Um dia os deuses se retiram

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  • 7/24/2019 Um dia os deuses se retiram

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    1. UM DIA, OS DEUSES SE RETIRAM

    (LITERATURA/FILOSOFIA:ENTRE-DOIS)

    Um dia, os deuses se retiram. Por si mesmos eles se retiram de sua divindade, ouseja, de sua presena. No se ausentam simplesmente: no vo alhures, retiram-se de sua

    prpria presena: ausentam-se dentro.

    O que resta de sua presena o que resta de toda presena quando ela se ausentou:resta o que se pode dizer dela. O que se pode dizer dela o que resta quando ningum

    pode mais se dirigir a ela: nem lhe falar, nem toc-la, nem olh-la, nem lhe dar umpresente.

    (Talvez, alis, os deuses se retirem porque ningum mais d um presente suapresena: no h mais sacrifcio, no h mais oblao, seno por costume e por imitao.Temos outras coisas a fazer: escrever, por exemplo, calcular, comerciar, legislar. Privadade presentes, a presena se retira.)

    O que se pode dizer da presena ausentada sempre uma de duas coisas: a suaverdade, ou a sua histria. Bem entendido, convm que seja a sua histria verdadeira.Mas como a presena fugiu, no mais certo que qualquer histria dela sejaabsolutamente verdica: pois nenhuma presena vem atest-la.

    O que resta se divide, portanto, de imediato em dois: a histria e a verdade. Uma eoutra so da mesma origem e se reportam mesma coisa: mesma presena que seretirou. Sua retirada se manifesta, portanto, como o trao que separa as duas, a histria ea verdade.

    Chama-se mythoso relato das aes e das paixes divinas, entre as quais h sempre oque olha o mundo e sua marcha, o homem e sua sina.Mythossignifica o dizer de algumacoisa, pelo qual se faz conhecer a coisa, o caso [affaire]: em latim, sua narratio, que

    seu saber. Quando os deuses esto retirados, sua histria no pode mais sersimplesmente verdadeira, nem sua verdade ser simplesmente contada. Nelas falta a

    presena que atestaria a existncia do que se conta ao mesmo tempo que a veracidade dapalavra que conta.

    Falta o corpo dos deuses: Osiris permanece desmembrado, o grande Pan morreu.Falta o corpo verdadeiro que proferia ele mesmo sua verdade: sua esttua respingada dosangue das vtimas, impregnada dos vapores do incenso, ou ento o bosque sagrado noqual se escuta rumorejar a fonte onde desemboca uma presena subterrnea.

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    Falta esse corpo proferidor, resta o que se pode dizer dele e o dito se tornouincorporal, igual ao vazio, ao lugar e ao tempo. So as quatro formas do incorpreo, isto, do intervalo em que podemos achar corpos, mas que no nunca ele mesmo umcorpo. O intervalo tem por propriedade abrir-se e dividir-se.

    O dito no mais dado, compacto, com o corpo divino, orao de seus lbios: ele seafasta de si, se distende, logos.

    *

    Verdade e narrao, portanto, se separam. Sua separao traada pelo prprio traoque se estira sobre a retirada dos deuses. O corpo dos deuses o que resta entre as duas:

    nelas ele resta como sua prpria ausncia. Nelas ele permanece corpo pintado, corpofigurado, corpo contado: mas no h mais o corpo a corpo [mle] sagrado.

    Entre literatura e filosofia falta esse enlaamento, esse abrao, esse corpo a corposagrado do homem com o deus, ou seja, com o animal, a planta, o raio e o rochedo. Suadistino , por isso, exatamente o desenlaamento, o desabrao. O corpo a corpo assimdesemaranhado partilhado22pela mais cortante das lminas: mas o prprio corte traz

    para sempre as aderncias do emaranhado. Entre as duas, h algo de no-emaranhvel.23

    *

    Verdade e narrao se separam de tal maneira que a sua separao que institui aambas. Sem a separao no haveria nem verdade nem narrao: haveria o corpo divino.

    No s a narrao suscetvel ou suspeita de carecer de verdade, mas ela privadade verdade desde o princpio, estando privada do corpo presente como boca de seu

    prprio proferimento, como pele de sua prpria exposio.

    Essa privao identicamente a privao da verdade, e a verdade, por princpio,passa aqui pelo afastamento [cart], na retirada infigurvel, inenarrvel. A verdade setorna um ponto de fuga que se anamorfoseia em ponto de interrogao. A verdade se

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    torna: o que a verdade? . Transpor [franchir] a questo, no entanto, libertar-se dela[saffranchir],24permanece o ponto de fuga, a perspectiva infinita do que desde ento senomeia logos.

    A narrao expe figuras: ela se inventa como a figuralidade em geral, quer dizer, otraado dos contornos pelos quais um corpo se assinala e de antemo se faz corpo, masum traado do qual permanece duvidoso se o corpo que ele envolve verdadeiro. Otraado narrativo expe uma manifestao de corpos que no se tem certeza que sejaidenticamente um corpo manifesto.

    Ou antes, certo que ele no o : figurando-o, a narrao o declara ausente. omesmo traado que fez o prprio deus oficiando em cabea de chacal ou lgrima deresina no flanco de uma rvore e que faz atualmente sua figura. Mas esse traado sedivide em si mesmo: o corpo divino nele se faz ausncia.

    A perspectiva da verdade visa, pois, a essa falta25 como o lugar do que ela tantodeseja, mas cuja falta ela se aplica a mostrar. Mostrando a falta a prpria figura, aimitao, a representao, a alegoria, a mitologia, a literatura ela diz a verdade dela:que ela uma falta, que est em falta (erro, iluso, mentira, enganao). Dizendo essaverdade, ela, no entanto, diz apenas a metade do verdadeiro: nela falta [manque] a

    presena para alm da figura ou na prpria figura. Mas o discurso da verdade profereque essa presena est alm do ser. O prprio discurso impele at esse alm, onde ele seabisma numa luz excessiva, deslumbramento no meio do qual se abole toda possvelfiguralidade.

    *

    Entre a figura e o deslumbramento resta o corpo divino ausente. Resta um singularcorpo de ausncia tocado de cada lado pela narrao e pela perspectiva de verdade.Uma descreve as formas do corpo, a outra inscreve sua excavao. Entre o descrito e o

    inscrito, sempre estirado entre eles, esquartejado, o escrito s, interminvel grafocinzelado no chumbo de um lacre aposto sobre o lugar da retirada. A cena se desenvolveem torno de um tmulo vazio, de uma mmia oca, de um retrato que no se parece comningum: em torno de um corpo doravante produzido, proferido como corpo , querdizer, como fora ausente.

    24Em francs o verbo franchir significa tanto transpor (um obstculo), atravessar, saltar, quanto superar,vencer (uma dificuldade), libertar-se. (N.T.)25Dfaut, significa em francs falta, ausncia, carncia, presente em expresses como:

    dfaut, na falta de, faire dfaut, fazer falta, faltar; tre dfaut, faltar um compromisso; endfaut, estar em falta. O sentido de dfaut recobre um campo significante bastante distinto demanque, manquer, falta e faltar, que se perde em portugus. (N.T.)

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    Mas uma cena, e ela se representa [joue] de modo bastante efetivo. uma cenasimultnea de luto e de desejo: filosofia, literatura, cada uma em luto e em desejo daoutra (da outra em si), mas cada uma tambm rivalizando com a outra no cumprimentodo luto e do desejo.

    Se o luto a carrega e se encerra em derrelio sem fim, uma ou outra soobra namelancolia, a garganta apertada pelo corpo perdido. Mas este ltimo tambm, e a cadavez, a imagem de uma para a outra: a filosofia se estrangula como literatura impossvel como uma literatura que seu prprio impossvel. Ou ento, o inverso.

    s vezes a literatura que conduz o luto que a filosofia sofre ou denega. s vezes afilosofia que sustenta a ausncia que a literatura maquia. Mas o gesto de uma podemuito bem ser o feito da outra. Tambm pode haver um poema filosfico que se esgotano desejo da outra e de fazerpoema: Zaratustra esbraveja para terminar:

    , pois, rumo felicidade que me esforo? Esforo-me rumo minha obra26!

    E pode haver um pensamento, ligado sem religio em seus versos a Vnus, quetermina assim, excrito27 fora das palavras, seu canto da natureza levado ao rubor dofogo:

    Sobre piras feitas para outros,

    homens colocavam com grandes clamores os de seu sangue,aproximavam a tocha, travavam lutassangrentas ao invs de abandonar os corpos28.

    *

    No abandonar os corpos, talvez em detrimento da obra, esta a tarefa. No

    abandonar os corpos dos deuses sem, no entanto, desejar relembrar a sua presena. Noabandonar o ofcio da verdade nem o da figura, sem, no entanto, encher de sentido o

    26 Friedrich Nietzsche. Ainsi parlait Zarathoustra. Un livre pour tous et pour personne . Traduo eapresentao de Georges-Arthur Goldschmidt, Paris, Le Livre de poche, col. Le livre de pocheclassique , 1972, p. 466. Traduo modificada por Jean-Luc Nancy. Nietzsche somente sublinha obra . (N.E.F.)27Verbo e noo cunhada por Nancy, excrire, ex-crever, sublinhando-se o prefixo ex- de exterior; ouexcrit, excrito, em que se ouve ainda algo como o ex-grito. Sobre essa questo, ver notadamente, oseu LExcrit, sobre a escrita de Georges Bataille (em Une pense finie. Paris: Galile, 1990; depoisretomado emAlea. Estudos neolatinos . Vol 15 #2, julho/dezembro 2013). (N.T.)

    28 Lucrcio, De la nature. De rerum natura, VI,v. 1283-1286. Traduo, introduo et notas por Jos

    Kany-Turpin. Paris : Aubier, col. Bibliothque bilingue , 1993, p. 467. (N.E.F.) s sobre piras quetinham sido acumuladas para outros e depois chegavam-lhes as tochas], e preferiam bater-se, com grandederramamento de sangue, a abandonar aqueles corpos

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    afastamento que os separa. No abandonar o mundo que se faz sempre mais mundo,sempre mais atravessado de ausncia, sempre mais em intervalo, incorpreo, sem porisso satur-lo de significao, de revelao, de anncio nem de apocalipse. A ausnciados deuses a condio das duas, literatura e filosofia, o entre-dois que legitima tanto auma quanto a outra, irreversivelmente ateolgicas. Mas, as duas tm ofcio de cuidar do

    entre-dois: de manter-lhe o corpo aberto, de deixar-lhe a chance dessa abertura.