFRJ é a única universidade brasileira que possui um ban-co de dados sobre a escravidão contemporânea, afir-mou Gelba.

O objetivo do Geptec estar sediado em uma univer-sidade federal é trazer o debate sobre trabalho escravo para o espaço universitário porque, até hoje, muitos professores, estudantes e mesmo intelectuais impor-tantes desconhecem a existência do trabalho escravo contemporâneo, diz a coordenadora do grupo. “Mui-tos tomam susto quando se fala em trabalho escravo. Eles somente acreditam quando a gente mostra os da-dos e os depoimentos dos trabalhadores”, contou ela.

Certa vez, um estudante de Relações Internacionais da USP veio para o Rio de Janeiro com sua pesquisa,

que fala sobre a questão dos trabalhadores bolivianos em indústrias de confecção paulista. O estudante não realizou uma pesquisa de campo ou seja, não entre-vistou os trabalhadores bolivianos mas autoridades como o consul da Bolívia. Ele listou todos os fatores que caracterizam o trabalho escravo, como dívidas e péssimas condições de trabalho, mas afirmou que na-quele local não ocorria trabalho escravo e sim, traba-lho forçado, pois para ele, o termo trabalho escravo é coisa de jornalista para chamar atenção, disse Sonia.

O Geptec dispõe de um banco de dados que foi ori-ginado em meados da década de 70, no Sul do Pará, pela Comissão Pastoral da Terra, da qual fazia parte o padre Ricardo Rezende Figueira, hoje um dos coor-denadores do grupo, no qual são catalogadas várias situações de escravidão existentes nas diferentes regi-ões do Brasil. Pessoas submetidas ao trabalho escravo relatavam suas experiências, que foram anotadas e or-ganizadas em um arquivo. Estas informações servem como subsídios para as autoridades governamentais elaborarem políticas públicas que visem erradicação do trabalho escravo no país.

O grupo, nesses dois anos de existência, firmou par-cerias com diversas entidades internacionais e nacio-nais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA), a PUC-Rio e a ONG Repórter Brasil. Isso facilitou o acesso aos arquivos pesquisados que contém documentos originais sobre as fazendas do Pará, Rio de Janeiro, especialmente as do Norte Flu-minense, além de outros dados ligados à escravidão.

Medidas governamentaisEm 2003, foi assinado o Plano Nacional de Erradi-

cação de Trabalho Escravo, que começou a ser elabora-do no governo anterior, sendo considerado um avanço na política governamental no combate ao trabalho es-cravo. Em quase três anos de extistência, os destaques desse são o aumento da fiscalização por parte do Mi-nistério do Trabalho e a criação da chamada lista suja, na qual são cadastrados os nomes dos proprietários rurais que fizeram uso do trabalho escravo e que, por causa disso, estam impedidos de obter novos contatos com os Fundos Constitucionais de Financiamento.

A discussão maior está em torno da aprovação ou não da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438/01, que prevê a expropriação de terras onde for comprovado o uso de trabalho escravo. A PEC foi aprovada em maio pela Comissão Especial da Câma-ra dos Deputados, mas ainda enfrenta resistência de grande parte dos parlamentares, principalmente os da base ruralista, para ser aprovada.

Ano Nº operações

Nº de Fazendasfiscalizadas

Trabalhadores registrados

Trabalhadoreslibertados

Pagamento de indenizações

AIsLavrados

47 92 3.060 5.917.992,13 87.9072004 76 275 3.643 2.887 4.905.613,13 2.477

2003 69 195 6.080 5.228 6.198.025,26 1.406

2002 30 85 2.805 2.285 2.084.406,41 621

2001 26 149 2.164 1.305 957.936,46 796

2000 25 88 1.130 516 472.849,69 522

1999 19 56 725 411

1998 18 47 159 282

1997 20 95 394 796

1996 26 219 425 1.7511995 11 77 84 906

Total 374 1.378 15.822 17.068 20.536.823,08 97.875

Fonte: Ministério do Trabalho e emprego – MTESecretaria de Inspeção do Trabalho - SITDepartamento de Fiscalização do Trabalho - DEFITDivisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo - DETRAE*Dados referentes do período entre janeiro e outubro de 2005.

Quadro geral das operações de fiscalização Móvel

Nacional

A equipe do Geptec promove o debate sobre o trabalho escravo

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8 Dezembro•2005UFRJJornal da

Nacional

O futuro é

Na pauta da grande imprensa, o debate sobre a TV Digital aparece timidamente e restrito à questão técni-ca e aos lobbies – interessados no milionário negócio – junto ao Ministério das Comunicações. Em fevereiro de 2006, o governo deve anunciar a escolha do padrão tecnológico, a partir dos resultados das pesquisas do consórcio que envolve inúmeras instituições de ensi-no superior. Entre elas, a UFRJ, com o Instituto Al-berto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe) e a Escola Politécnica, que estu-dam dois aspectos específicos de um conjunto tecno-lógico.

“Aqui, nós estamos desenvolvendo a questão do canal de retorno e a codificação de fontes, responsável pela conversão do vídeo em dados digitais. A tecnolo-gia, em teste, denomina-se H264, capaz de comprimir oito canais analógicos e dois de alta definição. O dobro da capacidade permitida pela MPEG2, adotada pelos EUA e o Japão”, explica o professor Eduardo Antonio Barros da Silva, da Escola Politécnica.

Segundo Eduardo Antonio, o filé do business é a questão da modulação: transmissão do sinal da antena até os televisores domésticos. Japoneses, europeus e estadunidenses travam uma guerra, em Brasília, para que o país escolha entre os padrões já existentes, res-pectivamente: ISDB (Integrated Service Digital Bro-adcasting), DVB (Digital Vídeo Broadcasting) e ATSC (Advanced Television Systems Committee). De outro lado, estão as grandes emissoras, apressadas em come-çar a gerar conteúdos, oferecer serviços e lucrar com a novidade. “Não existe certo ou errado, o que há são

Rodrigo Ricardo interesses diferentes. O governo, por sua vez, precisa pensar de forma global, e em longo prazo, em prol da sociedade. Nada de reinventar a roda, é preciso es-colher o melhor e o mais adequado para essa época, inclusive a possibilidade real de o Brasil desenvolver o seu próprio padrão”, diz Eduardo Antonio.

SBTVD e falta de planejamentoO Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) come-

çou a deslanchar em 2003, representando um avanço em relação ao governo anterior que, até então, só ad-mitia as opções estrangeiras. Foram divulgados 22 edi-tais de pesquisa para que consórcios formados por uni-versidades, centros de pesquisa e empresas pudessem trabalhar. Até agora, dos R$ 80 milhões previstos, so-mente cerca da metade foi liberada. Mas, os cientistas nacionais seguem trabalhando para cumprir o prazo es-tabelecido (dezembro) e “dando o sangue”, como lem-bra o professor Edmundo Albuquerque de Souza Silva, do Instituto de Matemática (IM) e da Coppe/UFRJ, que coordena o grupo de estudos sobre o canal de retorno, recurso que poderá propiciar maior interatividade ao telespectador.

“O que falta no país é um planejamento maior e um financiamento estável. Nós temos capacidade e pesso-as brilhantes por todo o Brasil. Entretanto, precisamos de tempo, em vez de ficarmos fazendo tudo na base do para ontem”, reclama Eduardo Antonio, informando que no “exterior, levaram quase uma década para se chegar aos seus padrões de TV Digital, mas aqui só te-mos um ano. O risco é não se desenvolver a tecnologia apropriada e acabar tendo que comprá-la. E, quem fica eternamente comprando tecnologia jamais será uma nação desenvolvida. É preciso investir na criação de

uma massa crítica em todas as áreas, avanço que passa necessariamente pela educação”.

Eduardo Antonio também lembra que qualquer que seja o padrão escolhido não afetará a sua pesquisa: “a nossa solução é independente e barata. Até porque o hardware que vai rodar através do set top box será o Linux – que é um sistema operacional livre”.

Veículo de inclusão digitalMesmo que tudo dê certo, os padrões analógicos

e digitais deverão conviver juntos por algum tempo. Nessa fase de transição o set top box, ou decodificador – caixinha semelhante àquelas utilizadas pelos usuá-rios de TVs por assinatura – precisarão ser comprados, já que se trata de acessório indispensável para propi-ciar som e imagem com qualidade de DVD (Digital Video Disc), além do acesso a menus de conteúdos iguais aos oferecidos pela Internet.

Presente em 96% dos lares brasileiros, o conhecido televisor poderia passar a funcionar como um com-putador, atenuando o que muitos já conceituam de apartheid digital. De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil da (CGI.br), 68% da população nun-ca teve a oportunidade de mandar um e-mail ou nave-gar pela rede mundial de computadores. A entidade - constituída por representantes do governo e da so-ciedade - mostra ainda que 35% dos entrevistados não teriam condições financeiras para adquirir um micro, mesmo com preço subsidiado pelo governo, por meio do projeto PC Popular.

“A caixinha propicia o acesso fácil à Internet e acoplando um teclado temos um computador. A TV Digital não se limita ao broadcast das emissoras e per-mite ao usuário ficar livre para fazer inúmeras outras

digital

ilustração Fábio Portugal

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 9

Nacional

DescrençaProfessor da Escola de Comunicação da UFRJ, An-

dré Parente conta que desde o início dos anos 1980 já se falava na chamada televisão de alta definição, mas conhecida como HDTV (High Definition Television): “lá pelo final daquela década, comecei a perceber que a TV Digital não deslanchava por conta dos conglo-merados empresariais da mídia e por isso não acredito mais nela. O problema não é técnico e envolve mais do que a criação de uma tecnologia. Veja a Microsoft que se tornou o maior entrave ao desenvolvimento da Informática. Grupos assim promovem mudanças, mas ao estabelecer um monopólio comercial preferem manter o status quo”.

Parente pondera que a verdadeira revolução acon-teceu com a chegada da Internet nos anos 1990. Com o meio provocando uma mudança de mentalidade difícil de ser superada. “Não consigo enxergar outra ferramenta que surtirá tanto impacto na humanidade. Depois dela, quem vai querer ficar diante da TV, za-ppeando por canais com a sensação de que estão todos passando a mesma coisa”, indaga o professor.

Esta nova cultura poria em risco inclusive as emis-soras comerciais, que poderão enfrentar crise similar a da indústria fonográfica. “Ela será o último mercado de comunicação a sofrer os problemas por quais pas-sam os empresários do setor editorial e fonográfico, com o advento dos downloads e compartilhamento de músicas. Isto começará agora com o aumento da largu-ra das bandas”, prevê André, que ressalta a vantagem do internauta em lidar com grandes quantidades de informação, por meio dos recursos já disponíveis.

A respeito da esperança de que a TV Digital possa ampliar o número de emissores e produtores de pro-

81% da população brasileira assistem à TV todos

os dias

88% da população ouvem rádio todos os dias

96% da população no país possuem TV em casa

92% da população no país possuem rádio em

casa

16% dos brasileiros têm computador em casa

55% dos brasileiros nunca usaram computador

68% dos brasileiros nunca acessaram à Internet

5% dos brasileiros assistem TV a cabo

operações. Em matéria de governo eletrônico e educa-ção à distância poderemos dar um salto enorme”, frisa Eduardo Antonio, que ainda avalia como positivo o clima entre os participantes do consórcio. “Criou-se uma competição saudável com a existência de vários grupos trabalhando, inclusive, sobre o mesmo tema. Mais adiante não sei o que irá acontecer, porque isto depende do que o governo vai fazer, mas de qualquer modo nunca se descarta o conhecimento, o know-how, produzido ao longo desse processo. Enfim, é preciso continuar acreditando em nosso potencial e seguir investindo e formando pessoal para competirmos em condições de igualdade”.

Experiência Uma das pesquisas sobre o canal de retorno do gru-

po do professor Edmundo Souza e Silva (IM/UFRJ), em conjunto com a PUC-Rio, será testada ao fim des-se ano, em São Paulo, por meio de soluções baseadas no sistema CDMA (Code Division Multiple Access), a mesma adotada pela telefonia celular, que consiste na instalação de diversas antenas em raios de curta e mé-dia distância. A outra opção técnica é batizada de Ad Hoc e dispensa o uso de uma antena para coordenar o acesso ao meio de transmissão.

“Não há um elemento centralizador e é como se cada televisor fosse um roteador com uma pequena antena sobre as caixinhas. Se existir um número grande de usuários, sempre haverá um caminho. Para dar certo, é preciso uma certa densidade habitacional, além de pelo menos um ponto de Internet”, detalha a professora da Coppe, Rosa Maria Leão. Ela aponta que cada hipótese traz vantagens e reveses. Também existem alternativas como o acesso telefônico e outras por via-satélite.

gramação, devido a ocupação do espaço que vai do canal 7 VHF até o 69 do UHF, o docente mantém-se cé-tico e afirma tratar-se de mais um mito. “Também não acredito que este serviço será tão barato. No fim, aca-bará restrito a uma pequena parcela de privilegiados. Se, hoje, aproximadamente apenas 3% dos brasileiros têm TV a cabo, a Digital não vai alcançar a casa do 1% e a Internet vai avançar e ultrapassar a todos. A massa mesmo ouve rádio e vai sair desse meio para encon-trar o computador na escola”, profetiza Parente.

O brasileiro passa em média 3,5 horas por dia em frente à

televisão

Fontes: Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação/Comitê

Gestor da Internet no Brasil/Intervozes.

As imagens a cores da seleção tricampeã de futebol em 1970, no México, marcaram um capítulo à parte na história da televisão brasileira. Mais de trinta anos depois, às vésperas de uma outra Copa do Mundo, desta vez na Alemanha, os brasileiros talvez possam assistir ao início de uma outra revolução nas telas de seus aparelhos. Ao futuro cabe responder, se foi apenas mais uma migração tecnológica ou configurou-se como importante instrumento de inclusão e alavanca para a

democratização da mídia eletrônica e digital.

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10 Dezembro•2005UFRJJornal da

suficiente para que se conclua que houve uma tentativa do Executivo de alinhar deputados às suas políticas por meio de mecanismos antiéticos de liberação de dinheiro. “Alguns parlamentares serão cassados, talvez não na proporção que se pensava inicialmente”, diz. No entanto, prevê que a punição maior virá das urnas e registra como primeira manifestação de insatisfação com o governo a vitória do NãO no referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo. “Nas eleições gerais, expressões de insatisfação com o próprio Parla-mento também podem acontecer”, afirma.

Prestação de contasJá o senador Saturnino Braga (PT/RJ) considera que

não há chance de ser servida uma pizza devido à pres-são da opinião pública. E concorda que a crise política enfraquece o sistema eleitoral e, por conseguinte, a representação que dele resulta. Um bom antídoto seria a reforma política, que deve incluir – para o senador – o aumento do grau de transparência das ações dos parlamentares e executivos em cargos de confiança, alcançando suas contas bancárias, patrimônio e decla-rações de renda. Ele defende, também, medidas para a redução drástica dos gastos em campanhas eleitorais, aprovadas no Senado e engavetadas na Câmara.

Segundo o senador, depois de decantada a crise, o futuro do PT vai depender da renovação de seus mé-todos e procedimentos e da recuperação “das linhas democráticas e transparentes dos tempos históricos”.

Limites à vistaA deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ) tam-

bém não acredita que os trabalhos das CPIs terminem em pizza, “pois a credibilidade da instituição parla-mentar está vinculada aos seus resultados”. Porém, vê com preocupação os limites que vão se delineando para evitar o envolvimento de alguns atores do PT e de outros partidos que pertencem ou pertenceram ao governo.

A crise política demonstra, segundo ela, que a de-mocracia representativa é insuficiente. “Precisamos avançar na adoção de mecanismos de ampliação da democracia direta nas decisões e controle do poder público”, sustenta.

Um dos maiores problemas do atual sistema – anali-sa – são as distorções da Lei Eleitoral, principalmente as brechas para a interferência do poder econômico. Garantir o financiamento público das campanhas seria um grande salto para evitar um dos focos de corrupção e de deformação dos resultados eleitorais. Mas – observa Jandira – a reforma política não pode servir para restringir a atividade partidária. “Isso acontecerá se mantivermos a cláusula de barreira de 5% dos votos para os partidos elegerem parlamentares e terem acesso aos meios de comunicação”, afirma. Soluções mais duradouras para a crise devem passar também, para a deputada, por mudanças estruturais no funcionamento do Estado e na formulação e execução do orçamento público.

Prejuízo para a esquerdaAo comentar a encalacrada política em que o PT se

meteu ao chegar ao governo federal, Jandira Feghalli afirma que o processo de institucionalização e buro-cratização do partido resultou em uma organização muito distante de seu projeto original. “Isso se expres-sou no próprio governo federal, que, embora tenha bons projetos dispersos, não tem projeto de nação e acabou mantendo o núcleo essencial neoliberal da po-lítica macroeconômica”, aponta.

No entanto, para Jandira Feghali, o maior prejuízo da crise política foi ter colocado a esquerda brasileira e o movimento social contra a parede. “Em geral, no Bra-sil e no mundo, a esquerda já vem se distanciando da compreensão da luta de classes em curso e da propos-ta de superação do Capitalismo”, frisa. A complexida-de do “mundo pós-muro” também obriga a esquerda, segundo a deputada, a repensar táticas e a conjugar diversas formas de luta. “O que não pode ser alterado, porém, é nosso projeto estratégico de construção de uma sociedade socialista”, conclui.Cr

ise,

piz

za e

Para ajudar a entender os

desdobramentos da crise

política, o Jornal da UFRJ

voltou a ouvir alguns

dos participantes

do seminário A esquerda e a crise política do governo, que foi

realizado pela

Câmara de

Estudos de

Políticas

Públicas

do Fórum de

Ciência e Cultura (FCC) da

UFRJ, em junho passado.

O pano da crise política ainda não caiu para que a platéia decida se bate palmas ou se irrompe em vaias. Alguns protagonistas acusados de arquitetar esquemas monumentais de corrupção já deixam o palco e os que fazem o papel de paladinos da ética pública temem ser escalados – e fazer boa figura – como réus.

Uma pizza suculenta em tamanho família talvez caís-se bem para muitos, mas seria de difícil digestão. Já não poderá provar dela o chamado homem-forte do governo, José Dirceu, que teve o mandato de deputado federal cassado recentemente. Outros cairão – certamente os que estavam de prontidão nas saídas do valerioduto – mas ainda é uma incógnita se qualquer pizza será servida longe dos holofotes. Talvez tudo dependa da profundidade das investigações e dos novos nomes que porventura apareçam na trama.

Mais do que preservar pescoços, muitos parecem preocupados em salvar o sistema de representação atual – com caixa dois e tudo – para não alterar muito o roteiro em que, a cada quatro anos, milhões de brasi-leiros depositam os seus votos e esperanças nas urnas. E é exatamente esse modelo que está em xeque, de acordo com o sociólogo Luís Werneck Vianna. “Não é xeque-mate, mas é xeque. Estamos convertendo a nos-sa democracia política numa catedral vazia, ou seja, em belas instituições. Mas, do ponto de vista dos inte-resses da maioria da população, não têm funcionado”, sublinha. A distância que já havia, e é tradicional no Brasil, entre povo e parlamento tende a se agravar, de acordo com o pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). “A crise é gra-ve porque não se descobriu uma forma que substitua os governos que se organizam segundo a democracia representativa”, comenta Werneck Vianna.

Novos caminhosEmbora não acredite que a democracia direta venha

a ter maior peso na vida nacional – “talvez na forma de referendos, o que não é trivial” – Werneck não descarta o fortalecimento de outras experiências participativas. Um exemplo seria o envolvimento da população no que chama de “mundo da representação funcional”, em áreas como saúde e educação. Identifica, ainda, a constituição de redes da sociedade civil – via Internet, por exemplo – como uma fenda que pode revigorar a vida democrática, no Brasil e no mundo.

Em relação à possibilidade de acordos parlamentares de autopreservação, o sociólogo acha que já se apurou o

Coryntho Baldez

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UniversidadeNacional

fotomontagem Fortunato Mauro

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UniversidadeNacional

De acordo com o professor José Murilo de Carvalho, do Departamento de História, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ, o tema traz muita confu-são, sendo comuns discussões em que os interlocutores estão falando de coisas diferentes. “No momento his-tórico da Proclamação da República, havia pelo menos dois sentidos para a palavra. Em um deles, mais amplo, Positivismo significava uma postura epistemológica de crença total no poder da Ciência, entendida como Ci-ência Natural, de explicar e transformar o mundo. Até mesmo o mundo humano era concebido como produto de leis equivalentes às da Física ou da Biologia. Outro sentido, mais restrito, era o do Positivismo ortodoxo, desenvolvido por Comte na fase final de sua vida. Sem abandonar de todo a posição cientificista, o Positivismo ortodoxo era, ao mesmo tempo, uma religião natural, uma filosofia da história e uma proposta política”.

José Murilo lembra que o chamado Positivismo epistemológico, sob a roupa de cientificismo, ainda está presente em praticamente todas as partes do mundo. Já o seu viés político apenas repercutiu mesmo com força no Brasil e prossegue na “herança varguista de uma legislação sindical e social de caráter paternalista”. O Tenentismo – rebelião de jovens militares contra as oligarquias nos anos 1920 – ao contrário do que muitos

A Ordem e o Progresso do “Grande Ser”

“Tudo é relativo, e isso é a única coisa absoluta”. Esse é um dos axiomas do Positivismo, doutrina filosófica e religiosa criada no século XIX pelo francês Isidore Auguste Marie Xavier Comte, que deixou na bandeira brasileira as palavras Ordem e Progresso como marca de uma importante influência na formação da República brasileira. Após 116 anos de existência do sistema, o pensamento positivista não mostra a mesma força ideológica que exerceu em alguns períodos e movimentos da nossa história. Entretanto, sobrevive ainda nos cultos dominicais da Igreja Positivista, na Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória, onde se venera o “Grande Ser” e em certa visão elitista que afirma, como Comte, que “o povo é incompetente para decidir as questões sociais”.

afirmam, teria pouco a ver com o Positivismo, embora o pai de Luís Carlos Prestes – o oficial de Armas de Engenharia, Antonio Pereira Prestes – fosse positivista e tivesse determinado que os filhos somente deveriam fazer sua opção religiosa ao atingirem a maioridade. “Na América Latina, houve alguma difusão da ortodoxia no Chile. No México, o grupo chamado de Científicos foi influente durante o Porfiriato (relativo ao regime enca-beçado pelo general Porfírio Diaz). Em outros países, como a Argentina, houve apenas alguma influência in-telectual. Após 1930, Lindolfo Collor usou o Positivis-mo e a doutrina social da Igreja para justificar a criação do Ministério do Trabalho”, informa o professor.

Do Império à RepúblicaO Positivismo, desenvolvido por Comte a partir

da primeira metade do século XIX, aos poucos vai influenciando a elite política brasileira. A política imperial nada teve a ver com ele, embora os ortodo-xos “preferissem que a transição para a República se desse com a transformação de Pedro II em ditador republicano, o que ele até certo ponto já era”, analisa José Murilo, para quem “a filosofia positivista conside-rava o regime republicano necessário para a transição final à sociedade positiva. A República era, portanto, um progresso. Os ortodoxos pregavam também a di-tadura republicana como parte integrante do regime de transição”.

Rodrigo Ricardoilustração Anna Carolina Bayer

Nessa idealizada ditadura, o princípio da força é o fundamento do governo, onde o presidente devia ser vitalício e escolher um sucessor, deixando ao Congresso a única função apenas de votar o orçamento. Haveria, tam-bém, a separação entre Igreja e Estado, a plena liberdade espiritual e a obrigatoriedade do casamento – cabendo às mulheres a função moderadora e de provedoras do amor. A principal tarefa política dessa fase de transição seria a de incorporar o proletariado à sociedade.

DogmasComte coloca o proletariado no extremo inferior

da escala hierárquica da sociedade em razão “da incompetência para decidirem as questões sociais” – segundo as palavras do francês – e como um ente infantil a ser educado. O Positivismo abraça, ao mes-mo tempo, a Ciência, a Filosofia, a Política, a Reli-gião e a Poesia. Mas despreza todas as especulações teológicas e metafísicas. “Viver para outrem” é outro dos dogmas positivistas que vai gerar, inclusive, a palavra altruísmo.

O sonho no desenvolvimento da humanidade permite ao professor José Murilo traçar um paralelo entre Comte e Marx. “São dois típicos pensadores do século XIX, com uma filosofia evolucionista da história. A sociedade positiva para Comte era o ponto final da evolução hu-mana, no qual até mesmo o Estado desapareceria. Era o equivalente do Comunismo no esquema marxista, fase em que terminaria todo tipo de exploração e, portanto, a luta de classes assim como o Estado. Discordavam positivistas e marxistas, sobretudo, na concepção dos meios para se chegar à utopia final”.

Bandeira brancaA máxima do Positivismo “o amor por

princípio, a ordem por base e o progresso por fim” acabou adaptada a bandeira do Brasil.

Graças a dois eméritos positivistas ortodoxos da época, Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que

mantiveram o desenho básico da bandeira imperial, evitando copiar a norte-americana e tolerando apenas as estrelas simbolizando os estados federados, idéia original das treze colônias da América Inglesa.

“Impuseram o mote contra a oposição de muitos, se não da maioria. Tratava-se, sem dúvida, de admitir a idéia de uma corrente de pensamento absolutamente minoritária e que nunca foi totalmente aceita. Mas, ao longo da vida republicana, a bandeira, com o lema,

adquiriu sentido para a população”, afirma o pro-fessor José Murilo, lembrando que o símbolo

já foi à guerra na Itália – onde brasileiros morreram em seu nome – e carregada em

passeatas pela Campanha das Diretas e pelo impedimento de Collor.

Sobre os repentinos projetos que surgem no Congresso Nacional, volta e meia, propondo a modificação da bandeira, o professor é enfáti-co: “pessoalmente, não gosto do lema e prefe-riria que fosse tirado. Mas, pelas razões men-cionadas, creio que se deve manter a bandeira como está. Os parlamentares que cuidem de limpar o nome do Congresso e de representar decentemente os cidadãos. Deixem a bandei-ra em paz. Ela já adquiriu legitimidade como símbolo nacional”.

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12 Dezembro•2005UFRJJornal da

eEntrevista

Coryntho Baldezfotos Marco Fernandes

Luiz Antonio Cunha

Universidade brasileira

Jornal da UFRJ: O fato de a universidade brasileira ter sido implantada apenas no século XX a deixou em desvantagem em comparação com outros países? Luiz Antonio Cunha: Não faz diferença nenhuma. As universidades espanholas que vieram para a América no século XVI foram as da Contra-Reforma para formar clérigos e intelectuais orientados para combater as cultu-ras complexas dos indígenas. Não era o caso da América colonizada pelos portugueses. Portanto, não devemos fazer nenhuma transferência ao passado, independente das condições em que as instituições surgiram.

Jornal da UFRJ: E em que circunstâncias nasceram as primeiras escolas de ensino superior no Brasil?Luiz Antonio Cunha: Na realidade, o ensino superior nasceu fragmentado em diferentes instituições. Mas é como o vemos hoje, a partir da nossa visão de universi-dade. Naquela época, era o que se tinha de mais avança-do, ou seja, o padrão era o de faculdades profissionais, conforme o projeto da Revolução Francesa.

Jornal da UFRJ: Qual foi o primeiro curso criado no Brasil?Luiz Antonio Cunha: De início, o que tivemos foi um curso de engenharia embutido na Academia Militar, criado em 1810. Isto porque a Escola Politécnica na França é uma instituição militar de origem. Na área de Medicina, aconteceram inicialmente aulas, logo depois surgiram academias no Rio de Janeiro e na Bahia. E só em 1827 é que se completou o tripé fundamental do ensino superior brasileiro com os cursos de Direito, em São Paulo e em Olinda.

Jornal da UFRJ: E essa configuração inicial perdurou durante todo o século XIX?Luiz Antonio Cunha: Sim. Houve a multiplicação de escolas isoladas no mesmo modelo. Novas escolas sur-giram em muitos outros lugares, como as de Agronomia e as de Farmácia.

Jornal da UFRJ: No século XX, qual foi o primeiro do-cumento legal que falou em instituição universitária? Luiz Antonio Cunha: Desde o século XIX, houve muitos projetos de se criar universidades no Brasil. Projetos foram apresentados na Câmara e na última fala pública de Pedro II, antes da deposição, ele defendeu a criação

de duas universidades no Brasil. Os Inconfidentes de Minas Gerais também falavam da criação de uma uni-versidade. Mas eram projetos pouco consistentes.

Jornal da UFRJ: Apenas no início do século XX esse projeto vingou?Luiz Antonio Cunha: Exatamente. O poder legislati-vo, numa emenda ao orçamento em 1915, autorizou o presidente da República, quando achasse convenien-te, a reunir em universidade as faculdades federais existentes no Rio de Janeiro, que eram duas, a Escola Politécnica e a Faculdade de Medicina. E isso só acon-teceu em 1920.

Jornal da UFRJ: E esse padrão de reunir escolas per-durou ao longo do tempo?Luiz Antonio Cunha: Sim. Em 1915 o Congresso criou o modelo fundamental, que existe até hoje, para a formação de universidades no Brasil. Ou seja, pela reunião de estabelecimentos profissionais de ensino superior pré-existentes. O que diz a legislação ainda hoje no Brasil? Se for uma instituição privada, só pode ser criada mediante a reunião de faculdades, institutos ou escolas profissionais previamente credenciadas pelo Poder Público. E no setor público, há duas vias. Cria-se a universidade por esse mesmo processo de agregação ou mediante lei ou decreto. Para se ter uma idéia da força dessa origem, a primeira universidade brasileira criada sem antecedentes, sem a reunião de instituições já existentes, foi a Universidade de Brasília, em 1961. Nessa época, já tínhamos mais de 30 universidades.

Jornal da UFRJ: Antes de falarmos da UNB, como o senhor definiria essa primeira geração de leis sobre o en-sino superior de 1920 até o fim do Estado Novo. Era mais uma estruturação da universidade ou houve mudanças que podem ser chamadas de verdadeiras reformas?Luiz Antonio Cunha: As legislações sempre reformam, mesmo que não dêem esse nome. Nos anos 30, houve duas leis muito importantes, em 1931 e 1937. Criou-se, em 1931, o chamado Estatuto das Universidades Brasi-leiras. Foi um Decreto-lei baixado por Getúlio Vargas. E foi a primeira lei geral de estruturação do ensino brasileiro. Pode-se dizer que foi uma reforma, embora a bibliografia não a chame assim, talvez por falta de imaginação. O Estatuto das Universidades não tratava

F orjada a partir de tensões permanentes entre pólos distintos – público/privado e padronização/diversidade – a universidade brasileira ainda está em processo de construção. A conclusão é do professor titular de Educação Brasileira da Fa-culdade de Educação da UFRJ, Luiz Antonio Cunha. Nesta entrevista ao Jornal

da UFRJ, ele analisa os grandes movimentos e iniciativas governamentais que, no século XX, modelaram as instituições de ensino superior no país.

A abordagem inclui o Estatuto das Universidades Brasileiras, um Decreto-lei baixado por Getúlio Vargas em 1931, passa por experiências inovadoras – como a Universidade de Brasília – e por intervenções legais que desaguaram na reforma de 1968, chegando ao atu-al projeto de lei de reforma do ensino superior. Coordenador do Laboratório de Estudos das Universidades (LEU) do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ e autor de diversos livros sobre o assunto, entre eles A Universidade Reformanda (Francisco Alves, 1988) e Qual Universidade? (Cortez, 1989), Luiz Antonio Cunha considera que “o velho particularismo brasileiro está enraizado na nossa cultura” e ainda é um empecilho para a formulação de políticas públicas no campo da Educação Superior.

reformas desafios

Na realidade, o ensino

superior nasceu fragmentado em diferentes

instituições

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 13

Entrevista

continua na próxima página

somente de universidades, mas de todas as instituições de nível superior, as isoladas também, tanto públicas como privadas. E tratava especialmente de organização e das condições para o seu funcionamento. Jornal da UFRJ: E qual foi o pano de fundo histórico do projeto varguista para o ensino superior?Luiz Antonio Cunha: É uma pergunta interessante por-que o Ministério de Educação foi criado em novembro de 1930 e cinco meses depois, em abril de 1931, saiu o Estatuto. E quem era o ministro da Educação? Nada mais nada menos do que Francisco Campos, um grande intelectual de orientação fascista. Então, o que o Esta-tuto buscava era abarcar todas as possibilidades de or-ganização do ensino superior. Quaisquer que fossem os cursos, os ramos. Era um padrão único de organização, a partir de uma diretriz de grande controle.

Jornal da UFRJ: Como a universidade era entendida?Luiz Antonio Cunha: Como uma instituição de ensino. A produção de conhecimento era algo que aparecia muito pouco nessa legislação. Também o contexto da época não favorecia muito esse tipo de coisa no Brasil...

Jornal da UFRJ: E que mudança legal houve em 1937?Luiz Antonio Cunha: É uma coisa interessante. Vou continuar focalizando o lado fascista do processo de 30, embora ele tenha sido profundamente contraditó-rio. Toda a gestão de Anísio Teixeira na Prefeitura do Distrito Federal, de 1932 a 1935, que implantou uma política educacional de caráter democrático, foi com-pletamente destruída. Ele chegou até mesmo a criar a Universidade do Distrito Federal. Em 1937, quem esta-va no Ministério de Educação era Gustavo Capanema, outro fascista, embora mais multifacetado. E foi nesse ano que a Universidade do Rio de Janeiro foi transfor-mada em Universidade do Brasil. Não foi apenas uma mudança de nome. O objetivo era conter a criação de universidades de caráter mais autonomista que surgiam em outros lugares, como a criada por Anísio Teixeira em 1935. A legislação dizia que a Universidade do Brasil deveria ser referência modelar para todas as instituições e cursos superiores que fossem criados, embora isso não tenha acontecido de fato.

Jornal da UFRJ : Qual a principal característica que identificava as universidades criadas na primeira me-tade do século XX?Luiz Antonio Cunha: Ao fim do Estado Novo, em 1945, tínhamos um punhadinho de universidades. A Uni-versidade do Brasil, a USP, a do Rio Grande do Sul, a de Minas Gerais e a Universidade Católica do Rio de Janeiro. Eram quatro públicas, sendo três estaduais e uma federal, e uma privada. Basicamente, eram insti-tuições de ensino.

Jornal da UFRJ: E qual foi o papel das cátedras?Luiz Antonio Cunha: Para termos uma idéia, quando Dom João VI chegou ao Brasil criou cátedras na área de Medicina. Eram não apenas um espaço físico, mas um lugar social onde um professor ensinava. Com o tempo, esse espaço foi se tornando mais complexo. O catedrá-tico passou a ter assistentes, auxiliares. A cátedra é um instrumento por excelência de organização do ensino superior europeu, transferido para o Brasil, onde ficou amarrada desde o início ao serviço público.

Jornal da UFRJ: Depois da II Guerra Mundial, houve uma pressão da classe média e do movimento estudantil para a ampliação do acesso. Pode-se falar, neste perí-odo, em um segundo momento de intervenções legais para adaptar a universidade a essa realidade? Luiz Antonio Cunha : Na realidade, não houve uma manifestação geral do Estado, no plano legislativo, para ir ao encontro dessa demanda que crescia. Houve apenas medidas práticas no sentido de se criar novas instituições ou se federalizar as já existentes.

Jornal da UFRJ: Em que momento se pode identificar uma linha de ruptura com o modelo anterior?

Luiz Antonio Cunha: A criação de três instituições de-fine essa linha divisória. A primeira foi a SBPC, criada em 1947, em São Paulo. Ela foi efetivamente o grande espaço de intercâmbio de projetos, especialmente entre pesquisadores brasileiros com experiência no exterior. Essas pesquisas foram, depois, alavancadas pelo CNPq e pela Capes, criados no início dos anos 50. Essas três instituições definem uma mudança im-portante. A formação de pesquisadores com formação específica contribuiu para moldar a universidade, que era uma instituição de ensino, aos interesses ligados à produção do conhecimento e não apenas à sua di-fusão.

Jornal da UFRJ : E que novas experiências e idéias, no campo acadêmico, foram trazidas para o Brasil por esses pesquisadores?Luiz Antonio Cunha: Esses pesquisadores brasileiros que iam para os Estados Unidos e Europa passaram a conviver com outros tipos de organização do ensino superior. Na Grã-Bretanha e EUA, por exemplo, não existiam cátedras. O regime era departamental. Como o sistema de cátedras no Brasil era amarrado, travou-se uma luta pela sua derrubada.

Jornal da UFRJ: Poderíamos também dizer que a UNB foi um grande laboratório para esse novo modelo de universidade?Luiz Antonio Cunha : A UNB foi um laboratório e um grande projeto intelectual brasileiro moldado nas reuniões da SBPC. Nesse projeto, os pesquisadores brasileiros levaram em conta as organizações de en-sino superior do exterior. Por isso, precisaram driblar a legislação brasileira. A Constituição de 1946 dizia que a organização do ensino superior deveria ser feita a partir das cátedras. Como a UNB sem cátedras po-deria funcionar? Inventou-se a cátedra apenas como um degrau da carreira acadêmica, não como estrutura organizacional.

Jornal da UFRJ: O regime departamental, depois, foi impulsionado pela ditadura?Luiz Antonio Cunha: Não. O que aconteceu foi que a ditadura extinguiu o regime de cátedras. Era uma demanda antiga dos intelectuais, que perdurou na di-tadura. A essa demanda se juntou uma outra da própria ditadura, que era eliminar certas características da cáte-dra, como a vitaliciedade, a inamovibilidade e o poder do catedrático de escolher seus auxiliares. Esse regime foi extinto pela Constituição de 1967, pelos militares. Mas o que se criticava não era a cátedra enquanto tal, mas a sua esculhambação.

Jornal da UFRJ: A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é de dezembro de 1961. Quais eram as suas diretrizes principais e o seu papel nesse contexto de reformas? Luiz Antonio Cunha : Ela resultou de um processo interessante. Na verdade, foi gestada entre 1948 e 1961. Foram 13 anos de combates. As tensões maiores eram entre a centralização e a descentralização, entre o público e o privado e entre a padronização e a fle-xibilidade da organização das instituições. O final foi melancólico. Acabou sendo aprovado pelo Congresso um projeto de orientação privatista, que facilitou o trabalho da ditadura militar depois. O privatismo se instalou principalmente na composição do Conselho Federal de Educação criado pela LDB.

Jornal da UFRJ: E que medidas legais pavimentaram o caminho para a reforma de 1968?Luiz Antonio Cunha: Por influência de Moniz de Ara-gão, quando era ministro da Educação, o presidente da República baixou dois decretos-leis. Um deles, de 1966, fragmentava as faculdades de Filosofia nas universida-des federais. E um outro definindo a estrutura depar-tamental, em 1967. O que fez a Lei 5.540? Incorporou esses decretos-leis e documentos já preparados pelo Conselho Federal de Educação sobre a pós-graduação. Ou seja, foi uma espécie de consolidação das leis do ensino superior.

As tensões maiores

eram entre a centralização e a descentralização, entre o público e o privado e entre a padronização e a flexibilidade da organização das

instituições.

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14 Dezembro•2005UFRJJornal da

Escola de ComunicaçãoEntrevista

Jornal da UFRJ : Quais foram os novos parâmetros acadêmicos e administrativos criados? Luiz Antonio Cunha: A departamentalização, a divisão da Faculdade de Filosofia, a divisão de ciclo básico e ciclo profissional, ou seja, a instituição da universidade. Não tenho dúvidas em afirmar que foi esse processo, nos anos 60, que criou a universidade no Brasil. Antes, cada Faculdade fazia o vestibular como entendia e na época que queria. O professor também não se via como professor da universidade, mas da faculdade. Cada uma das instituições tinha o seu orçamento separado e o reitor era uma figura decorativa. Na década de 60, isso começou a mudar, mas a construção da universidade brasileira ainda está longe do fim, está em processo.

Jornal da UFRJ: Foi nessa época também que o setor privado começou a se expandir. Por quê?Luiz Antonio Cunha: Esse processo de reforma centra-do na eficiência e na expansão do setor público foi, de certa maneira, desestimulado por um outro que ocorria simultaneamente e que vinha do início da década de 60. O Conselho Federal de Educação foi criado por uma LDB privatista e com composição privatista. E chegou um momento em que ele era formado apenas por donos de escolas e faculdades, que legislavam em causa própria.

Jornal da UFRJ: Como se formou o sistema brasileiro de pós-graduação que viria se expandir nas décadas seguintes?Luiz Antonio Cunha: Houve dois fatores que influen-ciaram e impulsionaram esse sistema. Primeiro, a

hegemonia do modelo norte-americano. Por exemplo, a pós-graduação na UFRJ nasceu na Coppe e na Escola de Química de acordo com o modelo norte-americano. Já havia na USP consolidada uma pós-graduação ba-seada no modelo europeu, mais flexível, menos disci-plinarizada e burocratizada. Esse modelo foi abafado e tornado ilegal por um parecer do Conselho Federal de Educação, de 1965, sobre pós-graduação brasileira. Em segundo lugar, a pós-graduação nasceu no país junto com o Estatuto do Magistério Superior, ou seja, para fornecer credenciais para a entrada e a promoção na carreira docente.

Jornal da UFRJ: Avançando para a década de 90, alguns analistas sustentam que o padrão neoliberal teria atin-gido também a universidade. Como você avalia isso? Luiz Antonio Cunha: Não foi necessário que o neoli-beralismo desembarcasse no Brasil, no governo Collor e FHC, para que as idéias privatistas aparecessem ou recrudescessem. A única novidade foi a utilização de uma nomenclatura nova adaptada à realidade brasileira. O quadro de privatismo já existia antes disso. E friso que muito mais importante que a orientação ideológica neoliberal do ministro Paulo Renato é a importância da Igreja Católica, que não nasceu com a posse de Fernan-do Henrique Cardoso. A Igreja tem grande importância no setor privado e influencia os governos para que sejam mantidas as isenções fiscais do segmento particular, previstas nas constituições desde os anos 30.

Jornal da UFRJ: Nos dois mandatos de Fernando Hen-rique, quais as mudanças que mais afetaram o ensino superior? Luiz Antonio Cunha: O governo FHC no âmbito da educação buscou produzir reformas em todos os níveis e setores. No entanto, se há um setor em que o governo FHC não conseguiu imprimir a sua marca foi no ensino superior.

Jornal da UFRJ: O senhor tem afirmado que FHC fez reformas no varejo. Alguns analistas dizem que é essa a prática do governo atual, em que pese o chamado projeto de reforma universitária. Haveria alguma si-milaridade?Luiz Antonio Cunha: O governo Lula é isso e o seu contrário. Pela lógica formal, não dá para analisar. Por exemplo, de fato o Sistema de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) foi a primeira grande legislação no âmbito do Ensino Superior do governo Lula. Mas saiu o Sistema de Avaliação da Educação Superior sem que soubéssemos qual a Educação Superior que vamos implantar. Isso é uma complicação. Eu diria que do

ponto de vista lógico dedutivo é um absurdo. Do pon-to de vista prático, é apenas questionável. Houve, no atual governo, um movimento para se contrapor a essa política fragmentada da legislação.

Jornal da UFRJ: Um movimento que desaguou no pro-jeto de lei de reforma do ensino superior?Luiz Antonio Cunha: Durante a gestão Cristóvão Bu-arque, em discussões das quais participei, critiquei o caráter fragmentado no encaminhamento desse tema. A reação do ministro seguinte, Tarso Genro, foi no sen-tido de abrir o projeto ao debate. Mas primeiro vieram o Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior) e, depois, o Prouni (Programa Universidade para Todos). Na minha cabeça de acadêmico, tinha que haver uma lei orgânica primeiro, e depois os demais tratamentos. Embora seja uma importante tentativa de fazer com que instituições que gozam de isenções fiscais ampliem os serviços educacionais, o Prouni, por exemplo, embute um elemento de acesso por meio de discriminação positiva antes que uma lei orgânica defina as condições gerais de acesso. É o velho particu-larismo brasileiro, que está enraizado na nossa cultura e na elaboração das políticas plúbicas, não apenas no campo da Educação Superior.

Jornal da UFRJ: Como o senhor visualiza a universi-dade do futuro em um país como o Brasil?Luiz Antonio Cunha: A minha visão do futuro é que o ensino superior brasileiro tem que buscar, primeiro, a diversidade. Toda tentativa de multiplicar um modelo único vai dar errado. Não acho que o caminho seja a criação de universidades sem universalidade de cam-po, isto é, especializadas, como prevê a LDB de 1996. Isso é uma contradição. Também discordo da criação de Centros Universitários, previstos por um decreto de FHC e, agora, no projeto de reforma do governo Lula. São instituições que só fazem ensino, não produzem conhecimento, mas têm o atributo da autonomia uni-versitária. Por outro lado, o regime departamental está em expansão no mundo e já se pensa no Brasil em acabar com ele, ou melhor, com a sua esculhambação. O projeto de reforma do MEC prevê que a universidade só terá departamentos se quiser. Porém, o departamento foi uma invenção universitária para juntar o ensino com a pesquisa e não há outra melhor, pelo menos por enquanto. O complicado é que setores de algumas universidades públicas pretendem moldar toda a ins-tituição a partir de instâncias que se dedicam apenas ou prioritariamente à pesquisa. Se isso acontecer, será mais um elemento de perturbação no funcionamento das universidades brasileiras.

Não foi

necessário que o

neoliberalismo

desembarcasse

no Brasil, no

governo Collor e

FHC, para que as

idéias privatistas

aparecessem ou

recrudescessem.

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Dezembro•2005 15UFRJJornal da

Ciência

ilustração Pina Brandi

do Instituto Virtual de Fármacos do Rio de Janeiro (IVFRJ), sediado na UFRJ. “Os focos de supervida na mata merecem toda uma pesquisa, porque ela é mais diversificada que a da Amazônia. Pode-se dizer que a Amazônia é exuberante na quantidade, mas na variedade é muito menor”, afirma o coordenador do IVFRJ e do Instituto do Milênio – Inovação e Desenvolvimento em Fármacos e Medicamentos (IM/Inofar), professor Eliezer Barreiro, da Faculdade de Farmácia da UFRJ.

Quando se fala em biodiversidade, lembra-se logo da Amazônia ou da Mata Atlântica, mas para o coordenador “nós temos também o cerrado, que esconde segredos fantásticos. Está tudo aqui e o nosso patrimônio genético prova porque ‘Deus é brasileiro’. Mas, precisamos in-vestir para que toda essa riqueza volte em benefício do nosso próprio povo. Nós somos competentes em saber o que temos para agregar valia, patentear e proteger, mas isso passa por uma política de go-verno. E o Brasil precisa parar de pensar apenas em cada eleição. No mínimo são 12 anos de pesquisa, o que corresponde a três governos”.

Altos investimentosO combustível da indústria farmacêu-

tica é a inovação e é ela que movimenta uma quantidade de dinheiro estonteante. Os dados da Federação Americana da Indústria Farmacêutica apontam investi-mentos de 33 bilhões de dólares no ano de 2004, o que corresponde a quase 10% do mercado mundial. Mas, de acordo com Barreiro “a capacidade de descobrir ino-vação nesses 33 bilhões está se esgotando. Apesar do investimento alto, há cada vez menos moléculas inovadoras”.

A razão desses investimentos são os fa-turamentos bilionários. A mesma empresa que encontra um único composto quí-mico, chegando a embolsar US$12 bilhões por ano, tem o interesse

de conseguir um outro elemento que pos-sa ser substituído, uma vez que o mesmo decai nas vendas, com o passar dos anos. “Não há mais fôlego para descobrir, na velocidade que o mercado demanda, essas moléculas que as empresas chamam de blockbusters (medicamentos com mais de US$1 bilhão em vendas). Como resultado disso há uma pressão dos acionistas e da empresa em ter moléculas que possam ser mais e mais rentáveis”, analisa Eliezer Barreiro, completando que “como conse-qüência as empresas se voltam para par-cerias com a universidade, por ser mais fácil fazer um contrato com a academia a levar o cientista, que é caro, para dentro da empresa”.

Relação tripartiteEliezer defende o estreitamento de

laços entre a universidade e o setor em-presarial pelo que os dois lados só ten-dem a ganhar. No entanto, enfatiza que a fórmula necessária para promover o desenvolvimento industrial da área de fármacos, com capacitação tecnológica brasileira, é a relação em três segmen-tos, incluindo o apoio governamental com o financiamento da pesquisa, que tem origem na universidade, para a pro-dução de fármacos em escala industrial, com parcerias de empresas nacionais.

O momento é propício, porque o mercado farmacêutico brasileiro não é desprezível, apesar de a população que tem acesso aos medicamentos seja infe-rior a 50%. Há também recursos huma-nos importantes, no país: nove mil dou-tores, mesmo que para uma população de cerca de 170 milhões de habitantes esse número seja insuficiente. Mas, com tantos empecilhos, o Brasil ainda

Joana Jahara

tem capacidade de descobrir 2% do que é feito no mundo.

Diminuição da dependênciaA indústria farmacêutica redescobre a

natureza e a cada passo se orienta por ela. A natureza é uma fonte inesgotável de recursos, mas “o que nós podemos fazer é copiá-la, porque a forma de arranjar os carbonos e hidrogênios, somente a nature-za faz com uma diversidade e criatividade que por mais competentes que sejamos, não somos capazes de fazer. Hoje, por exemplo, os anticancerígenos, em sua maioria, são moléculas de origem natural. Digamos que um pouco lapidadas. Elas contêm propriedades um pouco mais con-fortáveis na posologia”, afirma Barreiro.

Por ter o Brasil uma biodiversidade original, pode-se diminuir a dependên-cia que temos de países como a China e a Coréia, de onde vêm a maioria dos insumos de fármacos sintéticos. Para Eliezer Barreiro, “o medicamento é um instrumento de inclusão social, porque ele não só mantém a saúde como também a promove”. Além disso, o pesquisador defende que “temos o direito a ter uma medicina preventiva com o uso de me-dicamentos brasileiros, que seja pago em real e que seja capaz de ser adaptado às

nossas necessidades”.

O Brasil possui um patr imônio genético incon-testável. A maior reserva de água

doce do planeta se encontra aqui

e há mais espé-cies vegetais em território bra-sileiro que no somatór io de

todas as florestas do hemisfério norte. São aproximadamente 120 mil espécies de plantas, enquanto que as florestas do norte não passam de 40 mil. Porém, a fantástica exuberância não se traduz em investimento nacional compatível na bus-ca de compostos químicos inovadores (ou moléculas inovadoras) para a produção de fármacos, vacinas e outros insumos.

Mapeando a diversidadeA Mata Atlântica é um exemplo. Mas,

somente agora, com apenas 7% da ex-tensão original, e um dos biomas mais ameaçados de desaparecimento no mun-do, no Rio de Janeiro, há um projeto para mapear e estudar milhares de espécies que compõem ainda a fauna e a flora da mata fluminense, componente impor-tante do complexo da Mata Atlântica. A exposição do estudo ocorreu no mês de agosto, durante o I Ciclo de Conferências

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16 Dezembro•2005UFRJJornal da

Ciência

Coryntho Baldez

ilustração Marco Fernandes

Os “milagres” deO centenário dos cinco artigos que mudaram a face da física

As leis da Mecânica de Isaac Newton, estabeleci-das no chamado annus mirabilis (ano miraculoso) de 1666, alimentaram a impressão – até o início do século XX – de que a ciência encontrara um caminho seguro para desvendar os segredos da natureza e do universo. A convicção científica ganhou tradução poética nos versos de Alexander Pope esculpidos no túmulo do grande físico e matemático, em Londres: “a natureza e as suas leis jaziam na noite escondidas. Disse Deus: ‘faça-se Newton’ e houve luz nas jazidas” (sic).

Em 1905, as percepções extraordinárias sobre o funcionamento da natureza de um físico de 26 anos abalaram as certezas científicas que cruzaram intactas mais de dois séculos. Naquele novo ano miraculoso, Albert Einstein (1879-1955), então um técnico de um escritório de patentes em Berna (Suíça), destroçaria o caráter absoluto atribuído ao tempo e ao espaço e mudaria radicalmente a compreensão moderna sobre a natureza da matéria e da radiação. A primeira revo-lução ficaria conhecida como a teoria da relativida-de e a segunda lançaria as bases da Física Quântica. O poeta e historiador inglês John Squire (1884-1958) também expressou em versos a perplexidade causada pelas “sacadas” geniais de Einstein: “Durou pouco: o Diabo uivando ‘Oh! Einstein seja feito!’ restaurou o status quo”* (sic).

Os trabalhos miraculososAlexandre Tort, professor do Instituto de Física da

UFRJ, conta que Einstein teve o seu o annus mirabilis em 1905, quando publicou cinco trabalhos fundamen-tais. O primeiro dizia respeito às dimensões molecu-lares, o segundo ao movimento browniano, o terceiro e o quarto à relatividade especial, e o quinto à então nascente teoria quântica. Para Alexandre Tort, tradutor do livro O ano miraculoso de Einstein (Editora UFRJ, 1988), organizado por John Stachel e reeditado este ano, todos os trabalhos têm grande valor científico. “Os dois primeiros são importantes para a interpretação atômica e molecular da matéria; o terceiro e o quarto para a interpretação moderna que temos da estrutura do espaço-tempo; e, finalmente, o quinto para a visão moderna que temos da estrutura da matéria”, comenta Tort. Contudo, para o público, e grande parte da comu-nidade científica, os textos sobre a relatividade especial, que abordam o espaço e o tempo, são considerados os mais revolucionários. Mas a verdade é que, segundo Tort, levando-se em conta o contexto histórico, todos são igualmente relevantes. “A hipótese molecular parece trivial e inquestionável, mas nem sempre foi assim. A teoria quântica, hoje firmemente estabeleci-da, era na época uma idéia audaciosa e perturbadora”, afirma o professor. E foi exatamente a sua contribuição ao desenvolvimento dessa teoria, explicando o efeito fotoelétrico, que lhe valeu o Prêmio Nobel em 1921.

A luz corpuscularA teoria de James Maxwell (1831-1879) da consti-

tuição da luz como onda eletromagnética que se propaga no éter – meio material que

supostamente lhe dava suporte – co-meçou a sofrer abalos no início do século passado. Ao observar o efeito fotoelétrico, Einstein percebeu que a única maneira de explicá-lo era

dizer que a luz, em vez de ser uma onda, era feita de muitos pacotes pe-

quenos de energia chamados fótons que se comportam como partículas – explica o

físico Antonio Cleves Nunes Oliveira, diretor do Instituto de Física da Universidade de Brasília

(UnB). O efeito fotoelétrico – diz – se observa quando um pedaço de metal é iluminado com

luz e nele flui uma pequena corrente elétrica. A luz passa sua energia aos elétrons dos áto-mos do metal, permitindo a eles se moverem e produzirem a corrente. Contudo, nem to-das as cores de luz afetam os metais da mes-ma forma. “Não importa quão brilhante uma

luz vermelha seja, ela não produzirá nenhuma corrente elétrica em um metal, mas uma luz azul

mesmo bem tênue resultará numa corrente fluindo no metal”, frisa. O problema com esse resultado intrigan-te – ressalta – é que ele não pode ser explicado se a

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 17

Ciência

A primeira manifestação sobre a teoria da relati-vidade em jornais ou revistas brasileiras parece ter ocorrido apenas em 1919, relacionada às repercussões da expedição feita à cidade de Sobral para observar o desvio, nas proximidades do sol, da luz proveniente de estrelas – de acordo com Ildeu de Castro, professor do Instituto de Física da UFRJ. Amoroso Costa, um im-portante engenheiro e matemático da Escola Politécnica da UFRJ, dedicou-se a partir daí – relata – a estudar a teoria da relatividade, apresentando palestras e cursos e escrevendo, em 1922, “um excelente livro sobre o tema” – republicado pela Editora UFRJ.

A vinda de Einstein ao Rio, em 1925, despertou grande interesse na mídia e na comunidade acadêmica. O físico alemão, segundo Ildeu de Castro, fez conferên-cias científicas, visitou universidades e instituições de pesquisa, defendeu a paz e a conciliação mundial e participou de recepções organizadas pelas comunida-des judaica e germânica.

A sua visita também gerou polêmicas nos jornais entre os que defendiam as idéias de Einstein e cientistas de tradição positivista.

No Rio de Janeiro, Einstein visitou, entre outras instituições, o Hospital dos Alienados (atual Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ). Amplamente noticiada pela imprensa, essa visita – ainda de acordo com Ildeu de Castro – influenciou e deu novo alento a uma pequena e emergente elite acadêmica do Rio na luta pelo esta-belecimento da pesquisa “pura”, como era designada a pesquisa básica.

Quando deixou o Rio, enviou do navio uma car-ta ao Comitê Nobel, sugerindo o nome do marechal Cândido Rondon para o Prêmio Nobel da Paz. Deixava mais uma lembrança aos brasileiros de sua faceta de cidadão engajado nas lutas sociais de seu tempo.

Einstein nasceu em Ülm, cidade ao Sul da Alemanha, em 14 de março de 1879, e morreu em Princeton, Estados Unidos, em 18 de abril de 1955, aos 76 anos de idade. Segundo o professor Ildeu de Castro, o físico que revolucionou a ciência moderna viveu profundamente as contradições políticas e sociais de seu tempo. Lutador incansá-vel pela paz, opôs-se ao nazismo, ao macartismo (perseguição imposta aos simpatizantes do comu-nismo nos Estados Unidos), à guerra e à corrida armamentista – conta Ildeu. A ironia trágica é que um de seus trabalhos de 1905 – A inércia de um corpo depende de seu conteúdo energético? – de apenas três páginas, forneceria a base teórica para a construção da bomba atômica.

Ildeu de Castro explica que Einstein deduziu a célebre fórmula E=mc2 relacionando a energia de um corpo com sua massa (inércia), que indica que quantidades muito pequenas de massa podem ser convertidas em quantidades enormes de energia e vice-versa. De forma premonitória, assim concluiu o extraordinário artigo: “(...) Não é impossível que, com corpos cujo conteúdo de energia é variável em um alto grau (por exemplo, com sais de rádio), a teoria possa ser colocada à prova com sucesso. Se a teoria corresponder aos fatos, a radiação carrega inércia entre os corpos emissores e os corpos ab-sorvedores”.

Na década de 1930, experimentos confirmariam mais esse fenomenal insight de Einstein. Mas foi em 1945 – arremata Ildeu de Castro – que as bom-bas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki mostrariam ao mundo, de forma trágica, o acerto e o poder de suas idéias.

Como parte das comemorações, a Editora UFRJ lan-çou uma segunda edição do livro O ano miraculoso de Einstein: cinco artigos que mudaram a face da físi-ca, de Albert Einstein, com organização e introdução de John Stachel e tradução do professor do Instituo de Física da Universidade, Alexandre Carlos Tort. Os ensaios – considerados um marco da ciência moder-na – são apresentados pela primeira vez em formato acessível e tradução moderna.

Outro importante livro sobre o tema, Einstein e o Brasil (Editora UFRJ, 1995), organizado por Ildeu de Castro Moreira e Antonio Augusto Passos Videira, aju-da a compreender o impacto das idéias de Einstein entre nós. O livro registra a recepção dos conceitos da relatividade no Brasil e o texto de suas conferên-cias. Einstein e o Brasil, no entanto, está esgotado e os velhos e novos admiradores do pai da teoria da relati-vidade – caso não possuam um exemplar – terão que esperar sua reedição.

Einstein no Brasil

Livro reúneensaios

revolucionáriosConsiderado o Ano Internacional da Física pela ONU, 2005 corresponde ao centésimo aniversário do “ano

milagroso” da produção científica de Albert Einstein. No mundo inteiro,

foram promovidos eventos que tornaram mais familiar para milhares de pessoas as teorias do físico alemão.

o poderdas idéias

Bomba atômica

luz é vista como onda. Admitindo-se que a luz tem um caráter ondulatório, seu brilho afetaria a quantidade de energia. Assim, quanto mais brilhante fosse a onda, maior e mais carregada de energia seria ela.

Ildeu de Castro, professor do Instituto de Física da UFRJ, lembra que Max Planck (1858-1947) fez, em 1900, uma “tentativa desesperada” para explicar a análise da intensidade da luz em função do com-primento de onda da radiação proveniente de uma cavidade incandescente. O físico alemão lançou a hipótese de que a troca de energia entre a radiação luminosa e a matéria apenas pode ocorrer através de quantidades com um valor mínimo – o quantum de energia – e não de forma contínua, como postulava a teoria ondulatória. Mas Einstein, com seu trabalho de março de 1905 – “Um ponto de vista heurístico sobre a produção e a transformação da luz, vai muito além de Planck”, sublinha Ildeu de Castro. “Com grande ousadia e originalidade, introduz uma hipótese física revolucionária: a própria radiação tem uma estrutu-ra atomística”, afirma o docente. O seu propósito era – continua – explicar fenômenos novos, como o efei-to fotoelétrico, que não podiam ser entendidos com base na física clássica. Vale a pena ir à fonte: “penso que as observações sobre a radiação do corpo negro, a fotoluminescência, a produção de raios catódicos (elé-trons) pela luz ultravioleta, e outras classes de fenô-menos concernentes à produção e à transformação da luz, parecem mais compreensíveis se admitirmos que a energia da luz está distribuída de maneira descon-tínua no espaço. Segundo a hipótese proposta aqui, na propagação de um raio luminoso, emitido por uma fonte pontual, a energia não está distribuída de ma-neira contínua sobre espaços cada vez maiores, mas é constituída de um número finito de quanta de energia localizado em pontos do espaço, cada um se deslocan-

do sem se dividir e podendo ser absorvido ou produ-zido apenas em bloco”. Esta última frase de Einstein, para Ildeu de Castro, é “talvez a mais revolucionária na física do século passado”. Ali nascia o conceito de fóton – nome dado ao quantum de luz após 1926 – e, com ele, a era da física quântica moderna.

Relatividade especialNaquele mesmo ano de 1905, Einstein realizaria

outro feito extraordinário, que fez dele o físico mais popular do planeta. Formulou a teoria da relatividade especial**, segundo a qual o tempo para uma pessoa dentro de outro objeto em alta velocidade passa mais lentamente do que para outra que se movimenta a bai-xa velocidade. Esse efeito já foi observado em testes com relógios de alta precisão colocados em aeronaves muito velozes. Um exemplo comumente citado é o de um astronauta em viagem hipotética a uma velocidade de 98% da velocidade da luz (300 mil km/seg). Cada ano percorrido corresponderia a cinco anos passados no tempo da Terra. Se a viagem durasse 20 anos, ele teria envelhecido apenas quatro anos.

Alexandre Tort explica que, para Newton, o espaço e o tempo eram absolutos, independentes da matéria e dos processos dinâmicos. O fundador da física mecâni-ca considerava que o importante eram os endereços de cada ponto do espaço, ou seja, o sistema de referência e as coordenadas que um corpo físico momentaneamen-te ocupa. Para Newton, toda uma classe de sistemas de referência – os sistemas inerciais – é equivalente e os relógios podem ser sincronizados para que indi-quem o mesmo instante de tempo – esclarece Tort. “Esta é a relatividade newtoniana ou galileana, pois Galileu reconheceu antes de Newton a relatividade do movimento”, ressalta. No entanto, para Einstein, as coordenadas espaciais e o tempo são relativos.

“Ou, se preferirmos, o tempo é uma coordenada que conjuntamente com as coordenadas espaciais localiza um evento”, diz Tort.

Para entender a gênese dessa concepção revolucio-nária, é preciso lembrar que Einstein – de acordo com Ildeu de Castro – eliminou corajosamente, em seu traba-lho, a noção de éter luminífero, um paradigma secular da física como meio transmissor da luz e aceito como realidade por praticamente todos os cientistas de sua época. Como efeito de suas premissas, concluiu que a luz tem a mesma velocidade para todos os observado-res, quaisquer que sejam seus movimentos. Ao definir como único valor absoluto a velocidade da luz, entraria em conflito com o senso comum e com a mecânica de Newton. Foi isso que obrigou Einstein a uma revisão dos fundamentos cinemáticos da física, segundo Ildeu de Castro. Sua nova definição para se medir o tempo e sincronizar os relógios, por meio de sinais luminosos, levou-o à extraordinária formulação de que tanto os intervalos de tempo quanto os comprimentos medidos variam com o observador, “dando origem ao que se convencionou chamar dilatação temporal e contração espacial”, destaca Ildeu.

Essa reformulação dos conceitos fundamentais de tempo e espaço, tomados como dados a priori por séculos, constitui certamente – para Ildeu de Castro – uma das revoluções mais importantes da ciência, embora seu próprio autor não pensasse assim. Eins-tein, modestamente, a via como um aperfeiçoamento da física clássica.

* Tradução dos poemas: Carlos Vogt

** A teoria geral da relatividade, na qual a gravitação é inter-pretada como geometria espaço-temporal curva, foi elaborada somente dez anos depois.

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18 Dezembro•2005UFRJJornal da

Universidade

Em novembro passado a Faculdade de Medicina (FM) da UFRJ, completou 197 anos. Como parte das comemorações, a direção da faculdade colocou na Internet o site do Museu Virtual (www.museuvirtual.medicina.ufrj.br), criado para divulgar o acervo históri-co da unidade e convidando o internauta a uma “visita guiada” ao antigo prédio da Praia Vermelha.

Quando o assunto é a Faculdade de Medicina a tradição conta muito. Segundo Ana Maria Borra-lho, diretora adjunta de Graduação da escola, “até mesmo os novos estudantes têm esse amor pela ins-tituição”. Ela revela que no período de inscrições em disciplinas e na recepção aos calouros, costu-ma mostrar o Salão Nobre do Gabinete da faculda-de, (localizado no Bloco K do prédio do Centro de Ciências da Saúde - CCS) e as fotos do demolido

Faculdade de Medicina

em algum lugar do passado...A alegoria de Asclépio, representada por um bastão e uma serpente, é

considerada o símbolo da Medicina, porém, para alunos, ex-alunos e professores da Faculdade de Medicina da UFRJ a ele soma-se um prédio. Uma construção na

Avenida Pasteur, 458 na Urca, de 1918 que, apesar de ter sido demolida, ainda vive no coração e na saudade de muitos que por lá passaram.

Rafaela Pereira e Fortunato Maurofotos arquivo

e do presenteUm prédio

prédio da Praia Vermelha. “Eles adoram, ficam ma-ravilhados com as histórias que conto”, revela, não sem vaidade, Ana Borralho.

Para o diretor, professor Almir Fraga Valladares, a história de uma instituição é sempre importante. “Se o passado é renegado não existe futuro. Nossa história tem quase 200 anos, portanto, tem que ser preservada”, afirma.

O estudo médico e a criação de uma faculdadeDo século XVI até o início do XIX a medicina, no

Brasil, foi exercida por curandeiros, jesuítas, barbeiros e boticários. Os que desejassem estudar medicina e obter o título de médico tinham que ir à Europa.

Com a chegada da Família Real, em 1908, várias iniciativas para estimular a educação foram implemen-tadas. Em fevereiro, D. João criou, por Carta Régia, a pri-meira escola superior, a médico-cirúrgica, em Salvador. E em novembro, no Rio de Janeiro, inaugurou a Escola

de Anatomia, Medicina e Cirurgia com sua primeira sede no Hospital Militar do Morro do Castelo, que viria, em 1965, após inúmeras mudanças na denominação, a se tornar a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Foi no Hospital Militar, antigo Colégio dos Jesuí-tas, que tiveram início as aulas do curso de cirurgia (anatomia e fisiologia, terapêutica, terapêutica cirúr-gica e particular, de medicina cirúrgica e obstetrícia, medicina, química, elementos de matéria médica e farmácia). Em seu livro Biografia de uma faculda-de (Atheneu, 1996), George Doyle Maia, ex-aluno e ex-professor da Faculdade de Medicina da UFRJ (atual reitor da Universidade Santa Úrsula - USU), diz que as normas criadas para o funcionamento dos cursos médicos implantaram procedimentos até hoje mantidos, a exemplo da interdisciplinaridade e da freqüência obrigatória com o estabelecimento de limite de faltas.

Prédio tão sonhado da Praia Vermelha que foi demolido nos anos de 1970

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R e v i s i t a n d o o p a s s a d oComo parte das atividades de resgate de sua história,

a Faculdade de Medicina criou o Museu Virtual da Me-dicina (www.museuvirtual.medicina.ufrj.br), um proje-to para disponibilizar na Internet as obras e o passado da faculdade. “Criar um museu da Medicina da UFRJ era um desejo antigo da faculdade. Como nosso acervo está disperso e composto de itens muito variados, optamos pelo museu virtual”, explica a professora Diana Maul, uma das idealizadoras do projeto do museu.

Além de conhecer obras e documentos antigos relacio-nados à história da instituição, é possível, ao visitante, um passeio virtual pelo antigo prédio da Praia Vermelha, que foi “reconstruído” com base em fotos e imagens antigas.

Segundo Diana, a proposta é aumentar o acervo gradativamente. Para Ana Borralho, a idéia é excelente e caminha para manter acesa a chama do passado: “nós, que adoramos essa instituição, costumamos preservar tudo o que é nosso. Por isso a idéia do Museu Virtual é ótima”, comemora a professora.

“Imagino que a criação do museu virtual reconstrói o prédio em um outro plano, em um plano que ele não preci-sa estar em lugar nenhum, mas está em todo lugar”, come-mora Diana Maul.

Universidade

Em 1813 tornou-se necessário o desdobramento das disciplinas e, com a falta de espaço no Morro do Castelo, algumas das aulas passaram a ser ministradas na Santa Casa de Misericórdia, situada próximo ao morro, que na época possuía instalações precárias. Contudo, durante a administração de José Clemente Pereira (1787-1854) um programa de remodelação do hospital fez com que as aulas voltassem para o Colégio dos Jesuítas, disputado pelos professores que utilizavam suas instalações e pelos militares que nele tinham seu hospital.

Após mais de 10 anos de criação dos cursos de me-dicina, em setembro de 1826, a autorização de emissão de diplomas foi passada à direção da escola. O ato – D. Pedro I transferindo, ao então diretor da Faculdade de Medicina, Vicente Navarro de Andrade (Barão de Inhomirim), o Decreto-Lei que autorizava a formação de cirurgiões e médicos, assim como a expedirem diplomas e certificados – está representado em um quadro pintado por Araújo Porto Alegre (poeta, pintor, professor, jornalista, diplomata e teatrólogo). A tela encontra-se no Salão Nobre da faculdade, no campus da Ilha do Fundão.

Esse foi o primeiro passo para a reformulação do ensino médico e para a criação da Sociedade de Medi-cina do Rio de Janeiro, em 1829, fato esse que elevou os cursos à condição de faculdade, em 1832. Segundo Doyle Maia, sob esse novo regime a escola pôde come-çar a conferir títulos de doutor em medicina, farma-cêutico e parteira, assim como reconhecer os títulos obtidos em escolas estrangeiras.

Com isso, foi necessário reorganizar a estrutura da faculdade, começando pelo ingresso de estudantes, que passou a ser mais exigente. Antes era preciso que o candidato mostrasse saber ler e escrever. Com o novo regime, foi necessária a fluência nos idiomas inglês e francês. Mais adiante, em 1832, os candidatos deveriam prestar exames para o curso médico (francês, inglês, latim, história e geografia, filosofia racional e moral, aritmética, geometria e álbebra); para o curso famarcêutico (francês, aritmética e geometria); e para o curso obstetrício (leitura e escrita, as quatro operações e francês).

A conquista da sedeAinda funcionando no Hospital Militar no Morro

do Castelo e na Santa Casa, a faculdade lutava por um espaço próprio. Durante anos foi trocando de lugares até que, em 1856, mudou-se para o prédio que ocupa-ria por muitos anos. Prédio esse, construído em 1740, em sua primeira versão pertencente à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, onde funcionava o Re-colhimento das Órfãs, que 100 anos mais tarde, 1850, foi julgado inapropriado para o fim a que se destinava: o de abrigar órfãs.

Com o prédio vazio, surge a oportunidade esperada pela faculdade. A Santa Casa o cede após a desocupação pelas órfãs. Feita a mudança, os anos seguintes foram difíceis. Sem nenhuma adaptação, o funcionamento da faculdade se dava em condições precárias. Tal situação provocava a reação de professores e alunos. Memórias históricas da época reportam protestos da Congregação contra a impropriedade das instalações.

Nesse lugar a faculdade permaneceu durante quase um século. Com o aumento do número de alunos e a

insuficiência das instala-ções, em maio de 1916 foi firmado, entre a direção da faculdade, que tinha como diretor Aloysio de Castro (1915-1925), e o ar-quiteto Januzzi, o contrato de construção do novo edifício. O projeto do en-genheiro português Luiz de Moraes Junior previa a construção de três edi-fícios, baseada em plano indicado e orientada pelo médico sanitarista Oswal-do Gonçalves Cruz.

Concretizando um so-nho de quase 100 anos a Faculdade de Medicina inaugura seu prédio em outubro de 1918. “Ele era um marco da estabilidade

da faculdade, além de ser um projeto arquitetônico de relevância”, relembra Diana Maul, professora do De -partamento de Medicina Preventiva da faculdade e do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva (Nesc).

Ana Borralho faz coro a Diana, lembrando que sua turma foi a última a se formar no prédio, em 1964, já na época da mudança para o campus da Ilha do Fundão. Quem também lá estudou, de 1961 a 1966, foi o atual diretor da faculdade, que recorda da convivência e da vida acadêmica com carinho. “Era uma época em que as turmas eram muito cheias e mesmo assim a gente conhecia todo mundo. Íamos para a Praia Vermelha mesmo depois das aulas práticas, que ocorriam em hospitais como o Miguel Couto e o Hospital Escola São Francisco de Assis”, rememora Valladares, que ainda lembra de dois funcionários que eram considerados símbolos daquela época e reconhecidos por todos que lá estudaram: “o Magalhães, que trabalhava na portaria, mas parecia um diplomata por conta do seu porte e desenvoltura, e o Gonçalves, um barbeiro que tinha um salão no prédio. Os dois já faleceram, mas com certeza até hoje muitos lembram deles”.

As recordações de Doyle Maia também são inúme-ras. Ele, que começou a estudar no prédio na época dos cursos complementares, antes mesmo de ingressar para a faculdade, e se formou em 1937. O livro por ele escrito é uma tentativa de preservar a memória de uma época e da escola.

O fato da inauguração do novo edifício foi um mo-mento de grande importância para a comunidade aca-dêmica e até mesmo para a sociedade carioca daquela época. O Jornal do Commercio (sic), de 13 de outubro de 1918, alardeava assim: “foi um acontecimento de alta significação, uma grande festa da cultura brasileira à qual o elemento oficial e o mundo científico e literário emprestaram seu aplauso, comparecendo à cerimônia revestida de grande e merecido brilho”.

Era um sábado da primavera de 1918. Dia que insis-tia em ser agradável, ensolarado, de céu azul, mesmo que a meteorologia anunciasse tempo nublado, com chuvas e trovoadas.

Os jornais, segundo Doyle Maia, em seu livro, noti-ciavam a “ocorrência de numerosos casos de influen-za na cidade”, sem que se dessem conta da epidemia que mataria cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo. Era a gripe espanhola. Da mesma forma, as notícias registravam “vitórias dos aliados em todas as frentes, prenunciando o fim da guerra”. Mas a notí-cia de destaque mesmo, neste dia, pelo menos para as comunidades médica e científica brasileiras, foi a inauguração, finalmente, do prédio da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, “con-cretizando o sonho de professores e estudantes por 110 anos, que desde a criação dos primeiros cursos de ensino médico, em 1808, sonhavam com instalações próprias e condignas”.

Gerações viam, nessa manhã do dia 12, suas aspira-ções sendo materializado: um “belo e imponente pré-dio que destacava-se (sic), contrastando com as ver-tentes rochosas que faziam fundo à paisagem, e que seria inaugurado à tarde”. Nessa tarde, ainda ensola-rada e de céu azul, em que – não obstante a “espanho-la” ou a grande guerra – defronte à Escola de Guerra Naval, professores, estudantes e funcionários, atarefa-

Museu Virtual

dos, “movimentavam-se para receber os convidados que chegavam, a maioria de fraque e cartola”. O local já estava repleto e a todo o momento chegavam mais pessoas que eram conduzidas ao Salão Nobre, onde se realizaria a sessão inaugural com a presença do presi-dente da República, Wenceslau Brás. E a inauguração assim foi levada a feito.

Lembrança de uma época queridaAmantes da Faculdade de Medicina da Praia Ver-

melha, alunos e professores passaram cerca de 50 anos no prédio, quando em 1973 cumpre-se a determinação de mudança da faculdade para a Cidade Universitária, na Ilha do Fundão, uma vez que o prédio tinha sido vendido à Eletrobrás. Doyle Maia escreve que “cami-nhões pararam na mesma porta que receberam os con-vidados e caixotes são transportados levando para as novas instalações da Ilha do Fundão tudo o que, numa pressão inexplicável, pode ser transportado. Tudo, menos a tradição e o amor de gerações”. Depois disso, o prédio foi demolido e hoje, o terreno pertence à Uni-versidade do Rio de Janeiro (Unirio) e transformou-se em um grande estacionamento com uma unidade da instituição, ao fundo.

Segundo contam ex-professores e ex-alunos da-quela época, o trabalho de demolição foi atrapalhado por alunos que apareciam todos os dias na tentativa de retirar objetos a título de recordação. Doyle Maia lembra que na época um médico, que ia comemorar 50 anos de formado, foi à demolição e comprou um pedaço de azulejo que dividiu pelo número de alunos de sua turma e os entregou como lembrança de uma época querida. “O impressionante é que ninguém se levantou contra a demolição. Deveríamos ter tentado o tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da mesma maneira que ocorreu com o prédio da Faculdade de Direito, por exemplo”, avalia Doyle Maia.

Hoje a faculdade ocupa salas do Centro de Ciências da Saúde (CCS), do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e de outras unidades de saúde da UFRJ.

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Rodrigo RicardoIlustração Jefferson Nepomuceno

Joana Jahara

Os caminhos para despertar os interesses são amplos. O Palco da Ciência é o espaço de motivação, reflexão e atuação dos grupos de artes cênicas e música. Em cena, história, filosofia, química, física, arte, e outros, tecem a rede de relações que conduzem o espetáculo. A série Ciência para Poetas apresenta ciclos de palestras com temas atraentes e intrigantes; No Ciência por aí, o projeto é baseado na linguagem audiovisual, que se propõe a trabalhar questões relacionadas à comunicação, à educação e à divulgação científica. A série Terra Incógnita busca a reflexão, através da edição de quatro livros já publicados, sobre o significado atual da divulgação científica. As exposições são as maiores atrações da casa, porque o visitante é seduzido pela beleza plástica e pela possibilidade de entrar em contato com um mundo novo, onde é o personagem principal.

“Há um esforço muito grande dos centros de ciências brasileiros e internacionais em aproximar a ciência do público”, avisa Maria do Socorro Moura, assessora de imprensa da Casa da Ciência. O distanciamento se deve ao pré-conceito arraigado em crianças, em jovens, em adultos e em idosos, de que a área de exatas só pode ser entendida por quem a estuda. “Nossa proposta é ligar os fenômenos científicos ao cotidiano, porque a ciência está presente no dia-a-dia, mas não nos damos conta disso”, afirma.

A visita a uma exposição dura em média uma hora e meia. O público alvo, como enfatiza a assessora, é toda a população. Os monitores são alunos da UFRJ ,e a abordagem segue as orientações das faixas etárias e do nível de escolaridade, os palestrantes são pesquisadores, da universidade e de outras instituições convidadas.

Os temas propostos surgem em parcerias. “Trabalhamos em conjunto com especialistas do determinado tema para que nos dê suporte científico. é necessário, porque precisamos nos apropriar do assunto para elaborar a nossa exposição. Muita gente nos procura para apresentar novos projetos. O que fazemos é dar vida ao conceito”, diz Maria do Socorro. O intercâmbio entre os Centros também é comum. “Exposições da Fiocruz, do Sesc, do Museu Paraense Emílio Goeldi e da Estação Ciência da Universidade de São Paulo, por exemplo, já foram apresentadas aqui”, completa.

No trabalho de divulgação, o material distribuído busca novas linguagens através da criação de formas interativas que podem ser dobraduras, janelas que se abrem, aquarelas com tinta e pincel, espelhos para que se leiam as informações em letras invertidas, tabelas periódicas, móbiles, palcos para serem montados, entre

A obra de arteda ciência

Editada pela Casa da Ciência, os quatro volumes da série Terra Incógnita, publicada pela Editora UFRJ, tem como objetivo explorar novos temas e enfoques. São textos sobre divulgação científica, seus impasses e seus dilemas. São eles:

Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil — contempladas suas estra-tégias e funções, bem como a forma como o conceito de ciência é construído junto ao público. Tem 28 artigos, depoimentos e entrevistas sobre a prática da divulgação científica.

A divulgação da ciência como literatura — a prática surge com a própria ciência ou como conseqüência posterior de seu crescimento? Para quem se divulga? O que faz com que um texto de divulgação seja bem-sucedido? Como esses textos são recebidos pelo leitor? O livro estabelece um paralelo instigante entre o texto de divulgação científica e a literatura.

O pequeno cientista amador — experiências educacionais vêm demonstrando que o público infantil tem grande capacidade de lidar com temas da ciência. A questão é: temos explorado adequadamente essa capacidade infantil? O conteúdo científico transmitido para crianças é de baixa qualidade e apresentado de forma inadequada.

Terra incógnita — A interface entre ciência e público. Controvérsias sobre as novas tecno-logias tornaram-se questões importantes nos dias de hoje, em particular sobre seus impactos para a resolução, ou não, dos grandes problemas da humanidade. Nos últimos anos, houve um surgimento internacional de preocupação com as relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade. Mas, pouco se conhece dessa Terra Incógnita.

1998 – Menção honrosa do Prêmio Mercocidades de Ciência e Tecnologia em Mon-tevidéu;

2000 – Prêmio de Difusão Científica Cidade do Rio de Janeiro;

2002 – Selo Rio Faz Design, prêmio de melhor design na categoria instituições públicas;

2004 – O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível, da GRES Unidos da Tijuca. Enredo desenvolvido em parceria com o carnavalesco Paulo Barros, o que resultou no vice-campeonato no Grupo Especial e a obtenção do Estandarte de Ouro de Melhor Enredo de O Globo.

Rua Lauro Müller, 3 Botafogo - Rio de Janeiro - RJ - CEP 22290-160.Telefax (21) 2542-7494

E-mail: [email protected]: http://www.casadaciencia.ufrj.br/

Como contatar a Casa da Ciência

Série Terra Incógnita

Premiações recebidas pelaCasa da Ciência

Unir ciência e arte, pólos usualmente tão opostos, com o objetivo de aproximar, lúdica e divertidamente, as pessoas das concepções científicas é um dos desafios do Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ – a Casa da Ciência. Além disso,

debate sobre as diferentes áreas do conhecimento faz parte do cotidiano dos 10 anos de existência do Centro Cultural.

Universidade

fotos Gabriela d’Araújo

Na Casa da Ciência o público encontra várias atividades tais como visitas guiadas a exposições e palestras

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 21

Universidade

Graças ao formato digital, as enciclopédias deixaram de ocupar lugar nas estantes. A mudança não fica apenas por aí. Envolve também a maneira de elabo-ração e acesso. A Wikipedia (www.wikipedia.org) é uma enciclopédia online, gratuita, livre e que con-vida o internauta a modificar seu conteúdo e colaborar para torná-la mais extensa.

Fundada em janeiro de 2001 por Jimmy Wales e Larry Sanger, tendo origem no projeto Nupedia, ela é gerida e operada pela Wikipedia Foundation – organização sem fins lu-crativos que recebe doações para manter o site. Cinco anos depois, ela reúne informações em mais de 200 idiomas e mais de 60 milhões de acessos diários. Segundo Wales, existem aproximadamente dois mil voluntários que ajudam na elaboração dos artigos que formam a coluna dorsal da Wikipedia.

Geraldo Xexéu, professor adjunto do Departamento de Computação do Instituto de Matemática e pesqui-sador do Programa de Engenharia de Sistemas e Com-putação, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-gra-duação e pesquisa em Engenharia (Coppe), ambos da UFRJ, acrescenta que o tamanho da enciclopédia virtual é significativo, chegando a ultrapassar as tradicionais. “A Britânica na Internet, que inclui 14 enciclopédias, por exemplo, possui 124 mil artigos. Já a Wikipedia, em inglês, contém mais de 780 mil e a versão em português tem quase 80 mil. Todos em progresso, pois são cons-tantemente editados”, compara o professor. E os temas são os mais variados possíveis, indo de nanotecnologia e biografias ao escândalo da crise política brasi-leira, que ganhou artigo em francês.

O que diferencia e garante o sucesso da enciclopédia? A resposta não está apenas na quantidade de textos, mas também no seu modelo de funciona-mento. A enciclopédia usa o software wiki – termo havaiano que significa ligeiro –, ou seja, uma rede de páginas web que pode ser modificada por qual-quer pessoa, transformando o simples leitor em um “wikipedista”, colaborador do projeto. Cada usuário pode assumir vá-rias funções, como escrever e traduzir artigos, corrigir falhas e erros ortográficos. Assim, qualquer pa-lavra ou expressão nova ganha rapidamente um artigo aperfeiçoado. Diogo Moreno, estudante do 8º período de Ciência da Computação da UFRJ, diz que esse é um espaço virtual onde a liberdade não tem limites: “é a primeira sociedade anárquica que conheço e que efetivamente funciona”.

Giuliano Bonorandi, estudante do 9º período da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), acredita que a

WikipediAI n fo r m a ç ã o p a r a t o d o s

Por definição, uma enciclopédia é qualquer obra que abrange todos os ramos do conhecimento, podendo ser genérica ou específica. Esse termo que foi usado pelo filósofo francês Denis Diderot, ao organizar a famosa “Encyclopédie”, no século

XVIII, hoje parece ter encontrado no ciberespaço um público privilegiado.

o texto foi corrigido e o usuário vândalo identificado”, relembra Moreno.

Giuliano Bonorandi concorda. Segundo ele, muitos questionam a validade das informações do site, mas a prática mostrou que não é necessária qualquer legiti-mação. “Tudo é de todo mundo e nada é de ninguém. Esse sistema é baseado no software livre onde o código fonte aberto permite que todo mundo analise, distribua, modifique e aperfeiçoe o software. Assim, caminhamos para um alargamento do conhecimento e da cultura”, explica Bonorandi.

Porém, essa opinião não é compartilhada por todos. Márcia Pereira, recém formada pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), conhece a enciclopédia pelas pesquisas que faz em sites de busca e acredita que a qualidade do conteúdo não seja das melhores. “Por se tratar de uma enciclopédia, são muitos os assuntos abordados e acaba não se aprofundando ou se especiali-zando em nenhum”, critica. Esse é, aliás, um problema

das enciclopédias.

Iluminismo na InternetQuando Diderot editou a “Encyclo-

pédie”, composta de 35 volumes, sua pretensão era a tradução, para o francês, do “Dicionário Universal de Ciências e Artes”, de Ephraim

Chambers, publicado na Inglaterra, em 1743. Contudo, a maneira inovadora

para agrupar os assuntos – dividindo o conhecimento através de índices – e a

presença de colaboradores como Voltaire, Rousseau e Montesquieu fizeram com que a obra

ganhasse o mundo. Para o professor Guilherme Castelo Branco, do IFCS,

a obra de Diderot formava um conjunto limitado de ver-betes, mas capaz de refletir a realidade daquele momen-to. Ele explica ainda que o Iluminismo era uma época de luzes, em que se acreditava na universalidade da razão. “Agora, vivemos na pós-modernidade, com os discursos fragmentados e recortados. E por isso, não podemos mais sequer ter uma idéia de enciclopédia, mesmo com toda a interatividade. Isso porque não se consegue dar conta das contradições existentes nos verbetes, por exemplo”, analisa o professor.

De volta ao papelA Wikipedia prega que a informação pu-

blicada seja completamente neutra e para isso seus artigos não devem ser assinados, buscando a máxima imparcialidade dos autores. E para cumprir com maior êxito a sua missão de “criar e distribuir uma

enciclopédia gratuita a cada pessoa no planeta, em sua própria língua”, as infor-

mações da Wikipedia estarão disponibilizadas em uma versão impressa para leitores em países

em desenvolvimento ou que não tenham ainda acesso à Internet. Espera-se que uma primeira versão impressa esteja pronta já no ano que vem.

Wikipedia representa uma das novas formas de gerar conhecimento no século XXI. “Agora, em vez de o co-nhecimento ser gerado por acadêmicos e jornalistas,

por exemplo, ele é produzido e acessado pela esfera pública”, analisa.

Sinônimo de anarquia ou não, o fato é que a Wikipedia parece que

veio para ficar.

Ataques e saídasComo toda liberdade traz

consigo conseqüências, no caso da enciclopédia virtual, por ser

escrita pelos usuários e não ter conselho editorial, deturpações,

erros ou mesmo “cibervandalismo” podem acontecer. Exemplos não fal-

tam, como o caso do ataque de neona-zistas que invadiram a enciclopédia para

difamar Simon Wisenthal, conhecido caçador de nazistas, que faleceu em 20 de setembro, em Viena (Áustria).

Para tentar controlar essas ações, os mantenedores contam com os “wi-kipedistas” que “garimpam” os me-lhores verbetes, criando o que eles chamam de “darwinismo editorial”. Outra aposta é um novo software, que será adotado a partir do ano que vem e que permitirá, nas páginas muito visitadas, um atraso na visualização das alterações para que membros da comunida-de possam revisá-las com cuidado.

Para Geraldo Xexéu, como qualquer um pode edi-tar os verbetes, os erros são rapidamente corrigidos, a informação faltando é rapidamente preenchida e a errada, corrigida. “E isso ocorreu comigo. Por

motivos pessoais, f iquei interessado em um tema que não era coberto pelo site.

Peguei uma pequena pesquisa que tinha feito e expliquei o tema. Dois dias depois o artigo já tinha sido reescr ito de forma muito mais completa, porém, contendo um erro factual que corrigi. Esse é o

cenário ideal onde a Wikipedia se baseia”, conta o professor.

Segundo o estudante Diogo Moreno, geralmente

os usuários que escrevem na Wikipedia f izeram algum

trabalho a respeito do tema, ou têm informações úteis acerca do assunto, mas nem sempre os dados estão corre-tas, como exemplificou Xexéu. “Uma vez encontrei um texto sobre Jonathan Swift que continha obscenidades. Mas também foi o único lugar em que encontrei referência dos partidos políticos da época no trabalho de Swift. Fui conferir agora e há uma anotação na página de discussão que

Rafaela Pereira

Tecnologia

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22 Dezembro•2005UFRJJornal da

CulturacaiuRodrigo Ricardo

Oito países de quatro continentes diferentes, que so-mam cerca de 210 milhões de habitantes, têm um traço em comum: a língua. Longe de querer se intrometer no português falado em situações culturais diversas, o Pro-jeto de Ortografia Unificada entre a chamada comunida-de lusófona (Brasil, Portugal, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor Leste) navega a oceanos de distância de um consenso, de um porto seguro, para se concretizar.

Desde a última tentativa de acordo, já se passaram 15 anos. Na ocasião, próximo ao Natal, ministros de Educação e da Cultura de sete nações apertaram as mãos em sinal de cooperação. Durante este período, o grupo ganhou mais um companheiro vindo do sudeste asiático, o Timor Leste, após a conquista de sua inde-pendência em 2002. O assunto corre o risco de esque-cimento, como reconhecem os próprios responsáveis pela elaboração da proposta – a Academia Brasileira de Letras (ABL) e a Academia das Ciências de Lisboa (ACL) – que desconhecem em que situação política efetivamente se encontra o caso.

Destinos políticos“Ao que tudo indica, o tema se concentra nas esfe-

ras do Ministério das Relações Exteriores e do Itama-raty. Pelo que as minhas fontes indicam, após a visita do presidente Lula à África, apenas três países teriam assinado o novo tratado”, informa Evanildo Bechara, filólogo da Academia Brasileira de Letras (ABL), que identifica nas críticas sofridas pela proposta de 1990 – vindas não só de setores acadêmicos, mas de toda a sociedade – como um dos motivos do fracasso. “Há uma confusão entre Língua e ortografia. O que discuti-mos é o segundo ponto, uma convenção que nada mais é do que uma roupa colocada na fala. A importância da reforma é que ela pode influir os destinos políticos da Língua e em sua difusão pelo mundo”.

Segundo o acadêmico, tanto portugueses quanto brasileiros precisam ceder; diz isso, defendendo uma atitude semelhante ao espanhol, que obedece a uma ortografia única, seja no México, Argentina ou Chile. “Os países africanos delegaram, não oficialmente, esta questão à Portugal, devido à grande influência cultural e econômica lusitana nas antigas colônias. Precisamos fazer uma reforma que não invada o terreno das varie-dades, reduzindo os acentos diferenciais que continu-ariam vivos nos hábitos lingüísticos das populações de cada região”.

Reforma inócuaPara a professora titular de Língua Portuguesa, do

Departamento de Letras Vernáculas da UFRJ, Dinah Callou, o processo já começou equivocado, de cima para baixo, através de um acordo entre ministros.

“é uma reforma inócua; um tema sem poder de mobilização, pois quinze anos depois continua no mesmo lugar. Não há funcionalidade nenhuma nesta discussão que se torna ainda mais irrelevante diante do analfabetismo. Energias e esforços deveriam estar sendo dispensados para reverter este grave quadro social e político”, analisa Callou.

História e aspectos comerciaisEm 1931, ocorreu o primeiro acordo entre a ABL e

a ACL sobre a ortografia da língua comum, restrito às repartições públicas e aos estabelecimentos de ensino. De lá para cá, foram várias propostas de acordo com idas e vindas ao sabor das ondas políticas. O mais recente (1990) está centrado numa tentativa fracassada há 45 anos, devido às reações contrárias. O que está em vigor é o de 1943, acrescido da reforma em 1971 que reduziu os acentos diferenciais.

Se acontecer a padronização da ortografia, o fato deverá acarretar um custo considerável, por conta da necessidade de reformulação de todo o material editado

O fato (ou facto?) é que a reforma ortográfica – ou

a unificação da Língua

Portuguesa – corre o risco do

esquecimento.Distante da

realidade, perde-se em meio a uma

torre de babel

Letras mudas – Desaparecem da língua escrita, em Portugal, o “c” e o “p” nas palavras onde não é pronun-ciado. Exemplos: acção, acto, actor, actual, electricidade, inspector, exacto, colectivo, direcção, abjecção, adopção, baptismo, óptimo, Egipto. Permanecem em palavras como secção, compacto, convicto, egípcio, apocalipse, rapto, óptica.

Dupla grafia – É consagrada a dupla grafia para palavras escritas e pronunciadas de maneira diferente em Portugal e no Brasil. Exemplo: aspeto, e aspecto, caracter e cará-ter, facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, amnistia e anistia, indemnizar e indenizar, dição e dicção, corruto e corrupto.

Dupla acentuação – É aceita a dupla acentuação para as palavras que têm acento circunflexo no Brasil e agudo em Portugal. Exemplo: bebê e bebé, bidê e bidé, crochê e croché, matinê e matiné, fêmur e fémur, ônus e ónus, tênis e ténis, Antônio e António, acadêmico e académico, anatômico e anatómico, cômodo e cómodo, efêmero e efémero.

Acento agudo – Caem os acentos agudos nas paroxítonas que têm “ei” na sílaba tônica: assembléia, idéia, boléia, passam a assembleia, ideia, boleia.

Principais pontos da reforma

Reforma ortográfica

no ostracismoem língua portuguesa, que vão dos livros impressos às versões informatizadas. Muitos também acreditam num favorecimento aos lusitanos no campo editorial, já que o Brasil seria um potencial mercado de 170 milhões de leitores, enquanto Portugal não chega a um décimo deste número.

Para Bechara, o lado comercial não está no cerne das discussões. “Não descarto esta questão, mas não é por isso que os portugueses não vão ler os brasileiros e vice-versa”. Destaca ainda que o analfabetismo e a reforma são fronteiras diferentes e pensa que os campos de luta de ambas devem seguir juntas; concluindo que “em matéria de cultura, não há setor prioritário”.

Acento diferencial – Caem os acentos diferenciais para as palavras homófonas. Exemplo: “pára” do verbo parar e “para” preposição; “pêlo” substantivo e “pelo” contração; “pólo” subs-tantivo e “polo” forma arcaica ou regional da contração.

Acento circunflexo – Caem os circunflexos das paro-xítonas terminadas em “o” duplo: abençôo, enjôo, vôo passam para abençoo, enjoo, voo.

Hífen – Permanece o hífen antes das palavras que co-meçam com “h”, como anti-higiênico, pré-histórico, anti-heróico e antes das palavras que comecem com a última letra do prefixo, como em contra-almirante, hiper-resistente, pré-escolar, anti-imperialismo. Cai, em Portugal, o hífen em palavras formadas com os prefixos “de” e “in”, mesmo nas que começam por “h”: desumano, desidratado, inábil, inumano.

Trema – Desaparece o trema: lingüiça, seqüência, freqüência, qüinqüênio, passam a linguiça, sequência, frequência, quinquênio.

Alfabeto – As letras “k”, “w” e “y” passam a ser oficial-mente incorporadas ao alfabeto da língua portuguesa. Os dicionários já registram essas letras; os países africanos possuem muitas palavras escritas com elas.

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Dezembro•2005 UFRJJornal da 23

Para ler

Bruno Franco

A biblioteca – cujo acervo foi adquirido pela UFRJ – era uma coleção particular formada por Afrânio Coutinho em sua produção como intelectual, escritor e professor. Em 1979, Afrânio decidiu abrí-la ao público, e criou um centro de estudos, o qual chamou de Olac (Oficina Literária Afrânio Coutinho), que funcionou por 13 anos em sua casa em Ipanema.

A Olac desempenhava diversas atividades, tais como consulta à biblioteca, não só de literatura, mas de crítica literária, teoria literária, sociologia, política, estudos culturais, história e filologia.

A primeira atividade da Olac foi a pesquisa biblio-gráfica. Ao longo desses 12 anos, foram promovidos diversos cursos, desde filosofia até música popular. De acordo com Eduardo Coutinho, filho de Afrânio, professor da Faculdade de Letras da UFRJ, “a marca principal desses cursos era a Oficina de Criação Lite-rária. Havia laboratórios de poesia, de narrativa, con-to, romance e roteiro”, destaca o professor.

Na Olac, foram organizadas numerosas publicações, dentre as quais, as Obras completas de Raul Pompéia e a Enciclopédia de Literatura Brasileira (no início da década de 1990, a segunda edição atualizada foi publicada por Graça Coutinho, também filha de Afrâ-nio). “A Enciclopédia inclui tudo o que estava ligado à vida literária do país, com verbetes até mesmo para grêmios literários e personagens de romances”, enfatiza Coutinho.

A partir de 1992, a Olac enfrentou dificuldades fi-nanceiras, bem como o adoecimento de seu idealizador. A biblioteca foi fechada, e Afrânio acabou falecendo em 2000. Com o intuito de preservar o legado do pai, Eduardo Coutinho encaminhou um projeto à Funda-

ção Vitae, que é voltada justamente à preservação de patrimônio histórico.

Com o apoio da Vitae, foi criada uma ala na Facul-dade de Letras e 80% do acervo foi incorporado à bi-blioteca da faculdade, onde foi catalogado e o restante, alocado em uma sessão especial, junto com as obras raras, onde também está reproduzido o ambiente de trabalho de Afrânio. Foi nesse contexto que Eduardo Coutinho criou o Centro de Estudos Afrânio Coutinho (Ceac), com o intuito de dar continuidade ao trabalho desenvolvido na Olac. “Eu não mantive o nome, pois embora o trabalho a ser desenvolvido fosse o mesmo, o momento histórico era outro”, esclarece o professor.

O Ceac foi inaugurado no dia 15 de março passado (data de aniversário de Afrânio). A vice-coordenadora do Ceac, Eleonora Ziller, destaca que desde então, o Centro obteve, junto à Pró-Reitoria de Graduação (PR-1), 20 bolsas de Iniciação Artística e Cultural. “Tra-balhamos na catalogação e preservação desse acervo (livros, fotos, mobília), visando reconstituir a história da Oficina Literária”, esclarece Eleonora.

O centro, apesar de sua formação recente, conta com diversos projetos em andamento: a organização de uma publicação de cartas de Machado de Assis; uma publi-cação sobre a história da Olac; uma foto-biografia do professor Afrânio Coutinho; bem como a continuidade de projetos da Olac, como a coleção Fortuna Críticas (série de volumes, cada um voltado a um autor da literatura brasileira, reunindo textos, anteriormente dispersos). Há também a intenção – para os próximos anos – de atualizar a Enciclopédia da Literatura Bra-sileira, e de publicar as Obras Completas de Afrânio Coutinho.

Eleonora Ziller destaca que o Ceac prepara ainda novos projetos e convênios, visando à celebração de seu primeiro aniversário, em março de 2006.

CEAC, a preservação de uma história

A Faculdade de Letras (FL) da UFRJ mantém viva memória de um dos maiores críticos literários do Brasil. Sob a supervisão de seu filho, e também professor da FL, Eduardo Coutinho, o Ceac – Centro de Estudos Afrânio Coutinho – preserva

a biblioteca, bem como o pensamento, de seu emérito professor

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ndes

A formação da antropologia americana, Franz Boas. Editora UFRJ e Contraponto, 2004, 424 páginas.

O nome de Franz Boas ocupa um lugar de destaque na forma-ção da moderna antropologia cultural americana no início do século XX. Em uma época em que ela significava, quase sempre, investigação das características biológicas dos povos, o trabalho de Boas deslocou radicalmente o foco da disciplina para o da cultu-ra. Religião, arte, história, lendas, costumes, línguas e tradições tornaram-se então objeto privi-legiado de meticulosa observação científica. Como resultado do seu trabalho, oferecerá uma contun-dente crítica do evolucionismo e da noção de raça e ajudará a forjar

o importante conceito de etnocentrismo. A antropologia começava a ganhar a face com que nos acostumamos a reconhecê-la.

Franz Boas (1858-2942) nasceu em Minden, na Alemanha, no seio de uma família judaica liberal influenciada pelos ventos democráticos da Revolução de 1848. Doutorou-se em física pela Universidade Kiel em 1881 e parecia votado a uma carreira nas ciências exatas, quando passou a freqüentar as reuniões da Socie-dade Antropológica de Berlim. Foi em uma viagem para Baffinland, Alasca, com a intenção de escrever um livro sobre psicofísica, que Boas vivenciou entre os esquimós a sua primeira experiência de campo, o que foi determinante para a mudança definitiva de seu interesse acadêmico. Imigrou mais tarde para os Estados Unidos onde desenvolveu a maior parte de sua obra. Primeiro professor de antropologia da Universidade de Colúmbia teve – o que não deixa de ser curioso para nós – entre seus alunos Gilberto Freire, que o saúda no prefácio de Casa Grande e Senzala.

Apenas agora sua extensa obra começa a chegar aos leitores brasileiros. George W. Stocking Jr., importante estudioso da His-tória da Antropologia, organizou e redigiu os textos introdutórios dessa antologia que reúne 48 trabalhos de Franz Boas, divididos em dez partes: as premissas da antropologia de Boas, pontos de vista antropológicos básicos, uma amostra do trabalho de campo de Boas, o folclore e a crítica ao evolucionismo, o estudo analítico da língua, a crítica ao formalismo na antropologia física, capaci-dade racial e determinismo cultural, panoramas antropológicos, a difusão da antropologia e, finalmente, antropologia e sociedade. A seleção, segundo seu organizador, “tenta apresentar Boas no seu contexto e no seu apogeu; tenta apresentá-lo na sua totalida-de”. É a mais completa edição dos textos de Franz Boas até hoje publicada em língua portuguesa.

Conhecimento, sistemas de inovação e desenvolvi-mento, Helena M. M. Lastres, José E. Cassiolato e Ana Arroio (organizadores). Editora UFRJ e Contra-ponto, 2005, 452 páginas.

Resultado de um esforço coletivo dos pesquisadores da Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos (Rede-Sist), a obra, – que faz parte da Coleção Economia e Sociedade da Editora UFRJ e tem orelha de Aloísio Teixeira, reitor da UFRJ, e contracapa de João Sabóia, di-retor do Instituto de Economia da UFRJ –, oferece um conjun-to abrangente de interpretações sobre as transformações em curso na produção, a partir da emergência de um novo padrão de acumulação, da aceleração dos processos de globalização, da crescente financeirização das economias e dos novos contextos macroeconômicos. Ao todo são recolhidos treze artigos elaborados para projetos desenvolvidos pela RedeSist, sendo que grande parte deles tem o intuito de com-preender os desafios específicos vividos pelos chamados países menos desenvolvidos e permitir, a partir daí, a elaboração de po-líticas e instrumentos adaptados a suas realidades.

Com base em diversas trajetórias teóricas, os pesquisadores articulam o conceito central de Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (SPIL), entendido como “conjuntos de agentes econômicos, políticos e sociais, localizados em um mesmo território, desenvol-vendo atividades econômicas correlatas e que apresentam vínculos expressivos de produção, interação, cooperação e aprendizagem”. SPILs geralmente incluem empresas – produtoras de bens e serviços finais, fornecedoras de equipamentos e outros insumos, presta-doras de serviços, comercializadoras, clientes etc., cooperativas, associações e representações – e demais organizações voltadas à formação e treinamento de recursos humanos, informação, pes-quisa, desenvolvimento e engenharia, promoção e financiamento. O conceito foi criado e desenvolvido na Inglaterra, Dinamarca e no Brasil, durante a década de 1980.

A RedeSist é uma rede de pesquisa interdisciplinar, forma-lizada desde 1997, sediada no Instituto de Economia da UFRJ e que conta com a participação de várias universidades e institutos de pesquisa no Brasil, além de manter parcerias com outras insti-tuições da América Latina, Europa e Ásia. Eduardo Coutinho: A vida literária do país contida na Enciclopédia da Literatura Brasileira,organizada pelo Olac

Cultura

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24 Dezembro•2005UFRJJornal da

A cor, a imagem e a poética de Hélio Oiticica

A cor, a imagem e a poética de Hélio OiticicaA cor, a imagem e a poética de Hélio Oiticica

A cor, a imagem e a poética de Hélio Oiticica

Personalidade

Joana Jaharailustração Jefferson Nepomuceno

N ascido em 26 de julho de 1937, Hélio Oiticica é fruto de um berço rebelde. O avô, José Oiticica, escreveu O anarquismo

ao alcance de todos. Quando a polícia batia à porta, corria para esconder os livros no piano de cauda. O pai, José Oiticica Filho, cientista, pintor e fotógrafo, proibiu os filhos de cumprirem o serviço militar. O artista, pintor e escultor, Hélio, e seu irmão César, iniciam, em 1954, os estudos de pintura com Ivan Serpa, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, escreve seu primeiro texto sobre artes plásticas. A partir daí, o registro de suas reflexões sobre arte e sobre sua produção acaba se tornando um hábito.

Considerada uma das grandes expressões da arte

brasileira do século XX, a obra de Hélio Oiticica é

produto da explosão cultural nos anos de 1950

AntiarteEnéas diz que o próprio Oiticica definia suas

obras como antiarte e lembra que esse conceito é do dadaísta francês Marcel Duchamp. “Hélio estava ciente das mudanças artísticas no mundo. O dadaísmo, com sua crítica ao nazismo, o concretismo, no Brasil, e o surgimento do Pop Art, no final da década de 1950, tendência artística que

usa objetos e assuntos comuns como fontes de inspiração. Digo que ele foi um designer, porque não se limitou ao experimento somente na tela e na pintura”, analisa Valle.

Marcado pelo uso de formas geométricas e pela elaboração racional, o movimento Concretista foi criado pelo grupo paulista Ruptura, formado pelos artistas Haroldo de

Campos, Geraldo de Barros e Waldemar Cordeiro. No Rio de Janeiro, a crítica dos pressupostos da arte concreta dá origem ao Neoconcretismo. Aproximando-se da Pop Art e da arte cinética, elaboram obras de arte valorizando a luz, o espaço e os símbolos. São deste período, além de Hélio Oiticica, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape e Ivan Serpa. “O grupo

paulista teve uma ligação mais direta com a indústria, seja a de tecido,

a de móveis, entre outras. No

Rio, talvez pelo distanciamento maior da indústria, os artistas buscam um pensamento além da arte abstrata relacionada à indústria. O fundamental passa a ser a significação e os valores embutidos”, diz Enéas Valle.

O aprofundamento da cor, da luz, e o desejo de explorar sua ação, sua potência lógica, irrompem definitivamente na obra de Oiticica que se afasta completamente dos cânones tradicionais. Os Metaesquemas (1957–1958) indicam, pelo próprio nome, sua função: esquemas compostos pela relação forma e fundo, que adquirem pela cor, uma instabilidade gráfica. Nos Monocromáticos ou Invenções (1958-1959), desaparece a diferença entre pintura e suporte. O plano torna-se elemento ativo. Os Bilaterais e os Relevos Espaciais (1959) são superfícies de madeira pintadas, suspensas por fios presos ao teto. Os Núcleos (1960-1963) ampliam o problema da espacialização da cor e conceitos relativos à estrutura-cor ativa.

Dentre as obras de Oiticica, Enéas Valle destaca duas: Tropicália (1967), e Parangolés (1965). “A Tropicália é um marco na história da arte brasileira e mundial, porque ela põe em discussão uma série de coisas inéditas, como a instalação: conceito de um projeto de utilização do espaço não existia. Outra questão é a mudança na relação do espectador com a obra de arte. A fruição”, explica o professor.

Criado por Oiticica, o termo tropicália, apropriado em seguida por Caetano Veloso e Gilberto

Gil para o movimento de mesmo nome, resume uma

nova

postura. Viver

nos trópicos significa pensar

questões adequadas ao lugar. Sobre os

Parangolés, o professor acentua o impacto da exposição:

“foi um escândalo. Hélio levou passistas do morro da Mangueira,

vestidos com seus parangolés, para se apresentarem no coquetel de inauguração do

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM). Isso numa época onde o samba, apreciado por extratos sociais de níveis econômicos mais baixos e principalmente negros, era reprimido. Hoje, fica difícil visualizar isso, mas no início e meados do século passado, os padrões de comportamento eram ainda muito rígidos”.

No ano de 1980, Hélio Oiticica morre em conseqüência de um derrame cerebral. Na mesma época, a obra dele era ainda pouco conhecida, porém, como destaca Enéas Valle, a partir dos anos 1990, ela vem ganhando merecida notoriedade.

Um artista que desde o começo de sua carreira viveu transformações profundas na maneira como se pensava e se fazia arte. “Ainda na década de 50, a arte tradicional era muito visível e enfatizava a função simbólica, representativa, através das figuras e cenas pré-estabelecidas. Mas, a arte abstrata ganhava mais força e adeptos. Foi nessa década que a criação da Bienal de São Paulo e dos Museus de Arte Moderna trouxeram para a cultura brasileira uma produção de pintura e escultura que propunha a superação dos suportes tradicionais. é a busca por novos experimentos, da pura forma e da cor, com aplicações de imediato na necessidade industrial”, analisa o professor da Escola de Belas Artes da UFRJ, Enéas Valle.