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DISSELKAMP, Annette. 1994. L’Éthi- que Protestante de Max Weber. Paris: Presses Universitaires de France. 217 pp. Emerson Giumbelli Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ A Ética Protestante e o Espírito do Capi- talismo, texto de Max Weber publicado originalmente em 1904, foi e continua sendo uma referência fundamental em se tratando de questões que problema- tizam as relações entre religião e socie- dade. Isso se aplica igualmente a situa- ções tão opostas quanto a constituição histórica das cosmologias que definem a “modernidade” ocidental e o signifi- cado e impacto dos novos grupos pen- tecostais no Brasil. A importância de seu assunto e a repercussão de que go- za – aliadas ao prestígio de seu autor – conferem-lhe, enfim, um lugar certo en- tre os “clássicos” das ciências sociais. Esse texto é o tema do livro de Annette Disselkamp, resultado de sua tese de doutorado, apresentada à Sorbonne e orientada por Raymond Boudon. A au- tora tem uma pretensão crítica, que de- senvolve tanto sobre o argumento ex- posto no texto de Weber e algumas ou- tras partes de sua obra, quanto sobre o modo pelo qual o mesmo texto foi apro- priado por outros autores. E, como ve- remos, a peculiaridade dos resultados a que chega sua análise reside exata- mente na exigência do isolamento en- tre essas duas dimensões. A reconstrução detalhada do argu- mento de Weber na Ética Protestante, embora ocupe a segunda das três partes em que se organiza o livro, adquire, de um ponto de vista lógico, precedência sobre todo o resto. Essa reconstrução as- sume uma forma basicamente descriti- va, qualificada, no entanto, pelo esforço em destacar os pontos e as articulações conceituais que constituem uma “tese” a respeito das relações entre protestan- tismo e capitalismo. Em primeiro lugar, viria a distinção entre capitalismo e “es- pírito do capitalismo”: Weber, na Ética Protestante, não estaria preocupado se- não com o segundo, ou seja, com uma mentalidade e um modo de conduta de- terminados, problematizados em suas características essenciais e em sua gê- nese e singularidade históricas. A rela- ção desse “espírito” com o capitalismo enquanto sistema econômico e social teria, nesse texto, permanecido indeter- minada. Em seguida, Weber aponta as respectivas contribuições do luteranis- mo e do calvinismo/puritanismo para a constituição e conformação desse “es- pírito”: enquanto o primeiro, através da associação do Beruf religioso (vocação) às ocupações seculares, teria aberto o caminho para a valorização do trabalho e de seus frutos; o segundo, através da noção de predestinação à salvação, te- ria imprimido ao trabalho (e aos seus ganhos) um sentido de ascese. Se no ca- RESENHAS MANA 3(1):179-205, 1997

Um Grande Cerco de Paz Resenha Scielo

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DISSELKAMP, Annette. 1994. L’Éthi-que Protestante de Max Weber. Paris:Presses Universitaires de France. 217pp.

Emerson GiumbelliDoutorando, PPGAS-MN-UFRJ

A Ética Protestante e o Espírito do Capi-talismo, texto de Max Weber publicadooriginalmente em 1904, foi e continuasendo uma referência fundamental emse tratando de questões que problema-tizam as relações entre religião e socie-dade. Isso se aplica igualmente a situa-ções tão opostas quanto a constituiçãohistórica das cosmologias que definema “modernidade” ocidental e o signifi-cado e impacto dos novos grupos pen-tecostais no Brasil. A importância deseu assunto e a repercussão de que go-za – aliadas ao prestígio de seu autor –conferem-lhe, enfim, um lugar certo en-tre os “clássicos” das ciências sociais.Esse texto é o tema do livro de AnnetteDisselkamp, resultado de sua tese dedoutorado, apresentada à Sorbonne eorientada por Raymond Boudon. A au-tora tem uma pretensão crítica, que de-senvolve tanto sobre o argumento ex-posto no texto de Weber e algumas ou-tras partes de sua obra, quanto sobre omodo pelo qual o mesmo texto foi apro-priado por outros autores. E, como ve-remos, a peculiaridade dos resultados aque chega sua análise reside exata-

mente na exigência do isolamento en-tre essas duas dimensões.

A reconstrução detalhada do argu-mento de Weber na Ética Protestante,embora ocupe a segunda das três partesem que se organiza o livro, adquire, deum ponto de vista lógico, precedênciasobre todo o resto. Essa reconstrução as-sume uma forma basicamente descriti-va, qualificada, no entanto, pelo esforçoem destacar os pontos e as articulaçõesconceituais que constituem uma “tese”a respeito das relações entre protestan-tismo e capitalismo. Em primeiro lugar,viria a distinção entre capitalismo e “es-pírito do capitalismo”: Weber, na ÉticaProtestante, não estaria preocupado se-não com o segundo, ou seja, com umamentalidade e um modo de conduta de-terminados, problematizados em suascaracterísticas essenciais e em sua gê-nese e singularidade históricas. A rela-ção desse “espírito” com o capitalismoenquanto sistema econômico e socialteria, nesse texto, permanecido indeter-minada. Em seguida, Weber aponta asrespectivas contribuições do luteranis-mo e do calvinismo/puritanismo para aconstituição e conformação desse “es-pírito”: enquanto o primeiro, através daassociação do Beruf religioso (vocação)às ocupações seculares, teria aberto ocaminho para a valorização do trabalhoe de seus frutos; o segundo, através danoção de predestinação à salvação, te-ria imprimido ao trabalho (e aos seusganhos) um sentido de ascese. Se no ca-

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so do luteranismo, as conclusões de We-ber decorrem da análise de textos dou-trinários, já o impacto do calvinismo/puritanismo é pensado sob a forma deuma motivação psicológica. Assim, da-do que a insondabilidade dos desígniosdivinos tornava-se insuportável em umtempo no qual a certeza da salvação eraindispensável, formulou-se, nos meiospuritanos, a idéia de que o sucesso pro-fissional consistia um sinal visível daeleição. Por fim, Disselkamp procuramostrar que Weber postula uma relaçãonecessária entre as disposições produ-zidas por exigências religiosas e o “espí-rito do capitalismo”, na qual as primei-ras ocupam precedência causal sobre oúltimo.

Partindo dessa reconstrução, comseus três pontos fundamentais, é que aautora elaborará uma “tipologia críti-ca” de várias referências bibliográficasque teceram considerações e avaliaçõessobre a Ética Protestante. Trata-se daprimeira parte do livro, na qual Dissel-kamp contempla dezenas de trabalhos,organizando-os de modo a constituiruma espécie de jogo dos erros: váriasformas de mal-entendidos a respeito doargumento efetivo de Weber. Assim, hádiversos autores que pensam estar refu-tando Weber quando mostram que a re-lação entre protestantismo e capitalis-mo não é, de uma perspectiva histórica,constante ou necessária, deixando deperceber a autonomia conferida ao “es-pírito” na Ética Protestante; há os que odefendem em termos teóricos, afirman-do que tal relação é postulada enquan-to afinidade, quando Weber procuravaapontar uma causalidade; e há os que oatacam pela análise do ensinamentomoral protestante explícito, mostrandosua distância da ética capitalista, sematentar para que Weber estava interes-sado nos efeitos psicológicos desses en-sinamentos. A mesma preocupação em

resgatar a especificidade e autenticida-de da Ética Protestante manifesta-sequando Disselkamp procura inserir otexto de Weber entre percepções ante-riores e contemporâneas sobre a rela-ção entre protestantismo e progressoeconômico. Revela-se que esse vínculojá era sustentado por textos do séculoXVII e tornara-se, no século XIX, umdos dogmas da propaganda burguesaprotestante, mas segundo fórmulas dis-tintas daquelas utilizadas por Weber.

A autora, portanto, quando formulaos critérios de sua tipologia, desloca ofoco da mera postulação da existênciade relações entre protestantismo e capi-talismo para o plano bem mais comple-xo dos termos em que se colocam essasrelações e da sua lógica. Essa interes-sante estratégia é, porém, contrabalan-çada por uma perspectiva estreita, quechega a resultados quase sempre nega-tivos expressos na intenção de revelaros “mal-entendidos” sofridos pela teseweberiana na sua apropriação por ou-tros autores. Daí que a tipologia consi-ga cobrir apenas os autores que com-preenderam mal a Ética Protestante,deixando de fora todos os demais. Ou-tra possibilidade a partir do mesmo ma-terial continua sendo a investigação do“Weber” que as apropriações produzi-ram ao longo do tempo, ou, paralela-mente, mas partindo dos mesmos prin-cípios, a elaboração de uma leitura deWeber informada por questões atuais.Disselkamp, ao contrário, optou poruma incursão visando restabelecer oWeber de 1904 no que considera ser aespecificidade de sua “tese”. É a umacrítica dessa “tese”, devidamente de-purada dos “mal-entendidos”, que sededica a terceira e mais extensa partedo livro de Disselkamp.

Um primeiro tipo de crítica à ÉticaProtestante incide sobre a lógica do ar-gumento, apontando certas contradi-

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ções. A principal delas estaria no duplocaráter assumido pela ética puritana, si-multaneamente uma perversão do dog-ma da predestinação e um sinal de dis-tinção expresso no sucesso profissio-nal. Mais detalhadas são as críticas his-tóricas, elaboradas pelo recurso a histo-riadores do protestantismo e pelo exa-me dos escritos de Calvino, de prega-dores puritanos e de livros populares.Elas procuram mostrar que a idéia depredestinação não gerou os efeitos afir-mados por Weber: o desespero em quecaíam muitos fiéis convencidos de suadanação significa que, para eles, a pre-destinação era fielmente aceita; nas pre-gações puritanas, a exortação às “boasobras” nelas aparecia como antídotocontra o relaxamento ético, enquanto acerteza da salvação viria através da fé.Disselkamp considera que Weber tinharazão ao aproximar as virtudes purita-nas da ética burguesa (ambas concor-davam no estímulo ao trabalho lucrati-vo, na condenação da perda de tempo,nas exigências de ordem e disciplina),mas refuta-o em se tratando de Lutero,pois uma análise dos escritos do refor-mador demonstra que nada há de mo-derno nos significados atribuídos à ca-tegoria Beruf.

Há, por fim, as críticas de viés teó-rico e metodológico, repetidamenteanunciadas no livro: a “tese” da ÉticaProtestante, em sua própria formulação,peca ao aceitar a possibilidade de ex-plicação de uma mudança nas atitudeseconômicas pela sua remissão a umacrença religiosa, independentementedas “circunstâncias sociais e econômi-cas efetivas” em que isso ocorra. Ou se-ja, Weber equivoca-se tanto ao distin-guir uma mentalidade de suas condi-ções concretas de existência, quanto aopostular sua relação unívoca com a dou-trina protestante. As alternativas pro-postas por Disselkamp assumem duas

formas distintas. De um lado, compilaautores cujas análises da história doprotestantismo, ainda que divergentes,apontam para a necessidade de incor-porar o “contexto social”. De outro, re-corre a um outro texto do próprio We-ber (As Seitas Protestantes e o Espíritodo Capitalismo), o qual, segundo ela,permite explicar a disseminação doethos burguês pelos anseios de reco-nhecimento social dos indivíduos, aten-didos pela sua adesão às rigorosas sei-tas puritanas.

Vista em seu conjunto, a trajetóriapercorrida por Disselkamp em sua críti-ca a Weber parece inacabada e, em cer-tos aspectos, equivocada. Depois de de-terminar qual seria sua “tese”, depu-rando-a dos “mal-entendidos”, propõeuma avaliação que refaça o argumentoweberiano e, portanto, se inicie poruma análise da história das doutrinasprotestantes. O resultado dessa análiseé negativo: o ethos burguês não se vin-cula necessariamente nem com os efei-tos da idéia de predestinação, nem àdoutrina luterana. Um empreendimen-to que produzisse uma resposta positi-va sobre as relações entre protestantis-mo e capitalismo é substituído pela me-ra exigência de que o “contexto social”ou o “reconhecimento social” sejam le-vados em conta. O problema é que exis-tem muitas formas de se fazer isso e es-sa questão não é enfrentada por Dissel-kamp, nem mesmo na forma de uma sis-tematização, também crítica, das contri-buições dos autores que investem nessalinha. A apresentação de um segundotexto de Weber, ao contrário de resolverquestões, cria mais um problema: comoo mesmo autor pôde formular respostastão distintas (no entender de Dissel-kamp) a respeito de um único tema? Fi-nalmente, a distinção entre suas duascríticas torna-se prejudicial às própriasintenções da autora: se Weber se equi-

vocou quanto a sua “tese”, não é possí-vel que os que “erraram” sobre ele te-nham “acertado” quando se trata dasrelações entre protestantismo e capita-lismo?

Enfim, o livro de Disselkamp cons-titui um recurso valioso para a com-preensão crítica do texto de Weber epara o acompanhamento dos debatesque se seguiram, além de trazer aportesinteressantes sobre a história inicial doprotestantismo. No entanto, nem explo-ra as várias perspectivas aplicáveis aocampo intelectual em que se desenvol-veram a formulação e recepção daque-le texto, nem responde totalmente àsquestões que levanta a propósito da va-lidade dos argumentos weberianos.

GALLOIS, Dominique Tilkin. 1994. Mai-ri Revisitada. A Reintegração da Forta-leza de Macapá na Tradição Oral dosWaiãpi. São Paulo: NHII-USP/FAPESP.92 pp.

Tânia Stolze LimaProfª de Antropologia, ICHF-UFF

Mairi é uma panela de barro gigantes-ca, de fundo pontiagudo e boca viradapara baixo, que os humanos, improvi-sadamente, ergueram para ali se pro-tegerem primeiro do incêndio e depoisdo dilúvio provocados por Ianejar, o(re)criador Waiãpi desse mundo ondevivemos e agimos como ramos inconci-liáveis da humanidade. A Fortaleza deSão José de Macapá foi erguida pelosportugueses em 1688 e reconstruída em1765, à margem do Amazonas. Mairi é,muito provavelmente, a Fortaleza deMacapá. Prova: a narrativa da expe-riência de um finado que esteve presona Fortaleza e entendeu que ali ou Tu-pã ou Ianejar deixou sua pele para ir vi-

ver alhures ao ser morto ou pelos brasi-leiros ou pelos Waiãpi; e que viu, naimagem de Cristo preso à cruz, na pró-pria pele de Tupã, os resíduos do san-gue que serviu de tinta para a escritaprimordial, inventada por Ianejar, recu-sada pelos Waiãpi e apropriada pelosbrasileiros.

Esse é o tema principal dessa cole-tânea comentada de narrativas Waiãpiacerca de sua relação com os brancos.Através de surpreendentes variaçõeshistóricas dos mitos de fundação domundo, criação e dispersão da humani-dade; estratégias de invenção de umsubgrupo Waiãpi extinto para a ele in-corporar um artesão solitário das ruasde Macapá que se diz descendente deum povo aruaque extinto; e inscriçõesmuito acuradas de hábitos culturais dosbrasileiros, observados por mulheresWaiãpi submetidas, no final do séculoXIX, ao serviço doméstico junto a famí-lias brasileiras, a coletânea apresentaprocessos de construção da auto-ima-gem dos Waiãpi e seus esforços de in-terpretação do contato. Esse povo tupi-guarani habita a região do alto cursodos rios Jari e Oiapoque, com uma po-pulação aproximada de mil pessoas,organizadas em pequenas aldeias, tan-to no território brasileiro quanto naGuiana Francesa. O livro trata particu-larmente dos grupos que se encontramno território brasileiro. Suas terras sãocercadas por garimpos, ameaçadas porinvasores, cortadas pela Rodovia Peri-metral Norte, ocupadas por postos daFunai e pela Missão Novas Tribos. Es-ses postos, atuando como focos de atra-ção, impõem um padrão de ocupaçãoterritorial novo: a concentração de umconjunto de grupos locais nas proximi-dades dos mesmos, concentração queatualmente tem sido contrabalançadapor uma política de ocupação temporá-ria das fronteiras a fim de controlar as

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invasões. Os Waiãpi experimentamatualmente o sentimento de que não hámais para onde fugir. Para não falar dosque estão implantados em suas terras,os brancos as cercam, tendo se apode-rado também da casa de argila, e alifundado a cidade de Macapá. Sua his-tória nos últimos três séculos é uma his-tória de migrações, melhor dizendo, defugas. No século XVIII, com a invasãoeuropéia do baixo Xingu, abandonaramseus vizinhos e atravessaram o Amazo-nas. Conhecendo ali a vida em aldea-mentos missionários, finalmente em-preenderam novas fugas e ocuparam asterras onde vivem hoje, na sensação deque não há mais para onde ir.

Gallois os conhece há quase vinteanos. Após se dedicar ao estudo dosmateriais históricos relativos à sua saí-da do Xingu – fato do qual os Waiãpi seesqueceram completamente, situando acriação da humanidade no Amazonas,precisamente em Mairi-Fortaleza deSão José – e ao estudo de seu sistemasociocosmológico, a autora vem execu-tando desde 1991 uma “pesquisa-ação”, da qual Mairi Revisitada é umdos resultados. Esse é um livro que,conforme sublinha a autora, “não sedestina aos Waiãpi”. Todavia, suasquestões foram indiretamente coloca-das pelos Waiãpi; grande parte dos seusmateriais não foram simplesmente co-lhidos pela antropóloga, mas produzi-dos pelos Waiãpi, a isso estimulados pe-la implantação dos programas de edu-cação e controle territorial assessoradospela autora, e a reflexão aí realizadadeve trazer-lhes outras contribuições.

No pólo ação da pesquisa, o livrodesenvolve uma questão ética relativaà melhor maneira de inscrever o saberwaiãpi para os Waiãpi. No pólo pesqui-sa da ação, oferece-nos uma reflexãosobre a possibilidade e a impossibilida-de de aplicar a noção de história à so-

ciedade waiãpi. Meus comentários vi-sarão esse segundo pólo, mas enfatizoque nem o espírito do livro – e essa éuma das razões de seu interesse – temcompromisso com essa divisão entrepesquisa e assessoria, entre ética e tex-to antropológico, nem poderei restituiros passos e as nuanças dessa reflexão.

Há muitas maneiras de se tomar ahistória como tema de investigação an-tropológica, mas dificilmente algumadeixaria de se orientar, declaradamenteou não, ao sabor ou contra a corrente,pela distinção entre história quente efria, proposta por Lévi-Strauss. Algunsa consideram um discurso ideológicoque ultraja os nativos de todo o mundo,enquanto outros admitem que ela tem,quando menos, o mérito de assinalar apresença de outras formas de viver epensar o tempo. É quase inacreditávelque se tenha tentado ultrapassá-la sus-tentando que as sociedades indígenastêm uma história quente. Nem todomundo é Sahlins, e, quanto ao mais, se-ria interessante saber se os índios seidentificam conosco.

Gallois não é todo mundo e não so-fre dificuldade em só aceitar consideraro valor de verdade do mito com a con-dição de concluir que a história nãopassa de estória. Como proceder, pois,quando nos é dado o acesso à palavraviva de um povo como os Waiãpi, pala-vras que produzem efeitos de sentidoque fulminam nossa consciência e fe-rem nossa vaidade ao se mostrarem pi-torescas ao nosso ouvido, obrigam-nosa refletir sobre a possível petrificaçãodo saber indígena que estaríamos efe-tuando em nossos estudos etnográficose apresentam um hibridismo escanda-loso para nossa distinção analítica entremito e história.

À primeira vista, uma maneira se-gura e metodologicamente justificadade, senão ultrapassar, ao menos abalar

a dicotomia analítica seria a determina-ção etnográfica das categorias em ter-mos das quais a tradição oral é ordena-da. Com efeito, a autora mostra como osWaiãpi concebem uma dupla bipartiçãodo tempo: de um lado, duas idadesconstituídas como tempos qualitativa-mente diferentes, das quais a mais anti-ga é marcada pela presença de Ianejarentre os humanos e pela posse da lin-guagem por aqueles que hoje estãodestituídos dela; de outro, dois temposdiferenciados pela ausência ou presen-ça de uma memória genealógica paracom os antepassados; ou seja, um pas-sado remoto e um recente. Mostra ain-da como tal bipartição se articula com aausência ou presença de uma explicita-ção bastante precisa, pelo narrador, dafonte de informação.

Contudo esses critérios waiãpi,aliás, bastante difundidos na Amazôniaindígena, não dão conta do caráteratemporal do mito, e, assim, de sua ca-pacidade de invadir a temporalidadehistórica. Como se pretendessem fugirà sua própria regra, os Waiãpi tambémproduzem relatos que se reportam aomesmo tempo às duas temporalidades.É preciso destacar que Mairi veio a setornar a Fortaleza de São José por meioda história que se conta sobre um teste-munho ocular. Eixo do mito e da histó-ria, a Fortaleza responde assim por umacontinuidade fundamental entre Iane-jar e a cidade de Macapá, entre o tem-po da criação e separação dos humanose uma atualidade marcada pela visita-ção freqüente à cidade ocupada pelosbrasileiros. Talvez a abordagem compa-rativa possa um dia lançar alguma luznova sobre essa misteriosa necessidadeque tradições como a dos Waiãpi apa-rentam ter de relatos que forneçam umtestemunho ocular moderno para fatosestabelecidos na origem dos tempos.De toda forma, o testemunho de tamo

Kuresisi, o Waiãpi que viu que Mairi es-tá de pé e é a Fortaleza, mostra a imbri-cação na mesma (talvez seja melhor di-zer a ligação umbilical operada poruma) narrativa do mito e da história. Ouseja, a distinção etnoconceitual conhe-ce suas próprias limitações e, para aanálise, representaria uma dificuldademais do que uma solução.

A autora tenta resolver o impasseadotando, em primeiro lugar, uma pers-pectiva mais inclusiva, capaz de abran-ger mito e história, e que se traduz nacategoria analítica “etnohistoriografia”.As duas categorias temporais e os doismodos da enunciação a elas associadossurgem, assim, como os dois mecanis-mos básicos de uma historiografia waiã-pi. Sua complementaridade e sua deter-minação pelo contexto são as idéiascondutoras de toda a apresentação defalas registradas em dois períodos dis-tintos, o da pesquisa e aquele da pes-quisa-ação.

Com base na complementaridade ena imbricação das categorias e dos mo-dos de enunciação, a autora conclui quetais mecanismos não fundamentariamgêneros narrativos distintos. Nesse ca-so, o que fazer? Encontrando uma saídainesperada para o impasse, a hipótese éque eles fundamentam argumentos,chamados históricos e míticos. Disso re-sulta algo interessantíssimo, que, aliás,mereceria uma atenção maior da auto-ra. Nada impede que o argumento his-tórico seja aplicado por um narrador emum relato de fatos transcorridos comantepassados desconhecidos, no tempode Ianejar, inclusive. Além disso, osmesmos fatos podem ser narrados comênfase no argumento mítico ou no his-tórico.

Os dois argumentos se diferenciamem termos de uma lógica de grandes epequenos intervalos. Vem a ser chama-do mítico aquele que estabelece delimi-

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tações e contraposições entre catego-rias genéricas, enquanto o histórico es-tabelece relações de continuidade a fimde reconstituir a trama dos aconteci-mentos e das relações. Eles são comple-mentares e, o que não é menos impor-tante, construídos ao longo da perfor-mance narrativa, a qual é inteiramentesubordinada a um padrão de transmis-são oral específico, rotulado de diálogo– uma noção que, já pelos breves e pre-ciosos materiais etnográficos apresen-tados, exige urgentemente uma críticaetnográfica na mesma linha daquelaaqui realizada com o mito e a história.

Poder-se-ia questionar alguns pon-tos da argumentação da autora: a exis-tência de híbridos não é contraditóriacom a existência de tipos; a reformula-ção da dicotomia mito e história em ter-mos de argumentos é evocadora da dis-tinção levistraussiana entre mito e rito; emais isso ou aquilo. Entretanto, dever-se-ia também ressaltar que sua análisesugere que soluções recentemente en-contradas para explicar a imbricação domito e da história, a saber, a projeçãodessa distinção para o plano da cons-ciência indígena e das formas de mani-pulação social, é mais do que insatisfa-tória. Não será transfigurando nossascategorias em uma consciência biparti-da dos índios que nos aproximaremosde uma compreensão mais justa de suasmaneiras de viver, pensar e inscrever otempo. Note-se aí uma estranha inver-são da direção usual do método antro-pológico: o procedimento que parte dediferenças superficiais em busca de umprincípio geral (não importando o modocomo se o concebe) é convertido em umprocedimento que parte das semelhan-ças aparentes e busca as diferenças pro-fundas. Seria preciso indagar-se sobreas verdadeiras conseqüências dessa in-versão metodológica, pois, será que nãoacabamos por restituir, de maneira

sub-reptícia, aquilo mesmo que estamosfinalmente dispostos a pôr em questão?

Petrificamos Mairi e a pele de Tupã,petrificamos até mesmo as palavras nopapel, ao passo que, para o próprio Ia-nejar, o nosso destino era legível/inscri-tível antes da origem da escrita. Se te-mos como princípio que a história, naacepção de devir social e humano, é ca-paz de explicar desde as mitologias quese concebem como atemporais até ashistórias escritas pelos historiadores,para os Waiãpi os mitos geram falasadequadas para se fazer a história, nosnossos e em todos os sentidos. Aindaque nos apareça como uma história con-tra a história, ela nos indaga sobre a ra-zão pela qual buscamos alguma razãofora das palavras.

Barthes mostrava como os mitosproduzidos pela mídia eram uma faladespolitizada. Gallois, nesse livro cujaleitura em contraponto com Mitologiasseria bastante proveitosa, dá várias in-dicações sobre como a política waiãpi éuma fala mitologizada. Depois que Lé-vi-Strauss, afirmando que a distinçãoentre história cumulativa e estacionáriaé essencialmente relativa, transformouessa ilusão de ótica em ponto de vistade uma antropologia distanciada, é ho-ra de transformar o problema novamen-te, unindo a ótica à política, a fim de in-vestigar as razões pelas quais as falasmitologizadas que os índios endereçamaos brancos, inicialmente desconcer-tantes, tendem a se tornar em seguida,e por meio dos brancos, sem efeito, in-clusive para os índios. Ora, a impotên-cia dessa espécie de fala, com toda evi-dência, não pode ser atribuída aos mi-tos. Disso não há prova maior do que aautonomia cultural que os Waiãpi têmconservado e construído, ao longo deséculos de fuga, por meio de falas damesma espécie a eles endereçadas pe-los mais velhos de todas as épocas.

GOODY, Jack. 1995. The ExpansiveMoment: The Rise of Social Anthropo-logy in Britain and Africa, 1918-1970.Cambridge: Cambridge UniversityPress. 235 pp.

Ana Claudia Cruz da SilvaMestranda, PPGAS-MN-UFRJ

Por ocasião da morte de Meyer Fortes,Jack Goody foi convidado a escreverseu obituário. Para isto, pesquisou ar-quivos em Gana (onde Fortes realizouboa parte de suas pesquisas), na Lon-don School of Economics e no Interna-tional African Institute. Tendo em mãosesse material e ouvindo recorrentes co-mentários de antropólogos americanose russos sobre a “natureza conservado-ra” (:5) da antropologia britânica comrelação ao império colonial, Goody pen-sou em escrever The Expansive Mo-ment. O livro não pretende relatar a his-tória da antropologia social britânica,embora possa ser uma boa fonte sobresuas linhas de pesquisa entre os anos 30e 60.

A obra teria dois objetivos centrais:o primeiro, mapear as relações entreinstituições e profissionais da antropo-logia, passando por questões que en-volveriam ensino, pesquisa, financia-mento, institucionalização e expansãoda disciplina. Apesar de suas lembran-ças pessoais e de seus contatos comcontemporâneos e membros da geraçãoanterior, Goody faz questão de apoiarsua pesquisa somente no material en-contrado nos arquivos, o que inclui,além dos documentos institucionais epapers, várias correspondências pes-soais que, como ele mesmo ressalta,não apresentam nada que não pudesseser de domínio público, sendo que osaspectos mais pessoais somente são uti-lizados na medida em que são relevan-

tes para o desenvolvimento da antropo-logia social britânica.

O segundo objetivo seria derivadodo primeiro. Goody pretenderia, a par-tir da exposição das redes de relações edos movimentos que perpassam a an-tropologia britânica neste momento,negar a tese da submissão da disciplinaàs autoridades coloniais, defendendo-ada acusação recorrente de que seria “fi-lha do colonialismo” (:3), e atribuídaprincipalmente à antropologia america-na dos anos 60 e 70, embora Goody nãoexplicite os “acusadores”.

O período abrangido pela pesquisaé composto por três gerações de antro-pólogos, cujos atores principais em ca-da uma delas são Malinowski e Radclif-fe-Brown, na primeira; Fortes, Evans-Pritchard e Gluckman, na segunda; e opróprio Goody, na terceira. Essas trêsgerações viveram o período de maiorexpansão da antropologia social britâ-nica, que Goody explica como o mo-mento em que se fez a crítica da antro-pologia praticada anteriormente (tenta-tivas de reconstrução do passado, com-parações globais, trabalhos de campomal feitos etc.), e em que houve umgrande incremento dos financiamentospara pesquisa associado à presença depesquisadores altamente motivados.

Goody assume que ter sido um paíscolonizador foi um importante elemen-to para o desenvolvimento da antropo-logia na Grã-Bretanha, mas o mesmoteria acontecido em outros países, nãosendo esse, portanto, um “privilégio”britânico. Havia realmente antropólo-gos do governo ligados aos serviços co-loniais, mas tratava-se de administra-dores que faziam o curso de etnologia afim de poder lidar melhor com os gru-pos que governavam. Essa era uma prá-tica muito comum desde o início da an-tropologia, quando lhe foi destinada aincumbência de formar os funcionários

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coloniais. Goody lembra ainda que omesmo acontecia na França e na Ale-manha, afirmando que o próprio Maussdeu cursos para administradores dascolônias francesas. Nesses dois países,o acúmulo de dados sobre grupos afri-canos coletados por esses “etnógrafos”estaria mais avançado do que na Grã-Bretanha, porque nessa época o inte-resse do governo britânico estaria con-centrado na Índia. Em relação aos an-tropólogos profissionais, Goody ressaltaque boa parte deles tinha uma linha depensamento de esquerda, influenciadapor Marx e Freud, e estavam envolvi-dos com os movimentos pela indepen-dência dos países que estudavam. Al-guns teriam, inclusive, optado pela an-tropologia em conseqüência de sua par-ticipação nesses movimentos.

Além disso, Goody chama a atençãopara o fato de que uma parte considerá-vel dos antropólogos apoiados pelosprogramas de financiamento não era deorigem britânica, o que também traziaproblemas em uma sociedade como ainglesa. Esses dois elementos – a forma-ção de esquerda e a nacionalidade nãobritânica dos antropólogos beneficiadoscom recursos para pesquisa – são outroargumento importante de Goody contraa idéia da colaboração entre a antropo-logia e o governo.

Aqui vale registrar que o autor pro-põe uma problematização do que re-presentava, nesse contexto, ser “de es-querda” ou “de direita”. Goody susten-ta que Fortes e Evans-Pritchard, porexemplo, foram mudando suas idéiasao longo de sua trajetória, sendo que oprimeiro tinha uma posição mais “radi-cal” do que o segundo que, principal-mente devido à sua origem social, per-manecia mais próximo da classe gover-nante. É sabido também que Malinows-ki e Radcliffe-Brown nunca demonstra-ram tendências propriamente revolu-

cionárias. Essas informações poderiamsignificar que o pensamento marxista,na verdade, não tinha uma influênciatão forte quanto se supunha, estandomais presente entre os antropólogos eminício de carreira do que naqueles querealmente dominavam a antropologia.

Segundo Goody, foi Malinowski ogrande articulador da profissionaliza-ção da antropologia na Grã-Bretanha,que teria ocorrido depois da PrimeiraGuerra Mundial. Sua habilidade paralevantar recursos foi responsável pelaexpansão do campo de pesquisa nessaépoca. E, em relação a isso, um dos pon-tos importantes na argumentação deGoody é que o maior financiador daspesquisas, a Fundação Rockefeller, eraamericano. A ajuda de órgãos estran-geiros somada aos demais aspectos jáapontados implicaria uma grande des-confiança por parte dos administrado-res das colônias em relação aos pesqui-sadores, negando ainda mais a possibi-lidade de uma relação de cooperaçãoentre eles.

Goody alega que, financeiramente,a antropologia não era dependente dogoverno colonial e, por isso, não estariasubordinada a ele. Inicialmente, os re-cursos provinham de um órgão filantró-pico da Fundação Rockefeller, o TheLaura Spelman Rockefeller Memorial,que mais tarde passou a ser a Divisionof Social Sciences. A criação do Colo-nial Social Science Research Council naGrã-Bretanha e, algum tempo depois,do International African Institute fazemparte de uma política da Fundação Roc-kefeller que estimulava a criação de vá-rios conselhos de pesquisa no mundo,para os quais repassava fundos. Aindaque não ocupasse nenhum cargo, Mali-nowski influía de maneira significativanessas instituições: na primeira seleçãodos pesquisadores que seriam benefi-ciados, apenas um não era seu aluno;

todos os financiados eram obrigados aassistir seus seminários e recebiam trei-namento de trabalho de campo; alémdisso, Goody relata que Malinowski di-rigia a distribuição dos recursos (exer-cia “patronagem” (:26)) e estes eramsempre negados, por exemplo, paraEvans-Pritchard, que fazia oposição aele, o que o teria levado a estabeleceruma forte ligação com Radcliffe-Brown(:16). Este, por sua vez, foi diretor deoutro conselho de pesquisa, tambémcriado pela Fundação Rockefeller, oAustralian National Research Council.

Outro argumento de Goody a favorda autonomia da antropologia social se-ria o de que os interesses da FundaçãoRockefeller não coincidiam com os inte-resses da antropologia e ambos nãocoincidiam com os do governo britâni-co. Os pesquisadores não estavam inte-ressados em estudar as relações de con-tato cultural – objetivo da Fundação –,mas em fazer um estudo profundo dassociedades nativas às quais estavam sededicando, até mesmo porque não que-riam conflitos com as autoridades lo-cais, o que certamente ocorreria casoestudassem os impactos causados naspopulações pela presença do coloniza-dor. No entanto, creio que tal autono-mia tinha limites e que, se os pesquisa-dores não perseguiam o tema recomen-dado pela Fundação, ao menos apre-sentavam resultados que lhe satisfa-ziam. Penso que a aproximação entre aFundação e Malinowski não se deuapenas pela identificação da primeiracom os métodos do segundo, como su-gere Goody, já que toda relação é umavia de mão dupla. Assim, é possível es-pecular que a própria ênfase malinows-kiana na questão do trabalho de campotenha se dado também em função dosinteresses da Fundação enquanto fi-nanciadora dos projetos. No capítulo fi-nal, Goody chega a apontar nessa dire-

ção ao dizer que os aspectos utilitáriosda antropologia britânica são resultado“dos desejos de seu patrão americanodominante, a Fundação Rockefeller”(:145, ênfases minhas). As referênciasaos desejos do patrão americano signi-ficam mais que uma pequena submis-são sem interferência no trabalho.

O mesmo ocorre com as informa-ções relativas à participação efetiva deantropólogos pertencentes ao Interna-tional African Institute junto aos gover-nos coloniais e à ligação de Evans-Prit-chard com o governo colonial do Sudão.Esse tipo de envolvimento poderia con-tradizer, ou ao menos problematizar, atese central de Goody. De fato, não épossível determinar com precisão queos antropólogos não colaboravam como governo porque eram de esquerda ouporque dele não recebiam verbas, nemque colaboravam porque deveriamobedecer aos “patrões” financiadorespara continuar recebendo os fundos.Penso que todos esses fatores fazemparte das determinações que guiavamas ações sociais e os destinos da antro-pologia britânica. O problema é o fatode Goody fornecer todas essas informa-ções sem relacioná-las entre si.

Enfim, The Expansive Moment é umlivro instigante na medida em que ex-põe, para falar como Bourdieu, as “lu-tas de classificação” da história socialda antropologia, que geralmente não sepercebe como um campo social a mais,tendendo a pensar-se como imune aosmecanismos que agem nos demaiscampos sociais e que ela própria se atri-bui como tarefa descobrir e analisar.

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GRAHAM, Laura. 1995. PerformingDreams. Discourses of Immortalityamong the Xavante of Central Brazil.Austin: University of Texas Press. 290pp.

Marcela Stockler Coelho de SouzaDoutoranda, PPGAS-MN-UFRJ

Em 1984, retornando à aldeia de Pi-mentel Barbosa para dar continuidadeà pesquisa iniciada em 1981, LauraGraham presencia uma intrigante per-formance, envolvendo toda a comuni-dade, de três cantos-dança ensinadosem sonho pelos ancestrais míticos aochefe Warodi. Essa cerimônia será o ob-jeto do livro: através dela, a autora vaienfatizar o lugar das diferentes práticasexpressivas que a integram na consti-tuição e perpetuação da identidade xa-vante – o foco num evento específicopermite-lhe examinar os processos pe-los quais “meanings unfold in perfor-mance” (:5) no plano micro em que a re-corrência da forma garantiria, além dasalterações de conteúdo, o sentimentosubjetivo de continuidade cultural eagência histórica.

Após uma introdução em que sãoapresentadas premissas teóricas, méto-dos e colaboradores nativos, os capítu-los 2 e 3 desenham os contextos históri-co e etnográfico. Entre os Xavante quetranspuseram o Araguaia em meadosdo século XIX, os de Pimentel Barbosaconstituem os descendentes daquelesque permaneceram na área da grandealdeia de Tsorépre, na região do rio dasMortes, os primeiros visitados por May-bury-Lewis. Sob a liderança do célebreApöw˜e (pai de Warodi) esse foi o pri-meiro grupo xavante a estabelecer con-tato pacífico com a sociedade nacionalna década de 40. Graham adiciona aperspectiva particular dessa comunida-

de ao crescente corpo de estudos dispo-níveis sobre a história xavante, deli-neando ao mesmo tempo o pano defundo do contexto imediato do sonho deWarodi. Introduz-nos então nessa socie-dade através da exploração de sua pai-sagem sonora (soundscape). Começapelos silêncios, com uma rica descriçãodos padrões de interação verbal dosafins, traçando em seguida um mapados diferentes gêneros vocais segundoseus contextos, ritmos diários e sazonaise ciclo de vida, com ênfase no tema daeficácia das formas expressivas no en-gendramento de um “sense of conti-nuity or and persistence through time,from day to day, from season to season,and across generations” (:92).

Os capítulos seguintes focalizammais estreitamente os gêneros mobiliza-dos na performance em questão: cantos-dança, discurso político, relato mítico.Os cantos (capítulo 4) ensinados a Wa-rodi pelos imortais pertencem a umaclasse de cantos-dança coletivos, da-ño-re, que são recebidos em encontros oní-ricos com espíritos por homens inicia-dos, especialmente adolescentes soltei-ros, e incorporados por sua classe deidade – um gênero no qual tudo colabo-raria para promover a solidariedade dosparticipantes, representando visual eacusticamente a fusão de suas identida-des individuais. O relato do sonho (ca-pítulo 5) é feito num estilo que remete à“fala dos velhos”, gênero que modela aoratória política e cujas característicasformais, assim como as convenções queorganizam seu exercício no fórum públi-co das reuniões masculinas na praça(warã), produzem um efeito de desper-sonalização que, “decoupling individualauthorship from speech” (:145), faz dele“a strikingly literal institutionalizationof Bakhtin’s polyvocality” (:141) – numarepresentação pragmática do discursocomo produção intersubjetiva que con-

trabalançaria assim as forças centrífu-gas do faccionalismo xavante. Por fim, orelato mítico (capítulo 6) é também in-corporado ao discurso de Warodi, numaforma fragmentada e elíptica que con-trasta com a das narrativas “teatrais” es-cutadas em contexto familiar, mas queopera uma identificação progressiva en-tre o ponto de vista do narrador e o dosprotagonistas míticos, numa fusão queantecipa a metamorfose dos demais par-ticipantes da cerimônia, dessa vez atra-vés também de elementos visuais e ci-nestésicos (decoração corporal, dança),objeto do último capítulo.

A descrição amplia e reelabora da-dos presentes numa análise anterior-mente publicada que dispunha o la-mento ritual, os cantos da-ñore e a ora-tória num continuum entre os pólos damusicalidade e da semanticidade cor-respondente à organização cosmologi-camente informada do espaço social xa-vante entre os pólos da “natureza” e da“cultura”. Agora, contudo, o fio queune as várias formas discursivas é a du-pla dinâmica expressão individual/co-letiva, invenção/continuidade cultural,implicada no modo particular e originalcomo estas se realizam e combinamnessa performance inovadora, a partirdo projeto de Warodi e seu contexto ime-diato (cisão da aldeia, competição entrecomunidades, presença da pesquisado-ra). Da transformação de uma experiên-cia onírica subjetiva numa experiênciacoletiva através da transmissão do can-to, passando pela despersonalização dodiscurso narrativo e culminando naidentificação do narrador e, pela perfor-mance, de toda a comunidade com os“imortais”, é o mesmo processo que es-tá sendo descrito. Este processo é o quefaz das instâncias analisadas “discour-ses of immortality”: da imortalidadepessoal de Warodi e da imortalidade dacultura xavante, construídas interde-

pendentemente: “By embedding hispersonal quest for a distinguished im-mortality within the very practices thatensure the future of them all, Warodicelebrated community values togetherwith his personal interests. […] Thevery same discursive practices thatguarantee the Xavante’s cultural survi-val are those that will give Warodi, as acreator, the gift of a distinguished im-mortality” (:224).

O modo de exposição nos remetecontinuamente da performance em focoa outras performances, como se Gra-ham procurasse em certa medida simu-lar, em sua escrita, a experiência queconstituiria, em sua concepção, o “qua-dro interpretativo” utilizado para atri-buir significados a eventos expressivos,a saber, a exposição anterior a outroseventos do mesmo tipo (:7). O resultadoé um estilo narrativo que reconstrói vi-vamente a atmosfera sonora da vida naaldeia, numa etnografia do universoacústico xavante que demonstra ampla-mente o refinamento da descrição etno-gráfica possível ao se tomar os aspectosformais e contextuais do discurso, e nãoapenas seu conteúdo, como objeto.

A discussão é um pouco frustrantepara quem esperou encontrar, estimu-lado pelo título, algo sobre as teoriasxavante do sonho e da pessoa. Por con-ta dessa falta, a origem onírica dos can-tos acaba esvaziada de um sentido maisespecífico, além de exemplificar o jogoentre “inner experience” e “outwardexpression” que caracterizaria toda ati-vidade expressiva. Na análise do “dia-logic process” entre “the individual’sconscious experience of a dream andthe social context that influences theway a dream is outwardly expressed[or] publicly re-presented” (:115), nãoparece haver lugar para uma descriçãode como essa experiência, assim comoseu próprio sujeito são concebidos cul-

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turalmente, insistindo-se sobre o cará-ter subjetivo e “pessoal” do sonho, oraem termos analíticos, ora como repre-sentação indígena, de modo um tantoambíguo. Paralelamente, a apresenta-ção de práticas discursivas específicascomo representações pragmáticas deuma concepção “bakhtiniana” da lin-guagem e do discurso (:166-167), contraHabermas e a filosofia da linguagem(:140-142), não acabaria reduzindo o sig-nificado dessas práticas aos termos deum debate concebido sobre outras pre-missas? Por fim, o tratamento das cate-gorias de espíritos que Graham glosacomo “imortais” é igualmente breve(discrepâncias notáveis entre sua des-crição e a de Maybury-Lewis sequersão registradas), sobretudo diante dacentralidade do tema da oposição vi-vos/mortos na etnologia comparativado continente. Contestando a caracteri-zação das sociedades jê como “this-world oriented”, em contraste com gru-pos amazônicos cuja vida ritual centra-se no xamanismo, ela sugere que “theproblem for ethnographers has beenthat this other world is not a world thatis seen: the world of the immortal crea-tors is a world that is heard” (:100) – umdiagnóstico que além de não fazer justi-ça a Seeger, fonte citada do contraste,descarta de modo sumário a intuição deuma diferença importante, que deve sercertamente melhor determinada e devi-damente modulada, mas que seria pre-cipitado abandonar.

Não se trata aqui de ceder ao recur-so fácil de cobrar a um autor aquilo queele não tentou fazer, mas de inquirir so-bre os limites de qualquer “abordagemda cultura” que confunda a seleção deum nível privilegiado de análise com adescoberta de um nível privilegiado designificação, e se furte assim à necessi-dade de confrontar seus resultados comaqueles obtidos por estudos que se si-

tuam noutros registros. Graham apóiasua descrição na etnografia xavanteexistente, mas em suas interpretaçõesnão dialoga com as questões postas aliou na etnologia jê e sul-americana emgeral, como se a economia simbólicaconstitutiva das identidades pessoais ecoletivas, que tanto a produção recentede nossa subdisciplina tem tentado elu-cidar, fosse irrelevante para a com-preensão da performance em foco. Issoreflete provavelmente a atitude críticados adeptos do “discourse-centred ap-proach to culture” diante da inspiraçãoestruturalista de muitos desses estudos.Temo, no entanto, que o princípio deque “the ‘system’ is a precipitate of pastexpressive performances”, de que alangue é um “precipitate of instances ofparole” (:7), não seja suficiente, qual-quer que seja seu valor último, paraabolir a complexidade dessa ordem defenômenos que a antropologia tem ten-tado apreender sob as suas noções decultura – de modo que nossas melhoreschances continuam postas nas tentati-vas de combinação e ajuste das diferen-tes perspectivas e instrumentos de ob-servação disponíveis.

GUENIFFEY, Patrice. 1993. Le Nombreet la Raison: La Révolution Françaiseet les Élections (prefácio de FrançoisFuret). Paris: Éd. de l’École des HautesÉtudes en Sciences Sociales. 560 pp.

Gabriela ScottoDoutoranda, PPGAS-MN-UFRJ

Técnica de seleção, princípio de insti-tuição e instância de legitimidade, aeleição ocupou um lugar central no no-vo sistema político instaurado na Fran-ça após a Revolução de 1789. Ao subor-dinar toda delegação de autoridade ao

livre sufrágio, ao definir a virtude, os ta-lentos e a capacidade como os únicoscritérios de admissão, os constituintesinstituíram o princípio democrático deseleção. As honras e as responsabilida-des deixam de ser o fruto do nascimen-to, do favor ou da intriga, para ser a re-sultante do mérito pessoal consagradopela opinião. Em 1790, com exceção dopoder executivo confiado ao rei, nãoexiste função pública para a qual seusdepositários não tenham sido eleitos.

O trabalho do historiador PatriceGueniffey aborda um momento especí-fico e conturbado da história políticafrancesa: o período que se estende daRevolução de 1789 até 1795 quando,após a morte de Robespierre, instaura-se a breve experiência da RepúblicaConstitucional. Período de mutação,ruptura e dissolução da ordem existen-te, mas durante o qual, ao contrário doque ocorre em um golpe de Estado, ve-rificou-se um modo de instituição daautoridade e de regulação dos conflitospolíticos que requeriam a construção deum consenso, ao menos relativo, acercado caráter das novas instituições.

Gueniffey dedica-se à análise deum objeto tradicionalmente negligen-ciado pela historiografia: o momento dovoto – o instante em que as pessoas vi-ram cidadãos, independentemente dascircunstâncias que cercam a convoca-ção dos eleitores, e dos resultados doescrutínio. Assim, a proposta do autor éanalisar o desenvolvimento das elei-ções nas assembléias primárias, no queelas têm de particular, e não apenas co-mo um fator suplementar a serviço dacompreensão das peripécias da históriapolítica durante a Revolução. O regimeeleitoral adotado pela Constituinte re-pousava num modo de eleição indiretaem dois níveis: o conjunto dos “cida-dãos ativos”, congregados em assem-bléias primárias reunidas num canton

(distrito eleitoral), elegia os eleitores;estes, por sua vez, nucleados em depar-tamentos, designavam os representan-tes. A partir de fontes e dados diversos(atas de sessão eleitoral, testemunhosde época, decretos e regulamentos elei-torais, debates consagrados à organiza-ção das novas instituições), Gueniffeyanalisa as modalidades eleitorais paracompreender como os princípios e pro-cedimentos foram aplicados concreta-mente.

O livro, abundante em dados histó-ricos muito pormenorizados – o que tor-na a leitura, por vezes, um tanto densa–, ao invés de seguir a ordem cronológi-ca das sucessivas eleições e das rela-ções destas com os acontecimentos, or-ganiza-se em torno de algumas ques-tões centrais: o desenrolar de uma elei-ção, desde a definição das condiçõesexigidas para votar até a proclamaçãodos resultados (capítulos 1-2). Quaiseram os fins da “democracia das elei-ções”? Que representações envolviam ovoto (capítulo 3)? Quantos eleitoresexerciam seus direitos políticos e comoexplicar a abstenção nos casos em queesta era significativa (capítulos 4-6)?Quais as modalidades dos sistemaseleitorais e como era feita a escolha naausência de candidatos declarados (ca-pítulos 7-8)? Quais foram os resultadose como avaliar sua importância política(capítulos 9-10)? O último capítulo, de-dicado ao período da República Consti-tucional (1795-1797), encerra o livro naforma de conclusão.

A tese principal, que entrecruza aobra, é a de que, apesar do sufrágioconstituir um elemento central do ima-ginário político revolucionário, as elei-ções não tiveram, na definição dos acon-tecimentos revolucionários, o papel de-cisivo que comumente se lhes atribui. Aeleição foi apenas uma técnica de sele-ção e legitimação e não uma forma de

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cada cidadão expressar sua opinião,nem uma escolha entre opções e candi-datos para, com o voto, contribuir paraa definição das grandes orientações po-líticas. Isso porque o sistema eleitoralimaginado pela Assembléia Constituin-te erigiu-se sobre duas concepções di-ferentes de representação. Por um lado,a que repousava não apenas sobre aidéia do voto como um direito mas, tam-bém, sobre o projeto revolucionário deinstituir, através do sufrágio dos cida-dãos, o poder do povo soberano, enfim,de substituir a usurpação de uma mo-narquia absoluta. Aqui, a “representa-tividade” das assembléias devia ser amais próxima possível da diversidadecaracterística de todo o conjunto nacio-nal. Por outro lado, uma noção de re-presentação que repousava sobre opostulado da existência de um interessecomum ao povo. Nessa segunda con-cepção não importa tanto a “exatidão”da representação, mas sim encontrar oshomens capazes de zelar pelo interessecoletivo. Em síntese, o sufrágio repre-sentava para cada novo cidadão o sím-bolo, por excelência, da soberania recu-perada pelo povo. Seu exercício estavadestinado a instaurar uma autoridadepública que garantisse a transparênciaindispensável à manutenção da sobera-nia popular. Mas a fórmula para garan-tir essa transparência devia passar pelofiltro da representação, no seu segundosentido. Isso porque o espírito público –a virtude – não está inscrito nos costu-mes, nem surge espontaneamente; aocontrário, a divisão do trabalho criamuitos “ignorantes” que precisam terum governo por procuração: ser repre-sentados.

Essa concepção acerca da formaçãode decisões, que rejeitava a idéia deidentificar a vontade geral na aritméti-ca dos votos, estava marcada pelo ra-cionalismo da época. Ainda que o racio-

nalismo puro fosse alheio à Revolução,a participação igualitária e a elabora-ção democrática da lei foram princípiosda época difíceis de serem conciliadoscom a necessidade, imperativa tam-bém, da formação de uma “vontade ge-ral” que fosse o produto das vontadesindividuais “esclarecidas” medianteuma “deliberação racional”. Essa ten-são entre duas exigências contraditó-rias – a do “número” e a da “razão”–esteve no coração dos debates da épocasobre o sufrágio. Os constituintes tenta-riam, através da elaboração de algumasmedidas (eleição indireta em dois níveise restrições impostas à elegibilidadedos representantes, principalmente),neutralizar a influência do número, daqual, por outra parte, não podiam sub-trair-se.

Contudo, é importante salientarque, diferenciando-se da tradição histo-riográfica que fez dos homens de 1789os burgueses “censitários”, Gueniffeyrestitui às origens mesmas da Revolu-ção sua dinâmica democrática. Apesarda Constituinte ter excluído do direitoao voto um certo número de indivíduos(mulheres, empregados domésticos,não-domiciliados, não-contribuintes emesmo os que pagam uma contribuiçãodireta inferior ao valor local de três jor-nadas de trabalho), Gueniffey os deno-mina de “cidadãos passivos” para mar-car que não estão excluídos estatutaria-mente da cidadania do conjunto, nemprivados da autonomia necessária à ex-pressão da vontade. Mesmo não votan-do, são cidadãos, quer dizer, depositá-rios virtuais de um direito que deveráser alargado em função do aumento derenda, educação, esclarecimento etc. Overdadeiro caráter censitário da Revo-lução não consiste na distinção queopõe os cidadãos ativos dos passivos,mas a que separa eleitores de elegí-veis.

Ao longo do livro, Gueniffey desen-volve essa tese de forma um tanto de-sordenada. Ao mesmo tempo que reto-ma, recorrentemente, essa linha de ar-gumentação, o autor abre um leque dequestões diversas e interessantes quenem sempre são amarradas umas às ou-tras. Esse traço, que reduz a possibili-dade de sintetizar o livro em poucos pa-rágrafos sem injustiçar a riqueza daanálise das diversas questões, é ao mes-mo tempo uma das características maisestimulantes da sua leitura.

Duas dessas questões merecem es-pecial menção: o problema da absten-ção eleitoral tratado nos capítulos 4, 5 e6; e a relação entre política e eleiçõesno âmbito local (capítulo 9). Em relaçãoao problema da abstenção eleitoral,Gueniffey desmancha e rebate minu-ciosamente os argumentos que situamas causas da pouca participação “cida-dã” na ignorância ou na falta de civis-mo do eleitorado. Assinala, antes, a res-ponsabilidade do próprio espírito dosistema eleitoral que dissuade muitoscidadãos de fazer sua parte: basicamen-te a estrutura de assembléias (reminis-cência do período pré-revolucionário),a separação entre eleição e deliberação,e a ausência de uma “oferta” política. Aacepção moderna de eleição que, alémde ser um procedimento para a seleçãode dirigentes, permite ao eleitor – atra-vés da opção entre diversos candidatos– “expressar sua opinião” é alheia à Re-volução. Nesse sentido, não é a análisedos resultados eleitorais da época omeio adequado para reconstituir as cor-rentes de opinião, mas sim a relação en-tre participação e abstenção. Abster-sede votar representou, também, uma for-ma de manifestar a vontade individual.

A análise das relações e interaçõespolíticas no plano local no contexto doperíodo pós-revolucionário é o temacentral do capítulo 9 (“Uma Aristocra-

cia Invisível?”). Noções caras à antro-pologia política tais como poder local,facções, clientelas etc., são usadas fe-cundamente por Gueniffey para abor-dar o cenário político local da época. Emais ainda, para analisar a maneiracomplexa pela qual essas formas “pré-políticas” não só continuaram coexistin-do com os intentos para constituir um“espaço político democrático nacional”,mas, e paradoxalmente, como as carac-terísticas do sistema eleitoral reforça-ram a dimensão local da competiçãopolítica. As novas formas, aplicadas aos“velhos conteúdos”, geraram uma novalinguagem e estabeleceram outras re-gras de jogo para as lutas entre paren-telas e clientelas locais, as quais passa-ram a ser arbitradas pelo sufrágio doseleitores.

Le Nombre et la Raison é muitomais do que uma história das eleiçõesdurante o período revolucionário fran-cês; o livro propõe uma abordagem me-todológica no melhor sentido antropo-lógico, um olhar de dentro que permitea restituição de uma experiência nosseus múltiplos aspectos, culturais, inte-lectuais, sociológicos e políticos. Assim,a compreensão do papel ocupado pelosufrágio no imaginário político revolu-cionário e o estudo das práticas eleito-rais outorgam às modalidades da açãopolítica uma especificidade freqüente-mente ignorada nos estudos tradicio-nais, ao mesmo tempo que evitam o ris-co de expor a compreensão das premis-sas e os fundamentos da vida políticada época aos métodos de análise e àscategorias de um contexto diferente: oda sociedade contemporânea.

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LIMA, Antonio Carlos de Souza. 1995.Um Grande Cerco de Paz. Poder Tute-lar, Indianidade e Formação do Estadono Brasil. Petrópolis: Vozes. 335 pp.

Marcos Otavio BezerraProf. de Sociologia, UFF

A partir de documentação interna doServiço de Proteção aos Índios e Loca-lização do Trabalhadores Nacionais(SPILTN), Antonio Carlos de S. Lima de-senvolve, em Um Grande Cerco de Paz,uma análise fina da organização e açãodo primeiro poder estatal dirigido àspopulações concebidas como indígenasdistribuídas pelo território historica-mente denominado e imaginado comobrasileiro. Criado em 1910, o órgão étransformado em Serviço de Proteçãoaos Índios em 1918 e extinto em 1967,sendo suas responsabilidades e acervotransferidos para a Fundação Nacionaldo Índio (Funai). Com uma históriamarcada por continuidades e desconti-nuidades em termos de organizaçãofuncional, atribuições, peso institucio-nal e composição social, o órgão fezparte de distintos Ministérios: da Agri-cultura, Indústria e Comércio (MAIC,1910/30); do Trabalho, Indústria e Co-mércio (MTIC, 1930/34); da Guerra(1934/39); e da Agricultura (1939/67).

As “diferentes formas de relaciona-mento entre populações indígenas eaparelhos de poder oriundos da invasãoeuropéia no continente” (:61) têm pa-decido da ausência de investigaçõesconstruídas tanto do ponto de vista dahistoriografia quanto das ciências so-ciais. No que concerne às relações en-tre essas populações e o Estado brasi-leiro, os estudos realizados têm sidoclassificados comumente sob as rubri-cas “indigenismo” e “política indige-nista”. A análise das idéias e ações im-

plementadas pelo Serviço a partir deum paradigma que ressalta a sua di-mensão de aparelho estatal e matriz mi-litar, o que leva a uma revisão do quefoi elaborado em termos de “indigenis-mo” e “política indigenista”, é uma dasgrandes contribuições do livro.

O estudo das ações estatais que in-cidem sobre as populações indígenasimplica também uma ruptura com a his-tória oficial, dominante e reproduzidaacriticamente em distintos domínios so-ciais, acerca da origem e atuação doServiço. Centrada na idéia da iniciativapessoal de Rondon e no caráter huma-nitário do empreendimento, a versãooficial, que teve em Darcy Ribeiro seuprincipal propagador, é tomada comoconstitutiva do próprio Serviço, ou seja,instrumento de sua legitimação. Assimconsiderada, ela dá lugar a uma inter-rogação acerca da origem, estrutura efuncionamento do aparelho, sua com-posição e mudanças, suas orientações eseu lugar na totalidade da administra-ção pública. Como parte desta, é desta-cado o fato de o Serviço contribuir paraa criação de significados e a construçãode uma comunidade política represen-tada como nacional.

Essa forma de poder exercida a par-tir do SPI(LTN) é intitulada pelo autor“poder tutelar”. Trata-se de um poderestatizado, exercido sobre populações eterritórios, que busca assegurar o mo-nopólio dos procedimentos de definiçãoe controle sobre as populações indíge-nas. Para tanto, são meios importantese ao mesmo tempo seus produtos, a for-mulação de um código jurídico acercadas populações indígenas e a implanta-ção de uma malha administrativa insti-tuidora de um governo dos índios. Oexercício do “poder tutelar” sobre os ín-dios possui características específicasque não devem ser confundidas comoutras formas de poder dirigidas a essas

populações. O “poder tutelar” é conce-bido como uma forma reelaborada –com continuidades lógicas e históricas –da “guerra de conquista”. Enquantomodelo analítico, define o autor, a “con-quista” é um empreendimento com dis-tintas dimensões: fixação dos conquis-tadores nas terras conquistadas, redefi-nição das unidades sociais conquista-das, promoção de fissões e alianças noâmbito das populações conquistadas,objetivos econômicos e empresa cogni-tiva.

A criação do SPI(LTN) no quadro daadministração pública é tratada na se-gunda parte do livro. Entre outros as-pectos, esse movimento analítico per-mite perceber o quanto certas propos-tas, ações e contratempos enfrentadospelo órgão decorriam de sua posição re-lacional no conjunto da administraçãopública. “Trata-se de retirar da dimen-são de ’empresa heróica’ o que semprefoi parte da burocracia” (:112). Paracompreender como o Serviço é consti-tuído, Lima analisa a rede de relaçõesque liga Rondon ao MAIC. Nesse senti-do, são destacados os vínculos diretos eindiretos de Rondon com pessoas posi-cionadas no MAIC e no Museu Nacio-nal, com membros do apostolado positi-vista, com militares e com simpatizan-tes da campanha presidencial de Her-mes da Fonseca. A aproximação dessasredes ocorre em torno de algumasidéias como a de proteção. Entendidacomo defesa física e moral dos índios, aproteção devia ser exercida tanto juntoàs populações indígenas quanto aos de-mais grupos humanos dispersos peloterritório nacional. Para tanto, o Serviçoreivindicava o “monopólio e uso da vio-lência legítima em prol das populaçõesnativas” (:128).

Ponto de partida do exercício do po-der tutelar e ao mesmo tempo seu pro-duto, as classificações elaboradas pelo

Serviço acerca dos índios estão na ori-gem de suas ações. Concebidos pelo ór-gão como seres em transição, suasações estavam voltadas para proporcio-nar a incorporação dos índios à catego-ria de trabalhadores agrícolas.

As “estratégias” e “táticas” mobili-zadas pelo Serviço para alcançar seusobjetivos são discutidas na terceira par-te do livro. Articuladas com as classifi-cações mencionadas acima, as ações es-tavam orientadas sobretudo pela idéiade fases. Com as expedições, buscava-se reunir informações sobre o virtualterritório de ação e elaborar um mapasocial dos conflitos existentes e dasalianças passíveis de serem estabeleci-das localmente. Elas se prestaram, so-bretudo, à instalação administrativa doSPI(LTN). Dentre as fases, a pacifica-ção, pelos pressupostos assumidos acer-ca dos índios e pelo capital simbólicodela decorrente, era apresentada comoação exemplar do Serviço. À pacifica-ção, seguia a atração, termo que reme-tia à tática de deslocamento das popu-lações para as proximidades dos postosde atração e incentivo ao abandono daspráticas indígenas, o que vinha acom-panhado da criação de dependência emrelação aos postos. As medidas voltadaspara a destruição das formas nativas deorganização socioeconômica e políticaestão na base da ação civilizatória, queobjetivava fomentar a passagem dos ín-dios a trabalhadores agrícolas. Por fim,a definição jurídica do status de índio éum “dispositivo” importante da açãoestatal sobre as populações indígenas.Ao recuperar as discussões em torno doCódigo Civil (1917) e do Decreto 5484/28, o autor conclui que a legislaçãoatende especialmente a interesses ad-ministrativos do SPI(LTN). Trata-se deinstrumento para enfrentar as popula-ções não-índias e as redes sociais pre-sentes no aparelho de Estado com as

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quais não era possível estabelecer ali-anças.

Destaque-se que as indicações apre-sentadas acerca de como as ações doServiço introduziram mudanças nas po-pulações contatadas têm uma conse-qüência importante, ou seja, o fato de asanálises realizadas sobre as populaçõesindígenas, ou a partir delas, necessita-rem incorporar uma reflexão sobre osefeitos que têm sobre essas populações(sobre o seu modo de se autoconcebe-rem, conceberem ao outro e se organi-zarem socialmente) as ações dos diver-sos poderes, em particular, o estatal.

A última parte do livro tem como fo-co de análise a estrutura organizacionaldo órgão e as tarefas desempenhadasdurante sua inserção nos distintos Mi-nistérios. A articulação do Serviço nosplanos nacional (subdiretorias e se-ções), regional (inspetorias) e local (pos-tos, povoações indígenas, centros agrí-colas e delegacias) é discutida, assimcomo suas atribuições. Levar em contana análise do Serviço sua inserção dife-renciada nos Ministérios, permite aoautor perceber suas mudanças de sta-tus e orientações.

Produto de um conjunto de investi-gações desenvolvidas ao longo de onzeanos, o livro de Lima traz à luz parte dahistória esquecida da relação entre po-der estatal e populações indígenas. His-tória que apesar de não ser objeto dereflexões (acadêmicas ou administrati-vas), e talvez graças, sobretudo, a isso,permanece presente nas opções, pro-postas e ações implementadas junto àspopulações indígenas. Longe de com-prometer o livro, lamenta-se, contudo, afalta de uma revisão mais cuidadosa dotexto. Em alguns períodos, palavras efrases soltas trazem um certo prejuízo àcompreensão. Enfim, se o leitor me per-mite, sugeriria que a leitura fosse ini-ciada pelas fotos reproduzidas pelo au-

tor no “Caderno Iconográfico”. Emboranão haja referências a cada uma das fo-tos, o fato de que quanto mais se avan-ça na leitura do livro melhor se com-preende o que está em jogo nas ima-gens, parece-me indicativo da força daanálise produzida por Lima.

MICELI, Sergio. 1996. Imagens Nego-ciadas. Retratos da Elite Brasileira(1920-40). São Paulo: Companhia dasLetras. 174 pp.

Gustavo SoráDoutorando, PPGAS-MN-UFRJ

Em seu último livro, Miceli estuda oprocesso de autonomização relativa doscampos artístico e literário em face domundo da política e dos consumos cul-turais de diferentes frações constituti-vas do campo de poder entre as déca-das de 20 e 40. Para a análise de proble-mas teóricos clássicos, o autor cria umaforma concisa de abordagem empírica:um ponto de ataque que experimentaindefinidamente até o final do livro.

Ao propor uma interpretação socio-lógica da produção retratística de Cân-dido Portinari, enfoca uma classe de ob-jetos que permitem uma leitura privile-giada da relação entre formas legítimasde produção plástica e consumos cultu-rais distintivos, destinados a prover be-nefícios de afirmação social às elites. Aforma final de cada um dos retratos de-ve tanto à competência estética do pin-tor, quanto à busca de solidificação deuma imagem de classe entre represen-tantes de diversas frações dominantes:os retratos podem ser compreendidoscomo imagens negociadas.

Os retratos são interpretados comoesforços do pintor, uma espécie de so-ciologia pré-reflexiva voltada para mo-

delar em linguagem plástica os sinaisda posição ocupada e as expectativasde ascensão social do retratado: “O queestá em jogo é o sentido atribuído e per-petrado pelo artista ao expressar umadefinição compacta aliando uma fisio-nomia, aquela modelada na tela, a umasignificação simbólica, que tanto podeser uma pretensão política, uma qualifi-cação institucional, uma afirmação deprestígio, uma filiação doutrinária ouconfessional, uma habilitação erótica oumundana, ou quaisquer misturas des-ses investimentos sociais” (:64). Os re-tratos expõem um jogo de legitimida-des em tensão: do artista em relação aocampo artístico; do retratado em rela-ção ao campo literário e/ou político; umnecessitando do outro como embasa-mento de projetos afins.

Essa passagem resume a idéia deque o livro trata da construção de umaforma específica de poder rentável paraa época, não redutível ou determinávelpor outras; com seu código pictórico,simbólico, sutil: seus próprios termos denegociação. Com obstinação Miceli per-segue uma interpretação densa dessalinguagem, recupera a especificidadesociológica dessa prática cultural e po-lítica.

O livro pode ser lido como uma in-terpretação sociológica negociada. Mi-celi constrói um quadro como filigranaque amplia as possibilidades de com-preensão dos retratos de Portinari. Rom-pendo com os moldes clássicos da mo-nografia, especialmente com a obriga-ção de explicitar cada idéia ou fonte deinspiração, a introdução mostra o méto-do em ação, partindo dos indícios que épossível extrair dos retratos de Maria, amulher de Portinari. Analisando virtua-lidades pictóricas à luz da ascendenteposição do pintor no incipiente campoartístico brasileiro e do casal Portinarina estrutura do espaço social, Miceli

enche de tempo e espaço as obras, alionde as imagens representadas falamdos dilemas da trajetória e das expecta-tivas de posicionamento.

Portinari consagrou-se como um au-têntico modelo de artista modernista àmedida que avançava o regime de Var-gas e as empresas de descobrimentocultural das figuras de brasilidade, esua carreira é exemplar para visualizar,por contraste, o sistema de produção ar-tística circundante e suas possibilidadesde expansão. Filho de imigrantes mo-destos do interior paulista e casado comuma uruguaia, o pintor só contou comsua competência artística para ocuparum lugar no mundo (a capital). Dessemodo, representa ao mesmo tempo o ti-po de personagem decisivo para a auto-nomização de um campo de produçãocultural e de uma classe de agentes dis-poníveis para as empresas de relativa“cooptação” no campo de poder.

A introdução mostra a matéria-pri-ma, arma o leitor de uma intenção in-terpretativa, mas já o encaminha a ummolde gramatical que se repete quasesem interrupção até a última página.Miceli escolhe o retrato de uma perso-nagem. Assinala as circunstâncias queaproximaram o pintor do retratado. In-terpreta densamente o retrato como umarbitrário pictórico dentro de um arbi-trário cultural-nacional. Dessa mecâni-ca extrai indícios sobre os problemassociológicos do livro, aludindo sempre aum plano geral implícito e a um outroespecífico detalhado.

Para cada quadro aplica-se umamesma lente sistemática que enfoca,em primeiro lugar, a proximidade/dis-tância entre Portinari e o retratado. Emdiversos casos, percebe-se uma ênfasedemasiado forte na interpretação esté-tica (p. ex.: retratos de Jorge de Lima),para a qual o autor está dotado de umapercepção e linguagem de especialista.

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Às vezes insiste-se no sentido do retratona trajetória política e/ou intelectual doretratado (p. ex.: retratos de Jorge Ama-do); em outros, trabalha-se o tempo to-do em cima dos elementos de negocia-ção (p. ex.: Patrícia Galvão).

O livro avança em mosaico, pelo es-tudo de séries que o autor reúne parapôr de manifesto gêneros de negocia-ção ajustados a épocas particulares: re-lativas às competências do pintor e suaposição no sistema de relações que im-primia valor às suas obras; relativas àsclientelas preferenciais (escritores; es-critores-funcionários; pintores; presi-dentes da República; damas da elitetradicional; diplomatas; intelectuais fe-ministas etc.) e às espécies de capitalpor elas mobilizados. Por outro lado,presta-se atenção às variantes dentrode cada série, de onde se extraem rela-ções estruturais inéditas para com-preender um modo de produção cultu-ral dominante até 1945, período de for-te subordinação ao mundo da política ede um estado difuso de interligação dasvariadas práticas legítimas, entre asquais transitavam fluidamente os pro-dutores culturais: poesia, pintura, ro-mance, crítica, jornalismo etc.

A forma de análise pode ser sinteti-zada como estrutural. Consiste na ex-tração de indícios ao gerar contrastessistemáticos que vão do particular aogeral. Primeiro, entre diferentes versõesde retratos de uma mesma pessoa, fei-tos por Portinari e por outros artistas,com fotografias, caricaturas e outros su-portes possíveis de transmissão de ima-gens. Depois, contrastando as variantesdentro de um mesmo conjunto ou sub-gênero. As oposições dominantes sãopautadas em termos de “parecença”/fi-guração pictórica; distância/compro-misso com o retratado; presença/ausên-cia; figura/fundo; elite/paisagem popu-laresca.

No entanto, longe das armadilhasdo estruturalismo, a análise enfoca asingularidade de Portinari e as suas fór-mulas de sucesso. A individualidade doartista não é redutível a um modelo ge-ral e seu êxito não se deve à aplicaçãoracional de fórmulas-resultados. Micelirepisa as ambigüidades, os dilemas, asdificuldades, as pulsões, as energias so-ciais condensadas nas telas. Dá contado estado difuso em que eram vividosos atos para fazer-se em uma profissãoe das tentativas das elites na busca in-cessante da distinção social, para a qualum retrato de Portinari criava uma dis-tância insuperável.

O trabalho prossegue diferenciandoestilos mediante técnica de justaposi-ção de problemas suscitados pelas telasa partir dos contrastes, como retomandoindícios dos sinais pré-sociológicos que,em clave plástica, Portinari deixou àmercê do sociólogo. Embebido pelasvirtudes do método, um trabalho simi-lar deve realizar o leitor à medida queprossegue a leitura. Perto do final Mi-celi abre uma das poucas passagens desíntese explicativa. Em “Gênese deuma Fórmula Retratística” exterioriza ofoco de construção sociológica, temati-zando os fundamentos do sucesso cul-tural e comercial de Portinari: a confi-guração de propriedades únicas por elereunidas e seu sentido de orientação nosistema de relações artísticas e sociaisde sua época. Já nas últimas páginas oautor volta-se para o percurso interpre-tativo, para contabilizar as operaçõesempregadas e avaliar o rendimento ana-lítico de sua proposta.

Este livro se singulariza, entre ou-tros aspectos, ao demonstrar como épossível estudar processos de diferen-ciação social e cultural, transmitindo co-mo eram vividos a consagração e o fra-casso, as inclusões e as exclusões. Mos-tra a autonomização de práticas e esfe-

ras de atividade, recuperando o estadodifuso em que se travam as relações, seproduzem os atos, os limites, seus pode-res e as possibilidades de ultrapassá-los.

Por isso, sem mencionar uma só vezas palavras método e teoria, ImagensNegociadas é uma forte contribuiçãometodológica e teórica. O livro destacaa importância de pensar, antes de es-crever, objetos e pontos de ataque es-tratégicos. Os retratos são espaços decruzamento onde se condensam ener-gias que unem o maior espectro possí-vel de sentidos culturais e relações so-ciais. Quando esse ponto é “rentável”,o livro se torna pura interpretação, flui.O leitor se sente negociando a intençãode conhecimento com o autor.

VALE DE ALMEIDA, Miguel. 1995. Se-nhores de Si. Uma Interpretação An-tropológica da Masculinidade. Lisboa:Fim de Século. 264 pp.

Eliane Tânia Martins de FreitasProfª de Antropologia Social, UFRN

Miguel Vale de Almeida acredita que ofeminismo foi um marco. Um marco pa-ra a história recente e, em particular,para a história do pensamento antropo-lógico. Ao sacudir os clichês acerca dafamília, do casamento, da sexualidadee das formas de relacionamento entrehomens e mulheres – dentre tantos ou-tros –, teria forçado a antropologia a re-ver alguns de seus conceitos mais tradi-cionais e a construir instrumentos teóri-cos mais adequados a essa nova reali-dade social.

Uma das críticas mais constantesdas antropólogas feministas incidia so-bre o que diagnosticavam como o malebias da disciplina. Como efeito dessa

preocupação, multiplicaram-se os estu-dos sobre mulheres realizados por mu-lheres. Isso caracterizou um novo cam-po de estudos, a chamada antropologiado gênero, ou women’s studies.

Vale de Almeida, no entanto, a em-prega com outro objetivo: chamar aatenção para a escassez de estudos so-bre gênero que abordem questões es-pecificamente pertinentes à identidademasculina. Sua pesquisa, realizada naaldeia de Pardais, no Alentejo (Portu-gal), tem como primeiro objetivo ofere-cer uma contribuição para o preenchi-mento dessa lacuna. Para realizá-la, nomelhor estilo “pesquisa participante” –expressão utilizada pelo autor –, mu-dou-se para uma casa da aldeia e pas-sou a freqüentar os cafés, principal re-duto para o exercício da sociabilidademasculina adulta. Uma vez relativa-mente integrado a certa rede de socia-bilidade local, constituída basicamentepor cabouqueiros (a categoria profissio-nal mais baixa na hierarquia que orga-niza o trabalho na indústria do mármo-re, maior fonte de emprego e base daeconomia regional), passou a investigaros valores, costumes e discursos me-diante os quais pudesse ir aos poucosdesvendando os códigos que regem aconstrução e a reprodução do que de-nomina identidade masculina hegemô-nica.

A pesquisa tem uma motivação bá-sica: até então, os raros antropólogosque haviam se dedicado a pensar amasculinidade no campo dos estudossobre gênero haviam se voltado, sobre-tudo, para as identidades desviantes,principalmente para a homossexualida-de. Vale de Almeida traz em seu traba-lho uma outra proposta: que seja o mo-delo hegemônico de masculinidade oobjeto de estranhamento, como costu-mam dizer os antropólogos; que seja eleo exótico a ser desvendado pelo estudo.

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Para realizar essa empresa, alia a umaperspectiva metodológica hermenêuti-ca o conceito de habitus de Pierre Bour-dieu, bem como as reflexões desse au-tor – e de Anthony Giddens – sobre arelação entre estrutura e prática.

Múltiplas seriam as formas possí-veis de ser masculino, donde o autor fa-lar em hegemonia de um certo modelo.Porque há outros. A narrativa de um ex-põe algo de sua motivação pessoal pararealizá-lo: “Um dia, ouvi um rapaz, zan-gado com um outro, gritar: ‘não és ho-mem, não és gaiato [rapaz], não és na-da!’ Gostaria de imaginar que este tra-balho o ajudasse a perceber que as coi-sas não têm de ser necessariamente as-sim” (:239). O autor propõe, portanto,um ousado exercício de desnaturaliza-ção de seu objeto, aquilo que não podedeixar de fazer toda boa antropologia.

Uma idéia central no livro é que arelação entre os gêneros seria assimé-trica e contextualmente hierarquizada,isto é, se a diferença de gênero pode serentendida como um princípio classifica-tório apto a dar sentido a qualquer ser(pessoas, objetos, atividades), é tambémpassível de ser politicamente apropria-da como instrumento ideológico para alegitimação da dominação de um gêne-ro sobre o outro. Esse uso da diferençade gênero a aproximaria das diferençasde classe e de idade, por exemplo.

Eis uma passagem onde o autorcompara os modos de construção dasidentidades masculina e feminina noAlentejo: “Em geral, pode-se dizer quea masculinidade tem de estar sempre aser construída e confirmada, ao passoque a feminilidade é tida como uma es-sência permanente, ‘naturalmente’ rea-firmada nas gravidezes e partos”. O au-tor refere-se, então, ao momento doprocesso de socialização em que o gaia-to deve deixar a segurança da casa ma-terna para se lançar definitivamente

nos círculos de sociabilidade masculi-na, na esfera pública. Este seria um mo-mento dramático, de ruptura, inexisten-te na trajetória feminina, caracterizadapela continuidade. É possível observar,no entanto, certa incongruência nesseponto: se os antropólogos sabem que afeminilidade, em Pardais ou outro lu-gar, não é essência, mas acontecimentocultural, os pardalenses tomam a iden-tidade masculina como algo tão “dado”quanto a identidade feminina. Quemdiz que ser homem segundo o modelohegemônico é estar cotidianamente“por um fio” é o antropólogo.

Enquanto modelo ideal, a masculi-nidade hegemônica exerceria controlesobre o processo de constituição dasidentidades masculinas, sendo ela pró-pria, como todo modelo, realizável ape-nas parcialmente. À questão sobre osmodos de reprodução desse modelo,Vale de Almeida responde com o con-ceito de habitus, de Bourdieu, propon-do que a teoria da prática seria uma al-ternativa promissora para a solução dealguns problemas nesse campo. Dentreas implicações dessa escolha teórica lis-tadas pelo autor, menciono duas: a com-preensão do caráter dinâmico e recipro-camente instituidor da relação entre es-trutura e prática e a multiplicidade dosmodos possíveis de estruturação das re-lações entre os gêneros, segundo os va-lores e interesses em jogo.

O livro, segundo o próprio autor, es-tá organizado em capítulos relativa-mente independentes, tratando de dis-tintos aspectos da identidade masculinahegemônica e das relações entre os gê-neros em Pardais – alguns com um en-foque mais etnográfico, outros de incli-nação mais teórica. Três momentos me-recem atenção especial: a análise douniverso social do trabalho nas pedrei-ras, no capítulo 2; a leitura do ritual datourada como um texto sobre a, e uma

performance da, masculinidade hege-mônica, no capítulo 6; e, finalmente, aanálise da poesia popular, as décimas,como modo legítimo de expressão deemoções femininas pelos homens, seusprincipais produtores e divulgadores,no capítulo 7.

Vale de Almeida encerra seu traba-lho chamando a atenção para as dificul-dades das pesquisas em torno de obje-tos como os processos de incorporação(embodiment) – por definição não-cons-cientes para os atores sociais – e que,como a sua, envolvam o emprego deuma metodologia baseada, ao menosparcialmente, em histórias de vida, tan-tas vezes reinventadas pelos narradoresao longo do período em que é realizadoo trabalho de campo. Tais dificuldadesdecorreriam, em alguma medida, doque ele denomina “império do verbo”,que prevaleceria na antropologia tantonos métodos de coleta de dados quantoem sua exposição. Indo ao encontro detendências atuais da disciplina, sugereque a antropologia visual seria um ca-minho possível para a superação desseproblema. Por fim, deixa para seus co-legas leitores uma última sugestão: Par-dais bem mereceria um estudo sobre osprocessos de construção da feminilida-de, hegemônica ou não, estudo que po-deria ser realizado através de um fe-cundo diálogo com o seu.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (org.).1995. Antropologia do Parentesco –Estudos Ameríndios. Rio de Janeiro:Editora UFRJ. 382 pp.

Denise FajardoMestranda de Antropologia Social, USP

Em busca de uma estrutura que dê con-ta da variabilidade e complexidade dossistemas das terras baixas sul-america-nas, Antropologia do Parentesco é, cer-tamente, uma obra de caráter inéditona história da etnologia amazônica, tan-to por sua abrangência, quanto por suacompetência.

A abrangência etnográfica alcança-da é fruto de um trabalho em equipe:um grupo de pesquisa, constituído porantropólogos formados no Programa dePós-Graduação em Antropologia Socialdo Museu Nacional, que se integraramao projeto “Etnografia e Modelos Ana-líticos: Tipos de Estrutura Social naAmazônia Meridional”, coordenado porEduardo Viveiros de Castro, a partir de1984. Pelo escopo das sociedades estu-dadas, percebe-se que o projeto deuprioridade a grupos indígenas até entãopouco explorados etnograficamente:Waimiri-Atroari, Parakanã, Mura-Pira-hã, Arara e Wari. A exceção são os gru-pos xinguanos e Kayapó, também in-cluídos na coletânea.

Se levarmos em conta que até 1985,época em que o projeto estava apenasno início, o tema do parentesco pareciaestar longe de ocupar uma posição dedestaque na etnologia indígena brasi-leira – principalmente se comparado aopeso dos estudos sobre contato interét-nico –, é impossível deixar de constatarque, atualmente, o campo dos estudosdo parentesco vem sendo qualitativa equantitativamente revigorado e que, nabase dessa renovação encontramos Vi-

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veiros de Castro e seus alunos. A dedi-cação desses pesquisadores a um pro-grama de estudos voltado para o paren-tesco certamente fortaleceu não só suaspesquisas individuais, como o tema pa-rentesco ameríndio.

Antropologia do Parentesco é umacoletânea cujos artigos aparentementeencerram-se em si mesmos, sem dialo-gar uns com os outros. Isso porque cadaum deles, com exceção do texto deMarcela Coelho de Souza, analisa as-pectos de uma única sociedade indíge-na. Entretanto, se o leitor tiver fôlegopara ler artigo por artigo, será recom-pensado com uma outra dimensão queemerge do conjunto do livro, na formade um diálogo interno.

Cabe ressaltar que os artigos tradu-zem uma discussão de especialistas arespeito do parentesco amazônico, den-tro de um modelo teórico inovador, ain-da em construção, inspirado nos estu-dos sobre os sistemas dravidianos daÍndia, pelas semelhanças entre ambosos contextos, no que diz respeito às re-gras de casamento e à estrutura social,com filiação indiferenciada e inexistên-cia de unidades permanentes de trocaexogâmica. Por isso mesmo, exigem porparte do leitor um mínimo de familiari-dade com o vocabulário utilizado. Nes-se sentido, uma sugestão útil é recorrer,prévia ou posteriormente, aos ensaiosdo próprio organizador, citados na bi-bliografia.

Um esboço geral da paisagem socio-lógica da Amazônia e do Brasil Centralencontra-se na introdução de Viveirosde Castro, e o modo como esse esboço étraçado – por um lado, atentando para avariabilidade e complexidade dos siste-mas de parentesco ameríndio e, por ou-tro, propondo uma estrutura que dê con-ta de tamanha diversidade – parece re-fletir o duplo movimento constitutivo daempreita desse grupo de pesquisadores.

O que é dito na introdução, sob aforma de um “sobrevôo” no parentescoameríndio, somado aos comentários ini-ciais do artigo que abre o livro, “Siste-mas Dravidianos na Amazônia”, consti-tui-se em uma boa porta de entrada pa-ra o que segue. Nesse primeiro artigo,Márcio Silva mostra, de forma brevemas instrutiva, o modo como, ao longoda história da antropologia, certas ter-minologias de parentesco foram sendoabordadas sob perspectivas distintas,desde Morgan, passando por Radcliffe-Brown, Lévi-Strauss, Dumont, Yalmane Trauttman, até chegar aos autores quepossibilitaram um diálogo entre os con-textos sul-americano e indiano, a saber,Peter Rivière e Joanna Overing.

E é justamente nesse diálogo querepousa o projeto dos autores da coletâ-nea, a começar pelo próprio artigo deMárcio Silva, em que a distinção básicaentre sistemas de parentesco, como odos Waimiri-Atroari, e sistemas india-nos, como os estudados por Dumont,Trauttman e outros, é atribuída ao cál-culo de classificação social. Adiante,passa-se pelo artigo de Marcela Coelhode Souza, “Da Complexidade do Ele-mentar: Para uma Reconsideração doParentesco Xinguano”, em que o mate-rial bibliográfico disponível sobre o pa-rentesco xinguano é analisado à luz dashipóteses teóricas do grupo. Trata-se deum artigo de fôlego que passa em revis-ta as sucessivas interpretações propos-tas para a organização social dos gru-pos xinguanos, discute suas implica-ções e propõe um novo tratamento paraos sistemas de aliança desses grupos.Até chegar ao artigo de Vanessa Lea,“Casa-se do Outro Lado: Um Modelo Si-mulado de Aliança Mebengokre (Jê)”,cuja inclusão no livro se justifica pelaafinidade de seu trabalho com o que es-tá no horizonte do projeto em questão,ou seja, o estabelecimento de relações

entre os sistemas sociais amazônicos ecentro-brasileiros.

Tomando como parâmetro o para-digma tamil utilizado por Dumont comomodelo de terminologia dravidiana, amaioria dos artigos da coletânea con-duz suas análises no sentido de eviden-ciar em que aspectos o dravidianato en-contrado nas sociedades indígenasamazônicas se diferencia do dravidia-nato indiano.

Na seqüência do artigo de MárcioSilva, Carlos Fausto, em “De Primos eSobrinhas: Terminologia e Aliança en-tre os Parakanã (Tupi) do Pará”, desen-volve sua argumentação com o objetivode mostrar em que aspectos o caso pa-rakanã se distancia, complexificando,do modelo dravidiano simétrico, na me-dida em que, se opera com as distinçõesterminológicas básicas, previstas pelomodelo clássico, o faz de maneira sin-gular, ou seja, através de uma articula-ção entre duas estruturas terminológi-co-matrimoniais: a dravidiana (horizon-tal) e a avuncular (oblíqua). Além deexplicar como essa articulação opera nalógica parakanã, Carlos Fausto lançamão do recurso estatístico, analisa aspráticas matrimoniais e demonstra ha-ver um alto grau de congruência entreessas práticas e as prescrições e prefe-rências dos Parakanã em torno de umregime de aliança avúnculo patrilate-ral.

Guiado pelas particularidades daetnografia pirahã, Marco Antônio Gon-çalves, em “A Produção da Afinidadeno Sistema de Parentesco Pirahã”, as-sim como os demais autores, tambémestá interessado em analisar um siste-ma de parentesco em particular. Entre-tanto, diferentemente dos demais casosanalisados na coletânea e, com certeza,ao contrário do que ocorre na maioriadas sociedades indígenas da Amazô-nia, entre os Pirahã são os nomes e não

os termos de parentesco que ocupam ocenário das relações interpessoais. Detal forma que, nesse caso, a mera ob-servação do modo como as pessoas sedesignam mutuamente não basta paraque se conheça os termos de parentes-co. Marco Antônio Gonçalves explicaque foi necessário dar um passo alémao da observação e induzir seus infor-mantes a reproduzirem suas classifica-ções. De posse dessa terminologia, pas-sa a analisar o sistema de parentescopirahã e o faz tomando como ponto departida o modo como se dá a transmis-são da aliança de uma geração a outra.Na seqüência, analisa tanto os termosquanto os comportamentos e institui-ções que definem as relações entrepessoas casáveis, buscando explorar,nesse terreno, o papel da afinidade nosistema pirahã.

Partindo de uma análise do sistematerminológico, bem como das regras decasamento e residência entre os Arara(Caribe), Márnio Teixeira Pinto, em“Entre Esposas e Filhos: Poliginia e Pa-drões de Aliança”, discute o estatuto docasamento polígamo nessa sociedade.Para tanto, recupera o modo pelo qualdiferentes autores, como Murdock e Lé-vi-Strauss, definem a instituição da po-ligamia em suas teorias de parentesco ecasamento, procurando mostrar que,apesar de possuírem perspectivas teóri-cas distintas, tanto um quanto outroconsideram a poligamia enquanto umcomposto de várias uniões monogâmi-cas, como se todas as relações de alian-ça envolvidas nesse composto fossemhomogêneas entre si. Em seu artigo,Márnio Teixeira Pinto se contrapõe aessa visão e – a partir de seus dados so-bre terminologias, padrões de aliançae residência entre os Arara – procuramostrar que a poliginia, nessa socieda-de indígena, resulta de “uma composi-ção de duas instituições matrimoniais

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diferentes: os casamentos ‘primários’ eos ‘casamentos ‘secundários’”, as quaiscorrespondem à presença de dois siste-mas de classificação paralelos, um –que o autor define como “horizontal” –atuando no nível das relações entrepessoas que se originam de um mesmogrupo residencial, e outro, “oblíquo”,atuando entre pessoas que se originamde grupos residenciais distintos. Ambosos sistemas, por sua vez, geram dois for-matos matrimoniais correlatos: o patri-lateral e o avuncular.

“O Sistema de Parentesco Wari’” éo título do artigo de Aparecida Vilaça.Os Wari’, comumente conhecidos comoPakaa Nova, habitantes do Estado deRondônia, apresentam uma série departicularidades em seu sistema declassificação social. Em primeiro lugar,trata-se de uma sociedade amazônicacom terminologia de tipo crow, associa-da à presença de um princípio omaha esem prescrição matrimonial. Não obs-tante isso, entre os Wari’, inexistem osmecanismos de descendência unilinearfreqüentemente associados a essas ter-minologias. Mais interessante do que aspróprias conclusões é o percurso analí-tico adotado pela autora no decorrer doartigo: ao invés de analisar o materialwari’ à luz das teorias disponíveis sobresistemas crow e omaha, Aparecida Vi-laça inverte o jogo e examina aquelasteorias que considera mais importantesà luz do material wari’. E, nesse senti-do, o artigo vale mais pelas questõesque coloca do que pelo nível de com-preensão a que chega a respeito do sis-tema wari’. Mesmo porque, como a pró-pria autora sugere, o problema não sãoos fatos wari’, e sim a necessidade de sebuscar novos parâmetros mais adequa-dos à compreensão e classificação deum sistema de parentesco, mesmo queseja necessário buscá-los em outras di-mensões da vida simbólica de uma so-

ciedade, tais como na cosmologia, naescatologia, nos rituais.

E me parece ser justamente essa aporta aberta pelos autores de Antropo-logia do Parentesco, ao se empenharemnão só em contribuir para aumentar ocorpus etnográfico sul-americano, mas,sobretudo, por fazê-lo buscando umarenovação nos estudos de parentesco.