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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL UFRGS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS (HUM05021-A) PROFESSOR: JOSE OTAVIO CATAFESTO DE SOUZA ALUNO: EDUARDO RIBEIRO GONÇALVES (00218637) Pretendendo concluir o exercício de avaliação proposto em aula, a resenha irá abordar os textos de Norbert Elias e Edward Said, intitulados, respectivamente, O Processo Civilizador e Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Os textos foram analisados aqui de forma simbiótica, não dividindo a resenha em dois tópicos grandes, mas sim, interligando os dois textos com a finalidade de relacionar as duas obras. Importante frisar que foram efetuadas apenas as leituras dos capítulos trabalhados em aula, e não as obras completas. Durante a leitura dos textos, a relação entre O Processo Civilizador, de Elias com o Orientalismo, de Said se fez tão evidente que seria um desperdício não aproveitar a oportunidade proporcionada pela disciplina de Antropologia, desafios contemporâneos, de efetuar tal síntese. Enquanto Elias nos carrega “pela mão” em uma viagem ao momento de transição do período conhecido como Idade Média para a Modernidade, Said nos convida a refletir a respeito de um direcionamento, ou até mesmo um ponto de efeito específico do mesmo processo civilizador que Elias trata em sua obra. Essa complementaridade poderia não ser tão evidente se não estivesse tão em voga ainda no século XXI. As concepções de Oriente e Ocidente em Orientalismo passam por um processo de elaboração discursiva e naturalização cultural muito parecidos com os quais passaram os conceitos de civilizado e não civilizado. Ambos os autores apresentam uma perspectiva antropológica que, de certo modo, curva-se à história. Não uma concepção histórica teleológica marxista, onde a economia de mercado não leva em consideração as relações de parentesco ou as inovações e variações nos projetos de vida de cada indivíduo, mas uma avaliação microscópica das relações sociais. Porém, o conjunto de obras de Marx não é necessariamente ignorado ou descartado, apenas são levados em consideração entre um conjunto teórico mais abrangente. Norbert Elias, por exemplo, faz uma relação entre a sociogênese e a psicogênese, afirmando que a história humana e os seus processos é reproduzida pelas pessoas em um curto espaço de tempo, durante a sua infância. Por exemplo, se na Idade Média era

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS (HUM05021-A)

PROFESSOR: JOSE OTAVIO CATAFESTO DE SOUZA

ALUNO: EDUARDO RIBEIRO GONÇALVES (00218637)

Pretendendo concluir o exercício de avaliação proposto em aula, a resenha irá

abordar os textos de Norbert Elias e Edward Said, intitulados, respectivamente, O

Processo Civilizador e Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Os textos

foram analisados aqui de forma simbiótica, não dividindo a resenha em dois tópicos

grandes, mas sim, interligando os dois textos com a finalidade de relacionar as duas

obras. Importante frisar que foram efetuadas apenas as leituras dos capítulos trabalhados

em aula, e não as obras completas.

Durante a leitura dos textos, a relação entre O Processo Civilizador, de Elias

com o Orientalismo, de Said se fez tão evidente que seria um desperdício não aproveitar

a oportunidade proporcionada pela disciplina de Antropologia, desafios

contemporâneos, de efetuar tal síntese. Enquanto Elias nos carrega “pela mão” em uma

viagem ao momento de transição do período conhecido como Idade Média para a

Modernidade, Said nos convida a refletir a respeito de um direcionamento, ou até

mesmo um ponto de efeito específico do mesmo processo civilizador que Elias trata em

sua obra. Essa complementaridade poderia não ser tão evidente se não estivesse tão em

voga ainda no século XXI.

As concepções de Oriente e Ocidente em Orientalismo passam por um processo

de elaboração discursiva e naturalização cultural muito parecidos com os quais

passaram os conceitos de civilizado e não civilizado. Ambos os autores apresentam uma

perspectiva antropológica que, de certo modo, curva-se à história. Não uma concepção

histórica teleológica marxista, onde a economia de mercado não leva em consideração

as relações de parentesco ou as inovações e variações nos projetos de vida de cada

indivíduo, mas uma avaliação microscópica das relações sociais. Porém, o conjunto de

obras de Marx não é necessariamente ignorado ou descartado, apenas são levados em

consideração entre um conjunto teórico mais abrangente.

Norbert Elias, por exemplo, faz uma relação entre a sociogênese e a psicogênese,

afirmando que a história humana e os seus processos é reproduzida pelas pessoas em

um curto espaço de tempo, durante a sua infância. Por exemplo, se na Idade Média era

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comum as pessoas comerem diretamente com as mãos, isto é, sem talheres, é natural

que em algum curto momento da infância as pessoas comam com as mãos. Trata-se de

uma sobreposição de fases na vida de uma pessoa que fazem referência a períodos da

história humana, segundo Elias. O Processo Civilizador trata então das transformações

ocorridas no período de transição da Idade Média para a Idade Moderna, através da

analise das mudanças nas práticas de autodisciplina reguladora de diversos aspectos

ligados à concepção do que seriam bons ou maus modos. Elias caracteriza deste modo a

naturalização de práticas que antes eram inconcebíveis em uma sociedade que passou

por um processo de individualização crucial para a configuração do que passou a ser

considerado civilizado ou Ocidental.

Tais transformações não poderiam ser apontadas através de uma perspectiva

funcionalista, mas sim através de um olhar que leve em consideração a amplitude dos

processos históricos. Não necessariamente suas origens, mas os modos como ocorreram

as transformações, as transmutações. Como se alteram as redes sociais e como elas

afetam as sociedades das quais fazem parte. O processo civilizador seria responsável

pelas práticas de autocoerção naturalizadas e introjetadas pelas quais a França, a

Alemanha e a Inglaterra passaram e que influenciaram o restante da Europa. Como parte

dessa bagagem europeia se criou o sentimento de responsabilidade de veiculação da

civilidade até os confins do planeta, onde estariam localizados povos em um estado

infantil, inferiores ou bárbaros, prontos a serem civilizados, se não escravizados.

A divisão entre Ocidente e Oriente como aponta Said, é muito anterior ao

conceito de civilização como o conhecemos hoje. No que se refere às obras literárias,

em um retorno a Homero, passando à analise de Flaubert (um importante romancista

francês), Balfour (estadista britânico envolvido nas aspirações sionistas de criação do

estado judeu na Palestina) e Delacoix (pintor envolvido na propaganda política dos

Bourbons da França no século XIX) Said nos mostra que a invenção do conceito de

Oriente pelo Ocidente é muito mais antiga do que parece, mas que pode ser traçada e

historicamente localizada. Sua proposta é analisar a forma como o Oriente e os orientais

são representados em obras ocidentais, principalmente no que tange à França, à Grã-

Bretanha e aos Estados Unidos, sob o que o autor observa como signo do exotismo, da

inferioridade e da incapacidade que os orientais teriam de falarem por si mesmos.

Reverberando em produções artísticas, literárias, políticas e científicas, o estigma do

Orientalismo se fez presente no Ocidente desde o momento em que precisou se

diferenciar do que era considerado o outro, exótico, desconhecido e/ou estranho.

As concepções de incivilizado e oriental estão intimamente relacionadas. A ideia

de levar o processo civilizador ao Oriente era frequentemente utilizada em discursos

políticos para legitimar o poderio da sociedade europeia. A conceituação se baseia na

comparação e no preconceito entre diferentes sociedades, aqueles que não eram

europeus, necessariamente não eram civilizados. A definição de civilité analisada por

Elias nos escritos de Erasmo de Rotterdam, especificamente no De civilitate morum

puerilium, estaria vinculada à maneira de se vestir, caminhar e de portar-se à mesa.

Estes hábitos definiriam um “grau de espírito” em uma pessoa, enquadrando nessa

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classe ou na outra. Segundo Elias, Erasmo não vê preceitos como dirigidos a uma classe

particular. Afirma que, tirando certo preconceito quanto aos camponeses e pequenos

negociantes, seu tratado se diferenciaria dos que o sucederam justamente por não ver

nas classes mais baixas uma orientação social específica que caracterize os “maus

costumes”. Afirma também que “um companheiro não lhe deve ser menos querido

porque tem piores maneiras”. (ELIAS, 1993. P.92). Desta forma, poderíamos supor que

as apropriações feitas da compilação de Erasmo construíram, ou melhor, naturalizaram

a autocoerção no sentido de “civilizar” a pessoa incivilizada.

Essa conceituação baseada na comparação também foi veiculada pelos ideais

iluministas, através do empirismo e posteriormente pelas interpretações da teoria

evolucionista de Charles Darwin. A existência de um discurso progressista acabou por

obscurecer as vinculações da revolução científica da “era moderna” com o sistema

mercantil escravista. O mercado escravo foi justificado pelo racismo que, por sua vez,

ganhou apoio intelectual de alguns dos maiores pensadores modernos.

A ideia central dos “esclarecidos” com a Revolução Científica consistia em

submeter a natureza às aspirações do homem. Porém, a racionalidade não se distinguia

por completo da tradição hermética da qual os pensadores faziam parte. Kepler, por

exemplo, foi astrônomo e astrólogo ao mesmo tempo, sendo que seus trabalhos com

horóscopos lhe proporcionaram capital para sua sobrevivência até sua morte em uma

situação precária.

O próprio Iluminismo, portanto, não se configurou de forma homogênea em toda

a Europa, estando vinculado intrinsecamente às condições sociopolíticas de cada país. E

cada pensador se relacionou com a nova racionalidade e com seu país também de forma

distinta. Kant defendia a monarquia prussiana e sua modernização. Acreditava que a

razão era um privilégio de poucos. Em contrapartida, Rousseau colocou o Antigo

Regime como algo extremamente irracional e que deveria ser combatido. Contudo, até

mesmo os mais revolucionários se mantiveram conservadores, até certo ponto. E,

querendo ou não, a atmosfera intelectual europeia foi, de certo modo, patrocinada pelo

sangue e suor de humanos negros, transformados em escravos.

A escravidão africana deve muito às explicações “racionais” que comparavam a

história social humana à evolução natural. O otimismo científico que cavalgava lado a

lado com a ideia de progresso carregava um ideal de erradicação das injustiças e um

aperfeiçoamento da moral das sociedades. A construção racional de uma realidade

social superadora de todos os problemas das crises de ordem estamental eram o foco da

utopia iluminista. Valorizar a propriedade, o trabalho físico, a formação escolar e a

planificação estrita da educação eram características desta cultura protoburguesa. A

ordem racional traria paz, mas continuaria fora de cogitação para as classes populares.

Entre as discussões que formaram a ideia do progresso proveniente da

Revolução Científica, está a formulação de uma concepção de histórica da origem da

civilização como a emersão de uma sociedade primitiva que se civilizaria. A história

fundamentaria as diferenças entre os primeiros habitantes da terra e os homens

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civilizados. O desenvolvimento estaria ligado ao crescimento do saber e da técnica

científica, que inevitavelmente guiaria ao progresso moral e político.

Obviamente, os “não europeus” não detinham o dom da razão, sob a perspectiva

racional iluminista dos séculos XVII e XVIII. Seria um dever, então, do homem já

civilizado levar a razão aos outros povos, e eventualmente dominar e conquistar cultural

e militarmente os bárbaros e primitivos.

A justificativa racista para a escravidão passou por um processo de naturalização

que foi veiculada, principalmente pelo discurso racional liberal proveniente da

Revolução Científica. Após a Revolução Gloriosa na Inglaterra, o comércio de escravos

arrecadou o capital necessário à Revolução Industrial que serviria de modelo às outras

potências.

É importante termos em mente que o sistema que financiava o contexto

econômico e cultural que possibilitou o florescimento do pensamento científico

moderno tinha como base o tráfico de humanos negros transformados em escravos. As

revoluções burguesas, tanto a Gloriosa quanto a Francesa, acabaram posteriormente no

século XIX, apoiando parcialmente o fim da escravidão, baseando agora a exploração

da mão de obra barata dos operários, que formaram um mercado consumidor

controlável e promissor. Estas novas relações diminuíam também as responsabilidades

dos patrões para com os novos trabalhadores, resumindo-as ao pagamento de um

salário. O racismo surge então como uma justificativa do sistema comercial de escravos

negros. Ele não seria um acidente no desenvolvimento do capitalismo, mas o seu motor

propulsor que garantia mão de obra a baixos custos. (WILLIAMS, 2012. P. 146)

Relacionando o processo civilizador posto em prática nas relações discursivas

entre Ocidente e Oriente com o Orientalismo, nota-se a permanência de certos ideais

modernos que se baseavam em um sistema comercial escravista e sanguinário. Ignorar

este aspecto da história do pensamento Ocidental é manter uma série de mitos e

aspirações que podem se apresentar como revolucionárias, mas que se revelam

conservadoras. Porém, negar os aspectos positivos do iluminismo, como os direitos

humanos, seria cair e, uma espécie de ignorância histórica.

As obras de Said e Elias nos proporcionam uma perspectiva sobre estes usos e

desusos da construção de uma memória histórica, que influencia largamente nas

mudanças culturais e políticas dos grupos humanos. Nenhuma das duas obras pretendeu

esgotar os temas, mas por outro lado, ambas se mantêm como leituras obrigatórias nos

estudos sociais, antropológicos, históricos e filosóficos contemporâneos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, v.1, 1990, Cap.2,

p.65-95.

SAID, Edward. Introdução e 1) O Âmbito do Orientalismo. In: Orientalismo: o Oriente

como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 09-81.

WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. 89-159