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Um copinho de rum [Tristes Trópicos – capítulo 38] A fábula que precede* só tem uma desculpa: ilustra o desarranjo a que condições anormais de vida, durante um período prolongado, submetem o espírito do viajante. Mas o problema persiste: como o etnógrafo pode escapar da contradição que resulta das circunstâncias da sua escolha? Tem diante dos olhos, tem à sua disposição uma sociedade: a sua; por que resolve menosprezá-la e reservar a outras sociedades – escolhidas dentre as mais longínquas e as mais diferentes – uma paciência e uma dedicação que sua determinação recusa aos compatriotas? Não é por acaso se raramente o etnógrafo demonstra diante de seu próprio grupo uma atitude neutra. Se é missionário ou administrador, podemos inferir que aceitou identificar-se com uma ordem, a ponto de consagrar-se a sua propagação; e, quando exerce sua profissão no plano científico e universitário, há fortes possibilidades de que se possa descobrir no seu passado fatores objetivos que o mostram pouco ou nada adaptado à sociedade onde nasceu. Ao assumir seu papel, procurou um modo prático de conciliar a vinculação ao seu grupo com a reserva que nutre a seu respeito, ou, muito simplesmente, o modo de se beneficiar de um estado inicial de distanciamento que lhe confere uma vantagem para se aproximar de sociedade diferentes, a meio caminho das quais ele já se encontra.

Um Copinho de Rum - Lévi-Strauss

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Um copinho de rum

[Tristes Trópicos – capítulo 38]

A fábula que precede* só tem uma desculpa: ilustra o desarranjo a

que condições anormais de vida, durante um período prolongado,

submetem o espírito do viajante. Mas o problema persiste: como o

etnógrafo pode escapar da contradição que resulta das circunstâncias

da sua escolha? Tem diante dos olhos, tem à sua disposição uma

sociedade: a sua; por que resolve menosprezá-la e reservar a outras

sociedades – escolhidas dentre as mais longínquas e as mais diferentes

– uma paciência e uma dedicação que sua determinação recusa aos

compatriotas? Não é por acaso se raramente o etnógrafo demonstra

diante de seu próprio grupo uma atitude neutra. Se é missionário ou

administrador, podemos inferir que aceitou identificar-se com uma

ordem, a ponto de consagrar-se a sua propagação; e, quando exerce sua

profissão no plano científico e universitário, há fortes possibilidades de

que se possa descobrir no seu passado fatores objetivos que o mostram

pouco ou nada adaptado à sociedade onde nasceu. Ao assumir seu

papel, procurou um modo prático de conciliar a vinculação ao seu grupo

com a reserva que nutre a seu respeito, ou, muito simplesmente, o

modo de se beneficiar de um estado inicial de distanciamento que lhe

confere uma vantagem para se aproximar de sociedade diferentes, a

meio caminho das quais ele já se encontra.

Mas, se está de boa-fé, coloca-se uma questão: o valor que atribui

às sociedades exóticas – tanto maior, parece, quanto mais elas o forem -

não tem fundamento próprio; é função do desprezo, e às vezes da

hostilidade, que lhe inspiram os costumes vigentes no seu meio.

Geralmente subversivo entre os seus e em estado de rebelião contra os

costumes tradicionais, o etnógrafo encontra-se respeitoso, beirando o

conservadorismo, desde que a sociedade estudada se revele diferente

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as sua. Ora, há nisso bem mais, e outra coisa, do que uma

excentricidade; conheço etnógrafos conformistas. Mas o são de forma

derivada, em virtude de uma espécie de assimilação secundária de sua

sociedade àquelas que estudam. Sua finalidade vai sempre para estas

últimas, e, se voltaram atrás na revolta inicial diante da sua, é porque

fazem às primeiras a concessão suplementar de tratarem sua própria

sociedade como eles gostariam que fossem tratadas todas as outras.

Não escapamos do dilema: ou o etnógrafo adere às normas de seu

grupo, e os outros só podem lhe inspirar uma curiosidade passageira da

qual a reprovação jamais está ausente; ou é capaz de se entregar por

inteiro a eles, e sua objetividade fica viciada porquanto, querendo ou

não, para se dar a todas as sociedades ele se negou pelo menos a uma.

Comete, pois, o mesmo pecado que critica nos que contestam o sentido

privilegiado de sua vocação.

Essa dúvida impôs-se a mim, pela primeira vez, durante a

permanência forçada nas Antilhas que evoquei no início deste livro. Na

Martinica, eu visitara as destilarias de rum abandonadas e rústicas;

empregavam aparelhos e técnicas que pareciam os mesmos desde o

século XVIII. Inversamente, em Porto Rico as fábricas da companhia que

exerce uma espécie de monopólio de toda produção de cana ofereciam-

me um espetáculo de reservatórios de esmalte branco e torneiras

cromadas. No entanto, os runs da Martinica, provados ao pé de velhas

cubas de madeira coalhadas de detritos, eram aveludados e

perfumados, ao passo que os de Porto é de velhas cubas de madeira

coalhadas de detritos, eram aveludados e perfumados, ao passo que os

de Porto Rico são vulgares e brutais. A finura dos primeiros seria então

resultado das impurezas cuja persistência é favorecida por uma

preparação arcaica? Esse contraste ilustra, a meu ver, o paradoxo da

civilização cujos encantos decorrem em essência dos resíduos que ela

transporta em seu fluxo, embora não seja por isso que devamos nos

proibir de purificá-la. Ao estarmos duplamente certos, confessamos

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nosso erro. Pois estamos certos quando somos racionais e procuramos

aumentar nossa produção e baixar nossos preços de custo. Mas também

estamos certos ao apreciar as imperfeições que tratamos de eliminar. A

vida social consiste em destruir o que lhe confere seu aroma. Essa

contradição parece reabsorver-se quando passamos da consideração de

nossa sociedade à de sociedades que são diferentes. Porque, sendo nós

mesmos arrastados pelo movimento da nossa, estamos, de certa

maneira, envolvidos neste processo. Independe de nós querer ou não o

que nossa posição nos obriga a realizar; quando se trata de sociedades

diferentes, tudo muda: a objetividade, impossível no primeiro caso, nos

é concedida graciosamente. Já não sendo agentes, mas espectadores

das transformações que se operam, para nós é mais legítimo pôr na

balança seu futuro e seu passado na medida em que estes são um

pretexto para a contemplação estética e a reflexão intelectual, em vez

de nos estarem presentes na forma de inquietação moral.

Ao raciocinar como acabo de fazê-lo, talvez eu tenha esclarecido a

contradição; mostrei sua origem e como é que conseguimos nos

acomodar com isso. Não a resolvi, decerto. Será ela, então, definitiva?

Foi o que se afirmou ocasionalmente , para daí se chegar à nossa

condenação. Ao manifestarmos, por meio de nossa vocação, a

preferência que nos leva a formas sociais e culturais muito diferentes da

nossa – superestimando aquelas em detrimento desta -,

demonstraríamos uma inconsequência radical; como poderíamos

proclamar que essas sociedades são respeitáveis, senão nos baseando

nos valores da sociedade que nos inspira a idéia de nossas pesquisas?

Incapazes para sempre de escaparmos às normas que nos modelaram,

nossos esforços para pôr em perspectiva as diferentes sociedades,

inclusive a nossa, seriam mais uma maneira envergonhada de

confessarmos sua superioridade sobre todas as outras.

Por trás da argumentação desses bons apóstolos, não há mais do

que mau trocadilho: pretendem apresentar a mistificação (a que se

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dedicam) como o contrário do misticismo (que nos criticam,

erradamente). A pesquisa arqueológica ou etnográfica mostra que

certas civilizações, contemporâneas ou extintas, souberam ou ainda

sabem resolver problemas melhor do que nós, embora estejamos

empenhados em obter os mesmos resultados. Para me limitar a um

exemplo, foi só há poucos anos que aprendemos os princípios físicos e

fisiológicos em que se baseia a concepção do vestuário e da habitação

dos esquimós, e de que modo esses princípios que desconhecíamos, e

não o hábito ou uma compleição excepcional, permitem-lhes viver em

condições climáticas rigorosas. Isso é tão verdadeiro que entendemos ao

mesmo tempo por que os supostos aperfeiçoamentos propostos pelos

exploradores ao traje esquimó mostraram-se mais que inoperantes:

contrários ao resultado esperado. A solução nativa era perfeita; para nos

convencermos, bastava-nos apenas ter penetrado na teoria que a

fundamenta.

A dificuldade não é essa. Se julgarmos as realizações dos grupos

sociais em função de fins comparáveis com os nossos, teremos, de vez

em quando, que nos inclinarmos diante de sua superioridade; mas, ao

mesmo tempo, conquistamos o direito de julgá-los, e, portanto, de

condenar todos os outros fins que não coincidam com aqueles que

aprovamos. Reconhecemos implicitamente a posição privilegiada de

nossa sociedade, de seus usos e suas normas, já que um observador

oriundo de outro grupo social proferirá diante dos mesmo exemplos

veredictos diferentes. Nessas condições, como nossos estudos poderiam

ambicionar o título de ciência? Para reencontrarmos uma posição de

objetividade, deveremos nos abster de quaisquer julgamentos desse

tipo. Teremos de admitir que, na gama das possibilidades abertas às

sociedades humanas, cada uma fez determinada escolha e que essas

escolhas são incomparáveis entre si: equivalem-se. Mas, então, surge

um novo problema: pois se no primeiro caso estávamos ameaçados pelo

obscurantismo na forma de uma recusa cega daquilo que não é nosso,

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arriscamo-nos agora a ceder a um ecletismo que, de uma cultura

qualquer, nos proíbe repudiar tudo, até mesmo a crueldade, a injustiça e

a miséria contra as quais, por vezes, protesta essa mesma sociedade

que as tolera. E como esses abusos também existem entre nós, qual

será nosso direito de combatê-los em casa, se basta que se produzam

fora para que nos inclinemos diante deles?

Portanto, a oposição entre duas atitudes do etnógrafo, crítica a

domicílio e conformista fora de casa, encobre outra da qual lhe é ainda

mais difícil escapar. Se deseja contribuir para uma melhoria de seu

regime social, deve condenar, onde quer que existam, as condições

análogas às que ele combate, e perde assim sua objetividade e sua

imparcialidade. Em troca, o distanciamento que lhe impõem o escrúpulo

moral e o rigor científico evita-lhe criticar sua própria sociedade, tendo

em vista que não quer julgar nenhuma, a fim de conhecê-las todas. Ao

agirmos em casa, privamo-nos de compreender o resto, mas, ao

querermos tudo compreender, renunciamos a mudar qualquer coisa.

Se a contradição fosse intransponível, o etnógrafo não deveria

hesitar sobre a alternativa que lhe compete: ele é etnógrafo e quis sê-lo,

que aceite a mutilação complementar à sua vocação. Escolheu os outros

e deve agüentar as conseqüências dessa opção: seu papel será apenas

compreender esses outros em nome dos quais não deveria agir, uma

vez que o simples fato de que eles sejam outros impede-o de pensar, de

querer em seu lugar, o que equivaleria a identificar-se com eles.

Ademais, renunciará à ação dentro da sua sociedade, temendo tomar

posição diante de valores que podem existir em sociedades diferentes,

e, portanto, podem introduzir o preconceito em seu pensamento.

Subsistirá apenas a escolha inicial, para a qual ele recusará qualquer

justificação: ato puro, não motivado; ou, se pode sê-lo, por

considerações externas, ligadas ao caráter ou à história de cada um.

Não chegamos a esse ponto, felizmente; após termos contemplado

o abismo que beiramos, que nos seja permitido procurar a saída. Esta

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pode ser conquistada, dependendo de certas condições: moderação do

julgamento e divisão da dificuldade em duas etapas.

Nenhuma sociedade é perfeita. Por natureza, todas comportam

uma impureza incompatível com as normas que proclamam, e que se

traduz de modo concreto numa certa dose de injustiça, de

insensibilidade, de crueldade. Como avaliar essa dose? A pesquisa

etnográfica consegue. Pois se é verdade que a comparação de um

pequeno número de sociedades faz com que pareçam muito diferentes

entre si, essas diferenças atenuam-se quando o campo de investigação

se amplia. Descobre-se então que nenhuma sociedade é

fundamentalmente boa; mas nenhuma é inteiramente má. Todas

oferecem certas vantagens a seus membros, tendo-se em conta um

resíduo de iniqüidade cuja importância parece relativamente constante

e que corresponde talvez a uma inércia específica que se contrapõe, no

plano da vida social, aos esforços de organização.

Essa proposta surpreenderá o amante de narrativa de viagens,

comovido pela lembrança dos costumes “bárbaros” deste ou daquele

povo. Contudo, tais reações à flor da pele não resistem a uma

apreciação correta dos fatos e a seu estabelecimento numa perspectiva

mais ampla. Tomemos o caso da antropofagia que, entre todas as

práticas selvagens, é sem dúvida a que nos inspira mais horror e

repugnância. Teremos primeiro que dissociar as formas propriamente

alimentares, isto é, essas em que o apetite de carne humana explica-se

pela carência de outro alimento animal, como era o caso de certas ilhas

polinésias. De voracidades como essas, nenhuma sociedade está

moralmente protegida; a fome pode arrastar os homens a comer

qualquer coisa: prova-o o exemplo recente dos campos de extermínio.

Restam, então, as formas de antropofagia que podemos chamar

de positivas, as que se referem a uma causa mística, mágica ou

religiosa: tal como a ingestão de uma parcela do corpo de um

ascendente ou um fragmento de um cadáver inimigo, a fim de

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possibilitar a incorporação de suas virtudes ou, ainda, a neutralização

de seu poder; além de tais ritos se realizarem no mais das vezes de

modo extremamente discreto, envolvendo quantidades mínimas de

matéria orgânica pulverizada ou misturada com outros alimentos, temos

de reconhecer que a condenação moral de tais costumes, mesmo

quando se revestem das formas mais francas, implica, seja uma crença

na ressurreição corporal que estaria comprometida pela destruição

material do cadáver, seja a afirmação de um vínculo entre a alma e o

corpo e o dualismo correspondente, isto é, convicções que são de

natureza idêntica à daquelas em nome das quais o consumo ritual é

praticado, e que não temos nenhuma razão de preferir às outras. Tanto

mais que a desenvoltura em nome da memória do defunto, que

poderíamos criticar no canibalismo, não é certamente maior, muito pelo

contrário, do que a que toleramos nas aulas de dissecação.

Mas, sobretudo, devemos nos convencer de que certos costumes

que nos são específicos, se considerados por um observador oriundo de

uma sociedade diferente, parecer-lhe-iam de natureza idêntica à dessa

antropofagia que se nos afigura alheia à noção de civilização. Penso em

nossos costumes judiciários e penitenciários. Ao estudá-los de fora,

ficaríamos tentados a contrapor dois tipos de sociedades: as que

praticam a antropofagia, isto é, que enxergam na absorção de certos

indivíduos detentores de forças tremendas o único meio de neutralizá-

las, e até de se beneficiarem delas; e as que, como a nossa, adotam o

que se poderia chamar de ‘antropemia’ (do grego ‘emein’, “vomitar”).

Colocadas diante do mesmo problema, elas escolheram a solução

inversa, que consiste em expulsar esses seres tremendos para fora do

corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem

contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a este fim.

Na maioria das sociedades que chamamos de primitivas, tal costume

inspiraria um profundo horror; em seu entender, isso nos marcaria com

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a mesma barbárie que seríamos tentados a imputar-lhes por causa de

seus costumes simétricos.

Sociedades que nos parecem ferozes em certos aspectos sabem

ser humanas e bondosas quando as encaramos de outro ângulo.

Consideremos os índios das planícies da América do Norte, que são,

neste caso, duplamente significativos, porque praticaram certas formas

moderadas de antropofagia, e porque oferecem um dos raros exemplos

de povo primitivo dotado de uma polícia organizada.

Essa polícia (que era também uma instituição judiciária) jamais

conceberia que o castigo do culpado devesse se traduzir numa ruptura

dos laços sociais. Se um indígena infringisse as leis da tribo, era punido

com a destruição de todos os seus bens: tenda e cavalos. Mas, com isso,

a polícia contraía uma dívida para com ele; cabia-lhe organizar a

reparação coletiva do prejuízo cuja vítima fora o culpado, devido ao

castigo. A reparação transformava este último numa pessoa agradecida

ao grupo, ao qual devia mostrar seu reconhecimento com presentes que

a coletividade inteira - e a própria polícia – ajudava-o a reunir, o que de

novo invertia as relações; e assim por diante, até que, ao final de toda

uma série de presentes e contrapresentes, a desordem anterior fosse

progressivamente extinta e a ordem inicial fosse restaurada. Não só tais

costumes são mais humanos que os nossos, como são também mais

coerentes, mesmo se formulam o problema nos termos de nossa

psicologia: pela lógica, a “infantilização” do culpado, que a noção de

punição implica, exige que se lhe reconheça um direito correlativo a

uma gratificação, sem o que a primeira atitude perde sua eficácia, se é

que não provoca resultados contrários aos que se esperavam. O cúmulo

do absurdo é a nossa maneira de tratar ao mesmo tempo o culpado

como uma criança, o que nos autoriza a puni-lo, e como um adulto, a fim

de lhe recusar o consolo; e acreditar que realizamos um grande

progresso espiritual porque preferimos mutilar física e moralmente

alguns de nossos semelhantes, em vez de consumi-los.

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Tais análises, feitas com sinceridade e método, levam a dois

resultados: instilam um elemento de moderação e de boa-fé na

apreciação dos costumes e dos gêneros de vida mais afastados do

nosso, sem por isso conferir-lhes as virtudes absolutas que nenhuma

sociedade possui. E privam nossos costumes dessa evidência que o fato

de não conhecer outros – ou de ter deles um conhecimento parcial e

tendencioso – é suficiente para lhes atribuir. Portanto, é verdade que a

análise etnológica eleva as sociedades diferentes e rebaixa a do

observador; é contraditória neste sentido. Mas se quisermos refletir

sobre o que acontece, veremos que a contradição é mais aparente do

que real.

Afirmou-se algumas vezes que a sociedade ocidental seria a única

a ter produzido etnógrafos; que nisso reside a sua grandeza, a qual, na

ausência de outra superioridades que eles lhe contestam, é a única que

os obriga a se curvarem diante dela, uma vez que, sem a mesma, não

existiriam. Poder-se-ia igualmente afirmar o contrário: se o Ocidente

produziu etnógrafos, foi porque um remorso muito forte devia

atormentá-lo, obrigando-o a confrontar sua imagem com a de

sociedades diferentes, na esperança de que refletissem as mesmas

taras ou ajudassem a explicar de que maneira as suas se desenvolveram

em seu seio. Porém, mesmo se é verdade que a comparação de nossa

sociedade com todas as outras, contemporâneas ou extintas, provoca o

desmoronamento de suas bases, outras sofrerão a mesma sina. Essa

média geral que eu evocava pouco acima faz surgir alguns ogros: ocorre

que estamos incluídos entre eles. Não por acaso, pois, se não

estivéssemos e se não houvéssemos, nesse triste concurso, merecido o

primeiro lugar, a etnografia não teria surgido entre nós: não teríamos

sentido sua necessidade. O etnógrafo pode se desinteressar de sua

civilização e pouco se envolver com seus erros na medida em que sua

existência mesma é incompreensível, a não ser como uma tentativa de

se redimir: ele é o símbolo da expiação. Mas outras sociedades

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participaram do mesmo pecado original; não muito numerosas, talvez, e

mais raras à proporção que baixamos na escala do progresso. Bastará

que eu cite os Astecas, chaga aberta no flanco do americanismo, que

uma obsessão maníaca pelo sangue e pela tortura (na verdade,

universal, mas patente entre eles nessa ‘forma excessiva’ que a

comparação permite definir) – por mais explicável que seja pela

necessidade de domesticar a morte – coloca ao nosso lado não como os

únicos iníquos, mas por o terem sido à nossa maneira, de forma

‘desmedida’.

Contudo, essa condenação de nós mesmos, por nós mesmos

infligida, não implica atribuirmos um prêmio de excelência a esta ou

aquela sociedade presente ou passada, localizada num ponto

determinado do tempo e do espaço. Aí residiria verdadeiramente a

injustiça; pois, agindo dessa maneira, não levaríamos na devida conta o

fato de que, se fizéssemos parte dessa sociedade, ela nos parecia

intolerável: nós a condenaríamos pela mesma razão que condenamos

esta a que pertencemos. Chegaríamos, então, à condenação de

qualquer estado social que seja? À glorificação de um estado natural a

que a ordem social só teria levado à corrupção? “Desconfiai de quem

vem pôr ordem”, dizia Diderot, cuja posição era essa. Para ele, a

“história abreviada” da humanidade resumia-se da seguinte maneira:

“Existia um homem natural; introduziu-se dentro desse homem um

homem artificial; e eclodiu na caverna uma guerra contínua que dura a

vida inteira”. Tal concepção é absurda. Quem diz homem diz linguagem,

e quem diz linguagem, diz sociedade. Os polinésios de Bougainville (em

cujo “suplemento de viagem” Diderot propõe essa teoria) não viviam em

sociedade menos que nós. Ao pretender outra coisa, vamos de encontro

à análise etnografia, e não no sentido que ela nos incita a explorar.

Quando revolvo esses problemas, convenço-me de que só

admitem a resposta que deu Rousseau; Rousseau, tão caluniado, pior

conhecido do que jamais o foi, exposto à acusação ridícula que lhe

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atribui uma glorificação do estado natural – no que podemos enxergar o

erro de Diderot, mas não o seu -, pois disse exatamente o contrário e

continua a ser o único a mostrar como sair das contradições em que nos

metemos, no rastro dos seus adversários; Rousseau, o mais etnógrafo

dos filósofos: se nunca viajou por terras distantes, sua documentação

era tão completa quanto possível para um homem de seu tempo, e ele a

vivificava – a diferença de Voltaire – por meio de uma curiosidade cheia

de simpatia pelos costumes camponeses e pelo pensamento popular;

Rousseau, nosso mestre, Rousseau nosso irmão, por quem

demonstramos tanta ingratidão mas a quem cada página deste livro

poderia ser dedicada se a homenagem não fosse indigna de sua grande

memória. Pois, da contradição inerente à posição do etnógrafo, somente

sairemos repetindo por conta da própria démarche que o fez passar das

ruínas deixadas pelo ‘Discurso sobre a origem da desigualdade’ à ampla

construção do ‘Contrato social’, cujo segredo ‘Émile’ revela. A ele

devemos o fato de saber como, após termos aniquilado todas as

ordens, ainda podemos redescobrir os princípios que possibilitam

edificar uma nova.

Jamais Rousseau cometeu o erro de Diderot, que consiste em

idealizar o homem natural. Não há perigo de ele misturar o estado

natural com o estado de sociedade; sabe que este último é inerente ao

homem, mas provoca males: a única pergunta é saber se esses males

são eles próprios inerentes ao estado. Por trás dos abusos e dos crimes,

procuraremos, pois, a base inabalável da sociedade humana.

Para tal procura, a comparação etnográfica contribui de duas

maneiras. Mostra que essa base não poderia ser encontrada em nossa

civilização: de todas as sociedades observadas, é talvez a que mais se

afasta disso. Por outro lado, ao destacar os caracteres comuns à maioria

das sociedades humanas, ela ajuda a constituir um tipo que nenhuma

reproduz fielmente mas que define a direção em que a investigação

deve se orientar. Rousseau pensava que o gênero de vida a que hoje

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chamamos de neolítico apresenta a imagem experimental mais perto

disso. Pode-se ou não concordar com ele. Sou um tanto propenso a crer

que tinha razão. No Neolítico, o homem realizou a maioria das invenções

que são indispensáveis para garantir a sua segurança. Vimos por que

podemos excluir a escrita**; dizer que ela é uma arma de dois gumes

não é sinal de primitivismo; os modernos cibernéticos redescobriram

essa verdade. No Neolítico, o homem pôs-se ao abrigo do frio e da fome;

conquistou o tempo para pensar; sem dúvida, lutou duramente contra a

doença, mas nada garante que os avanços da higiene tenham feito mais

do que transferir para outros mecanismos, como as grandes fomes e as

guerras de extermínio, a incumbência de manter um equilíbrio

demográfico, para o que as epidemias contribuíam de uma maneira que

não era mais terrível do que as outras.

Nessa idade do mito, o homem não era mais livre do que hoje,

mas a sua simples humanidade tornava-o um escravo. Como sua

autoridade sobre a natureza permanecia muito reduzida, ele se achava

protegido – e em certa medida liberado – pelo acolchoado amortecedor

de seus sonhos. À medida que estes foram se transformando em

conhecimento, o poderio do homem aumentou; porém, ao nos colocou –

se podemos dizer assim – “em ligação direta” com o universo, esse

poderio, do qual tanto nos orgulhamos, que é ele na verdade, se não a

consciência subjetiva de uma fusão progressiva da humanidade com o

universo físico cujos grandes determinismos agem, doravante, não mais

como estranhos que infundem temor, mas, por intermédio do próprio

pensamento, colonizando-nos em benefício de um mundo silencioso do

qual nos tornamos agentes?

Rousseau tinha certamente razão ao acreditar que, para nossa

felicidade, teria sido melhor a humanidade manter-se em “um meio-

termo entre a indolência do estado primitivo e a petulante atividade de

nosso amor-próprio”; que esse estado era “o melhor para o homem”, e

que, para tirá-lo daí, foi preciso “algum funesto acaso” no qual se pode

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reconhecer esse fenômeno duplamente excepcional – porque único e

porque tardio – que foi o surgimento da civilização mecânica. No

entanto, fica claro que esse estado médio não é de modo algum um

estado primitivo, e que supõe e tolera certa dose de progresso; e que

nenhuma sociedade descrita apresenta a imagem privilegiada disso,

mesmo se “o exemplo dos selvagens, que foram quase todos

encontrados nesse nível, parece confirmar que o gênero humano era

feito para aí permanecer para sempre”.

O estudo desses selvagens traz outra coisa além da revelação de

um estado natural utópico, ou a descoberta da sociedade perfeita no

coração das florestas; ajuda-nos a construir um modelo teórico da

sociedade humana, que não corresponde a nenhuma realidade

observável, mas graças ao qual conseguiremos deslindar “o que há de

originário e de artificial na natureza atual do homem e conhecer bem um

estado que não existe mais, que talvez não existiu, que provavelmente

jamais existirá, e acerca do qual é necessário, porém, ter noções exatas

para bem julgar nosso estado presente”. Já citei essa fórmula para

demonstrar o sentido de minha pesquisa com os Nambiquara; pois o

pensamento de Rousseau; pois o pensamento de Rousseau, sempre

adiantado em relação a seu tempo, não dissocia a sociologia teórica da

pesquisa de laboratório ou de campo, cuja necessidade ele percebeu. O

homem natural não é anterior nem exterior à sociedade. Cabe-nos

encontrar sua forma, imanente ao estado social fora do qual a condição

humana é inconcebível; portanto, traçar o programa das experiências

que “seriam necessárias para chegar a conhecer o homem natural” e

determinar “os meios de realizar essas experiências no seio da

sociedade”.

Mas esse modelo – é a solução de Rousseau – é eterno e universal.

As outras sociedades talvez não sejam melhores do que a nossa; mesmo

se somos propensos a acreditar nisso, não temos à nossa disposição

nenhum método para prová-lo. Ao conhecê-las melhor, ganhamos,

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porém, um meio de nos distanciarmos da nossa, não porque esta seja

absolutamente má, mas porque é a única da qual devíamos nos libertar:

já estamos naturalmente liberto das outras. Assim, colocamo-nos em

condições de abordar a segunda etapa que consiste, sem nada reter de

nenhuma sociedade, em utilizá-las todas para extrair esses princípios da

vida social que nos será possível aplicar à reforma dos nossos próprios

costumes, e não daqueles das sociedades estrangeiras: em virtude de

um privilégio contrário ao precedente, apenas a sociedade a que

pertencemos é que somos capazes de transformar sem nos arriscarmos

a destruí-la; pois as mudanças que aí introduzimos também partem dela.

Ao colocar fora do tempo e do espaço o modelo em que nos

inspiramos, certamente corremos um risco, que é o de subestimar a

realidade do progresso. Nossa posição equivale a afirmar que os

homens, sempre e em todo lugar, empreenderam a mesma tarefa

atribuindo-se o mesmo objetivo, e que no decorrer de sua evolução só

os meios diferiram. Confesso que essa atitude não me inquieta; parece a

mais de acordo com os fatos, tais como nos são revelados pela história e

pela etnografia; e, acima de tudo, parece-me mais fecunda. Os zelosos

partidários do progresso expõem-se a desconhecer, pelo seu pouco

caso, as imensas riquezas acumuladas pela humanidade de um lado e

outro da estreita linha em que mantêm os olhos fitos; ao subestimar a

importância dos esforços passados, depreciam todos os que nos falta

realizar. Se os homens se dedicaram apenas a uma tarefa, que é

construir uma sociedade vivível, as forças que animaram nossos

distantes ancestrais estão igualmente presentes em nós. Nada é

definitivo; podemos tudo recomeçar. O que foi feito e falhou pode ser

refeito: “A idade de ouro que uma cega superstição colocara atrás [ou

na frente] de nós, está ‘em nós’”. A fraternidade humana ganha um

sentido concreto ao apresentar-nos, na tribo mais pobre, nossa imagem

confirmada e uma experiência da qual, junto com tantas outras,

podemos assimilar as lições. Inclusive reencontraremos nestas um

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antigo frescor. Pois, sabendo que há milênios o homem só conseguiu se

repetir, alcançaremos essa nobreza do pensamento que consiste, para

além de todas as repetições, em tomar como ponto de partida de nossas

reflexões a grandeza indefinível dos começos. Visto que ser homem

significa, para cada um de nós, pertencer a uma classe, a uma

sociedade, a um país, a um continente e a uma civilização; e que para

nós, europeus e apegados à terra, a aventura ao coração do Novo

Mundo significa antes de mais nada que ele não foi o nosso, e que

carregamos o crime de sua destruição; e que, em seguida, não haverá

outro igual: saibamos ao menos, reduzidos a nós mesmos por essa

confrontação, expressá-la nos seus termos primeiros – em um lugar, e

nos transferindo para um tempo em que nosso mundo perdeu a

oportunidade que lhe fora oferecida de escolher entre as suas missões.

.................................

*Lévi-Strauss se refere ao ensaio de um romance logo abandonado de

que trata o capítulo anterior do livro (‘Apoteose de Augusto’).

**aqui faz referência ao uso simulado de uma “escrita” que um

nambiquara, observando as anotações do antropólogo, emprega

pretendendo assim adquirir ascendência sobre os demais membros de

seu grupo.