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UM DRAMA NO MÉXICO · 2019. 2. 9. · UM DRAMA NO MÉXICO I Da Ilha Guajan a Acapulco No dia 18 de outubro de 1825, arribavam dois navios espanhóis à ilha Guajan, no arquipélago

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JÚLIOVERNE

UMDRAMANOMÉXICO

TraduçãodeAntónioManuelCunhaeSá

FREEBOOKSEDITORAVIRTUAL–CLÁSSICOSESTRANGEIROS

AVENTURA

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Título:UMDRAMANOMÉXICO.

Autor:JúlioVerne(1828–1905).

Tradução:AntónioManueldaCunhaeSá(1854-1909).

Imagemdacapa:IvánTamás/Pixaby.

Leiautedacapa:Canva.

Série:ClássicosEstrangeiros–vol.42.

Editor:FreeBooksEditoraVirtual.

Site:www.freebookseditora.com

Direitos:Originaletraduçãodedomíniopúblico(art.41,caputdaLeinº9.610,de 19 de fevereiro de 1998). Adaptação textual: © Paulo Soriano. Proibida areproduçãosemautorizaçãopréviaeexpressadoeditor.

Ano:2018.

Sitesrecomendados:

www.triumviratus.net,www.contosdeterror.com.br,

www.contosdeterror.site

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SUMÁRIOUMDRAMANOMÉXICOSOBREOAUTOR

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UMDRAMANOMÉXICO

I

DaIlhaGuajanaAcapulco

No dia 18 de outubro de 1825, arribavam dois navios espanhóis à ilhaGuajan, no arquipélago das Marianas. O primeiro era uma nau de linha, osegundoumbriguedeoitopeças.Anauchamava-seÁsia,obrigueConstância.Havia seismesesque estesdois navios tinham largadodeEspanha, e entre assuas respectivas tripulações, mal pagas, mal alimentadas e extenuadas detrabalho,agitavam-sejáemvozbaixaalgunsprojetosderevolta.EraabordodoConstância, comandadopelocapitãoD.Orteva,homemdeenergia inabalável,quesetinhammaisparticularmentepronunciadoossintomasdainsubordinação.Obrigueexperimentaraemseurumoavarias tãoimprevistasqueacausadelasnão podia deixar de se atribuir a uma premeditada malevolência. O Ásia,comandadoporD.RoquedeGuzuarte, foraobrigado tambéma arribar comobrigue.Numanoite,apareceradesarranjadaaagulhademarearsemsesaberporquemotivo.Noutra,desprenderam-seosovénsdemezena,comoseostivessemcortado, vindo abaixo o respetivomastro com todo o seu aparelho. Enfim, osgualdropes do leme rebentaram por duas vezes durante uma importantemanobra.

A ilhaGuajan,comotodooarquipélagodasMarianas,estásubordinadaàCapitania-Geraldas ilhasFilipinas.Osespanhóis,achando-sealinumacolôniasua,puderamfácilerapidamenterepararasavariasrecebidas.

Duranteaestadaemterra,provenientedessademora,D.OrtevafezsentiraD. Roque a falta de disciplina que tinha notado a bordo do brigue. Os doiscomandantes combinaram entre si que era preciso redobrar de vigilância e deseveridade.

HaviaespecialmentedoishomensqueD.Ortevanãodevialargardevista:otenenteMartinezeogajeiroVenâncio.

O tenente Martinez já tinha estado preso por diferentes vezes, emconsequência dos seus conluios celebrados com a marinhagem no castelo deproa.Duranteosdiasdecastigoquelheimpuseraocomandante,foraoguarda-

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marinha Pablo quem o substituíra nas suas obrigações de bordo. Quanto aogajeiroVenâncio,doistraçosbastavamparalhedefinirasqualidades:carátervilerepugnante,capazdepraticartodaacastadeinfâmiaspelamiradointeresse.Quem não deixava de o vigiar constantemente era o contramestre Miguel,homemdebemàsdireitas,emcujaprobidadeocomandantedepositavainteiraconfiança.

O guarda-marinha Pablo era um moço de sentimentos elevados, leal ecorajoso,umdessesmoçosaquemagenerosidadeinspiragrandesrasgos.Órfãodesdecriança,deviatudooqueeraaocomandanteD.Orteva.Peloseubenfeitor,seriaatécapazdeselançaraofogo.Levadopeloardordaidadeepelosimpulsosdocoração,nuncasedemoravaaconversarcomocontramestreMiguelquenãopusessebememrelevoograndeamordefilhoquesentiaporD.Orteva.Nessasconversas, o honradoMiguel apertava sempre comovido as mãos do guarda-marinha,porquesabiacompreenderoqueeletãoentusiasticamentelhenarrava.

O comandanteD.Orteva podia, pois, descansar deste lado: tinha ali doiscorações verdadeiramente dedicados, com os quais devia contar para todos oslances.Mas de que serviam três homens sós contra a quebra de disciplina deuma tripulação inteira? Quanto mais eles se empenhavam por abafar estaspronunciadas tendências de discórdia, mais o tenente Martinez, o gajeiroVenâncioeoutrosmarinheirosseenvolviamnasendatortuosadarebelião.

Navésperadeanaueobriguesefazeremdevela,achavam-sereunidosemGuajan, numa taberna de sórdido aspecto, o tenente Martinez, algunscontramestreseunsvintemarinheirospertencentesaosdoisnavios.

— Camaradas — dizia Martinez —, por efeito das avarias que tãooportunamentepreparamos,tiveramosnossosnaviosdearribaraestailha.Foidevidoaissoqueeupudeviragoraaquifalar-lhesemsegredo.

—Bravo!—exclamaramtodosaumavoz.

— Fale, fale, meu tenente, e deixe-nos ver qual é o plano — disseramalgunsdosmarinheiros.

— O meu plano é este — respondeu Martinez. — Logo que estejamossenhoresdosnavios,deveremosseguirrumocomelesparaascostasdoMéxico.BemsabemqueanovaConfederaçãonãotemvasosdeguerra.Porconseguinte,vender-lhe-emos a nau e o brigue por um preço que não há de ser regateado.Destaformanãosótrataremosdepôremdiaosnossossoldosatrasados,como

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tambémrepartiremosemcomumoquesobrardoprodutodavenda.

—Equesinaldeveremosadotar—perguntouogajeiroVenâncio—paraqueabordodosdoisnaviosrebenteomovimentoaomesmotempo?

—OsinalseráumfoguetedeitadodebordodoÁsia—informouMartinez.

—Deveseresseomomentodepôr tudoemação.Nóssomosdezcontraum,eosoficiaisdanauedobriguehãodever-separalisadosantesmesmodesaberemoqueéquesepassaabordo.

— Quando aparecerá o sinal? — perguntou um dos contramestres doConstância.

—Daquiaalgunsdias,quandoestivermosnaalturadailhadeMindanau.

—OpioréseosMexicanosdãoemreceber-nosatiro—objetouogajeiroVenâncio. — Se não me engano, a Confederação publicou um decreto quemandaexercergrandevigilância sobre todososnavios espanhóis.Quemsabe,portanto,seemvezdeouronosvãomandarpelotravésalgumadosedeferroechumbo?

— Sossega, Venâncio. Temos um meio para nos darmos de longe aconhecer.

—Qualé?

—IçaropavilhãodoMéxiconopenoldasnossascaranguejolas.

E,dizendoisto,Martinezpôsdiantedosolhosdaassembleiaumabandeiraverde,brancaeencarnada.

Aapariçãodestadivisadarecenteindependênciamexicanacausoudesúbitoprofundosilêncioentreosmarinheiros.

—Ah! Já temossaudadesdabandeiraespanhola?—exclamouMartinez,em tomdemofa.—Poisbem,que se retiremos indecisos evãovirar pordeavante às ordens de D. Roque ou D. Orteva. Pela nossa, parte não estamosdispostos a obedecer àqueles dois oficiais, e, dê por onde der, havemos detriunfar.

—Éisso!Éisso!—gritavamtodosemcoro.

—Camaradas— continuouMartinez—, os nossos comandantes contamnavegarcomosgeraisparaasilhasdeSunda,masnóslhesmostraremosquese

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pode também, sem o seu concurso, bordejar contra as monções do oceanoPacífico.

Osmarinheirosqueassistiramaesteconciliábulosecretosepararam-seemseguida, e cada um deles, por diversos caminhos, voltou para bordo dos seusnavios.

Nodiaseguinte,aoromperdaalva,oÁsiaeoConstâncialevantavamferro,e, fazendo proa de sudoeste, seguiram ambos com todo o pano para a NovaHolanda.OtenenteMartineztinhareassumidoassuasfunções,mas,segundoasordensdocomandante,eravigiadodeperto.

Entretanto, D. Orteva sentia-se preocupado por sinistros pressentimentos.Elebemviacomoestavaiminenteaquedadamarinhaespanhola,quedaqueainsubordinação ainda tornava mais rápida e visível. Além disso, como bompatriota,nãopodiahabituar-seaossucessivosrevesesqueoprimiamasuapátriaeaquetinhavindoservirderematearevoluçãodosnovosEstadosmexicanos.Muitasvezesconversavaelesobreestesgravesassuntoscomoguarda-marinhaPablo,fazendo-lheverapassadasupremaciaquetinhamtidoemtodososmaresdogloboasarmadasespanholas.

—Meu Pablo— disse-lhe ele um dia—, os nossos marinheiros já nãorespeitam a disciplina. Os indícios da insubordinação acentuam-se,especialmenteabordodestebrigue.Receioaté,diz-meumpressentimento,quemeassassinempormeiodealgumatraição.Setalacontecer,hásdevingar-me,sim?

—Assimojuro,comandante!—asseverouPablo.

—E,vingando-me,vingarás tambémaEspanha.Não te faças inimigodeninguém aqui a bordo; mas lembra-te de que, nestes desgraçados tempos dedecadência, onossoprimeirodever é castigar, quanto for possível, os infamesquevendemeatraiçoamasuapátria.

—Juro-lhe,comandante—replicouoguarda-marinha—,juro-lhequeparacastigar os traidores não haverá sacrifício a que não me exponhavoluntariamente.

Havia três dias que os navios tinham saído dasMarianas. OConstâncianavegava ao largo. O brigue, ligeiro, ágil, gracioso, muito raso e com amastreação inclinada à ré, galgava rapidamente sobre as ondas, que vinham

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cobrir-lhedeespumaassuasoitocaronadasdecalibreseis.

— Doze milhas, tenente — disse uma tarde o guarda-marinha Pablo aMartinez.—Secontinuarmosaandarassimcomventotãolargo,atravessianãoserádemorada.

—Deusoqueira—respondeuMartinez.—Jáétempodevermosumfimàsnossasdesgraças.

OgajeiroVenâncioachava-seaomesmotempojuntodotombadilhoepôdeouviraspalavrasdotenente.

—Nãotardaqueavistemosterrapelaproa—afirmouentãoMartinezemvozalta.

— A ilha de Mindanau — respondeu o guarda-marinha. — Estamosefetivamenteacentoequarentagrausdelatitudeoesteeoitodelatitudenorte,e,semenãoengano,estailhafica...

—Acentoequarentagraus,trintaenoveminutosdelongitudeesetegrausdelatitude—replicouprontamenteMartinez.

Venâncio ergueu a cabeça, e, depois de ter feito a Martinez um sinalimperceptível,encaminhou-separaocastelodeproa.

— Não lhe pertence o quarto da meia-noite, senhor guarda-marinha?—perguntouMartinez.

—Pertence—respondeuPablo.

—Sãoseishorasdatarde,nãodevoestarademorá-lo.

Pabloafastou-se.

Martinez ficou só no tombadilho e lançou os olhos sobre o Ásia, quenavegava a sotavento do brigue. A tarde estava magnífica e pressagiava umadessasesplêndidasnoitesquetãoserenaseaprazíveissãonostrópicos.

O tenente procurou ver quem estava de quarto. Era o gajeiroVenâncio ealgunsdosmarinheirosquetinhamassistidonailhaGuajanàentrevista.

Martinezaproximou-senummovimentorápidodohomemdoleme.Disse-lheduaspalavrasaoouvidoeretirou-se.

Contudo,ter-se-ianotadoque,depoisdaquelarecomendaçãoemvozbaixa,

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acanadolemesevirouumpoucomaisparabarlavento,deformaqueobriguenãotardouaaproximar-segradualmentedanau.

Contra os hábitos de bordo, Martinez passeava a sotavento, a fim deobservarmelhor osmovimentos daÁsia. E, sobressaltado e nervoso, apertavaconvulsamentenasmãosumporta-voz.

Derepentesentiu-seumadetonaçãoabordodanau.AestesinalMartinezsubiuaodegraudocataventoegritoucomvozenérgica:

—Todaagenteacimadoconvés!Carregapapa-figos!

Aomesmotempo,D.Orteva,seguidodosseusoficiais,saiudotombadilhoe,dirigindo-separaMartinez,perguntou-lhe:

—Quequerdizerestamanobra?

Martinez,semlheresponder,saltoudodegraudocata-vento,ecorreuparaocastelodeproa.

—Lemede ló!—mandouele.—Aosbraçosdeproa,abarlavento!Alabraços!Folgaaescotaàbujarrona!

Logoemseguida,partiramdoÁsianovasdetonações.

Atripulaçãoobedeceuàsordensdotenente,eobrigue,vindorapidamenteparaalinhadovento,parouderepenteapanejarcomasuagávea.

D. Orteva, voltando-se então para os poucos homens que se lhe tinhamagrupadoemtorno,exclamou:

—Sigam-metodos!

E,avançandoparaMartinez,acrescentou:

—Prendam-meesseoficial.

—Morraocomandante!—exclamouMartinez.

Pablo e outros dois oficiais desembainharam as espadas e puxaram daspistolas.Algunsmarinheiros, como contramestreMiguel à frente, puseram-sedoseulado;osrevoltosos,porém,desarmaram-nosimediatamente,apoderando-sedetodoseles.

Ossoldadosdemarinhaequase todaa tripulaçãoestenderam-seà larguradonavio e caminharamcontra os oficiais.Estes e os poucosmarinheiros fiéis

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queaindaosacompanhavam,encostadosdeencontroaotombadilho,sótinhamumpartidoaseguir:eraprecipitarem-sesobreosrevoltosos.

D.OrtevaapontouocanodasuapistolacontraMartinez.

Aomesmotempo,subiuaoarumfoguetedebordodaÁsia.

—Vencemos!—exclamouMartinez.

AbaladeD.Orteva,errandooalvo,foiperder-senoespaço.

OcomandantecresceuimpetuosamentesobreMartinez,mas,vencidopelonúmero e ferido gravemente, não tardou que se visse em poder dos rebeldes.Algunsinstantesdepoistodososoficiaisestavampresostambém.

Nasenxárciasdobrigue içaram-seentãoalguns faróis em respostaaosdanau.ArevoltahaviaigualmentetriunfadoabordodoÁsia.

O tenente Martinez estava senhor do Constância, e os seus prisioneirosforam lançados em monte para a antecâmara do comandante. Os instintosferozesdatripulaçãoacabavam,porém,desedespertaremvistadosangue.Nãolhesbastavatervencido;era-lhesnecessáriotambémmatar.

— Matemo-los! — gritavam brutalmente os mais sanguinários dosamotinados.—Morramosoficiais!Umhomemsódeixadeserperigosoquandoestáverdadeiramentemorto.

OtenenteMartinez,àfrentedealgunsdestesmiseráveis,dirigiu-separaaantecâmaradocomandante;oresto,porém,datripulaçãoopôs-seasemelhantebarbaridade,eosoficiaistiveramassimasvidassalvas.

— Conduzam-me à tolda o comandante — ordenou Martinezimperiosamente.Aordemfoilogocumprida.

—Orteva—acrescentouMartinez—,soueuagoraquecomandoestesdoisnavios.D.Roquetambém,comotu,émeuprisioneiro.Amanhãdeitá-los-emosaambos numa costa deserta, e seguiremos depois para as águas do México.Chegadosali,osdoisnaviosserãovendidosaoGovernodanovaRepública.

—Traidor!—respondeuD.Orteva,emtomdedesprezo.

— Amura papa-figos e braceia à molina! Amarrem-me este homem notombadilho.EapontavaparaD.Orteva.Assimsefez.

—Osoutrosparaoporão!Prontoavirarpordeavante!Meteolemedeló!

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Vivo!

Amanobraexecutou-secomrapidez.

OcomandanteD.Ortevaachou-sedesdeentãoa sotaventodobrigue,umpoucoescondidopelavela ré.Daqueleponto,porém,ainda seouviachamaraMartinez«infame»e«traidor».

Martinez,foradesi,correudemachadoempunhoaotombadilho.Evitaramque ele se aproximasse do comandante,mas, com um golpe vigoroso, aquelemau homem cortou as escotas da vela ré. A retranca, precipitadaimpetuosamentepelovento,foibaternacabeçadeD.Orteva,esmagando-lheocrânio.

Sentiu-seabordodobrigueumaexclamaçãodehorror.

—Morto por acidente— disseMartinez cinicamente.—Deitem aomaressecadáver.

Eassuasordensforam,comoatéali,postasemprática.

Osnavios,depoisdestacena,continuaramoseurumo,dirigindo-seatodoopanoparaasplagasmexicanas.

Nodiaseguinte,avistou-seumailhotapelotravés.Arriaram-seosescaleresdoÁsiaedoConstância,etodososoficiais,àexceçãodoguarda-marinhaPabloedocontramestreMiguel,que tinhampactuadocomarevolta, foramlançadossobreaquelacostadeserta.Felizmenteparaeles,algunsdiasdepoispassouporaliumbaleeiroinglês,queoslevouparaManila.

PorqueseriaquePabloeMiguelsetinhampassadoparaoladodotenenteMartinez?Esperemospelosacontecimentos,afimdeosjulgar.

Algumas semanas depois, os dois navios largaram âncora na baía deMonterey, ao norte da Baixa Califórnia. Martinez fez saber ao governadormilitarquaiseramassuasintenções.OfereciaaoMéxico,quenãopossuíavasosdeguerra,osdoisnaviosespanhóiscomassuasmuniçõesearmamentos,pondoosrespectivostripulantesàdisposiçãodanovaRepública.Emrecompensa,estadeveria pagar-lhes integralmente todos os vencimentos em dívida desde a suasaídadeEspanha.

Aestaspropostas,respondeuogovernadorquenãotinhapoderesbastantesparatratar.Lembrou,porém,aMartinezquesedirigisseàcapitaldaRepública,

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ondemelhorsepoderiadarsoluçãoaoseunegócio.Otenenteseguiuoconselho,e,depoisdeterconcedidoummêsàorgiaeaosprazeres,deixouaÁsiaancoradaemMonterei,efez-sedenovoaolargonoConstância.Pablo,MigueleogajeiroVenâncioacompanharam-notambém,eobrigue,navegandocombomvento,fezforçadavelaparachegaraoportodeAcapulcoomaisdepressapossível.

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II

DeAcapulcoaCigualan

QuatroportosmarítimoscontaoMéxicosobreacostadooceanoPacífico:S.Brás,Zacatula,TehuantepeceAcapulco.Detodoseleséoúltimoqueofereceaos naviosmaior número de vantagens.A cidade, insalubre emal construída,tem,contudo,umabaíavastaesegura,ondecemnauspodemestaràvontade.Rochedos elevados abrigamde todos os lados as embarcações, formandoumaenseadadeáguas tãoserenasqueumestrangeiro,aochegaralipor terra, julgaachar-se em frente de um lago a que um cinturão de montanhas serve degrandiosamoldura.

A cidade de Acapulco era nesta época protegida por três bastiões, que aflanqueavamdadireita,eaentradadoportodefendidaporumabateriadesetepeças.Emcasodenecessidadeestabateriacruzavaosseusfogosemânguloretocom os do forte S. Diego, cujas trinta peças dominavam a enseada inteira epodiammeterapiquetodoequalquernavioquetentasseentraràforça.

Acidadenãotinha,pois,motivospararecearsurpresasporpartedomar.

Contudo, passados trêsmeses depois dos acontecimentos acimadescritos,achou-seelaumdiaacometidadegrandepânico.Équeacabavaumnaviodeseravistado ao largo. Os habitantes de Acapulco, extremamente inquietos, nãosabiamaqueatribuiroaparecimentodesemelhantebarco.AnovaConfederaçãotemiaainda,nãosemmotivo,queaEspanhatornasseaimpor-lheoseudomínio.ApesardostratadosdecomérciocelebradoscomaGrã-Bretanha,esebemqueoencarregado de negócios de Londres já se achasse no México e tivessereconhecido aRepública, o novoGoverno, contudo, não tinha um só vaso deguerraquepudessedefenderascostasmexicanas.

Donde quer que viesse aquele navio, devia ser seu comandante algummarinheiroaudaz,porque,desdeoequinóciodooutonoatéaprimaveranãoseatravessamestesmaressemterdeselutarseriamentecomosventosfortíssimosque neles reinam. Os moradores da cidade, receosos e sobressaltados,preparavam-sejápararepelirqualqueragressãoquandoonaviotãotemidoiçounacaranguejaabandeiradaindependênciamexicana.

A meia distância de um tiro de canhão, antes de chegar ao porto, oConstância, cujo nome se lia distintamente no painel da popa, fundeou de

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repente, ferrandoopano sobre as vergas e arriandoumescaler aomar.Poucodepoisentravaoescalernaenseada.

OtenenteMartinez,tãologodesembarcou,dirigiu-seàcasadogovernador,pondo-oaocorrentedascircunstânciasqueo tinhamali levado.Ogovernadoraplaudiuaresolução,quelhecomunicouMartinez,deircombinarnacapitaldaRepúblicacomoseupresidente,ogeneralGuadalupeVitória,qualopreçoporque deveriam ser vendidos os dois navios, a nauÁsia e o brigueConstância.Assimquecorreunacidadeestanotícia,converteram-seemjúbilososreceiosdealgumas horas atrás. A população inteira veio admirar o primeiro navio damarinha mexicana; e, se nesta aquisição reconheceu um ato de indisciplinaespanhola,tambémviunelaumagarantiaseguraparareagireficazmentecontraqualquernovatentativadosseusantigosdominadores.

Martinez voltou a bordo. Algumas horas depois o Constância ancoravadentro do porto, e a sua tripulação era repartida pelas diferentes casas doshabitantesdeAcapulco.

Quando,porém,Martinezfezachamadadasuagente,notouquefaltavamdois homens. O guarda-marinha Pablo e o contramestre Miguel tinhamdesaparecido.

OMéxicodistingue-seentretodasasregiõesdoglobopelagrandeextensãoealturadoplanaltoque lheficaaocentro.Avastíssimacordilheira,conhecidapelo nome genérico dos Andes, atravessa toda a América Meridional, e, aoentrarnoMéxicopelafronteiradaRepúblicadaGuatemala,divide-seemduasramificações, que tornam paralelamente acidentadas ambas as costas doterritório mexicano. As ditas ramificações são apenas as vertentes do imensoplanalto de Anahuac, situado dois mil e quinhentos pés acima dos maresvizinhos. Esta continuação de planuras, muito mais extensas e não menosuniformesqueasdoPeruedaNovaGranada,ocupacercadetrêsquintaspartesdopaís.Acordilheira,quandopenetranaantigaIntendênciadoMéxico,tomaonome de Sierra Madre, e estende-se até ao quinquagésimo sétimo grau delatitudenorte,depoisdeseterfracionadoemtrêsramospelaalturadascidadesdeS.MigueleGuanaxato.

Entre a baía de Acapulco e a cidade doMéxico, distantes uma da outraoitentaléguas,osmovimentosdeterrenosãomenosásperoseosdeclivesmenosescabrososqueentreacapitaleVeraCruz.Oviajante,depoisdeterpercorridoda parte do grandeOceano um solo onde abunda o granito, de que o próprio

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portodeAcapulcoéumespécime,passaanãoencontrarsenãorochasporfíricas,dasquaisaindústriadohomemextraiogipso,obasalto,ocalcárioprimitivo,oestanho,ocobre,oferro,aprataeoouro.AestradadeAcapulcoparaacapitaldoMéxico oferecia precisamente vários pontos de vista e vários sistemas devegetação,aquenãopareciamprestaratençãodoishomensquecavalgavamumjuntodooutro,algunsdiasdepoisdeobrigueConstânciaterancorado.

Eram Martinez e Venâncio os dois viajantes. O gajeiro conheciaperfeitamenteocaminho.TãopoucasvezestinhaelepercorridoasmontanhasdeAnahuac! Por isso, não hesitara em recusar o oferecimento que lhe fizera umíndio para lhe servir de guia. Montados em excelentes cavalos, os doisaventureirosdirigiam-serapidamenteparaacapital.

Duas horas depois de um trote largo, que os não tinha deixado falar, ogajeirodecidiu-seafazeralto.

—A passo,meu tenente—disse ele, esbaforido.—Valha-me aVirgemMaria!Acontinuarmosassimajornada,euantesquiseraestarnumcacatois1emmeioaumatempestadedeventonoroeste.

— Nada de perder tempo! — retorquiu Martinez. — Estás bem certo,Venâncio,dequenãoteenganastenocaminho?

—Qualme enganei!Conheço estas serras comoosmeus dedos, comootenenteconheceo rumodeCádisparaVeraCruz,comadiferençadequenãotemosaquiatemernemastempestadesdogolfo,nemosescolhosdasentradasdeTaspanoudeSantander.Vamos,portanto,apasso.

—Apasso,não,agalope—volveuMartinez,tocandocomasesporasoseucavalo.

—Assusta-me,nãoseiporquê,esterepentinodesaparecimentodoguarda-marinhaedocontramestre.Quereriamelesreservarsóparasiaimportânciadavenda,roubando-nosapartequenospertence?

— Por S. Tiago! Só nos faltava vir isso! — respondeu cinicamente ogajeiro.—Éverdadequequemroubaaladrão…

—Quantosdiasnosfaltamaindaparachegaràcapital?

—Quatrooucinco,meutenente.Éumpasseio!Masvamosapasso.Bemvêqueocaminhovaicomeçandoasubir.

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Sobre a extensa planície notavam-se já, efetivamente, as primeirasondulaçõesdaserra.

—Oscavalosnãoestãoferrados,elembre-seotenentedequeestasrochasdegranitodepressalhesdãocabodoscascos—ponderouogajeiro,abrandandoo passo.—No fim de contas não é bonito dizermal de tais rochas.Devemoslembrar-nos de que nas suas entranhas se oculta o ouro, e, se agora vamospassandoporcimadetãoapetitosometal,nãoéissorazãoparaodesprezarmos.

Os dois viajantes chegavam, entretanto, a uma pequena eminência,ensombradadepalmeirasedenopaiseatapetadadeváriasplantasherbáceas.Aseuspésdilatava-seumavastaplaníciecultivada,oferecendoàvistaaluxuriantevegetaçãodospaísesquentes.Daesquerdacortavaapaisagemumaflorestadeanacárdios. Graciosas pimenteiras balouçavam os seus ramos flexíveis àsaragensabrasadorasdooceanoPacífico.Peloscampos,estendiam-seabundantesplantações de cana-de-açúcar. Os algodoeiros agitavam brandamente os seusespessos penachos pardacentos. Num e noutro ponto viam-se em opulentaconfusãooconvólvulooujalapamedicinal,opimentãovermelho,oscacoeiros,osanileiroseospaussantoedecampeche.Todososprodutosvariadosdafloratropical:dálias,mentzéliaseheliantosiriavamcomassuascoresmúltiplasestaesplêndidaregião,queéamaisfértildaIntendênciadoMéxico.

Aterrapareciaaquianimar-senaverdadesobosraiosardentíssimosqueosol prodigamente lhe dispensava. Mas, também, sob a influência de tãoexcessivo calor, estorciam-se nas vascas da febre-amarela os seus infelizeshabitantes.Eisporqueseencontravamsemmovimentoesemvidaestasermasesilenciosasparagens.

—Queelevaçãoéaquelaquealémseobservaadiantedenós?—perguntouMartinezaoseucompanheiro.

— É o cone da Brea, pouco mais alto que a planície— respondeudesdenhosamenteogajeiro.

Este cone era a primeira saliência de certa importância que apresentava aimensacordilheira.

—Apressemo-nos— tornouMartinez.—Os cavalos quemontamos sãodas haciendas do México Setentrional e, pela prática de correr através dassavanas,estãomuitohabituadosaestasdesigualdadesde terreno.Éaproveitar,portanto,osdeclives,esairquantoantesdestas imensassolidões,queparecem

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feitasdepropósitoparanosentristecerem.

—Estaráotenentecomremorsos?—perguntouVenâncio,encolhendoosombros.

—Remorsos!...Eraoquemefaltava!

Martinez caiu de novo em silêncio absoluto, e os dois cavaleiroscontinuaramatrotar.

Chegaram, assim, ao cone da Brea, caminhando por entre pequenoscarreirosabertosàilhargadosprecipícios,queaindaestavamlongedepoderemcompetir com os insondáveis abismos da SierraMadre. Quando acabaram detransporoconeeseviramnavertentedoladooposto,pararamalgunsmomentosparadaremfolgaaoscavalos.

Ia pôr-se o sol na ocasião em que Martinez e o seu companheiro seapresentavam à entrada da aldeia de Cigualan. Esta aldeia possuía apenasalgumas cabanas habitadas por miseráveis índios, a quem se dá o nome de“mansos”,equevivemdaagricultura.Osindígenassedentáriossãogeralmentemuitopreguiçosos.Basta-lhesparaviverquesedeemaotrabalhodelevantardochãoasimensasriquezasdestesolofecundíssimo.Asuaociosidadedistingue-osnão só dos índios que habitam os planos superiores da cordilheira, ativos pornecessidade,comotambémdosnômadasdoNorte,queseentregamàrapinaequenãotêmhabitaçõesfixas.

Medíocre foi a hospitalidade que os dois espanhóis aqui receberam. Osíndios, vendo neles os seus antigos opressores, não se mostraram muitodispostosaserem-lhesagradáveis.

Além disso, havia pouco tempo que tinham por ali passado outros doisviajantes, levando consigo os poucos gêneros de comida de que a povoaçãodispunha.

Otenenteeogajeironãofizeramcasodestaparticularidade,que,deresto,nadatinhadeextraordinária.MartinezeVenâncioabrigaram-senumaespéciedecasebre,tendoapenaspararefeiçãoumacabeçadecarneiro,queelesprópriosseviram obrigados a cozinhar. Para esse fim abriram no chão uma cova, eenchendo-adecavacosedepedras,paraqueconservassemocalor,deitaram-lhefogo, deixando arder bem as matérias combustíveis. Depois, sobre as cinzasaindaquentes,esemnenhumoutropreparo,depuseramamodestapeçadecarne,

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cobrindo-a hermeticamente com ramos secos e terra solta. Passados algunsminutosestavaprontooassado,quefoilogocomidocomaconsciênciadequemtinha o apetite aguçado por uma longa jornada. Terminado o parco jantar,estenderam-se no chão, armados dos seus competentes punhais. Apesar dadurezadacamaedasincessantesmordedurasdosmosquitos,nãotardoumuitoqueosdoiscompanheirossedeixassemprofundamenteadormecer.

EntretantoMartinez,nomeiodeumsonhoagitado,repetiamuitasvezesosnomesdePabloedeMiguel, cujodesaparecimentonãodeixavade lhecausarsériasinquietações.

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III

DeCigualanaTasco

No dia seguinte, ao romper da manhã, já os cavalos estavam selados eprontosparaa jornada.Osdoiscompanheirosembrenharam-sepeloscaminhosmal trilhados que se abriamdiante deles ao nascente.O dia não se anunciavamal. Se não fossem os modos taciturnos do tenente, contrastando com ajovialidade do gajeiro, todos os teriam tomado por dois dos mais honradosviajantesdestemundo.

Oterrenocadavezeramaisíngreme.Passadosalgunsminutos,apresentou-se à vista dos espanhóis, dilatando-se até aos últimos limites do horizonte, aimensa planura de Chilpanzingo, onde reina omelhor clima doMéxico. Estaregião, que pertence às terras temperadas, acha-se situada a mil e quinhentosmetros acima do nível domar, e nem está sujeita ao calor dos terrenos maisinferioresnemaofriodaszonasmaiselevadas.Deixandoàdireitaesteaprazíveloásis, Martinez e Venâncio chegaram à pequena aldeia de S. Pedro, onderesolveramdescansartrêshoras,seguindodepoisemdireçãoàviladeTuteladelRio.

—Aqueterrairemosficarestanoite?—perguntouMartinez.

—ATasco,meu tenente,que, em relaçãoaestasaldeolas,pode julgar-seumagrandecidade—informouVenâncio.

—Acharemosláalgumapousadadecente?

—Acharemose,alémdapousada,umcéumagníficoeumclimadelicioso.

O sol já não se mostra ali tão quente como à beira-mar. Por isso,continuando sempre a subir, acha-se uma pessoa, sem dar por tal, nos cumesgeladosdoPopocatepelt.

—Quandoéqueteremosdeatravessaraserra,Venâncio?

—Depoisdeamanhãàtarde.Emnóschegandoaosseuspontosmaisaltos,já poderemosver, se bemquede longe, o termodaviagem.ÉumacidadedeouroacapitaldoMéxico!Sabeemqueestoupensando,tenente?

Martineznãorespondeu.

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—Na sorte que terão tido aqueles oficiais da nau e do brigue que nósdeixamosabandonadosnailhota.

Martinezsentiuportodoocorpoumestremecimento.

—Falemosnoutracoisa—propôsMartinezcomavozalterada.

— Cá por mim, inclino-me a supor — continuou Venâncio — que tãoguaposcavalheirosnãopodiamdeixardemorrerdefome.Demaisamais,algunsdeles caíram ao mar quando os desembarcamos, e naquelas alturas há umaespéciede tubarão, a tintorea,quenãocostumapouparas suasvítimas. Justoscéus!SeD.Ortevaressuscitasseagora,eracasoparanosescondermosdentrodealguma baleia! Mas qual! A cabeça do comandante achou-se tão a propósitodebaixodaretranca,easescotaspartiram-setantoatempoque…

— Tu não te calas?— exclamouMartinez. O gajeiro não acabou a suafrase.

— Ora, aqui está o que é ter escrúpulos bem cabidos!— disse consigomesmoVenâncio.—Parece-mequeàvoltadacapital—acrescentoueleemvozalta— dou em fixar aminha residência neste admirável país. Por aqui só sebordeja entre camposde bananas e ananases, e ou sãode ourooude prata osescolhosemquesetoca.

—Foiparaissoqueteassociasteàrevolta?—perguntouMartinez.

—Poisentão!Arevoltaparamimnãopassoudeumaquestãodedinheiro.

—Dinheiro!—murmurouMartinezemtomdelástima.

—Eparaotenenteoquefoiela?—retorquiuVenâncio.

—Paramim foi uma questão de postos.O subalterno queria suplantar ocomandante.

—Ambiçãodegalões!—balbuciouVenâncioemtomdedesprezo.

Emborafossemdiferentesosmotivosaqueobedeciam,estesdoishomenseramdignosumdooutro.

—Espera!—disseMartinez,parandosubitamentecomocavalo.

—Oqueéqueestáadiante?

Venânciolevantou-sesobreosestribos.

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—Nãovejonada—respondeu.

—Vieu!Videsaparecerumhomematodaapressa—replicouMartinez.

—Issofoiimaginação.

—Afirmo-tequevi!—insistiuotenentecomimpaciência.

—Nessecaso,omelhoréirdesenganar-se.

EVenânciocontinuouatrotar.

Martinez avançou sozinho para um bosque de mangueiras, cujos ramos,apenastocamemterra,criamlogoraízes,formandonovasárvores.

Otenenteapeou-se.Eracompletaasolidão.

Derepente,viuagitar-senosoloumalinhaemespiral.Acercou-se.Eraumaserpente de pequena envergadura, com a cabeça esmagada debaixo de umpedaço de rocha e com a extremidade do corpo ainda a estorcer-se, como seestivessegalvanizada.

—Aquiestevealguém!—exclamouotenente.

Martinez,supersticioso,ealémdissocomaconsciênciaaacusá-lodocrimecometido,pôs-seaolharcomterrorparatodososlados.

—Quemseria?Quemseria?—vociferavaeleaaltosberros.

— Então, que temos?— disse Venâncio, que voltara atrás, atraído pelasexclamaçõesdocompanheiro.

—Nãoénada—respondeuMartinez.—Vamosparadiante.

Osviajantes ladearamasmargensda ribeiradeMexala, pequenoafluentedorioBalsas.Afumaçadealgumascabanasdenunciou-se-lhesdentroempoucoapresençadosindígenasenãotardouqueseavistasseaofundoaviladeTuteladei Rio. Como, porém, os viajantes estavam com o desejo de chegar a Tascoantesdanoite,apenasaquisedemoraramalgunsmomentos.

O caminho cada vez se tornava mais escarpado. Os cavalos já nãoavançavamsenãoapasso.Dosladosdaserraviamsuceder-seosolivais.Tantonoterrenocomonatemperaturaenavegetaçãoeramnotáveisasdiferençasquecomeçavamasentir-se.

A noite ia aproximando-se. Martinez seguia atrás de Venâncio. Este só

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muito a custo lograva orientar-se no meio daquelas sombras, procurando ostrilhosmais acessíveis e praguejando ora contra os troncos dispersos no chão,que lhe faziam tropeçar o cavalo, ora contra a ramada das árvores, que lheaçoitavaorosto,equaselheapagavaobelocharutoqueiafumando.

O tenente seguia-o abstratamente. Parecia que um vago remorso seapoderarapoucoapoucodoseuespírito,deixando-ocomoqueinconscientedoquesepassavaemtornodele.

Anoitecaírade todo.Venâncio incitaraoscavalos,queatravessaramsempararasaldeiasdeContepecedeIguala.AlgunsmomentosdepoischegavamosdoisviajantesaTasco,comodesejavam.

Venâncio tinha dito a verdade. Tasco era uma grande cidade comparadacomasmesquinhaspovoaçõesque lheficavamatrás.Nasuamelhor ruahaviauma pousada. Depois de entregarem os cavalos a ummoço de cavalariça, osviajantesentraramparaumacasadejantar,ondeamesaestavaposta.

VenâncioeMartinezsentaram-seumdefrontedooutro,ederamcomeçoaumarefeiçãoqueteriasidosuculentaparaqualquerpaladarindígena,masquesóafomepoderiatornaradmissívelaumpaladareuropeu.Eramquartosdegalinhacommolho de pimentão verde, uma travessa de arroz adubado com açafrão epimentãovermelho,algumasavesrecheadasdealhos,passas,avelãseazeitonas,grãos, beldroegas e doce de abóbora, tudo isto acompanhado de tortillas,torradas feitas de pão de milho. À falta de melhores manjares satisfazia-se oapetite.

Em seguida, Martinez e Venâncio, cansados da jornada, deixaram-seadormecer,parasóacordaremnooutrodia,jámuitodepoisdeosolternascido.

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IV

DeTascoaCuernavaca

OprimeiroqueacordoufoiMartinez.

—Depé,Venâncio,depé!

Ogajeiroestendeuosbraços,espreguiçando-se.

—Quecaminhodevemosnóstomar?—perguntouMartinez.

—Conheçodois,meutenente.

—Quaissão?

—UmquepassaporZacualican,TenancingoeToluca;excelentedeTolucapordiante,emconsequênciadejálheficarparatrásaSierraMadre.

— E o outro? — O outro afasta-se um pouco para leste, mas emcompensaçãocorrejuntodasbelasmontanhasdoPopocatepeltedoIcctacihualt.Éomaisseguroporseromenosfrequentado.Podeconsiderar-seumpasseiodequinzeléguasdeencosta.

—Poisvamosporesse,massemdemora.Ondedoemiremosestanoite?

— Em Cuernavaca, se pudermos vencer as nossas doze milhas —respondeuogajeiro.

Osdoiscompanheirosdirigiram-seàcavalariça,mandaramselaroscavalos,e encheram asmochillas, espécie de alforjes, que fazem parte dos arreios, decarnessecas,romãsepãodemilho,porquenasserrasnãoseencontrariamcasasdecomida.Pagaadespesadasuahospedagem,puseram-seacavaloetomaramsobreadireita.

Os viajantes iam atravessando justamente os lugares onde começava aaparecer o carvalho, árvore de bom agouro, que serve como de limite àsemanaçõesinsalubresdasplanurasinferiores.Nestasregiões,amilequinhentosmetros acima do nível do mar, encontravam-se confundidas com a vegetaçãoindígenaasproduçõesimportadasdeEspanha,desdeaépocadaconquista.Pelosférteis oásis, onde se dão todos os cereais da Europa, estendiam-se agora asabundantes searas. As árvores daÁsia e da França abraçavam-se nas laçariasformadaspelasuaespessaramagem.AsfloresdoOrientematizavamoscampos,

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convertidos num tapete de variadas cores, onde se distinguem as violetas, oscravos,averbenaeasboninasdaszonastemperadas.Algunsarbustosresinososacidentavamnumenoutropontoapaisagem,eosaresperfumavam-secomossuaves aromas da baunilha, que se abrigava à sombra dos amíris e dosliquendâmbares. Os dois aventureiros sentiam-se bem nesta agradáveltemperatura de vinte a vinte e dois graus, comum às zonas de Jalapa e deChilpanzingo,conhecidaspelonomedeterrastemperadas.

No entanto, Martinez e seu companheiro elevavam-se cada vez mais noplanaltodeAnahuac,transpondoasimensasbarreirasqueformamaplaníciedoMéxico.

—Cáestá—diziaVenâncio—aprimeiradastrêscorrentesquetemosdeatravessar.

Efetivamente, adiante dos dois espanhóis destacava-se uma estreita eprofundaribeira.

— A última vez que por aqui passei, não tinha ela tanta água — disseVenâncio.—Siga-me,tenente.

Ambossepuseramadescerporumasuaveladeiraabertanaprópriarocha.Poucosmomentosdepois,VenâncioeMartinezchegavamaumvaufacílimodetranspor.

—Umademenosjánósmarcamos—afirmouogajeiro.

—Asoutrascorrentesserãovadeáveiscomoesta?—perguntouotenente.

— São — respondeu Venâncio. — Quando a estação das chuvas asengrossa,vãotodaselasprecipitar-senaribeiradeIxtolucca,porondehavemosdepassaremchegandoàsgrandesmontanhas.

—Enãohaveráperigoematravessarestassolidões?

—Nenhum,anãoseropunhaldosmexicanos.

— É verdade — respondeu Martinez. — Estes índios das terras altasafeiçoam-seaopunhalportradição.

—Equedepalavrasqueeles têmparadesignara suaarmapredileta!—respondeu a rir o gajeiro.— Chamam-lhe estoque, verdugo, puna, cuchillo ebeldoque! São tão prontos em manejá-lo como em lhe dar diferentes nomes.Tantomelhor!Aomenosescusadeestaragentecommedodasarmasdefogo.

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Nãohánadamaisvexatórioqueabala invisíveldeumacarabina.Sempre fazzanganãosesaberqueméopatifequenosmandaparaooutromundo.

—Quaissãoosíndiosquehabitamestasmontanhas?

— Podem-se lá contar as raças que se multiplicam neste Eldorado doMéxico!Oravejaotenenteosdiversoscruzamentosquejámedeiaotrabalhodeestudar,comofimtalvezdecontrairláparadiantealgummatrimôniovantajoso.Temosomestiço,filhodeespanholedeíndia;ocastiço,filhodemulhermestiçae de espanhol; o mulato, filho de espanhola e de negro; o monisco, filho demulataedeespanhol;oalbino,filhodemoniscaedeespanhol;otornatrás,filhodealbinoedeespanhola;otintinclaro,filhodetornatrásedeespanhola;olobo,filhodeíndiaedenegro;ocaribujo,filhodeíndiaedelobo;alémdobarsino,dogrifo,doalbarazado,dochaniçoedeváriosoutrosqueseriaociosoreferir.

Dizia a verdade o gajeiro: a pureza das raças,muito problemática nestespaíses, torna incertos e difíceis os estudos antropológicos. Mas, apesar daseruditas conversações de Venâncio, o tenente caíra de novo na sua primitivataciturnidade. Chegava até a afastar-se do companheiro, cuja presença pareciaincomodá-lo.Nãotardouqueseencontrassemasoutrasduascorrentes.

Martinez, porém, ficou descoroçoado vendo-as completamente secas,porqueesperavadaralidebeberaoseucavalo.

— Ora, aqui estamos nós em calmaria podre. Sem água e com poucosvíveres — disse Venâncio. — Acompanhe-me, tenente. Busquemos entre oscarvalhos e os ulmeiros uma árvore chamada ahuehuelt, a cuja sombra seencontrasemprealgummanancial.Aahuehueltécomooramodelouroàportadataberna.Nãoévinhoqueelaoferece,éágua!Mas,sabidasascontas,aáguaéovinhododeserto.

Os viajantes ladearam o caminho e, penetrando no seio de um carvalhal,derambemdepressa coma árvore emquestão.Mas aprometidanascentenãotinhaágua!Via-seatéqueestavaestancadahápoucotempo.

—Éestranho!—observouogajeiro.

—Quehaveráemtudoisto?—perguntouMartinez,tornando-sepálido.—Vamosparadiante,Venâncio,vamosparadiante!

Os viajantes não proferiram uma só palavra até chegarem aCacahuimilchan,ondealiviaramumpoucoosalforjes.Depois,prosseguiramna

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jornada,peloladodeleste,comdestinoaCuernavaca.

O terreno começava a ser extremamente escarpado e já fazia lembrar ospicosformidáveis,emcujasextremidadesbasálticaspairamasnuvensquevêmdo grande Oceano. Ao dobrar de um enorme rochedo, apareceu à vista dosviajantes o forte de Cochicalcho, cuja esplanada mede nove mil metrosquadrados.

O tenente e o gajeiro dirigiram-se para o imenso cone que forma a basedeste forte, do tempo dos antigos mexicanos, hoje coroado de rochedososcilantesederuínasquaseadesabar.

Depoisdese teremapeado,VenâncioeMartinezprenderamoscavalosaotroncodeumulmeiro,e,comofimdeestudaremadireçãodocaminho,subiramaoaltodocone,auxiliadospelasescabrosidadesdoterreno.

A tarde iadeclinando.Apouca luzqueainda lutavacontraassombrasdanoite já revestia os objetos de contornos indecisos, dando-lhes uma aparênciafantástica.O forte derrocado dava ideias de um búfalo colossal, que estivesseestendido com a cabeça em perfeita imobilidade. Martinez, inquieto edesconfiado,supunhadistinguircomoquevultosagitando-sevagamentesobreocorpodomonstruosoanimal.Calou-se,porém,paranãoprovocaraszombariasdocínicoVenâncio.Este avançava lentamentepelos trilhosda serra, equandosucediaficarescondidoatrásdealgumimensorochedo,punha-seagritarporS.Tiago e pela Virgem, a fim de guiar com o som da voz o seu companheirodemorado.

De repente, levantou-se no ar uma enorme ave noturna, batendovagarosamenteasasasesoltandoumgritorouquenho.

Martinezestacouassustado.

Por cima dele, a uns trinta pés de altura, sentiu-se oscilar pela base umenormepedaçoderocha,que,desprendendo-sesubitamentedamontanha,sefoidespenhar no abismo com a velocidade do raio e o fragor do trovão. Na suaquedaamassadepedratinhatrituradotudoquelheficavaaoalcance.

—S.Tiagoeavante!—gritouogajeiro.

—Olá,tenente!

—Ondeestás,Venâncio?

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—Poraqui,poraqui.

Osdoisespanhóistornaramajuntar-se.

—Queformidávelpenedo!—disseogajeiro.

Martinez seguiu Venâncio sem dizer uma palavra, e dentro em poucochegavamambosdenovoàplanícieinferior.

Apassagemdopenedodenunciava-seporumsulcoprofundíssimo.

— Esta é melhor! — exclamou Venâncio. — Foram-se os cavalos!Morreriamelesesmagados?

—SantoDeus!—balbuciouMartinez.

A árvore, onde estavam presos os dois animais, tinha desaparecido comeles.

— Olhem o que nos esperava, se não estivéssemos a pé! — observoufilosoficamenteogajeiro.

Martinezsentiu-sedominadoporuminexplicávelsentimentodeterror.

“Aserpente!Omanancial!Openedo!”,diziaeleasipróprio.

Derepente,precipitou-sesobreVenânciocomoolhardesvairado.

—Paraqueestása falar-medocomandanteD.Orteva?—exclamouele,contraindooslábiosnumacessodecólerafebril.

Venânciorecuou.

— Vamos, tenente!... Nada de perder a cabeça! Digamos um derradeiroadeusaosnossoscavalos,eacaminho.Quandoavelhamontanhaselembradesacudirajuba,nãoélámuitoacertadodemorar-seagentenela.

Os dois aventureiros puseram-se a andar sem dizer uma palavra. Era jámuitíssimo tarde quando chegaram aCuernavaca.À falta de cavalos, foi a péque deste ponto se dirigiram na manhã seguinte para a montanha doPopocatepelt.

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V

DeCuernavacaaPopocatepelt

A temperatura tornara-se fria e a vegetação desaparecera de todo. Estasinacessíveis alturas pertencem às zonas glaciais chamadas “terras frias”. Ospinheiros das regiões nebulosas começavam já a mostrar os seus recortadosperfis por entre os raros carvalhos que ainda se avistavam. As nascentes iamsensivelmente desaparecendo nestes terrenos, compostos em grande parte detraquitesfendidasedeamidaloidesporosas.

HaviaseishorasqueMartinezeVenânciosearrastavamacusto,rasgandoas mãos nas arestas agudas dos rochedos e os pés nos ásperos seixos docaminho. A fadiga obrigou-os pouco depois a descansar. Venâncio tirou dosalforjesalgunspedaçosdecarne.

“Maldita ideia que eu tive em não ir por onde todos vão!”, disse eleconsigo.

EmAracopistla, aldeia completamente perdida nasmontanhas, esperavamambos encontrar qualquermeio de transporte para concluírem a viagem.Masquedecepçãonão foi adeles aoveremaqui amesma faltadehospitalidade, amesmafaltaderecursosquetinhamnotadoemCuernavaca!

Contudo,eraprecisoavançar!Aomesmotempodestacava-senohorizonteoimensoconedePopocatepelt,dealturatalqueavistaseperdiaentreasnuvensquandotentavadescortinar-lheoslimites.Asubidaeraassombrosamenteárida.Porentreasasperezasdoterrenosurgiamosabismosinsondáveis.Oscarreirosvertiginosospareciamvacilarsobospésdosviajantes.Osdoisespanhóis,parase orientarem, tiveramde escalar grande parte destamontanha de cincomil equatrocentosmetrosdealtura, aqueos índioschamam“RochaFumegante”, eque ainda apresentava vestígios de recentes explosões vulcânicas.Dos flancosdeste colosso rompiam aos milhares as fendas profundíssimas. O gajeiro nãoatinava com o verdadeiro caminho neste dédalo de trilhos, que novoscataclismos,depoisdasuaúltimaviagem,haviamalteradoemparte.Era,pois,amedoqueeleprosseguia,parandorepetidasvezes,afimdeaplicaroouvidoaosdiferentes murmúrios que vagamente se cruzavam por entre as voragens doenormecone.

Osoldeclinavagradualmente.Aatmosfera iaescurecendocadavezmais,

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em consequência das pesadas nuvens que toldavamo céu.Os ares prometiamchuvaetrovoada,fenômenosvulgaríssimosnestasregiõesemqueaelevaçãodoterrenoaceleraaevaporaçãodaágua.Osrochedos,nusdevegetação,mostravamosseusagudíssimoscumescompletamentecoroadosdeneve.

—Jánãopossomais!—exclamouVenâncio,deixando-secairofegantedecansaço.

—Nadadeparar!—respondeu-lheMartinezcomfebrilimpaciência.

PelasprofundidadesdoPopocatepeltsentiu-seecoaroribombodotrovão.

— Que um raio me atravesse já se porventura sei onde estou!— disseVenâncio.

— Levanta-te e vamos para diante — intimou Martinez, rudemente. EobrigouVenâncioapôr-seacaminho.

—EnãohaverumaalmadeDeusquenossirvadeguia!—murmurouogajeiro,queiatropeçandoacadapasso.

—Tantomelhor!—disseMartinez.

—Maséque todososanos sepraticamparacimademilassassinatosnacapitaldoMéxico,nãofalandodosseusarredores,quenãosãonadaseguros!

—Tantomelhor!—repetiuMartinez.

Sobre as rochas, alumiadas pelos clarões do céu, principiavam a cair unsapósoutrosgrossospingosdeágua.

—Oqueéquenósavistaremosquandotivermosatravessadoospicosdestamontanha?—perguntouotenente.

—A cidade doMéxico à esquerda e Puebla à direita, se é que se podedistinguir algumacoisa.Omais certo é não se ver nada, porque já estámuitoescuro.Adiantedenóshádelevantar-seamontanhadeIcctacihualt,e,nofimdaencosta,encontraremosobomcaminho.Masleve-meabrecaseeuseicomoláchegar!

—Nãopercamostempo!

Venâncio dizia a verdade. O planalto do México fica encerrado numaenorme cinta de montanhas. É uma vasta planície oval de dezoito léguas decomprimento, doze de largura e sessenta e sete de circunferência, cercada de

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altoscumes,entreosquaisavultamasudoesteoPopocatepelteoIcctacihualt.Vencida a dificuldade de transpor estas altas barreiras, o viajante começa adescer sem custo os declives que o conduzem ao planalto de Anahuac, e,tomando para o norte, acha-se na magnífica estrada que vai ter à cidade doMéxico.Éentãoqueseadmiram,porentreaslongasavenidasdeulmeirosedechoupos, os ciprestes plantados pelos reis da dinastia asteca, e os schinus,semelhantesaoschorõesdoOcidente.Maisparadiante,oscamposcultivadoseosjardinsfloridosostentamosseusprimores,enquantoasmacieiras,asromeirase as cerejeiras respiram à vontade sob este céu, que o ar seco e rarefeito dasgrandeselevaçõesterrestresobrigaaserazul-escuro.

Ostrovõescontinuavamarepercutir-secomextremaviolência.Achuvaeovento, cessando por pequenos intervalos, tornavam mais sonoros os ecos damontanha.

Venâncioiapraguejandoacadapassoquedava.OtenenteMartinez,pálidoesilencioso,lançavasobreoseucompanheiroumolharcheioderancor.Dir-se-iaquelhepesavaapresençadaquelecúmplice,dequemdesejariaver-selivre.

Desúbito,oclarãodeumrelâmpagoinundoudeluzamontanha.Astrevasdissiparam-se,eosdoisaventureirosviram-seàbeiradeumabismo!

MartinezcorreuparaVenâncio,pôs-lheamãosobreoombro,e,depoisdeextintososúltimosrugidosdotrovão,disse-lhe:

—Venâncio!Tenhomedo!

—Medodostrovões?

—Nãoé a fúriados elementosquemeassusta, é a tempestadeque sintodesencadear-sedentrodemimmesmo.

—Pensaaindanocomandante?Oradeixe-sedisso,tenente!...Nãomefaçarir!—respondeuVenâncio,quejánãoria,porqueMartinezestavaolhandoparaelecomosolhosespantados.

Nistoseguiu-senovotrovão,quebrandoosilênciodamontanhacomoseuroucoestampido.

—Cala-te,Venâncio!...Cala-te!—gritouMartinez,quejánãopareciasersenhordesi.

—Ébemescolhidaaocasiãoparamemandarcalar—retorquiuogajeiro.

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—Seotenenteestácommedo,fecheosolhosetapeosouvidos.

—Parece-me—exclamouMartinez—queestouvendoocomandanteD.Ortevacomacabeçaesmagada...além...além...

Ao mesmo tempo ergueu-se a vinte passos do tenente e do gajeiro umasombranegra,quealuzdeumrelâmpagoiluminouporinstantes.

Martinez, pálido, sinistro e com as feições transtornadas, aproximou-se,ameaçador,deVenâncio,depunhalerguido.

—Quefoi?—bradouogajeiro.

Outrorelâmpagocercoudeluzosdoiscúmplices.

—Ai,quemematam!—exclamouVenâncio.

Eocorpodogajeirorolounochão.

Novo Caim, Martinez acabava de apunhalar o companheiro, fugindo nomeiodatempestadecomasuaarmaerguidaaescorreremsangue.

Poucos minutos depois, aproximavam-se dois homens do cadáver deVenâncio.

—Comestejánãoseconta!—disseumparaooutro.

Martinez, com os cabelos soltos ao vento, errava pelas solidões damontanha, correndo como um desesperado. A chuva caía em cima deletorrencialmente.

— Socorro! Socorro!— bradava omalvado, tropeçando sobre as rochasescorregadias.

Derepente,sentiuoestrondoprofundodeumacachoeira.

Martinezparou,aterradoporaquelebarulho.

Era a ribeira de Ixtoluca, que se precipitava a uns quinhentos pés abaixodele.

Algunspassosmaisadiante,porcimadacorrente,haviaumapontefeitadecordas, presa nas extremidades por algumas estacas encravadas na rocha.Estapontebalouçava-secomoumfiosuspensonoespaço.

Martinezagarrou-seàscordas,eassimsefoiarrastandopelapontefora.À

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forçadeenergia,conseguiuchegaràextremidadeoposta.Ali,viuerguer-seumanova sombra. Martinez recuou de joelhos, até meio da ponte, com as mãostrêmulasdepavor.

—Martinez,eusouPablo!—disse-lheumavoz.

—Martinez,eusouMiguel!—acrescentououtravoz.

—Vaismorrer,porquefostetraidor!

—Vaismorrer,porquefosteassassino!

Ouviram-se duas pancadas secas. As estacas que sustentavam a pontecederamaosgolpesdomachado…

Logodepois,soltou-seumgrito,quepareciaumrugido.Martinez,comosbraçosestendidos,foisubitamentedespenhadonoabismo.

A uma légua de distância, o guarda-marinha e o contramestre tornaram ajuntar-se,depoisdeterematravessadoavauaribeiradeIxtoluca.

—VingueiD.Orteva!—dissePablo.

—EeuaEspanha!—acrescentouMiguel.

Assim nasceu a marinha da Confederação mexicana. Os dois navios,entregues por traição, ficaram pertencendo à nova República e constituíram onúcleo da pequena esquadra que tinha de disputarmais tarde aCalifórnia e oTexasàsnausdosEstadosUnidosdaAmérica.

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SOBREOAUTOR

JúlioVerne (JulesGabielVerne) (1828 – 1905), considerado o pai da ficçãocientífica, éumdosescritoresmais lidose traduzidosdahistóriada literatura,tendo antecipado várias conquistas científicas e tecnológicas, a exemplo daviagemàLua.Éautordeobras inesquecíveisnogênero, aexemplode“Vintemil léguassubmarinas”,“ViagemaocentrodaTerra”,“DaTerraàLua”&“Àroda da Lua”, “A volta ao mundo em oitenta dias” e “A ilha misteriosa”. OConto“UmDramadoMéxico”foipublicadooriginalmentena revista “MuséedesFamilles”,ediçãodejulhode1851.

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Notes[←1]Espéciedevelanáutica.