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1 Desvendando mito e a saga dos imigrantes Médicos judeus em São Paulo Certas mulheres que vieram de longe UM DIBUK ENTRE DOIS MUNDOS

UM DIBUK ENTRE DOIS MUNDOS - ahjb.org.br · lincoln chao kung (1979-1943)um dibuk entre dois mundos 09 abrahão gitelman chile & chilenosissaschar fater (1912-2004) em seu centenÁrio

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Desvendando mito e a saga dos imigrantes

Médicos judeus em São Paulo

Certas mulheres que vieram de longe

UM DIBUK ENTRE DOIS MUNDOS

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CARO LEITOR

DIRETORIA: PRESIDENTE Jayme Serebrenic VICE-PRESIDENTE Bettina Lenci DIRETORES DE NúClEOS: bIblIOTECA E DOCumENTAçãO Roney Cytrynowicz

Lembramos aos colaboradores que este boletim possui ISSN (International Standard Serial Number), número internacional normatizado para publicações seriadas. Os artigos, inéditos, podem ser enviados à Redação pelo e-mail [email protected]. O BOLETIM DO AHJB é enviado gratuitamente aos sócios, a instituições culturais do Brasil e do exterior, e é também distribuído aos visitantes e consulentes que o solicitam.

PAULO VALADARES

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do AHJB.A linguagem e soletração em cada artigo respeita a escolha do autor.

PRESIDENTE Maurício Serebrinic 1O VICE PRESIDENTE Carlos R. de Mello Kertész 2O VICE PRESIDENTE Roney Cytrynovicz DIRETOR FINANCEIRO Jayme Serebrenic DIRETORA SECRETARIA GERAl Myriam Chansky DIR. DE ACERVOS DOCumENTAIS E bIblIOTECA Roney Cytrynowicz DIR. DE ACERVOS ESPECIAIS Simão Frost DIR. DE COmuNICAçãO Sema Petragnani DIR. DE CulTuRA ÍDICHE Abrahão Gitelman DIR. DE EDuCAçãO Anna Rosa Campagnano Bigazzi DIR. DE EXPOSIçÕES Miriam S. S. Landa DIR. DE GENEAlOGIA Paulo ValadaresDIR. HISTÓRIA ORAl Marília Freidenson DIR. DE múSICA Samuel Belk DIR. DE PATRImÔNIO Maurício Serebrinic DIR. DE PESQuISA Léa V. Freitag DIR. DE PROJETOS INSTITuCIONAIS Henrique Stobieck DIR. DE RElAçÕES INSTITuCIONAIS Paulina Faiguenboim DIR. DE SEçÕES E INFORmáTICA Carlos R. de Mello Kertész

ADmINISTRAçãO Eliane Klein bIblIOTECA Theodora da C. F. Barbosa DOCumENTAçãO, PESQuISA, PROJETO E EDuCAçãO Lúcia Chermont FOTOTECA Arnaldo Lev SERVIçOS GERAIS José Messias Ribeiro Santos

REDAçãO - EDITORES Sema Petragnani e Paulo Valadares REVISãO Suely Pfeferman TRADuçãO Flora Martinelli DIAGRAmAçãO Alexandra Marchesini PROJETO GRáFICO Marcelo Kertész ImPRESSãO Northgraph Gráfica CONTATOS [email protected] ou pelos telefones 11 3088-0879 / 2157.4124

O BOLETIM INFORMATIVO DO AHJB chegou ao nº 48. É uma façanha editorial, pois normalmente as revistas “científicas” morrem cedo. Tudo começou com singelo boletim de poucas páginas em preto e branco, sem imagens, e chegamos à forma atual, policrômico e com uma variedade de artigos interessantes. O modelo foi consolidado por Sema Petragnani, editora até o número anterior, que implantou um projeto gráfico, e com ele trouxe também rigor estético e jornalístico para o BOLETIM. A Srª Petragnani por “razões pessoais e irremovíveis” afastou-se da publicação em 8 de março de 2013, e coube a mim, dirigir esta edição.

Coube a mim nesta edição: buscar, selecionar e ordenar os artigos e as fotografias. Aceitar ou não as sugestões de nossa competente revisão. Cumpri estas tarefas com o objetivo de interferir minimamente no trabalho dos autores, deixando a todos a liberdade de expressão, marca de nossa revista. Por uma circunstância peculiar, a chamada exposição do “teatro ídiche”, onde o AHJB possui vínculos diretos, esta edição tornou-se quase que integralmente temática, com poucas exceções, ocupa-se da presença dos judeus do Leste Europeu no cotidiano brasileiro.

Iniciamos com um artigo do Prof. Dr. Nachman Falbel, um dos fundadores do AHJB e curador da exposição já mencionada, publicado neste BOLETIM em 2004, republicado nesta edição pela oportunidade oferecida. Não vamos enumerar ou descrever todos os outros artigos, porém basta afirmar, que há material cobrindo desde a experiência rural de Quatro Irmãos (RS) a Amazônia em tema raramente explorado, a presença das “Polacas” naquela região. Creio que alguém interessado na História Judaica encontrará nas páginas seguintes outros trabalhos instigantes.

Creio que cumprimos o propósito inicial desta publicação, trazer material relevante para os pesquisadores do Futuro, que busquem saber como vivemos e os desafios que enfrentamos.

Thanks, Mrs. Petragnani, por tudo.

Goodbye,

CAPA: ESTRELAS ERRANTES - memória do teatro ídiche no Brasil.

A PALAVRA DO PRESIDENTE

Meus amigos,

Hoje eu quero falar das atividades do AHJB nesse ultimo período e do que está para vir.

Realizamos, junto com a CONIB e FISESP e a Casa de Anne Frank, o projeto Anne Frank de redações escolares. Existem cinco escolas com esse nome no país e os seus alunos foram qualificados para esse concurso.

Ganhou uma aluna da Escola de Belo Horizonte, com uma redação maravilhosa, que teve como premio principal uma viagem a Amsterdam, junto com a mãe e professora. Fantástico.

Estamos no Facebook e a Lucia atualiza constantemente as informações do AHJB.

Teremos a partir do próximo dia 17 de julho, até 15 de setembro, teremos no MIS a Exposição do Teatro Idishe, “Estrelas Errantes“. A curadoria é do Prof. Nachman Falbel e a organização e execução são dos nossos Diretores Mrcos Chusid e Jayme Serebrenic. Não percam!

Quero enfim agradecer a Paulo Valadares pelo excelente trabalho à frente do Boletim AHJB, a todos os colaboradores.

Shalom a todos!

MAURICIO SEREBRINICPresidente

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ÍNDICE02 PALAVRA DO PRESIDENTE

03 CARTAS

04 NOTÍCIAS

06 Nachman Falbel UM DIBUK ENTRE DOIS MUNDOS

09 Abrahão Gitelman ISSASCHAR FATER (1912-2004) EM SEU CENTENÁRIO DE NASCIMENTO

11 Rubens Guelman DESVENDANDO MITO E A SAGA DOS IMIGRANTES

14 Léa Vinocur Freitag MÉDICOS JUDEUS EM SÃO PAULO PIONEIRISMO E TALENTO

18 Maximiliano Ponte CERTAS MULHERES QUE VIERAM DE LONGE: AS “POBRES MULHERES” SEPULTADAS NO CEMITÉRIO SÃO JOÃO BATISTA DE MANAUS

22 Prof. Reuven Faingold ITZHAK (IGNATIUS) TREBITSCH LINCOLN CHAO KUNG (1979-1943)

25 Waldemar Szaniecki CHILE & CHILENOS

26 Rafael Picó Pazos AS CHUETAS DE MAIORCA

27 MEMÓRIA Israel Blajberg PROFESSOR ABRAHAM JASPAN

bIblIOTECA DO INSTITuTO bEN-ZVIMeu nome é Dov (Luis) Cohen, sou brasileiro e vivo em Israel desde 1982. Sou vice-diretor da Biblioteca do Instituto Ben-Zvi em Jerusalém, a qual se especializa na investigação histórica das comunidades sefarditas e orientais. Teríamos interesse em receber periodicamente o boletim publicado pelo AHJB, o qual merece sinceros elogios, não só pelos artigos de grande interes-se publicados nele como também pela sua alta qualidade gráfica. Antecipadamente grato, DOV COHEN, PhD, Jerusalém, Israel.

OS AçOuGuEIROS DE FREuDI am researching several members of my fami-ly that went to Rio during World War 2 from Vienna.Their names are Leib (Leopold) and Resi (Reisel) Farber and their daughter Herma (Hermoine) Alt. Reisel’s maiden name was Kornmehl. They arrived in Rio from Vien-na. Could you send my inquiry to the correct person who can look into the records of the Jewish community in the 1940-1950 and give me more information? Thank you! JILL LEIBMAN KORNMEHL, MD, professora de radiologia no Albert Einstein College of Medicine, N. Y. C.

RESPOSTA DO NúClEO DE GENEAlOGIA DO AHJb: Lo-calizamos a naturalização da filha Herma Alt no Decreto Lei nº 389, de 25 de abril de 1938, e posteriormente a che-gada dos pais. Leib Farber (Winiary, 23/03/1876), filho de Selig e Chana Farber, alemão, açougueiro, residente com sua esposa na rua dos Entrepreneurs nº 20, Paris. Ele e a esposa Reisel receberam o visto na mesma cidade, em 24 de janeiro de 1940. Reisel (Radlow, 25/12/1877), filha de Heinrich e Henriette Kornmehl, alemã. Ela pertencia a uma ilustre dinastia de açougueiros kosher, conhecidos como

os “açougueiros de Freud”, por terem o seu estabelecimento ao lado do consul-tório do psicanalista. Na foto a Srª Reisel Farber, quando de sua entrada no Brasil.

CONSulTA mAIS FREQuENTE“(...) Meu nome é V. Eu gostaria de uma informação. Estou pesquisando sobre a arvore genealógica da minha família, pois amigo judeu me disse que o sobrenome da minha bisavó e judeu. Eu tenho a cer-tidão de nascimento da minha avó. Vocês saberiam me ajudar a me informar mais (...) Minha avó já falava isso, mas eu não tinha me animado em me informar. De-pois que meu amigo falou isso decidimos

pesquisar (...)”. V., consulente da página do AHJB na WEB.

RESPOSTA DO NúClEO DE GENEAlOGIA DO AHJb: Por uma série de circunstâncias próprias do tempo em que vive-mos, o maior volume de perguntas que recebemos no AHJB são questões sobre a genealogia brasileira, numa média de três emails e cartas durante a semana. A maioria deseja saber se há origem judaica na sua ascendência, baseados em mitos, como o da particularidade onomástica, que utentes de sobre-nomes de animais ou árvores, teriam esta ascendência, dentre outros, tênues e equivocados. Isto é falso. Os cristãos-novos e seus descendentes usaram todos os tipos de sobrenomes. Ne-nhuma sociedade genealógica – e lembramos que as maio-res, ASBRAP, CBG e as centenas de JGS (Jewish Genealogical Society) espalhadas pelo mundo, faz pesquisas para indiví-duos. Nós seguimos também esta orientação. Aconselhamos aos consulentes: se o s eu problema é religioso, procure um rabino; se é histórico, procure nossa Biblioteca, ela possui os mais importantes títulos da historiografia cristã-nova.

CARTAS

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4NOTÍCIAS

O Arquivo Histórico Judaico Brasileiro recebeu no dia 25/06/13 a visita do Diretor do Arquivo Histórico da Ci-dade de Amsterdã - Holanda, Sr. Marens Engelhard, ele foi recebido por Mauricio Serebrinic, presidente do AHJB; Carlos Kertész, vice-presidente do AHJB; Lucia Chermont, coordenadora do AHJB; Solange de Souza, consultora arquivística do AHJB e Julia Lima, tradutora. O encontro serviu como troca de experiências no tratamento e des-crição de conjuntos documentais comuns entre as duas instituições, bem como para o estabelecimento de proje-tos em parceria. No dia seguinte, 26/06/13, o Sr. Marens Engelhard e Lucia Chermont fizeram uma visita ao Arqui-vo Histórico Municipal de São Paulo foram recebidos pela diretora da instituição, Liliane Lehmann. O Sr. Marens En-gelhard faz parte da comitiva da cidade de Amsterdã em visita as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

O AHJB tem apoiado e participado de alguns projetos inspirados na trajetória de Anne Frank. O Instituto Anne Frank House em parceria com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo lançou o projeto Anne Frank na Escola, que pretende be-neficiar, nos próximos cinco anos, 10% das escolas de maior vulnerabilidade social – 500 a 600 colégios – e mais de 200.000 estudantes da rede. Este programa educativo é voltado para estudantes do ensino médio e dos dois últimos anos do fun-damental. A idéia é trabalhar no currículo escolar a educação para a paz, causas e efeitos do preconceito, exclusão social, racismo, violência e discriminação. Para divulgar este projeto a Anne Frank House, em parceria com o Governo do Estado de SP, o AHJB e o Consulado dos Paises Baixos, promoveu um evento no dia 19/02/2013 no Palácio dos Bandeirantes. Os pa-lestrantes foram: Herman Voorwald, Secretário da Educação do Estado de São Paulo, Rodrigo Tavares, Assessor Especial do Governador para Assuntos Internacionais, Joelke Ofringa, presidente do Instituto Plataforma Brasil, representante da Anne Frank House no Brasil e Jair Ribeiro, co-presidente do Banco Indusval Partners. O evento foi um sucesso, muito prestigiado pelos empresários da coletividade e fora dela. O AHJB também oferece suporte de conteúdo para o Concurso Nacional de Redação da Rede de Escolas Anne Frank Brasil, criado pela CONIB e FISESP. Participarão deste concurso alunos do 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental das escolas públi-cas Anne Frank de BH, TO, RS, RJ e SP. O concurso objetiva a divulgação da vida e do legado de Anne Frank, estabelecendo relações com a sociedade brasileira para construir uma atitude ativa na defesa da democracia, dos direitos humanos e da diversidade sociocultural. O vencedor nacional foi Lívia Fernanda de Souza Mendes (8º ano), da escola de Belo Horizonte. Seu prêmio: uma viagem à Holanda, entre 9 e 16 de junho, para visitar a Casa Anne Frank e a Amsterdã judaica. O vencedor, da categoria A, para alu-

nos do 5º ano, é Vanessa Lima Ramos, de Palmas. O vencedor da Categoria B, para alunos do 6º ao 9º ano, é Letícia Ottoni da Silva (7º ano), da escola de São Paulo. Ambas ganharão um tablet. A escola que mais se destacou foi a de Belo Horizonte, que também ganhará um tablet. A estudante Lívia Fernandes, vencedora do concurso foi viajar para Amsterdã acompanhada de sua mãe, seu professor e a equi-pe de reportagem do Fantástico. Antes de embarcar para a Holanda visitou em São Paulo, a Se-nhora Nanete Konig, amiga de infância de Anne Frank e visitou o Centro de Cultura Judaica, onde almoçaram pequeno bistrô Man-ja Coffe&Deli.Lucia Chermont, coordenadora de atendimento, pesquisa e edu-cação do AHJB.

O AHJB e os projetos Anne Frank

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5 NOTÍCIAS

NOSSAS ATIVIDADES Pesquisadores de agosto de 2012 a junho de 2013

Alberto Milkewitz Doutor em Educação / FISESP; Anita Pinkuss, Pesquisa Pessoal; Bernardo Lerer, Jornalista/ Memorial da Imigração Judaica; Betina Rosenblatt Coin, Pesquisa pessoal; Bruna Charifker, Cientista Social; Cássio Tolpolar, Publicitário; Carolina Soares, Historiadora da Arte; Celina Bieber, Pesquisa pessoal; Dana Chayo, Coordenadora Jewish In; Daniela Maria Ribeiro, Relações Públicas / Sindicato dos lojistas do comércio de SP; Denise Vieira Pinto, Cineasta; Diego Batista Penholato, Projeto Mestrado História; Edgard Chermont, Psicólogo e músico; Elisa Haddad de Oliveira; Graduanda de arquitetura/ FAU-USP; Emanuela da Silva Barbosa, Graduanda de psicologia / UNASP; Ester Cohen, Pesquisa Pessoal; Fernando Fainzilberg, Segurança FISESP; Flavia Fiszon Zagarodny, Analista de Sistemas/Colégio Israelita A. Liessin; Gabriel Blacher, Estudante/ Colégio I.L. Peretz; Germano Tavi Gruenwald, Pesquisa pessoal; Heloisa Cenciper Fiorini

Graduanda de História PUC/SP; Heloisa Pait, Professora da UNESP; Herbert Quaresma, Professor Universidade Presbiteriana Mackenzie, Hilton Jamos Kutscka, Escritor; Jacques Ernest Levy, Instituto Histórico Israelita Mineiro; James Bispo da Conceição, Graduando de História/ UFSP; Justine Thody, Editora/analista econômica; Luiz Fernando da Silva Santos, Historiador; Maria Christina Barbosa de Almeida, Bibliotecária/Biblioteca Mário de Andrade, Margalit Berajano, Professora da Universidade Hebraica de Jerusalém; Marlen Eckl, Doutora em História / exposição Biblioteca Nacional da Alemanha; Melissa Priel, Mestranda História – Universidade Hebraica de Jerusalém; Michael Rom, Doutorando de História / Universidade de Yale, Michel Gherman, Doutorando em História / Universidade Federal do Rio de Janeiro; Regina M. A. Koenigstein, Educadora; Ricardo Mendes, Arquivo Histórico de São Paulo; Sérgio Tadeu G. dos Santos, Bibliotecário; Simão Priszkulnik, Professor universitário e Uri Cohen, Pesquisa Pessoal.

IMAGENS VENDIDAS OU CEDIDAS DE AGOSTO DE 2012 a JUNHO de 2013Cássio Tolpolar, Documentário Mamaliga Blues; Daniel Ankier, Memorial da Sinagoga da Rua da Graça; Daniela Maria Ribeiro, Evento do Sindicato dos Lojistas do Comércio de SP; Bernardo Lerer, Artigo em Livro; Gabriel Blacher, Trabalho escolar; Flavia Fiszon Zagarodny, Utilização pedagógica; Heloisa Pait, Livro; James Bispo da Conceição, Trabalho de graduação; Maria Christina Barbosa de Almeida, Artigo da revista da Biblioteca Mário de Andrade; Margalit Bejarano, Pesquisa acadêmica; Melissa Priel, Mestranda Universidade Hebraica de Jerusalém; Ricardo Mendes, Inserção na base de dados de exposição no site do Arquivo Histórico de São Paulo.

O logotipo do AHJB foi cedido para:

Convite do evento de divulgação da parceria da Anne Frank House e Secretaria de educação do estado de São Paulo;

Exposição da imigração Sefaradi para o Brasil, Memorial da Imigração Judaica.

Concurso de Redação das Escolas Anne Frank

DOAÇÕES RECEBIDAS DE AGOSTO DE 2012 a JUNHO de 2013Abrahão Gitelman, Coleção completa das obras de Sholem Aleichem, publicado em NY, 1944; Alberto Kleinas, Dissertação de mestrado: A morte de Vladimir Herzog e a luta contra a ditadura: a desconstrução do suicídio. De Alberto Kleinas Faculdade de Ciências Sociais – UFSCAR; Arquivo Nacional, Livros e periódicos da instituição; Associação Casa de Cultura Beit Yaacov, Livro: Holocausto – as perguntas mais freqüentes de Avraham Milgran; Bertha Fridlin, Livros, periódicos, documentos familiares e discos; Blima Lorber, Livro: As catorze vidas de David – o menino que tinha nome de rei de Blima Rajzla Lorber e Szyja Ber Lorber; Carlos Kertesz, Documentos da escola israelita de Salvador; Claudia Metzler, Cópia de carta de Albert Einstein à Rudolf Moos, 1941; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa, Livros; Danny Abensur, Monografia de Conclusão de Curso de Comunicação Social - Faculdade Cásper Líbero: O Brasil e a memória no diário de David Perlov de Danny Abensur; Drorit Milkewitz, Livros, material didático e periódicos. Eva Alterman Blay e Anita Hitelman, Discos em idiche; Eva Setton, Postais enviados da Bessarábia para o casal Elisa e Rubin Goldenberg; Franca Cohen Gotlieb, Livros e periódicos; Gladis Wiener Blumenthal, Livro: Em terras gaúchas – a história da imigração judaica-alemã de (org) Gladis Wierner Blumenthal; Henoch Halsman, Livros; Jacob Murahovschi, Livro: Ouviram do Ipiranga – fragmentos de uma vida de Jacob Murahovschi; Jorge Bastos Furman, Folhetos, programação, clipping e atividades da comunidade judaica do Rio de Janeiro; Kathe Windmüller, Livro de Egon e Frieda Wolff e de W. S. Speyer; Lola Berissi, Livro de reza (sidur) editado na Áustria em 1935, que pertenceu a um imigrante judeu proveniente do Egito; Lucia Chermont, Material de congressos e simpósios de temática judaica; Márcia Gil Knobel, CDs e fitas cassetes idiche e hebraico; Marcos Chusyd, Livros; Marcos Gawendo, Programa de inauguração do Teatro TAIB, 1960; Marli Zveibil, Publicação: Minha vida, uma história...Romênia-Brasil 1922-2003 de Marcos Vaidergorn; Mauricio Sztejnhaus, Fotos; Michael Leipziger, Livros e periódicos; Organização Feminina WIZO de SP, CD do Coral Sharsheret; Paulina Firer, Livro: Um tango para sobreviver em depoimento a Valéria Martins de Gina Freund e Histórico de vida de Helena Jurica; Rachel Berger Simis, Pôster; Renée Wexler, Livros, vídeos, fitas cassetes, discos e documentos em português, hebraico e idiche; René Gertz, Livro: O neonazismo no Rio Grande do Sul de René Gertz; Rubin Agater, Fotos, documentos sobre o teatro idiche; Samuel Neuman, Tese de doutorado: Transmissão transgeracional do trauma e resiliência em descendentes de sobreviventes do Shoah: um estudo qualitativo. De Luciana Lorens Braga, Psiquiatria Escola Paulista de Medicina/UFSP; Sarita Mucinic Sarue, Dissertação de mestrado: Janusz Korczak diante do sionismo. De Sarita M. Sarue, Centro de Estudos Judaicos FFLCH-UP; Sema Petragnani, Livros, periódicos e materiais do concurso de pintura da WIZO e WIZO / SP, CD do coral Sharsheret.

LUCIA CHERMONT, Coordenadora do Atendimento, Documentação, Pesquisa, Projetos e Educação do AHJB.

LUCIA CHERMONT

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NACHMAN FALBEL *

UM DIBUK ENTREDOIS MUNDOS

Quando Schloime Zanvil Rappaport (1863-1920), mais conhecido como An-sky, deu início ao programa da Expedi-ção Etnografica Judaica no verão de 1912, graças ao apoio do notável mecenas Barão Naftali Herz Günzburg, ninguém poderia prever o quanto ela seria importante para o resgate da criatividade e das tradições populares judaicas na Zona de Residência na Europa oriental. Entre os anos de 1912 e 1916 An-sky, juntamente com um grupo de pesquisadores, fez várias viagens às regiões da Podolia, Volinia e Kiev per-correndo cidades,shtetels e aldeias para realizar o progra-ma que havia delineado durante muito tempo.

Para termos a dimensão de seu empreendimento basta saber que ele havia preparado um questionário que conti-nha 10.000 perguntas sobre questões que abrangiam itens relativos ao modo e ciclo de vida do ser judaico. Em abril de 1912 ele escreveu ao Barão Günzburg: “No momento , todos os meus esforços estão concentrados em compilar um Programa para a Coleta de Material sobre Etnografia Judaica, que passou a ser efetivamente um grande projeto. Para lhe dar uma ideia de sua dimensão o item ‘sinagoga’ , tem mais que 100 questões. O item ‘ieshivot’ aproxima-damente o mesmo. Comecei com “a concepção do feto” e sigo a vida de uma pessoa até sua morte. Morte, vida após a morte, demonologia, feriados, vida cotidiana, conceitos abstratos.” Na introdução ao Programa Etnográfico Judai-co ele recorre a uma explicação traçando um paralelo con-vincente com a antiga tradição escrita e oral : “Ao par da Torá Escrita(torah shebichtav) temos ainda uma outra Torá, a Torá Oral(torah shebalpe). O povo , ele próprio , espe-cialmente o povo comum, criou essa Torá sem interrupção durante sua longa, sofrida e trágica história. Essa Torá Oral, que consiste em estórias populares, tradições, costumes, crenças e outros elementos, é o produto significativo do mesmo espírito judaico que criou a Torá Escrita. Ele reflete a mesma beleza e pureza da alma judaica , a delicadeza e a nobreza do coração judaico , a elevação e a profundidade do pensamento judaico.”

O ambicioso projeto resultou na coleta de milhares de fotografias, manuscritos ,estórias e tradições populares, provérbios, melodias ,lendas ,verdadeiro tesouro documen-tal para o estudo e conhecimento da espiritualidade judaica em uma região na qual predominava, em grande parte, a

religiosidade do movimento hassídico (pietista) inaugurado pelo Baal Shem Tov em meados do século XVIII. O movi-mento, que surgira na Podolia, logo se expandiria em toda a Europa Oriental e conquistaria as massas populares pelo sua mensagem e postura religiosa inovadora que, entre outras coisas, expressava os anseios anímicos do homem comum em um período em que o judaísmo encontrava-se perante profundas mudanças.

O hassidismo impregnou as comunidades judaicas as-quenazitas com uma nova visão do sagrado e um radical rompimento frente a relação tradicional do homem com a divindade. Tradicionalmente o estudo e o conhecimento das Escrituras Sagradas, a Torá escrita, a Biblia Hebraica, a Torá oral , o Talmud e a literatura rabínica, fontes para a fundamentação da fé judaica, era condição indispensável para elevar-se espiritualmente e cultuar o Criador do uni-verso. Porém, para o Baal Shem Tov e seus discípulos, os instrumentos da razão, a erudição das Escrituras Sagradas não bastavam, pois, o verdadeiro religioso deveria intuir e ter uma percepção da obra divina através da profunda fé interior assentada sobre a “intenção do coração” ,(kavanat halev). Nessa visão a presença divina se manifesta e revela em toda a extensão da Criação e em tudo que nela está contido. A imanência do sagrado no mundo material e no espiritual, no visível e invisível, no pequeno e no grande, no bem e no mal, pode ser captada na medida em que o hassid, o piedoso, está voltado e aspira a sincera e verda-deira comunhão com a divindade, a dveikut. A intensa e plena devoção interior é o que distingue o hassid daquele que somente cumpre rotineiramente o ritual e os precei-tos religiosos. Esse é o caminho que permite ao homem libertar-se das preocupações e sofrimentos de toda ordem a fim de elevar-se e viver como um “justo”. O tzadik , o líder hassidico , que passará a ser o catalisador e o mediador en-tre o reino do alto e os viventes da terra, surgirá dentre os discípulos do Baal Shem Tov, e formará a grande e diversifi-cada corrente de “rebes” carismáticos que difundiram seus ensinamentos e criaram centenas de círculos de seguidores nas grandes e pequenas comunidades judaicas da diáspo-ra. O Mestre do Bom Nome, que sabia como curar doentes com formulas mágicas e amuletos, um taumaturgo que de início vivia recolhido em seu próprio mundo, em um dado

ARTIGO

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momento reúne ao seu redor seguidores e admiradores que se identificam com sua doutrina ética e maneira de servir a Deus. Dentre as muitas lendas que compõem sua biografia temos um documento verdadeiro, uma carta que enviou ao seu cunhado que vivia na terra de Israel na qual descreve a experiência mística em que sua alma elevou-se ao Paraíso e encontrou-se com o Messias. Ao perguntar ao Messias quando viria para remir seu povo obteve como res-posta: “Quando teus rios se espalharem”, ou seja quando os ensinamentos hassídicos se difundirem entre o povo.1

O hassídismo que incorporou em sua visão de mundo tradições místicas e a influencia da cabala, se fez presente em maior ou menor proporção no pensamento de muitos de seus tzadikim, estando voltado à compreensão da rela-ção existencial entre o reino do homem e o celestial e não especialmente do mundo divino sob a forma de especula-ções sobre o transcendental. O entendimento e a captação do pulsar da vida, no sentido mais amplo da expressão, a capacidade de entender e responder aos dramas do coti-diano da existência humana, aos desejos, dores, angústias, dúvidas, do homem comum, com sabedoria e conselho é o que confirmava a força espiritual do tzadik perante sua grei. Daí a extrema reverência de seus adeptos que che-garia a se transformar em culto à sua personalidade. Seu poder poderia tornar-se ilimitado na medida em que era visto como kadosh, santo, que mediava entre o divino e o profano, o mundo do alto e dos homens, místico aquinho-ado com o dom de decifrar os recônditos segredos da vida pessoal e do povo de Israel. Sendo assim ele insuflava o esperado alento às massas que o seguiam, alento esse que se manifestava na crença otimista de que os desígnios da divindade eram bons e justos, e, portanto, era dever do ser humano mostrar-se grato e louvar com alegria e exaltação o Criador da vida e do universo.

An-sky, ao esboçar o programa da expedição etnográfica tinha um fundamentado conhecimento prévio da presença e do papel que o hassidísmo exercera sobre a formação da cultura popular no judaísmo da Europa Oriental. A cren-ça no dibuk, na alma inquieta e errante, certamente não lhe era desconhecida e o contato com a gente simples de seu povo a confirmaria. De fato, exemplos marcantes da existência do dibuk no imaginário popular do judaísmo da-quela região são lembrados por estudiosos da questão, a começar do que acontecera à Eidel, a filha do fundador da hassidut de Belz, na Galitzia, Rabi Shalom Rokeach (1779-1855). Devido ao notável talento e o extremado amor pa-ternal que sentia por ela, ao ponto de desejar que fosse sua sucessora, nada poderia impedir que o rebe, ao falecer, fos-se substituído por seu filho Joshua que passaria a ocupar

1 Vide Falbel, N. e J.Guinsburg, (orgs.) Aspectos do Hassidismo, ed.B’Nai B’rith,SP,1971,p.11.

o trono da liderança em sua comunidade. Pouco depois, Eidel passaria a expressar abertamente opiniões críticas ao modo de vida e conduta de seu irmão, o que levaria a criar um clima de tensão e antagonismo entre os hassidim do lu-gar. As pessoas que a conheceram comentavam que estava tomada por um dibuk, a alma contrafeita e atormentada do pai que em dado momento encarnaria na filha. Por fim somente a dolorosa e terrível cerimônia de exorcismo, re-alizada pelo tzadik, seu irmão, iria libertá-la da “grave voz masculina” que tomara conta de sua alma. Não foi este um caso isolado uma vez que, ainda no século 19, outra mulher, Hanna Rochel Verbermacher, mais conhecida como a “Donzela de Ludmir”, cidade em que nascera, angariara fama e discípulos por sua sabedoria e carisma de tzadika. Após ter tido uma aparição sobre o túmulo de sua progeni-tora se lhe introduzira do alto a alma de um tzadik para que se entregasse a uma vida ascética e espiritual obrigando-a a renunciar ao casamento e à família. Ela costumava rezar a testa de seus adeptos, recebia pedidos de amuletos e aju-da, conselhos e curas que a todos maravilhava. Também sua voz se manifestava como se fora masculina confirman-do a encarnação da nova alma que nela se manifestara.2 Porém, nesses casos o dibuk, mesmo que suas portadoras acabem tendo um final infeliz, era para elas um ente dese-jável que explicaria a afirmação e a realização pessoal de mulheres que no contexto da fechada sociedade masculina hassídica ortodoxa não poderiam ocupar qualquer espaço superior de liderança, apesar dos notórios dons pessoais que motivavam profunda admiração naqueles que se en-contravam próximos a elas. Nesse sentido, podemos inferir que no interior da sociedade hassídica era preciso o dibuk de um tzadik para a autojustificação e o ingresso de uma mulher, em pé de igualdade, e status perante os demais. Porém, mesmo nessas condições essa ameaçadora e inacei-tável transmutação seria temporária devido a sua condição feminina, visto que no final a mulher deveria voltar a ser o que era e desempenhar o papel que lhe fora destinado na ordem da Criação.

No “O Dibuk”, An-sky, conforme seu próprio relato pes-soal teve como inspiração a visita que fizera a uma família judia na qual observara os entreolhares de dois jovens, uma moça e um rapaz, que também se encontravam presen-tes na sala dos convivas. A sensibilidade e a imaginação do autor o levaram a concepção da peça em 1914. No entanto, o tema certamente amadurecera durante as ex-pedições etnográficas que realizara, e o seu contato com o mundo das crenças e estórias do hassidísmo dominante

2 Sobre isso vide o artigo de Yoram Bilu, “Kol hagever haave, magiach keseara mipi haisha” (Voz grave masculina que sai como tempestade da boca de mulher) in Haaretz, 22 de setembro de 2010; também Na-thaniel Deutsch, The Maiden of Ludmir: a Jewish Holy Woman and her World, University of California Press, 2003.

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nos shtetels e aldeias das regiões que percorrera com sua equipe. Duas passagens no texto do “Der Dibuk” nos cha-mam atenção e comprovam sobremaneira que seu autor se inspirara em convicções existentes no mundo religioso espiritual judaico que conhecera em suas expedições. A pri-meira passagem encontra-se no primeiro ato da peça no qual Lea, Frade, sua ama e Guitel, a amiga, visitam a sina-goga para ver uma antiga “parochet” , a cortina que cobre a arca sagrada (aron hakodesh) em que se guardam os rolos da Torá (Sifrei Torá). Após Lea expressar “que nunca esteve à noite em uma sinagoga...exceto na festividade de Simchat Torá (que comemora o término e o início do ciclo de leitura da Torá na sinagoga), porém em Simchat Torá é claro e alegre, e agora...como é tão triste aqui, como é triste!” Frade dirá: “Filinhas, em uma sinagoga é inevitá-vel que haja tristeza. Pela meia-noite os mortos vem para cá rezar e deixam aqui sua tristeza...”3 Lea lembrará mais adiante em sua fala o que sua ama dissera: “...você contou que a meia-noite vem os mortos a sinagoga para rezar”.4 A mesma crença a encontramos expressa no Sefer Hassidim uma das obras mais representativas da corrente espiritual-religiosa do pietismo (Hassidut) do judaísmo alemão me-dieval. Entre outras, uma passagem nessa obra relata que “um homem adormeceu à noite na sinagoga , e o zelador o trancou sem saber que ele se encontrava lá. Ao acordar durante a madrugada , viu as almas envoltas em seus man-tos de oração e, entre elas, duas pessoas que ainda viviam . Os que ainda viviam vieram a morrer após alguns dias.”5 Penso que a crença medieval se perpetuou no judaísmo da Europa Oriental e An-Sky certamente a conheceu e a ou-viu expressa de viva voz durante sua expedição etnográfica naquela região. Por outro lado An-Sky em sua peça insere um “ santo túmulo ” a que Lea “lembra desde a infância; sei quem são o noivo e a noiva que ali estão enterrados.Eu os vi muitas vezes em sonho e como reais , e eles me são próximos como meus fossem...jovens e belos eles foram para o docel , e a eles se previa uma longa vida, uma feliz vida.De repente se voltaram contra eles homens malvados com machados em suas mãos e os noivos caíram mortos ao chão.Ambos foram enterrados em um único túmulo , para que permanecessem eternamente unidos.E em cada casamento quando dança-se ao redor de seu túmulo eles saem e tomam parte na alegria dos noivos...” Lea estendeu as mãos e em voz alta disse: “Santos noivo e noiva! Eu os

3 Traduzi da edição Gezamelte Schriftn(Obras reunidas) ,Dramen (Dra-mas), Vilno-Warsaw,New York : Ferlag “An-Sky”,T.II, 1926, 4ª.edição, p.28.

4 Idem ,ib., p.49.

5 Sefer Hassidim, Wistinetzki,I., e Freimann ,J. (eds.), Frankfurt a.M., M.Wahrman Verlag, 1924 (baseada na ed. De 1891). (Reed. ,cópia anastáti-ca) Jerusalém, Wahrman Books, 1969, p.86, sinal 271. A respeito vide Falbel, Nachman, Kidush HaShem:Crônicas Hebraicas sobre as Cruza-das, SãoPaulo: EDUSP-Imprensa Oficial, 2001, p.250.

convido ao meu casamento!Venham e fiquem ao meu lado sob o docel!”6 Também Menasche , o noivo de Lea, parará frente o “santo túmulo” e tremulo perguntará ao rabino que o acompanha: “Rebi! Que é isto? Um túmulo no meio da rua!!”.7 Nos últimos anos os documentos, fotografias e as peças das expedições etnográficas de An-Sky que se encontravam em diversos museus da Rússia passaram a ser resgatados e estudados com interesse por acadêmicos vários países. Uma publicação recente sobre o uma parte do acervo fotográfico registrado pelo talentoso jovem fotó-grafo Solomon Iudovin, que acompanhou a An-Sky em seu projeto científico, encontra-se uma fotografia que nos cha-mou em especial atenção. Trata-se de uma lápide em cujo epitáfio Le-se:” Aqui jaz um marido e esposa que foram roubados, queimados e espancados por pagãos. O santo e puro R.Yisroel filho de R.Avraam e a filha de R.Yosef , no pri-meiro dia 9 do segundo Adar ,[Adar sheni] [5]464 [1704]. Que repousem suas almas ligadas à vida eterna”. A lápide estreita e alta, de madeira, exposta aos passantes na rua, com uma decoração simples no topo, encontra-se solta e encostada a uma entrada do que aparenta ser uma humil-de habitação de madeira no shtetl de Korynitsa.8 Tudo leva a crer que An-Sky, também nesse particular da redação do Der Dibuk, transpôs a visão de um lápide real de um “santo túmulo” à sua extraordinária obra teatral.

Quando “O Dibuk” foi encenado em 9 de novembro de 1920 no Teatro Elyseum de Varsóvia, sob a direção de David Hermann ninguém poderia prever o impacto que causaria na dramaturgia judaica. A peça logo seria tradu-zida ao hebraico pelo poeta erudito Haim Nachman Bialik, sendo encenada pelo grupo teatral Habima em Moscou. Não demoraria muito para ser traduzida a outras línguas e percorrer o mundo como parte importante do repertório teatral das companhias e trupes judaicas para ser levada ao amplo público em todos os continentes. Também no Brasil, nas décadas em que a língua ídiche era corrente entre os imigrantes asquenazes e o teatro um veículo de expressão cultural nas instituições existentes “O Dibuk” foi encenado por várias vezes tanto por grupos dramáticos de amadores quanto por trupes profissionais vindas do exterior e locais. Apesar de ter sido escrita há cerca de um século o conteú-do da peça, seus elementos e ingredientes dramáticos nos tocam e comovem com a intensidade que caracteriza a pe-renidade de um clássico. Por que? Certamente um “dibuk” poderá dar uma resposta a nossa indagação...

6 Idem,ib. p.50.

7 Idem,ib.p.58.

8 Avrutin,Eugene M., Dymshits, Valerii Ivanov ,Lvov Alexander,Murav Harriet, Skolova Alla, Photographing the Jewish Nation, Pictures from S.An-Sky’s Ethno-graphic Expeditions, Waltham ,Massachusetts-Hanover and London: Brandeis University Press of New England, 2009, p.179.

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Poucos podiam imaginar, no Rio de Janeiro da década de 50, que aquele professor de música e regente de corais, recém-chegado ao Brasil, ti-vesse potencial para se tornar um dos grandes

nomes da Musicologia Judaica da segunda metade do século 20. Mas estes poucos, certamente, eram os que se privaram da sua convivência ou sequer observaram seu trabalho.

Fater nasceu e se formou na Polônia, filho de um cha-zan aberto à música universal, e que incentivava a fa-mília a cantar. Com vinte anos, já regia e colaborava na imprensa judaica de Varsóvia. O jovem sobreviveu ao Holocausto após longa permanência na então União So-viética, passando pela deportação a um gulag siberiano e uma estada no remoto Tadjiquistão. Finalmente, ganha sua liberdade e a volta a uma Varsóvia arrasada, embora conseguindo manter-se como competente músico e jor-nalista, que sempre fora.

A seguir, França, Bélgica e Brasil, onde, em pouco tem-po, conseguiu conquistar seu lugar no Colégio Eliezer Steinbarg, no Coral Israelita Brasileiro, no coral litúrgico da ARI, e no coral Hazamir. Por ocasião do 10º aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, publicou um pequeno livro, “Para lembrar - Canções dos Guetos” 1. Escreveu também, na sua especialidade, matérias para os jornais “Imprensa Israelita” e “O Novo Momento” (este de São Paulo). E depois, início dos anos 60, com sua pequena família (mulher e filho), fez aliá. Durante algum tempo, pouco se ouviu falar dele aqui no Brasil.

Eis que surge uma obra basilar: “A Música Judaica da Polônia no Período Entre guerras”2. Ele tomara a si uma tarefa tão importante quanto triste, que se tornaria mais um testemunho da enormidade da nossa perda. Para a sua concretização, ainda em 1954, havia solicitado, via JTA (Jewish Telegraphic Agency), a quem tivesse algum material - textos, recortes, fotografias - que lhe enviasse. No começo, poucas, depois dezenas, centenas de fichas

1 “Guedenk- Lider fun di Guetos”- Rio de Janeiro, 1953 [Música, 6378] (Biblioteca em iiídiche do AHJB, prateleira de música, 6378).

2 “Idishe Muzik in Polin Tsvishn Beide Velt Milchomes”- Tel Aviv, 1970 (Biblioteca em iiídiche do AHJB, nº 1153 na prateleira “Brasiliana”, ou 2599 na prateleira dedicada à “Música”).

Issaschar Fater (1912-2004), em seu centenário de nascimento

ABRAHÃO GITELMAN *

foram sendo organizadas. Biografias de compositores, intérpretes, cantores, professores de música, bem como partituras e programas. Poliglota, Fater usou uma biblio-grafia vastíssima. O encorpado volume de 500 páginas preencheu um vazio e se tornou indispensável para pes-quisadores, ou simplesmente para quem se interessa pelo tema. Já existem traduções para o hebraico e para o polonês.

Aqueles que julgavam o universo do judaísmo musi-cal polonês restrito a alguns nomes como Artur Rubins-tein, Felícia Blumental (pianista que residiu muitos anos entre nós) e Bronislaw Huberman (o famoso violinista, fundador da Filarmônica de Israel), tiveram uma gran-de surpresa. Um exemplo entre muitos: os leitores estão

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lembrados de Wladislaw Szpilman, o biografado em “O Pianista” de Roman Polanski? Pois, no livro, há informa-ções sobre sua vida, bem como da de Gregor Fitelberg, compositor, regente e fundador da Orquestra da Rádio da Polônia, da qual Szpilman era contratado.

E Fater não trata só de música erudita. A música popu-lar e a litúrgica não podiam ser esquecidas. Assim, om-breiam-se lado a lado, pesquisadores do folclore, como Menachem Kipnis e sua esposa Zmirah Zeligfeld, poetas populares como Mordechai Gebirtig e chazanim (canto-res litúrgicos) como Guershon Sirota.

Além disso, foi lançada luz sobre a intensa vida cultural nos guetos, para preservar o moral no meio de terríveis provações, entre 1939 e 41, antes do extermínio. Parti-cularmente pungente é o relato sobre o maestro Szymon Pullman, que, radicado em Viena, voltou a Varsóvia pou-cos dias antes do início da guerra, para visitar a família. Impedido de sair, organizou uma orquestra dentro dos muros do gueto. Como tantos de seu povo, Pullman foi levado em 1942 para o campo de morte de Treblinka.

Nos mais de quarenta anos que, felizmente, ainda lhe foi dado viver em Israel, Fater colaborava com a impren-sa, notadamente com a revista literária “Di Goldene Keit” (A Corrente de Ouro- símbolo da continuidade do povo judeu, editada pela Histadrut, ou a Federação da união dos trabalhadores em Israel). Esteve sempre ligado aos círculos dos cultores do iiídiche em Tel Aviv e no exterior.

Além dos padrões de excelência que imprimiu aos co-rais do Rio de Janeiro em que esteve à testa, a sua perma-nência no Brasil (1951 a 1962), é relembrada em vários de seus ensaios, conforme se pode comprovar nas obras: “A música judaica e seus problemas”3 e “O sagrado

3 “Idishe Muzik un ire Problemen”, Tel Aviv, 1985.

e o profano na música judaica” 4 e “No mundo da música e dos músicos” 5, todas profusamente ilustradas.

Neste último livro, grande parte é dedicada ao estudo de Richard Wagner, compositor genial, mas um antisse-mita visceral. Este tema, que nunca deixa de ser atual, encontrou motivação específica na celeuma provocada pelo regente Daniel Barenboim, ao pretender executar peças daquele autor em Israel, onde há forte ressenti-mento contra Wagner. Fater demonstra que a rejeição ocorre, não somente pela obra literária (constituída de teses pseudo filosóficas e históricas, em que o composi-tor alemão se revela nada menos que um precursor do genocídio), mas também por várias de suas óperas (além da música, escreveu os libretos), em que há indisfarçá-veis alusões racistas; acima de tudo, pela influência de Wagner sobre grupos radicais que levaram ao nazismo. Argumenta-se que prescindir da audição de obras primas como “Tristão e Isolda” é um ônus por demais pesado. Entretanto, pode-se censurar um povo dilacerado por um crime sem precedentes no mundo dito civilizado, por estar disposto a pagar tal preço?

Qualquer que seja o tema, a pena de Issaschar Fater flui com facilidade. Mesmo quando adentra áridas pa-ragens técnicas, é acessível até aos menos iniciados na Música, mercê da sua ampla cultura humanística e longa experiência pedagógica. Uma herança notável.

4 “Kodesh Vechol in der Idisher Muzik”, Tel Aviv, 1988 [Música, 4403].

5 X NÃO há qualquer nota...

Podem ser enviados à Redação por e-mail ou CD, em arquivos de extensão “doc”ou “txt”.As referências bibliográficas obedecem às disposições normativas da ABNT-NBR 6023.

Fotos e ilustrações devem ser escaneadas em 300 dpi, tendo origem e identificação de local e data

Apreciamos sugestões e aceitamos também críticas construtivas. O envio é para [email protected]

O endereço do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro éRua Estela Sezefreda, 76 - CEP 05415-070, São Paulo - SP

Colaborações e artigosinéditos são muito bem vindos

(*) ABRAHÃO GITELMAN, Diretor de Cultura Ídiche do AHJB.

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Quando o Senhor Rachmil Moische acordou assustado pela aflição de um sonho, numa madrugada fria de inverno, procurou logo entender

que havia uma mensagem com seus antepas-sados. Confuso, ele entendia que havia uma história dentro deste sonho, meio esquecida na sua vida, mas por que teria surgido agora? Per-cebeu que se tratava de uma viagem no tempo, com cenas de seus ascendentes maternos imi-grando para o Brasil em 1913, cenário náutico com muitos sofrimentos e tristezas.

Indagou a si mesmo sobre o que teria feito com este assunto durante os seus anos de exis-tência? Quase nada, apenas registros ocasio-nais. O sonho lhe incomodou de tal maneira, que sentiu a longa viagem da travessia percor-rida pelos antepassados numa impressão da saga pela sobrevivência. Entre tantas alusões ao sonho, concluiu que o mesmo lhe trouxera um valor histórico que necessitava responder a si mesmo.

O Sr. Rachmil Moische fora registrado, no idioma iídi-che, com os nomes do avô paterno e materno, e sabia que o avô materno Moische Chotkis estava sepultado no Brasil. Sua mãe Zisel sempre lhe pedia para que, quando se apresentasse, também mencionasse o nome Moische, seu pai. Era conhecedor de parte da história e do pio-neirismo dos seus avós maternos vindos para a colônia de Quatro Irmãos em 1913, trazidos pelo empreende-dor Barão Hirsch, que retirou da Rússia centenas de fa-mílias judias, afastando-os dos pogroms (termo russo, que significa ataque violento maciço a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente, casas, negócios, centros religiosos) e promovendo sua sobrevivência em terras do Rio Grande do Sul. Partiam da distante Bessará-bia em navio cargueiro para chegar ao sul do Brasil. De-pois, percorriam de trem ou de carroça terras inóspitas e sem referências de idioma ou cultura local, para produzir o sustento e sobreviver a uma vida de colonização isola-da e sem informações.

Continuou meditando sobre o sonho, procurando de-cifrar símbolos e, diante de tantas observações, enten-deu ser um absurdo deixar de ver a sua própria vida pre-

Desvendando mito ea saga dos imigrantes

RUBENS GUELMAN

sente com mais felicidade por ser filho de sobreviventes do passado. Assim, pensou que nada mais lhe restou ao desejar transformar o sonho em realidade. Seria talvez uma mensagem vinda do além apesar de não ser reli-gioso, mas sabia que os avós maternos eram religiosos, pois o avô Moische fora o zelador da sinagoga de Quatro Irmãos. Então, sentiu um toque a mais para a convicção do desafio, centralizou as suas energias para idealizar a possibilidade do resgate deste legado.

Fotógrafo há muitos anos e estudioso de assuntos sociais, vivendo em vários lugares com culturais distintas, viu-se de-fronte da matéria sem se poder ausentar ou gerar alguma dificuldade para que lhe impedisse fazer o sonho virar reali-dade; assume o sonho como desejo a ser cumprido.

O dilema se instaura no cotidiano de Rachmil Moische, nascido na cidade de Passo Fundo. Ele a tinha como mito, pois imigrou criança, sem lembranças, e nunca mais re-tornou à sua cidade. Angustiado, começa a percorrer os caminhos por onde que lhe permitiriam alcançar obter informações, recorre aos arquivos históricos judaicos lo-calizando vestígios da travessia dos avós pelo porto de Bremen, encontrando fotos de familiares na comunidade de Quatro Irmãos, inclusive de seus pais Srul e Zisel, re-pletos de valores judaicos da Europa Oriental com bas-tante religiosidade, lendo inclusive depoimentos de tios

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e membros desta comunidade. Mesmo assim, a pergun-ta persistia - onde estariam os avós maternos? Já que os pais se foram e nunca abordaram tais pormenores, estes ficaram como se fossem páginas viradas de uma história dura e longínqua.

Seu pai Srul Guelman chegou em 1926 para Quatro Irmãos, na leva do movimento de solteiros do leste eu-ropeu. Sua mãe foi a única de seus irmãos nascida na colônia, em 1915.

Curioso e assíduo na matéria, após alguns meses de busca, acaba por localizar, com a ajuda da Associação Cemitério Israelita de São Paulo Chevra Kadisha, os tú-mulos dos avós. O começo do término de um mito, pen-sou Rachmil Moische, que começou a desvendar o mis-tério para dar continuidade à história.

Sentindo o seu ímpeto de aventureiro e apaixonado por mistérios, decifra os símbolos anotados do sonho e começa a acreditar que algo de misterioso teria promo-vido tudo isto, pois outras coincidências na sua vida já haviam ocorrido em outros lugares por onde viveu. Atri-buía suas descobertas sempre ao acaso, porém algo lhe dizia que agora era diferente; temia admitir que fosse algo sobrenatural.

Com a sua intuição de fotógrafo de rua para captar os instantes da vida cotidiana, ficou também surpreso com a coincidência do centenário da colônia de Quatro Irmãos ocorrer justo em 2012. Tinha lido nos arquivos centenas de registros de famílias pioneiras neste período, e associa ao sonho uma cena de peça de teatro quando o jovem Rachmil Moische interpretara o papel de jovem gaúcho para uma plateia da comunidade judaica, visuali-zando o caminhar de dezenas de colonos vestidos a cará-ter indo ao seu encontro. De fato, representou esta peça, mas sem os colonos imaginados; logo interpreta o sonho como sendo o pedido dos mesmos - venha ver-nos.

Passando a ficar convicto da missão e repleto de de-

sejos, resolve partir ao encontro de algo que somente o encontro diria. Abraça as suas máquinas fotográficas e sua esposa Feigel e partem de carro rumo à terra natal de Passo Fundo, onde estariam os túmulos dos avós - terra nunca vista e um mito para ser desvendado e seguir de-pois rumo à cidade de Quatro Irmãos.

Ambos conscientes dos inesperados encontros durante o percurso da jornada, sabendo muito pouco mas promo-vendo o desejo pelo conhecimento por vir, ele decide inver-ter o seu estado. Opta por passar a viver dentro do mundo da fantasia, construindo um bem estar que lhe ocupa com-pletamente, fotografando intensamente as planícies do Rio Grande do Sul, como se estivesse na própria época da imi-gração, permanente cenário de céu exuberante azul cheio de nuvens brancas e cinzas, com linhas de luz que o atraíam na formação da estética para que o esteta exercesse o que mais amava na vida - horas intermináveis de observações e encantos, acabando por se apaixonar por tudo o que lhe circundava, num trajeto belíssimo pelo campo, quase sem-pre relatando as leituras da vida dos antepassados para sua mulher que, com a atenção de sempre, lhe indagava, psi-canalista, motivadora e inquieta em querer decifrar as suas imaginações. Relatava que os avós chegaram com quatro filhos em Quatro Irmãos. Há relatos do grau de bondade que a avó exercia e das dificuldades que enfrentavam na região, lidos num dos poucos livros de memórias da região, pela Senhora Martha Faerman, prima de seus pais, servindo inclusive de guia de observações da região. A cada instante, percorriam sobre si as paisagens panorâmicas do trajeto e ele as captava. A estrada deserta nos dois sentidos levava a crer que o caminho havia sido preparado para a visita; como poderia ser assim? Cenário de paraíso astral, suave e sem adversidades.

A cada aproximação de Passo Fundo, o sentimento de mito pela terra é desvendado e passa a se integrar pelo encanto do ambiente. Chegaram diretamente ao único e pequeno cemitério judaico, pois estavam pressionados pelo horário de final de tarde da sexta feira, recebidos com cautela e desconfiança pelo casal de caseiros do ce-mitério, que abriram o portão dizendo-lhes logo: “Vocês trouxeram as chuvas que não caíam faz muito tempo, neste frio gelado.” Ingressaram no misterioso espaço vazio; com ares de espanto e emoção, encontraram os túmulos, com os olhares fixos para a sua própria heran-ça. O Sr. Rachmil Moische já não entendia as causas do sonho e, agora, entendia ainda menos como se expressar ao ver a realidade na sua frente. O seu estado mudou, o mito da terra se foi e apareceu outro significado na vida dele - o início de um legado. Procura manter diálogo com os túmulos, mas há silêncio e não há resposta da história da saga que também gostaria de ouvir deles. Registrou tudo com Feigel, conversaram muito e por fim decidiram

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seguir a aventura para encontrar Quatro Irmãos. Durante toda noite, sentiram emoções de suposições

de delírios vindas de almas que lhes agradeciam a visita e começaram a escrever citações e comentários. A avó Frida Lea Chotkis, pela data de falecimento, foi uma das primeiras, pois o cemitério é de 1924. Pelo que consta, o avô de Rachmil faleceu em 1943 em Passo Fundo, onde viveu como comerciante de peles. Deixou as colônias, como muitos fizeram, visto que a lavoura foi um meio de vida temporária, mas também pelos anseios dos jovens na busca de oportunidades nas cidades.

Antes de seguirem para Passo Fundo, recorreram ao Instituto Marc Chagal em Porto Alegre no início da via-gem, pesquisaram os relatos originais com anotações de antigos colonos, entendendo a cronologia da imigração judaica desde 1904, ocorrida logo após o pogrom de Kishinev de 1903. Também se informou sobre os porme-nores da recente reconstrução da maternidade de Qua-tro Irmãos, que se transformará num Museu, como parte do centenário da colônia neste ano. Este dado é, no mí-nimo, interessante, pois nesta maternidade nasceu sua mãe, a única filha brasileira.

Seguindo destino a Quatro Irmãos, por bosques am-plos e belíssimos, campos de lavoura de soja e paisagens panorâmicas, como se fosse um presente da natureza para o fotógrafo, admitia ser a atração da força mag-nética da própria natureza que os conduzia ao encontro de Quatro Irmãos. Após uma hora e meia em estrada deserta com paradas fotográficas na presença das aves e do silêncio campestre, entram na diminuta e misteriosa cidade, com os olhares novamente fixos em tudo ao seu redor. Sentindo o incômodo impacto do peso do tempo, preferiram ir logo estacionar ao lado do Museu, a antiga maternidade, percorrendo os arredores. Sr. Rachmil perce-be a coincidência que o abala fortemente: a coincidência das datas do falecimento de sua mãe com a data desta visita agora ao local de nascimento dela; e acrescenta a Feigel que era o final de uma tarde linda de Sábado. Pas-saram a ser possuídos pelo espanto e pela fantasia de ter encontrado, ao lado do museu, o pequeno e belo bosque

imaginado - o local onde possivelmente seus pais namo-ravam em Quatro Irmãos.

Com os olhares permanentes para captar a melanco-lia da região e a sensação da nostalgia, andaram pelos cantos do vilarejo, inclusive dentro do cemitério judaico, com registros impressionantes da integração com o am-biente. Retomam o caminho da volta, com o suporte de Feigel, que passara a entender o enigma.

Sr. Rachmil mantinha a mesma visão histórica da ida, conduzindo seu carro em velocidade no mesmo supos-to percurso da vinda dos imigrantes, porém em silêncio. Imaginava passar ao lado deles em sentido contrário, em carroças carregadas com maletas, atravessando pânta-nos e buracos com seus pertences e ouvindo murmúrios de dores e lamentos pela perda das origens, sem idioma local e sem alimentos adequados. Conduzidos por tercei-ros, com quem se entendiam por meio do idioma ídiche, sofrer era o sentimento, embora talvez se confortassem por suas próprias anedotas judaicas e sem arrependi-mento, na esperança de que melhores dias os aguarda-vam, mas onde? Também sentia o ano centenário, ao comparar as épocas, pela velocidade de seu carro, com a longa fila das carroças em cortejo em sentido contrário, sempre a se inquirir como poderia ele se lamentar da vida dentro de tal contexto.

Sr. Rachmil amadureceu por completo; num dado ins-tante rejuvenesceu e envelheceu, não cessava de imagi-nar a força dos imigrantes. Dizem, inclusive, que um dos filhos dos avós, seu tio, havia caído do navio quando do trajeto para o Brasil; quanta dor a mais para lutar pela sobrevivência e contra o antissemitismo, que os expulsou de mais uma de suas origens.

Retornando aos seus aposentos em sua casa, num dado momento de reflexão no seu laboratório fotográfico, pro-cura uma resposta ao se perguntar como a força de um sonho poderia ter promovido tudo isto? E passou a enten-der que a página da história que imaginava ter sido virada pelos seus pais por razões desconhecidas, foi reativada também por outras razões, quem sabe? Sobrenaturais.

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Na primeira matéria sobre esse tema fizemos referência à continuação do trabalho, soli-citando aos leitores que enviassem nomes e dados relativos aos médicos pioneiros da

coletividade de São Paulo. Imediatamente nosso pedido foi atendido, com o telefonema simpático de D. Rebeca Sznajdleder, leitora do Boletim do Arquivo Judaico, suge-rindo o nome do irmão, Dr. Benjamin Schmidt, pediatra inovador, que introduziu o teste do pezinho no Brasil. A partir desse contato, entrevistamos D. Sima Schmidt, que relembrou fatos importantes da carreira do marido, sempre premiado pelo conjunto da obra e pela vida pro-fissional brilhante.

bENJAmIN SCHmIDT: O TESTE DO PEZINHO A contribuição do Dr. Benjamin José Schmidt (1931-

2009) é tão significativa, que seu nome ficou ligado para sempre ao “teste do pezinho”, implantado no Brasil em 1976, muito divulgado pela APAE, instituição que o Dr. Schmidt ajudou a fundar.

Por meio desse exame é suficiente a coleta de algu-mas gotas de sangue do calcanhar do recém-nascido para diagnosticar várias doenças que, tratadas preven-tivamente, podem ser evitadas, como o retardo mental irreversível.

Atualmente, a avaliação neonatal é obrigatória por lei e investiga quatro enfermidades: hipotiroidismo (causado pela diminuição do hormônio tiroidiano), fenilcetonúria (determinada pelo acúmulo do aminoácido fenilalanina), fibrose cística (doença pulmonar) e anemia falciforme.

O Dr. Schmidt formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e fundou o Laboratório Lavoisier em 1952, onde trabalhou até 2000, ao lado dos sócios, os médicos Aron Diament e Oswaldo Cruz, este último falecido prematuramente. As esposas, Sima, Regina e Deise também participavam do trabalho no La-boratório em diversos setores, colaborando inclusive no atendimento acolhedor aos pacientes.

O Laboratório Lavoisier foi o primeiro, no Brasil, a re-alizar os exames de Tay Saks. Pensava-se que essa enfer-

MÉDICOS JUDEUS EM SÃO PAULOPIONEIRISMO E TALENTO

LÉA VINOCUR FREITAG *

midade ocorria devido a casamentos dentro do mesmo grupo, entre judeus ashkenazim, mas foi detectada tam-bém em outras etnias.

A carreira do Dr. Schmidt inclui a organização da Pe-diatria do Hospital São Paulo e da Faculdade de Medici-na da PUC de Sorocaba, onde foi diretor, a vida acadêmi-ca na Escola Paulista de Medicina, a publicação de mais de 400 trabalhos, além da pesquisa de duas doenças metabólicas que levam o seu nome. Dedicou-se ainda a estudos sobre doenças raras, como a analgesia congêni-ta, que atinge pessoas sem a capacidade de sentir dor.

A repercussão internacional do seu trabalho estende-se a várias intituições, com convites de Fidel Castro e

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Margareth Tatcher, além de prêmio no Japão. Recebeu o reconhecimento nos mais diversos locais: Foi presidente da Sociedade Mundial de Pediatria; representou os pa-íses em desenvolvimento no que se refere às crianças (vacinação, teste do pezinho); recebeu o título de dom em Valladolid (Espanha); Benfeitor da Criança no Mundo; Christopherson Lecture on International Child Health, em honra aos esforços pelas crianças no mundo (1983); Palm Medicine (1995). No Congresso Internacional de Pe-diatria em Marrakesh (Marrocos) foi o único judeu que ficou ao lado de Arafat!

Sima e Benjamin Schmidt tiveram dois filhos médicos, Beny e Charles, ambos com carreiras universitárias bri-lhantes. Beny tem doutorado em Marseille (França) e pós-doutorado em Columbia (Estados Unidos) e é chefe do Laboratório de Patologia Neuro-Muscular da Escola Paulista de Medicina.

Além de numerosos trabalhos científicos, Beny tam-bém se abriu a uma literatura poética e filosófica, que pode ser documentada em seu livro “Patrícia”, dedicado à esposa. Vejamos um trecho expressivo (p. 38) :

A Internet e toda a informação conectada entre os po-vos da Terra estão levando o homem à mais profunda so-lidão. A medicina dominada pela indústria farmacêutica, com protocolos de atendimentos indiscriminados, como se houvesse dois homens iguais na terra, obnubila a ver-dadeira arte de Hipócrates. O mundo espiritual desapare-ce em cada um de nós dando espaço a uma tecnologia es-sencialmente materialista, fazendo com que acreditemos que o homem nasceu para comprar e vender. É preciso resgatar esses sentimentos que existem em todos nós, é preciso resgatar , sobretudo, o amor, a máxima expressão da vida, É tão simples lembrar-se de Deus e do amor. Basta prestar atenção no céu, numa bela tarde de outono.

bERNARDO AKERmAN: mEDICINA E lIDERANçA JuDAICAParalelamente à atividade médica, como neurologis-

ta e psicoterapeuta, Bernardo Akerman (1929-1995) foi sempre um líder comunitário, voltado ao judaismo e ao intercâmbio com Israel, presidindo várias sociedades. Agregava pessoas de diferentes tendências políticas e fi-losóficas, visando um trabalho de integração.

Formado pela Escola Paulista de Medicina em 1955, pertenceu durante o curso ao Centro Acadêmico, sempre exercendo essa vocação de liderança. Foi casado com a médica Lúcia Felmanas Akerman e são seus filhos Renato (Ray), Lys e Roberto (falecido).

São numerosas e significativas as instituições médi-cas a que pertenceu ou presidiu: foi assistente da Clínica Neurológica do Serviço do Prof. Paulino Longo, na Es-cola Paulista de Medicina (1956-1970); médico psiquia-tra da Seção de Higiene Mental Escolar da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (1958) e diretor (1962 e 1963); médico neurologista da A.A.C.D. (1958-1961); teve formação psiquiátrica e psicoterápica com o Prof. Dr. Ciro Ferreira de Camargo (1958-1972); professor do curso de Pedagogia da Faculdade “Sedes Sapientiae” (1963-1967); professor de Psiquiatria Social na Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1964-1968); forma-ção psicodramática (Portugal, Argentina e Brasil); Presi-dente da Sociedade Brasileira de Saúde e Higiene Mental Escolar e Universitária, a partir de 1970; título de Cida-dão Paulistano (1982).

A participação em entidades judaicas predominou na carreira de Bernardo Akerman. Foi membro da delega-ção da “B’nai B’rith International” , enviado pelo Primei-ro Ministro de Israel Menachem Begin para encontros no Cairo e Alexandria com o Presidente Anwuar Sadat e o vice Mubarak, do Egito (1979). Foi Delegado Oficial do

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Brasil no XXX11 Congresso Geral Sionista em Jerusalém (1995) e também na Asssembeia da Agência Judaica para Israel (1995). Esteve presente em diversos Congres-sos Internacionais da B’nai B’rith.

Bernardo Akerman teve presença marcante em entida-des como o Movimento Juvenil Hanoar Hatzioni (1949), Grupo Universitário Hebraico do Brasil (desde 1952) e Associação B’nai Sion de Estudos Bíblicos (1970). Foi presidente em diversas gestões da Sociedade Amigos da Universidade Hebraica de Jerusalém em São Paulo, entre 1960 e 1986. Teve também participação intensa na Fe-deração Isaelita do Estado de São Paulo, em cargos de liderança, e no Hospital Albert Einstein. Foi conselheiro da Hebraica, da Casa de Cultura de Israel e da UNIBES, além de colaborar com a Congregação Israelita Paulista. A Medalha David Ben Gurion foi um reconhecimento aos serviços em prol do povo judeu. Recebeu numerosas homenagens póstumas, como da Israel Medical Asso-ciation, entre muitas outras.

Sintetizando a atuação de Bernardo Akerman nas vá-rias esferas da vida social, podemos situá-lo como chefe de família dedicado, médico sensível e grande idealista da causa judaica.

bERNARDO bEDRIKOW:SAbEDORIA E mODÉSTIAAgradecendo a uma publicação em homenagem ao

irmão Bernardo Bedrikow (1923-2008), Elisa Kantor en-fatiza a meta que ele perseguia – o auxílio ao ser huma-no no Trabalho. Refere-se ao homem pequeno, tão sá-bio, tão simples na vida profissional, na amizade sincera que mantinha com colegas e amigos, como também na vida familiar. Elisa Kantor agradece em nome de seus filhos: Irene, Paulo, Lúcia e Helena.

A modéstia, a sabedoria, a liderança eram traços res-saltados por todos que escreveram sobre Bernardo Be-drikow, destacando a sua atuação profissional, como os médicos Eduardo Algranti e Nelson Colleoni. Casado com Anna Hortência de Barros Bella Bedrikow, Bernardo Bedricow teve quatro filhos: Rubens é médico em Cam-pinas; Roberto é advogado; Antonio Augusto é arquite-to; Renato é falecido. Roberto escreveu o romance “O Código David”, com temática judaica”.

Formado na USP, Bernardo Bedrikow teve bolsa de es-tudos para a Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (1951-1952) e também frequentou o Serviço de Doenças Profissionais do Hospital Geral de Massa-chussetts. Continuou publicando numerosos trabalhos

e livros, realizou pesquisas e orientou teses.Com essa formação especializada, foi pioneiro em di-

versas áreas. Lecionou na Faculdade de Saúde Pública da USP, foi o primeiro médico do trabalho do SESI (Ser-viço Social da Indústria), professor de Medicina do Tra-balho na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, trabalhou na Organização Mundial da Saúde (OMS) e na Organização Internacional do Trabalho (OIT) , atu-ando em quase todos os países latino-americanos e na sede da Organização, em Genebra (por mais de uma década), além de assessorar a FUNDACENTRO. Foi fun-dador e presidiu a Academia Paulista de Medicina do Trabalho e também sócio fundador da Associação Na-cional de Medicina do Trabalho (1968), com os médicos Diogo Pupo Nogueira, Oswaldo Paulino e Joaquim Au-gusto Junqueira.

Em artigo sobre a área de Fonoaudiologia da PUC Lés-lie Piccolotto Ferreira refere-se à contribuição de Ber-nardo Bedrikow: “ Lembro de tê-lo conhecido em 1997, quando participou do primeiro Seminário de Voz da PUC-SP, que deu início às discussões sobre o Distúrbio de Voz Relacionado ao Trabalho.” Entre as pesquisas publicadas há o estudo de casos de silicose em indús-trias urbanas paulistas, renovando o interesse por essa

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moléstia pulmonar (1952). Da mesma época é o estudo das dermatoses profissionais, em colaboração com o Dr. Bellibone, que despertou a atenção para moléstias cutâ-neas. Uma pesquisa importante refere-se à indústria do café, visitando lavouras e torrefações - consta de uma enciclopédia publicada em 1983.

Bernardo Bedrikow pariticipou de numerosos grupos de trabalho em organismos internacionais. Na Bolívia organizou um programa de proteção à saúde dos tra-balhadores das indústrias manufatureiras e das minera-ções. Em 1977 dirigiu a Organização Internacional do Trabalho para a América Latina e Caribe, com sede em Lima, no Peru. Estendeu a colaboração a quase todos os países latino-americanos e algumas ilhas do Caribe. Houve também missões em Cuba, Honduras, Panamá e Barbados.

Chefiou o Serviço de Segurança e Higiene do Trabalho em Genebra até 1985, quando reassumiu os cargos no SESI e no Hospital do Servidor Público Estadual. Após essa vasta experiência no Exterior, Bernardo Bedrikow retornou para as múltiplas tarefas em seu país, até o fim da vida.

mOISÉS lIbERmAN,um lÍDER Em CAmPINASMoisés Liberman (1921-2007) fez carreira em Campi-

nas, onde faleceu aos 86 anos. Nascido em Luck (Po-lônia), chegou em Campinas em 1931 e, apesar das dificuldades de um imigrante (seu pai era mascate), concluiu o Ginásio do Estado e formou-se em Medicina em 1946, na Universidade de São Paulo.

Em sessenta anos de profissão, foi pioneiro da Car-diologia em Campinas e no interior do Estado de São Paulo. Lecionou nos primeiros cursos de Auxiliar de En-fermagem e também na recém-criada Faculdade de En-fermagem da PUC-Campinas. Nas décadas de 60 a 90 orientou vários médicos, introduzindo-os na Cardiolo-gia. Foi Presidente da Comissão que construiu a Casa do Médico de Campinas, até hoje Sede da Sociedade de Ci-rurgia de Campinas. Foi fundador e diretor do Sindicato dos Médicos de Campinas, da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo e do Departamento de Cardio-logia da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas.Teve como mestres e companheiros os professores: Luiz Décourt, Jairo Ramos, Bernardino Tranchesi, Adib Jatene e Euryclides de Jesus Zerbine.

No fim da década de 1940 publicou trabalhos cientí-ficos sobre doença de Chagas, citados até hoje em refe-

rências bibliográficas. Nos anos 50 organizou os primei-ros cursos de Eletrocardiografia no Interior do Estado de São Paulo.

Na áre de esportes, Moisés Liberman foi por muitos anos Diretor do Guarani Futebol Clube, sendo Tesoureiro da Comissão da Construção do Estádio Brinco de Ouro e Presidente da Comissão da Construção das Piscinas.

Como dirigente da Comunidade Judaica foi Presiden-te da gestão que construiu a sede da Sociedade Israeli-ta de Campinas, Conselheiro da Federação Israelita do Estado de São Paulo e Fundador da Loja Campinas da B’nai B’rith, sendo membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos. Entre as honrarias recebidas destaca-se a de Cidadão Campineiro, em 1997.

O filho médico, Alberto Liberman, tem dado conti-nuidade, em Campinas, às atividades pioneiras do pai.

(*) *Léa Vinocur Freitag é professora titular pela USP (Co-municações e Artes), doutora em Ciências Sociais, autora do livro “Momentos de Música Brasileira” e do CD “Modi-nhas coloniais e imperiais”.

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Nas páginas amareladas do Livro de Inumações do Cemitério São João Batista (CSJB) de Ma-

naus, está registrado que, no dia 04 de abril de 1915, foi sepultada uma mulher nascida na Rússia, cujos pais são desconhecidos. A causa de sua morte foi “asfixia por estrangula-mento”. E, estranhamente, no cam-po reservado para o estado civil, en-contra-se registrado “meretriz” (ver 1ª ilustração). Na lápide da sepul-tura, abaixo de uma grande estrela de David, observam-se claramente letras do alfabeto hebraico. Não há duvidas que se trata de uma sepul-tura de uma mulher judia. Em he-braico, com certa dificuldade, pode-se ler o que aqui apresento de modo transliterado, ishá aluvá, que pode ser traduzido, de diferentes formas, como ocorre usualmente quando se trata deste antigo idioma semítico. Poderia ser traduzido como “a po-bre mulher”, como “a mulher sem honra” ou como “a mulher indig-na”. A seguir, encontra-se grafado um nome feminino, desacompanha-do do nome do pai, como é tradi-cionalmente usado, ou seja, não se observa, após o nome da falecida, a expressão bat (filha de) Fulano. Mais à frente, as letras em hebraico estão bem gastas e é difícil compreender o que está escrito. Mais abaixo, em português, lê-se “aqui jaz” e segue um nome feminino acompanha-do por um sobrenome com muitas consoantes e poucas vogais, bem

Certas mulheres que vieram de longe: as “pobres mulheres” sepultadas noCemitério são João batista de manaus

MAXIMILIANO PONTE *

ao modo de alguns sobrenomes adotados por judeus asquenazitas oriundos do leste da Europa. Como registrado na lápide, ela morreu aos (sic) “42 anos de edade”.

Muito longe do seu local de nasci-mento, esta judia morreu de modo violento. Trágico fim, embora não infrequente para mulheres que exer-cem a comumente estigmatizada “mais antiga das profissões”. Neste caso específico, o estigma era de tal ordem que, para os funcionários do cemitério, ela não era casada, soltei-ra ou viúva; ela era “meretriz”. E, na placa de pedra, seus patrícios não a identificaram como uma eshet chail (esposa virtuosa), mas como ishá aluvá. Ainda mais, ninguém regis-trou, para posteridade, a saudade que sua morte causaria.

Esta judia era uma daquelas mu-lheres que ficaram genericamente conhecidas como “polacas”, em alusão à origem polonesa de par-te delas. Ao longo dos anos, este termo se foi tornando pejorativo. Neste texto, de modo alternativo, e em homenagem à judia cuja lápide descrevemos no início, nós as cha-maremos de “pobres mulheres” (as que não forem identificadas como deste subgrupo serão designadas de “não pobres mulheres”). Elas eram judias oriundas em geral do leste europeu, que foram, no mais das vezes, vítimas do que modernamen-te se chama de tráfico internacional de mulheres para exploração sexual, efetuado por quadrilhas com parti-cipação de judeus (GRUMAN, 2006). No final do século XIX e início do

Montagem do livro de “Inhumações” do cemitério São João Batista de Manaus. Em destaque o estado civil de “meretriz”, a origem russa, e a causa da morte da “HAISHAH ALUVAH” citada no texto.

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século XX, época de uma sociedade francófila, estas europeias brancas muitas vezes se passavam, nas ele-gantes “casas de tolerância” exis-tentes na cidade (ver 2º ilustração), por francesas, “produto” valoriza-do, sobretudo nos tempos áureos de ciclo da borracha na região ama-zônica1 (SANTOS, 2007).

Embora a migração judaica para a Amazônia tenha mais de 200 anos, seu incremento se deu sem dúvida com o advento do ciclo da borra-cha, sendo marcada pela expressiva participação de judeus sefaraditas, do norte da África, em especial do Marrocos. Benchimol (2008) narra que o destino inicial principal dos imigrantes judeus na Amazônia era o interior dos estados do Pará e do Amazonas. Com o início do declínio do ciclo da borracha, muito judeus migraram para as capitais; outros, depois de certo tempo, foram para outras regiões, em busca de melho-res condições de vida. Tanto é assim que, até 1928, não havia em Manaus um Cemitério Israelita, evidenciando a pouca articulação comunitária até aquele momento. Antes deste ano, em Manaus, os judeus eram sepul-tados no CSJB. Deste modo, o fato de nossa ishá aluvá não ter sido se-pultada no Cemitério Israelita nada tem a ver com eventuais restrições de cunho moral ou religioso.

Benchimol (2008) ainda refere que haveria 94 sepulturas judaicas no

1 Um aspecto que merece um aprofundamen-to em pesquisas posteriores é a romantização que se costuma fazer da forma de envolvi-mento na prostituição das mulheres judias na Amazônia. Em geral, relata-se que elas estariam principalmente envolvidas no que se poderia chamar de “prostituição de luxo”, de-senvolvida em prostíbulos faustuosos, tendo como clientes os barões da borracha, cercadas de vinho e joias. Evidências indiretas, observa-das em autores como Orum (2012) e Santos Jr (2005), apontam que haveria possivelmente também o envolvimento de parte delas numa “prostituição popular”, desprovida deste su-posto glamour, marcada pela pobreza, violên-cia, desenvolvidas no “baixo meretrício” ou na chamada “zona estragada”.

CSJB. Em levantamento recente rea-lizado pelo Comitê Israelita do Ama-zonas, puderam-se localizar sepul-turas e documentos relativos a um total de 85 destes judeus. O primei-ro judeu sepultado neste cemitério foi Abraham S. Israel, que faleceu em 1892. Já o último ocorreu em 1968, quarenta anos após a funda-ção do Cemitério Israelita. O motivo pelo qual houve alguns sepultamen-tos fora do Cemitério Israelita após 1928, ao que se costuma comentar, deu-se sobretudo por decisões fami-liares. Entretanto, a grande maioria das sepulturas (78 casos; 91,7%) são de judeus falecidos no período de 1900 a 1927.

Considerando como universo es-tes 78 casos ocorridos entre 1900 e 1927, observou-se um ligeiro predo-mínio de pessoas do sexo masculino (44; 56,4%), o que é razoável de se esperar, tanto pela reconhecida so-

bremortalidade masculina, como pelo fato que nos fenômenos migratórios a população de homens tende a ser maior. Dentre as 34 mulheres, encon-traram-se indícios (país de origem, inscrições nas lápides, estado civil, en-tre outros fatores) de que 14 (41,2%) poderiam ser consideradas “pobres mulheres”, o que não pode ser con-siderado um percentual pequeno. De fato, a maioria, dez, era de russas; apenas três eram polonesas e uma era suíça. Enquanto dez “não-pobres mu-lheres” (76,9%) eram casadas, nove das trezes “pobres mulheres” para as quais se tinha informação sobre o estado civil (69,3%) eram solteiras. Tais números evidenciam diferenças importantes nas redes de relacio-namento e nos laços familiares que estas mulheres mantinham em seus cotidianos, em um local tão longe de seus locais de origem.

Nas lápides das sepulturas das

Hotel Cassina/Cabaré Chinelo. Foto tirada possivelmente no começo do século XX. No prédio retratado, localizado no centro de Manaus, funcionou ao longo dos anos um hotel e diferentes “casas de tolerância”. Para muitos, este prédio é um ícone do boom e débâcle (queda) da chama-da Belle Époque manaura, associada ao ciclo de exploração da borracha. A mudança dos nomes das “casas de tolerância” que ali funcionaram reflete bem este processo. Nos tempos áureos, ali funcionava o Hotel Cassina (Cassina era o sobrenome do proprietário de origem italiana). Poste-riormente, e ainda nos tempos de bonança, mantendo o antigo nome do hotel, mas funcionando como “casa de tolerância” era freqüentado por seringalistas, os barões da borracha, que vinham dos municípios do interior para capital para beber bons vinhos, jogar carteado, e, sobretudo procurar os “serviços” das cocotes, principalmente daquelas de origem européia, entre as quais se encontrariam possivelmente mulheres judias, como as que tratamos no texto. Com a ruína econômica, após abrigar por certo tempo uma pensão, passou a funcionar ali o “Cabaré Chine-lo”, em clara alusão ao baixo nível do estabelecimento que passou a ali existir a partir de então.

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“não-pobres mulheres”, comumen-te leem-se mensagens de familiares, tanto do ciclo familiar primário - tais como “recordação de sua mãe e ir-mãos”; “saudade de seus irmãos”, como também do secundário, como “saudade eterna de seus inconsolá-veis esposo e filhos”; “eterna sauda-de do teu filho” “saudades de seu esposo e família”; “eterna recorda-ção de seu esposo, mãe e irmãos”. Por outro lado, nas lápides das “po-bres mulheres”, tal como visto em relação ao caso da ishá aluvá, ra-ramente há os nomes dos pais, ou menção à família. Nas lápides, en-contram-se, sobretudo, expressões de saudade e perda por parte de “amigas” e “patrícias”. Expressões “saudades de tuas amigas e patrí-cias” ou “suas amigas” eram recor-rentes (ver 3ª ilustração). Noutras ocasiões, amigas específicas eram citadas, tais como: “lembrança de sua amiga Dora”; “lembrança de sua patrícia Cecília”; “muita saudade de tua amiga Schneider”. Tais citações parecem apontar para a existên-cia de redes de solidariedade entre estas “pobres mulheres”, na medi-da em que “amigas” e “patrícias” providenciavam, de algum modo, o sepultamento umas das outras. Em alguns locais, sabe-se da existência de verdadeiras confrarias de ajuda mútua, incluindo para o auxílio fu-neral a ser realizado dentro da tra-dição judaica (KUSHNIR, 1996). Não temos dados concretos que possam afirmar a existência dessas institui-ções em Manaus, mas as inscrições nas lápides, com letras em hebraico e outros símbolos judaicos, parecem apontar nesta direção.

É interessante também destacar dois casos atípicos, nos quais, a despeito de não se identificarem as sepulturas como sendo de “pobres mulheres”, encontram-se grafadas mensagens que se assemelham às encontradas nas delas. O primeiro

se trata de homem jovem, com um sobrenome tipicamente alemão, que faleceu vitimado de febre amarela, em 1913, aos 24 anos. Em sua lápi-de, encontra-se escrito, entre outros dizeres, “saudade de suas amigas e patrícias”. O segundo se trata de uma menina de quatro anos, cuja proce-dência registrada é “alemã”, falecida em 1920, devido a uma “infecção in-testinal”. Em sua lápide, está escrito “recordações de sua mãe. Saudades de um seu amigo”. Seria o jovem al-guém relacionado de algum modo ao ciclo das “pobres mulheres”? Que tipo de amizade teria com elas? Se-ria um aliciador ou um cliente que, por algum motivo, era por elas tido como benevolente, e talvez, tam-bém, como elas, desprovido de laços familiares naquela Manaus do iní-cio do século XX? E a menina, seria ela filha de uma “pobre mulher”, e o “amigo” algum protetor, ou até mesmo seu pai? Encontrar respostas a estas perguntas não é um exercício simples, porém, ao examinar estes casos atípicos, podemos sugerir que

as “pobres mulheres”, em sua per-manência em Manaus, não apenas desenvolveram laços de solidarieda-de entre si, mas também com outros judeus, e possivelmente com outras pessoas2. Estando correta esta su-posição, demarca-se a capacidade, possivelmente aliada à necessida-de, destas mulheres se adaptarem

2 Documentos ainda não plenamente ana-lisados apontam para a possível existência de uma complexa, embora velada, interação entre as “pobres mulheres” e a comunidade judaica local em formação. Há indícios de que membros desta comunidade auxiliaram na compra de sepulturas e disponibilizaram o ritual judaico de sepultamento para elas. Por outro lado, outras evidências apontam que elas possivelmente fizeram doações financei-ras, colaborando, de algum modo, com a co-munidade judaica da época. Ademais, relatos orais de pessoas mais velhas da comunidade informam que, nas décadas seguintes, as analisadas no texto, algumas destas “pobres mulheres” por vezes buscavam e conseguiam apoio espiritual junto ao rabino da comuni-dade. Tais aspetos, se devidamente corro-borados por pesquisas mais aprofundadas, poderão colocar em xeque o entendimento amplamente difundido na literatura de que haveria uma quase instransponível barreira social entre a comunidade judaica manauara, altamente endogâmica e conservadora, e as “pobres mulheres”, desenraizadas e “de vida fácil” (ORUM, 2012).

Lápide da sepultura de Sarah Beila, cemitério São João Batista de Manaus. Na foto pode-se visualizar o nome escrito em hebraico, a ausência de referencia a família, a data do óbito no começo da segunda década do século passado, o registro de “saudade de suas amigas”.

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à vida em condições adversas, longe de suas casas e de suas famílias.

Todas as mulheres identificadas como “pobres mulheres” morreram na década de 1910 a 1919. Esta dé-cada coincide justamente com o pe-ríodo que se segue ao princípio da derrocada do preço internacional da borracha. Tal fato levou a um incre-mento da migração dos seringais no interior do Estado para a capital, o que pode ter contribuído para um aumento da população judaica na cidade. Este incremento populacio-nal associado a uma possível uma precarização das condições de vida na capital, poderia explicar, pelo me-nos em parte, a concentração das mortes das “polacas” nesta década, especialmente por se tratar de um grupo especialmente vulnerável. Tal hipótese parece ser razoável, na me-dida em que, também para o grupo geral de 78 judeus tomados como universo, foi neste mesmo período em que ocorreu o maior número de sepultamentos no CSJB (55,1%).

As principais causas de morte en-tre os judeus sepultados naquela época foram as doenças infecciosas, com especial destaque para a febre amarela (22 casos; 32,4%); malária e desinteria/infecção intestinal (ambas com 7 casos; 10,3%). De modo coin-cidente, a principal causa de morte entre as “pobres mulheres” também foi a febre amarela, responsável por metade das mortes entre elas. En-tretanto, as causas externas (violên-cias) apareceram em segundo lugar, na medida em que dois casos foram associados a este grupo de causa. Além da morte por estrangulamen-to já descrita para a ishá aluvá, ou-tra judia também russa de cerca de 40 anos morreu por “ferimento por arma de fogo”, no ano de 1916. In-teressante destacar que, entre os ju-deus do sexo masculino sepultados no CSJB, cujo número é mais do que três vezes maior que o das “pobres

(*) Médico-Psiquiatria InstitutoLeônidas e Maria Deane FundaçãoOswaldo Cruz

mulheres”, encontrou-se apenas uma morte por causa violenta. Esta ocorreu em 1918, quando um judeu sefardita-marroquino, de cerca de 20 anos, faleceu devido a “ferimen-to por arma de fogo”. Outro aspecto interessante a comentar, em relação ao perfil de causas de morte entre as “pobres mulheres”, é que a úni-ca morte por “siphiles” ocorreu em uma delas em 1915, evidenciando mais uma especificidade deste gru-po, como dito anteriormente, sobre-tudo vulnerável.

Por meio destes breves comentá-rios, pretendi colaborar para o não esquecimento destas mulheres que vieram de longe para Amazônia, que morreram como seus demais patrícios, acometidas de febres e doenças tropicais, além de padece-rem em decorrência das condições especialmente vulneráveis nas quais viveram. Também pretendia eviden-ciar que, neste triste momento da história judaica, estas mulheres fo-ram, pode-se dizer, resilientes e obs-tinadas, para, no contexto de perdas de laços familiares, reordenar e rein-ventar suas redes de solidariedade. Se não puderam viver plenamente como judias, buscaram e obtiveram meios para serem sepultadas como tal. E hoje, mais de um século depois da morte de algumas, podemos con-tar uma parte, mesmo que pequena, desta história judaica. E como quase todas as histórias judaicas, esta, que teve como cenário a distante (pelo menos da Europa) Amazônia, é mar-cada por dor, morte, perda, supera-ção, erros e concertos. Embora não estejam sepultadas no Cemitério Is-raelita, como, aliás, não estão todos aqueles judeus que faleceram antes de 1928, suas sepulturas como as dos demais foram ao longo dos anos compradas e hoje pertencem ao Co-mitê Israelita do Amazonas. Em tem-pos mais recentes, seus nomes tam-bém são lembrados nos informativos

semanais da comunidade, que infor-mam os nomes dos falecidos a cada semana do ano. Assim, espera-se que elas não sejam esquecidas, pois, como dizem os sábios, a verdadeira morte é o esquecimento.

AGRADECImENTOAo Comitê Israelita do Amazonas

pelo acesso aos documentos. A Anne Benzecry Benchimol pela

leitura, crítica do texto, bem como pelo auxilio na escolha das figuras que ilustram o texto.

REFERÊNCIASbIblIOGRáFICASBENCHIMOL, Samuel. Eretz Ama-

zônia: Os judeus na Amazônia. 3ª edição. Manaus: Valer, 2008.

KUSHNIR, Beatriz. Baile de másca-ras. Mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

ORUM, Thomas T. As Mulheres das Portas Abertas: judias no submundo da Belle Époque amazônica, 1890-1920. Revista Estudos Amazônicos, v. VII, n. 1, p. 1-23, (2012).

SANTOS, Fabiane V. Sexualidade e civilização nos trópicos: gênero, medicina e moral na imprensa de Manaus (1895-1915). História, Ci-ências, Saúde – Manguinhos, v.14, suplemento, p.73-94, 2007.

SANTOS JR, Paulo M. Pobreza e prostituição na Belle Époque ma-nauara: 1890 – 1917. Revista de His-tória Regional, v. 10, n. 2, p. 87-108, 2005.

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CuRIOSO POR RElIGIÕESItzhak (Ignatius) Timotheus Trebisch Lincoln nasceu

no pequeno shtetel de Paks, na Hungria, em 4 de abril de 1879, no seio de uma família judia ortodoxa. Na sua biografia, acontecimentos reais se misturam com a len-da. Filho de Nathan Trebitsch, um bem sucedido comer-ciante judeu de trigo, Itzhak recebeu uma educação de excelência, aprendeu línguas, escreveu livros, chegando inclusive a realizar estudos superiores na Universidade.

Em 1897, após deixar seus estudos secundários ina-cabados, Trebitsch Lincoln passou a atuar na “Real Aca-demia de Artes Dramáticas da Hungria”, mas, sofrendo de cleptomania, foi flagrado em pequenos furtos. Forte-mente influenciado por missionários luteranos ou pres-biterianos, no Natal de 1899, Itzhak Trebitsch se conver-teu ao Luteranismo em Hamburgo.

Depois de trocar seu nome de Itzhak para Ignatius, Tre-bitsch estudou os princípios essenciais do Cristianismo num seminário de padres, mas em pouco tempo foi expul-so dessa casa de estudos, acusado de imoralidade e falta de ética. Viajou até o Canadá, um país aberto à imigração e lá se estabeleceu na cidade de Montreal. Instalado em seu novo lar, foi aceito para trabalhar como secretário de um padre que sonhava converter judeus ao Cristianismo.

Em 1902, Trebitsch casou-se com uma alemã de nome Margareth, mas cabe destacar que seu filho viveu toda sua vida como judeu. Nesta época, encontrou um traba-lho remunerado numa entidade anglicana, então uma filial recentemente aberta da London Jewish Society. Pa-ralelamente, foi ordenado padre pelo Grão Arcebispo de Montreal, recebendo, na cerimônia, o nome de batismo Ignatius Timotheus Trebitsch Lincoln.

mEmbRO DO PARlAmENTOEm 1903, ainda jovem, mas com sua saúde abalada,

Ignatius Trebitsch Lincoln deixou subitamente o Canadá e se estabeleceu numa pequena comunidade rural da In-glaterra. Lá, serviu durante sete anos como padre, até que o Arcebispo de Canterbury o demitiu do cargo por mal-versação de dinheiro da comunidade em que trabalhava.

Em 1906, Trebitsch passou a desempenhar o cargo de secretário privado de Benjamin Seebohm Rowntree (1871-1954), terceiro filho de Joseph Rowntree e Emma Seebohm; considerados os maiores produtores de cacau da Inglaterra. Entre 1897-1941, Benjamin sucedeu seu pai nos negócios da família.

Em 1909, Trebitsch Lincoln ingressou na seita dos Quakers, um movimento protestante britânico surgido na metade do século 17, também chamado de “Socie-dade Religiosa dos Amigos”. Cabe lembrar que, mesmo sem possuir ainda a cidadania britânica, ele se candida-

“Os anais da espionagem jamais registraram uma figura tão fascinante. Húngaro de nascimento, pastor luterano, monge budista, membro do parlamento britânico, espião pela Alemanha, conselheiro na China e protetor dos refugiados da 2ª guerra em Xangai; Itzhak (Ignatius) Timotheus Trebitsch Lincoln Chao Kung foi um daqueles judeus não convencionais e um grande aventureiro. Pouco estudado, ele vivenciou religiões e esteve com importantes personalidades históricas.”

Itzhak (Ignatius) Trebitsch Lincoln Chao Kung (1879-1943)

PROF. REUVEN FAINGOLD *

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tou para membro do Parlamento pelo distrito de Dar-lington, representando o antigo Liberal Party. Em 1910, graças às influências políticas de Benjamin Rowntree, teve sucesso na tentativa política, sendo eleito para o Parlamento; desta vez, com o nome de Ignatius Timo-theus Lincoln.

Ao eclodir a Primeira Guerra Mundial em 1914, Tre-bitsch recebe o cargo de fiscal das correspondências que chegavam do exterior. Mas, como de costume, também aqui há problemas com ele. Já no início de seu trabalho, foi acusado de falsidade ideológica e espionagem a fa-vor da Alemanha, tendo que fugir rapidamente para os Estados Unidos.

Já nos Estados Unidos de América, Trebitsch Lincoln se sustentou, ministrando palestras sobre suas ativida-des secretas de espionagem na Europa (especialmente na Inglaterra), a favor da Alemanha nazista. No decorrer dessas apresentações públicas, era difícil saber se os fa-tos lembrados eram verídicos ou não. Desacreditado, e atendendo a um pedido do governo britânico, foi extra-ditado, acusado de falsidade ideológica e sentenciado a três anos de reclusão.

Ainda em 1915, Trebitsch publicou em língua inglesa seu livro “Revelation of I. T. T. Lincoln, Former Member of Parliament Who Became a Spy” [Revelações de Igna-tius Timotheus Trebitsch Lincoln, Membro do Parlamento convertido em espião”]. Após cumprir sua pena por fal-sidade ideológica, em 1919, foi extraditado à Hungria, seu país natal.

Em Budapeste, Ignatius Trebitsch Lincoln se complicou politicamente, ao organizar um levantamento de direita, ganhando rapidamente o ódio dos extremistas de es-querda, que o marginalizaram por sua origem judaica. Mesmo sendo afastado da política húngara, continuou ativo na luta de classes europeia, apoiando a fracassada revolta de 1920, contra a jovem República do Weimar na Alemanha.

Persistente mas com sua cabeça a preço, foi procurado para cumprir pena de morte. Sem chances de ficar em evidência, Trebitsch fugiu para os Balcãs e, em 1921, via-ja à China como assessor do Marechal Wu Pei-Fu (1874-1939), a maior personagem da República da China, entre 1916 e 1927.

mONGE buDISTAEm 1925, Ignatius Trebitsch recebeu permissão para

voltar à Inglaterra, para se despedir de seu filho primo-gênito, John, que servia como soldado e estava senten-ciado à morte pelo homicídio de um servidor de bebi-

das alcoólicas. Mas, quando Trebitsch chegou ao porto de Marselha, já era tarde e a sentença havia sido exe-cutada. A fim de acalmar sua dor e seu sofrimento, buscou e encontrou refú-gio no Budismo. Estudando os princípios fundamentais desta religião milenar, em 1926, Ignatius Trebitsch Lin-coln foi ordenado monge budista, recebendo também o nome Chao Kung.

Ao adotar o Budismo, Trebitsch Lincoln Chao Kung co-locou toda a polícia de Londres em estado de alerta má-xima, pois deixou de pagar contas em hotéis e compras que havia realizado.

Em 1931, atuando na República de Weimar, Trebitsch Lincoln foi preso, processado e culpado por estelionato. Foi defendido pelo alemão Robert Servatius (1894-1983), o mesmo advogado de defesa que defendeu Adolf Eich-mann, no polêmico processo de Jerusalém em 1961. Os diversos apelos de clemência deste último endereçados ao então Presidente do Estado de Israel, Itzhak Ben Tzvi, não foram atendidos. Um dos maiores nazistas, respon-sável pela “Solução Final do Povo Judeu”, foi, então, enforcado, queimado e suas cinzas, despejadas nas pro-fundidades do Mar Mediterrâneo.

ESPIãO Em XANGAINo princípio de 1932, Ignatius Trebitsch Lincoln Chao

Kung se incorporou ao serviço de inteligência e espiona-gem militar japonês, vulgarmente conhecido como “As-sociação Dragão Negro” sediada em Xangai. No mesmo ano de 1932, também foi publicada a autobiografia de Trebitsch intitulada “Autobiography of an Adventurer” e, por volta de 1935, apareceu um livro sobre ele, em francês, intitulado “La Tragédie Humaine”.

Com a invasão à Polônia do Wehrmacht e o início da Segunda Guerra em 1º de setembro de 1939, a situação dos judeus na Europa piorava consideravelmente. Ainda imbuído de um forte sentimento judaico, Ignatius Tre-bitsch Lincoln ajudou os refugiados judeus da Europa que chegavam diariamente a Xangai.

Em 1939, novamente, Trebitsch Lincoln despertou a curiosidade do público na Europa. Desta vez, revelou à imprensa um tratado de paz imaginário, em que potên-cias alinhadas entre si, como Grã Bretanha e França e, pelo outro lado, Itália e Alemanha, desertariam dos di-

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ferentes fronts consolidados desde o início do conflito mundial. Tudo isto não passou de uma brincadeira de mau gosto de Trebitsch.

No decorrer da Segunda Guerra, ele continuou a ser-vir os interesses do Japão. Nesta época tumultuada em que ocorreu o Holocausto, boatos se espalharam in-formando que, no final de sua vida, Ignatius Trebitsch Lincoln teria retornado ao Judaísmo. Alguns chegaram a afirmar que teria morrido com a oração Shemá Isra-el (Escuta, Israel) em seus lábios e teria sido sepultado num cemitério judaico.

Passados quase setenta anos desde a publicação na mídia mundial da morte de Trebitsch Lincoln Chao Kung, esta verdadeira “lenda viva” continua despertan-do a curiosidade da história da Europa como também da Ásia. Um fato incontestável desta personalidade complexa e enigmática é que faleceu em 1943, sendo sepultado no cemitério budista de Shangai. A Segunda Guerra Mundial ainda estava no auge e longe de acabar.

BIBLIOGRAFIA

ARNON, Y., Rav Ha-arpatkanim: Trebitsch Lincoln. [O maior dos aventureiros: Trebitsch Lincoln]. ET-MOL vol. 9, fasc 5 (55), Junho 1984, pp. 19-20 [hebraico].

*REUVEN FAINGOLD, historiador e educador, PHD pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Professor do Colégio Iavne e titular da pós-graduação no Departamento de His-tória da Arte da FAAP em São Paulo e Ribeirão Preto. É também sócio-fundador da Sociedade Genealógica Judai-ca do Brasil e, desde 1984, membro do Congresso Mundial de Ciências Judaicas de Jerusalém.

ARTIGO

Chile & ChilenosLAMPE, D., and Szenasi, L., The Self-Made Villain: A Bi-

ography of I. T. Trebitsch-Lincoln. London: Cassell, 1961.

SPENCE, Richard. B., The Mysteries of Trebitsch-Lin-coln: Con-man, Spy, Counter-Initiate? The World´s Most Unusual Magazine New Dawn – Ancient Wisdom, New Thinking – since 1991 (September 30, 2009).

TREBITSCH LINCOLN, I. T., The Autobiography of an Adventurer. Translated from the German by Emile Burns. London 1932, 280 pp.

WASSERSTEIN, B., The Secret Lives of Trebitsch Lin-coln. Yale University Press, 1988.

WASSERSTEIN, B., Lincoln Ignatius Timotheus Tre-bitsch (1879–1943). Oxford Dictionary of National Bio-graphy. Oxford University Press, 2004.

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Idos de 60, Sampa abrigou o emigrante soteropolita-no que acima assina. Fui morar em quarto alugado na Zépa (Jose Paulino). Meu amigo Gileno, representante na pauliceia de empresa baiana, de vez em quando, me telefonava e deixava recado com dona Ana, a matriarca da casa. Ela nunca esquecia: “- o Senhor Chileno telefo-nou”. De tanto entrar na minha cabeça Chileno e lem-brar da rua Chile, muito chic na Bahia dos anos 50, dava aquela vontade de rever o Chile e os Chilenos.

Acabamos de voltar do país andino. Não se preocu-pe caro leitor, não vou contar da nossa viagem. Acho um “porre” ouvir histórias de viagem. Quando contadas com ilustrações fotográficas e ou DVD’s, aí então é que dá vontade de sumir. Esclarecida a situação, peço licença para lembrar apenas pequenas ocorrências insólitas e até engraçadas.

Somos dois fanáticos por futebol, eu e Atcho Bengard, ele na coletividade judaica baiana, figura impar e par (par porque o seu casamento com Silvana foi como ga-nhar uma mega sena acumulada). Fui junto com o meu parceiro de seis décadas, visitar o Estádio de Sausalito. Atcho, na sua plena memória de menino de 77 prima-veras, lembrou de tudo que ouviu pelas ondas , médias, longas e curtas das emissoras de radio que transmitiram a peleja final da Copa de 1962. Imagine nós, 50 anos depois, naquele campo onde “a pátria de chuteiras” ga-nhou uma Copa. E Atcho narrou até lances como se esti-vesse vendo alí naquela hora, - memórias de paixão - , como locutor do “match” Brasil 3 x Tchecoslováquia 1. Transmitiu um à zero para os tchecos.E continuou: O Brasil empatou, fez 2 e fez 3, Amarildo fez o primeiro, Zito o segundo e Vavá o terceiro, após uma centrada sob medida de Djalma Santos . Na partida anterior a esta Pelé machucado não jogou e nem Garrincha. Neste jogo os dois “mataram”. Conta-se que o “coach” Vicente Feola, tirava sonecas durante o jogo. E que contra os russos re-comendou a Garrincha : “ Quando vier aquele zagueiro russo louro de 2 metros de altura, dê-lhe um drible pela

direita, logo vem o segundo grandão, daí você dribla pela esquerda”. Ao que Garrincha indagou – “ e vocês já combinaram com os russos?”

A Riviera chilena é bonita, sem patriotadas ou baiana-das, com perdão dos chilenos, as Praias da Bahia “dão de dez”.

Em Valparaiso nos impressionaram as placas do De-tran de lá: brancas com uma silhueta negra de alguém correndo. Indicando ruas de fuga de Tsunamis. Conso-lo nosso: diz-se “pense em algo impossível. Na Bahia já aconteceu “. Tsunami nunca houve; e nunca haverá: os Orixás não permitirão.

Réveillon em Viña del Mar, os fogos de artifício têm meia hora de destaque. Lindo mesmo, porem nada que se iguale a Copacabana.

Antes, a duras penas, conseguimos lugares para uma ceia “Três Bês”: boa, bonita e barata. Não preciso omitir, tenho na parte inferior da boca uma ponte móvel com 4 dentes. Entrou um pedacinho de comida, literalmente embaixo da ponte. Todo mundo sabe que qualquer peda-cinho de alimento enfiado nos dentes parece um elefan-te. Elefante é exagero, digamos uma formiga. Imediata-mente fui ao banheiro, onde me deparei com um menino aparentando 8 anos, com o seu Kipá , com o seu cabelo , com o seu rosto todo sujo de spray colorido, xingando alucinadamente. Pedi licença por um momento para usar a pia. Retirei a prótese para expulsar a “formiga- ali-mento”. Ao que o danado do garoto de olhos arregala-dos, me perguntou “ - por que saca los dentes ? Dentes de mentira?”. Resignado voltei para terminar a ceia do Reveillon. E o menino surge como um raio no salão, rea-gindo aos “inimigos” com a sua metralhadora de spray. Mordendo os dentes, com certeza dentes de verdade. Os garotos judeus, quando atacados, sabem se defender e reagir. Aprendem desde pequenos. Ainda bem...

Chile & ChilenosVALDEMAR SZANIECKI

Valdemar Szaniecki, 74 anos, marchand.

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26ARTIGO

A palavra “chueta” identifica os descendentes dos judeus convertidos; assim pejorativamen-te designam-se os judeus de Maiorca. Por conta de meu sobrenome chueta Picó possuo

uma visão “de dentro” do problema dos chuetas.No gueto de Palma de Maiorca, a Calle del Sagel, mais

tarde dos chuetas, viviam no final do século XVI, discri-minados e segregados dos chamados cristãos-velhos. Até o final do século XVII, dois séculos depois da “Con-versão” geral dos judeus de Maiorca (ano 1435), os vizi-nhos deste gueto, cristãos no exterior, seguiram crendo e observando em segredo a antiga Lei de Moisés.

Terminando o século XVII deixou de existir a secreta comunidade judaica da Calle Sagel no centro da cidade. Entretanto, seguiu sendo um verdadeiro gueto para as

De Pontevedra, GalíciaO químico galego Rafael Picó ofereceu ao Dr. Carlos Kertesz, vice-presidente do AHJB, seu amigo pessoal, um depoimento sobre os Chuetas da Ilha de Maiorca, que publicamos a seguir. Os Chuetas são um grupo de cristãos-novos identificados por apenas quinze sobrenomes: Aguiló, Bonnin, Cortés, Forteza, Fuster, Marti, Miró, Picó, Pinya, Pomar, Segura, Tarongi, Valenti, Valls e Valleríola. São tradicionalmente endógamos. Raramente emigram. No ARQUIVO NACIONAL, só encontramos quatro casos de imigração para o Brasil (o pedreiro José Fuster Cortés em 1953, a dona de casa Juana Bonnin Pomar em 54, o “chofer” Gabriel Aguiló Piña e o projetista Juan Pomar Forteza em 60). O autor, descendente da chueta Leonor Valls y Picó, penitenciada pelo Santo Ofício em 1679, escreve:

OS CHUETAS DE MAIORCARAFAEL PICÓ PAZOS*

novas gerações dos descendentes de convertidos. Nu-merosas famílias permaneceram ali confinadas durante todo o século XVIII até o século XX.

Os descendentes dos que por “delitos de judaísmo” foram penitenciados e queimados nos Autos de Fé de 1679 e 1691, perseguidos pelo Santo Oficio, foram con-siderados como uma casta de sangue impuro, excluídos de todos os trabalhos e submetidos ao preconceito. A separação social durou muitos anos depois do que lhes foi restituído os plenos direitos civis.

O gueto dos conversos de Maiorca é único na Espanha.A lenda que se criou em torno das vítimas das foguei-

ras erguidas pelo Santo Ofício em 1691 e para os seus descendentes obscureceram a História. O zelo religioso e os preconceitos falsearam estas histórias. Ademais a

(*) RAFAEL PICÓ PAZOS, 84 anos, Químico, vive em Pontevedra.

Na foto ao lado Rafael Picó e Carlos Kertész na Praça da Catedral em Santiago da Compostela na Galicia

investigação dos conversos em Maiorca do século XVII está incompleta, pois não se le-varam em conta os fundos documentais, extraordinariamente ricos, que possuem os Arquivos da Espanha sobre a época. A título de curiosidade lembro o processo de Leonor Valls y Picó, esposa de Juan Picó, judaizante relapsa1 e ancestral familiar, em 1679.

1 Relapsa, do latim relapsus, voltar a cair. Aquele que reincide num pecado que fora penitenciado ou numa heresia que havia abjurado.

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27 MEMÓRIA

A Comunidade Judaica está enlutada com a perda de um dos ultimos educadores da geração de imigrantes, o Lerer Jaspan, como era carinhosamente conhecido pelos seus muitos ex-alunos.Nascido em Kaunas (Kowno) na Lituânia aos 12 ago 1925, faleceu no Rio de Janeiro na véspera do Shabbat em 1º de março de 2013, aos 87 anos e 6 meses, tendo sido sepul-tado no mesmo dia no Cemitério Vila Rosali Novo.Da Europa trouxe um rico cabedal de conhecimentos ju-daicos, tendo o yiddish e hebraico como línguas mater-nas, que tão bem transmitiu a tantas classes de estudantes brasileiros.Segundo o Prof. Dov Levin, do Irgun haPartisanim ve Lohamei ha Machta-rot vehaGuetaot (Organização dos Partisans e Lutadores da Resistencia e dos Guetos), de Tel-Aviv, Avrasha Yashpan, seu amigo de infância, vi-nha a Israel anualmente para rever seus companheiros lutadores do Gue-to de Kovno, tendo ambos estudado na mesma escola hebraica, e seu di-ário continha passagens escritas por Yashpan. Sua caligrafia era tão seme-lhante, que o próprio Levin não era ca-paz de reconhecer alguma diferença. Os dois amigos se separaram quando Yashpan se incorporou ao Exército So-viético, onde foi ferido 2 vezes em ba-talhas contra os nazistas, deixando sequelas. A Wehrmacht entrou em Kovno no começo da invasão alemã da Russia em 1941, a Operação Barbarossa, que iria terminar com a derrota fragorosa da Alemanha Na-zista.Os lituanos colaboraram com os nazistas, cometen-do atrocidades inominaveis, como o massacre da Flores-ta de Ponar, onde foram assassinados 70 mil inocentes. Era o Yom Kippur de 1941.No Yom Kippur de 1944 em Vilna, a Jerusalém da Lituania, os 2 amigos de apenas 19 anos se reencontraram no Sha-bbat Teshuvá. Apenas uma das cem sinagogas existentes antes da guerra ainda estava de pé. Os russos haviam aca-bado de expulsar os nazistas da Lituania em julho de 1944, mas poucos judeus sobreviveram em Kowno e Vilna.

Professor Abraham JASPAN(1925-2013)

ISRAEL BLAJBERG

Os diários escritos pelos dois amigos foram salvos e en-contram-se hoje em Israel, preservando detalhadamente os nomes dos que morreram, para que não fossem es-quecidos, e tem uma impressionante riqueza de detalhes.Em 1945, novamente no Yom Kippur, Dov Levin e um grupo de sobreviventes judeus partiram secretamente da Italia como imigrantes ilegais para a Palestina. Abraham Jaspan casou-se com Asna Rosenfeld, nascida em Wladimierzec (Polonia), em 1946. Passou a chamar-se Asna Jaspan e tiveram um casamento de 66 anos re-

gados de felicidades. Desembarcaram no Rio de Janeiro em 20 fev 1947, no navio San Giorgio, procedente de Civitavecchia, Italia, portando passa-portes expedidos pela Cruz Vermelha Internacional. Lerer Jaspan dedicou-se a repassar seus conhecimentos, lecionando e di-rigindo as escolas Israelita-Brasileira I. L. Peretz de Madureira, Chaim Nach-man Bialik no Meier, Ginasio Hebreu Brasileiro na Tijuca e Colegio Max Nor-dau em Ipanema. Suas ricas memórias foram objeto de entrevistas concedidas ao Museu Ju-daico.Sua esposa Asna Jaspan faleceu em 24/09/2012. Deixa os filhos Salomão e Atalia, nora Fania, netos Marcello e

Marcio Jaspan, Léo, Lia e Fernando Davidovitsch e bisne-tas Gabriella e Alexa Sigal Jaspan.O Prof. Jaspan FOI UM HEROI DE GUERRA, HOMEM INTE-GRO CULTO que falava 11 linguas. SABIA DE COR TODO O VELHO TESTAMENTO ENFIM, UM GRANDE JUDEU.As orações estão sendo realizadas na Sinagoga Kehilat Yacov, Rua Capelão Alvares da Silva em Copacabana.Que as almas do Casal Jaspan se incorporem a Corrente da Vida Eterna.

Ex-aluno do Prof. Jaspan nas Escolas I L Peretz e Chaim Nachman Bialik, de Madureira e Meier (1951-1955). Fon-te: Informações da Familia, Arquivo Nacional e Partisa-nim Bulletin no. 34/35 – Tel-Aviv 2011. [email protected]

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APOIO:

FOTOTECA: AHJB