Verdade e Sujeito_alain Badiou

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  • 8/2/2019 Verdade e Sujeito_alain Badiou

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    Verdade e sujeitoA L A I N B A D I O U

    comeareipor algumas indicaes negativas. O sujeito de queaqui se trata efetivamente uma nova categoria filosfica, que preciso delimitar, distinguindo-a de vrias outras. O sujeito no uma substncia, um ser, uma alma, uma coisa pensan-

    te, como diz Descartes. Ele depende de um processo; comea etermina. O sujeito no um nada, um vazio, um intervalo. Ele tem consistn-cia; seus componentes podem ser determinados. O sujeito no uma conscincia, uma experincia. No a fonte dosentido. Na realidade, ele constitudo por uma verdade, e no fontede uma verdade. O sujeito no invariantenemnecessrio. No h sempre sujeito, ousujeitos. Precisa-se para isso de condies complexas, e, particular-mente, de eventos entregues ao acaso. O sujeito no umaorigem. Particularmente, no porque hsujeito

    que h verdade, mas pelo contrrio, porque h verdade que h su-jeito.Digamos que o sujeito raro, to raro quanto as verdades.Para falar do sujeito, preciso partir de uma teoria da verdade.Pois, fundamentalmente,um sujeito apenas um ponto de verdade; ou,a dimenso, meramente local, do processo de uma verdade.A filosofia moderna uma crtica da verdade como adequao. A

    verdadeno adequatio rei et intellectus. A verdade no se limita formado juzo. Hegel mostra que a verdade percurso.Partirei da idia seguinte: uma verdade primeiro uma novidade.Aquilo que transmite, aquilo que repete, ns o chamaremos um saber.Distinguir verdade de saber essencial. Essa uma distino que jexiste na obra de Kant: a distino entre razo e entendimento. ParaHeidegger capital esta distino: a que existe entre verdade, alethia, econhecimento, ou cincia, techn.Se toda verdade uma novidade, qual o problema filosficoessencial da verdade? o de seu aparecimento e de seu vir-a-ser. E

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    preciso que se pense uma verdade, no como juzo, mas como um pro-cesso real.O esquema que os senhores tm em mos representa o vir-a-serdeum a verdade. O objetivo desta palestra a explicao do esquema.Para que se inicie o processo de uma verdade, preciso que algoacontea. Pois, o que existe, a situao do saber tal como est, d-nosapenas a repetio. Para que uma verdade afirme sua novidade, tem dehaver um suplemento, o qual est entregue ao acaso. Ele imprevisvel,incalculvel. Situa-se para alm daquilo que existe, chamo-o evento.

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    Uma verdade vem a ser, na sua novidade, porque um suplemen-to evento interrompe a repetio.Exemplos: o aparecimento, com Esquilo, da Tragdia teatral; osurgimento, com Galileu, da Fsica matemtica; um encontro amorosoque transformou totalmente uma vida; ou a Revoluo francesa de1792.Um evento ligado noo de indecidvel. Tomem o enunciado:

    Este evento pertence situao. Se os senhores pudessem, com as regrasdo saber estabelecido, decidir que tal enunciado verdadeiro ou falso, oevento no seria um evento. Seria calculvel a partir da situao. Ne-nhuma regra permite decidir que o evento um evento. Nada permitedizer: aqui comea uma verdade. Vai precisar fazer uma aposta. Por isso que uma verdade comea por um axioma de verdade. Comea por umadeciso. A deciso de dizer que o evento se deu.

    O fato de que o evento indecidvel obriga a que aparea umsujeito do evento. Um sujeito constitudo por um enunciadoem formade aposta, enunciado que o seguinte: Deu-se isto, que eu no possocal-cular, nem mostrar, mas a que permanecerei fiel.

    Um sujeito primeiramente aquilo que fixa um evento indecid-vel, porque assume o risco de decidi-lo.Depois do que, engaja-se o processo infinito de verificao doverdadeiro. o exame, na situao, das conseqncias do axioma quedecidiu o evento. o exerccio da fidelidade. Nada, portanto, regula seutrajeto, j que o axioma que o sustenta decidiu fora de qualquer regra dosaber estabelecido. Trata-se, portanto, de um trajeto arriscado, ou semconceito.Mas o que vem a ser exatamente escolha pura, escolha sem con-ceito? Trata-se, evidentemente, de uma escolha confrontada com dois

    termos indiscernveis. Dois termos so indiscernveis se nenhum efeitode linguagem permite distingui-los; mas, se nenhuma frmula de lin-guagem discerne dois termos da situao, est assegurado que a escolhade fazer com que a verificao passe antes por um que por outro no temapoio algum na objetividade da diferena. Trata-se, ento, de uma es-colha totalmente pura, descomprometida com qualquer outro pressu-posto que no o de ter de escolher, sem marca nos termos propostos,aquele por que vai passar em primeiro lugar a verificao das conse-qncias do axioma.E dizer que o sujeito de uma verdade exige o indiscernvel. Oindiscernvel organiza o ponto puro do sujeito no processo deverifica-

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    co. Um sujeito o que desaparece entre dois indiscernveis. Um sujeito o lance de dados que no extingue o acaso, mas o efetua como verifi-cao do axioma que o funda. O que foi decidido, no tocante ao eventoindecidvel, passar por este termo, indiscernvel de seu par. Esse o atolocal de uma verdade. Fragmento do acaso, o sujeito transpe a distncianula entre dois termos que nada distingue. O sujeito de uma verdade precisamente in-diferente.

    O ato desse sujeito in-diferente o ato locai de uma verdade.Consiste em uma pura escolha entre dois indiscernveis.Ele , portanto,absolutamente finito. Como veremos, umaverdade infinita. Mas o atolocal de uma verdade, um sujeito dessa verdade, finito.Por exemplo, a obra de Sfocles um sujeito para esta verdadeartstica, em que se constitui a tragdia grega, verdade iniciada peloevento Esquilo. Essa obra criao: escolha pura naquilo que, antesdela, indiscernvel. E uma obra finita. No entanto, a prpria Trag-dia, enquanto verdade artstica, prolonga-se no infinito. A obra de S-focles um sujeito finito desta verdade infinita.Da mesma forma, a verdade cientfica decidida por Galileu pros-segue no infinito. Mas as leis fsicas, sucessivamente inventadas, sosujeitos finitos desta verdade.Continuemos acompanhando o processo de uma verdade. Co-meado com o evento indecidvel, ele encontra seu ato num sujeito fi-nito confrontado com o indiscernvel. Esse trajeto verificante prossegue:por escolhas sucessivas, ele circunscreve a situao. Delineia-se assim,aos poucos, o contorno de um subconjunto da situao, em que o axio-ma, declarante do evento, verifica seus efeitos. Claro que tal subconjun-to infinito e permanece inacabvel. No entanto, pode-se enunciar que,mesmo supondo-o acabado, ele ser, inelutavelmente, um subconjuntoque nenhum predicado unifica. Um subconjunto intotatizvel. Um sub-

    conjunto que no se pode construir ou denominar na lngua. Cha-mam-se genricos tais subconjuntos. Digamos que uma verdade, supon-do-a acabada, genrica.Como poderia, de fato, uma seqncia de escolhas puras gerar umsubconjunto que se deixasse unificar sob uma predicaco? Seria precisopara tanto que o trajeto de uma verdade fosse secretamente governadopor uma lei, ou que os indiscernveis, em que o sujeito acha seu ato,fossem, na realidade, discernidos por algum entendimento superior.Semelhante lei, porm, no existe. A inveno, a criao, permanece

    incalculvel. Portanto, o trajeto de uma verdade no pode coincidir noinfinito com qualquer conceito que seja. E, por conseguinte, os termos

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    verificados, supondo-se infinita sua totalizao, compem, ou melhor,tero composto um subconjunto genrico do Universo. Indiscernvelem seu ato ou como Sujeito, uma verdade genrica em seu resultado,ou em seu ser. subtrada a toda e qualquer unificao por um predi-cado nico.Por exemplo, depois de Galileu, no existe um subconjunto dosaber, fechado e unificado, que se pudesse chamar a Fs ica. H umconjunto infinito e aberto de leis e experincias; mesmo que se suponha

    acabado tal conjunto, ele no se deixar resumir em qualquer frmulanica da lngua. No existe uma lei das leis fsicas. A Fsica, portanto, um conjunto genrico. A um tempo infinito e indistinto. Esse que oser da verdade fsica.

    Da mesma forma, depois da Revoluo de 1792, houve polticasrevolucionrias de todo tipo. Pode-se dizer que se trata de uma verdadeda poltica. Mas no existe tambm uma frmula poltica nica capaz detotalizar tais polticas revolucionrias. O conjunto denominado polticarevolucionria uma verdade genrica da poltica.

    O que ocorre que podemos sempre antecipar a idia de umaverdade genrica acabada.O ser genrico de uma verdade nunca apresentado. Uma verdade

    inacabvel. Podemos, porm, saber formalmente que uma verdadehaver sempre de ter-se realizado enquanto infinidade genrica. Da, apossibilidade de uma apreenso ficcional dos efeitos de seu ter-se reali-zado. O sujeito pode formular a hiptese de um Universo onde essaverdade, cujo sujeito um ponto local, tivesse completado sua totali-zao genrica.A hiptese antecipante, referente ao ser genrico de uma verdade,eu a chamo forao. A forao a poderosa fico de uma verdade

    acabada.Partindo de tal fico, posso forar saberes novos, mesmo sem terverificado esses saberes.Assim, Galileu pode levantar a hiptese de que a natureza todaest escrita em linguagem matemtica; o que a hiptese de uma Fsica

    completa. Baseado nessa antecipao, ele fora o adversrio aristotlicoa abandonar a prpria posio.Da mesma forma,um apaixonado pode dizer: Eu te amarei sempre,o que a hiptese antecipante de uma verdade de amor integral. Apoia-

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    do nesta hiptese, ele fora o outro a conhecer e pratic-lo de maneiradiferente.A construo de uma verdade faz-se pela escolha no indiscernvel.Faz-se localmente no finito.Mas o poder de uma verdade decorre da forao hipottica. Con-siste em dizer: Se realmente se supe acabada n infinidade genrica, de umaverdade, ento e s s e ou aquele saber deve, imperativamente, ser transfor-mado.O problema o de saber se tamanho poder de antecipao to-

    tal se possvel forar todos os saberes envolvidos. o problema ro-mntico do amor absoluto; o problema cientificista da cincia comoverdade integral; o problema poltico do totalitarismo.Ta l problema diz-se simplesmente: ser que, partindo do Sujeitofinito de uma verdade, pode-se nomear e forar ao saber todos os ele-mentos respeitantes a essa verdade? At onde vai o poder de antecipaoda infinidade genrica?Minha resposta que sempre h, em qualquer situao, um pontoreal que resiste a esse poder.Chamo esse ponto o inominvel da situao. aquilo que, na

    situao, nunca tem nome para a verdade. Um termo, portanto, quepermanece inforvel. Esse termo fixa seu limite ao poder de uma ver-dade.O inominvel aquilo que se subtrai ao nome prprio, a que tam-bm ele o nico a sesubtrair. O inominvel, portanto, o prprio doprprio. To singular que nem mesmo tolera ter nome prprio. Tosingular, na sua singularidade, que o nico a no ter nome prprio.O inominvel esse ponto em que a situao pensada em seu ser

    mais ntimo: na presena pura, que saber algum pode circunscrever.O inominvel algo como o real indizvel de tudo aquilo que umaverdade permite dizer.Demos um exemplo. A matemtica deduo pura. Supe-sesempre que no contm qualquer contradio. Ora, Godel mostrou que impossvel demonstrar, dentro de uma teoria matemtica, que essateoria no-contraditria. Uma verdade matemtica, portanto, nopode forar a no-contradio da matemtica.Dir-se- que a no-contradio e o inominvelda matemtica. De

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    fato, nota-se que tal inominvel o real da matemtica: pois, se umateoria matemtica contraditria, ela reduzida ao nada.Por conseguinte, uma tica razovel da matemtica consiste emno querer forar esse ponto, em aceitar que uma verdade matemticanunca seja um a verdade completa.Mas essa tica razovel da matemtica difcil de ser mantida.Como se verifica no cientismo e no totalitarismo, existe sempre o desejode uma onipotncia da Verdade. A est a raiz do Mal.O Mal a vontade de denominara qualquer preo.Habitualmente, diz-se que o Mal mentira, ignorncia, mortaltolice. Antes tem o Mal, como condio, o processo de uma verdade.Sexiste o Mal porquanto h um axioma de verdade no ponto de indeci-dvel, um trajeto de verdade no ponto do indiscernvel, uma antecipaode ser quanto ao genrico e a forao da nomeao no ponto do ino-minvel.Sea forao da subtrao inominvel uma catstrofe, porqueafeta a situao inteira, perseguindo nela a singularidade como tal, cujoemblema o inominvel. Neste sentido, o desejo ficcional de suprimiro inominvel liberaa capacidadede destruio contida em toda verdade.A tica de uma verdade resume-se, portanto, inteiramente, numaespcie de moderao com relao a seus poderes. E preciso que o efeitodo indecidvel, do indiscernvel e do genrico, ou ainda, o efeito doevento, do sujeito e da verdade, admita o inominvel como l imitao deseu trajeto.O Mal finalmente o desejo do tudo-dizer.Para conter o Mal, preciso medir o poder da Verdade.O que nos ajuda o estudo rigoroso das caractersticas negativasdo trajeto prprio da verdade.O evento indecidvel. O sujeito ligado ao indiscernvel. Aprpria verdade genrica, intotalizvel. E o ponto em que sedetm opoder o inominvel.Temos assim quatro categorias negativas ou subtrativas. Seu es-tudo filosfico capital.Indico que tal estudo pode apoiar-se na matemtica moderna: o teorema de Godel permite-nos pensar o indecidvel;

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    a teoria de Galois permite-nos pensar o indiscernvel; a teoria de Cohen permite-nos pensar o genrico; o teorema de Fuhrken permite-nos pensar o inominvel.

    Finalmente, a matemtica ajuda o filsofo, para pensar a verdade,e, a um s tempo, evitar o excesso de poder desta. Diz-se freqente-mente que a cincia uma tcnica e uma alienao. Ela mostra aqui quepode ser tambm um pensamento, uma liberao e uma garantia tica.

    Alain Badiou professor de Filosofia da Universidade de Paris VIII. autor deRhapsodie pour le thatre (1990) e Conditions (1992), entre outros livros.Palestra feita pelo autor em 27 de agosto de 1993 no IEA.Traduo de Jean Briant. O original em francs - Verit et sujet - encontra-se disposio do leitor no IEA para eventual consulta.