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Departamento de História
UM CRONISTA NEGRO NA MADRUGADA:
O SURGIMENTO DE VAGALUME NA IMPRENSA CARIOCA (1904).
Aluno: Matheus Rezende Caldas
Orientador: Leonardo Pereira
Relatório de Atividades - Setembro de 2016 - Julho de 2017
Introdução
O presente texto tem como objetivo analisar a minha participação na pesquisa: “Os
filhos do ventre livre: trajetórias negras, letramento e cidadania no Rio de Janeiro do pós-
abolição”, coordenada por Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Tal projeto busca
compreender algumas trajetórias de homens negros que, beneficiados pelas possibilidades de
acesso à educação decorrentes das determinações da Lei de 28 de Setembro de 1871
(conhecida como a Lei do Ventre Livre), conseguiram ascender socialmente no início da
República brasileira, embora a abolição da escravatura ainda fosse um acontecimento recente.
Tendo isso em vista, o projeto se foca a três personagens específicos: Manoel Vicente Alves,
um rábula conhecido como Dr. Jacarandá; Hilário Jovino Ferreira, que se destacou como
organizador de vários clubes carnavalescos e Francisco Guimarães, jornalista que ficou
conhecido pelo pseudônimo de Vagalume. Através do estudo das possibilidades e
dificuldades que marcaram suas experiências, pretende-se analisar o papel das questão racial
nas tentativas desses sujeitos em construir seu espaço de autonomia no período.
Dentro desta proposta, minhas atividades ao longo desse ano se voltaram para a
tentativa de acompanhar os primeiros anos de atividades de um desses personagens: Francisco
Guimarães. Ao me centrar no início de sua carreira jornalística, iniciada quando no Jornal do
Brasil para escrever crônicas sobre a madrugada carioca, com foco no período em que
começava a dar forma o pseudônimo que o consagrou. Essas crônicas tinham como título
“Reportagem da Madrugada” e apareciam nas edições da tarde do Jornal do Brasil. Foi
através da pesquisa e análise das crônicas desta série que me propus analisar como Francisco
Guimarães enxergava a sociedade de sua época.
Nem só de pesquisa em fontes primárias se fez, no entanto, esse primeiro período de
atividades. Além destas atividades de pesquisa documental, tive a oportunidade de fazer
leituras historiográficas que me permitiram localizar a trajetória de meu personagem no
campo de reflexão mais amplo sobre a experiência dos homens negros e pardos no pós-
abolição brasileiro. Nesse sentido, foi fundamental a leitura de artigos como “Monteiro Lopes
(1867 – 1910), um ‘líder da raça negra’ na capital da república”, de Carolina Vianna Dantas; e
“O ‘crioulo Dudu’: participação política e identidade negra nas histórias de um músico cantor
(1890 – 1920)” de Martha Abreu. No caso do Cronista Francisco Guimarães, também pude ler
o artigo “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e nacionalidade da
produção de Francisco Guimarães (1904 - 1933)” de Leonardo Pereira. Ao mesmo tempo,
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também li alguns trabalhos que abordavam sobre a educação de negros na transição da
monarquia para a república, como o artigo: “Crianças e escolas na passagem do Império para
a República”, de Alessandra Shueler e a dissertação de mestrado intitulada. A presença de
negros em espaços de instrução elementar da cidade-corte: O caso da Escola da Imperial
Quinta da Boa vista, de Katia Lopes.
A possibilidade de aproveitar tais pesquisas e leituras se deveu, porém, ao
desenvolvimento de uma reflexão metodológica específica sobre a imprensa do período e
sobre a crônica, gênero ao qual se dedicou meu personagem central - objetivo principal do
livro Os cronistas de momo: Imprensa e Carnaval na Primeira República, de Eduardo Granja
Coutinho. Sobre a crônica, vale ainda mencionar a apresentação do livro “História em cousas
miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil”, em que os organizadores Sidney
Chalhoub, Margarida de Souza Neves e Leonardo Pereira abordam sobre a crônica e as suas
características. No que diz respeito ao jornalismo de modo mais amplo, tive a chance de ler
artigos como “Negociações impressas: a imprensa comercial e o lazer dos trabalhadores no
Rio de Janeiro da Primeira República, de Leonardo Pereira; e “Na oficina do historiador:
conversas sobre história e imprensa” de Heloisa Cruz e Maria do Rosário Peixoto. Ao mesmo
tempo, tive também a chance de ler obras voltadas especificamente para o Jornal do Brasil,
no qual escrevia no período Francisco Guimarães - como o livro As Queixas do Povo, de
Eduardo Silva.
As atividades de pesquisa documental, as leituras historiográficas e as leituras
metodológicas construíram, assim, os três eixos principais de desenvolvimento das atividades
ao longo desse período. Cabe, por isso, tratar com mais vagar de cada uma delas, de modo a
explicar como elas me ajudam a entender o universo do qual Francisco Guimarães fazia parte.
Discussão bibliográfica sobre o pós-abolição
Como citado anteriormente, fiz algumas leituras sobre trajetórias negras no pós-
abolição. Destacam-se , dentre elas, os artigos relativos às experiências de Monteiro Lopes, de
autoria de Carolina Vianna; o de Eduardo das Neves, conhecido como “Crioulo Dudu”, de
autoria de Martha Abreu e a história do próprio Vagalume, na análise dele feita por Leonardo
Pereira
A trajetória de Monteiro Lopes é descrita no artigo “Monteiro Lopes (1867 – 1910), um
‘líder da raça negra’ na capital da república” , de Carolina Vianna Dantas1. Neste artigo - a
autora destaca todos os empecilhos enfrentados por Monteiro Lopes - na então capital da
época, visto se tratar de um homem negro que em 1909 concorreu ao cargo de deputado
federal. Por se colocar como um representante da população negra na política, Monteiro
Lopes sofreu com o racismo tanto de outros políticos como também de alguns periódicos, os
quais, mesmo depois de sua eleição legítima por parte do eleitorado, se mostraram contrários
à sua posse como deputado.
1 DANTAS, Carolina Vianna. “Monteiro Lopes (1867 – 1910), um ‘líder da raça negra’ na capital da república”.
Afro-Ásia, n. 41, pp. 167 – 209. 2010.
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O caminho percorrido por Monteiro Lopes ao longo de sua carreira política é relevante
para esta pesquisa, porque, a partir de sua história, conseguiu-se observar que independente de
ser letrado ou não, e mesmo sendo eleito para um cargo importante, teve de enfrentar muitas
críticas por conta da cor da pele.
No artigo, Carolina Vianna expõe algumas das críticas feitas a Monteiro Lopes, como
essa publicada em 1909 na Gazeta da Tarde, no momento em que o deputado obteve sua
posse.
“[...] Pretinho audaz e sem escrúpulos, escalando a vida através dessa audácia
e dessa ausência de escrúpulos, diz o que lhe parece, como os direitos
cômicos que lhe confere a sua ignorância , sem que ninguém lhe preste
atenção. Considerado figura decorativa da política carioca e cabeça de turco
das seções humorísticas da imprensa, a gente deixa-o dizer o que entende,
justamente porque ele não entende de coisa alguma.2”
O periódico ao retratar o deputado como “pretinho audaz e sem escrúpulos”, mostra a
preocupação da elite branca com a possibilidade da elevação social de um homem negro, que
ao prosperar, serviu não só como um porta-voz da população negra, como também poderia ser
um incentivador para a participação de negros na política, o que era um incômodo para
sociedade burguesa, pois poderia abalar as antigas hierarquias sócio-raciais. Devido a isso,
outros políticos e alguns periódicos retratavam Monteiro Lopes como alguém incapaz de
exercer a função de deputado federal, relacionado principalmente sua cor à ideia de que ele
não seria o mais qualificado para aquele ofício, o qual foi eleito. Então, para inferiorizá-lo,
periódicos, como a Gazeta da Tarde, faziam sátiras e piadas com a sua imagem. A
perseguição desses jornais feita a Monteiro Lopes esclarece que por mais que ele fosse um
homem que teve acesso a alfabetização, ainda sim, era rebaixado por muitos contemporâneos,
justamente por ser negro. Contudo, apesar de todos os obstáculos, Monteiro Lopes conseguiu
prosseguir como deputado e, ao mesmo tempo, demonstrou que era possível a participação da
população negra na política, por mais que sua época fosse marcada por fraudes eleitorais,
governos oligárquicos e controle de votos.
Seguindo um percurso semelhante, em “O ‘crioulo Dudu’: participação política e
identidade negra nas histórias de um músico cantor (1890 – 1920)”3 - Martha Abreu apresenta
a biografia de Eduardo das Neves, conhecido como “Crioulo Dudu”. Em seu artigo, a autora
aborda como Eduardo das Neves usava a música como uma forma de protesto contra o
preconceito racial e buscava por ela, aumentar o número de adeptos a sua causa. Ademais,
suas canções chamavam atenção para as questões políticas nacionais, problemas urbanos,
relações raciais e a identidade do homem negro.
Sendo assim, a trajetória de Eduardo das Neves também foi importante para o projeto,
visto que, assim como Monteiro Lopes, “Crioulo Dudu” também foi um dos homens negros
que nasceram após a Lei do Ventre Livre, o que facilitou o seu acesso às letras. Todavia,
ainda que fosse um letrado, precisou enfrentar muitas barreiras por causa do racismo. Um
2 “Ecos do dia”. Gazeta da Tarde, 14/05/1909 apud DANTAS, Carolina Vianna, ibidem, p. 198.
3 ABREU, Martha. “O ‘crioulo Dudu’: participação política e identidade negra nas histórias de um músico
cantor (1890 – 1920)”. Topoi, v. 11, n. 20, p. 92 – 113, jan. / jun. 2010
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exemplo de fácil visualização no artigo oferecido pela autora, é quando ela cita o Almirante
Henrique Domingues, memorialista da música popular, que apresenta um caso de racismo
sofrido por Eduardo das Neves em 1915 no Rio Grande do Sul. Sobre essa ocasião é
apresentado o seguinte:
“[..] Eduardo das Neves teria tido problemas com o dono de um bilhar que
não queria atendê-lo, presumidamente, por ser negro. Eduardo, então, teria
procurado o delegado de polícia local que obrigou o proprietário a servi-lo. O
cantor, com euforia, jogara a partida até o final. Depois de pagar a conta, teria
bradado um forte ‘viva Brasil’, ‘que ecoou no salão como um veemente grito
de protesto4’”.
Esse acontecimento (assim como outros casos de racismo sofridos por ele que são
mostrados no artigo), indica que apesar das dificuldades encontradas por conta da cor de sua
pele, Eduardo das Neves não ficou apático. Pelo contrário, tomou medidas de modo que seus
direitos fossem respeitados. Buscou reagir ao preconceito racial por meio da música, a
utilizando como um instrumento de valorização da população negra. Compondo músicas e
também escrevendo livros que realçavam as conquistas de escravizados além da própria busca
pela liberdade, utilizando de ironias e do seu estilo cônico como ferramentas para falar sobre a
identidade negra e a luta contra as desigualdades raciais, o que possibilitou a popularidade do
artista entre as camadas com menos visibilidade social, composta majoritariamente por
negros.
Sem se apresentar de forma isolada, a trajetória desses sujeitos negros apresenta assim
obstáculos comuns que, algumas vezes, se converteram em uma efetiva aproximação entre
eles. É o que aconteceu com o próprio Eduardo das Neves, que ao dedicar mais tempo à
música, que acabou entrando em contato com Francisco Guimarães (Vagalume), personagem
central desta pesquisa, que o ajudou a “escrever e revisar algumas letras de canções5”.
Ademais, posteriormente, Vagalume se tornou um dos principais memorialistas do “Diamante
Negro6”, título dado por ele a Eduardo das Neves. Sendo assim, a história do “Crioulo Dudu”
é importante para este projeto, porque nela, pode-se notar as barreiras raciais enfrentadas pelo
músico, mas também é visível a sua persistência para superá-las. Tornando-se, devido a sua
popularidade como artista, um grande estimulador para o progresso do movimento negro na
Primeira República.
É em meio a essa ambiência em que estavam Monteiro Lopes e Eduardo das Neves que
podemos entender a história de Francisco Guimarães - o Vagalume. Assim como os outros
dois indivíduos, ele também desfrutou de algumas consequências da Lei de 1871, como o
acesso à educação após passar pelo Asilo de Meninos Desvalidos - o que lhe permitiu se
tornar, na juventude, jornalista do Jornal do Brasil. Sua trajetória analisada, em linhas gerais,
no artigo de Leonardo Pereira - “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo
4 Ibidem, p. 98
5 Ibidem, p. 97
6 Idem
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dançante e nacionalidade na produção de Francisco Guimarães (1904-1933)7”. Nele, o autor
não só discorre sobre a vida de Vagalume, mas também mostra como o cronista consegue
destaque na imprensa carioca ao abordar em suas crônicas assuntos que eram do interesse das
classes sociais mais pobres.
O artigo mostra como se deu a construção do Vagalume, que passa a assinalar seu
pseudônimo no jornal A Tribuna, na coluna “Ecos Noturnos” em 1904, visto que quando
começou sua carreira como repórter no Jornal do Brasil, ainda não assinava suas crônicas.
No entanto, já no Jornal do Brasil fica fácil de se observar quais eram as pretensões de
Francisco Guimarães, que era usar o jornal como plataforma para legitimar práticas e
perspectivas das camadas sociais com pouco poder aquisitivo. Por isso, ao longo de sua
carreira, Vagalume muitas vezes chamou atenção para práticas de diversão e culturais de
interesse da camada popular. Um boa amostra disso, que pode ser visto no artigo de Leonardo
Pereira, são os bailes que aconteciam em clubes dançantes, os quais ou eram ignorados pela
comunidade letrada, ou eram discriminados pela mesma, sendo retratados nos periódicos
como locais compostos por pessoas vadias e perigosas, em que a violência e os crimes
estavam sempre propícios a ocorrer. Cabe destacar, que a maior parte do público que
frequentava esses ambientes eram negras e pobres. Logo, as críticas da elite letrada vinha
também com o preconceito racial velado. Não obstante, Francisco Guimarães sempre defendia
tais clubes, argumentando que tais espaços recreativos apresentavam belas festividades e eram
frequentados por pessoas trabalhadoras e honestas.
Durante seu artigo, Leonardo Pereira apresenta algumas situações em que fica clara a
diferença entre a visão do Vagalume e a da maior parte da imprensa, a respeito das atividades
dos clubes.
“[...]Não é de admirar, por isso, que o assunto tenha aos poucos se imposto a
Vagalume. É o que fica claro na terceira crônica da série, publicada no dia 14 de
março de 1904. Dentre outros temas, Vagalume trata nela de sua incursão ao Catumbi,
onde visitou a sede do Yayá me Deixa, um dos muitos clubes carnavalescos formados
por trabalhadores de baixa renda que, naqueles anos, começavam a proliferar pela
cidade. Na contramão da cobertura do restante da imprensa, que preferia fazer
das atividades desses clubes um assunto para as colunas policiais, Vagalume fazia
questão de mostrar sua integração ao bairro. ‘Aquele cordão cheio de graça,
alegre e espirituoso que durante três dias de folguedos carnavalescos em
homenagem a Momo soube conquistar as simpatias e os aplausos dos habitantes
do Catumbi’, explicava o cronista, dando a ver o apoio recebido pelo clube entre
os habitantes do local [...]8”. (grifo meu)
Observando este fragmento, nota-se a distinção entre o modo como Francisco
Guimarães e a imprensa tradicional descreviam esses clubes, visto que o primeiro dava ênfase
à beleza das comemorações e mostrava sua integração com o bairro sede. Enquanto que a
7 PEREIRA, L. A. M.. “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e nacionalidade na
produção de Francisco Guimarães (1904-1933)”. Revista Brasileira de História, v. 35, pp. 13-33, 2015 8 Ibidem, p. 20
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segunda buscava representar eventos como esse, em suas páginas policiais, ou seja,
criminalizavam as festividades dos clubes com o intuito de desqualificá-las.
Por sua vez, ao buscar registrar situações que eram mais voltadas para um público com
menos acesso ao letramento. Vagalume sofreu com o antagonismo de outros letrados de sua
época que não viam com bons olhares as diversões, costumes e elementos culturais das
classes populares, o que exibe os empecilhos encontrados pelo jornalista, que também era
oriundo da camada mais despossuída economicamente da sociedade. Porém, foi por se
colocar como um defensor daqueles que eram marginalizados pela elite branca, que Vagalume
conseguiu atingir uma popularidade expressiva dentro das camadas de baixa renda, o que
contribuiu para sua ascensão profissional e para que ele fosse o protagonista desta pesquisa.
Ao perceber que Francisco Guimarães teve a possibilidade de estudar antes mesmo do
fim da escravidão, a pesquisa também buscou entender como era a educação dos negros entre
o fim da Monarquia e início da República. Devido a isso, foi fundamental a leitura do artigo
de Alessandra Schueler , cujo o título é “Crianças e escolas na passagem do Império para a
República”9, em que ela sublinha os entraves escolares encontrados por crianças oriundas das
classes mais pobres, principalmente negras. Contudo, a autora também destaca que no final do
século XIX, a partir do crescimento urbano e de projetos de modernização dos grandes
centros, houve a criação de algumas sociedades e associações filantrópicas que possibilitaram
o letramento de crianças filhas de escravos ou libertos. Essas instituições foram essenciais
para que houvesse pessoas negras letradas no início da República, mesmo que a abolição da
escravatura ainda fosse um acontecimento recente.
Seguindo essa mesma linha, em A presença de negros em espaços de instrução
elementar da cidade-corte: O caso da Escola da Imperial Quinta da Boa Vista10
, Katia Lopes
também fala sobre a educação dos negros e das barreiras encontradas pelos mesmos. No
entanto, apesar das dificuldades, a autora chama atenção para algumas das formas que fez
com que essas pessoas conseguissem ter acesso a educação. Uma delas, que é muito
importante para esta pesquisa, foi a formação de asilos, como, por exemplo, o Asilo de
Meninos Desvalidos, que como abordado anteriormente, foi o local no qual Vagalume pôde
ser alfabetizado. Sobre tal asilo, a autora destaca o seguinte:
“Cabe ressaltar que, além dos conhecimentos básicos previstos para a instrução
primária, aos acolhidos pelo ‘Asylo de Meninos Desvalidos’ estava destinada a
aprendizagem de ofícios, em consonância com o pensamento dominante de defesa de
uma formação de carácter prático para os segmentos menos favorecidos da população.
O atendimento direcionado aos asilados, portanto, era realizado em três espaços
considerados fundamentais para o tratamento à infância pobre: o espaço da casa, para
abrigar; da escola, para instruir; e das oficinas, para profissionalizar (contribuindo
9 SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de. “Crianças e escolas na passagem do Império para a República”,
Revista Brasileira de História. vol.19 n.37 São Paulo Set. 1999. 10
LOPES, Katia Geni Cordeiro. A presença de negros em espaços de instrução elementar da cidade-corte: O
caso da Escola da Imperial Quinta da Boa Vista. Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2012. (Cap. 2)
Departamento de História
com a formação do contingente de trabalhadores livres habilitados em ofícios
mecânicos)11
.”
A partir da análise deste fragmento, pode-se dizer que asilos, como o Asilo dos
Meninos Desvalidos, não só contribuíram para o letramento de escravos e libertos nos anos
finais da Monarquia brasileira, como também, foram importantes no processo de
profissionalização dos mesmos, o que posteriormente contribuiu para casos de elevação social
de homens negros na Primeira República.
Após essas leituras sobre a educação dos negros no final do século XIX, foi possível
estabelecer a relação dessas instituições com trajetórias como as que foram citadas neste
relatório, visto que foram esses estabelecimentos de ensino, que ao possibilitar o letramento
desses homens, colaborou para a ascensão social que os mesmos conseguiriam anos mais
tarde, seja por meio da política, da música ou jornalismo. Todavia, vale ressaltar, que a partir
das leituras sobre os caminhos percorridos por Monteiro Lopes, Eduardo das Neves e
Francisco Guimarães, pode-se notar que por mais que ambos tenham conseguido certo
prestígio e seguidores em suas causas, ainda sim, conviviam com muitas barreiras raciais, por
conta de um passado escravista ainda muito forte no início da República brasileira, fazendo
com que esses homens tivessem que procurar meios alternativos para defender os interesses
da população negra e de baixa renda, cuja lógica está sendo investigada nesta pesquisa.
Metodologia
A pesquisa se baseou na crônica jornalística e no jornal em geral como fonte de
pesquisa, tendo o Jornal do Brasil como a principal fonte, pois foi por ele que Francisco
Guimarães começou a sua carreira. Portanto, foram necessárias algumas leituras que
discutiam como jornal pode ser usado como meio de pesquisa, além de leituras que tratassem
mais especificamente do Jornal do Brasil. Desse modo, procurou-se entender quais os
posicionamentos tomados pelo periódico, que contribuíram para que homens, como Francisco
Guimarães, conseguisse espaço no jornalismo. Ademais, foi preciso também fazer algumas
leituras sobre crônicas e cronistas, para entender este universo do qual Vagalume fazia parte.
E com isso, estabelecer quais as dificuldades e possibilidades que esse tipo de fonte oferece
ao historiógrafo.
Para poder ter uma compreensão maior do uso de periódicos como fonte historiográfica,
foi de grande valia o artigo de Heloisa Cruz e Maria do Rosário Peixoto, que tem como título
“Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa12
”, em que as autoras debatem
como os jornais podem contribuir para o ofício do historiador, pois a partir deles, pode-se
obter informações que oferecem respostas aos problemas colocados por ele. Todavia, elas se
atentam em mostrar, que por mais que os periódicos possam servir de fontes para a análise
historiográfica, eles não foram feitos com esse objetivo. Sendo assim, cabe ao historiador
saber, a partir de sua pesquisa, os objetivos e as disputas sociais presentes nos periódicos,
visto que, tentando aumentar seu público leitor, os jornais buscam apresentar os temas que
11
Ibidem, p. 57 12
CRUZ, Heloisa de Faria ; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. “Na oficina do historiador: conversas sobre
história e imprensa”, Projeto História, v. 35, n. 35, pp. 253-270, Dezembro. 2007
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podem conter os interesses de diferentes grupos sociais. No entanto, cada periódico costuma
ter um público-alvo, nas quais a maior parte de suas páginas são direcionadas. Por isso, é
importante se ater aos diferentes elementos que compõem um periódico, de modo a
compreendê-lo melhor. Dentre esses elementos, se destacam: o projeto editorial de cada
jornal, para entender quais seus objetivos e posicionamentos em relação a diferentes temas e
acontecimentos; os grupos produtores, como proprietários, diretores, redatores e colabores,
tendo em vista seus propósitos para o jornal e a circulação e distribuição, que envolve
tiragem, preço, formas de venda e distribuição13
, o que é um indicativo para qual tipo de
público que o periódico se volta.
Seguindo esse pensamento, foi imprescindível a leitura do artigo “Negociações
impressas: a imprensa comercial e o lazer dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Primeira
República14
”, de Leonardo Pereira. Neste artigo, o autor chama atenção para outros dois
elementos comuns a qualquer periódico, que são a “polissemia” e “polifonia”, que se
caracterizam como métodos encontrados pelos jornais para conseguirem manter seus leitores
habituais e ao mesmo tempo expandir seu público leitor. Vale ressaltar, que os periódicos da
Primeira República já usavam de tais artifícios. A polissemia então, se caracterizava como um
método de direcionar as notícias para seu público-alvo, porém, permitindo que outros grupos
sociais, a partir de perspectivas e leituras diferentes se interessassem pelos assuntos expostos
pelo periódico. Enquanto que a polifonia, também presente nos jornais da Primeira República,
pode ser vista quando alguns periódicos começaram a abrir suas páginas para temas que
contemplavam as preferências das camadas sociais mais pobres, com intuito de se caracterizar
como popular. Um exemplo disso é o próprio Jornal Brasil, a principal fonte desta pesquisa.
Tendo isso em vista, a pesquisa se atentou em entender qual era a ideologia do Jornal
do Brasil, periódico no qual Vagalume iniciou sua carreira de cronista. Tal jornal tinha o
objetivo de se constituir como o “defensor dos fracos e dos oprimidos15
”, isto é, um periódico
que transmitia em suas folhas os interesses do povo. A partir dessa ideia, cabe realçar a
importância do livro “As Queixas do Povo16
” para esta pesquisa, visto que, nele, Eduardo
Silva ao falar sobre a história do periódico, mostra como foi a sua construção como “jornal do
povo”, quando possibilita que a população sem acesso ao letramento, exponha em suas
páginas, as reclamações não apenas para o Estado, mas também contra ele. Permitindo então,
que a massa popular use suas páginas como um veículo de reivindicações. Assim, o Jornal do
Brasil acaba contribuindo para dar mais visibilidade àqueles que sofriam com a ausência do
Estado republicano. É dentro dessa expectativa de se caracterizar como um jornal popular,
que ele acaba abrindo espaço para que pessoas de procedência simples ingressassem no
jornalismo, como, por exemplo, o cronista Francisco Guimarães.
Sendo assim, após entender como o Jornal do Brasil, ao adotar um perfil mais voltado
para as camadas de baixa renda, contribuiu para ascensão profissional do Vagalume. A
pesquisa procurou ter uma percepção mais ampla sobre a função de Francisco Guimarães
dentro do jornal. Por isso, a introdução do livro “História em cousas miúdas: capítulos da
13
Ibidem, p.266 14
PEREIRA, L. A. de M. “Negociações impressas: a imprensa comercial e o lazer dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da Primeira República”. História (São Paulo), v. 35, n. 99, pp. 1 – 21, 2016 15
“Reportagem da madrugada”. Jornal do Brasil (RJ) (edição da tarde). 9 de abril de 1901 16
SILVA, Eduardo. As Queixas do Povo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988
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história social da crônica no Brasil17
”, organizado pelos historiadores: Sidney Chalhoub,
Margarida de Souza Neves e Leonardo Pereira foi de grande valor. Nela, os autores debatem
sobre o papel do cronista (ofício exercido por Francisco Guimarães no Jornal do Brasil). Eles
apontam para um ponto muito singular no cronista, que é a sua cumplicidade com o público,
pois ele não só descreve situações, como também está dentro da cena, ou seja, participa
daquilo que descreve. Os autores mostram como as crônicas conseguem se fazer presentes nas
páginas de periódicos, quando estes, tentam fazer com que o conteúdo de seus páginas se
tornem mais agradáveis aos leitores das camadas populares, criando assim uma relação mais
próxima com seu público leitor:
“Outra característica a singularizar a crônica era sua estreita ligação com a imprensa.
Destinados em meados do século XIX a tornar as folhas mais leves e atraentes, os
folhetins de variedades acompanharam o processo de ampliação do público leitor de
jornais18
.”
Esse trecho possui uma questão importante para esta pesquisa. Nele, os autores
salientam um dos fatores principais para a popularidade dos jornais, já que ao permitir a
presença das crônicas em suas páginas, os periódicos demonstram sua tentativa de atingir os
indivíduos com menos visibilidade social. Cabe lembrar, que dentro dessa ideia de se tornar o
“jornal do povo”, o Jornal do Brasil também incluiu as crônicas nas suas folhas diárias,
dentre elas, a “Reportagem da Madrugada” escrita por Vagalume, o que possibilitou sua
admissão no meio jornalístico, sendo consolidada posteriormente quando passa a escrever seu
pseudônimo. Não por acaso, crônicas como as da “Reportagem da Madrugada” preocupam-se
em apresentar para o seu leitor, com detalhes, os locais por onde passou e o que viu durante a
reportagem, formalizando um diálogo com seu leitor através do texto.
A própria ascensão de Francisco Guimarães e de outros cronistas contemporâneos
também oriundos de classes sociais mais baixas, como João Mauro de Almeida, o Peru dos
Pés Frios, cuja trajetória é descrita no livro Os cronistas de momo: Imprensa e Carnaval na
Primeira República19
, de Eduardo Granja Coutinho, corrobora com essa ideia da crônica
como um gênero literário que aproxima o autor de seu público. De fato, um dos motivos que
facilitaram a popularidade destes cronistas foi justamente o gênero em que escreviam. Com
uma visão favorável em relação aos grupos sociais mais humildes, eles conseguiram criar
vínculos de identificação com essas camadas sociais, contribuindo assim para a popularidade
destes cronistas.
A partir das leituras aqui descritas, consegue-se traçar como as crônicas publicadas na
imprensa podem ser um importante instrumento para o historiador. Porém, cabe a ele se
aprofundar nos elementos que fazem parte do jornal, cujo foram observados nas obras de Cruz
e Peixoto20
e Pereira21
. Além disso, precisa-se compreender quais são as perspectivas e
17
CHALHOUB, Sidney; NEVES, M. de S.; PEREIRA, L. A. de M. (Org.). “Apresentação”. In: História em
cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora UNICAMP, 2005. 18
Ibidem, p. 16 19
COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de momo: Imprensa e Carnaval na Primeira República. Editora
UFRJ: Rio de Janeiro, 2006. 20
CRUZ, Heloisa de Faria ; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. “Na oficina do historiador: conversas sobre
história e imprensa”, Projeto História, v. 35, n. 35, pp. 253-270, Dezembro. 2007
Departamento de História
pretensões do periódico (o perfil buscado por ele, seu público-alvo etc.), para poder usá-lo
como fonte. Foi o que esta pesquisa procurou realizar ao analisar a história do Jornal do
Brasil. É preciso ter em mente também, o lugar social do cronista, que ao escrever sua
crônica, expõe suas percepções sobre a sociedade em que está inserido, permitindo que o
historiador formule sua análise não só sobre o que está sendo retratado na crônica, como
também sobre o próprio cronista. Foi partindo deste princípio, que por meio da “Reportagem
da Madrugada” consegui examinar a forma com que Francisco Guimarães enxergava a
sociedade carioca do início do século XX.
A Reportagem da Madrugada
Foi a partir das questões historiográficas e metodológicas discutidas acima que iniciei,
nesse primeiro período de atividades, a pesquisa na série “Reportagem da Madrugada”, escrita
(embora ainda não assinada) por Francisco Guimarães.
A série se inicia em 9 de abril de 1901, e vai até 27 de julho do mesmo ano,
aparecendo nas edições da tarde do Jornal do Brasil, de segunda a sábado. As crônicas
abordavam sobre o cotidiano da madrugada carioca. Os assuntos que recebiam mais destaque,
eram, em geral, aqueles que envolviam a polícia, com maior enfoque nos casos em que ela
agia de forma arbitrária. Além disso, a série também se preocupava em tratar da situação
precária vivida pelos moradores de rua, a boemia carioca, crimes entre outros acontecimentos
frequentes nas madrugadas do Rio de Janeiro.
De modo a compreender a proposta da série, uma boa estratégia é investigarmos sua
primeira crônica, na qual os colunistas costumavam marcar o programa de cada coluna. Nela,
o jovem Francisco Guimarães, que passava no texto a se apresentar como o “nosso
Vagalume22
”, apresentava aos leitores o propósito da série.
“O Jornal do Brasil, no empenho de bem informar os seus leitores, inicia hoje
esse novo serviço de reportagem, incontestavelmente original na imprensa brasileira.
A reportagem da madrugada virá adiantar aquelas que o ignoram o quadro
que se descortina nesta cidade, depois que o velho bronze da torre de S. Francisco dá
às 12 pancadas da meia-noite.
Dessa meia hora em diante, começa um novo movimento; começa a vida dos
noctívagos, o que, sem dúvidas, é digno de nota, pois muitos casos importantíssimos
se dão desta hora em diante e que bem mereciam as honras de uma exploração de
reportagem23
.”
A partir do fragmento exposto acima, pode-se interpretar que um dos objetivos da
crônica que começava naquela noite, seria falar da realidade carioca durante a madrugada,
cheia de crimes, ações policiais e com pessoas necessitadas, que por falta de recursos,
acabaram tendo que morar na rua. Consegue-se observar tudo isso já na primeira reportagem,
21
PEREIRA, L. A. de M. “Negociações impressas: a imprensa comercial e o lazer dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da Primeira República”. História (São Paulo), v. 35, n. 99, pp. 1 – 21, 2016 22
Forma como Francisco Guimarães se apresentava para o público leitor de sua série. Olhar “Reportagem da
Madrugada”.Jornal do Brasil (RJ) (edição da tarde), 13 de abril de 1901. 23
“Reportagem da Madrugada”. Jornal do Brasil (RJ) (edição da tarde), 9 de abril de 1901.
Departamento de História
pois nela, Francisco Guimarães já menciona a situação dos moradores de rua. Vale ressaltar
também responsabilizava o governo por aquela situação.
“Em torno da estátua de José Bonifácio, nas escadarias da Escola Politécnica,
do Gabinete Português de Leitura e da igreja dormem alguns mendigos, que de
quando em vez são despertados brutalmente pela polícia, que talvez ignore que
aqueles miseráveis não têm domicílio e, entretanto, como nós outros, precisam dormir
descansar o corpo e sossegar o espírito!
Demonstra tudo isso a falta de um albergue noturno, por causa do governo,
que recebe gratuitamente.
Pois estes pobres infelizes são despertados pontapés, bengaladas, correadas e
etc.
Pobres infelizes24
.”
O trecho em destaque é importante, porque não só aponta para a preocupação do
cronista com o descaso do governo com relação aos sem teto, como também apresenta outra
marca de Francisco Guimarães ao longo da série, que é a aversão às ações autoritárias
praticadas pela polícia. Tais ações costumavam acontecer com mais frequência durante a
madrugada, visto que é o período do dia em que menos se tem circulação nas ruas, o que
facilita esses atos abusivos.
Outra parte da primeira crônica do Vagalume que apresenta a arbitrariedade da polícia,
foi o caso do português Manoel Marques, em que o cronista apresenta a seguinte versão:
“Manuel Marques, português, de 38 anos de idade, carpinteiro, morador da
rua do Cotovello n. 7, entrou ontem demasiadamente no uso de bebidas alcoólicas.
Dali justificam-se umas tanta estrepolias por ela praticadas, razão porque foi
parar no xadrez da referida delegacia.
Manuel Marques, na embriaguez em que se achava, portou-se de modo inconveniente.
Isto, porém, não pode servir de justificativa ao ato selvagem praticado pela
polícia no xadrez da 1 ° circunscrição urbana.
E para isso o Jornal do Brasil chama a atenção do Sr. Comandante da brigada
policial , assim como reclama a atenção do delegado daquela circunscrição e do Dr.
Chefe de polícia.
Relatemos o fato:
Hoje, cerca de 6 horas da madrugada, o faxineiro abriu a porta do xadrez e,
dentre uns quinze presos que lá estavam, ele com o maior sangue frio, arrastou para
fora de enxovia o português Manuel Marques, que ainda dormia.
– Venha cá, seu patife , venha receber o castigo , dizia o policial preparando o
sobre Comblain.
E, daqui a pouco, começou o espancamento, de modo que Marques apenas
tem os seguintes ferimentos: um no pulso esquerdo, uma na canela do mesmo lado,
este é profundo e extenso, tem um pontaço na nuca, uma escoriação na face esquerda
e as costas em estado indescritivel.
Marques apanhou calado, sem pronunciar uma palavra.
24
“Reportagem da Madrugada”. Jornal do Brasil (RJ) (edição da tarde), 9 de abril de 1901
Departamento de História
Pois bem, hoje, às 8 horas da manhã, o inspetor tenente Pamplona, querendo
fazer desaparecer o crime de seu colega inspetor Thomaz Times, moço
excessivamente genioso, pôs Manuel Marques em liberdade e isto sem autorização do
delegado, que só dá audiência às 11 horas do dia.
Está claro que nenhum inspetor tem autorização para soltar um preso por
menor que seja a sua criminalidade.
Entretanto os inspetores da 1° urbana, fazem-no abusivamente, e cometem
outros abusos que por serem ignorados pelo respectivo delegado ficam quase sempre
impunes.
É uma vergonha, mas é uma verdade.
Como fosse intuito dos inspetores e dos praças do destacamento fazer
desaparecer Manuel Marques a fim de que desaparecesse a única prova do crime , o
Jornal do Brasil , o defensor dos fracos e dos oprimidos mandou levar um dos seus
representantes levar Manuel Marques à repartição central da polícia onde foi
apresentado ao delegado auxiliar de serviço, afim de ser submetido à exame de corpo
de delito e serem tomadas por termo as suas declarações.
Estamos certos de que enérgicas providências serão tomadas a fim de que tais
fatos não se repitam25
.”
Casos como esse, em que Francisco Guimarães denuncia a violência e o autoritarismo
da polícia, eram algo comum de se encontrar na “Reportagem da Madrugada”. Não obstante,
o que mais chama atenção, e que pode ser observado neste trecho, é que o cronista não apenas
informa seu público sobre o ocorrido, como também, se colocando como o representante do
Jornal do Brasil, nos permite considerar que faria o possível para que as devidas medidas
fossem tomadas e que assim, a justiça fosse feita.
Ainda convém lembrar, que em algumas edições da “Reportagem da Madrugada”, além
dos textos do Vagalume, outros elementos presentes na folha do Jornal do Brasil - como
algumas charges que reverberavam as crônicas de Vagalume - nos mostra a preocupação com
os mais necessitados e com os atos arbitrários da polícia.
25
“A Reportagem da Madrugada”. Jornal do Brasil (RJ) (edição da tarde), 9 de abril de 2017.
Departamento de História
“Reportagem da Madrugada”. Jornal do Brasil (RJ) (edição da tarde), 17 de abril de 1901
A ilustração nos permite enxergar que a violência da polícia exercida sobre os
moradores de rua, não era apenas a preocupação do Francisco Guimarães, mas também do
próprio jornal em que ele escrevia, visto que, como foi colocado anteriormente, o Jornal do
Brasil tinha como objetivo cada vez mais se aproximar das camadas mais pobres. Logo,
defender os desabrigados e denunciar o autoritarismo da polícia, era umas das formas do
periódico conseguir essa aproximação. O tema só vem à tona, no entanto, pela pena de
Francisco Guimarães, cronista atento e solidário ao sofrimento desses trabalhadores da noite.
Vale ressaltar que a série também chama atenção para outros acontecimentos
corriqueiros da madrugada carioca na Primeira República, como a boemia. Por isso, Francisco
Guimarães perambulava por muitos bares e cafés, com intuito de colher informações e
presenciar acontecimentos que poderiam vir a ser interessantes para sua série.
O sucesso da série era atestado, no próprio jornal, pela atenção que escritores e
desenhistas de outras de suas seções passavam a dar aos escritos de Francisco Guimarães -
que aparece em uma caricatura de Bambino em abril de 1901.
Departamento de História
“Reportagem da Madrugada”. Jornal do Brasil (RJ) (edição da tarde). 18 de abril de 1901.
A figura acima retrata o Vagalume fazendo uma de suas anotações de forma que
posteriormente, pudesse relatá-las em sua crônica. Com cuidado de repórter, ele colhia notas
que atestavam a veracidade de seu texto. Por mais que se tratasse de uma crônica, estabelecia
assim uma forma de registro que deliberadamente a misturava com a reportagem – o que era
assinalado pelo desenhista como uma das características principais da série.
Ao mesmo tempo, no entanto, a charge mostra o sentido do esforço do jornal na
criação da série. Longe de ser ainda famoso o bastante para ter seu rosto exposto, o autor da
série era descrito na legenda como “o vagalume do Jornal do Brasil” – em descrição que,
sintomaticamente, ignora seu nome em favor daquele do próprio jornal. Não era de se
estranhar, por isso, a feição aparentemente branca a ela atribuída, que contrastava com outros
momentos em que sua imagem foi representada no jornal em perspectiva mais realista.
Departamento de História
Jornal do Brasil (RJ), 21 de novembro de 1899
Ao transformá-lo em simples representante do jornal, a charge de Bambino parecia
apagar a especificidade de Francisco Guimarães. Foi esta especificidade, no entanto, que
garantiu o sucesso da série - em especial no que diz respeito ao esforço de estabelecer um
espaço dentro do jornal para os temas e questões de interesse das camadas sociais mais
distantes do mundo das letras. Para isso, era preciso que seus membros fossem próximos
dessas camadas, pois isso facilitaria a comunicação entre o jornal e esses públicos. Foi dentro
dessa ideia, que o jornal abriu espaço para um escritor como Francisco Guimarães, homem
negro de origem pobre, que por fazer parte daquele universo e por ter um olhar diferenciado
com relação aos indivíduos que faziam parte da redação do jornal, conseguiu transformar a
coluna em um sucesso imediato. Diferenciando-se de muitos letrados de sua época, que viam
com olhares preconceituosos ou com desdém, os ambientes, pessoas e situações que Francisco
Guimarães insistia em descortinar, ele trazia assim para a seção nobre das folhas do jornal, em
perspectiva positiva, temas que até então pareciam exclusivos das páginas policiais.
Departamento de História
Referências Bibliográficas:
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um músico cantor (1890 – 1920)”. Topoi, v. 11, n. 20, p. 92 – 113, jan. / jun. 2010.
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Editora UNICAMP, 2005.
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[6] LOPES, Katia Geni Cordeiro. A presença de negros em espaços de instrução elementar
da cidade-corte: O caso da Escola da Imperial Quinta da Boa Vista. Dissertação de Mestrado
em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. (Cap. 2)
[7] PEREIRA, L. A. M.. “Negociações impressas: a imprensa comercial e o lazer dos
trabalhadores no Rio de Janeiro da Primeira República”. História (São Paulo), v. 35, n. 99,
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[8] ___________. “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e
nacionalidade na produção de Francisco Guimarães (1904-1933)”. Revista Brasileira de
História, v. 35, pp. 13-33, 2015.
[9] SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de. “Crianças e escolas na passagem do Império
para a República”, Revista Brasileira de História. vol.19 n.37 São Paulo Set. 1999.
[10] SILVA, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988.