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UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAIS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
ENTRELAÇOS DE FAMÍLIAS EM PROTEÇÃO SOCIAL: UMA
ANÁLISE (AUTO)BIOGRÁFICA DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO
EM UMA INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO NA BAIXADA
FLUMINENSE
ISABELLE GERMANO COELHO BEZERRA
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAIS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
ENTRELAÇOS DE FAMÍLIAS EM PROTEÇÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE (AUTO)BIOGRÁFICA DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO
EM UMA INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO NA BAIXADA FLUMINENSE
ISABELLE GERMANO COELHO BEZERRA
Sob a Orientação da Professora
Fabrícia Vellasquez Paiva
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Curso de Serviço
Social da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, como parte das
exigências para obtenção do título de
bacharel em Serviço Social.
Seropédica, RJ.
Abril de 2021
Dedico este trabalho a todos adolescentes em situação de acolhimento que conheci durante meu processo formativo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Silvan e Carla, por dentre todas as dificuldades de suas
trajetórias, terem feito sempre o melhor que puderam por mim. Sem vocês, eu não
seria metade do que sou. Essa conquista é nossa. Eu amo vocês.
Aos meus irmãos, que amo incondicionalmente, Junior e Gustavo principalmente
pela força inconsciente que me transmitiram sempre só pelo simples fato de
existirem como companheiros de jornada nessa vida.
Agradeço, em memória, à minha tia Hilda e ao meu tio Gilson. Se eu cheguei até
aqui hoje, foi porque vocês me abriram comigo esse caminho. Agradeço por todo
amor que me deram, que até hoje me servem como força para seguir em frente.
Ainda em memória, às minhas avós Lídia e Edna, por me apoiarem em tantos
momentos difíceis em que achei que não teria nada. Vocês são e sempre serão
exemplos de força e resistência para mim.
À minha orientadora e amiga Fabrícia, a quem não tenho palavras suficientes para
agradecer por todo suporte durante toda a graduação. Você se fez força, amor e
resistência em minha vida confirmando que a educação é sim, um ato de amor e
de coragem, como disse Paulo Freire. A você toda a minha admiração. Sempre.
À professora, companheira, Simone por todo esforço ao longo da graduação, por
se comprometer, juntamente com a Fabrícia, com um projeto de formação em
conformação com o projeto ético-político profissional. Que eu tenha a sorte de
encontrar, ao longo da minha trajetória, mais profissionais como vocês.
À professora e amiga Katia Tabai pela relação sincera que construímos e pelo apoio
e incentivos ao longo da minha formação. Sem você, que esteve comigo em
momentos tão difíceis, também não seria possível chegar até aqui.
Agradeço às minhas amigas, que são minha família por escolha: Rayssa, Bruna,
Sanny e Laísa e Raphael. Vocês dão mais sentido a minha vida. Que bom que
tenho vocês para seguir juntos.
Aos amigos de primeira turma por termos, dentro de todas as adversidades,
construído um caminho tão bonito e cheio de afetos na nossa formação profissional
e em especial à quem dividi grande parte dos meus dias, Caio, Manu, Isa, Vanessa
e Natacha.
Às minhas amigas do F4/106 que me acolheram de braços abertos e com quem dividi tantos momentos inesquecíveis. Em especial a Jenifer pela amizade linda e profunda que construímos. Ao meu amor, Isac, que sem nunca duvidar, me apoiou e apostou em mim e na minha formação. Que bom que te encontrei. Que bom poder compartilhar a vida com você. Te amo.
Agradeço a Deus, pelo presente da vida em que posso criar relações tão verdadeiras e cheias de amor que dão sentido a minha caminhada.
Malgrado não tenha ocorrido ainda celebra a possibilidade. Coloca algum tempo de lado para te centrares na promessa de que venha a ser possível (de que possa acontecer). Festeja a (a hipótese o cenário) celebra a expectativa de que venha a ser real. Antecipa a felicidade sobre a miséria dos dias pensar a possibilidade é ver um umbigo em Adão. João Luís Barreto Guimarães
RESUMO
O presente trabalho discute a proteção social na assistência social como direito às
famílias, orientado a partir de determinado momento histórico que define
constituição de famílias, mas sem deixar desapercebido as suas constituições
extensivas, colocadas além dos laços consanguíneos, ou seja, a partir construção
da afetividade e da confiança. Nesse sentido, tenciona, a partir da estrutura
societária mundial e da conjuntura sócio histórica brasileira, a implementação da
Proteção Social frente aos principais marcos legais do país a partir da Constituição
de 1988, que resultam na implementação da Assistência Social como política
pública nos anos 1990 e discute sua funcionalidade diante de classes sociais
antagônicas. A partir dessas discussões, pela análise (auto)biográfica dos
instrumentos do processo formativo em estágio curricular supervisionado
obrigatório em uma instituição de acolhimento na Baixada Fluminense, RJ,
objetivou-se a partir da (re)aproximação dialética com as narrativas produzidas nos
diários de campo e nos relatórios finais, a (re)construção das trajetórias dos
adolescentes acolhidos diante das determinações que lhes atravessaram, e a
construção de um caminho para a práxis profissional, compreender as relações
estabelecidas entre os adolescentes e suas famílias durante o acolhimento
institucional.
Palavras-Chave: Famílias; Proteção Social; Pesquisa autobiográfica; Estágio
supervisionado; Acolhimento institucional;
ABSTRACT
The present final paper discusses social protection in social assistance as a right to
families, oriented from a certain historical moment that defines the constitution of
families, but without leaving its extensive constitutions unnoticed, placed beyond the
blood ties, that is, from the construction of affectivity and trust. In this sense, it
intends, from the global corporate structure and the Brazilian socio-historical
conjuncture, the implementation of Social Protection against the main legal
frameworks of the country from the 1988 Constitution, which resulted in the
implementation of Social Assistance as a public policy in the 1990s and discusses
its functionality in the face of opposing social classes. From these discussions, by
(auto)biographical analysis of the instrument of the formative process in a
supervised compulsory curricular internship in a host institution in Baixada
Fluminense, RJ, Brazil, the objective was to (re)approach dialectics with the
narratives produced in field diaries and in the final reports, a (re)construction of the
trajectories of teenagers welcomed in the face of the determinations that crossed
them, and the construction of a path for professional practice, to understand the
relationships established between teenagers and their families during institutional
care.
Keywords: Families; Social Protection; Autobiographical research; Supervised
internship; Institutional care;
Sumário
Introdução 12
CAPÍTULO 1: 15
Famílias: possibilidades constitutivas, estratégias de resistência e limites 15
1.1. Nós. Laços, redes e tramas: famílias e afetos 15
1.2. O fio da meada. Filhos e pais: crianças, jovens e famílias 22
1.3. O nó de nós: a família como agente de proteção ou desproteção social 27
CAPÍTULO 2: 30
Estado e Proteção Social: tensionamentos frente aos antagonismos das classes sociais
30
2.1. Entre cortes e costuras: a construção da proteção social brasileira 31
2.2. Velha roupa colorida: proteção social e responsabilização das famílias 35
2.3. Direito às avessas: a penalização das famílias frente a (des)proteção social do
Estado 39
CAPÍTULO 3: 44
Narrativas (auto)biográficas em discussão 44
3.1. Sobre narração e método (auto)biográfico em pesquisa 45
3.2. Sobre o campo da pesquisa (auto)biográfica 47
3.3. Sobre os instrumentos e a instrumentalidade da pesquisa (auto)biográfica 49
3.4. O acolhimento institucional como medida de proteção a crianças e adolescentes:
algumas considerações importantes ainda nas tessituras fundamentais 53
3.5. (Re)construindo memórias e narrativas (auto)biográficas 55
3.6. O que os diários (não) nos contam 57
3.7. Algumas considerações posteriores, e constitutivas às narrativas
(auto)biográficas produzidas 74
Considerações Finais 76
Referências 79
12
Introdução
Meu interesse por essa temática de pesquisa se inicia do dia em que me
inseri no campo de estágio em uma unidade de acolhimento na Baixada
Fluminense, quando, ali, já me inquietei com algumas questões que motivaram a
discussão a ser desenvolvida ao longo deste trabalho.
Era estranho para mim quando ouvia que a pesquisa deve ser motivada por
algo que se ame pesquisar, pois o lugar dos meus sentimentos por este tema não
era esse. Era algo mais parecido com estranheza, com desconforto e com
incômodo. Esses sentimentos me invadiam sempre que me defrontava com as
contradições do acolhimento institucional como medida protetiva que apareciam
para mim de maneira destoante ao que propõem suas normativas constitutivas –
que caminham para o caráter provisório e excepcional da medida protetiva que
deveria garantir, sobretudo, a reintegração familiar.
No entanto, havia mais: no cotidiano institucional, me deparei com múltiplas
violências, produzidas pela sociabilidade capitalista que atravessam as vidas dos
adolescentes; e que provocavam transformações permanentes nas vidas dos deles
e de seus familiares, mas que pareciam negligenciadas em âmbito institucional.
Durante meu processo de estágio, ainda sentia que não conseguia dar conta de
responder às minhas inquietações a partir das produções que realizava, o que
permaneceu mesmo ao finalizá-lo. Nesse sentido, esta pesquisa representa o
resgate de algumas das minhas inquietações, a partir de minhas produções em
estágio que aqui serão tratadas como narrativas (auto)biográficas.
Ao tomar a discussão da proteção social como política pública, pela reflexão
de meu processo formativo, ao qual me coloco de forma crítica, por meio da análise
de minhas produções que dizem respeito a um serviço localizado em um
determinado espaço geográfico, nos é aberta a possibilidade de contribuir ao
exercício da função social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), pois, à medida que construímos as reflexões propostas a seguir,
13
estaremos produzindo um conhecimento específico sobre nosso entorno, a
Baixada Fluminense. Além disso, ao pensarmos nas propostas formativas
profissionais do Serviço Social, que firmam o compromisso de construções de
estratégias que contribuam na defesa dos interesses da classe trabalhadora, esta
pesquisa além de relevante para a categoria profissional, abordando uma temática
que recebe, historicamente, pouca atenção, também responde à sociedade a partir
da defesa de interesses determinados.
Portanto, a fim de compreender as relações dos adolescentes e suas
constituições familiares pregressas e posteriores ao acolhimento institucional, se
faz necessário, primeiro, nos debruçarmos sobre como vem sendo constituídas as
famílias brasileiras na contemporaneidade: o lugar que as crianças e os jovens
ocupam dentro das mesmas e na sociedade; e as possibilidades da família em se
consumar como agente de proteção social na sociedade capitalista na medida em
que se rompe com a idealização conservadora burguesa de família nuclear.
Foi também necessário discutir as conformações da Proteção Social no
Brasil, que, neste trabalho, será apresentada a partir do final da década de 1980,
marcada contraditoriamente como um período de contrarreforma do Estado, mas
também com avanços na construção e na elaboração de direitos sociais. Assim,
nossa discussão circunda o processo de redemocratização brasileiro, a efetivação
da assistência social como política pública de proteção social frente a relações
estabelecidas entre o Estado e os conflitos das classes sociais antagônicas.
Na intenção de contribuir à reflexão e à discussão da execução da Proteção
Social, estabeleceremos como possibilidade de pesquisa as narrativas
(auto)biográficas produzidas durante o estágio supervisionado obrigatório em
Serviço Social; e construiremos, ainda, a defesa do campo de estágio e dos
documentos produzidos nesse período como possíveis campos e instrumentos
formativos e de pesquisa, respectivamente.
No último momento deste trabalho, serão apresentados e analisados
reflexiva e criticamente os documentos produzidos por mim durante o processo de
14
estágio, trazendo à tona as histórias de vida dos adolescentes retratadas nesses
documentos – que procurarei reconstruir a partir da revisitação de minhas
memórias.
15
CAPÍTULO 1:
Famílias: possibilidades constitutivas, estratégias de resistência e limites
Neste capítulo discutiremos, a priori, as várias possibilidades de constituição
familiar que superam o ideal conservador-burguês de família tradicional e nuclear.
Resgataremos brevemente os determinantes sócio históricos que irão contribuir
para a formação do que concebe as noções de família moderna a partir da divisão
entre o mundo público e privado e chegando ao presente em que reforça o caráter
extensivo que as famílias tem assumindo na contemporaneidade a partir do afeto
e da confiança e da obrigação.
A partir de então, em um segundo momento, pensando a relação ente pais,
mães e filhos traremos para o debate a questão da circulação de crianças afim de
reafirmar o modelo de família nuclear como inalcançável principalmente aos mais
pobres, entendendo essa dinâmica como uma organização diferenciada, e
estratégia de sobrevivência das famílias das classes trabalhadoras.
Ainda no trato da relação entre pais e filhos, teceremos algumas
considerações sobre as possibilidades do jovem em na sociedade capitalista a
partir de um breve recorte de classes que demarca as dificuldades de acesso do
jovem pobre, ou ainda falta de políticas públicas que os atendam.
Por fim, levantaremos, o inicio central do debate que dará o tom a este
trabalho: as possibilidades da família em se constituir ou não como agente de
proteção social a seus membros na sociabilidade capitalista.
1.1. Nós. Laços, redes e tramas: famílias e afetos
Família. Palavra, sentimentos, significados. Nos transmite a tantos lugares
conhecidos, nos traz sensações de pertencimento e de afeto. As definições dessas
palavras em dicionários variam, mas basicamente se reduzem a grupo de pessoas
vivendo sob o mesmo teto ou pessoas com grau de ancestralidade ou parentesco.
16
No entanto, não dão conta de definir a complexidade das tramas de configurações
familiares, da construção de afeto e das relações estabelecidas entre pessoas.
Para dar início a discussão que queremos construir, concordamos com o que
defende Losacco (2018, p. 80) sobre família:
A célula do organismo social que fundamenta uma sociedade. Lócus nascendi das histórias pessoais, é a instância predominantemente responsável pela sobrevivência de seus componentes; lugar de pertencimento, de questionamentos instituição responsável pela socialização, pela introjeção de valores e pela formação de identidade; espaço privado que se relaciona com o espaço público.
Mesmo que a instituição familiar nos soe como algo inato à construção da
nossa sociedade, Àries (1984) em sua obra “A história social da criança e da
família”, é o nosso ponto de partida para a desconstrução desse pensamento. O
autor releva que a construção da família, como algo similar ao que conhecemos
hoje, se deu a partir um processo sócio histórico de construção do sentimento de
família e da descoberta do afeto inicialmente e principalmente pelas crianças.
Nesse processo, foi necessário um estreitamento das relações para que a família
fosse assumindo seu caráter mais privado e nuclear, em que integrantes comuns
ao interior da casa foram perdendo espaço, atividades profissionais passaram a ser
exercidas fora de casa e o sentimento de intimidade foi ganhado força e se tornando
restrito a pais e filhos.
Assim, podemos assumir que a história do modelo de família que
conhecemos é recente. Tem sua origem no início do século XVIII a partir do
surgimento da escola, da preocupação com a privacidade e a igualdade entre os
filhos, da manutenção de crianças perto de seus pais e o surgindo da valorização
dessa instituição por outras, como a igreja e a medicina, com mudanças ao olhar
para as crianças e, ainda, com o avançar dos séculos, se tornando um lugar de
afetividade e intimidade, fazendo possível a construção do amor romântico entre
adultos e crianças, constituindo novo papel para a mulher e para o homem. Essas
mudanças ocorrem simultaneamente às mudanças emergentes a uma vida mais
urbana e intensa que começou a ter início no século XV. Portanto, é preciso
entender a importância da valorização e da constituição desse modelo familiar
17
como uma resposta as necessidades desse momento histórico (FREITAS, BRAGA
& BARROS, 2011; SZYMANSKI, 2018).
A revolução industrial consolidou a cisão do mundo do trabalho e do mundo
familiar e instituiu a dimensão privada – lugar do íntimo e do sentimento – da família,
oposta ao mundo público. O surgimento da família moderna é normalmente
associado à separação entre o mundo privado e o público, sendo o privado a
intimidade, da ordem dos sentimentos. Freitas, Braga e Barros (2011) destacam os
estudos de Gilberto Freyre sobre a sociedade brasileira, em especial “Sobrados e
Mucambos”, em que é possível perceber essa crescente privatização da vida
doméstica, a transformação da família patriarcal extensa e o recolhimento da
família à casa.
Mioto (2011) nos traz o entendimento de família a partir de um processo
complexo de construção e de reconstrução histórica que se dá, também,
cotidianamente por meio das relações e negociações estabelecidas entre os
membros da família, mas também entre os seus membros e as outras esferas da
sociedade. O que vai ao encontro do que Freitas, Braga e Barros (2011) também
expressam ao definir família como um processo articulado de trajetórias de vida
entrecruzados com relações de classe, de gênero, de etnia e de geração.
Há uma dificuldade em romper com o modelo que naturalizamos e
idealizamos sobre família. Há, nesse tema, uma tendência muito mais forte ao
etnocentrismo pela nossa identificação com aquilo que somos (SARTI, 2018).
Pensamos em família, portanto, a partir de uma categoria nativa, de acordo com o
sentido que lhe é atribuído por quem a vive, considerando-a um ponto de vista,
dessa forma, de acordo com Sarti (2018, pp. 40-41), devemos abordar família
Como algo que se define por uma história que se conta aos indivíduos, ao longo do tempo desde que nascem, por palavras, gestos, atitudes, silêncios e que será por eles reproduzida e ressignificada, à sua maneira, dados os seus distintos lugares e momentos na família. Dentro dos referenciais sociais e culturas de nossa época e nossa sociedade, cada família terá uma versão de
sua história, a qual dá significado à experiência vivida.
18
Falar em família, no presente, nos requisita a compreensão das mudanças
e dos padrões difusos de relacionamentos; definir seus contornos se torna uma
tarefa difícil com a extensividade que seus laços têm adquirido. É preciso termos
em mente a diversidade de formas de constituição das famílias, tornando
necessário o uso do termo no plural – famílias – pensadas a partir de suas relações
com a sociedade mais ampla e como se remodelam no cotidiano das pessoas que
a constituem (SARTI, 2018; LOSACCO, 2018; FREITAS, BRAGA & BARROS,
2011).
Sarti (2018) destaca três avanços tecnológicos ligados à reprodução
humana que abalaram os alicerces familiares: a pílula anticoncepcional na década
de 1960, atingindo principalmente a sexualidade feminina juntamente com a
expansão do feminismo e ao trabalho remunerado da mulher; o avanço da
tecnologia de reprodução assistida em 19801, que confrontam a família com seu
lugar de natural, e, por último, o exame de DNA para o reconhecimento da
paternidade que requisitou dos homens, rebatendo diretamente na tradicional
irresponsabilidade masculina, e resultando mais proteção para mulher e,
sobretudo, para as crianças.
É imprescindível termos em mente que os impactos da dinâmica sócio
histórica existente reverberam sobre as famílias ocasionam transformações
constantes, como é o caso do aumento da expectativa de vida, que gera novas
formas de relações intergeracionais e a entrada e permanência da mulher no
mercado de trabalho que vem transformando os papéis de gênero, criando novos
laços e arranjos familiares e conjugais (LOSACCO, 2018; SARTI, 2018)2.
1 Um interessante adendo é feito por Sarti (2018) no qual afirma que os avanços tecnológicos atingem a concepção de família de maneiras distintas e inversas: enquanto a pílula abala o valor sagrado da maternidade, permitindo a autonomia da sexualidade feminina e diferenciação da mulher e da mãe. Técnicas de reprodução caminham na direção inversa, reforçando a maternidade e seu valor social, sobretudo, no que se refere a manutenção do padrão das relações de gênero.
2 Vale ressaltar nesse ponto, que o fato das mulheres estarem ocupando cada vez mais espaços públicos de emprego e estudo e provocado mudanças nas relações de gênero, não provou transformações mais amplas. E mais: a ideia do emprego como emancipação é uma realidade que
19
Se hoje assumimos como modelo hegemônico a família nuclear, continua
sendo prática cotidiana o recurso às avós3, resgatando a família extensiva. Mesmo
que não convivam todos na mesma casa, é uma prática utilizada não apenas pelas
camadas mais pobres4. Freitas Braga e Barros (2011) destacam alguns estudos
que revelam que a classe média também não sustenta o modelo familiar nuclear,
pelo menos não em sua totalidade, pois esse modelo é pensado principalmente
num momento histórico em que mulheres não trabalhavam – realidade essa que já
fora superada – o que faz, hoje, com que mulheres da classe média contem
principalmente com o apoio de avós, empregadas e creches.
Sarti (2018) abordando as famílias pobres aponta sua configuração em rede
e destaca a diferença entre família e unidade doméstica (a casa), para que não seja
desconsiderado a rede de relações dos sujeitos em família e os recursos materiais
e afetivos com quais contam. Há, para a autora, no universo simbólico dos pobres,
uma divisão complementar de autoridades entre o homem e a mulher na família
correspondentes a diferenciação entre a casa – relegada a mulher – e a família –
relegada ao homem, portanto: o homem é chefe da família e a mulher chefe da
casa. Enquanto o homem representa a autoridade moral familiar e medeia a relação
dessa com o mundo externo, se tornando a figura representante da
pertence à classe média, as mulheres pobres sempre trabalharam (FREITAS, BRAGA & BARROS 2011).
3 Vitale (2018) abordando o papel dos avós na família contemporânea, alega que poucos são as avós que não exercem algum tipo de cuidado aos netos em algum momento. Os avós irão se constituir a figura de porto seguro para os netos quando a relação dos pais é fragilizada. Além disso, a autora aborda ainda, a questão financeira: os avós apresentam melhores condições de vida que a população mais jovem e podem contribuir significativamente para a renda familiar – quando moram com seus filhos, muitas vezes são a principal fonte de renda da casa.
4 Freitas, Braga e Barros (2011) destacam alguns fatores que provocam a busca da família extensiva nas classes populares como por exemplo o trabalho. Com a mulher trabalhando fora de casa, as funções ditas femininas são passadas para outras mulheres da família, principalmente, as avós maternas, mas também às filhas mais velhas, tias e vizinhas. Sarti (2018) também destaca oinício de novas uniões conjugais também aparece como um fator para a circulação de crianças. Quando há conflitos entre os filhos e o novo cônjuge, a mulher pode optar a entregar seus filhos, mesmo que temporariamente à outra mulher, em geral de sua rede consanguínea (SARTI, 2018).
20
responsabilidade familiar, a mulher cabe a dimensão de autoridade do grupo
familiar, em manter a unidade do grupo, ocupando assim o lugar do cuidado.
As dificuldades enfrentadas para a realização dos papeis familiares no
núcleo conjugal, diante de núcleos instáveis e empregos incertos desencadeiam
arranjos que envolvem a rede de parentesco como um todo a fim de viabilizar a
existência da família. Além disso, a vulnerabilidade posta pela economia estrutural,
pela instabilidade de empregos e jornadas de trabalho mais longas também
requisitam da família alterações que garantam sua sobrevivência. Esses aspectos
geram instabilidade nas uniões entre os pobres pois gera uma dificuldade no
exercício dos papeis familiares e por consequência, frustrações nas relações de
gênero estabelecidas, o que acaba desencadeando arranjos familiares que
envolvem a rede de parentesco como um todo para viabilizar a existência da família
(LOSACCO, 2018; SARTI, 2018).
Losacco (2018) afirma que essas alterações incidem sobre a qualidade de
apreensão, da função e do desempenho dos papeis intra e extra núcleo familiar. A
complexidade dessa estruturação cria diferentes organizações e modos de
relacionamento nos obrigam a desenvolver uma capacidade para aceitar a família
tal como ela se constitui em face dos desafios que enfrentou, em lugar de procurar
nela o modelo que temos como representação. De acordo com a autora, (p. 81):
O empobrecimento da família impõe mudanças significativas na organização familiar, criando novos desafios e dificuldades para o exercício de suas funções primordiais de proteção, de pertencimento, de construção de afetos, de educação, de socialização. Frequentemente essas funções estão enraizadas em sua cultura, principalmente nas mães de família, que as receberam por um processo de qualificação informal e continuo, no qual as representações e as práticas vão se construindo naturalmente.
Ainda é necessário ressaltarmos que as a nossa dinâmica sócio histórica
também provocou transformações e ganhos a partir das lutas sociais que
possibilitaram novos as outras formas de constituição de famílias, nos exaltando a
diversidade nas unidades familiares, sejam elas formadas pelo casamento (civil ou
religioso), seja pela união estável ou por grupo formados por qualquer um dos pais,
21
ou ascendentes e seus filhos, netos, ou sobrinhos, seja por mãe solteira, seja pela
união de homossexuais. Acaba assim com qualquer discriminação relacionada à
estrutura das famílias e se estabelece a igualdade entre filhos legítimos, naturais
ou adotivos (LOSACCO, 2018).
Os sujeitos sociais são sujeitos em transformação. Nesse sentido, sem negar
a importância do fator econômico se enfatiza também a dimensão do fator simbólico
e cultural como dimensões importantes para discutir famílias. (FREITAS, BRAGA
& BARROS, 2011). Sarti (2018), parte da ideia de que a família se delimita
simbolicamente, com base no discurso sobre si mesma e mesmo que ele seja
culturalmente instituído, ainda apresenta singularidade pela formulação discursiva
na qual são expressos significados e explicações acerca da realidade vivida,
baseados nos elementos objetiva e subjetivamente acessíveis aos indivíduos de
acordo com a cultura que vivem. O discurso social sobre família se reflete em
diferentes famílias e é traduzido pelas mesmas que devolvem ao mundo, a sua
imagem com filtros de singularidade postos pela realidade vivida de cada uma.
Na contemporaneidade, as famílias se organizam muito mais baseadas no
afeto do que nas relações de consanguinidade, parentes ou casamento. Como diz
Losacco (2018, p. 80) “é como uma constelação de pessoas interdependentes
girando em torno de um eixo comum”. Portanto, a rede de obrigações estabelecida
dá o tom, para os mais pobres, da noção de família. Sua delimitação não se vincula
à pertinência a um grupo genealógico e sanguíneo, para eles, a extensão da família
corresponde à da rede de obrigações, o que pode incluir tanto parentes quanto a
rede de vizinhança. As famílias assim, vão se constituindo a partir de relações
eletivas inclusas na rede de sociabilidade, dadas as obrigações mútuas assumidas
em que se recebe e dá, se retribui, em que há confiança (FREITAS, BRAGA E
BARROS, 2011; SARTI, 2018).
22
1.2. O fio da meada. Filhos e pais: crianças, jovens e famílias
Sarti (2018) afirma que a relação entre pais e filhos é a relação em que se
estabelece o mais forte vínculo familiar e em que as obrigações morais vão atuar
de forma mais significativa. Para a autora, há a ideia de que os filhos dão sentido
ao casamento e dos filhos se espera o compromisso da retribuição de cuidados.
Para compreender o lugar da criança nas famílias pobres, Sarti (2018) divide
as famílias a partir do cumprimento das etapas de desenvolvimento familiar ou não.
Para a autora, em famílias que cumprem o desenvolvimento sem rupturas, os filhos
tendem a se manter no mesmo núcleo familiar.
Já as famílias que se desfazem nesse caminho, por diversos motivos, entre
eles, separação ou morte muitas vezes provocadas pela instabilidade econômica
estrutural que acabam por gerar instabilidade familiar, os filhos, crianças, passam
a não ser mais uma responsabilidade exclusiva da mãe ou do pai, mas de toda a
rede de sociabilidade dessa família, ocorrendo uma coletivização de
responsabilidades, trazendo para o debate a circulação de crianças5 (SARTI, 2018).
A circulação de crianças é estabelecida pela transferência e/ou a partilha de
responsabilidades de uma criança entre um adulto e outro, geralmente entre
mulheres da rede de parentesco da mãe. É realizada no mundo todo de acordo
com cada realidade sociocultural e não deve, de forma alguma, ser interpretada
como abandono, pois isso descaracterizaria e desconsideraria toda a dinâmica
social e as diferenças entre as realidades sociais das famílias (SARTI, 2018;
FREITAS, BRAGA & BARROS, 2011).
Dialogando com Sarti (2018), Freitas, Braga e Barros (2011) vemos que a
circulação de crianças deve ser encarada como uma das formas de demonstrar
como a hegemonia do modelo moderno de família não é exercido da mesma forma
5 Para maior aprofundamento no tema de circulação de crianças, é necessário consultar os estudos da antropóloga Claudia Fonseca com os quais Sarti (2018) e Freitas, Braga & Barros (2011) dialogam.
23
em todas as camadas sociais, sobretudo, por não estar ao alcance de todos. Assim,
a circulação deve ser vista como uma forma de organização diferenciada das
famílias e não desorganização familiar que envolve aspectos econômicos e culturas
caracterizada como uma estratégia de sobrevivência possível às classes
trabalhadoras.
A circulação de crianças como um padrão cultural, permite solução
conciliatória entre o valor da maternidade e a dificuldade encontrada pelas mães
em criar seus filhos. A solução não é o desligamento total entre mãe e filho, mas
sim a manutenção do vínculo por uma circulação temporária, mantendo vínculos
de sangue e criando vínculos de criação; ambos estabelecendo laços de
parentesco. No mundo da criança, se consolida a presença de várias mães como
a que ganhou e a que criou (SARTI, 2018).
Assim, a circulação de crianças é responsável pela criação de uma
afetividade diferente das relações estáveis e duradouras. Dar ou criar uma criança
não é uma questão vinculada apenas com as possibilidades materiais, essa prática
se inscreve no padrão de relações dos pobres caracterizados por um dar, receber
e contribuir contínuos, estabelecidos nas relações familiares pautadas na
confiança, em torno do eixo moral em que a noção de obrigação é sobreposta a
noção de parentesco como já trabalhamos no tópico anterior desse trabalho
(SARTI, 2018; FREITAS BRAGA & BARROS, 2011).
Enriquecendo o debate, Freitas, Braga e Barros (2011) recorrem a noção de
maternidade transferida trabalhada por Costa (2002) que faz referência à atribuição
mútua de responsabilidades exercidas pelas mulheres que delegam tarefas da casa
à outras mulheres. Aqui, também podemos inserir a circulação de crianças por
outras casas, mas, sobretudo, principalmente a que ocorre dentro de sua própria
casa com a presença quase permanente de uma empregada ou alguém da família
que oferece suporte como uma tia, ou avó que irão compartilhar as
responsabilidades da criação dos filhos e de manutenção da casa.
24
Ainda é possível pensar que nas classes populares, esse papel também
pode ser assumido pelas irmãs mais velhas que paulatinamente assumem os
papeis e atividades exercido tipicamente por mulheres e passam a gerenciar a casa
e o cuidado aos irmãos menores, o que tem como resultado a perda do período
infância da infância que teriam direito (FREITAS, BRAGA & BARROS, 2011).
Passando para a relação dos jovens e suas famílias é necessário num
primeiro momento, pensarmos o que é ser jovem. Há inúmeras compreensões
sobre o que seja ser jovem e, apesar de ser uma noção construída socialmente,
não pode ser definida segundo critérios exclusivamente biológicos, psicológicos,
jurídicos ou sociológicos (LOSACCO, 2018).
Concordamos com Losacco (2018) quando alega que é necessário construir
o debate sobre juventude, da mesma maneira como construímos o debate sobre
famílias – entendendo a pluralidade. Temos assim, portanto, que considerar as
diversas etapas do processo de “ser jovem” como a puberdade, a adolescência, e
a juventude. Cada uma apresenta suas especificidades e complexidades. Portanto,
assim como falamos em famílias, devemos também falar em juventudes.
A maneira mais simples encontrada pela nossa sociedade para definir o que
é e quem são os jovens é a partir do estabelecimento de critérios que os
estabeleçam em determinada faixa de idade, comumente no Brasil, de 12 a 18 anos
– quando é atingido a maioridade e o indivíduo alcança deveres e direitos de uma
pessoa adulta. Os critérios de idade são ferramentas para a realização de estudos
estatísticos, formulação de políticas sociais, definição de idade de escolarização
obrigatória, idade mínima para a responsabilidade penal ou início do trabalho
profissional, classificação de programas de televisão, etc. (LOSACCO, 2018)
Contudo, a autora também nos atenta que as idades não possuem um
caráter universal pois as noções de infância, de juventude e de vida adulta são
produtos da história e variam segundo as formações humanas e ultimamente, tem
ocorrido um prolongamento da juventude esticada até os 24 anos Em muitas
dessas definições, puberdade, adolescência e juventude enquadram-se na mesma
25
categoria: juventude; o que torna difícil determinar as diferenças nessa longa etapa
de transformação da vida infantil para vida adulta (LOSACCO, 2018).6
O adolescente é tido como provocador de grandes transformações em seu
meio familiar e social, podendo criar problemas entre as gerações que nem sempre
são solucionados. Por si só, esse momento singular da vida já coloca os jovens em
situação muita contradição, por situá-lo num intervalo onde não se é nem criança,
pois se perde as liberdades que tinha e nem adulto, pois recebe novas
responsabilidades e compromissos com os quais ainda não consegue lidar
(LOSACCO, 2018).
Quando o adolescente inicia sua transição para a vida adulta, também é
necessário que os pais e os adultos que o cercam passem por um processo de
transformação no qual precisam encarar novos papeis que dialoguem com o
momento de vida do adolescente pois essa nova etapa exige novas respostas e
formas de atuação parental que seja de preferência uma atuação de parceria que
colabore para a superação das incertezas e conflitos provenientes desse turbilhão
de novas experiências (LOSACCO, 2018).
Há por parte dos adultos uma preocupação sobre a capacidade do jovem
de enfrentar seus problemas e conseguir o status de adulto que seja satisfatório, o
que pode gerar, para o jovem, insegurança e dificuldade na formação de
autoconfiança, pelo excesso de cobranças, críticas e controle. De acordo com
Losacco (2018), enquanto crianças incorporam valores sociais através da imitação
daquilo que vivencia em suas relações com pessoas adultas, o adolescente
desenvolvendo sua capacidade de abstração, também amplia sua capacidade de
questionamento sobre os princípios sociais que vivencia colocando-os em xeque,
6 Há que se pensar o porquê do prolongamento da juventude e a quem ele atende. Losacco (2018) nos alerta que o prolongamento da juventude é produto das exigências do mundo do trabalho, tais como maior e melhor qualificação do papel profissional provinda de escolaridade especializada (ensino superior, especialização, mestrado, doutorado), ampla cultura, aquisição de novas tecnologias para o exercício de determinados cargos, fluência em idiomas, etc. Tais instrumentais são viáveis somente para uma ínfima parcela da população brasileira.
26
rejeitando-os e não introjetando-os. O que o leva a buscar por seus próprios
valores. Portanto, de acordo com a autora (2018, p. 87):
A difícil acomodação às expectativas institucionais, que exigem submissão à autoridade adulta, respeito pelas instituições de status que já foram estabelecidos, alto grau de competição e firme regulação dos impulsos sexuais e expressivos, faz que o adolescente parta para atos de autoritarismo tão intensos quanto aqueles que a comunidade lhe impõe através dos ideais professados socialmente. Questionar a sociedade significa questionar os valores, a estrutura, o status quo, para que, mediante esses questionamentos, ele possa buscar seus próprios valores e determinar sua identidade.
Losacco (2018) nos traz uma importante diferenciação na trajetória de vida
dos jovens a partir da classe social em que esses estão inseridos. Na qual afirma
que o jovem que pertence a uma classe mais favorecida tem a permissão e garantia
quase eterna ao acesso as escolas, enquanto os jovens de classes mais pobres
têm a exigência da entrada rápida e precoce no mundo do trabalho sem a
preparação necessária, seja essa de escolaridade formal, técnica ou cultural para
o exercício profissional.
Aos jovens mais ricos é exigido atingir estereótipos sociais de sucesso, e a
cobrança excessiva acaba com a perspectiva de se ter a família como parceira
interrompendo as construções coletivas e os projetos comuns ao jovem e família.
Entretanto, a dependência financeira acaba por impedir a tomada de autonomia
necessária aos jovens para ingressar na vida adulta. Em contrapartida, os jovens
mais pobres encontram cada vez mais dificuldades na conquista de emprego, se
acirra a exploração de sua mão de obra, fundada em baixos salários e no acúmulo
de jornadas de trabalho (LOSACCO, 2018).
Para além da exploração da força de trabalho, os jovens pobres estão
expostos a um processo de exclusão caracterizado pelo difícil acesso às políticas
públicas, baixo rendimento familiar, concentração populacional. A vulnerabilidade
própria da idade somada a esses fatores expõe esses jovens e a ausência, mesmo
que involuntária, dos adultos devida ao acumulo ou busca por emprego, leva os
jovens a estabelecer laços na comunidade que podem lhes ser prejudiciais, mas
27
que de certa forma, são as relações que os acolhem e onde desenvolvem
respeitabilidade, autoestima e autonomia e forjam sua identidade, mesmo que a
serviço de comportamento de risco que os expõem a situações adversas, como
infrações das quais podem ser vítimas ou autores, gravidez precoce e indesejada,
uso abusivo de álcool e drogas e até a morte (LOSACCO, 2018).
A dificuldade de acesso, ou a falta de políticas públicas que atendam a
população jovem pobre a empurra para comportamentos socialmente excludentes
e quanto mais excluídos, menos são atingidos pelas políticas atuais, que cada vez
mais assumem caráter emergencial, assistencialista e descontínua (LOSACCO,
2018).
1.3. O nó de nós: a família como agente de proteção ou desproteção social
Alencar (2010) afirma que a condição de vida dos indivíduos depende em
grande parte da inserção social de todos os membros da família, sendo assim, a
família ocupa um papel de centralidade no que diz respeito a sobrevivência material
dos indivíduos já que é nela que são articuladas as variadas formas de alternativas
para a superação de situações de precariedade social postas pelo sistema
capitalista. Assim, é travada a luta cotidiana para a provisão de necessidades
básicas, que mobiliza todos os membros da família na criação de estratégias que
viabilizem suprir uma rede de proteção social frágil.
Para a autora (2010 apud TELLES 1992;1996) na sociedade brasileira que
é marcada pela destituição e privação de direitos, a família se torna um lugar de
garantia ética, moral e material. Portanto, o afincamento da família como elemento
central para a vida dos indivíduos, se fundamenta na despolitização das questões
relacionadas à reprodução social dos trabalhadores; essa são cada vez mais
percebidas muito como uma questão de ordem privada.
Assim, para Alencar (2010), com o desemprego, o trabalho desqualificado e
as remunerações insuficientes estruturando a precariedade, é no ceio familiar que
28
essas condições se tornam palpáveis e são transformadas, abrindo diversas
possiblidades de enfrentamento dadas as experiências de vida que delinearão o
modo como as situações adversas, relacionadas a pobreza irão se inscrever no
cotidiano familiar.
Nesse âmbito, Mioto (2011) nos traz uma importante reflexão sobre como a
privatização da vida firma e interfere nos projetos em disputa acerca da proteção
social brasileira, especialmente no que tange a política de assistência social. A
interferência que nos interessa nesse momento é a que estabelece o
encaminhamento da política de assistência social enquanto ajuda pública já que se
ancora no entendimento de que a família é a principal instância de proteção social,
e assim, a assistência social ou a proteção social enquanto ações de política
pública só devem ser estabelecidas no momento em que a família fracassa na
provisão de bem-estar de seus próprios membros. Portanto, se a família, consegue
superar as adversidades, é sugerida como exemplo a ser seguido e se firmar como
agente solidário de famílias que não conseguem o mesmo e recebem o título do
fracasso. (MIOTO, 2010).
É preciso nos atentarmos para o quadro de crise econômica e da evidente
retração do Estado7 na esfera social ressaltadas com clareza por Alencar (2010),
pois é assim que ressurgem os discursos e as práticas que revalorizam da família,
que, forjados em uma ideologia conservadora, buscam promover e disseminar a
proposição de que a família é a grande responsável pela provisão das
necessidades dos indivíduos.
Deste modo, concordamos com Alencar (2010) quando a autora afirma que
a família vem se tornando a única possibilidade para os indivíduos proverem as
suas necessidades, principalmente diante da inoperância e ausência de
mecanismos de proteção social que considerem os recentes efeitos sociais que tem
7 A partir dos anos 1990, em especial, o Brasil passou por mudanças de ordem econômica e política que irão redesenhar o cenário social do país que provocarão o acirramento das mais variadas expressões da questão social. Essas questões serão abordadas no próximo capítulo desse trabalho.
29
origem da precarização do trabalho. Portanto, de acordo com a autora (2018, p.
63):
As condições sociais e econômicas do Brasil na atualidade refundam a tendência já historicamente predominante na sociedade brasileira, qual seja, a de resolver na esfera privada questões de ordem pública. Na ausência de direitos sociais, é na família que os indivíduos tendem a buscar recursos para lidar com as circunstancias adversas. Dessa forma, as mais diversas situações de precariedade social, desemprego, doença velhice, encaradas como dramas da esfera privada, tenderam a ser solucionadas na família.
Podemos fazer a leitura de que da forma como a nossa sociedade se
estrutura e se organiza, bem como da atual conjuntura, o Estado vem cada vez
mais se desprendendo de suas obrigações e as transferindo quase exclusivamente,
em nome da solidariedade, para as famílias que se sobrecarregam (ALENCAR,
2010; MIOTO, 2011).
Encerramos esse capítulo tentando desfazer um nó: sendo a família formada
por indivíduos que são alvo direto das precariedades provocadas pela sociedade
capitalista, de que forma e em que medida podemos intitulá-las como instituição de
desproteção social se, em cena, esses mesmos indivíduos e a própria família já
estão desprotegidos pelo Estado? De início, afirmamos que entender a família
como uma agente de desproteção social ou violadora de direitos requer um
posicionamento que vai ao encontro de entendê-la como principal agente
responsável pela proteção social. Sendo assim, auto gestora de sua própria história
de maneira autônoma sem relação com os determinantes sociais.
30
CAPÍTULO 2:
Estado e Proteção Social: tensionamentos frente aos antagonismos das
classes sociais
Neste capítulo, iniciaremos discutindo sobre as possiblidades para a
construção da proteção social no Brasil tendo como ponto de partida as mudanças
estruturais econômicas e sociais que marcam o final da década de 1970
mundialmente e suas implicações no país em seu processo de redemocratização
datado a partir da década de 1980 que deflagram a contrarreforma do Estado
brasileiro neste período caracterizada pela defesa dos interesses capitalistas em
na primazia do Estado mínimo.
Em um segundo momento, trataremos das implicações desse cenário hostil
para a efetivação da proteção social como direito às famílias a partir da construção
da Constituição Federal de 1988, e na formulação da Política de Assistência Social
nos anos 1990 a partir da discussão dos principais marcos legais da década e do
posição assumida pelo Estado de conciliador de conflitos dos antagonismos de
classe e da redistribuição de responsabilidades com o antes estatais, que atingem
diretamente às famílias ao buscar atender minimamente as reivindicações da
classe trabalhadora, mas sem a realização de mudanças estruturais na economia.
Retomaremos, por fim, a discussão iniciada no capítulo anterior afirmando a
penalização das famílias frente a desproteção do Estado, entendendo-o a partir das
relações estabelecidas entendendo as características fundantes da proteção social
com a representação do poder burguês, o que inviabiliza a materialização dos
direitos sociais de forma universal. Nesse sentido, afirmamos as possibilidades de
efetivação da família como um agente de proteção social não é será possível
enquanto a construção das políticas sociais não houver a defesa integral dos
interesses da classe trabalhadora.
31
2.1. Entre cortes e costuras: a construção da proteção social brasileira
Neste capitulo, é necessário abordamos, inicialmente, o cenário sócio
histórico do Brasil para entendermos como se deu a constituição da proteção social
brasileira tal como a compreendemos. Teremos, como ponto de partida, as
mudanças datadas a partir do final da década de 19708.
No final desta década, a crise econômica que abateu o Estado Keynesiano
abriu caminho para um redesenho das políticas sociais – o welfare mix, ou
pluralismo de bem-estar – com vistas à retirada da responsabilidade exclusiva do
Estado com as políticas sociais e as dividindo ou transferindo para seguimentos da
sociedade, tais como empresas, organizações não governamentais – ONGs, e as
famílias que passam a ser convocadas para participarem da execução da proteção
social (ALENCAR, 2010; GELINSKI & MOSER, 2015; MIOTO & PRÁ, 2015;
PEREIRA, 2015).
A gestão da proteção social do Estado de bem-estar entra em declínio, e as
conquistas da classe trabalhadora alcançadas após a Segunda Guerra Mundial
desmoronam. Pereira (2010) destaca que como base dessas mudanças estão a
emergência de novas forças econômicas, mudanças demográficas e mudanças
estruturais na família. É nessa direção, que os ideológicos neoliberais constroem o
discurso de crise do Estado de bem-estar, que passa a ser visto como “incompatível
com a ordem socioeconômica emergente” (PEREIRA, 2010, p.31). Com a primazia
do Estado mínimo e maior privatização – mercantil ou não – a ideia central é que a
providência seja fundamentada por várias frentes, a saber: o Estado, o mercado,
as organizações voluntárias e de caridade e a rede familiar.
Concebeu-se dessa forma um agregado de instâncias provedoras e gestoras do campo do bem estar, formado em torno de objetivos comuns, composto por quatro setores principais: o setor oficial, identificado como o governo, o setor comercial, identificado como o mercado, o setor voluntário identificado com as organizações sociais não governamentais e sem fins lucrativos e o setor informal, identificado com as redes primárias e informais de apoio
8 É de comum acordo entre as autoras com quem dialogamos e concordamos neste trabalho que no Brasil não houve a efetivação de um Estado de Bem-Estar Social.
32
desinteressado e espontâneo, constituído da família, da vizinhança e dos grupos de amigos próximos (PEREIRA, 2010, p.32).
A crise econômica mundial da década de 1970 irá atingir o Brasil
principalmente a partir nos anos 1980, colocando em xeque o modelo
desenvolvimentista9 de industrialização adotado no país iniciando um grande
processo de transformações no Estado de ordem institucional e de ordem
produtiva, se revelando numa nova forma de relacionamento entre o Estado, o
mercado e a sociedade civil (ALENCAR, 2010).
Entretanto, há que se pensar que, no Brasil, mesmo com o cenário mundial
de grandes transformações econômicas e tecnológicas, e da própria questão
econômica interna, se colocava uma grande contradição: o país vivenciava a mais
expressiva e maior experiência democrática do país protagonizada por lutas
sociais, materializada pela Constituição Federal de 1988, apesar do cenário
econômico mundial hostil. Conforme a assertiva de Alencar (2010), enquanto o
neoliberalismo avançava nos países centrais, o Brasil criava um obstáculo ao
neoliberalismo com o avanço da democratização da sociedade no país (ALENCAR,
2010; BEHRING & BOSCHETTI, 2011).
A partir da década de 1990, sob a égide da crise econômica e da
mundialização do capital, temos, portanto, a adoção de programas de ajuste de
ordem estrutural e de estabilização econômica para adequação à nova ordem
econômica pelos governos brasileiros, de Collor à Lula, principalmente a partir do
plano real (BEHRING & BOSCHETTI, 2011).
Behring e Boschetti (2011) destacam os ajustes como uma espécie de
reformatação do Estado Brasileiro à ordem capitalista neoliberal que remarcavam
e demonstravam o caráter pragmático, submisso, imediatista e impopular das
9 O Brasil, vivenciava o período de ditadura civil-militar, marcado pelo conservadorismo e autoritarismo burguês que firmava a superexploração dos trabalhadores a partir da utilização de mecanismos de repressão aliados a uma política de instabilidade de no emprego, de direitos e de organização. Mas também é nesse contexto histórico de pauperização da classe trabalhadora, que surgem greves e movimentos sociais ou como a autora chama, a retomada do protagonismo da classe trabalhadora no cenário nacional que dão o pontapé inicial para o processo de redemocratização do país (GUERRA, 2014, pp. 176-177).
33
classes dominantes brasileiras. Alguns desses ajustes são elencados por Alencar
(2010) como as políticas macroeconômicas de estabilização, as reformas
estruturais liberalizantes centradas na abertura comercial, produtiva e tecnológica,
a promoção da estabilização monetária no dólar, a política de privatizações, a
reforma do estado e a desregulamentação do mercado de trabalho.
A adoção do receituário neoliberal no Brasil, a partir da década de 1990,
promoveu a inserção da economia numa ordem globalizada, com a privatização do
estado, a redução dos gastos sociais, desenvolvendo, em suma, políticas
econômicas com impactos negativos sobre as condições estruturais na produção e
do mercado de trabalho (ALENCAR, 2010; BEHRING & BOSCHETTI, 2011).
Como explicam Behring e Boschetti (2011), o âmago da contrarreforma
orquestrada no Brasil foi fiscal e foi delineada a partir fatores conjunturais externos
e internos e pela disposição política da coalização centro-direita no Brasil que tinha
como protagonista na época Fernando Henrique Cardoso. Uma contrarreforma que
foi possível a partir de algumas condições gerais, que precedem os anos 1990
como a já mencionada crise econômica dos anos 1980 e as marchas e
contramarchas do processo de democratização do país (BEHRING & BOSCHETTI,
2011, p.152).
Com apoio midiático, o discurso vendido na época era que o “grande
problema” da crise financeira a ser enfrentada, estaria no Estado, e por isso seria
necessário reformá-lo10 e corrigir custos, a política econômica destruía de forma
acelerada os meios de financiamento do Estado com a inserção da ordem
internacional proporcionando o crescimento galopante das dívidas internas e
externas do país. Tudo isso em um cenário em que o Estado assumia uma postura
cada vez mais tecnocrática e decretista, fechando-se para a construção de debates
e negociações de caráter democrático para a construção de políticas públicas, o
10 Destacamos aqui que Behring e Boschetti (2011) afirmam, em seu trabalho, que a utilização de
um discurso de reforma do Estado frente a real intenção de adequação à ordem neoliberal se configura de forma ideológica e esquizofrênica, explicitando o cinismo intencional da classe dominante do país.
34
que ia de encontro com todo o cenário de recém redemocratização que o país
vivenciava (BEHRING & BOSCHETTI, 2011).
Reafirmamos aqui, juntamente com as autoras, o impacto da criação das
agências executivas e de organizações sociais e a regulamentação do Terceiro
Setor para a execução das políticas públicas que contribuíram e contribuem muito
no descumprimento do conceito constitucional de seguridade social, que passa a
ser encarado de forma desprofissionalizada e com um caráter muito mais solidário.
Dessa forma, as políticas sociais firmadas pela lógica neoliberalista se constituíram
e, ainda se constituem, de maneira privatizada, focalizada e descentralizada
(BEHRING & BOSCHETTI, 2011).
Assim, o cenário que se estabeleceu no Brasil no contexto de
contrarreformas e implementação de políticas sociais – em que o imperativo era o
desprezo pelo trato constitucional posto na Seguridade Social – foi o de
crescimento da demanda social por políticas públicas, visto que o desemprego, a
precarização do trabalho e a pobreza se aprofundavam pela macroeconomia do
plano real, causando, ainda, perda de força de resistência e articulação entre a
classe trabalhadora. Ou seja, o conceito de universalidade e redistribuição são
tensionados pelo interesse no lucro, na supercapitalização e na privatização de
setores públicos importantes como a saúde, a educação e a previdência social.
(BEHRING & BOSCHETTI, 2011).
Portanto, temos em execução a retração de direitos que se mantem no
argumento de crise financeira do Estado transformando as políticas sociais em
ações direcionadas para os próprios efeitos da crise sem ações preventivas ou
redistributivas de fato, prevalecendo, como elucidam Behring e Boschetti (2011) o
trinômio articulado do ideário neoliberal: privatização, focalização e
descentralização – essa fundamentada na transferência de responsabilidade para
entes da federação ou para instituições privadas e novas modalidades jurídicas
institucionais análogas, componente fundamental para a contrarreforma e das
orientações dos organismos internacionais para a proteção social (BEHRING &
BOSCHETTI, 2011).
35
Em um país como o Brasil, com as tradições político econômicas e
socioculturais delineadas anteriormente – e que apenas a partir da constituição de
1988 passa a ter em perspectiva a construção de um padrão público universal de
proteção social –, coloca-se um quadro de grande complexidade, aridez e
hostilidade para a implementação dos direitos sociais, conforme estabelecido no
artigo 6º da constituição federal (BEHRING & BOSCHETTI, 2011).
Concordamos ainda com as autoras (2011, p.156) que a introdução da
seguridade social na Constituição Federal de 1988 foi um dos mais importantes
avanços na política social brasileira, com possiblidade de estruturação mesmo que
tardia de um sistema amplo de proteção social, mas que não se materializou, e
ainda permanece inacabado. Trabalharemos a seguir as contradições entre o que
se se estrutura como normativa e o que realmente temos efetivado como proteção
social no Brasil.
2.2. Velha roupa colorida: proteção social e responsabilização das famílias
A política social brasileira sofre um redesenho principalmente a partir da
década de 1990, período de contrarreforma do Estado, como já mencionado
anteriormente, baseado no pluralismo de bem-estar (welfare mix) e além de colocar
como entrave as conquistas da Constituição recém promulgada em 1988, também
reforçou processos naturalizados no contexto de sociedade brasileira referentes a
proteção social. Assim há uma ampliação e um reforço do processo de privatização
da seguridade social realizada tanto pelo setor comercial quanto pelo setor
voluntário e informal (MIOTO & PRÁ, 2015).
Também é marca desse processo de transformações a formulação e
execução das políticas sociais, principalmente no que se tange a inclusão da família
na execução da proteção social, o caráter dos programas, serviços, projetos e
36
ações com conteúdo disciplinadores, punitivos e baseados em contrapartida11 em
relação aos benefícios sociais recebidos (GELISNKI & MOSER, 2015).
É nesse cenário contraditório de avanços e de retrocessos, marcado
historicamente pelo antagonismo entre classes, em que permeia a contrarreforma
do Estado brasileiro, que são datados alguns dos mais importantes marcos legais
para a construção da Política de Assistência Social tal como a conhecemos, mas
que também servem para reafirmar o chamado da família, sobreposta ao Estado,
na provisão de bem-estar: a Constituição Federal trará materialidade para a
consolidação da assistência social como política pública incluída na seguridade
social juntamente com a saúde e a previdência social, sendo regulamentada pela
Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de
199312, seguida pela promulgação da Política Nacional de Assistência Social –
PNAS, Resolução CNAS nº 145, de 15 de outubro de 2004 e o Estatuto da Criança
e do Adolescente – ECA, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Podemos compreender a contrarreforma do Estado Brasileiro, que
desencadeia nessas ações governamentais como uma “nova” racionalidade do
Estado frente a administração de conflitos entre as classes (GUERRA, 2014).
Buscando atender minimamente às reivindicações da classe trabalhadora que
culminam no processo de redemocratização, sobretudo reafirma e reestabelece as
bases da ordem burguesa no país, pois ao estabelecer a política de assistência
social como direito social, reestruturando as instituições sociais e dividindo as
11 Essa contrapartida é trazida pelas autoras como workfare: afastando a perspectiva de welfare e difundindo políticas sociais vinculadas ao mérito ou ao exercício do trabalho como imposição (GELISNKI & MOSER, 2015).
12 A LOAS define a assistência social como direito do cidadão, dever do estado e a política não
contributiva da seguridade social que provê os mínimos sociais, garantindo necessidades básicas. Seus objetivos são, a proteção social que visa a garantia da vida, a redução de danos e à prevenção de incidência de riscos, a vigilância socioassistencial, que visa analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, ameaças, de vitimizações e danos e a defesa de direitos que visa garantir o pleno acesso aos direitos do conjunto das provisões socioassistenciais e para o enfrentamento da pobreza, a assistência social deve ser realizada de maneira integrada às políticas setoriais, garantindo mínimos sociais e provimento de condições para atender contingências sociais e promovendo a universalização dos direitos sociais, com gestão organizada de forma descentralizada e participativa pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (BRASIL, 1993).
37
responsabilidades principalmente com setores privados, não se modifica a
estrutura econômica. Isso se cristaliza quando retomamos o pensamento de que a
contrarreforma promovida pelo Estado tem suas bases na economia, na
manutenção da ordem burguesa, mascarados pelo discurso que crise financeira,
em que o Estado sozinho é incapaz de prover bem-estar.
A Constituição Federal de 1988 é tida como o maior marco democrático do
Brasil e representa uma das maiores conquistas da classe trabalhadora do país,
estabelecendo como direitos sociais, a saúde, educação, alimentação, trabalho,
moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, a proteção à maternidade
e a infância, a assistência aos desamparados. E firmando a responsabilidade do
Estado na provisão de proteção social e definindo a seguridade social13 (BRASIL,
1988).
A Carta Magna estabelece a família como base da sociedade e objeto de
proteção especial do Estado. No entanto, também define que é dever,
primeiramente da família, da sociedade e, por fim, do Estado, assegurar a criança
e ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade seus direitos sociais. Em
outras palavras, mesmo que o Estado se coloque como agente de proteção à
família, antes de tudo delega a família o dever de auto proteger.
Nesse sentido, além de se pensar em como é levantada essa centralidade
da família a partir na Constituição Federal, é preciso também nos debruçarmos para
qual família foi pensada essa atenção e proteção do Estado, visto que a
composição familiar defendida no texto constitucional reforça arranjos familiares
tradicionais e conservadores baseados, exclusivamente na composição pai-mãe-
filhos, através do casamento ou união estável, com exceção da monoparentalidade.
13 No que se refere à Seguridade Social, pelo texto constitucional, em seu artigo nº194, é compreendida como um conjunto interligado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos a saúde, previdência e assistência social, cujo os objetivos são a universalidade da cobertura do atendimento, a uniformidade e a equivalência dos benefícios e serviços, a irredutibilidade do valor dos benefícios, a equidade na forma de participação de custeio. Se constitui o tripé da seguridade a partir de três direitos sociais: a saúde apresentada como direitos de todos e dever do Estado; a previdência social, que possui caráter contributivo e filiação obrigatório, e a assistência social que independe de contribuição e disponível a quem dela necessitar (BRASIL, 1988).
38
Estamos de acordo com Gelisnki e Moser (2015), quando afirmam que nem sempre
o repasse de responsabilidade de provisão de bem-estar para a família parece ser
acompanhado de compreensão das concepções múltiplas de famílias, de suas
dinâmicas internas e suas formas de execução ações de proteção.
Reconhecemos, de acordo com Gelinski e Moser (2015), que é na Política
Nacional de Assistência Social – PNAS, mesmo seguindo na defesa da
centralidade da família da política sócio assistencial, que será adotada uma
percepção sobre as famílias diferentemente do que é posto na Constituição
Federal, entendo-a a partir do cuidado em rede e por sua união, seja por laços
consanguíneos, afetivos ou de solidariedade (BRASIL, 2004).
Na PNAS, há o reconhecimento explícito de que, independentemente dos
formatos ou modelos que a família possa assumir, a família é responsável por
mediar as relações entre os sujeitos e coletividade e que os novos arranjos
familiares estão “intrínseca e dialeticamente condicionados as transformações
econômicas e socais”, em que as dimensões três dimensões clássicas para a sua
definição (sexualidade, procriação e convivência) já não tem o mesmo grau de
sobreposição (BRASIL, 2004, p.41).
É nesse sentido que deveria ser regida a proteção social de acordo com a
PNAS: pensando a segurança de convívio ou vivência familiar e a segurança de
acolhida. As ações, os cuidados e os serviços assistenciais14 que sejam capazes
de reestabelecer, proteger e recuperar os vínculos pessoais, familiares e
comunitários.
14 A assistência social se organiza a partir da tipificação da proteção social em proteção social básica
e proteção social especial, sendo a primeira um conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios com fins de prevenção de situações de vulnerabilidade e risco social a partir do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. E a segunda, tem como objetivo a reconstrução de vínculos familiares e comunitários, defesa de direito, o fortalecimento das potencialidades e aquisições e a proteção de famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direito que devem ser ofertadas pela rede sócio assistencial de forma integrada diretamente pelos entes públicos e/ou pelas entidades e organizações de assistência social vinculadas ao Sistema Único de Assistência Social – SUAS (BRASIL, 1993).
39
O Estatuto da criança e do adolescente – ECA – marca o momento em que
a criança e adolescente tem seus direitos reconhecidos enquanto pessoas
humanas15, mudando a concepção de infância e adolescência, que passam a ser
vistos como sujeitos em situação peculiar de desenvolvimento e reforça o que já
havia sido estabelecido na Constituição Federal16 acerca do dever da família, em
primeira instância, da sociedade e do Estado de garanti-los (BRASIL, 1990; LEAL,
2010).
Nos interessa esclarecer, neste ponto do trabalho, como o Estado constrói
suas ações de proteção social quando a família, a quem ele elege como primeira
provedora de proteção social e de bem-estar, não atinge a máxima da autogestão
e da autoproteção almejada pelos vários atravessamentos e vulnerabilidades que
podem, e são, postos cotidianamente a elas na nossa sociedade. Veremos a seguir
que a tendência que prevalece é a de penalização das famílias e ações estatais
focalizadas como veremos a seguir.
2.3. Direito às avessas: a penalização das famílias frente a (des)proteção social
do Estado
Entender o lugar do Estado como agente de proteção social pressupõe
pensar as relações dadas na nossa ordem societária e o lugar que as famílias vêm
ocupando na provisão de proteção social. Como já trabalhamos anteriormente, a
“crise” que se inicia mundialmente nos 1970, reconfigura a organização do Estado
o isentando de boa parte de seus deveres de cidadania com os indivíduos. Como
15 Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, lei nº 8.069, 1990).
16 Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar,
com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, Lei nº 8.069, 1990).
40
consequência, muitas dessas responsabilidades recaem sobre a família. Nesse
sentido,
A crítica mais contundente à afirmação da família como referência das políticas públicas, na atualidade, está associada à regressão da participação do Estado Social na provisão de bem-estar. Ou seja, desvia da rota da garantia de direitos sociais por meio de políticas públicas de caráter universal e entra na rota da focalização das políticas nos seguimentos mais pauperizados da população, fortalece significativamente o mercado enquanto instancia de provisão de bem-estar e aposta na organização da sociedade civil como provedora. (MIOTO, 2011, p.7)
Pereira (2010) afirma que no Brasil houve um beneficiamento por parte dos
governos da participação autossuficiente e voluntarista da família na provisão de
bem-estar de seus membros. Esse beneficiamento se expande quando a partir dos
anos 1980 pelo ideário neoliberal de a família e sociedade devem partilhar com o
Estado responsabilidades antes de responsabilidade dos poderes públicos. Assim
o que era uma tradição na experiência brasileira de proteção social, começa a
ganhar materialidade em processos legais e serem assumidos como parâmetro na
formulação de políticas sociais.
No entanto, há mais: essa tradição é forjada em valores moralizadores de
família, com fins claros e específicos de controle dessa instituição, que requer da
família sua funcionalidade para exercer o papel resolução de conflitos pois a família,
ao lado da vizinhança e da comunidade, sempre ocupou um lugar de destaque de
proteção social, desde o desenvolvimento do sistema capitalista e do liberalismo,
quando se separam ambientes público e privado e se forja a nova concepção de
família nuclear e burguesa é a responsabilidade pela reprodução social e resolução
de conflitos é referenciada ao âmbito privado, principalmente aos papéis femininos,
até mesmo no auge do Estado de bem-estar social, também marcado pelo trabalho
não pago da mulher (PEREIRA, 2010; MIOTO, 2011).
Além disso, também é preciso destacar que esse caráter moralizador das
famílias, foi construído historicamente calçado na ideologia de que as famílias,
“independentemente de suas condições objetivas de vida e das próprias
vicissitudes da convivência familiar, devem ser capazes de proteger e cuidar de
seus membros” o que permitiu uma distinção entre famílias capazes e incapazes,
41
tanto no senso comum como nas propostas dos políticos e dos técnicos
responsáveis pela formulação de políticas sociais e organização dos serviços. Ou
seja, os valores moralizantes de família se fazem presentes diretamente no
atendimento as famílias também pelos agentes executores da política social,
ultrapassando a dimensão legal. (MIOTO, 2010, p. 51).
Dentre as possibilidades de ação do Estado em relação a família, Mioto
(2010) levanta uma questão que nos é importante: o fato de o Estado e a Família
serem, por si só, instituições contraditórias e que, portanto, podem gerar uma
relação conflituosa e contraditória a ser interpretada de diferentes maneiras.
Acreditamos essa relação aparece dessa forma por não ser descolada da forma
como é organizado o processo de trabalho na ordem capitalista. A relação entre
Estado e família se dá mediada pela ordem capitalista na qual o interesse da classe
dominante é apreendido e concretizado pelo Estado em primeira ordem (GUERRA,
2014).
É caro para este trabalho nos centrarmos no entendimento de que as
famílias não são apenas produtos de imposições externas, mas também como “um
conjunto de sujeitos que interagem e desenvolvem complexas estratégias de
relações entre si mesmos, entre a família e o estado e com a sociedade de forma
geral” (MIOTO, 2010, p. 49). Dessa forma, poderíamos, de acordo com a autora,
apreender o Estado como recurso a ser usado na busca de autonomia da família,
seja em referência à comunidade ou dos próprios indivíduos em relação à
autoridade da família, o que favoreceria principalmente os membros mais frágeis
da família a partir da definição e garantia dos direitos individuais.
Nesse caminho, também seria necessário a superação da ideia de que as
famílias devem por si só, ser capazes de proteger seu membros, promovendo a
distinção entre famílias capazes e incapazes também fundados na racionalidade
do pensamento burguês abordado por Guerra (2014), como se tal proteção
dependesse unicamente do seus próprios esforços, pois a hegemonia desse
pensamento norteiam as ações às famílias nos serviços assistenciais a partir de
42
expetativas relacionadas aos papéis tradicionais de gênero na família17; a
organização dos serviços focalizadas somente nos indivíduos-problema para a
resolução de problemas individuais e a centralização de recursos em programas
que atendem as questões mais desumanas das questões vinculadas à infância e
juventude em quanto pouca atenção é dirigida as dificuldades cotidianas das
famílias (MIOTO, 2010).
No entanto, não é só isso. Quando pensamos na proteção social e na política
de assistência social e em suas características fundantes, a compreendemos como
representação do poder da burguesia; e, neste sentido, acreditamos que o discurso
de resgate da cidadania via políticas sociais ao tratar a questão social rejeitando as
contradições de classe, não permite que a concepção de direitos sociais, universais
e extensivos a todos os cidadãos não seja efetivada, redundando apenas nos
planos ideal e jurídico-formal (GUERRA, 2014).
Quando o Estado é acionado a intervir ou proteger via políticas sociais,
temos como resposta uma ação fragmentada, tardia e que negligencia a existência
do conflito entre classes, resultando na penalização da família e dos indivíduos que
a compõem seja pela não efetivação de direitos ou pela culpabilização pelas
violências as quais são submetidas inerentes ao modelo de sistema vigente.
Encerramos o capítulo anterior, tentando desfazer um nó: afirmamos que
pensar a família como agente de desproteção social é entendê-la como principal
instância de proteção social, o que não é possível postas as precariedades e as
vulnerabilidades a quais são expostas e produzidas no e pelo nosso modelo
societário. Aqui, o nó parece se desfazer: só podemos pensar na família, como
agente de proteção social sobre seus membros, se for possível pensarmos na
construção de políticas, assim propriamente ditas, que defendam o interesse da
classe trabalhadora em primeira ordem, sejam capazes de compreendê-las em
17 Essa é uma questão que merece um destaque importante, principalmente pelas transformações ocorridas nas composições da família. Pereira (2010) e Mioto e Prá (2015) são categóricas ao levantar a bandeira já levantada pelo movimento feminista da sobrecarga de serviços relacionados ao cuidado vinculados como obrigatoriedade feminina fomentada no campo das políticas sociais e na organização dos serviços assistências, a partir da normatização da vida familiar.
43
suas diversas formas promovendo suas potencialidades na busca por sua
autonomia e emancipação, o que pressupõe também a superação do modelo de
sociedade vigente.
44
CAPÍTULO 3:
Narrativas (auto)biográficas em discussão
Chegando ao nosso último capítulo deste trabalho, a fim de defender a
narração e o método (auto)biográfico em pesquisa e suas possibilidades à
formação profissional, iniciamos defendendo as narrativas (auto)biográficas como
possiblidade de pesquisa, enfatizando e dialogando com suas características
investigas, reflexivas e interpretativas.
Em um segundo momento, definimos o Estágio Supervisionado Curricular
Obrigatório como campo de pesquisa (auto)biográfica pelas suas características
investigativas e reflexivas semelhantes ao método escolhido, pelas suas
possibilidades em se constituírem como instrumentos do processo formativo, mas
destacando, ao longo do tópico, propostas profissionais próprias do Serviço Social.
Ainda sobre a metodologia, falaremos dos instrumentos e da
instrumentalidade da pesquisa (auto)biográfica, definindo como os instrumentos de
pesquisa os diários de campo e os relatórios, produções realizadas durante os três
períodos letivos de estágio curricular supervisionado obrigatório, realizado em uma
unidade de acolhimento para adolescentes localizada na Baixada Fluminense – RJ
defendendo as possibilidades da efetivação da instrumentalidade do Serviço
Social, no âmbito da pesquisa proposta.
Serão tecidas algumas breves, mas importantes considerações sobre o
serviço de acolhimento como medida de protetiva a partir das normativas as quais
é referenciado, iniciando o tensionamento de alguns princípios constitutivos da
medida como a provisoriedade e a excepcionalidade da mesma.
A partir do processo de retomada de minhas memórias, apresento alguns
sujeitos que figuram em minhas narrativas (auto)biográficas na tentativa de
reconstrução de suas trajetórias de vida, que se expressam nestes documentos
que serão apresentados posteriormente.
45
Assim, me dedicarei a revisitar minhas memórias, a partir da exposição das
minhas produções de estágio, e ao passo em que as analiso, as reconstruo e reflito
criticamente sobre elas, procurarei criar diálogos com o restante desta produção.
Por fim, realizarei algumas considerações posteriores e constitutivas às
narrativas (auto)biográficas apresentadas anteriormente discutindo o acolhimento
e suas possibilidades em se constituir como medida de proteção na sociedade
capitalista retomando algumas discussões realizadas anteriormente nos capítulos
anteriores.
3.1. Sobre narração e método (auto)biográfico em pesquisa
Benjamin (1985) defende a narração como uma ferramenta importante para
manter viva a humanidade e sua história. Entendendo-a como arte e como uma
forma comunicação artesanal, o autor alega que a matéria-prima do narrador é a
própria vida humana – suas próprias experiências e as experiências dos outros – e
que, no intercambiar de informações, a narração gera na humanidade a
possiblidade de reflexão sobre a própria vida, em que o produto desse trabalho
artesanal nunca é algo sólido, mas sim mutável a cada vez que é (re)narrado,
carregando consigo as marcas de quem as narra.
A narração viabiliza a liberdade interpretativa dos fatos narrados. A partir da
relação interessada em que ouve (ou lê) e quem narra, a história se gravará na
memória do ouvinte, que a incorporará à sua própria experiência, assim tendendo
a recontá-la um dia. Dessa forma, sendo um efetivo bom ouvinte, se tem a
possibilidade de se constituir um potente narrador pois “o narrador assimila à sua
substancia mais intima aquilo que sabe por ouvir dizer” (BENJAMIN, 1985, p. 221).
Abrahão (2003) trata a pesquisa (auto)biográfica18, com destaque para as
narrativas, como um instrumento de coleta de informações e, nesse sentido, a
18 A proposta que se inscreve na escrita do termo com a utilização de parênteses – (auto)biografia
– é a de se pensar justamente o movimento de retorno aos documentos produzidos por mim mesma,
46
memória é um elemento fundamental de pesquisas dessa natureza. A autora
também destaca que a adoção dessa metodologia deve ser feita a partir do
reconhecimento da realidade social como multifacetária e socialmente construída;
nesse sentido, os sujeitos vivenciam suas experiências de modo integrado e em
constante processo de autoconhecimento e transformação.
Portanto, assim como Benjamin (1985), a autora reconhece que ao
narrarmos, trabalhamos mais com a emoção e a intuição do que com dados exatos.
Trabalhamos com as subjetividades e não com um objeto concreto. Corroborando
com esse pensamento, Frison & Simão (2011, p. 198) afirmam que:
O centro de pesquisa autobiográfico encontra-se no ser humano que, em diferentes contextos e situações, autobiografa-se, quer narrando fatos de sua vida, quer refletindo sobre seu processo de autoformação. A pessoa, ao narrar, narra-se, e, ao fazê-lo, ressignifica experiências, vivencias, aprendizagens, dando-lhes novo significado.
Abrahão (2003) traz com clareza que o trabalho com narrativas é a
elaboração da memória que se quer transmitir. No caso da autobiografia, em que
trabalha numa perspectiva de pesquisador-investigado, se dá ao passo da
demanda daquele que pesquisa. Nesse sentido, quando surgem as histórias de
vida, ou as (auto)biografias essas são carregadas de significados e aspectos
subjetivos.
Quando narramos algo passado, o fazemos a partir de nosso olhar presente
– podemos ressignificar a história narrada, com atenção de que a memória também
se faz seletiva, ainda que não intencionalmente. Nesse sentido, a (auto)biografia
não pode ser confundida com a descrição ou a mera organização de fatos, mas
deve ser compreendida como um esforço de construção e de reconstrução do
passado como uma história que contamos a nós mesmos e aos outros (ABRAHÃO,
2003).
como possibilidades de dar voz aos sujeitos silenciados na sociabilidade capitalista, entendendo
que essa escrita não é tão autobiográfica assim, pois carrega, na verdade, muitas biografias que
atravessam minha formação.
47
Abrahão (2003), em diálogo com Catroga (2001), Bosi (1994) e Santamarina
e Marinas (1994), afirma que a memória é uma construção seletiva do sujeito e que
rememorar não é reviver, mas sim repensar com as ideias de hoje as experiências
do passado; portanto, a memória é construída por quem somos no presente. Nossa
capacidade de recuperar a memória e de narrá-la, como metodologia de pesquisa,
assume uma dimensão ética e política pelo seu propósito de captura dos sentidos
da vida social que não são facilmente percebidos, exigindo, pois, de nós mesmos
uma construção dialética e reflexiva sobre as relações sociais.
Abrahão (2003) e Frison & Simão (2011) adotam a metodologia
(auto)biográfica pensando a formação de educadores na dimensão pessoal, mas,
principalmente nas dimensões sócio-política e profissional com a justificativa de que
as reflexões provocadas pelas narrativas (auto)biográficas têm como objetivo
(re)construir o sentido do trabalho desses profissionais em sua própria prática, em
que se permite uma atenção muito maior a esse processo de formação. Portanto,
a (auto)biografia, além de um instrumento investigativo, pode também se configurar
como um instrumento formativo-profissional.
Acreditamos, nesse sentido, que o método (auto)biográfico pode dialogar
com o Serviço Social e a este trabalho, tanto como via de investigação como de
formação – na medida em que conseguirmos promover reflexões trazendo aqui as
narrativas construídas durante os períodos de estágio profissional supervisionado,
de forma que nos permita repensar e ressignificar os fatos narrados outrora,
registrando, reafirmando e enaltecendo a história de vida dos adolescentes
institucionalizados e suas famílias com a intenção de contribuir à reflexão e à
discussão da execução da proteção social.
3.2. Sobre o campo da pesquisa (auto)biográfica
Assim como o método (auto)biográfico, o campo a ser pesquisado – as
experiências do estágio – se aproximam por suas características investigativas,
reflexivas e em suas possibilidades como instrumentos formativos. No caso do
estágio supervisionado, como processo didático-pedagógico, esse lugar é ocupado
48
com algumas características e propostas profissionais próprias demarcadas na
Política Nacional de Estágio (PNE).
A PNE marca a preocupação da categoria profissional, materializada pelas
suas entidades representativas e em especial a Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), em criar caminhos para a formação
profissional em consonância com o projeto ético-político profissional19 que se
vincule ao projeto de sociedade de ampliação de direitos e emancipação humana,
principalmente frente as demandas postas pelo avanço neoliberal, direcionando a
formação profissional para a construção de estratégias que contribuam para a
defesa dos interesses da classe trabalhadora (ABEPSS, 2010).
Essa orientação coloca a necessidade de o estágio supervisionado
possibilitar os futuros assistentes sociais, para além do “atendimento exclusivo de
demandas do mercado de trabalho” ampliando a formação profissional a partir do
“desenvolvimento de competências técnico-operativas, compromisso ético-político
e sustentação teórico-metodológica” (ABEPSS, 2010, p.10). Nesse sentido, de
acordo com a PNE o estágio se constitui
num instrumento fundamental na formação da análise crítica e da capacidade interventiva, propositiva e investigativa do(a) estudante, que precisa apreender os elementos concretos que constituem a realidade social capitalista e suas contradições, de modo a intervir, posteriormente como profissional, nas diferentes expressões da questão social, que vem se agravando diante do movimento mais recente de colapso mundial da economia, em sua fase financeira, e de desregulamentação do trabalho e dos direitos sociais (ABEPSS, 2010, p. 11).
Para tal, a PNE defende alguns princípios que devem nortear a realização
do Estagio: a indissociabilidade entre as dimensões teórico metodológica, ético-
19 O projeto ético-político profissional é resultante do movimento de reconceituação profissional que, a partir de um conjunto de instrumentos evidencia a direção coletiva profissional dos assistentes sociais no Brasil. Assim, “deve ser concebido para além de prescrições normativas e corporativas e deve ser apreendido como uma construção coletiva profissional que busca se aproximar coerentemente com o projeto societário emancipatório” o projeto se corporifica em três dimensões: jurídico-normativa, código de ética e lei de regulamentação da profissão, política reorganização da profissão, e dimensão formativa implementação das diretrizes curriculares do Serviço Social” (NETTO, 1990 apud ABEPSS, 2010, p.11)
49
política e técnico-operativa, articulação entre formação e exercício profissional,
indissociabilidade entre estágio e supervisão acadêmica e de campo, articulação
entre universidade e sociedade, unidade teoria-prática e interdisciplinaridade e
articulação entre ensino, pesquisa e extensão. Em vista disso, nos é muito
importante, como justificativa para nossa investida no campo de estágio como
possibilidade de pesquisa, a reafirmação da importância da articulação entre
Estágio com a pesquisa e a extensão universitárias:
Por meio do desenvolvimento articulado entre o tripé do ensino superior, objetiva-se reforçar o cumprimento do princípio universitário e a possibilidade da efetivação de uma formação crítica e de qualidade, capaz de articular teoria e prática, numa perspectiva de revisitar a função social da universidade que é produzir e socializar conhecimentos necessários e úteis à sociedade, tão desvirtuada no contexto de mercantilização e produtivismo acadêmico (ABEPSS, 2010, p. 37).
A pesquisa que propomos a partir deste trabalho, portanto, nos possibilita,
ainda, contribuir ao exercício da função social da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ) à medida que refletimos sobre a realidade, produzimos e
socializamos sobre nosso entorno, a Baixada Fluminense, a partir do processo
formativo profissional, principalmente pensando nas propostas fundantes do curso
de Serviço Social nessa universidade, que é o primeiro em uma universidade
pública na região com carência desses profissionais.
3.3. Sobre os instrumentos e a instrumentalidade da pesquisa (auto)biográfica
Escolhemos como possibilidade de narrativa (auto)biográfica as produções
realizadas durante os três períodos letivos de estágio curricular supervisionado
obrigatório20, realizado em uma unidade de acolhimento para adolescentes
20 Aqui, vale ainda destacar que o Estágio Curricular Supervisionado Obrigatório em Serviço Social da UFRRJ se configura a partir da indissociabilidade entre a oficina de estágio (inserção do estudante-estagiário em campo de estágio) e disciplina de estágio (disciplina de caráter obrigatório na qual são discutidas e trabalhadas as questões relacionadas ao campo de estágio). Nesse sentido, entendemos que as produções, também obrigatórias, desse momento do processo formativo profissional, ocorrem de forma conjunta a partir das reflexões realizadas tanto na oficina quanto na disciplina e que envolvem estagiário, supervisor de campo e supervisor acadêmico. Essa forma organizacional é referendada pela PNE (ABEPSS, 2010) e reafirmada no Regulamento de Estágio Supervisionado em Serviço Social (UFRRJ, 2017).
50
localizada na Baixada Fluminense – RJ, o que nos situa em um lócus com
determinações próprias. Destacamos sua importância na sua ausência frente a
categoria profissional: há poucos estudos e publicações próprios do Serviço Social
que dialogue sobre as instituições de acolhimento (MALFINATO & SILVA, 2014).
Se pensarmos a instituição ou o serviço de acolhimento como um dos
espaços sócio ocupacionais mais complexos de atuação profissional justamente
por sua ligação direta com o cotidiano e o requerimento de respostas profissionais
imediatas, tanto institucionais quanto dos próprios usuários do serviço – os
profissionais estão imersos no cotidiano dos usuários do serviço pela simples razão
de que eles residem ali – de forma objetiva, quais e como se configuram as
possiblidades de afastamento ou superação do cotidiano?
Além das demandas institucionais que necessitam de repostas, temos,
ainda, a convivência permanente com as questões cotidianas dos adolescentes
acolhidos que muitas vezes, postas as relações sociais que se inserem nesse
espaço, também demandam e, muito, da intervenção profissional que é requerida
na imediaticidade.
Pensamos na utilização dos diários de campo e dos relatórios finais de
estágio como possibilidade de instrumentos da pesquisa (auto)biográfica
justamente por suas características descritivas, narrativas e analíticas. Os
documentos em questão se constituem em mais do que exposição ou descrição
dos fatos; oportunizam a reflexão sobre esses.
Nessa perspectiva, tanto os diários de campo, quanto os relatórios finais de
estágio assumem um lugar possível para além de um instrumento da formação em
estágio e assumem também um posto de instrumento de pesquisa, o qual devemos
interagir e valorizar. Costa e Guindani (2012) denominam suas contribuições
didático-pedagógicas, as quais nos são importantes por conversarem com a nossa
proposta de pesquisa, o registro de memórias de um trabalho profissional, o
descortinar do aparato institucional e o espaço para sistematização e reflexões
teórico-práticas
51
Costa e Guindani (2012), ao abordarem as contribuições do diário de campo
para o processo formativo do assistente social, alegam que esse é um excelente
instrumento de sistematização da práxis profissional e da investigação da realidade
social, pois possibilita a interlocução entre prática e teoria, consolida a postura
investigativa e do avanço em questões relacionadas ao estágio supervisionado do
serviço social a medida que possibilita a observação e análise crítica da realidade
social, o planejamento e a avaliação de ações executadas possibilitando avanços
tanto interventivos quanto teóricos ao Serviço Social e, portanto, encerrando
instrumentalidade.
A instrumentalidade, necessária à práxis profissional21, requer a superação
da razão instrumental para o alcance da razão dialética22 a partir do olhar cuidadoso
da realidade, que nos possibilite a superação das intervenções realizadas apenas
às situações imediatas. Guerra (2014) afirma como indispensável a atenção
profissional aos fenômenos emergentes, pois são esses que “contemplam a
necessidade de reconhecer os processos que se insinuam, que se encontram
latentes aos fenômenos”. Se faz necessário um conjunto de saberes que extrapola
a realidade imediata, proporcionando a apreensão da dinâmica conjuntural e a
correlação de forças manifesta ou oculta (GUERRA. 2014, p.268).
Assim, a instrumentalidade do Serviço Social não se limita ao desencadeamento de ações instrumentais, ao exercício de atividades imediatas, uma vez que porta possibilidades de validação vinculadas ao emergente, para o que necessita ser informada por teorias que se referenciem nos princípios ontológicos
21 Práxis é uma ação transformadora realizada no processo de trabalho. Entretanto, a práxis não se encerra na instrumentalidade, necessitando de outras mediações para se realizar como a consciência, a linguagem, os costumes, valores ético-morais (GUERRA, 2007). Nesse sentido, a práxis profissional se concretiza a medida em que atuamos na perspectiva de emancipação dos indivíduos e no projeto de sociedade da classe trabalhadora” (COSTA & GUINDANI, 2012, p. 275).
22 A razão Instrumental é dimensão da razão dialética e como tal, se limita a “operações formal-abstratas e à praticas manipuladoras e instrumentais, fragmentadas, descontextualizadas e segmentadas, por isso ela é funcional à reprodução social da ordem burguesa”. Já a Razão dialética entende-se como o último nível de razão e, portanto, de caráter crítico e emancipatório. Referindo-se “a uma lógica objetiva que os processos sociais portam e às condições que permitem a reconstrução desta lógica, pela via do pensamento”. (GUERRA, 2007, p. 14)
52
de constituição do ser social, às quais subjaz um determinado grau de racionalidade que lhe permite apreender a totalidade dos
processos sociais e atuar sobre eles (GUERRA, 2014, p. 268).
Pensar a instrumentalidade do e no Serviço Social requer pensa-la além da
utilização de instrumentos específicos em respostas profissionais, ou, no caso, de
instrumentos de formação profissional, mas sim como “uma determinada
capacidade ou propriedade constitutiva da profissão, construída e reconstruída no
processo sócio histórico” que estabelece o modo de ser da profissão adquirido no
interior das relações sociais, no confronto das condições objetivas e subjetivas23 do
exercício profissional (GUERRA, 2007, p.1).
Portanto, (re)tomar os instrumentos próprios do período de inserção no
campo de estágio, e, construídos a partir desta, se constitui como uma possibilidade
de (re)leitura da realidade já vivida com um olhar mais apurado do presente, pois,
ao nos debruçarmos sobre esses documentos, pretendemos compreender, a partir
de uma (re)aproximação dialética, tentando entender como as reflexões se deram
durante o processo de estágio e refletir, novamente, sobre elas, (re)construindo
caminhos, trajetórias, histórias dos adolescentes acolhidos, as relações sociais
estabelecidas dentro e fora da instituição de acolhimento e o lugar do assistente
social nesse espaço lotado de determinações, partindo do entendimento que as
aproximações com essa realidade ainda não foram esgotadas – e talvez não sejam
– buscando trilhar um caminho da práxis profissional.
Por fim, a partir (re)aproximação dialética com as narrativas produzidas nos
diários de campo e nos relatórios finais, objetivamos a (re)construção das trajetórias
dos adolescentes acolhidos diante das determinações que lhes atravessaram, e a
construção de um caminho para a práxis profissional, compreender as relações
estabelecidas entre os adolescentes e suas famílias durante o acolhimento
institucional.
23 Guerra (2007) explicita: as condições objetivas referem-se à produção material, postas na realidade material como os objetos e campos de intervenção, os espaços sócio ocupacionais, a divisão social do trabalho, enquanto as condições subjetivas referem-se aos sujeitos e suas escolhas, grau de competências e preparo técnico e teórico-metodológico, entre outros.
53
3.4. O acolhimento institucional como medida de proteção a crianças e
adolescentes: algumas considerações importantes ainda nas tessituras
fundamentais
No que se refere às medidas de proteção à criança e ao adolescente, essas
são estabelecidas a partir da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, e
nas disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em específico,
falando de instituições de acolhimento, essas são organizadas e definidas a partir
da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), da Tipificação dos Serviços
Socioassistenciais, e das Orientações Técnicas para Serviços de Acolhimento de
Crianças e Adolescentes.
Seguindo diretamente ao tocante do nosso trabalho, no que se refere às
medidas de proteção às crianças e aos adolescentes, o ECA dispõe, em seu artigo
98, que são aplicáveis sempre que ocorra a ameaça ou violação dos direitos
reconhecidos na normativa seja por omissão da sociedade ou do Estado, por falta,
por omissão ou por abuso dos pais ou responsáveis, ou em razão se sua própria
conduta. O acolhimento institucional aparece como medida protetiva24 provisória e
excepcional no artigo 101, recorrida como forma de transição para reintegração
familiar e, não sendo esta possível, para colocação em família substituta. (BRASIL,
1993).
As instituições de acolhimento são serviços socioassistenciais25 da proteção
social de alta complexidade, que garantem proteção integral para famílias e
24 As medidas protetivas devem visar ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Regidos pelos seguintes princípios: I – condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos; II – proteção integral e prioritária; III – responsabilidade primária e solidária do poder público; IV – interesse superior da criança e do adolescente; V – privacidade; VI – intervenção precoce; VII – intervenção mínima; VIII – proporcionalidade e atualidade; IX – responsabilidade parental; X – prevalência da família; XI – obrigatoriedade da informação; XII – oitiva obrigatória e participação. (BRASIL, 1993, art. 100).
25 De acordo com a LOAS, os serviços socioassistenciais se constituem em atividades continuadas
objetivando a melhora de vida da população com ações voltadas a necessidades básicas. No que tange as crianças e adolescentes, os serviços estão em consonância com o disposto na constituição federal de 1988 e no ECA.
54
indivíduos que estejam sem referência sociofamiliar ou em situação de ameaça, o
coloca a necessidade de sua retirada de seu núcleo familiar e comunitário. O
acolhimento deve garantir os direitos de privacidade, costumes, diversidade, de
raça, religião, arranjos familiares e ciclos de vida (BRASIL, 2009; 2014).
As orientações técnicas para serviços de acolhimento para a criança e o
adolescente (BRASIL, 2009) demarcam e reforçam alguns princípios previstos
também no ECA, aos quais destacamos importância para esse para a discussão
que se seguirá, na perspectiva da efetivação da proteção social como direito, são
eles: a excepcionalidade do afastamento do convívio familiar, provisoriedade do
afastamento do convívio familiar, preservação e fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários.
Iniciei meu processo formativo em estágio supervisionado na instituição de
acolhimento em setembro de 2017 e o finalizei em dezembro de 2018,
contabilizando três períodos letivos, de acordo com o que é estabelecido no
regimento do Estágio em Serviço Social da UFRRJ.
Para executar o que nos propomos no capítulo anterior, irei expor alguns
trechos dos meus relatórios finais de Estágio e dos meus diários de campo
produzidos, refletindo e re(pensando) o que escrevi e o que vivenciei, reconstruindo
minhas memórias. Destaco que as memórias e as narrativas que aqui se
apresentarão representam escolhas que fiz, a partir da minhas maiores
inquietações relativas no campo de estágio, algumas vinculadas ao cumprimento
do estabelecido nas normativas, como por exemplo e já mencionado o caráter
provisório e excepcional do acolhimento e ao cumprimento da medida protetiva,
constituída como tal e para tais fins propostos em lei e outras vinculadas as relações
construídas pelos adolescentes no e pelo acolhimento, dentro e fora da instituição.
55
3.5. (Re)construindo memórias e narrativas (auto)biográficas
Durante meu processo formativo em estágio supervisionado em uma
unidade de acolhimento, um dos meus maiores incômodos era a falta de
informação material, ou seja, documentada, que abordasse as histórias de vida dos
adolescentes, ou até mesmo suas trajetórias pregressas e posteriores ao
acolhimento. É nesse sentido que tento (re)construir, neste trabalho, a partir da
revisitação das minhas memórias, num processo analítico dos documentos
produzidos por mim durante este período, um pouco do que sei sobre eles, como
possiblidade de reafirmar suas trajetórias.
Entretanto, não há possiblidade, devido ao necessário aprofundamento
desta pesquisa, de reconstruir a história de todos. Selecionei alguns dos
adolescentes que mais figuram direta e indiretamente na minha produção das
minhas narrativas do processo de Estágio, sejam os diários de campo ou os
relatórios finais, partindo do pressuposto de que, muito do que foi escrito, diz
respeito ao meu contato com eles durante o período de formação. Se trata,
portanto, de um recorte metodológico necessário, para o aprofundamento da
discussão a qual esse trabalho se propõe.
O pouco de informação que consegui reunir emerge do meu contato com os
adolescentes no cotidiano da instituição e do pouco de informações documentadas
as quais tive acesso, mas que nos servem à (auto)biografia em movimentos
opostos e complementares: aquilo que compartilho aqui, a partir de narrativas
produzidas por mim e através de suas histórias, contam sobre suas vidas tanto
quanto aquilo eu não sei e não sou capaz de compartilhar. A falta de alguns dados,
como a retomada de algo que possa ter passado desapercebido, ou, ainda, a
existência de questões sem respostas, também constituem as narrativas.
Constituem, pois, dados de pesquisa.
Apresentarei alguns adolescentes acolhidos, utilizando nomes fictícios afim
de preservá-los ainda mais o direito ao sigilo, no período em que estive como
estagiária no abrigo. Contarei brevemente um pouco de suas histórias – de antes
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e durante o período de acolhimento – e até aquelas que, ao olhar para os meus
relatórios e diários de estágio, não estão presentes; mas registradas em minha
memória. 26
Escolho começar por Luiza e me aprofundar principalmente nas narrativas
da história que é sua, de seus irmãos, de sua família – porque foram essas histórias
que apresentarei a seguir que protagonizaram a maioria dos meus diários de
campo. Apresento-a, assim, brevemente neste momento.
Luiza, 1727 anos, foi acolhida pela primeira vez ainda na primeira infância e
passou a maior parte de sua vida em instituições de acolhimento. Foi acolhida pela
última vez em 2017, após uma tentativa malsucedida de colocação em família
extensiva.
É uma pessoa com deficiência, devida à má formação de membros inferiores
e superiores e, de acordo com informações colhidas, isso se devia ao uso abusivo
de drogas e álcool por parte de sua genitora durante a gestação, o que também
ocorreu com alguns de seus irmãos. Luiza é a segunda de 10 irmãos. Alguns irmãos
de Luiza foram acolhidos nessa instituição ou em outra no mesmo município.
Outros irmãos de Luiza se envolveram com o comércio varejista de drogas, ao qual
um perdeu sua vida e outros dois já haviam sido presos.
A adolescente se sentia muito responsável por seus irmãos mais novos que
estavam acolhidos na mesma instituição – Lucas, de 15 anos; Fábio, 13; e Paula,
12 –, com outros três irmãos mais novos acolhida em outro abrigo municipal e com
sua irmã mais velha – Carla, de 21 – já adulta, mas também era uma pessoa com
deficiência e que residia no abrigo por não haver residência inclusiva28 no
26 A memória, neste caso, só assume a possibilidade seu caráter reflexivo pelo movimento de retorno e de crítica que faço às minhas próprias lembranças.
27 Todas as idades tratadas aqui referem-se ao mês novembro de 2018, no qual fiz um levantamento de dados dos adolescentes enquanto ainda estava em estágio supervisionado.
28 Modalidade de acolhimento institucional que inclui pessoas com deficiência, que não possam garantir sua autossuntentabilidade ou que possam ser resguardados por suas famílias.
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município. Luiza e seus irmãos recebiam visitas de seu genitor e de sua madrasta
periodicamente e também recebiam permissão para visitá-los.
O genitor e a madrasta de Luiza também faziam uso abusivo de álcool e
drogas, o que motivou denúncias de vizinhos ao conselho tutelar, resultando no
acolhimento de seus outros quatro filhos mais novos, Fábio e Paula, em 2018. Até
onde consigo ter informação, não eram atendidos na Unidade do Centro de Atenção
Psicossocial Álcool e Drogas, sendo acompanhado em um Centro de Referência
da Assistência Social (CRAS) do município, referenciado apenas aos seus quatro
filhos mais novos. Durante o período em que pude acompanhar Luiza e seus irmãos
acolhidos nesta instituição, não houve contato formalizado entre as instituições que
viabilizasse qualquer tipo de ação conjunta em relação aos adolescentes e seu
genitor.
O contato com a genitora era mais restrito, pois era difícil encontra-la pela
sua relação com as drogas; no entanto Luiza, que sabia que seus irmãos não
tinham muito contato com sua genitora, tentava fazê-los construir um olhar de
carinho a seu respeito. Ouvindo o relato de Fábio e de Paula quando foram
acolhidos, foi perceptível que possuíam uma boa relação com o genitor, que se
preocupavam com ele e que acreditavam que sua relação com o álcool e as drogas
poderia piorar com a saudade.
3.6. O que os diários (não) nos contam
Os diários construídos ao longo do processo de estágio, com exceção do
primeiro, construído na Oficina de Estágio I (e que será metodologicamente
apresentado por último) possuem um caráter mais descritivo dos fatos, pois foi
assim definido pela supervisora acadêmica na época. Reafirmamos, assim, mais
uma vez, a necessidade de trazê-los à memória e realizá-los como instrumentos de
pesquisa como já defendemos, reafirmando, a partir da perspectiva
(auto)biográfica, que a reconstrução crítico-reflexiva do passado pode superar a
mera descrição ou organização dos fatos cronológicos. A partir da elaboração e da
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reconstrução de minhas próprias memórias é que se encerram as tentativas de
capturar o que passou desapercebido, e que exigem de mim um movimento
dialético reflexivo que, na maioria das vezes, não será convergente com o que
agora sou, e penso, a partir das reflexões produzidas com o passado.
Pretendo, neste momento, preencher algumas lacunas nas histórias que eu
escolhi (re)narrar nos diários de campo. Não será minha pretensão destrinchar as
histórias dos adolescentes, em suas mais diversas expressões da questão social e
analisar seus atravessamentos durante esse trabalho.
Começaremos pelo relato da história de Luiza, em março de 2018.
Iniciei a tarde organizando a documentação dos adolescentes, e separando o que era importante para a audiência concentrada que ocorrerá em abril.
L., entrou na sala da equipe técnica para conversar informalmente,
o que é comum na rotina da instituição.
L. relatou a mim e minha supervisora sobre a morte de seu irmão mais velho que tinha envolvimento com o tráfico em que a mesma foi a responsável por fazer o reconhecimento do corpo do seu irmão no hospital municipal. Durante o relato foi notório como os fatos marcados pela violência já se naturalizaram por aqueles que os vivenciaram.
L. relata que possui 10 irmãos, dos quais três tem ou tiveram envolvimento com o crime e duas estão institucionalizadas, tem 16 anos, é uma pessoa com deficiência nas pernas e braços e tem um histórico de acolhimento extenso iniciado na primeira infância, assim como é o caso de suas duas irmãs.
Sua mãe faz uso abusivo de drogas e foi em decorrência disso, que ela e sua irmã mais velha encontram-se acolhidas. L. já passou por uma tentativa recente de reintegração familiar com uma irmã que foi malsucedida.
L. mantém contato com seu genitor e sua tia, mas nenhum desses gostaria e/ou teriam condições de recebe-la permanentemente em sua casa (DIÁRIO II, ESTÁGIO II, 2018).
Esse diário de campo retrata algo comum durante meu período de Estágio:
o acesso dos adolescentes à equipe de maneira informal, em conversas que não
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se traduziam em nenhum tipo de atendimento ou formalização de ações específicas
por parte da equipe técnica.
O que deixei de mencionar nesse relato, foi o horror das cenas que Luiza
narrou a mim e à supervisora de campo. Na época, não quis trazê-los para o relato
por achar a sua história tão violenta que eu não saberia como retratá-la. Não
acredito mais que Luiza realmente tenha naturalizado a experiência violenta de lidar
com a morte de seu irmão, como escrevi na época, quando me lembro, agora da
dor que suas palavras carregaram. Acredito que tenha escrito isso pensando em
como algumas situações pareciam “familiares” a ela naquele contexto. Dada certa
naturalidade com que me contara, hoje entendendo que a realidade da violência,
em suas mais diversas faces, sempre se fez presente na vida de Luiza.
Luiza, acompanhada de uma cuidadora, em um dia que não havia
expediente da equipe técnica, realizou o reconhecimento de seu irmão no hospital
municipal da cidade porque não havia conseguido contato com mais ninguém da
família no momento e estava desesperada com a notícia de sua morte. Não há
palavras que expressem aqui o horror que Luiza disse sentir ao ver seu irmão morto
e desfigurado por uma bala que o alvejou. Naquela época, a adolescente tinha mais
dois irmãos envolvidos com o crime e se preocupava que eles tivessem o mesmo
destino que seu, agora, falecido irmão.
Seis meses depois, em setembro de 2018, numa mesma semana, a
instituição receberia mais três irmãos de Luiza. Um dos irmãos era Lucas, de 15
anos, e havia cumprido cerca de um mês em medida socioeducativa em uma
unidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativa (DEGASE), após ter sido
abordado por policiais militares – e constatado que o mesmo estaria envolvido com
o varejo de drogas.
Durante a audiência, a Juíza e a Promotora do caso na Vara da Família,
Infância e Juventude, em conversa com o adolescente, alegaram que decidiram por
seu acolhimento na instituição pois ele estava recebendo uma “nova chance para
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mudar sua história”, e que assim era feito, porque se entendia que ele havia sido
abandonado por seu genitor. Relato da seguinte forma:
L. tem 15 anos, é negro e de uma família de 10 irmãos e pais realizam uso abusivo de álcool e drogas. Sua família tem histórico de acolhimento institucional anteriores a esse. Sendo duas irmãs mais velhas abrigadas há mais de um ano, seus irmãos mais novos (4) acolhidos novamente na mesma semana, um irmão mais recentemente assassinado e outro gerente do tráfico em uma
comunidade de Itaguaí.
Durante a audiência foi colocado ao adolescente que o mesmo seria colocado na instituição de acolhimento, recebendo assim, uma nova chance de “mudar sua história”, mas que outros possíveis “erros” não seriam tolerados. Caso o mesmo se envolvesse novamente em conflitos com a lei, ou evadisse, – como ocorrera na semana anterior com outro adolescente – quando encontrado, seria internado novamente no DEGASE (DIÁRIO II,
ESTÁGIO III, 2018).
Deixei de abordar nesse diário o quanto fiquei horrorizada quando vi Lucas
e outros adolescentes algemados, uniformizados e conduzidos por guardas do
DEGASE no Fórum Municipal, sem nenhuma preocupação com o resguardo de
suas identidades. Me lembro de questionar como poderia chamar de medida
protetiva algo que os aprisionava e os expunha a situações vexatórias, desumanas,
contra princípios legais, inclusive.
Lucas, durante toda a audiência, permaneceu de cabeça baixa e em
determinado momento foi desalgemado. Me recordo da cena em que ele esfregava
as mãos nas marcas que a algema havia deixado em seus punhos – me parecia
triste, envergonhado e constrangido.
Quando retornamos à instituição com Lucas, Carlos estava tenso e
apreensivo com a situação. Havia sido informado pelos adolescentes que Lucas
chegaria e já o conhecia do tempo em que trabalhou com o comércio varejista de
drogas:
Ao chegarmos na instituição, outro adolescente, C. se reportou a equipe com medo pois já tinha trabalhado na mesma localidade que L., como havia saído do varejo devendo, temia ter sua localidade
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revelado por L. e que fosse morto por conta da dívida, alegando não confiar sua segurança em L.
Foi enviado ao Ministério Público uma síntese informativa retratando a situação e solicitando suporte pois não havia nada no momento que pudesse ser feito pela equipe técnica além de autorizar o adolescente a dormir fora naquela noite.
Há uma crescente preocupação no município com a mudança no perfil de adolescentes acolhidos que se caracterizam em grande parte pelo envolvimento com o crime e/ou em risco por envolvimento anterior. Nos últimos meses, 6 adolescentes com
esse perfil passaram pela instituição.
Essa questão é reflexo do grande aumento da violência e de conflitos entre o crime organizado no município que não se diferencia do resto do estado do Rio de Janeiro em que a cooptação de jovens é sempre lucrativa e interessante a esse nicho de mercado.
O acolhimento desses jovens se torna preocupante, pois, num município de território não muito extenso como é o caso, o adolescente em risco no território não está protegido durante o acolhimento bem como ainda desprotege o restante dos acolhidos visto que, nesse momento, a instituição não pode contar com serviço nenhum de segurança. Os guardas municipais, por
exemplo, estão extintos no município desde 2017.
A preocupação se estende, ainda, à total falta de estrutura, programas e projetos institucionais direcionados a esse público alvo que precisa de ações imediatas que os façam permanecer acolhidos por vontade própria, pois não é possível contê-los na unidade; novamente a segurança da unidade é evocada.
As ações pensadas até esse momento para esses jovens são as que visam incluí-los no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes ameaçados de morte – PPCAAM, entretanto, nenhum adolescente foi incluído no programa até o momento.
O adolescente L. evadiu na noite posterior ao seu acolhimento levando mais um adolescente, L.H.
L.H retornou à unidade através do conselho uma semana depois. Não há notícias oficiais de L., mas os outros adolescentes, alegam que o mesmo voltou para o trabalho no varejo na mesma comunidade (DIÁRIO II, ESTÁRIO III, 2018).
Carlos, 16, teve primeiro acolhimento motivado pela violência física que
sofria por parte do genitor, que fazia uso abusivo de drogas, nesse período que é
anterior a minha entrada na unidade como estagiária, durante uma audiência
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concentrada, decidiram que Carlos permaneceria no município e não se mudaria
para a Bahia, onde havia alguns familiares maternos. Tempos depois, Carlos
evadiu do abrigo, começou a trabalhar para o comércio varejista de drogas, e sua
namorada engravidou. Essa seria a motivação que o faria, em suas palavras
“querer mudar de vida” e, novamente, voltar ao abrigo, recorrendo por conta própria
ao conselho tutelar. Depois de ser acolhido pela última vez, em 2017, sua família
de referência passou a ser seu filho, sua namorada e a família dela com quem
mantinha visitas.
Neste dia, Carlos teve de dormir na casa de sua namorada para ter o mínimo
de segurança, já que a instituição não pode lhe garantir isso. Era fato conhecido
pela equipe técnica que Carlos tinha dívidas com o tráfico, mas ele alegava que
havia sido perdoado por uma parte deles. No entanto, com a chegada de Lucas,
revelou que parte do tráfico ainda não havia perdoado a dívida.
O que essa situação em particular remete é a frequência em que as ações
pensadas para a proteção dos adolescentes, encerram, na verdade, em sua
desproteção ou na desproteção de outros, pela falta de consideração das
condições objetivas para o próprio funcionamento institucional e efetivação da
política por parte do poder judiciário. Pela dinâmica estabelecida no município pela
disputa de poder de “gerenciamento” de medidas protetivas destinadas à infância
e juventude, dadas as muitas fragilidades da gestão municipal que extrapolavam
os muros do abrigo, muitas decisões eram tomadas somente pelo corpo jurídico e
simplesmente acatada pelas instituições e serviços socioassistenciais.
Também é necessário reafirmar que, a partir dos dois relatos até aqui
narrados, como a equipe técnica, na época formada apenas por assistentes sociais,
recém-chegadas à instituição, era tensionada e requisitada a dar respostas a
questões que necessitavam de ações imediatas. Por mais que pudesse haver a
intenção de construir mediações que viabilizassem a construção de outras
respostas profissionais as demandas dos adolescentes, muitas vezes, pela
dinâmica e condições objetivas da instituição isso era inviabilizado. Um dos
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inimigos do acolhimento, nesse caso em específico, por mais contraditório que
pareça ser foi o próprio tempo.
Não tivemos, eu ou a equipe técnica, a oportunidade de conversar ou de
realizar qualquer atendimento a Lucas pois, durante o retorno ao abrigo, ele não
disse uma só palavra e aquele foi o único dia em que Lucas passou no abrigo, o
dia em que passamos tentando encontrar uma solução que garantisse a segurança
de Carlos naquela noite; naquela mesma noite em que Lucas evadiu da instituição.
Alguns meses depois, Lucas seria novamente detido pela polícia militar durante um
confronto.
Se faz necessário, a partir das narrativas reconstruídas, retomar ainda a
discussão que traçamos no primeiro capítulo deste trabalho no que se refere,
especificamente, aos jovens dos segmentos mais empobrecidos da classe
trabalhadora que tem suas trajetórias de vida marcadas pelo não acesso às
políticas públicas, como demarcamos a partir de nosso diálogo com Losacco (2018)
em que reafirmamos: a população jovem e pobre é empurrada para
comportamentos socialmente excludentes e quanto mais excluídos, menos são
alvo das políticas sociais construídas pelo Estado, e as ações que lhes são
direcionadas se aprofundam em seu caráter assistencialista, emergencial e
descontinuado.
Naquela mesma semana de setembro, realizamos, eu e a supervisora de
campo, atendimento aos irmãos Fábio e Paula:
Realizamos atendimento social aos irmãos P. e F. 12 e 13 anos, negros. Os mesmos foram acolhidos na unidade há dois dias após denúncia ao conselho tutelar por negligência de seus pais devido ao uso abusivo de álcool e drogas dos mesmos.
Antes do atendimento foi feita leitura do relatório do conselho tutelar. Percebemos a diferença no trato a questão pela equipe de conselheiros e pelo relatório da assistente social do C.T.
Enquanto o primeiro determinava o acolhimento institucional dos irmãos pela possível negligência; o segundo encaminhava os pais para o atendimento de álcool e drogas, enfatizava os vínculos afetivos da família em questão, o bom desempenho dos irmãos na
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escola e a ausência de situações de violência ou negligência percebidas pela escola – o que é percebido a partir do relatório enviado pela escola acerca do rendimento escolar dos mesmos. Foram acolhidos 4 irmãos, sendo dois menores de 12 anos encaminhados ao Abrigo ******** ** *********.
Na unidade há mais 3 irmãos da mesma família. L. (15), L. (16), C (21). A família é formada por 10 irmãos dos quais 8 são acolhidos atualmente, um foi assassinado e outro trabalha no varejo de drogas.
Durante a realização do atendimento, os adolescentes relataram não saber exatamente o porquê de estarem acolhidos, pois ninguém havia esclarecido isso a eles.
Quando questionados sobre o que estavam achando do acolhimento, relataram estar gostando por se alimentarem melhor e ter horário para as refeições, alegando se sentirem melhor cuidados do que em sua casa, mas que ainda assim gostariam de voltar a morar com o pai e a madrasta. Mas não no mesmo bairro, que é marcado pela violência e conflito entre facções criminosas.
Alegavam boa relação com pai e a madrasta e demonstravam preocupação com o agravamento da saúde de seu pai e sua relação com o álcool após o rompimento do convívio entre eles.
Foram percebidas ainda outras questões como a exploração do trabalho infantil, exercido por F. em um curral, onde o mesmo tirava leite de vaca e seu pagamento entregava na mão de seu pai e ainda numa lan-house; serviço ofertado por um pastor que o pagava com compras no supermercado.
Entretanto, os mesmos eram beneficiados pelo programa bolsa família, eram acompanhados pelo CRAS ******* e também eram atendidos na UBS de seu bairro.
Apesar dessas questões, inerentes a uma família historicamente marcada pela pobreza, é consenso que mesmo que algumas ações se configurem enquanto negligência essa não é absoluta na promoção de cuidados da família para com seus filhos. O que acreditamos que deveria ser tratado como um importante determinante para que outras ações, que não o acolhimento fossem, pensados à essa família, como o encaminhamento do pai ao CAPS A.D e inclusão em programas de geração de trabalho e renda, já que o mesmo atualmente se encontra realizando bicos com em reciclagem e capinagem de terrenos o que compromete o rendimento financeiro da família.
Haverá nas próximas semanas uma audiência para a reavaliação do acolhimento dos irmãos.
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É importante, portanto, levantar a problemática do trato à questão social pelo viés da moral, deixando-se escapar os determinantes históricos, sociais e econômicos que colocam a família em questão inteira, não somente as crianças estão em situação de desproteção.
Berberian (2015) chama nossa atenção ao uso do termo negligência em que esse é empregado com vício de conteúdo moral para denominar situações em que um indivíduo é avaliado negativamente em relação ao não cumprimento de alguma de suas responsabilidades.
Além disso, nos aponta que, sobretudo, é preciso se atentar para os discursos e práticas transferem as responsabilidades do Estado para a figura da família assim como a culpabilização pelo não desempenho de determinadas funções (DIÁRIO III, ESTÁGIO III, 2018).
Neste diário, o último apresentado durante minha formação, fica mais
evidente a imagem que é construída às famílias que possuem crianças em situação
de risco ou vulnerabilidade. O julgamento moral e maniqueísta que divide famílias
em capazes e incapazes, como já abordado em outros momentos deste trabalho a
partir de Mioto (2011) e Guerra (2014) é materializado na construção dos
documentos institucionais, aqui produzidos pelo Conselho Tutelar que infelizmente
representa, de forma geral, todo o aparelho de proteção social construído no
município quando não levam em consideração as próprias violências que o genitor,
que deveria assumir o papel provedor sofre por sua condição de pobreza.
Não me isento aqui de ter feito defesa a algumas questões problemáticas
como a questão moralizante do trabalho a que eu mesma critico agora e no próprio
diário, posteriormente. A forma como abordo a questão parece conceber ao genitor
dessa família a responsabilidade unilateral por sua sobrevivência, objeto que venho
questionando durante este trabalho.
Desobedecendo mais uma vez à ordem cronológica das narrativas que
produzi, escolho finalizar este tópico pelo início de minha trajetória no campo de
Estágio que hoje entendo como prenúncio do que pode vir a ser o fim das tantas
histórias que tentei (re)narrar aqui. O fim da história de Alice com a proteção social
e o acolhimento institucional definido em uma audiência concentrada.
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Não tive muito contato com Alice, tampouco com sua história de vida, devido
ao pouco tempo que tive com a mesma e com seu irmão Bernardo. Por isso, não
posso contá-los aqui. Na época, escrevi:
Cheguei na instituição de acolhimento por volta das 13:00h quando
a audiência já havia sido iniciada pela manhã, enquanto subia as
escadas esbarrei com os adolescentes que estavam sentados nos
degraus da mesma; me perguntei silenciosamente se aquilo não
demonstraria a angustia do momento que os mesmos viviam frente
aquela situação.
[...] O caso da adolescente A. se colocou como algo de mais
urgência e de preocupação da equipe técnica do abrigo pelo fato
da mesma estar prestes a atingir a maioridade, o que representa a
sua saída do abrigo logo no final deste ano corrente, portanto, o
parecer da equipe técnica se orientava no trabalho da autonomia
financeira da adolescente com a manutenção do acolhimento.
Posteriormente a essas informações, foi chamado genitor dos dois
adolescentes que se sentou em uma cadeira bem de frente à Juíza.
O mesmo contou um pouco de sua história para a juíza relatando
que devido separação da genitora, perdeu o contato com os filhos
durante um período de tempo e que depois o reestabeleceu e
“auxiliava a mãe financeiramente” (sic) [...]
[...]. Chamaram, na presença do genitor, a adolescente A para ser
ouvida e quando colocado para a mesma a possibilidade de
inserção no convívio familiar do genitor, a mesma não se
demonstrou muito à vontade com a situação pela falta de vínculo
afetivo estabelecido.
Ficou determinado, então, que o Genitor deveria comparecer ao
abrigo para visitas periódicas a adolescente a fim de estabelecer
esse vínculo afetivo, além de sua inclusão no Projeto Reavivando
Laços e, caso nesse período, o vínculo afetivo fosse construído, a
oferta de 6 meses de cesta básica aos dois, visto que o genitor se
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encontra desempregado e a adolescente poderia ainda não ter
vínculo empregatício quando saísse do abrigo. Para a adolescente,
buscava-se a inserção da mesma em algum curso
profissionalizante (DIÁRIO I, ESTÁGIO I, 2017).
Quando me recordo desse dia, me lembro perfeitamente do tom intimidador
do corpo jurídico, em especial a juíza e a promotora, e de como o ambiente era
hostil ao genitor da adolescente. Havia claramente um julgamento sobre o genitor,
que parecia constrangido ao ser questionado na frente de tantas pessoas – os
membros de outras pastas municipais permaneciam na sala enquanto as famílias
eram ouvidas.
Também me lembro perfeitamente, e isso relatei no diário, o quanto era
desconfortável a situação para a adolescente. Claramente, até aquele momento,
não havia sido construída nenhuma iniciativa de reaproximação da mesma com seu
genitor, e nesse momento, ele era sua única possibilidade fora da instituição.
Aqui, nos cabe resgatar o que construímos ao longo deste trabalho, a partir
de (GUERRA, 2014) no que diz respeito a penalização das famílias abordada frente
a negligencia do Estado em atender as demandas da classe trabalhadora, sem
assumi-las como demandas de uma classe específica que é eternamente
tensionada pela ordem burguesa, aos quais o interesse desta classe dominante é
atendido.
A “autonomia financeira” a que faço menção no diário de campo se referia a
entrada de Alice no mercado de trabalho a qualquer custo. Devido à baixa
escolaridade da adolescente, foi sugerido a mesma que iniciasse um curso de
designer de sobrancelhas. Nos parece que aqui, o Estado além de não dar conta
em “solucionar os problemas que a família fracassou”, desiste e entrega a
responsabilidade novamente à família: dividindo-a entre a adolescente e seu
genitor. Mais uma vez, a responsabilidade que deveria ser, em primeira ordem, do
Estado são depositados na família.
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O caráter da autonomia financeira proposta ganha ainda mais significado
quando pensamos nas possibilidades postas a adolescente quando resgatamos
Losacco (2018) e Alencar (2010), ao pensarmos as possibilidades materiais dos
jovens pobres, ao acesso à uma política de educação de qualidade, acirram cada
vez mais sua exploração como mão de obra, fundamentada no trabalho
desqualificado, nos baixos salários e no subemprego que reestruturam as
precariedades da família.
No discorrer do diário, faço menção aos princípios que deveriam reger as
medidas protetivas tratadas no ECA. Me referencio principalmente aos princípios
vinculados a participação da família e oitiva obrigatória como forma de garantia que
os interesses da criança e de sua família sejam ouvidos, garantindo que cada caso
seja tratado de forma individualizada e com uma periodicidade máxima de seis
meses. No entanto, também levanto minhas impressões sobre como a construção
desse momento é dado por um processo violento pode constranger e intimidar tanto
o adolescente quanto sua família.
[...] analisando a audiência, pude observar que os sujeitos envolvidos na audiência, de maneira geral, são intimidados pelo corpo judiciário representado pela juíza e pela promotora, principalmente, nesse caso, os adolescentes A e B e seu genitor. Era nítido que a representação da Juíza, para eles, era demonstrada como nível máximo de autoridade que deveria ser respeitada acima de tudo. Pude perceber que em alguns momentos, era difícil até o contato visual entre a mesma e os
usuários.
Figueiredo (2015) em seu texto esclarece sobre as funções contraditórias que o Judiciário, como o lócus de intermediação da medida de proteção, como “ethos burocrático” assume dois papeis contraditórios. Citando Faria (2001) elenca: “um de natureza essencialmente punitiva, aplicável aos segmentos marginalizados e outro de natura eminentemente distributiva que implica adoção de critérios compensatórios e protetores a favor dos mesmos
segmentos” (p.1)
Pude observar essa contradição durante um momento em que a juíza, ao tratar o histórico de abandono familiar vivido pela adolescente A, foi contrariada pelo genitor que alegou nunca a ter abandonado. A Juíza prontamente corrigiu o usuário de maneira incisiva e até mesmo arbitrária afirmando que o que ele tinha feito se configurava como abandono sim desconsiderando todo o
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histórico familiar do mesmo e as condições materiais de vida que os mesmos tiveram, culpabilizando o sujeito pela situação que sua filha agora vivenciava. Além da culpabilização, acredito, que não seria ali o melhor momento para abordar essa questão com o genitor de modo que se fizesse claro e que o mesmo pudesse perceber as implicações de sua ausência na vida da filha, para que de maneira construtiva, o mesmo pudesse estabelecer uma nova relação com a mesma.
Além disso, também pude perceber durante a audiência que a mesma não levou em consideração as vulnerabilidades referentes a uma classe específica a qual ela realiza atendimento. Por alguns momentos, ela tratou as escolhas dos jovens de maneira rasa. Como se os mesmos tomassem decisões para suas vidas com total esclarecimento das consequências e que em alguns momentos realmente pudessem escolher, no sentido amplo da palavra, realmente.
Iamamoto (2007) revela que a questão social passou a ser objeto de um intenso processo de criminalização que atinge as classes subalternas podendo ser verificada uma tendência a naturalizar as múltiplas desigualdades que permeiam as relações sociais desiguais e contraditórias da sociedade de classes. Essas desigualdades têm sido enfrentadas ou por meio de programas focais de combate à pobreza, ou ainda com a violência que é dirigida aos pobres.
Insatisfeita com os dados que levantei durante a audiência concentrada, consultei o Plano Individual de Atendimento – PIA da Adolescente A com a autorização da minha supervisora, afim de entender melhor as condições que a colocaram em situação de acolhimento institucional.
Tanto A. quanto B. são reincidentes no abrigo municipal. Em seus acolhimentos anteriores, foram separados sendo A colocada sob a guarda da genitora e B sob a guarda dos avós paternos.
Segundo informações colhidas, o retorno da adolescente A. ao abrigo se deu pelo fato da genitora, ao adoecer, se mudar para outra região do país não a levando junto por falta de condições financeiras. A adolescente foi encontrada meses depois em situação de rua pelo conselho tutelar e levada de volta ao abrigo. [...] (DIÁRIO I, ESTÁGIO I, 2017).
Ao longo do meu processo formativo no Estágio, a participação dos
adolescentes e de sua família, com oitiva obrigatória vislumbrando um atendimento
individualizado não se concretizou de acordo com que dispõe as normativas. E por
isso, aparecem no Relatório de Estágio III quando evidencio a importância da
construção do Plano Individual de Atendimento (PIA), fazendo algumas
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considerações voltando a defender os mesmos princípios do ECA e das
orientações técnicas para o acolhimento de crianças e adolescentes:
Um instrumento importante para se pensar as ações interventivas que serão ofertadas à criança ou adolescente acolhido, é o plano de atendimento individual e familiar em que se leve em conta as particularidades, potencialidades e necessidades especificas de cada caso que irão subsidiar o atendimento individual. Na instituição esse documento é chamado de Plano individual de
atendimento (PIA).
No abrigo, esse documento é produzido, inicialmente, após o primeiro atendimento ao adolescente realizado pela equipe, e evoluído de acordo com as ações realizadas ao adolescente. Sobre esse aspecto em específico, avalio que uma questão importante e que não teve tanta relevância no que pude perceber durante o período de supervisão, foi a participação – como protagonistas – dos adolescentes nas construções de seus planos e pensamento de atividades as quais seriam inseridos, dessa forma, acredito que esse documento conseguiria imprimir melhor as ações individuais para cada caso levando em consideração em primeiro lugar as expectativas e os projetos próprios dos adolescentes.
Outro ponto relevante, se refere à inclusão da família e de pessoas com quem as crianças e adolescentes sejam vinculados, o que também não ocorre. O PIA, nesse sentido, se restringe aos atendimentos pensados e realizados somente à criança – o que parece dificultar sua funcionalidade, como o objetivo principal do acolhimento: a condução às soluções de caráter definitivo que abarcam a superação da situação de acolhimento; seja reintegração familiar, colocação em família extensa ou, em último
caso, a adoção.
Como instrumento institucional norteador da maior parte das ações ofertadas para o adolescente e sua família, levando-se em consideração toda a rede socioassintencial, a não inclusão da família nas ações do PIA se constitui como um entre vários determinantes que irão orientar o (não) acompanhamento em rede – o que também tem implicações na efetivação do caráter provisório do acolhimento.
São diversos os casos no abrigo em que os adolescentes ainda têm contato com a família - de origem, extensa ou substituta - mas não há um acompanhamento da rede socioassistencial e nem institucional a ela que abordem as condições dessa relação; as possibilidades e potencialidades dada, mesmo que minimamente, a existência de um vínculo afetivo para a reintegração desses adolescentes ao convívio familiar pleno (RELATÓRIO FINAL III, ESTÁGIO III, p. 5, 2018).
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A respeito dos diversos casos dos adolescentes com referência familiar que
menciono no último parágrafo apresentado, recorro a uma tabela que produzi
também para compor o referido relatório:
Tabela 1: Adolescentes acolhidos na instituição em novembro de 2018. Material da autora.
Adolescente Idade Gênero Raça Data do
acolhimento 1º
acolhimento Motivo do
acolhimento Referência
familiar
Ricardo 16 Masculino Negro 15/06/18 Não Situação de
rua Não
Carlos 16 Masculino Pardo 7/02/17 Não Situação de
rua Sim
Luiza 17 Feminino Negra 20/10/17 Não
Colocação malsucedida em família extensa
Sim
Henrique 13 Masculino Negro 11/04/18 Não
Colocação malsucedida em família substituta
Sim
Leandra 17 Feminino Negra 14/07/16 Não
Colocação malsucedida em família substituta
Sim
Roberto 17 Masculino Branco 21/10/16 Não Abandono/ negligencia
Sim
Paula 12 Feminino Negra 18/09/18 Sim Negligencia Sim
Pedro 17 Masculino Negro 18/04/18 Sim Risco de
vida Não
Fábio 13 Masculino Negro 18/09/18 Sim Negligencia Sim
Maria 15 Feminino Parda 24/05//17 Não
Colocação malsucedida em família substituta
Não
Patrícia 17 Feminino Branca 23/10/18 Sim Suspeita de
abuso sexual Sim
A intenção, na época, quando construí essa tabela era representar, de forma
visual, principalmente as idades dos adolescentes, o que para mim anunciava a
emergência de construção de ações que possibilitassem outro “destino” que não o
mesmo de Alice, suas reincidências na instituição de acolhimento ainda que muitos
possuíssem referência familiar e o período extenso do acolhimento da maioria
deles.
Essas questões, para mim, materializavam algo que eu tentava o tempo todo
entender o porquê, durante o período de estágio, e ainda, tento – afinal esse é
objetivo desse trabalho – mas que passavam por mim, muito mais pela via da
condução da política social pelo modo como está definido, como deveria ser.
Acredito que por muito tempo fui fiel a ideia de que as histórias dos adolescentes
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dependiam unicamente de que a proteção social atingisse fielmente seus objetivos
marcados em lei, sem levar em consideração o que já era definido como a história
dos adolescentes, o que eles construíram como autores de suas vidas diante das
adversidades que lhes foram impostas. Quando penso nas construções de histórias
autônomas, penso em Roberto, Leandra e Maria.
Roberto, 17 anos, também possuía um longo período de acolhimento e entre
idas e vindas entre família e a instituição, procurava por si próprio o conselho tutelar
para denunciar os abusos que sofria por parte do padrasto, sendo acolhido pela
última vez em 2016. Sua genitora sofria de transtornos mentais e eles não
possuíam uma boa relação. Sua referência familiar era um outro adolescente que
havia sido acolhido na instituição e retornado a família um pouco antes de eu
conhecê-lo.
Roberto fazia questão de conservar sua relação com o outro adolescente a
quem chamava de irmão mais novo e dedicava cuidados preocupação a ele.
Tentava contribuir para com sua família nas dificuldades financeiras que
enfrentavam. Nas palavras dele, “tentava ser uma pessoa melhor”, pois gostaria de
ser um exemplo para seu irmão. Roberto não mantinha contato com a genitora, seu
genitor era falecido e a única pessoa que tinha era avó que alegou não poder
recebe-lo. Nenhuma ação para fortalecer os vínculos entre os dois, até onde pude
constatar, foi realizada.
Leandra, de 17 anos, também tem sua história atravessada por um longo
período de acolhimento institucional e algumas tentativas malsucedidas de adoção,
motivo de seu último acolhimento em 2016. Possuía contato com alguns membros
de sua família biológica, como genitor, avós e tias e primos, mas sua principal
referência familiar era sua última adotante.
Durante um tempo, Leandra encontrava sua adotante, a quem chamava de
mãe, as escondidas pois havia um medo a mesma fosse penalizada pelos
encontros, já que sua “devolução” ao abrigo havia sido mal interpretada pela
promotoria do caso.
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A mãe de Leandra nos relatou que, ao surgirem as primeiras dificuldades de
convivência com a filha, durante sua entrada na adolescência, procurou os órgãos
responsáveis – a promotoria do caso e o conselho tutelar – buscando orientações
sobre como agir, e sentiu-se coagida pelas instituições. Sentiu necessidade de
procurar um advogado que a orientou a devolver Leandra aos cuidados do Estado.
No entanto, a relação que as duas construíram, apesar de abalada por um tempo,
se manteve e se fortaleceu ainda mais perto de Leandra completar sua maioridade.
Maria também passou grande parte de sua vida acolhida. Ainda na primeira
infância, juntamente com seu irmão mais novo, foi acolhida devido a maus tratos e
negligencia por parte de sua genitora, que sofria com o uso abusivo de drogas.
Duas profissionais no município demonstraram interesse em adotar Maria e seu
irmão separadamente. A primeira, estava mais interessada em Maria e a segunda
em seu irmão. Para não serem separados, a primeira interessada desistiu da
adoção que foi realizada pela segunda interessada.
No entanto, quando primeiros conflitos da adolescência apareceram, a
relação ficou extremamente estremecida e a família decidiu pela devolução de
Maria, mas ficando com seu irmão. A relação entre Maria e sua família adotiva
piorou muito depois disso, e havia por parte da família a tentativa de separa-la de
seus irmãos com a negativa de visitas entre os dois. Maria reencontrou a primeira
interessada, que retornou a trabalhar no município e, coincidentemente, nessa
instituição. Durante o tempo que presenciei, as duas estavam construindo uma
nova relação.
As histórias trazidas aqui, me confrontam em alguns aspectos que dizem
respeito a referência familiar e o que, hoje, entendo como família a partir das
considerações feitas no primeiro capítulo deste trabalho. Todos os três
adolescentes têm como família as referências que os próprios construíram a partir
de sua institucionalização, em que se construíram novos laços afetivos.
Não ter reconhecido isso quando escrevi o Relatório Final em questão,
marcam o meu olhar ainda raso e “etnocêntrico” à todas muitas possibilidades de
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família que podem ser construídas, quando as rejeitei naquele momento, negando
as possibilidades de formação familiar a partir dos laços afetivos, sejam eles
construídos com funcionários da instituição, outros adolescentes acolhidos, ou a
partir de uma adoção que aparece como malsucedida.
É necessário reafirmar aqui, recuperando nosso diálogo com Mioto (2011)
da concepção de famílias entendendo seus processos complexos de
(re)construção histórica que se materializa no cotidiano através da das relações e
negociações estabelecidas entre os membros da família, a outras esferas da
sociedade e aqui, a partir da inserção de indivíduos em uma “medida de protetiva”.
3.7. Algumas considerações posteriores, e constitutivas às narrativas
(auto)biográficas produzidas
Quando ainda no segundo capítulo deste trabalho, discutimos o lugar do
Estado na provisão de bem-estar social, construímos o caminho que possibilitasse
afirmar que a forma como tem sido conduzida a proteção social como direito, não
tem se efetivado pelo seu caráter universal pressuposto pelas normativas, mas sim
a partir de ações focalizadas das políticas aos segmentos mais pauperizados e
violentados da classe trabalhadora.
Podemos ainda acrescentar que o serviço de acolhimento institucional aqui
expresso, constituído a partir da proteção social, materializa essa focalização e
afirma o Estado como um interventor que primeiro negligencia para posteriormente
responder tardiamente e de maneira fragmentada às questões mais desumanas,
como é o caso das histórias narradas neste trabalho, ao construir “ações” proteção
social destinando-as exclusivamente à membros específicos da família, no caso,
as crianças e aos adolescentes. Mas não é só isso: a focalização se expressa não
só pelas respostas tardias e fragmentadas que se deflagram imediatas, como
também na forma superficial que essas respostas expressam às questões
extremamente profundas e complexas.
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É evidente, nesse aspecto, outro ponto colocado também no segundo
capítulo, sobre a necessidade de superação da racionalidade funcionalista do
nosso projeto burguês de sociedade que é direcionada, por parte do Estado, que
marcam famílias como funcionais ou não a partir de sua autonomia na superação
das desumanidades que os atravessam, levando em consideração unicamente
seus esforços e força de vontade. O que negligencia, também de forma racional, a
existência dos conflitos de classes em que o pauperismo se expressa.
A manutenção do acolhimento por períodos prolongados bem como a
reincidência de acolhimentos desconfiguram o caráter provisório e excepcional que
a medida protetiva deveria ter e, à medida que reforçam a culpabilização
juntamente com a não efetivação de direitos sociais como universais dos indivíduos
que se constituem em família, tem resultado em penalizações definitivas às vidas
dos sujeitos, como a morte, o encarceramento em prisões e ainda sobre
manutenção de uma “ação” de proteção social que pune, marginaliza e exclui
adolescentes de sua família, e da sociedade a partir da manutenção de um
acolhimento que se esgota em si mesmo.
As histórias dos adolescentes não se dão ao acaso, pelo contrário, são, em
muitos aspectos determinadas pela estrutura social e econômica violenta que
incidem diretamente em suas possibilidades objetivas e subjetivas. Mas isso
mesmo que em alguns casos, que alguns vínculos familiares sejam enfraquecidos
pela própria medida, não inviabiliza as possibilidades de resistência dos indivíduos
que, dentre tantos atravessamentos tentam (re)escrever suas histórias, (re)criar
laços e significados com base na afetividade nos demonstrando que há muitas
possibilidades de constituição de famílias. As famílias em suas múltiplas
configurações, se afirmam, ainda nos casos sendo locus nascendi das histórias dos
sujeitos.
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Considerações Finais
Acreditamos, ter conseguido ser capazes de, a partir das narrativas
(auto)biográficas produzidas no campo de estágio, assim afirma-lo como campo e
como instrumento de pesquisa, bem como apreender instrumentalidade dos
instrumentos de estágio, a partir deste processo crítico-reflexivo de investigação e
de retorno à memória, que nos possibilitaram apreender os fenômenos (re)narrados
para além da sua aparência assumida outrora.
A partir de análises e de reflexões das narrativas (auto)biográficas do
estágio, acreditamos ainda ter conseguido fazer ouvidas as vozes e as histórias de
vida dos adolescentes que se inscrevem “dentro” da Proteção Social, no serviço de
acolhimento. Isso nos permitiu ainda afirmar que a Proteção Social, diante do
debate construído neste trabalho, não tem efetivado o acesso a direitos universais
como se propõe. Pelo contrário: como demonstramos, muitas vezes, a partir de
mecanismos jurídicos, os violenta ainda mais.
É nesse sentido que a manutenção do acolhimento, nas narrativas
apresentadas, traz materialidade para a discussão que marcamos ao longo de toda
essa pesquisa a respeito da forma tardia, fragmentada e focalizada que o Estado
intervém sobre as diversas formas de expressão da questão social, que, nestes
casos, se expressam em suas formas mais violentas e desumanas.
A colocação desses adolescentes em uma medida de proteção integral, que
não estabelece ações que possibilitem o acesso, mesmo que em atraso, de direitos,
se configura a partir da racionalidade burguesa que o Estado incorpora em suas
ações de Proteção Social, destinadas principalmente à parte mais pauperizada da
classe trabalhadora – negligenciando seu lugar na luta de classes, e buscando
incidir diretamente em uma “situação-problema” impressa como imediata, que
rejeita as outras violências que atravessam outros indivíduos da família, que, além
de desamparados, são penalizados por sua condição.
Portanto, o acolhimento institucional, quando não efetiva a garantia e a
recuperação dos direitos violados dos adolescentes, pensando estratégias que
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incluam o atendimento de suas famílias, produz outras formas de violência a esses
sujeitos e os impõem outras formas de organização familiares, que também
podemos encarar como uma forma de resistência desses sujeitos, ao passo que
tentam se reinventar, e se reconstruir, para continuar existindo como famílias.
Entendemos que esta pesquisa não encerra os questionamentos, as
inquietações e as possibilidades de construção de outras possíveis narrativas que
não podem ser concretizadas neste trabalho, por necessitarem, pela sua
complexidade, de um grau de aprofundamento que não é mais possível neste
espaço e neste tempo. Mas, ainda assim, compreendemos a urgência de fazê-las
percebidas, nos colocando diante da possibilidade da continuidade desta pesquisa
em outro momento.
Nesse sentido, elencamos duas possibilidades, ou necessidade de
continuação dessa pesquisa, dentre muitas: a primeira se refere à instituição, ou ao
serviço de acolhimento, e ainda, sobre a Proteção Social como política pública,
constituída como campo sócio ocupacional do assistente social e suas implicações
em seu processo de trabalho; neste caso, frente às políticas desestruturadas, com
atravessamentos que incidem sobre a atuação profissional de forma objetiva e
subjetiva, incidindo diretamente no atendimento às demandas da classe
trabalhadora.
A segunda possibilidade se refere à questão do racismo estrutural fundante
na sociedade capitalista brasileira, que agudiza ainda mais o processo violento e
desumano desse segmento da classe trabalhadora, e demarca o (não) acesso a
direitos universais. Este seria um recorte muito importante para a pesquisa quando
nos debruçamos sobre a raça dos adolescentes. Seria, no entanto, outra pesquisa,
dados os números e as informações sobre a realidade racial presente nas
instituições de acolhimento.
Por ora, sem que coloquemos um ponto final definitivo nesta pesquisa,
concluímos que urge a necessidade de discussão mais aprofundada nessa
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temática, que possibilite a criação de estratégias que defendam o efetivo interesse
das crianças das classes trabalhadoras.
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