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623 Um herói eternizado em bronze: o monumento ao general Osório no Rio de Janeiro (1894) Mariana Pastana 1 Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o monumento construído em memória à Guerra do Paraguai (1864-1870) na jovem República brasileira. A estátua equestre erguida em homenagem ao general Luis Manoel Osório, comandante-em-chefe de uma das batalhas mais significativas da guerra, foi inaugurada em 1894, na Praça XV de Novembro, centro da capital federal. O monumento foi o primeiro a ser construído pelo novo regime e sua localização central no Rio de Janeiro denota a relevância que foi dada à preservação da memória do militar. Portanto, torna-se importante perceber como o recente governo republicano se apropriou da memória do herói de uma guerra vencida no Império. Palavras-chave: Monumento. Memória. Guerra do Paraguai. General Osório. Primeira República Abstract: This article aims to analyze the monument built in memory of the Paraguayan War (1864-1870) in the young Brazilian Republic. The equestrian statue raised in honor of General Luis Manoel Osorio, commander-in-chief of one of the most significant battles of the war, was inaugurated in 1894 in Praça XV de Novembro, center of the federal capital. The monument was the first to be built by the new regime and its central location in Rio de Janeiro denotes the relevance that was given to preserving the military's memory. Therefore, it becomes important to realize how the recent republican government appropriated the memory of the hero of a war won in the Empire. Keywords: Monument. Memory. War of Paraguay. General Osório. First Republic. 1. Uma Guerra do Império, mas um herói da República No dia 12 de novembro de 1894, o céu amanheceu carregado de nuvens negras no Rio de Janeiro. Um temporal se aproximava. Contudo, este prenúncio não foi suficiente para afugentar os vários cidadãos que se aproximavam da Praça XV de Novembro. Bondes lotados, pessoas chegando pelas ruas adjacentes ou mesmo só aparecendo nas janelas das casas 2 . Todos compareciam para prestar homenagem à memória de Manoel Luis Osório. 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Email: [email protected] 2 Jornal do Commercio (RJ), 13 de novembro de 1894. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Um herói eternizado em bronze: o monumento ao general ... · comum e mitos fundadores, constituir uma memória e identidade nacionais e, assim, sua legitimação. A memória da nação,

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Page 1: Um herói eternizado em bronze: o monumento ao general ... · comum e mitos fundadores, constituir uma memória e identidade nacionais e, assim, sua legitimação. A memória da nação,

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Um herói eternizado em bronze:

o monumento ao general Osório no Rio de Janeiro (1894)

Mariana Pastana1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o monumento construído em memória

à Guerra do Paraguai (1864-1870) na jovem República brasileira. A estátua equestre erguida

em homenagem ao general Luis Manoel Osório, comandante-em-chefe de uma das batalhas

mais significativas da guerra, foi inaugurada em 1894, na Praça XV de Novembro, centro da

capital federal. O monumento foi o primeiro a ser construído pelo novo regime e sua

localização central no Rio de Janeiro denota a relevância que foi dada à preservação da

memória do militar. Portanto, torna-se importante perceber como o recente governo

republicano se apropriou da memória do herói de uma guerra vencida no Império.

Palavras-chave: Monumento. Memória. Guerra do Paraguai. General Osório. Primeira

República

Abstract: This article aims to analyze the monument built in memory of the Paraguayan War

(1864-1870) in the young Brazilian Republic. The equestrian statue raised in honor of General

Luis Manoel Osorio, commander-in-chief of one of the most significant battles of the war,

was inaugurated in 1894 in Praça XV de Novembro, center of the federal capital. The

monument was the first to be built by the new regime and its central location in Rio de Janeiro

denotes the relevance that was given to preserving the military's memory. Therefore, it

becomes important to realize how the recent republican government appropriated the memory

of the hero of a war won in the Empire.

Keywords: Monument. Memory. War of Paraguay. General Osório. First Republic.

1. Uma Guerra do Império, mas um herói da República

No dia 12 de novembro de 1894, o céu amanheceu carregado de nuvens negras no Rio

de Janeiro. Um temporal se aproximava. Contudo, este prenúncio não foi suficiente para

afugentar os vários cidadãos que se aproximavam da Praça XV de Novembro. Bondes

lotados, pessoas chegando pelas ruas adjacentes ou mesmo só aparecendo nas janelas das

casas2. Todos compareciam para prestar homenagem à memória de Manoel Luis Osório.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Email: [email protected]

2 Jornal do Commercio (RJ), 13 de novembro de 1894. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

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Neste solene dia, foi inaugurado no centro da capital federal o monumento ao general, herói

da Guerra do Paraguai.

A estátua equestre, construída em bronze, derretido dos canhões usados na guerra, e

esculpida por Rodolfo Bernardelli, foi o primeiro monumento erguido na jovem República. A

grande festa de inauguração fez parte de uma semana de cerimônias em celebração do

aniversário da Proclamação da República e a posse do primeiro presidente civil3. O evento foi

marcado pela presença de diversos políticos, militares, representantes das Repúblicas

argentina e uruguaia, discurso de familiares e militares, desfiles de colégios e apresentação de

bandas. Uma grande confraternização em agradecimento aos feitos do general Osório.

O presente artigo tem como objetivo analisar a estátua do general Osório, buscando

compreender se o monumento representou simbolicamente a Guerra do Paraguai a partir de

valores republicanos. Nesse sentido, se investigará a trajetória de criação do monumento até

sua inauguração. Portanto, será importante perceber como a recente República se apropriou da

memória do herói de uma guerra vencida no Império para enaltecer determinados padrões

condizentes com o novo regime.

2. A Guerra do Paraguai e a identidade nacional brasileira

A Guerra do Paraguai (1864-1870), marco histórico para os países nela envolvidos, foi

um evento traumático para a América Latina e de consequências ímpares para a constituição

dos Estados da região platina. Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai dividiam fronteiras e

tensões constantes em torno dos rios da bacia do Prata, principal via de comércio para esses

países. Ao longo do Oitocentos, inúmeros conflitos eclodiram protagonizados pela Argentina

e pelo Brasil, que se empenhavam em obter a hegemonia e controle do território4. Na década

de 1860, o Paraguai encontrava-se em um período de prosperidade, ainda distante de ser visto

como um país industrializado, mas com um desenvolvimento nacional em crescimento

exponencial, devido à política de Carlos Antonio Lopez5. Foi neste momento que o país

passou a integrar o jogo de equilíbrio de poder na região.

A guerra foi essencialmente uma disputa entre Estados em fase de consolidação de

seus territórios e identidades. A luta contra o inimigo da nação, ainda que forjado,

possibilitava estimular o desenvolvimento de laços entre seus membros. Apesar dos esforços

imperiais para estabelecer a união entre os indivíduos, a guerra se prolongaria mais do que o

3 Prudente de Moraes, presidente do Brasil, 1894-1898.

4 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São

Paulo: Companhia das Letras, 2002. 5 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São

Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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esperado, colocando em evidência as contradições da sociedade monárquica. Dessa forma, o

conflito se tornou um divisor de águas para o Império brasileiro, pois embora tenha sido

apropriado como elemento de coesão social, transformou-se num dos principais fatores para a

derrocada da monarquia.

Nesse período, os discursos oficiais brasileiros durante a guerra buscavam arduamente

a mobilização da sociedade para o conflito, percebendo-se o caráter patriótico instituído nos

mesmos. Segundo Vitor Izecksohn, a “morte pela pátria” era um fator constitutivo desse

espírito cívico, assim como a exaltação dos heróis que lutaram pela nação. Em contraponto,

ainda que tenha existido esse interesse em se apropriar do momento de guerra para estabelecer

uma identidade nacional, o fortalecimento do corporativismo militar, que foi estimulado pelo

conflito, só pôde ser consolidado a partir do “decréscimo evidente da influência das lideranças

monárquicas no pensamento do Exército” 6. Logo, a insatisfação dos militares com o Império

acentuou o cenário de crise do regime.

O empenho do Império brasileiro em delinear uma identidade da nação, observado no

final do século XIX, não se restringia somente a propaganda em torno da Guerra do Paraguai

e a importância da união entre os cidadãos, mas diversos outros elementos, como por

exemplo, o culto a heróis nacionais foram estimulados na sociedade. A construção de

monumentos se insere nessa demanda de produção de cidadãos orgulhosos das conquistas e

heróis da nação. Neste momento, a criação de estátuas para rememorar heróis/eventos se

proliferou na Europa, sendo essa tradição inaugurada no Brasil em 1862, com a construção da

primeira escultura urbana no país, a estátua equestre de D. Pedro I, herói da Independência7.

O monumento foi erguido na, até então, Praça da Constituição, atual Praça Tiradentes. Nesse

período, os monumentos predominantes eram sobre personagens históricos8.

A construção de um monumento em homenagem a um personagem da história do país,

neste caso, um herói de uma guerra nacional, traz à tona indagações acerca das questões que

envolvem a escolha desse indivíduo. Essa escolha não foi arbitrária, mas realizada com um

objetivo específico de materializar um discurso, uma determinada memória, sendo assim, um

mecanismo de construção de uma identidade. De acordo com Anne-Marie Thiesse9, o Estado-

Nação moderno se consolida a partir dos elos entre os indivíduos, os quais são constituídos

por meio do resgate de um passado comum, na sua representação e transmissão. Dessa

6 IZECKSOHN. Vitor. O cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército

brasileiro. Rio de Janeiro: E-papers, 2002. p.157. 7 KNAUSS, Paulo. Cidade vaidosa: Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sete letras, 1999.

8 KNAUSS, Paulo. Cidade vaidosa: imagens urbanas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999.

9 THIESSE, Anne-Marie. A criação das identidades nacionais: Europa - séculos XVIII-XX. Lisboa, 2000.

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maneira, a elevação de um cidadão com características exemplares e valores a serem seguidos

faz parte de uma série de procedimentos essenciais para a construção da identidade nacional.

3. Crises e incertezas: a busca pela legitimação do regime

Para compreender o processo de construção da memória desenvolvida no monumento,

é necessário perceber que ela é feita a partir de determinadas escolhas dependentes das

demandas do tempo presente. Neste caso, a jovem República, proclamada em 1889, pretendeu

construir um imaginário social positivo do regime, buscando nas memórias de grandes

acontecimentos e heróis do Império instrumentos de legitimação. Os primeiros anos do novo

governo foram marcados por intensas disputas políticas e ideológicas. O recente regime havia

sido proclamado não pela iniciativa popular, mas por um movimento militar, o que trouxe a

necessidade ainda maior de promover uma imagem favorável, assim como, de certa forma,

demonstrar a ligação dos setores militares com a população.

O Rio de Janeiro foi o cerne das principais transformações decorrentes da primeira

década do governo republicano. As mudanças não se limitavam ao campo político. O

turbilhão pós-proclamação da República afetou também os âmbitos econômicos, sociais e

culturais. E, por ser capital do país, a cidade foi a mais atingida. Com a abolição da

escravidão em 1888, a quantidade de mão de obra no mercado intensificou o desemprego. O

êxodo de trabalhadores vindos do interior e também imigrantes, principalmente portugueses,

para a cidade, impactou o crescimento da população. Os problemas de habitação, saúde e

saneamento foram se agravando. Além disso, a especulação financeira gerada pelo

Encilhamento dava contornos ainda mais específicos à crise econômica. Enquanto isso, as

ideias circulavam mais livremente no mundo pós-monarquia, observando-se o aumento da

criação de jornais de propaganda e organizações políticas e ideológicas

10.

O presidente marechal Floriano Peixoto, em exercício de 1891-1894, liderou um

governo forte e centralizado, apesar do caráter federalista republicano. O período que esteve

no poder foi bastante conturbado, caracterizado pelo sentimento anti-lusitano do movimento

jacobino, pela perseguição e repressão aos seus opositores11

. O Rio de Janeiro comandado por

Barata Ribeiro12

, nomeado pelo marechal, promoveu a exclusão dos pobres da cidade, a então

nomeada “classe perigosa”. O prefeito da capital seguiu uma política dita modernizadora, a

10

Sobre o Rio de Janeiro no início da República, ver CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de

Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 11

OLIVEIRA, Rodrigo Perez. As armas e as letras: Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército

brasileiro. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2011. 12

Prefeito do Rio de Janeiro de 1892-1893.

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qual possuía um cunho classista e higienista que culminou na emblemática demolição do

famoso cortiço “Cabeça-de-Porco”13

.

O Brasil e, principalmente, o Rio de Janeiro viviam um período de incertezas. A

República, que prometia mais liberdade, participação popular e trazia consigo expectativas de

progresso, percebia o árduo caminho que teria de enfrentar. Considerando todo esse quadro de

instabilidade na capital e no país, o governo instaurado viu a necessidade, ainda maior, de

buscar determinados alicerces para fundamentar o regime. De acordo com José Murilo de

Carvalho:

A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime

político. É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça, mas, de modo

especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as

sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu

passado, presente e futuro. O imaginário social é constituído e se expressa por ideologias e

utopias, sem dúvida, mas também (...) por símbolos, alegorias, rituais, mitos14

.

Além da necessidade de sanar toda a crise e incerteza ocasionada pela transição de

governo, os republicanos precisavam, ainda, fortalecer e justificar o sistema político

proclamado. Neste contexto, a criação do imaginário social tornou-se essencial para

estabelecer uma identidade e o sentimento de união entre os integrantes da nação. Para tanto,

o recém-instaurado regime buscaria por meio de elementos do passado, como uma herança

comum e mitos fundadores, constituir uma memória e identidade nacionais e, assim, sua

legitimação.

A memória da nação, segundo Fernando Catroga15

, é definida a partir de atos de re-

presentificação, os quais ocorrem por meio da institucionalização de símbolos e ritos que

promovam no presente um vínculo com o passado comum, com o objetivo de manter a coesão

social. Portanto, a identidade é uma construção social desenvolvida para que os indivíduos

sejam capazes de estabelecer um sentimento de pertença. Catroga aponta ainda que a memória

se constitui pelas inúmeras vozes que a cercam. Ou seja, a memória individual se desenvolve

a partir da memória da família, e também do grupo social a qual o indivíduo pertence, e

assim, subsequentemente, em uma sobreposição de memórias. Da mesma maneira, se

constituem a memória de determinado grupo ou, pensando mais amplamente, a memória de

uma nação.

13

Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996. 14

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: O imaginário da república no Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990, p.10. 15

CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001.

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Por conseguinte, a memória de grupo se define a partir de escolhas, desenvolvendo um

“enquadramento da memória” 16

. Conforme Michael Pollak, a memória de um grupo, ou a

memória da nação, oprime e domina algumas memórias para firmar determinada identidade.

No caso, a construção da memória oficial, àquela institucionalizada pelo Estado-Nação, é feita

a partir da imersão das memórias subterrâneas, referentes às minorias e aos grupos

marginalizados. Nesse sentido, a memória histórica da nação seria o resultado da memória de

grupos específicos que, por meio da seleção de dados historiográficos da nação, buscam

legitimar uma construção oficial17

.

Dessa forma, são os ritos que permitem a união da sociedade e sua constante repetição

determina elementos característicos de cada grupo social – ou nacional18

. Logo, os

monumentos são construídos a partir de uma vontade de manter viva a memória, com o

objetivo de “parar o tempo” e “bloquear o trabalho do esquecimento”. No entanto, só são

considerados lugares de memória quando possuem significação, ou seja, quando carregam

simbolismo para alguém. De acordo com Pierre Nora:

São lugares com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional,

simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente

material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de

uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um

testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de

um ritual19

.

Posto isto, a criação do monumento ao general Osório consistiu no esforço do Estado-

Nação não só em homenagear o herói e manter viva a memória da Guerra do Paraguai, mas

também ressignificar a identidade da nação, reforçando os laços de solidariedade da

comunidade por meio de políticas de memória. O monumento é um sinal do passado

essencialmente ligado ao desejo de perpetuação de um acontecimento pela sociedade, um

legado da memória coletiva20

. Em outras palavras, eles são criados com o propósito de

transmitir a memória e identidade da nação para as gerações seguintes. Sendo assim, a

construção de um monumento para eternizar um evento, ou herói, seria uma forma de

16

POLLAK, Michael. Memória e Identidade social. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro. Vol. 5, n. 10,

1992, p. 200-212. 17

FRANK, Robert. La memoria y la historie. Historia del presente, ISSN 1579-8135, Nº 3, 2004 18

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo, 1993. 19

Ibidem, p.21. 20

LE GOFF, Jaques. História e memória. Campinas, São Paulo: editora UNICAMP, 2012.

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institucionalizar a memória da guerra e, além disso, uma ferramenta de propagação do

discurso do Estado21

.

4. A memória do general Osório e a jovem República

General Osório foi comandante-em-chefe das tropas brasileiras no Paraguai em

momentos cruciais da guerra, como o Passo da Pátria e a Batalha do Tuiuti22

. De acordo com

sua biografia, Osório não pretendia ser oficial, “além de ingressar no Exército contra a

vontade, jamais sentiu entusiasmo pela vida militar” 23

. Durante a guerra, sua elevação a

comandante foi vista com apreensão, devido ao fato de haver militares mais graduados que ele

para o cargo, tendo ele sido apenas comandante de unidades de 2ª linha24

. Apesar disso, sua

participação no conflito garantiu apoio de veteranos da Revolução Farroupilha que já o

respeitavam25

e sua grande experiência no campo de batalha foram fatores que sustentaram

sua promoção.

Diferente de militares como duque de Caxias, Osório era conhecido por sua relação de

proximidade com soldados e permissividade com algumas transgressões que violavam as

condutas formais militares. Francisco Doratioto explicita um caso curioso sobre a

personalidade do general:

(...) em 1865, o Exército brasileiro marchava em direção ao Paraguai sob seu comando

quando Paulo Alves, conhecedor do gosto do general em escrever poesias, arriscou solicitar-

lhe uma promoção em versos. O despacho de Osorio, em resposta, veio em igual forma:

“Quem faz versos tão formosos,

Há de ter grande talento

E ser valente. Por isso,

Defiro o requerimento.

Mas não se repita

Que sai-se mal

Falando em verso

Ao general”.

Nenhum subordinado ousaria escrever em versos a Caxias26

.

21

CORREIA, Silvia. Os monumentos aos mortos da Grande Guerra. In: ________Entre heróis e mortos:

políticas da memória na I Guerra Mundial em Portugal (1918-1933). 1ª ed. Rio de Janeiro: 7 Letras: FAPERJ,

2015. p. 326-393. 22

Considerada uma das batalhas mais importantes da Guerra do Paraguai e a mais violenta ocorrida na América

do Sul. Foi travada no dia 24 de maio de 1866 em território paraguaio. 23

DORATIOTO, Francisco. General Osório: a espada liberal do Império. São Paulo: Companhia das Letras,

2008, p.28. 24

Tropas não oficiais auxiliares ao Exército profissional. 25

Osório era simpático ao movimento farroupilha e até o apoiou durante um período, no entanto, ao tomar

feições separatistas, o general voltou ao Exército Imperial em defesa da Monarquia. 26

DORATIOTO, Francisco. General Osório: a espada liberal do Império. São Paulo: Companhia das Letras,

2008, p.17-18.

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Osório, além de oficial do Exército, era também político e estancieiro no Uruguai.

Filiado ao Partido Liberal, seu primeiro cargo político foi como deputado pelo Rio Grande do

Sul, em 1845, todavia, não era muito assíduo às sessões e não quis concorrer novamente,

alegando falta de competência de sua parte27

. Sua profissão de militar não provia renda

suficiente para sustentar toda sua família e, por isso, mantinha estância no Uruguai. O general

alternou suas funções dando em determinados momentos mais atenção a uma que a outras.

A sociedade monárquica tinha em Osório o grande herói nacional, tanto pelos seus

feitos nas batalhas, como também pelo seu “caráter bonachão” 28

. Por ocasião da sua morte

em 1879, ocorreu uma verdadeira aclamação para que o corpo do general permanecesse na

capital federal, em vez de retornar ao Rio Grande do Sul, sua cidade natal. Na edição de 27 de

outubro de 1879 do Jornal do Commercio:

Segundo artigos que a imprensa tem publicado, trata-se de pedir à família do ilustre guerreiro

o general Osorio que deixe nesta corte o ataúde deste benemérito cidadão. Aprovamos a

ideia e achamos que nesta capital, coração do Brasil é que deve ficar o grande e heroico

soldado, mas em lugar que possa ser visitado por todos os nacionais e estrangeiros29

.

A primeira investida para a criação de um monumento em agradecimento ao general

foi promovida, logo após sua morte, pela Sociedade Rio-Grandense Beneficente e aceita pela

Câmara Municipal. Logo, então, foi organizada uma comissão responsável para recolhimento

de donativos, via subscrição popular de no máximo 500 réis, para erguer o monumento em

alguma praça da capital30

. Apesar desse primeiro movimento, a ideia só seria retomada em

1887, quando definida a Comissão do Monumento ao General Osório. Dois anos antes, em

1885, já havia sido determinado que a estátua seria alocada na praça entre o Campo da

Aclamação e o quartel militar31

, localização que foi alterada com a República.

Em 1889, ocorreu o golpe militar que apeou o Império e, apesar de a República ser um

tipo de sistema de governo que por ideal deveria ser centrado no povo, a mudança de regime

no Brasil se caracterizou pela ação dos militares e apoio de classes dirigentes, praticamente

sem participação popular. José Murilo de Carvalho32

aponta que os primeiros anos do governo

republicano foram marcados pela disputa entre diferentes grupos e suas correntes ideológicas

27

Ibidem, p.80 28

DORATIOTO, Francisco. General Osório: a espada liberal do Império. São Paulo: Companhia das Letras,

2008, p.15. 29

Jornal do Commercio (RJ). 27 de outubro de 1879. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 30

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (Agora, AGCRJ). Fundo Câmara Municipal. 46.3.34 31

Idem. 32

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: O imaginário da república no Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990.

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que propunham modelos para a organização da sociedade. Nesse novo cenário de disputa de

projeto ideológico para a nação, os três principais grupos eram os liberais, jacobinos e

positivistas. Os liberais, proprietários rurais, almejavam uma república aos moldes da

república americana, de caráter federalista. Já os jacobinos, grupo mais radical, defendiam a

participação política de todos os cidadãos. Os positivistas, grupo formado em sua maioria por

militares, defendiam um Executivo forte e intervencionista, uma forma de despotismo

ilustrado.

Nos anos iniciais da Primeira República, esses diferentes grupos combateram-se

ideologicamente, até a vitória da corrente liberal, por volta da virada do século. Carvalho

verifica a importância da elaboração de um imaginário social para legitimar o discurso

ideológico do novo regime e, ainda, estabelecer a identidade da nação. O projeto de nação, ao

mesmo tempo em que buscava apresentar um Estado moderno, deveria estar vinculado às

tradições, garantindo a estabilidade da nação33

.

O principal apoio do presidente Floriano Peixoto eram os jacobinos, os quais, em

teoria, idealizavam um governo de igualdade e participação popular. Todavia, em sua

adaptação brasileira, a igualdade preconizada pelo grupo estava ligada às hierarquias locais.

Assim, uma possível forma de denotar ligação com setores mais populares seria a construção

de um monumento em praça pública com o objetivo de propagar um ideal de modo a alcançar

toda a população. O monumento erguido em praça pública, acessível à população, cumpria

um objetivo didático de expressão de valores simbólicos, idealizados pelo poder público.

Nesse sentido, o monumento ao general Osório não tinha somente uma função de embelezar o

espaço urbano, mas, essencialmente desempenhar um papel pedagógico.

(...) o que se constrói é uma situação de identidade positiva. Inviabiliza-se o distanciamento

do cidadão de sua ordem social correspondente. Indissociado e confundido com a ordem

social, resta somente ao cidadão a reprodução e a extensão dos padrões sociais

estabelecidos34

.

O artista responsável por eternizar em bronze a memória do general Osório foi

Rodolfo Bernardelli35

. Bernardelli foi um dos principais escultores no período, estudou em

Roma durante nove anos e quando retornou ao Brasil, em 1885, foi convidado pela Comissão

do Monumento ao General Osório para esculpir a estátua equestre do militar. Além disso, foi

33

THIESSE, Anne-Marie. A criação das identidades nacionais: Europa - séculos XVIII-XX. Lisboa, 2000. 34

KNAUSS, Paulo. Cidade vaidosa: imagens urbanas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999, p.

155. 35

Escultor mexicano que vem para o Brasil em 1866, posteriormente naturalizado cidadão brasileiro.

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nomeado professor de estatuaria da Academia Imperial de Belas Artes36

, o que demonstra seu

renome. O contrato foi assinado em 14 de janeiro 1888 e enunciava que o ornamento deveria

ser executado conforme projeto apresentado, com inscrições e coroa de louro na lateral e alto

relevo representando as principais batalhas. No 1º degrau, parte anterior, emblemas em bronze

com os principais atos da vida civil e, parte posterior, “livro da história”, onde seria gravado o

dia do nascimento do general. Além disso, deveria ser colocado seu poncho e espada e de

ambos os lados do monumento colocados seus troféus militares37

.

Em 1890, já na República, o lugar em que o monumento seria erguido foi modificado

para a Praça XV de Novembro, região central do Rio de Janeiro, sendo o terreno já concedido

para homenagear o “legendário Osório” 38

. Os monumentos possuem um sistema complexo

de significados, no qual mesmo o lugar onde são construídos é carregado de simbolismo39

.

Nesse sentido, a praça onde foi estabelecida a construção do monumento era historicamente

uma praça simbólica para a nação, cujo em torno possuía referências importantes para a

memória popular, como, por exemplo: o Paço Imperial, a Casa do Trem, o Chafariz do Mestre

Valentim, além de ser a primeira visão dos visitantes e estrangeiros que chegavam à cidade. A

determinação de que a estátua fosse construída em uma praça no centro da capital federal, de

caráter histórico e a qual o novo nome aludia à proclamação do regime, não era arbitrário,

mas demonstrava a centralidade e importância que o governo atribuía à memória do general.

Outro esforço que a República desempenhou foi conceder a remoção dos jardins da

Praça XV, para que a praça ficasse absolutamente livre, melhorando a circulação do público, e

colocando o monumento em evidência, adquirindo maior relevância. A ideia, na realidade, foi

do artista Bernardelli que em requerimento de 1892 dizia: “Como é de costume em países

onde existem monumentos desta espécie coloca-os em praças completamente livres, pois não

devem servir de ornamentação a jardins” 40

.

Ainda neste ano, em julho, os restos mortais de Osório foram transladados da Igreja da

Santa Cruz dos Militares, localizada na Rua Primeiro de Março, para a base do monumento,

ainda em construção. Marechal Floriano Peixoto fez questão de promover o evento com toda

pompa necessária para atender aos feitos do general para a nação brasileira. Segundo o livro

de atas das sessões da comissão do monumento41

, o presidente lamentou o breve percurso

36

Com a Proclamação da República, a Academia passa por uma reforma e muda seu nome para Escola Nacional

de Belas Artes, a qual Rodolfo Bernardelli ocupou o cargo de diretor durante 25 anos. 37

AGCRJ. Fundo Câmara Municipal. 46.3.41 38

AGCRJ. Fundo Câmara Municipal 46.3.34 39

PROST, Antoine. Monuments to the dead. In: Pierre Nora (ed.), Realms of memory: rethinking the French.

Traditions 2 (1996): 307-32. 40

AGCRJ. Fundo Câmara Municipal. 46.3.35 41

AGCRJ. Fundo Câmara Municipal. 46.3.41

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entre os dois locais, pois se fosse mais extenso convocaria todas as tropas existentes na capital

para prestar honras ao Osório. O Jornal do Commercio do dia 22 de julho noticiava o evento e

transcrevia os discursos proferidos, como o de Cândido Graffée, presidente da referida

comissão:

Depositaram nesta cripta os restos mortais do herói, cuja gloria transpôs as fronteiras da

Pátria e desafia a voracidade do tempo. Nem o granito, nem o bronze deste monumento

poderão resistir à memória do vencedor de 24 de Maio, guardada pela tradição e consagrada

pela historia. A humanidade lhe deve a libertação de um povo oprimido; a America a queda

do ditador, cuja crueldade a assombrava, e o Brasil a defesa de sua integridade 42

.

Todo esse investimento na preservação da memória de Osório revela o intuito do

poder público em estabelecer o general como herói nacional, nesta perspectiva, um herói que

corroborasse valores estimados pelo regime. Como dito anteriormente, os primeiros anos da

República foram de intensa disputa ideológica. Até a consolidação do mito Tiradentes43

, o

governo buscou estipular um herói para o regime. No entanto, mesmo que ocorrendo embates

ideológicos entre os republicanos, o consenso era a legitimação do regime. Apesar de ser

publicamente monarquista, Osório era filiado ao Partido Liberal, pelo qual militava e foi

eleito senador em 1877. Assim, ele era associado às ideias de descentralização política,

bandeira dos proprietários rurais gaúchos e também dos senhores cafeeiros de São Paulo.

Dessa maneira, ainda que não tivesse pertencido ao Partido Republicano, o governo vigente

buscou, nesse passado recente, um fundamento para a exaltação de Osório como um cidadão-

modelo, uma vez que a Constituição de 1891 era uma vitória do federalismo.

O regime republicano, até então, liderado por militares, buscava aproximar os oficiais

da sociedade civil, legitimando a República que nasceu de um movimento militar. Nesse

sentido, antes mesmo da proclamação da República já existia uma ânsia dos militares em se

aproximar da sociedade civil e demonstrar que apesar de soldado, o militar também era

cidadão. Dessa forma, os oficiais, que já possuíam o direito às armas, almejavam o

reconhecimento dos seus plenos direitos políticos também. Assim, se dava o projeto de

soldado-cidadão44

.

General Osório foi o líder das tropas brasileiras em uma das batalhas mais importantes

da Guerra do Paraguai e o maior combate travado na América do Sul45

. Certamente que ele

42

Jornal do Commercio (RJ). 22 de julho de 1892. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 43

Apesar de já ser visto como um herói para muitos, foi em 1926, que o monumento ao Tiradentes, em frente à

Câmara Federal no Rio de Janeiro foi construído. O prédio também foi nomeado em homenagem ao inconfidente

como “Palácio Tiradentes”, atual Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. 44

CARVALHO, José Murilo. República e cidadanias. In: ________Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a

República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 42-66. 45

Batalha do Tuiuti, 24 de Maio de 1866.

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não foi o único herói da guerra, nomes como duque de Caxias, almirante Barroso, almirante

Tamandaré, entre outros comandantes, foram enaltecidos pelas importantes conquistas no

conflito. Contudo, distintamente de outros militares, Osório tinha uma personalidade mais

despojada. Tal característica não só permitia sua proximidade com os soldados, como da

sociedade, o que contribuía com o objetivo do governo republicano em promover a ligação

entre militares e civis.

A cerimônia de inauguração do monumento foi marcada para o dia 12 de novembro de

1894 e fazia parte de uma série de celebrações realizadas durante a semana em comemoração

ao aniversário da República e a posse do primeiro presidente civil do Brasil, Prudente de

Moraes, no dia 15 de novembro. No dia 11, o jornal O Paiz publicou em sua capa uma

gravura enorme da estátua equestre que viria a ser inaugurada no dia seguinte. Logo abaixo da

figura, havia uma matéria que descrevia o processo de elaboração do monumento por

Bernardelli e contava o infortúnio que a estátua havia passado durante a Revolta da Armada.

Em agosto do ano anterior, quando o monumento já estava pronto, recebeu tiros em duas

partes, no peito do cavalo e na coxa do general. Apesar disso, o periódico descreveu com

entusiasmo a programação da solenidade 46

.

Na data da inauguração, o jornal publicava um especial com breve biografia de Osório

enaltecendo suas realizações e descrevendo suas características:

O povo brasileiro paga hoje um novo tributo de gratidão à memória do ínclito soldado que

tanto glorificou por feitos de admirável bravura as paginas da historia nacional. (....)

Já lá vão tantos anos, já baixaram a terra tantos dos vencedores, já desabou um trono que

parecia duradouramente engrinaldado com triunfos das legiões brasileiras, e a memória de

Osorio ainda palpita em todos os corações, viva e brilhante como se fossem de ontem os seus

feitos militares, eternamente animados pela legenda, que é a poesia ingênua da alma das

nações47

.

Conforme demonstra o excerto, o monumento foi erguido como forma de gratidão ao

general Osório, da mesma forma, a inscrição na parte dianteira da estátua reforça esse

sentimento: “A Osorio o Povo 1884” 48

. De acordo com Paulo Knauss49

, o vocábulo

“gratidão” é recorrente nas inscrições dos monumentos da cidade. Segundo o historiador, isso

demonstra que as construções monumentais são realizadas para exaltar a ação de

determinados indivíduos, selecionados pelo Estado, de maneira que ao agradecer tal

personagem da história, a sociedade está, na realidade, sendo grata ao Estado.

46

O Paiz. 11 de novembro de 1894. Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional. 47

Jornal do Commercio (RJ). 12 de novembro de 1894. Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional. 48

A inscrição está datada erroneamente, com 10 anos mais cedo. 49

KNAUSS, Paulo. Cidade vaidosa: Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sete letras, 1999.

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Bernardelli se inspirou nas estátuas equestres da Europa e buscou representar Osório

em contexto de guerra. Enquanto empunhava a espada, como em batalha, segurava as rédeas,

como se guiasse o cavalo. O animal, esculpido com uma das patas para cima, imprimia

movimento à estátua. O general foi eternizado vestido com uniforme militar de combate,

porém sem as botas, pois já não as usava mais devido a ferimentos obtidos na guerra.

A inauguração do monumento movimentou a cidade do Rio de Janeiro, capital da

República. Diversas pessoas, de distintas classes sociais, compareceram a Praça XV de

Novembro para conferir a estátua equestre erguida em reverência ao grande herói da Guerra

do Paraguai e, mais que isso, ao cidadão brasileiro que lutou pela pátria. O monumento foi o

primeiro conjunto monumental construído no Brasil, ou seja, que vincula um evento a uma

personalidade50

. No pavilhão central em frente a ele, encontrava-se a família de Osório, a

comissão promotora do monumento, ministros, o futuro presidente Prudente de Moraes,

senadores e deputados, o prefeito da cidade e legações da República Argentina e Uruguaia. O

presidente, marechal Floriano Peixoto não compareceu por motivos de doença, tendo sido

representado pelo tenente-coronel Borges da Fonseca Junior e capitão-tenente Sadock de Sá51

.

O presidente da comissão ao monumento, Cândido Graffée discursou e, em seguida,

em nome de marechal Floriano Peixoto, o general Costallat, também membro da comissão

proferiu um discurso:

“Senhores! – Eis-nos diante desse monumento formado de bronze e de granito, a desafiar o

perpassar do tempo, erguido pelo povo para perpetuar a lembrança de um herói brasileiro,

cuja vida foi uma conquista constante de louros que engrinaldam a fronte da pátria!

Abre-se o peito do Brasil e do seu coração emerge o vulto grandioso do legendário guerreiro!

Osorio!... Teu nome só compõe uma sublime epopeia do pátrio Brazil!

(...)

O troar do canhão que entusiasmava tua alma de herói anuncia ao mundo que não morreste

para o teu Brasil!

O exercito, que de tanta gloria cobriste, passa em continência diante de teu tumulo e sente

ainda o fogo do teu olhar eletrizá-lo.

A Republica do Brasil passa reverente diante de tua estatua e entoa tua apoteose.

Salve, herói!

Salve, Osorio!52

Após Costallat, representantes da Argentina e Uruguai também fizeram discursos e

ofereceram coroas de flores e placas em agradecimento53

, bandas desfilaram e inúmeras

escolas prestaram suas homenagens colocando ramos de flores e coroas de louros no

50

KNAUSS, Paulo. Cidade vaidosa: Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sete letras, 1999. 51

Jornal do Commercio (RJ). 13 de novembro de 1894. Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional. 52

Idem. 53

As placas oferecidas pelas repúblicas argentina e uruguaia foram posteriormente instaladas no monumento.

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monumento. O evento teve que ser interrompido antes do previsto devido à chuva torrencial

que caía na cidade54

.

Figura 1- Estátua equestre do General Osório55

5. Considerações finais

O presente artigo buscou demonstrar que a estátua do general Osório construída na

Praça XV de novembro foi um investimento da jovem República brasileira em perpetuar a

memória do general e da Guerra do Paraguai. Tendo sido o primeiro conjunto monumental

erguido no Brasil numa praça no centro da capital federal demonstra a relevância que o

governo republicano deu ao militar e suas realizações como comandante de uma das batalhas

mais importantes da guerra.

A estátua equestre, esculpida pelo artista Rodolfo Bernardelli e fundida nas oficinas

Thibeaut, em Paris, consagrava general Osório de maneira imponente. Na praça que aludia ao

novo regime, sem os jardins que antes ali existiam, evidenciava o valor do militar para a

memória histórica da nação brasileira, tanto pelas suas conquistas nos campos de batalha,

como por sua personalidade e preferência política. Bernardelli representou, no monumento,

Osório sem botas militares, pois o general não as usava mais devido ferimentos provenientes

da guerra. Dessa maneira, enfatizava os sacrifícios feitos pelo personagem histórico. Outro

ponto importante é que o monumento não fazia nenhum tipo de menção ao título

54

AGCRJ. Fundo Câmara Municipal. 46.3.41 55

A história dos monumentos do Rio. Disponível em:

< http://ashistoriasdosmonumentosdorio.blogspot.com.br/search?q=general+os%C3%B3rio>.

Acesso em: 10/07/2017.

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nobiliárquico de Marquês de Herval, concedido pelo Imperador, distanciando-se do passado

do militar que o relacionava ao Império.

Ainda que a intenção de erguer o monumento tenha ocorrido ainda no Império, foi na

República que se estabeleceu todo o imaginário social em torno da imagem do general. A

alteração do lugar de construção do monumento, da praça próxima ao Campo da Aclamação

para a Praça XV, quem além da importância histórica, era também porto de chegada e saída

de visitantes, e, por isso, cartão de “boas vindas” da capital do país, demonstra o investimento

em destacar a estátua.

As cerimônias organizadas com toda a pompa e com a presença de figuras importantes

para a sociedade brasileira, e também de distintos segmentos sociais, demarca a propaganda

realizada em volta da personalidade de Osório. Entre os anos de sua morte até a data da

inauguração do monumento, foram diversas citações no Jornal do Commercio e O Paiz56

que

mostravam a gratidão que o povo brasileiro sentia por ele.

Sendo assim, ainda que o general Osório tenha sido um militar e reconhecido por suas

realizações na Guerra do Paraguai, empreendida pelo Império brasileiro, sua memória foi

resgatada pela jovem República, a qual buscou aproximar a figura do militar da sociedade

civil, construindo a ideia do “soldado-cidadão”. Além disso, se apropriou da sua visão

favorável a descentralização política para associá-lo ao regime republicano, em um período de

intensa turbulência ideológica e a escassez, ainda, de um herói da República.

Referências

Fontes

- Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

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- Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional

Jornal do Commercio (RJ) 1879 – 1894

O Paiz (RJ) 1884-1894

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