25
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016 Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016 www.compos.org.br / page 1/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48 UM, DOIS, MUITOS E A RELAÇÃO ENTRE COMUNICAÇÃO E CULTURA ONE, TWO, MANY AND THE RELATIONSHIP BETWEEN COMMUNICATION AND CULTURE Márcio Souza Gonçalves I I Doutor em Comunicação, Professor do PPGC/UERJ, Bolsista Prociência FAPERJ/UERJ. Contato: [email protected] Resumo: O presente texto mobiliza referências de dois campos de saber distintos do campo da comunicação, nomeadamente da filosofia e da antropologia, para propor uma consideração dos modos de se conceber a relação entre cultura e comunicação no primeiro. Dois autores são diretamente tratados, o filósofo Alain Badiou e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. O eixo central da argumentação é uma crítica da utilização de certos esquemas binários de compreensão e teorização, o que Viveiros de Castro nomeia como Grande Partilha. É proposto um modo alternativo de análise, mais atento às variações contínuas, às misturas e às hibridações entre diferentes meios de comunicação e usuários humanos. É indicada, finalmente, a necessidade de se levar em conta a filosofia de Badiou na reflexão em torno do conceito de evento dentro do campo comunicacional. Palavra chave: Filosofia, Antropologia, Comunicação, Cultura, Dualismo Abstract: This paper brings together two distinct fields of knowledge, philosophy and anthropology, in proposing a reconsideration of the ways of conceiving the relationship between culture and communication. Two schollars are specifficaly treated, the philosopher Alain Badiou and the anthropologist Eduardo Viveiros de Castro. The core of the argument is a critique of the use of certain binary schemes in understanding and theorizing, which Viveiros de Castro names as Great Sharing. It proposes an alternative mode of analysis, closer to the continuous variations, mixtures and hybridizations between different media and human users. It is indicated, finally, the need to take into account the philosophy of Badiou when reflecting on the concept of event within the comunicacinal field. Keywords: Philosophy, Anthropology, Communication, Culture, Dualisms 1. Introdução O presente texto mobiliza referências de dois campos de saber distintos do campo da comunicação, nomeadamente da filosofia e da antropologia, para propor uma consideração dos modos de se conceber a relação entre cultura e comunicação no primeiro. Dois autores são diretamente tratados, o filósofo Alain Badiou e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. O eixo central da argumentação é uma crítica da utilização de certos esquemas

UM, DOIS, MUITOS E A RELAÇÃO ENTRE COMUNICAÇÃO E … · evento dentro do campo comunicacional. ... o filósofo Alain Badiou e o antropólogo Eduardo ... entendida como reflexão

  • Upload
    doandat

  • View
    216

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 1/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

UM, DOIS, MUITOS E A RELAÇÃO ENTRE COMUNICAÇÃO E CULTURA

ONE, TWO, MANY AND THE RELATIONSHIP BETWEEN COMMUNICATIONAND CULTURE

Márcio Souza Gonçalves I

IDoutor em Comunicação, Professor do PPGC/UERJ, Bolsista Prociência FAPERJ/UERJ. Contato: [email protected]

Resumo: O presente texto mobiliza referências de dois campos de saber distintos do campo dacomunicação, nomeadamente da filosofia e da antropologia, para propor uma consideração dosmodos de se conceber a relação entre cultura e comunicação no primeiro. Dois autores sãodiretamente tratados, o filósofo Alain Badiou e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Oeixo central da argumentação é uma crítica da utilização de certos esquemas binários decompreensão e teorização, o que Viveiros de Castro nomeia como Grande Partilha. É propostoum modo alternativo de análise, mais atento às variações contínuas, às misturas e àshibridações entre diferentes meios de comunicação e usuários humanos. É indicada, finalmente,a necessidade de se levar em conta a filosofia de Badiou na reflexão em torno do conceito deevento dentro do campo comunicacional.

Palavra chave: Filosofia, Antropologia, Comunicação, Cultura, Dualismo

Abstract: This paper brings together two distinct fields of knowledge, philosophy andanthropology, in proposing a reconsideration of the ways of conceiving the relationship betweenculture and communication. Two schollars are specifficaly treated, the philosopher AlainBadiou and the anthropologist Eduardo Viveiros de Castro. The core of the argument is acritique of the use of certain binary schemes in understanding and theorizing, which Viveiros deCastro names as Great Sharing. It proposes an alternative mode of analysis, closer to thecontinuous variations, mixtures and hybridizations between different media and human users. Itis indicated, finally, the need to take into account the philosophy of Badiou when reflecting onthe concept of event within the comunicacinal field.

Keywords: Philosophy, Anthropology, Communication, Culture, Dualisms

1. Introdução

    O presente texto mobiliza referências de dois campos de saber distintos do campo da

comunicação, nomeadamente da filosofia e da antropologia, para propor uma consideração

dos modos de se conceber a relação entre cultura e comunicação no primeiro. Dois autores

são diretamente tratados, o filósofo Alain Badiou e o antropólogo Eduardo Viveiros de

Castro. O eixo central da argumentação é uma crítica da utilização de certos esquemas

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 2/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

binários de compreensão e teorização, o que Viveiros de Castro nomeia como Grande

Partilha. É proposto um modo alternativo de análise, mais atento às variações contínuas, às

misturas e às hibridações entre diferentes meios de comunicação e usuários humanos. É

indicada, finalmente, a necessidade de se levar em conta a filosofia de Badiou no reflexão

em torno do conceito de evento dentro do campo comunicacional.

2. Um, Dois, Muitos

    Há um problema filosófico tão antigo quanto fundamental, o das relações entre o

Um e o Múltiplo. Trata-se, especificamente, de uma questão que se situa no cerne da

ontologia, entendida como reflexão sobre o Ser. Entre o Um e o Múltiplo, se situa o Dois,

que servirá de guia para as discussões que aqui se desenham.

    O Dois, o pensamento segundo a lógica binária do Dois, o Dois como modo de

compreensão daquilo que não é o Um, tem uma longa história, que não será aqui retraçada.

Tal história envolve a dialética e todos os seus desenvolvimentos, passando por Platão,

Hegel, Marx, para pegar três nomes fundamentais.

    Para o que aqui importa, Deleuze, reportando a crítica de Nietzsche à dialética, serve

bem como guia.

    Não é espantoso que a dialética proceda por oposição,

desenvolvimento da oposição ou contradição, resolução da

contradição. Ela ignora o elemento real do qual derivam as

forças, suas qualidades e suas relações; conhece apenas a imagem

invertida desse elemento a qual se reflete nos sintomas

abstratamente considerados. A oposição pode ser a lei da relação

entre os produtos abstratos, mas a diferença é o único princípio

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 3/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

de gênese ou de produção que produz a oposição como simples

aparência. A dialética alimenta-se de oposições porque ignora os

mecanismos diferenciais diversamente sutis e subterrâneos: os

deslocamentos topológicos, as variações tipológicas. […] A obra

de Nietzsche dirige-se contra a dialética de três maneiras: esta

desconhece o sentido porque ignora a natureza das forças que se

apropriam concretamente dos fenômenos; desconhece a essência

porque ignora o elemento real do qual derivam as forças, suas

qualidades e suas relações; desconhece a mudança e a

transformação porque se contenta em operar permutações entre

termos abstratos e irreais (DELEUZE, 1976, p. 131-2)

    A dialética reduziria o Múltiplo, o que é essencialmente subtraído ao Um, o que não

se deixa totalizar, ao Dois, a uma dualidade opositiva. Obviamente é essa dualidade, entre

tese e antítese, que será superada no processo de síntese, processo que pode engendrar uma

nova oposição: a síntese se torna tese a que se contraporá uma nova antítese que dará lugar

a outra síntese e assim até uma forma de totalização final. O Dois, desse modo, por um lado

permite ao Múltiplo a existência, pois não se trata apenas do Um, mas por outro o reduz a

uma forma do Um: o Dois é o múltiplo amarrado a dois Uns em relação de tensionamento e

totalidade; os termos em contraposição são unidades que se definem reciprocamente, Dois

são dois Uns, amarrados e circunscritos.

    Tal é precisamente a limitação do Dois como pensamento capaz de dar conta da

multiplicidade: a multiplicidade que foge essencialmente ao império do Um, a

multiplicidade como devir em subtração, é encarcerada, reduzida, amarrada em unidades,

em Uns. O fundamental se perde, na medida em que o Um invade o campo do Múltiplo e se

torna a chave para sua compreensão. Ao devir louco do Múltiplo, o Dois substitui dois

estados em relação recíproca.

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 4/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

3. Viveiros de Castro e a Grande Partilha

    O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro toca, na esteira de Lévi-Strauss e

Deleuze e Guattari, em questões relevantes no que se refere ao tema do Dois e sua discussão nos

conduzirá diretamente ao campo da comunicação.

    Seu livro Metafísicas canibais (2015), publicado originalmente na França e posteriormente

no Brasil, se apresenta, curiosamente, como o prefácio de um livro nunca escrito e que Viveiros

de Castro sabe que não escreverá, o Anti-Narciso. Este deve ser entendido em correspondência

com a obra fundamental de Deleuze e Guattari intitulada O Anti-Édipo (1976).

    O Anti-Édipo é uma crítica forte à psicanálise e ao modo como esta compreende o desejo,

ligando-o à ideia de falta e rebatendo-o sobre o teatro familiar edipiano. Para os autores, trata-se

de pensar a positividade primária do desejo, anterior a qualquer falta, em seu funcionamento

molecular e produtivo, funcionamento que engendra tudo, todo o socius, e engendra mesmo sua

própria figura de parada como corpo sem órgãos. Ao inconsciente familiar edipiano se substitui

um inconsciente maquínico produtivo.

Isto funciona em toda parte, às vezes sem parar, às vezes

descontínuo. Isto respira, isto esquenta, isto come. Isto caga, isto fode.

Que erro ter dito o isto. Em toda parte são máquinas, de maneira

alguma metaforicamente; máquinas de máquinas, com seus

acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é ligada em uma

máquina-fonte: uma emite um fluxo que a outra corta. O seio é uma

máquina que produz leite, e a boca, uma máquina acoplada nela. A

boca do anoréxico hesita entre uma máquina para comer, uma máquina

anal, uma máquina para falar, uma máquina para respirar (crise de

asma). É por isso que somos todos bricoleurs; cada um suas pequenas

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 5/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

máquinas (DELEUZE & GUATTARI, 1976, p. 15).

     Esse isto é, evidentemente, o es de Freud, tradicionalmente mal traduzido por id. A

referência à bricolagem, por outro lado, faz pensar em Lévi-Strauss, o que marca uma certo

espaço comum para com Viveiros de Castro. Essa concepção do desejo como produção serve de

referência para a elaboração, ao longo de todo o livro, de uma visão da história e das sociedades

que culmina em uma análise do capitalismo. Note-se, de passagem, que O Anti-Édipo tem como

subtítulo Capitalismo e esquizofrenia. 

   O Anti-Narciso seria - se fosse escrito, o que não acontecerá, mas de certo modo a obra

existe em seu prefácio Metafísicas canibais – o Anti-Édipo da antropologia.

Certo dia, formei o desígnio e esbocei o desenho de um livro que,

de algum modo, prestasse uma homenagem a Gilles Deleuze e a Félix

Guattari do ponto de vista da minha própria disciplina. Ele deveria se

chamar O Anti-Narciso: Da antropologia como ciência menor. Seu

propósito seria caracterizar as tensões conceituais que atravessam e

dinamizam a antropologia contemporânea (VIVEIROS DE CASTRO,

2015, p. 19).

    Trata-se, muito sucintamente, de realizar, no campo da antropologia, os mesmos

deslocamentos operados por Deleuze e Guattari no campo da psicanálise.

    Uma tal proposta não se faz no vazio e o próprio autor nomeia referências importantes no

campo antropológico: Roy Wagner, Marilyn Strathern, Bruno Latour e, sobretudo, referência

maior, Claude Lévi-Strauss (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 28-9).

    A visada central de Viveiros de Castro é a de que a antropologia deve tomar seus objetos

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 6/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

de estudo não como objetos de estudo, mas como modos de descolonização do próprio

pensamento antropológico, como oportunidade de desterritorialização do pensamento nesse

contato com alguma forma de pensamento outro. Assim, deve-se levar a sério o pensamento

selvagem como pensamento, como um filosofar, claro que diferente do ocidental, mas tendo sua

própria positividade.

    Não se trata, portanto, de, partindo dos pressupostos da cultura ocidental, julgar as culturas

diferentes, seja como boas ou más, melhores ou piores, desenvolvidas ou não; trata-se, sim, de

adotar os próprios pressupostos das cultura estudadas, saindo do paradigma do ocidente, e de se

situar nesse campo indefinido de tentativa de tradução do que é, em certa medida,

incomensurável.

A antropologia compara para traduzir, e não para explicar,

justificar, generalizar, interpretar, contextualizar, revelar os não-ditos

do que goes without saying, e assim por diante. E se traduzir é sempre

trair, conforme o dito italiano, uma tradução digna deste nome […] é

aquela que trai a língua de destino, não a língua do original. A boa

tradução é aquela que consegue fazer com que os conceitos alheios

deformem e subvertam o dispositivo conceitual do tradutor, para que a

intentio do dispositivo original possa ali se exprimir, e assim

transformar a língua de destino. […] (VIVEIROS DE CASTRO, 2015,

p. 87)

Ele [Viveiros de Castro, o autor se refere a si mesmo] insistiria

apenas sobre a ideia de que, se a antropologia existe (de jure), é apenas

porque isso que Herzfeld chama de “senso comum” não é,

precisamente, comum. Acrescentaria também que a

incomensurabilidade das “noções” em confronto, longe de ser um

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 7/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

impedimento à sua comparabilidade, é exatamente o que a permite e

justifica […]. Pois só vale a pena comparar o incomensurável –

comparar o comensurável é tarefa para contabilistas (VIVEIROS DE

CASTRO, 2015, p. 91).

    A proposta de Viveiros de Castro é, por diversos motivos, interessante, notadamente na

possibilidade que coloca de se pensar o pensamento selvagem como um pensamento tão operante

quanto o nosso (a herança de Lévi-Strauss é bem evidente neste ponto). O aspecto que interessa

para o que aqui se debate é específico e remete explicitamente para discussões envolvendo o

campo comunicacional.

    Uma relativamente longa citação do próprio autor pode ser pertinente para situar a

discussão:

Assim, o propósito do título original do livro que (d)escrevemos é

o de sugerir que nossa disciplina já está redigindo os primeiros

capítulos de um livro-manifesto que seria, para ela, como seu

Anti-Édipo. Pois se Édipo é o protagonista do mito fundador da

psicanálise, nosso livro propõe a candidatura de Narciso ao posto de

santo padroeiro ou demônio tutelar da antropologia (em suas duas

versões, a “científica” e a “filosófica”), obcecada como essa sempre

pareceu estar pela determinação do atributo ou do critério fundamental

que distingue o sujeito do discurso antropológico de tudo aquilo que

não é ele, isto é, que não é “nós”, a saber: o não-ocidental, o

não-moderno, o não-humano. O que os outros “não têm”, afinal, que os

constitui como não-ocidentais e não-modernos – o capitalismo e a

racionalidade? O individualismo e o cristianismo? (Ou talvez, mais

modestamente, à maneira de Jack Goody: a linguagem escrita e o dote

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 8/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

de casamento?) E quais seriam as ausências ainda mais gritantes, mais

patentes, que constituiriam os outros como absolutamente outros, isto

é, como não-humanos, bestas, plantas, a legião de viventes mantida a

máxima distância do círculo narcísico do “nós” - a alma imortal? A

linguagem? O trabalho? A Lichtung? A neotenia? A

metaintencionalidade? À escolha do freguês.Todas essas ausências,

essas lacunas, se parecem bastante entre si. Pois, na verdade, pouco

importa, visto que “o problema” é justamente o problema, que contém

a forma da resposta: a forma de uma Grande Partilha, de um mesmo

grande gesto de exclusão que faz da espécie humana o análogo

biológico do Ocidente antropológico e vice-versa, com as outras

espécies vivas e os outros povos humanos confundidos em uma comum

alteridade privativa. Com efeito, perguntar-se sobre o que “nos” faz

diferentes dos outros – outras espécies ou outras culturas, pouco

importa quem são “eles” quando o que importa somos nós – já é uma

resposta (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 25-6)

    O que está em questão é a denúncia e a crítica de um modo de reflexão cultural baseado na

lógica da Grande Partilha, modo de compreensão da diferença entre grupos humanos

fundamentado na reificação, a partir de algum traço privilegiado, de blocos ou identidades

culturais que seriam então contrapostos. Engendra-se assim uma espécie de descontinuidade

ontológica que separa, supostamente de modo intrínseco e claro, claro e distinto, seria o caso de

dizer, grandes unidades culturais. Mas, como mostra o antropólogo, essa separação e essa

contraposição não se fazem no vazio, uma vez que os pressupostos de um dos elementos em

contraposição ordenam a apreensão do outro, que fica, desse modo, necessariamente em

desvantagem.

    Vários são os fatores, como se percebe na citação anterior, que podem ocupar o lugar de

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 9/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

parâmetro de separação: o capitalismo, a racionalidade, o individualismo, o cristianismo, a

escrita, o dote de casamento, a alma imortal, a linguagem, o trabalho, a clareira heideggeriana, a

neotenia, a metaintencionalidade... para o que aqui importa, são especialmente importantes a

racionalidade, o individualismo e a escrita, aspectos que serão referidos adiante.

    A essa lógica da Grande Partilha, trata-se de opor uma outra, e esse é o projeto de Viveiros

de Castro.

Mude-se então o problema, mudar-se-á a forma da resposta: contra

as Grandes Partilhas, uma antropologia menor fará proliferar as

pequenas multiplicidades – não o narcisismo das pequenas diferenças,

mas o antinarcisismo das variações contínuas; contra os humanismos

consumados ou finalizados, um “humanismo interminável” […] que

recusa a constituição da humanidade como se uma ordem à parte, um

império dentro de um império. Sublinho: proliferar a multiplicidade.

Pois não se trata, como lembrou oportunamente Derrida […], de pregar

a abolição da fronteira que une-separa “linguagem” e “mundo”,

“pessoas” e “coisas”, “nós” e “eles”, “humanos” e “não-humanos” - as

facilidades reducionistas e os monismos de bolso estão tão fora de

questão quanto as fantasias fusionais -; mas sim de “irreduzir” e

“imprecisar” essa fronteira, contorcendo sua linha divisória (suas

sucessivas linhas divisórias paralelas) em uma curva infinitamente

complexa. Não se trata então de apagar contornos, mas de dobrá-los,

adensá-los, enviesá-los, irisá-los, fractalizá-los. “Eis o que gostaríamos

de dizer: um cromatismo generalizado” […]. “Cromatismo”, notem

bem – é assim, com um vocabulário consagrado por Lévi-Strauss,

ainda que (ou justamente) transmutando-lhe os valores, que se escreve

o programa da posteridade do estruturalismo (VIVEIROS DE

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 10/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

CASTRO, 2015, p. 27-8).

    Imprecisar a fronteira, não cair na armadilha das oposições em bloco, evitar os

reducionismos de bolso, mas, ao mesmo tempo, não submergir em fantasias fusionais em última

instância românticas. Em outros termos, evitar tanto o Um totalizante quanto um Dois reificado.

Não se trata, obviamente, e isso será retomado em nossa discussão de Badiou a seguir, de se

recusar qualquer uso do Dois, da ideia de diferença amarrada em pares opositivos, mas apenas de

um certo uso dos dualismos, especialmente quando os dualismos terminam por ser a base de uma

forma de racismo teórico: “Tais dualismos são duvidosos não porque qualquer dicotomia

conceitual seja perniciosa por princípio, mas porque estas, em particular, exigem, como condição

da unificação dos dois mundos, um apartheid radical entre seus respectivos habitantes. Todo

Grande Divisor é mononaturalista” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 54).

    Viveiros de Castro desenha, a partir disso tudo, um quadro bem interessante para a

reflexão cultural, que merece certamente ser tomado em consideração.

4. A Grande Partilha na Comunicação

    Certamente essa discussão pode render frutos se desenvolvida dentro do campo da

comunicação. A questão que se desenha é então a de saber em que medida aí opera a Lógica da

Grande Partilha e qual é seu mecanismo de funcionamento.

    O elemento que vai funcionar como parâmetro de comparação, obviamente, serão os

meios presentes em um contexto dado. Evidentemente, em nenhum contexto cultural, nem

mesmo nos mais simples, há apenas uma meio presente. Pense-se, por exemplo, na situação

pré-histórica, onde a comunicação oral coexistia com gestos, mas também com signos de

vestimenta, de postura, signos pictóricos parietais, adornos corporais etc. A solução teórica

consiste então em postular que há um meio dominante, um meio que define e subsume o

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 11/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

funcionamento dos outros, uma espécie de Supremo Bem midiático que ordenaria a gramática

comunicacional (conceito convenientemente vago, aliás) do contexto comunicacional em

questão. Tem-se assim um meio dominante ou hegemônico, cuja presença e ao qual a referência

permitem caracterizar uma cultura.

    Dado esse primeiro passo conceitual, a lógica da Grande Partilha funciona

automaticamente, bastando localizar os contextos culturais e definir o meio que deverá ocupar o

lugar de honra. Assim, produzem-se as grandes caracterizações como cultura oral, cultura

impressa ou cultura digital.

    Um detalhe importante é que, no momento em que se postula a ideia de um meio

hegemônico definidor, postula-se, sub-repticiamente, que há uma homogeneidade no contexto

definido e que nenhuma diferenciação interna tem valor ou força suficiente para colocar em

questão a gramática ordenadora. Assim, por exemplo, há impresso dentro da cultura digital, mas

sua presença não tem capacidade de colocar em questão o fato de que a lógica definidora da nova

cultura é a digital. A discussão se desenrola, claro, em um nível de excessiva generalidade.

    A Grande Partilha, em geral, recorta então no campo comunicacional diferentes culturas, a

oral, a escrita (por vezes incluindo a impressa, por vezes não), a impressa, a eletrônica, a digital,

cada uma é definida por um tipo de meio e sendo de tal modo homogênea que pode ser bem

abarcada pelo termo geral referido ao meio dominante.

    Curiosamente, a concepção de história da comunicação que opera como pressuposto

implícito nessas caracterizações gerais é tendenciosa e bastante arbitrária. Assim, por exemplo,

privilegia-se a invenção da prensa, que afeta diretamente o modo de produção de textos, como

corte marcante de uma nova cultura, a impressa, e deixa-se de lado, como não definidor de nada,

o fato absolutamente essencial, e cheio de consequências no que toca ao uso dos textos, que foi a

substituição dos rolos pelos códices nos primeiros séculos da era cristã. Igualmente

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 12/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

desvalorizada, e estamos nos atendo ao campo da história dos suportes de apresentação de texto,

é a revolução industrial do livro, que produziu a primeira cultura de massa ocidental (MOLLIER,

2009. As traduções de todos os textos citados nas Referências em língua estrangeira são nossas).

Dito e outro modo: há elementos importantes da história da comunicação que são ignorados em

favor da suposta homogeneidade das culturas definidas pelos diferentes meios hegemônicos, o

que produz uma certa fragilidade teórica comprometedora, preço a pagar pelo excessivo

esquematismo dessas teorias. A complexa temporalidade vigente no campo da comunicação, em

que diversas linhas de tempo se misturam e entrecruzam com suas diferentes velocidades (no

campo da história dos textos essas linhas heteróclitas são a do modo de produção, a do

armazenamento, a do consumo, a do formato dos objetos, a dos tipos de escrita envolvidos, a dos

dispositivos ordenação textual tais como a pontuação etc), fica reduzida a um esquema linear

simples (cf. nossas proposições em GONÇALVES, 2015).

    Há autores ou teorias no campo da comunicação que se encaixam dentro desse paradigma

da Grande Partilha? A resposta parece ser francamente afirmativa.

    O caso de McLuhan (1977; 2005; McLUHAN & McLUHAN, 2007) é paradigmático e

além disso relevante na medida em que influenciou e influencia, direta ou indireta, explícita ou

implicitamente, um grande número de pensadores. A ele nos restringiremos.

    Há duas entradas possíveis para se compreender a Grande Partilha no pensamento do

canadense. A primeira remete para sua visão da história da comunicação, a segunda, mais

abstrata, envolve a produção de um par de conceitos para dar conta desta história.

    A história da comunicação humana seria escandida em três diferentes momentos, cada um

deles definido pela presença dominadora de um meio. As culturas orais primitivas, anteriores à

escrita, configurariam o momento inaugural de nossa epopeia. Esses grupos culturais seriam,

socialmente, fortemente comunitários, holistas, não havendo espaço para vivência de identidades

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 13/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

individualistas, pois “o desenvolvimento da escrita e da organização visual da vida possibilitou a

descoberta do individualismo, da introspecção e assim por diante” (McLUHAN, 2005, p. 63).

Além disso, do ponto de vista psicológico, uma vez que não ocorreria a hipertrofia da visão em

detrimento dos outros sentidos, como nas comunidades com escrita e prensa, uma estranha forma

de integralidade, unidade harmonia ou, ao menos, não-fragmentação, seriam a regra.

    A escrita alfabética e a prensa, a despeito da separação de mais de 2000 anos entre ambas,

definiriam a Galaxia de Gutemberg, que sucede o comunitarismo oral primitivo. Esse homem

impresso, produto do predomínio absoluto da visão sobre os outros sentidos, apresentaria várias

características que o fariam diferente de seus ancestrais: racionalidade, individualidade,

consciência histórica etc. As sociedades alfabéticas impressas, por seu turno, não se

configurariam mais como coletividades holistas, mas antes como coletividades fragmentadas,

especializadas, estados nacionais onde os indivíduos levam suas vidas individualizadas.

A alfabetização cria espécies de povos muito mais simples do que

aquelas que se desenvolvem na teia complexa das sociedades orais e

tribais comuns. O homem fracionado cria o mundo ocidental

homogeneizado, enquanto as sociedades orais são constituídas de gente

diferenciada, não por habilitações especializadas ou sinais visíveis, mas

por suas singulares misturas emocionais. O mundo interior do homem

oral é um aranzel de emoções e sentimentos complexos, que o homem

prático do Ocidente há muito desmanchou e suprimiu dentro de si, no

interesse da eficiência e da praticabilidade (McLUHAN, 2005, p. 69).

    Os meios eletrônicos, na perspectiva do autor, como se sabe, quebrariam essa lógica de

separação e hipertrofia da visão em favor do reestabelecimento de um equilíbrio tanto social,

quanto subjetivo. A televisão, máquina de veiculação de imagens visuais em movimento,

curiosamente, recolocaria em cena os outros sentidos que o texto impresso teria escamoteado em

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 14/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

favor da visão: a escrita é visual, a TV tátil e auditiva: “A imagem da TV exige que, a cada

instante, 'fechemos' os espaços da trama por meio de uma participação convulsiva e sensorial que

é profundamente cinética e tátil, porque a tatilidade é a inter-relação dos sentidos, mais do que o

contato isolado da pele e do objeto” (McLUHAN, 2005, p. 352). Note-se de passagem que a TV

HD não seria, por definição, TV.

    Uma nova humanidade, que recupera seus mais antigos ancestrais, passa a existir, uma

humanidade psicologicamente integrada e una. Pense-se em nossa “[...] era eletrônica, que

descobriu que as velocidades instantâneas abolem o tempo e o espaço, restituindo o homem a

uma consciência integral e primitiva” (McLUHAN, 2005, p. 175-6).

    Além disso, uma nova sociedade se engendra.

Nossa nova tecnologia elétrica, que projeta sentidos e nervos num

amplexo global, tem grandes implicações em relação ao futuro da

linguagem. A tecnologia elétrica necessita tão pouco de palavras como

o computador digital necessita de números. A eletricidade indica o

caminho para a extensão do próprio processo da consciência. em escala

mundial e sem qualquer verbalização. Um estado de consciência

coletiva como este deve ter sido a condição do homem pré-verbal. A

língua, como tecnologia de extensão humana, com seus conhecidos

poderes de divisão e separação, deve se haver configurado na torre de

Babel pela qual os homens procuraram escalar os céus. Hoje os

computadores parecem prometer os meios de se poder traduzir

qualquer língua em qualquer outra, qualquer código em outro código

— e instantaneamente. Em suma, o computador, pela tecnologia,

anuncia o advento de uma condição pentecostal de compreensão e

unidade universais. O próximo passo lógico seria, não mais traduzir,

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 15/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

mas superar as línguas através de uma consciência cósmica geral,

muito semelhante ao inconsciente coletivo sonhado por Bergson. A

condição de “imponderabilidade”, que os biólogos tomam como

promessa de imortalidade física, pode ser acompanhada pela condição

de “infalibilidade”, que asseguraria a paz e a harmonia coletiva e

perpétua (McLUHAN, 2005, p. 98-9).

    Há claramente uma Grande Partilha em ação, separando diferentes contextos culturais em

função do meio dominante. Contudo, não se trata, em princípio, de uma lógica binária, mas de

uma tripartite. Uma análise mais refletida, porém, aponta para o fato de que esse Três esconde

mais profundamente um Dois, na medida em que a Aldeia Global recupera o contexto tribal

primitivo atualizando-o e globalizando-o. A Galáxia de Gutemberg se opõe, assim, ao par

formado pelas tribos primitivas orais e pela Aldeia Global eletrônica. Que se trata, em realidade,

de uma lógica do Dois fica claro se se aborda o segundo modo, mais abstrato, de operação da

Grande Partilha no pensamento de McLuhan.

    Nesse segundo modo, dois espaços se opõem: de um lado, o espaço acústico, de outro, o

espaço visual. Nos abstemos aqui de uma discussão detalhada de ambos, dado que os elementos

enunciados anteriormente acerca das culturas tribais primitivas e da Aldeia Global, em relação ao

espaço acústico, e da Galaxia de Gutemberg, para o espaço visual, permanecem válidos e são

conceitualmente suficientes para a caracterização que interessa. Rapidamente, nas palavras do

próprio autor, e apenas para indicar as distinções essenciais:

O espaço acústico está em completo contraste em relação ao

espaço visual em todas as suas propriedades, o que explica a extensa

recusa em se adotar a nova forma. O espaço visual, criado através da

intensificação e separação deste sentido da inter-relação com os outros,

é um contêiner infinito, linear e contínuo, homogêneo e uniforme. O

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 16/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

espaço acústico, sempre penetrado pela tatilidade e os outros sentidos,

é esférico, descontínuo, não-homogêneo, ressonante e dinâmico. O

espaço visual é estruturado como estático, figura abstrata sem fundo; o

espaço acústico é um fluxo onde figura e fundo se esfregam e se

transformam reciprocamente (McLUHAN & McLUHAN, 2007, p. 33)

    A Grande Partilha essencial, assim, é a desse Dois que comporta espaço acústico e espaço

visual. Esta engloba a distinção entre culturas primitivas orais, letradas e eletrônicas.

    McLuhan se apresenta como um caso paradigmático da Lógica da Grande Partilha no

campo da comunicação. Resta por fazer um levantamento de uma série de outros autores que

operam dentro do mesmo princípio, levantamento que não é sem valor para os que interessam

pela constituição epistemológica do campo da comunicação no Brasil e no exterior.

5. A comunicação sem a Grande Partilha

    Alternativas a esse modo de pensar existem. Viveiros de Castro substitui à Grande

Partilha, como vimos, um tratamento a partir da noção de variações contínuas, um cromatismo

generalizado (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 27-8).

    Ora, o primeiro elemento importante é uma maior atenção às diferença do que o prestado,

para seguir como nosso exemplo, por McLuhan. Trata-se, assim, de evitar o uso de termos gerais

e vagos que recortariam enormes contextos ou períodos de tempo. As análises ficam, deste modo,

mais localizadas e recortadas, tanto em termos de espaço quanto de tempo. Em lugar da Galaxia

de Gutemberg, que recobre vários séculos e todo o espaço ocidental, melhor restringir a

discussão à Inglaterra do século XVII para determinar como aí se agenciam oral, manuscrito e

impresso (McKENZIE, 2002), ou ao contexto escocês do século XIX para compreender os

regimes mistos entre público, privado, manuscrito e impresso de circulação de certos tipos de

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 17/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

textos (KING, 2014). São dois exemplos pontuais de modos de teorizar que evitam os recortes

peremptórios, característicos da Grande Partilha, em favor de variações contínuas e intensivas,

nos termos de Deleuze e Guattari retomados por Viveiros de Castro. As macroanálises,

abordando objetos vagos e genéricos, parecem favorecer a Lógica da Grande Partilha.

    Além disso, deve ser feita uma rigorosa crítica da ideia de hegemonia de um meio dado

em um contexto e de que um meio por si só define a gramática (termo vago e genérico e de difícil

operacionalização) de um grupo social. Em lugar desse tipo de raciocínio, é mais interessante

investigar como os diversos meios presentes se compõem, em arranjos sempre provisórios e

contingentes, de modo que o predomínio de um em um campo convive com a maior presença de

outro e assim sucessivamente. Ao invés de um meio totalizador, diversos meios se ordenando em

um conjunto ou sistema aberto, mesmo que localmente um meio dado possa ter maior ou menor

importância. Isso aponta para a necessidade de que se pense, caso haja alguma paixão especial

pelo termo “gramática” (o     que não é, evidentemente, o nosso caso), a possibilidade da

coexistência de diferentes gramáticas no mesmo espaço-tempo cultural.

    Com contextos mais restritos, investigando os agenciamentos entre os meios, o

pesquisador tem ferramentas mais finas para dar conta do problema da comunicação social,

ferramentas que, saindo de generalidades inverificáveis, dão ao campo uma maior consistência

epistemológica.

    Um último ponto importante: é preciso desconfiar das grandes narrativas que retraçam

esquematicamente a história comunicativa da humanidade. A realidade é e sempre foi de tal

modo complexa e contingente, os agenciamentos entre humanos e tecnologias de comunicação

de tal modo variáveis e múltiplos, que dificilmente podem ser apreendidos por um esquema

geral, por mais pretensioso que seja. O fim das metanarrativas, narrado ele próprio em uma

metanarrativa pós-moderna, precisa efetivamente ser incorporado. Em lugar das metanarrativas,

como já indicado acima, cabe colocar análises mais cerradas de contextos concretos.

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 18/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

    Um exemplo pontual dessa necessidade de complexificação e abandono das estórias bem

contadas, ainda que não um exemplo prínceps de Grande Partilha, é o que envolve a questão da

leitura na Antiguidade (cf. para o que se segue McCUTCHEON, 2015). O estado da arte, bem

estabelecido no campo da história do livro e da leitura, sustenta que a leitura na Antiguidade -

quando não havia separação entre as palavras, ou seja, quando se praticava a escrita contínua, e

não estavam disponíveis os recursos de pontuação comumente utilizados hoje – era sobretudo

feita em voz alta, era uma leitura oralizada, a tal ponto que a leitura silenciosa provocava certo

espanto. O caso de Santo Agostinho, que se surpreende ao ver Santo Ambrósio lendo sem que

sons saiam de seus lábios, é sempre citado como exemplo e evidência desse universo distinto do

nosso, onde ler era praticamente equivalente a pronunciar sons audíveis.

    Essa assunção de que o comum era ler de modo oralizado se baseia em um pressuposto

acerca da tecnologia da escrita, o de que a escrita contínua e sem pontuação dificultaria a leitura

silenciosa e de que a leitura oralizada seria uma estratégia para facilitar a compreensão das

unidades semânticas do texto. Tal pressuposto enquadra a abordagem das diversas evidências

empíricas de casos de leitura tanto oralizada quanto silenciosa: apesar da abundância de

exemplos dos dois casos, os de leitura silenciosa, a partir do pressuposto citado, são encarados

como exceção, enquanto que os de leitura oralizada são vistos como regra. O fato de que

numerosos exemplos das duas situações existam na Antiguidade não é suficiente para colocar em

questão a teoria comumente aceita de que a leitura antiga era em voz alta.

    Em síntese, dado que a escrita era contínua e que não havia pontuação, e dado o

pressuposto de que isso dificultava a leitura silenciosa, cria-se uma narrativa bastante linear, e

eivada de determinismo tecnológico (a forma da escrita vai determinar a forma da leitura e

cognição), que será confirmada por uma parte das evidências históricas e ao mesmo tempo

minimizará as evidências que não a confirmam, encarando-as como exceções a uma regra geral.

Uma narrativa linear, sequencial, fazendo suceder dois modos distintos de leitura, com forte

determinismo tecnológico.

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 19/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

    Ora, é fundamental questionar e problematizar esse tipo de argumentação.

    De início, é preciso colocar as evidências que sustentam as duas posições em situação de

igualdade, não encarando um lado a priori como exceção e o outro como regra. Isso envolve,

mais profundamente, suspender o pressuposto de que a escrita contínua e sem pontuação leva a

uma leitura oralizada: suspender, em geral, o determinismo tecnológico presente e,

especificamente, esse de que a escrita determina a leitura. A partir disso, pode-se então propor

um quadro menos tendencioso das práticas de leitura, quadro que veria como comum não um tipo

de leitura em detrimento de outro raro, mas a coexistência de diferentes modos de ler. O quadro

das leituras antigas ganha assim maior complexidade, fica menos esquemático, e acolhe melhor o

material empírico acerca de como os antigos liam. Curiosamente, esse quadro guarda maior

proximidade com a situação contemporânea dos leitores, com seus diversos, alternativos,

contingentes e coexistentes modos de ler: assim como nós, os antigos podiam ler de diferentes

formas.

O ato de ler para eles [antigos romanos] não era simples e somente

(como muitos eruditos sustentaram) o ato de revificar a fala que se

tornou silenciosa quando transformada em texto, mas antes uma

“interação semiótica complexa de várias pistas verbais e visuais”, para

citar uma descrição da leitura no mundo moderno (McCUTCHEON,

2015, p. 17).

    Assim, em suma, à Grande Partilha e às belas narrativas lineares organizadas devem se

substituir modos de compreensão mais complexos e menos esquemáticos, mais refinados e

menos gerais, mais atentos às diferenças e especificidades e ao mesmo tempo aos agenciamentos

e coexistências entre os diferentes meios e entre os meios e os agentes humanos. Para isso,

algumas noções podem ser úteis, mas o espaço e o tempo nos impedem de aqui desenvolver mais

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 20/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

longamente a discussão, noções tais como a de coexistência de extratos midiáticos, sistema

midiático, rearranjo, mistura, antiepocalismo (cf. GONÇALVES & CLAIR, 2014).

6. Badiou, o Dois e os eventos

    Nem todo Dois, contudo, obedece e funciona segundo uma Grande Partilha que recorta o

mesmo e o outro, o igual e o diferente com uma visada, em última instância, etnocêntrica.

    Alain Badiou, em sua filosofia, uma das mais interessantes e inovadoras no relativamente

monótono panorama do pensamento atual, atualiza toda essa discussão das relações entre Um,

Múltiplo e Dois, e o faz de um modo bastante diferente do de Deleuze e Guattari. Dada a

complexidade de seu pensamento, não será aqui tentado um resumo geral, serão apenas

considerados os aspectos relevantes após uma breve contextualização.

    Dois livros são essenciais para a compreensão da filosofia de Badiou, ambos difíceis e

densos, ambos mobilizando um arsenal enorme de conhecimentos acumulados ao longo de nossa

história intelectual (indo da matemática até a história militar, por exemplo, e passando por

diversos outros campos), ambos exigindo do leitor dedicação e paciência. Os dois livros são O

ser e o evento (1996), L'Être et l'événement (1988) no original, e Logique des mondes (2006),

não disponível ainda em português.

    O ser e o evento foi publicado na França em 1988 e expõe o núcleo original das

proposições de Badiou. As teses essenciais são (essenciais em nossa leitura necessariamente

idiossincrática): o ser é múltiplo; a matemática, notadamente em sua vertente teoria dos

conjuntos, na medida em que é discurso sobre multiplicidades, é a ontologia; disso decorre que a

filosofia não faz ontologia, sendo então reflexão sobre aquilo que não é o ser enquanto ser,

ocupando-se de pensar o que se subtrai à ordem do ser, os eventos; a filosofia vai então pensar a

compossibilidade histórica de quatro procedimentos de produção de verdade, o matema, o

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 21/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

poema, o amor e a política, verdades necessariamente dependentes da ocorrência e fidelidade

subjetiva a eventos (BADIOU, 1988).

    Logique des mondes, por seu turno, tendo como subtítulo L'Être et l'événement, 2,

desenvolve algo que fora apenas indicado no primeiro volume, a Lógica, entendida no sentido

amplo de ordenação da apresentação dos seres em mundos efetivos. Não se trata portanto de uma

discussão do ser enquanto tal – que se faz no âmbito da ontologia, ou seja, da matemática

conjuntista – mas de uma discussão do ser tal como apresentado em situações (termo utilizado

em O ser e o evento) ou mundos (termo utilizado no segundo volume).

Pensar o múltiplo como múltiplo é a tarefa da ontologia pura. Se

essa tarefa é matemática em sua efetividade, é filosófica em sua

determinação geral. As matemáticas de fato não se identificam como

essa ontologia que, contudo, elas realizam historicamente. Eu assumi a

parte filosófica da ontologia pura em L'Être et l'événement. Pensar o

múltiplo “mundano” segundo seu aparecer, ou sua localização, é a

tarefa da lógica, teoria geral dos objetos e das relações. Nós a

concebemos aqui como Grande Lógica, à qual se subordina

completamente a pequena lógica linguageira e gramatical (BADIOU,

2006, p. 103).

    O tema do Dois, e é isso que aqui interessa, recebe, no âmbito desse reflexão sobre os

mundos e os eventos que neles têm lugar, um destaque importante e se liga ao que Badiou chama

de pontos.

Um ponto do mundo (na realidade, do transcendental de um

mundo) é o que faz comparecer a infinidade de nuances de um mundo,

a variedade de graus de intensidade do aparecer, a rede ramificada das

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 22/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

identidades e das diferenças, perante a instância do Dois que é “sim”

ou “não”, a afirmação e a negação, o abandono ou a recusa, o

engajamento ou a indiferença... Em suma, um ponto é a cristalização

do infinito na figura, que Kierkegaard chamara “a Alternativa”, do “ou

bem... ou bem”, e que pode com efeito se dizer também como escolha

ou decisão. Mais simplesmente ainda, há “ponto” quando, através de

uma operação que implica um sujeito e um corpo, a totalidade do

mundo é o que está em jogo em um cara ou coroa. Cada múltiplo do

mundo é então correlato seja de um “sim”, seja de um “não”

(BADIOU, 2006, p. 421-2).

    Novamente de modo esquemático: dado um mundo em que um evento se situa, o trabalho

de fidelidade ao evento é a decisão de todos os pontos em favor do evento; obviamente o

processo simétrico, que desautoriza o evento e desse modo o anula, é a decisão pelo “não”.

    Assim, é, concretamente, em situações binariamente estruturadas, situações em que o Dois

é a forma de apreensão do múltiplo, situações suplementadas por um evento que será ou não

acolhido dando origem a um procedimento de verdade, que a ação propriamente humana,

subjetiva, diria Badiou, tem lugar. O Dois assim é a condição da ação pós-evento. Os exemplos

concretos apresentados por Badiou, que aqui não temos condições de explorar, certamente

ajudam a tornar mais compreensível essa discussão em si mesma bastante abstrata (cf. BADIOU,

2006, p. 425 e seguintes). Citemos apenas brevemente um trecho acerca do teatro de Sartre:

Teórico da liberdade absoluta, o existencialista Sartre sempre

gostou de imaginar situações em que a complexidade infinita das

nuances, o caos aparente do mundo, se deixam reduzir à pureza dual da

escolha. Seu teatro, em particular, é antes de tudo apresentação dessas

reduções brutais da movência subjetiva a uma decisão sem garantia

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 23/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

nem causalidade que figura, em face da espessura do ser, a

transparência insólita do nada. Eu diria de bom grado, em minha

linguagem, que Sartre monta o teatro dos pontos (BADIOU, 2006, p.

426).

    Nota-se, assim, que o Dois é condição de ação em um mundo em que um evento tem

lugar, é o quadro que permite que as decisões e reconsiderações na esteira do evento sejam

operadas. A pura dispersão subtrativa do múltiplo, nesse sentido, se torna negativa na medida em

que impede a ação subjetiva em relação ao evento. O Dois é, deste modo, necessário. Se se

considera, como Badiou, que a existência humana efetiva se faz na consideração subjetiva de

mundos escandidos por eventos, pode-se chegar à conclusão última de que o Dois é condição de

humanidade (todos estes termos tem um sentido muito preciso no pensamento do francês).

    Se a inclusão dos princípios colocados por Viveiros de Castro dentro de uma teorização

dos meios de comunicação é relativamente operacionalizável, o mesmo não se pode dizer das

propostas de Badiou. Certamente a necessidade de tratamento do problema dos eventos no

espaço da comunicação tem muito a ganhar com as ideias de ponto e de decisão. Os eventos

comunicativos podem ser de diferentes ordens: cada invenção midiática, por exemplo, deve ser

considerada sob esse ângulo (da escrita, do códice, da prensa etc); mas os usos humanos dessas

tecnologias também comportam uma dimensão de evento (uso político de panfletos em um

contexto político etc). Esses dois casos não esgotam, contudo, a questão do tratamento do

conceito de evento, tal como filosoficamente definido – e portanto distinto de evento entendido

como acontecimento de entretenimento, esporte etc – no campo da comunicação. Mais do que

desenvolver essa discussão, o que se procurou aqui foi chamar a atenção para a importância do

tema e de seus desenvolvimentos atuais no pensamento de Badiou, relacionando-o, de algum

modo, às propostas de Viveiros de Castro. Essas breves anotações são tudo o que podemos fazer

por agora.

7. Considerações finais

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 24/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

    Abordamos brevemente o pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, notadamente no

que concerne à crítica que faz, inspirado por Deleuze e Guattari, do uso de um modo de pensar

por ele denominado da Grande Partilha no campo da antropologia. À lógica da Grande Partilha,

que é no fundo um modo de amarrar a multiplicidade dentro de uma lógica binária simplória, o

antropólogo contrapõe a ideia de um pensamento de variações contínuas.

    Propusemos uma crítica à utilização da Grande Partilha no campo da comunicação e

procuramos indicar um paradigma alternativo de análise, mais afeito às diferenças locais, a

contextos e conceitos mais focados, a um modo menos esquemático de raciocinar.

    Vimos, finalmente, de que modo a reflexão em torno da ideia de Dois se constitui na

original filosofia de Alain Badiou, atrelada que aí está à noção de ponto e de evento. O Dois,

ganha assim um estatuto bastante positivo na medida em que é a partir dele que os processos

subjetivos humanos podem operar. O modo como articular sua teoria de evento e Dois dentro do

campo das teorias da comunicação permanece, porém, em aberto.

    São todos temas que merecem uma análise mais detida, meditada e aprofundada.

 

Referências

BADIOU, Alain. L'Être et l'événement. Paris: Seuil, 1988.

BADIOU, Alain. Logiques des mondes - L'Être et l'événement, 2. Paris: Seuil, 2006.

BADIOU, Alain. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Ed. UFRJ, 1996.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E CULTURA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

www.compos.org.br / page 25/25 / Nº Documento: 450D3486-66BC-4D67-98F6-4039FA9F8A48

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago EditoraLtda., 1976.

GONÇALVES, Márcio Souza. Notas para uma articulação entre Comunicação e Tempo. In Rádio-Leituras, v. 6, p.201-215, 2015.

GONÇALVES, Márcio Souza; CLAIR, Ericson Telles Saint. Meios na história, história nos meios: paradigmas para areflexão sobre comunicação e cultura. In TRÍADE: Revista de Comunicação, Cultura e Midia, v. 2, p. 157-172, 2014.

KING, Rachael Scarborough. Letters from the Highlands: scribal publication and media shift in victorian Scotland.In GREENSPAN, Ezra; ROSE, Jonathan (Eds.). Book History – Volume 17. Baltimore, Maryland: The Johns HopkinsUniversity Press, 2014.

McCUTCHEON, R.W. Silent Reading in Antiquity and the Future History of the Book . In BARNHISEL, Greg;ROUX, Beth le; ROSE, Jonathan (Eds.). Book History – Volume 18. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins UniversityPress, 2015.

McKENZIE, Donald F. Speech-Manuscript-Print. In Making Meaning: “Printers of the Mind” and Other Essays. Editedby Peter D. McDonald & Michael F. Suarez, S.J.. Amherst, Boston: University of Massachusetts Press, 2002.

McLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutemberg: a formação do homem tipográfico . São Paulo: Editora Nacional,1977.

McLUHAN, Marshall; McLUHAN, Eric. Laws of media – The new science . Toronto, Buffalo, London: University ofToronto Press, 2007.

McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2005.

MOLLIER, Jean-Yves. La lectura en Francia durante el siglo XIX, 1789-1914. México: Instituto Mora, 2009.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural . SãoPaulo: Cosac Naify, 2015.

 

Arquivo PDF gerado pela COMPÓS