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Um Mar Escuro Como o Vinho Do P - Patrick O Brian

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • Mestre dos Mares XVI

  • PATRICK O'BRIAN

    Um Mar Escurocomo o Vinho do Porto

  • srie Mestre dos Mares

    Mestre dos MaresO Capito

    A Fragata SurpriseExpedio Ilha Maurcio

    A Ilha da DesolaoO Butim da Guerra

    O Ajudante de CirurgioMisso em Jnia

    O Porto da TraioO Lado Mais Distante do Mundo

    O Outro Lado da MoedaA Patente de Corso

    Treze Salvas em HonraA Escuna Noz-moscada

    Clarissa Oakes, Clandestina a BordoUm Mar Escuro como o Vinho do Porto

    O ComodoroAlmirante em Terra

    Os Cem DiasAzul na Mezena

  • Um mar escuro como o vinho do portotem a virtude de transmitir comextraordinria fora a passagem da fragataSurprise pelo cabo de Hornos, uma dasexperincias mais duras e perigosas que ocapito Jack Aubrey enfrenta. Mas nomenos arriscada a misso que o espioStephen Maturin deve enfrentar, em ummomento em que o esprito revolucionrioparece ter aceso como a plvora nos pasessul-americanos.

  • Nota da edio espanhola

    Este o dcimo sexto romance da mais apaixonante srie de novelashistricas martimas jamais publicada; por consider-lo de indubitvelinteresse, ainda que os leitores que desejem prescindir disso podemperfeitamente faz-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo edetalhado Glossrio de termos martmos.

    Foi mantido o sistema de medidas da Armada Real inglesa, como formahabitual de expresso da terminologia nutica.

    1 jarda = 0, 9144 metros.1 p = 0, 3048 metros 1 m = 3, 28084 ps.1 cabo =120 braas = 185,19 metros.1 polegada = 2, 54 centmetros 1 cm = 0, 3937 polegada.1 libra = 0, 45359 quilogramas 1 kg = 2, 20462 libra.1 quintal = 112 libras = 50, 802 kg.1 pinta = 0,47 litros.1 celemine= 4,6 litros.

  • CAPTULO 1

    Sob o cu se estendia um imenso oceano roxo, onde no havia maissinais de vida que dois diminutos barcos navegando velozmente por suavasta extenso. Navegavam quase exatamente contra com os instveisventos alsios e levavam desdobradas todas as velas que era possvel semcorrer risco, ou inclusive mais, com as bolinas retesadas e vibrantes.Avanavam assim j fazia dias, s vezes to afastados que s viam as gveasdo outro por cima do horizonte, e outras vezes a um tiro de canho, e nestescasos se disparavam com os canhes de proa e popa.

    A embarcao que ia na frente era o Franklin, um barco corsrio norte-americano de vinte e dois canhes de nove libras, e a que o perseguia era aSurprise, uma fragata de vinte e oito canhes que havia pertencido Armada Real, mas agora tambm fazia o corso tripulada por corsrios evoluntrios. Estava nominalmente sob o comando de Thomas Pullings, umoficial de meio soldo, porm, de fato, sob o de Jack Aubrey, seu antigocapito, um homem com uma posio muito alta na lista de capites denavio, mais alta que a de quem geralmente governava um barco topequeno e antiquado. A Surprise era um barco realmente anmalo, poisainda que aparentasse ser um corsrio, era oficialmente um barco alugadopor Sua Majestade. Iniciara sua viagem com o objetivo de levar Amricado Sul a Stephen Maturin, o cirurgio, para pr-se em contato com osproeminentes habitantes que desejavam independentizar ao Chile e Peruda Espanha. Maturin, alm de ser mdico, era um agente secretoexcepcionalmente preparado para essa misso, pois era catalo por parte deme e se opunha opresso de seu pas pela Espanha, isto , Castelo.

    Na realidade, opunha-se a qualquer tipo de opresso, e em suajuventude havia apoiado ao grupo United Irishmen (seu pai era um militarirlands catlico que havia servido na Espanha) em tudo menos nos atosviolentos de 1798, e, sobretudo, detestava a que Bonaparte exercia.Oferecera seus servios com prazer ao governo britnico para contribuirpara o seu fim. Mas os havia oferecido grtis por Deus para que no tivesse a

  • possibilidade de lhe darem o odioso nome de espio, algum desprezvelcontratado pelo governo para delatar seus amigos, um nome que em suainfncia na Irlanda associava ao de Judas, o delator da quarta-feira antes daPaixo.

    Havia retomado sua misso atual, depois da comprida interrupoprovocada por um traidor que passou informao de Londres para Madri, elhe produzia uma grande satisfao, porque seu xito no s provocaria odebilitamento dos dois opressores, como tambm raiva e frustrao em umdeterminado departamento do servio secreto francs que tentava obter omesmo resultado, com a nica diferena de que os governos independentesda Amrica do Sul deveriam expressar convenientemente sua gratido esua afeto por Paris em vez de Londres.

    Tivera muitos motivos de satisfao desde sua partida da ilha Polinsiade Moahu para perseguir ao Franklin. Um era que os norte-americanos,confiando na enorme capacidade de seu barco de navegar bem de bolina,escolheram uma rota que conduzia diretamente ao seu destino; outro eraque apesar de que o capito, um velho marinheiro do Pacfico, nascido emNantucket, governava o barco com grande percia, fazendo todo o possvelpara manter afastados seus perseguidores ou livrar-se deles durante a noite,no podia comparar-se com Aubrey em habilidade nem em astcia. Quandoos marinheiros do Franklin, na escurido, desciam uma balsa pelo costado ecolocavam nela lanternas acesas ao mesmo tempo que apagavam as dobarco e mudavam o rumo, ao riscar a alvorada viam a Surprise navegandoem sua esteira, pois Jack Aubrey tinha a mesma intuio, o mesmo senso dotempo e muito mais experincia na guerra.

    Outro motivo de satisfao era que quase todas as observaes de meio-dia indicavam que se aproximavam do Equador de forma oblqua e estavamaproximadamente a umas duzentas milhas do Peru, um pas que o doutorMaturin relacionava no s com a possvel independncia, mas tambmcom a coca. Costumava mascar as folhas secas desse arbusto, como osperuanos, para acalmar a mente e o esprito, para eliminar o cansao fsico eintelectual e para conseguir uma sensao de bem-estar geral, ao sul do

  • trpico de Capricrnio os ratos se tinham comido as folhas que tinha, e,como no era possvel obt-las em Nova Gales do Sul, onde a fragata passouvrias semanas horrveis, desejava ansiosamente consegui-las porque estavamuito angustiado com as ltimas notcias recebidas de sua esposa nas cartasque haviam chegado fragata diante da ilha Norfolk, e pensava que asfolhas de coca ao menos dissipariam a parte irracional de sua angstia. Asfolhas limpavam a mente de forma extraordinria, e lhe animava a idia desentir seu conhecido sabor, o adormecimento da parte interior da boca e dafaringe e a tranqilidade que ele denominava ataraxia virtuosa, umasensao de liberdade que no tinha relao com o lcool, esse desprezvelrefgio, nem com seu antigo companheiro, o pio, aos quais poder-se-iampr objees do ponto de vista mdico e talvez tambm do moral.

    Era improvvel que uma pessoa to discreta e reservada como StephenMaturin falasse de um assunto desse tipo, e ainda que passou por sua mentequando viu aparecer um pedao de alga verde nas ondas que a proaformava, limitou-se a dizer a seu companheiro:

    um grande prazer ver que o oceano tem um colorido to parecidoao do vinho do porto, a alguns tipos de vinho do porto, quando sai aosborbotes da prensa.

    Ele e Nathaniel Martin, seu ajudante, estavam de p no beque dafragata, um espao aproximadamente triangular situado diante e debaixo docastelo. Essa parte era a mais anterior da embarcao, de onde partia ogurups e onde ficava o reservado dos marinheiros. Ali os dois galenosatrapalhavam menos no s aos marinheiros que estavam ajustando as velaspara conseguir o maior impulso possvel do vento, mas tambm, e sobretudo,aos artilheiros que manejavam os dois canhes de proa do castelo e queapontavam quase diretamente para frente. Os artilheiros em questoestavam ao comando do prpio capito Aubrey, que apontava e disparava ocanho de barlavento, um longo canho de bronze de nove libras chamadoBelzebu, e pelo capito Pullings, que fazia o mesmo com o de sotavento. Osdois marinheiros tinham uma forma de disparar muito similar, o que no eraestranho, porque o capito Pullings fora um dos guardas-marinhas de Jack

  • quando estava ao comando de seu primeiro barco, muito tempo atrs, noMediterrneo, e aprendera com ele tudo o relativo prtica da artilharia.Agora apontavam cuidadosamente os canhes para as vergas das gveascom a inteno de cortar as adrias, os brandais e todos os cabos queestabeleciam conexes ao nvel da verga maior e, com sorte, romper a prpiaverga; quer dizer: com a inteno de dificultar o avano do barco semestragar o casco. No tinha sentido destroar o casco de uma presa, e oFranklin parecia destinado a converter-se nisso, a longo prazo ou talveznesse mesmo dia, pois a Surprise se aproximava perceptivelmente. Adistncia era agora de umas mil jardas ou um pouco menos, e tanto Jackcomo Pullings apenas esperavam subida com as ondas para lanar as balassobre a ampla faixa de gua.

    Mas isto no agrada ao capito disse Maturin, referindo-se sguas de colorido vinho do porto. Diz que no natural. No lhe pareceraro a cor, que todos j vimos s vezes no Mediterrneo; tampouco acha asondas raras, que apesar de serem extraordinariamente grandes no soincomuns, mas a cor e as ondas juntos...

    Foi interrompido pelo estrondo do canho do capito, seguido quasesem pausa pelo estrpito do de Pullings. A fumaa e alguns pedaos debuchas fumegantes passaram assobiando sobre suas cabeas, porm, antesde que desaparecessem por sotavento, Stephen passou a olhar pela luneta.No pde ver a trajetria da bala, mas trs segundos depois viu formar-seum buraco na parte inferior da gvea do barco francs, onde havia ummonte mais. Para seu assombro, tambm viu sair jorros de gua pelosembornais de sotavento e acima dele ouviu a Pullings gritar:

    Esto jogando a gua, senhor! Que significa isto? perguntou Martin muito baixo.Ainda que Martin no consultou uma fonte confivel, porque o doutor

    Maturin era um homem do interior, esta vez Stephen pde responder-lhecom certeza que estavam jogando a gua pela borda para aliviar o barco como fim de que navegasse mais rpido, e acrescentou:

    possvel que tambm joguem os canhes e os botes pela borda. J

  • vi isso antes.Os furiosos vivas que deram todos os marinheiros da Surprise que

    ficavam na proa lhe indicaram que o veria outra vez. E depois de ver osprimeiros salpicos, passou a luneta para Martin.

    Jogaram pela borda os botes e os canhes, ainda que no todos.Enquanto a velocidade do Franklin aumentava, os dois canhes de proaseguiam disparando ao mesmo tempo, e a branca fumaa se estendia sobresua esteira.

    Que desagradvel quando disparam em ns! exclamou Martin,encolhendo-se para ocupar o menor espao possvel.

    Enquanto falava, uma bala deu na ncora de leva, que ficava atrsdeles, produzindo um forte som metlico. Os pontiagudos fragmentos, juntocom a segunda bala, cortaram quase todos os cabos que sustentavam omastaru de joanete de proa. O mastaru e sua vela caram muitolentamente, rompendo outras perchas direita e esquerda, quase nodando tempo para a resposta dos canhes de proa da Surprise, cujas balasderam na proa do Franklin. Mas antes que os artilheiros das brigadas de Jacke de Pullings pudessem voltar a carregar os canhes, j estavam envolvidospela vela. Ao mesmo tempo, todos os marinheiros da popa gritaram:

    Homem ao mar!A fragata orou e ps todas as velas em pairo com um rudo

    enlouquecedor. O Franklin disparou um nico canho, formando umaimensa nuvem de fumaa, e se ouviu um extraordinrio informe que foiafogado pelas ordens do capito Aubrey.

    Enrolem a vela, enrolem a vela! gritou, e imediatamente saiu debaixo dela e perguntou: Onde?

    Pela alheta de bombordo, senhor gritaram vrios marinheiros. o senhor Reade.

    Continue, capito Pullings disse Jack, tirando rapidamente acamisa e lanando-se ao mar.

    Era um excelente nadador, o nico na fragata, e de vez em quando,como uma foca, saa um pouco da gua para comprovar a direo que

  • estava. O senhor Reade, um guarda-marinha de catorze anos, nunca tinhaconseguido mais que manter-se flutuando, e desde que perdera um braoem uma batalha recente, no tinha se banhado no mar. Afortunadamente,com o brao que lhe restava se agarrara s barras de um galinheiro que seuscompanheiros lhe lanaram do castelo de popa, e ainda que estivesseempapado e arroxedo, ainda conservava a sensatez.

    Oh, senhor! gritou quando estava a uma distncia de vintejardas. Oh, senhor, sinto muito! Espero que no tenhamos perdido apresa!

    Est ferido? perguntou Jack. No, em absoluto, senhor, mas sinto muito que o senhor tenha tido

    que... Ento, agarre-se ao meu cabelo disse o capito, que tinha o cabelo

    longo e arrumado em uma trana. Coloque-se sobre meus ombros. Ouviu?Quando regressavam fragata, Reade sussurrava para Jack de vez em

    quando alguma desculpa ou suas esperanas de que no tivessem perdido apresa. Contudo, grande parte do tempo ficava meio afogado na guasalgada, porque Jack nadava contra o vento e a corrente e se afundavabastante em cada braada.

    Reade foi recebido a bordo com menos frieza da que podia se esperar.Por um lado, todos os marinheiros o apreciavam muito, e por outro, erabvio para todos que seu resgate no havia atrasado a perseguio da presa,pois tanto se Reade tivesse cado pela borda como se no, antes que a fragatapudesse continuar sua rota tinham que substituir a destroada cruzeta esubir ao alto da exrcia novos paus, velas e cabos. Os poucos marinheiros queno estavam muito ocupados com o enredo de proa lhe lanaram um caboformando um seio, subiram-no a bordo e lhe perguntaram com sinceraamabilidade como se encontrava. Depois o deixaram nas mos de Sarah eEmily Sweeting, duas meninas negras de uma remota ilha de Melansia quepertenciam ao doutor Maturin e que gostavam de ajudar na enfermaria,elas o acompanharam abaixo para que pusesse roupa seca e tomasse umaxcara de ch. Ao passar por Davies O Lerdo, que havia sido resgatado duas

  • vezes e amide lhe molestava compartir essa distino, gritou: Fui eu que lhe joguei o galinheiro, senhor. Eu o joguei pela borda.

    Ah, ah, ah!Quanto ao capito, imediatamente comeou a falar com o senhor

    Bulkeley, o contramestre, e a nica felicitao que recebeu foi de Pullings,que, antes de avanar at os moites da proa, disse:

    Bem, assim que o fez outra vez, senhor.Jack no esperava mais, nem sequer isso, pois durante sua vida no mar

    havia tirado tantas pessoas da gua que quase no pensava nisso. E oshomens que estavam sob suas ordens desde que tomara o comando de seuprimeiro barco, como seu timoneiro Bonden, seu despenseiro Killick e vriosmais, j o haviam visto faz-lo to amide que lhes parecia natural e sdiziam: Um maldito marinheiro de gua doce caiu e o capito o tirou dagua. Por outra parte, os corsrios e os contrabandistas, que compunham amaior parte do restante da tripulao, tinham adotado quase a mesmaatitude fleumtica que seus companheiros.

    De toda forma, estavam to concentrados em acondicionar a fragatapara que pudesse retomar a perseguio que no podiam permitir-se o luxode ocupar sua mente com pensamentos gerais. Para espectadores objetivoscomo Maturin e seu ajudante, era um prazer ver trabalhar quele grupo demarinheiros experimentados que sabiam exatamente o que fazer e o faziamcom diligncia, que trabalhavam duro, com preciso, com muita energia equase em silncio. Os galenos saram agachados debaixo do contrafoque,foram para baixo, e encontraram Reade perfeitamente bem, a quem asmeninas davam de comer bolachas da enfermaria. Depois se puseram aobservar a intensa atividade desde o castelo de popa, onde alguns poucoscontinuavam a vida rotineira da fragata: West, o oficial de guarda,permanecia em seu posto com a luneta sob o brao, e os timoneiros e osuboficial encarregado dos sinais estavam detrs do leme.

    Gire o relgio de areia e toque o sino ordenou o suboficial em vozalta e com gravidade.

    Naturalmente, ali no havia ningum para obedecer a ordem, pelo que

  • ele mesmo girou o relgio e avanou para o campanrio para tocar o sino.Contudo, como ambos os corrimos estavam obstrudos por paus, cabos euma multido de esforados marinheiros, foi obrigado a descer ao castelo.Tinha que passar entre o carpinteiro e seus ajudantes, que, sudorosos sob osol abrasador, agora a meio caminho do znite no cu acobreado, estavamfazendo a nova cruzeta e, tambm, a base do novo mastaru do joanete deproa. Era um grupo de homens diligentes que trabalhavamextraordinariamente bem em um barco em movimento e com instrumentosafiados, e lhes impacientava a mais mnima interrupo. Mas como osuboficial era um homem obstinado e tinha servido no Agamenon e noVanguard sob o comando de Nelson, no ia se deter por um punhado decarpinteiros, e pouco depois soaram as quatro badaladas com o dobrobatidas. O suboficial regressou seguido de blasfmias, e trouxe consigo os doistimoneiros que iam demostrar sua habilidade com o leme.

    Senhor West disse Stephen, acha que almoaremos hoje?A expresso do senhor West era difcil de interpretar. A falta do nariz,

    que havia se congelado ao sul do cabo de Hornos, dava ao seu rosto, de gestodoce, amvel, quase estpido, um aspecto malvado que acentuavam umasrie de escuros sulcos recentemente adquiridos.

    Oh sim! exclamou distraidamente. A menos que estejamos emmeio de uma batalha, sempre fazemos as medies solares e chamamos paraalmoar ao meio-dia.

    No, no. Me refiro a nossa cerimnia na cmara de oficiais. Oh, certamente! replicou West. Com a queda de Reade pela

    borda, nossa parada por causa da presa e sua fuga rpida como o raio nomomento que amos ultrapass-la, eu havia esquecido. Ei, do tope! gritou. Que v?

    Quase nada, senhor respondeu uma voz que desceu flutuandono ar. H uma espessa nvoa, uma espcie de nvoa alaranjada aosudeste, mas s vezes parece que vejo o brilho de umas joanetes.

    West moveu a cabea de um lado para o outro, mas continuou falando: No, no, doutor, no se preocupe com o almoo. O cozinheiro e o

  • despenseiro a prepararam muito bem e, ainda que seja possvel que acomamos um pouco tarde, estou seguro que a comeremos. Olhe, v?, estosubindo a cruzeta. Imediatamente guindaro o mastaru de joanete.

    De verdade? Haver ordem depois do caos to rpido? Naturalmente que sim. E no se preocupe com o almoo. No me preocuparei disse Stephen.Admitia que os marinheiros lhe falassem dos barcos com a mesma

    simplicidade que ele lhes falava de seus corpos. Ele lhes dizia: tome estecomprimido, que estabilizar os humores completamente, e eles, apertandoo nariz (porque amide continha assa-ftida), esforavam-se para tragaraquela massa redonda, ofegavam e imediatamente se sentiam melhor.Agora, mais tranqilizado, virou-se para Martin.

    Vamos fazer a ronda da manh disse, e depois desceram.Quando West ficou sozinho, voltou para suas reflexes, talvez um

    termo inadequado para descrever sua preocupao com o futuro e suaangstia com o presente. O capito Aubrey havia comeado esta viagem,interrompida numerosas vezes, com seu antigo companheiro de priso JohnPullings no posto de imediato e com dois oficiais afastados do servio, West eDavidge, como segundo e terceiro. S reconhecia a estes como marinheiroscompetentes, mas sabia que as penas a que haviam sido condenados pelosconselhos de guerra eram consideradas exageradamente duras na Armada(West fora expulso por duelar e Davidge por assinar as contas de umdesonesto contramestre sem t-las comprovado) e que seu objetivo na vidaera ser reabilitado. At data muito recente, ambos tinham estado muitoperto de consegui-lo, mas quando a Surprise se achava aproximadamente amil milhas de Sydney, navegando para leste pelo Pacfico, descobriu-se queum dos guardas-marinhas de mais antiguidade, de sobrenome Oakes, haviaescondido uma jovem na coberta inferior, o que provocou que todos osoficiais, menos o doutor Maturin, se comportassem totalmente mal. Oimediato matrimnio da jovem com Oakes a libertou, pois deixou de ser umafugitiva que podia ser aprisionada novamente, mas no a liberou dosdesejos, das proposies adlteras e dos cimes de seus companheiros de

  • tripulao. West e Davidge foram os piores, e o capito Aubrey, que seinformou tarde da situao, disse que se no deixassem de demostrarabertamente sua profunda averso, que provocava a discrdia e aineficincia na fragata, ele os largaria em terra e perderiam para sempre suasesperanas de serem reabilitados.

    Davidge fora morto em uma batalha recente, pela qual a ilha Polinsiade Moahu havia se convertido, pelo menos nominalmente, em parte doImprio britnico, e Oakes tinha zarpado para Batavia com Clarissa em umapresa que haviam recuperado. Porm, at agora, o capito no dissera nada;e West no sabia se por ter preparado com diligncia a batalha de Moahu,trasladar as caronadas por um terreno acidentado e ter uma pequenaparticipao na batalha lhe perdoara, ou se ia deixar-lhe em terra quandochegassem ao Peru, e esta idia lhe atormentava. Mas do que tinha certezaera que uma valiosa presa, da qual lhe corresponderia uma parte ainda quemais tarde fosse expulso, provavelmente tinha conseguido escapar. No aalcanariam antes de que escurecesse, e, em meio da nvoa, em uma noitesem lua, poderia avanar cem milhas e perder-se de vista.

    Aquilo era um tormento para ele, ao que tinha que acrescentar que essamanh o capito Aubrey tinha ascendido Grainger, um marinheiro docastelo da guarda de estibordo, para que ocupasse a vaga deixada pelamorte de Davidge, e tambm a Sam Norton, para que substituisse a Oakes.West tinha que admitir que Grainger era um excelente marinheiro queesteve ao comando de um bergantim na rota de Guinu at que algunspiratas de Berbera o aprisionaram frente ao cabo Spartel, mas no lheagradava em absoluto como pessoa. J sabia o que era ficar encerrado nacmara dos oficiais com um companheiro que detestava, vendo-lhe emcada refeio e ouvindo sua voz, e agora parecia que devia passarnovamente por essa amarga experincia; pelo menos enquantoatravessavam o Pacfico. Mas alm disso, achava que a cmara dos oficiais eo castelo de popa, os lugares privilegiados de um barco de guerra, no seram sagrados por si mesmos, mas que tambm conferiam a seus legtimosmoradores uma espcie de santidade, uma identidade, um modo de ser

  • particular. Estava convencido disso, ainda que a idia era difcil deexpressar, e, morto Davidge, no tinha ningum com quem falar dela.Pullings era filho de um pequeno terratenente; Adams, ainda quetrabalhasse como contador, na realidade s era o escrevente do capito;Martin no parecia dar muita importncia famlia nem casta; o doutorMaturin, que vivia quase permanentemente com o capito porque era seumelhor amigo, era filho ilegtimo, por isso no se podia falar desse tema comele. Porm, ainda que West gozasse do favor do capito, teria sido intil lhedizer que se era necessrio ascender aos marinheiros, como neste caso, queos nomeasse ajudantes de oficial de derrota, porque assim teriam que alojar-se com os guardas-marinhas e a cmara dos oficiais estaria protegida. Teriasido intil, porque Jack Aubrey pertencia antiga Armada, onde o segundooficial de um carvoeiro como James Cook podia morrer sendo um honorvelcapito de navio e um marinheiro como William Mitchell podia comear suavida profissional aoitado diante dos barcos de toda a frota e terminar comovice-almirante; e em troca, na moderna Armada, para que concedessemuma ascenso a um oficial, no s ele tinha que ser aprovado no exame detenente, como tambm demostrar que era um cavalheiro.

    O doutor Maturin e seu ajudante tinham que tratar as habituais

    doenas de marinheiros e vendar umas poucas feridas. As feridas no eramproduto da batalha recente, que tinha sido uma carnificina (um ataque comdisparos a curta distncia em um inimigo pego em um desfiladeiro rochoso),mas de arrastar trabalhosamente os canhes pela ladeira de uma montanhacoberta de vegetao. Tambm tinham um caso interessante, o de ummarinheiro que, por andar menos firme em terra que em um barco, haviacado na ponta de um ramo de bambu cortado que se cravara nele, pelo qualo ar entrara na cavidade torcica e na pleura, produzindo um estranhoefeito num pulmo. Falaram sobre ele em latim durante muito tempo, paragrande satisfao dos que estavam na enfermaria, que voltavam seu rostograve um para o outro, assentindo com a cabea. Enquanto isso, o pacientese mantinha com a vista no piso, e Padeen Colman, um irlands quase

  • exclusivamente monolnge que era o servente do doutor Maturin etambm seu ajudante na enfermaria, tinha um gesto reverente prpio dosque esto na missa.

    No ouviram as ordens que acompanharam o processo de erguer onovo mastaru de joanete, um processo angustiante devido grande alturae marejada. Tampouco ouviram o grito Colocado!, que deu o ajudantedo contramestre quando cravou a cunha na base do mastaru de joanetepara que ficasse apoiado sobre a cruzeta do mastaru. Ademais, perderam acomplicada tarefa de assegurar o comprido mastaru de joanete, muitocomplicada porque, apesar de que antes de guind-lo se colocavam porcima do tope os amantilhos, os brandais, os gradis, os contraestais e o estai,tinha que puxar com moites e amarrar todos esses cabos simultaneamente,o mais rpido possvel, para que exercessem a mesma fora pelos lados, pelafrente e por trs. Tambm passou desapercebida para eles a operao deenvergar a verga joanete e colocar todos os acesrios, assim como duas coisastpicas da marinha, que s vezes pareciam contraditrias: por um lado, queos marinheiros mais magros fossem os que se deitassem sobre a verga parasoltar a vela, e por outro, que depois de solt-la e caar e puxar as escotas, ocapito, que pesava umas 225 libras, subisse ao alto da exrcia com sualuneta para observar a parte do horizonte que ainda se distinguiavagamente atravs da espessa nvoa.

    Mas tanto os mdicos como os pacientes ouviram os gritos de alegriaque os marinheiros deram quando a fragata retomou o rumo anterior, enotaram como afundava a popa a medida que ganhava velocidade. Agorase movia com mais energia, e a mistura do som do vento na exrcia e dagua passando pelos costados indicavam que tinha reiniciado a perseguio.

    Quase imediatamente depois de que a Surprise comeou a avanar velocidade habitual, provocando altas e largas ondulaes nas guas deestranho colorido, chamaram os marinheiros para almoar, e a seguir seouviram os costumeiros gritos e golpes de bandejas prpios da cerimnia,que recordavam a Bedlam{1}.

  • Stephen regressou ao castelo de popa, e encontrou o capito junto aolado de barlavento olhando fixamente para o leste. O capito sentiu apresena de Stephen e o chamou.

    Nunca tinha visto nada igual disse, indicando com a cabea omar e o cu.

    A nvoa muito mais espessa que quando desci observouStephen. E agora uma luz ocre se estende por toda parte, como se umClaude Lorraine tivesse ficado louco.

    No fizemos medies ao meio-dia, sem dvida Jack informou. No se via o horizonte, e como tampouco fazia sol, no se podia calcular adistncia at ele. Mas o que realmente me admira que de vez em quando,a margem da marejada, o mar tem espasmos, forma dobras corno a pele deum cavalo quando h moscas ao redor. Olhe! Viu aquilo? Formou-se umaonda tripla quando as ondas subiam.

    Vi disse Stephen. muito curioso. Pode atribuir-lhe algumacausa?

    No respondeu Jack. Nunca ouvira falar de algo assim.Ficou pensativo por vrios minutos, e, enquanto isso, cada vez que a

    fragata subia a proa, a gua salpicava e deslizava para popa. Porm, deixando isto de um lado continuou, terminei a carta

    oficial esta manh, antes de que estivssemos a um tiro de canho.Agradeceria muito que, antes que Adams faa as cpias, desse uma espiadapara corrigir os erros e qualquer coisa inapropiada e acrescentasse algumasexpresses para melhorar o estilo.

    Melhorarei o estilo e tudo o que possa. Porm, por que vai fazercpias e por que tem tanta pressa? Pelo amor de Deus, ainda tem quepercorrer a metade do mundo ou mais para chegar a Whitehall!

    Porque nestas guas possvel que qualquer dia nos encontremoscom um baleeiro que v de regresso para a Inglaterra.

    De verdade, de verdade? Incrvel! Muito bem. Regressarei to logoterminemos convenientemente o almoo e escreverei para Diana.

    O almoo? Ah, sim! Espero que v bem. Sem dvida, ter que se

  • trocar muito rpido.No tinha nenhuma dvida, porque seu despenseiro, que ajudava ao

    doutor Maturin nas questes de forma, acabava de aparecer e se mantinhaa uma respeitosa distncia, olhando-lhes fixamente com seu habitual gestomal-humorado e desaprovatrio. Killick havia viajado com eles durantemuitos anos, em todos os climas, e ainda que no fosse inteligente nemagradvel, por seu senso de justia tinha sobre eles certa autoridade, da qualambos se envergonhavam. Tossiu nesse momento.

    E se vir o senhor West acrescentou Jack, por favor, diga-lheque quero falar com ele um par de minutos.

    E quando Stephen lhe deu as costas, acrescentou: Espero que o almoo v bem.A refeio em questo era para dar as boas-vindas cmara dos oficiais

    a Grainger, agora o senhor Grainger. Stephen tambm esperava que fossebem, e ainda que geralmente comia com Jack Aubrey em sua cabine, nestaocasio queria ocupar seu posto na cmara dos oficiais, j que o cirurgio eraum oficial e sua ausncia poderia considerar-se uma ofensa. Grainger, umhomem solitrio e reservado, era muito respeitado na fragata, pois, apesar deno ter servido na Surprise nos gloriosos dias em que fazia o corso, quandorecuperou um barco espanhol carregado at os topes de mercrio, apresouum mercante norte-americano e tirou a Diane do porto de Saint Martins;pelo menos a metade da tripulao o conhecia muito bem. Chegara a bordono incio desta viagem, muito bem recomendado por seus conterrneos deShelmerston, um porto que tinha proporcionado Surprise montes demarinheiros de primeira. Era um curioso lugar da regio West Country ondeexistia muitos contrabandistas, corsrios e pessoas religiosas praticantes.Tinha quase tantas igrejas como casas, e Grainger era um antigo membro dacongregao dos traskites{2}, que se reuniam aos sbados em um edifcioaustero e de colorido apagado atrs do estaleiro. Ainda que as idias dostraskites levantassem polmica, tanto ele como os membros mais jovens quechegaram a bordo se achavam em casa na Surprise, que era um arca de

  • divergncia onde havia arminianos e seguidores de Brown, Seth, Muggletone muitos outros; porm, quando navegavam, costumavam ser tolerantes unscom os outros, como os bons marinheiros, e em terra se mantinha unidospelo dio ao dzimo.

    Stephen o conhecia bem como companheiro de tripulao e,sobretudo, como paciente (tivera duas febres e uma clavcula quebada), eapreciava suas muitas qualidades; contudo, tambm sabia muito bem queum homem admirado e afianado em seu prpio crculo podia sofrerquando o tiravam dele. Pullings era a bondade personificada, e Adamstambm, mas a bondade no era suficiente para um homem to vulnervelcomo Grainger. Sem dvida, Martin tinha boas intenes, mas sempre foramais sensvel aos sentimentos das aves que aos dos homens, e aprosperidade o tornara egosta. Ainda que viajasse como ajudante deStephen, era na realidade um clrigo, e recentemente Jack lhe dera um parde benefcios eclesisticos includos em sua herana e lhe prometera umterceiro muito importante quando ficasse vago. Martin tinha informaodetalhada de todas as parquias, falava delas constantemente e refletiasobre a possvel arrecadao de formas diferentes do dzimo ou seuequivalente e de melhorar as glebas. Mas pior que a insipidez dessa conversaera o convencimento, que Stephen jamais tinha visto nele anos atrs,quando no tinha nem um penique e nunca era chato. No estava segurosobre West, porque tambm nele havia se produzido uma mudana. O Westque se encontrava nessa longitude atual, sem nariz, inconstante e irrascvel,era muito diferente do alegre jovem que to paciente e amavelmente lhelevara de um lado a outro de Botany Bay em um bote de remos para buscaralgas.

    Ah, senhor West! exclamou ao abrir a porta da cmara dosoficiais. Antes que me esquea, o capito diz que gostaria de falar com osenhor um ou dois minutos. Acredito que est na cabine.

    Jesus! exclamou West, com expresso assustada, mas depois secontrolou e disse: Obrigado, doutor.

    Correu para sua cabine, ps sua melhor casaca e subiu a escada

  • correndo. Entre disse Jack. Acho que queria ver-me, senhor. Sim, senhor West. No lhe roubarei nem um minuto. Ponha esses

    processos de um lado e sente-se no escaninho. Queria falar com o senhorantes, mas estive muito ocupado com os papis que foram se acumulandodia aps dia. S queria lhe dizer que estou muito satisfeito com seucomportamento quando estivemos em Moahu, especialmente seu esforopara subir as caronadas por aquela endemoninhada montanha. Umcomportamento prpio de um bom oficial. Eu o mencionei em minha cartaoficial e acho que, se tivesse sido ferido, poderia estar seguro de serreabilitado. Talvez tenha melhor sorte da prxima vez.

    Oh, farei todo o possvel, senhor! exclamou West. Nos braos,nas pernas, em qualquer parte... Mas permita-me dizer que lhe agradeomuitssimo que tenha me mencionado.

    Senhor Grainger, seja bem-vindo cmara dos oficiais Tom

    Pullings o cumprimentou, com seu esplndido uniforme. Este seu lugar,junto ao senhor West. Mas primeiro, companheiros, vamos brindar sadedo senhor Grainger.

    Os outros oficiais, esvaziando suas taas, disseram: A sua sade! Isso ! Hurra! Bem-vindo! Obrigado, cavalheiros disse Grainger, sentando-se.Usava uma boa casaca que seu primo o carpinteiro lhe emprestara, e

    ainda que estivesse moreno, tinha a cara um pouco plida e um gestoaustero e espantoso.

    Mas um gesto austero no bastava para socavar a boa vontade dePullings e Stephen, e muito menos o surpreendente bom humor de West.Sua alegria se traduziu em uma grande loquacidade e uma extraordinria

  • amabilidade, e excedeu sua capacidade normal para contar anedotas e fazerversos cmicos. No havia dvida de que Grainger se agradou com arecepo, pois comeu bem, sorriu e inclusive riu uma ou duas vezes;contudo, Stephen notou que durante todo o tempo passava o ansioso olharde um prato para outro para ver como os oficiais comiam, usavam o po ebebiam o vinho. Quando chegou o momento de comer a sobremesa e fazer obrindes, a ansiedade tinha desaparecido, e Grainger cantou com eles acano Adeus, adeus, bonitas damas espanholas e inclusive props cantaroutra, Quando sa uma manh de vero para ver os alegres campos e as flores.

    Pelo que pude ouvir do convs, o almoo foi muito animado disse

    Jack a Stephen quando se reuniu com ele para tomar caf. Foi melhor do que esperava respondeu Stephen. O senhor

    West estava muito alegre. Contou piadas, adivinhaes, enigmas e imitoucapites famosos e cantou canes. No sabia que possuisse esses dotes paraamenizar reunies sociais.

    Alegro-me muito disse Jack. Mas parece um pouco fatigado,Stephen.

    Sim, estou um pouco fatigado, sobretudo por ter subido ao convspara respirar um pouco de ar. O aspecto do oceano me desanimou.Perguntei a Bonden o que pensava e se amide ficava assim, mas se limitoua mover de um lado para o outro a cabea e a dizer que esperava queestivssemos aqui no prximo domingo. O que pensa, Jack? J refletiu sobreisto?

    Estive refletindo a maior parte do tempo que durou o bacanal, e norecordo de ter visto nem lido nada sobre algo assim, nem sei o que significa.Quando tiver lido meu rascunho, talvez possamos regressar ao convs e verse posso chegar a alguma concluso.

    Jack nunca ficava tranqilo quando liam suas cartas oficiais, e sempreinterrompia o fio dos pensamentos do leitor.

    O fragmento sobre as caronadas no est muito bem redigido, mastemo que... disse. s um rascunho, compreende? No est acabado

  • em absoluto... Qualquer coisa que no esteja bem gramaticalmente ou queno lhe agrade, por favor, pode tir-la... No sou um bom escritor...

    Mas afinal de contas esses anos, Stephen no lhe prestava maisateno que ao fino chuvisco irlands. Sem que a voz de Jack como rudo defundo, nem o cabeceio, nem o balano da fragata, nem o choque do marcontra a proa o fizessem perder a concentrao, Stephen leu um sucintorelato contado com o estilo seco da Armada. Contava que quando a Surprisenavegava para o leste seguindo as instrues dos lordes do Almirantado,fora interceptada nos 28 31' de latitude sul e nos 168 de longitude este porum cter procedente de Sydney, que informou oficialmente ao capitoAubrey de que os habitantes da ilha Moahu estavam em guerra uns com osoutros e tinham cometido abusos contra marinheiros britnicos e retido seubarco, pelo que teria que ocupar-se do problema imediatamente e apoiar aobando que tivesse mais probabilidade de reconhecer a soberania britnica.Depois narrava que o capito tinha rumado para Moahu sem perda detempo, detendo-se somente para carregar gua e provises em Anamooka,onde encontrara o baleeiro Daisy, que havia zarpado recentemente deMoahu, e que o senhor Wainwright, seu capito, informou de que a guerraentre o chefe da parte norte da ilha e a rainha da parte sul havia secomplicado pela presena de numerosos mercenrios franceses queapoiavam o bando do chefe e de um barco corsrio de bandeira norte-americana, o Franklin, ao comando de um francs tambm aliado do chefe,o senhor Dutourd. De acordo com esta informao, continuava, o capitoAubrey se dirigiu rapidamente para Pabay, o porto da parte norte deMoahu, com a esperana de encontrar o Franklin ancorado ali; mas comono estava, depois de liberar o barco britnico retido, o Truelove, junto com ossobreviventes da tripulao, e depois de destruir a guarnio francesa, como resultado de um nico oficial morto e dois marinheiros feridos, foirapidamente at o porto do sul, que ia ser atacado pelo chefe da parte nortedesde as montanhas e provavelmente pelo barco corsrio desde o mar.Finalmente, informava que a Surprise chegara a tempo e seus tripulantestiveram a satisfao de derrotar as foras de terra, sem nenhuma baixa,

  • antes da chegada do barco corsrio, e a rainha deu sua palavra ao capitoAubrey de que seria uma fiel aliada de Sua Majestade. Em continuaohavia um relatrio mais detalhado das duas batalhas, e depois o relatoprosseguia com a apario na manh seguinte do Franklin, que tinha menostripulantes, e o capito contava como havia escapado e expressava suasesperanas de que, apesar de suas excelentes qualidades para a navegao,pudesse captur-lo logo.

    Acho que um relato muito preciso e prpio de um bom marinheiro disse Stephen fechando a pasta. Est admiravelmente preparado paraWhitehall, com excesso de algumas pequenezas que assinalei na margem. Ecompreendo por que West est to contente.

    Sim. Pensei que ele merecia. Acho que o tratei com rigor porquelamentava muito por Davidge. Obrigado, Stephen. Vamos ao convs.

    A vista era realmente assombrosa e horripilante. O cu estava coberto euma luz difusa meio alaranjada e meio ocre iluminava as turbulentas guas,manchadas at onde alcanava a vista (que no era muito mais que trsmilhas). As ondas, que deveriam ser brancas mas tinham adquirido umdesagradvel e intenso colorido verdoso, mais aprecivel nas que a proaformava para sotavento. Eram ondas irregulares porque agora, apesar deainda haver uma forte marejada procedente do nordeste, nas cristas seformavam ondas pequenas.

    Permaneceram em silncio. Ao longo dos corrimos e no castelo haviapequenos grupos de marinheiros que olhavam com igual ateno, e algunspoucos murmuraram algumas palavras.

    Isto no muito diferente ao tufo que quase nos destroou quandonavegvamos rumo s ilhas Marquesas, ao sul do Equador disse Jack. Mas tem diferenas fundamentais, e uma delas que o barmetro est fixo.Apesar de tudo, acho que baixarei os mastarus de joanete.

    Alando a voz, chamou o contramestre e lhe deu a ordem.Imediatamente se ouviram apitos e gritos totalmente inteis.

    Todos os marinheiros a descer os mastarus de joanete! Todos osmarinheiros! Todos os marinheiros! Esto me ouvindo?

  • Os pacientes tripulantes da Surprise subiram ao alto da exrcia paradesfazer o que tinham feito com tanto trabalho na guarda da manh, massem nenhuma queixa nem cara amarrada, porque eram da mesma opinioque o capito. Soltaram todos os cabos que tinham que soltar, amarraram aguindaleza e, com grande esforo, iaram a joanete de proa para poder sacaroutra vez a cunha e descer todo o conjunto. Fizeram o mesmosucessivamente aos outros mastarus de joanete, meteram o botal,amarraram tudo e reforaram os botes com cabos duplos.

    Ficaria como um tonto se estes pobres homens tivessem que guindaros mastarus de joanete amanh outra vez murmurou Jack. Massendo muito jovem, aprendi uma lio: no se deve tardar em descer osmastarus de joanete ao convs. Que lio! Agora que esto no convspoderia contar-lhe tudo sobre isso, mostrando os diferentes cabos e paus.

    Eu gostaria muito disse Stephen. Foi quando regressava do Cabo na Minerva, uma embarcao que

    no era estanque, sob o comando do capito Soules. Quando chegamos aonorte do Equador nos encontramos com um tempo horrvel, uma srie detormentas que vinham do oeste, mas no dia seguinte ao Natal o ventoamainou e ns s tiramos um rizes da gvea maior e guindamos o mastarude joanete com sua verga. Durante a noite o vento aumentou novamentede intensidade e voltamos a aferrar as gveas, descemos a verga joanetepara o convs e preparamos o mastaru de joanete.

    Ento ainda no estava preparado? Que tipo mais raro Stephen! Preparar um mastro significa p-lo em

    condies adequadas para baix-lo. Contudo, quando estvamos fazendoesta operao e os marinheiros estavam amarrando a guindaleza, a que oeleva um pouco para que possa descer sem dificuldades, compreende?, obarco deu um tremendo solavanco lanando para os embornais todos osmarinheiros, ainda agarrados guindaleza. E posto que todos, como bonsmarinheiros, seguiram agarrados, subiram a base do mastaru de joanete porcima da cruzeta, assim que no se podia descer apesar de terem tirado acunha. Entende o que digo da cunha, a base e a cruzeta, Stephen?

  • Perfeitamente, meu amigo. Era uma situao muito desagradvel. Garanto que era. Antes que pudssemos fazer algo, os contraestais

    do mastaru se romperam, e depois o estai, pelo que o mastro cedeu algunspoucos ps para cima do tamborete e caiu sobre o penol de sotavento daverga da gvea e a derrubou. Ento caiu outra pea sobre a verga maior,soltando o amantilho de sotavento. Esse o amantilho de sotavento, o v?Ento o extremo de barlavento da verga maior bateu no cesto da gvea edestroou a parte de barlavento da cruzeta, de modo que, no referente svelas, o mastro maior ficou inutilizado. Nesse mesmo momento, o barcoorou e uma enorme massa de gua entrou pela popa. Sobrevivemos, masdesde ento talvez seja muito precavido. Mas esta tarde, de toda forma,queria diminuir o velame.

    No tem medo de perder a presa? Naturalmente que tenho medo de perder a presa. No diria nada

    que traga m sorte como No, a presa nossa. possvel que a perca, semdvida, mas j viu que jogou a gua pela borda, no?

    Certamente que a vi jogar a gua e os canhes, e tambm vi como seafastava liberada desse peso. E depois de passar alguns momentos tirando osescombros da latrina sobre o pobre Martin, que tem tanto escrpulo pelosexcrementos, voltei a alar a vista e vi que parecia muito mais pequena eavanava a uma velocidade sobrenatural.

    Sim, pode pegar muito vento, mas no pode atravessar o Pacficocom a pouca gua que lhe resta. Alm disso, vi que tiravamdesesperadamente toneladas de gua com as bombas, assim que creio queregressar a Moahu. As ilhas Sanduche esto muito mais longe. Acreditoque comear a navegar com o vento em popa em torno das dez para tentarpassar por nosso lado com as luzes apagadas na guarda de meia, e no hlua, sabe? Assim que poderia ficar a oeste da fragata ao amanhecer,enquanto que ns seguiramos navegando rapidamente como loucos rumoleste. O plano que tracei pr a fragata ao pairo dentro de pouco e manterno alto um serviola de vista muito aguda. Se no me equivoco, ao riscar o diaa avistaremos um pouco ao sul, com o vento pela alheta e a maior

  • quantidade possvel de velame desdobrado. Deveria acrescentar que deve-se levar em conta o abatimento disse depois de uma breve pausa, na qualStephen parecia estar pensativo. Eu o estive calculando desde quecomeou a perseguio. Minha inteno peg-la a considervel distnciaao sul.

    Eu pensava o mesmo disse Stephen, ainda que no queria ter apresuno de diz-lo. Mas diga-me, no acha que antes de pr a fragata apairar poderamos acalmar nosso esprito se interpretarmos, por exemplo, aCorelli, em vez de contemplar esta vista apocalptica? Quase no tocamosalgumas notas desde que samos de Moahu. Nunca pensei que medesagradaria ver um pr do sol, mas este acrescenta um aspecto sinistro aoque est vista, que j era desagradvel antes. Alm disso, essas nuvens decolorido ocre passando em todas as direes, essas ondas irregulares e essesredemoinhos me produzem melancolia.

    Adoraria exclamou Jack. No vou chamar os homens para seuspostos de combate esta noite, porque j trabalharam bastante hoje, e assimpodero comear muito cedo amanh.

    Comearam muito cedo, e as ondas irregulares, que haviam mudado aidia que Stephen tinha sobre a ordem da natureza, fizeram com que elecasse de cabea da escada do castelinho{3}. O senhor Grainger, que estavaao p da escada, pegou-o com a mesma indiferena que tivesse agarradomeio saco de ervilhas secas, ps ele de p no piso e lhe disse que sempredeveria usar uma mo para ele e outra para o barco. Como o doutor tinhacomeado a cair de lado, e depois, ao roar a grade, girara sobre si mesmo atficar na posio vertical, e como Grainger, ao peg-lo, apertou muito fortecom uma mo no estmago e outra na coluna e o dobrou muito, quase notinha flego para dizer uma palavra de agradecimento. Quando por fimrecuperou o flego e a capacidade de falar, soube que teria que amarrar suacadeira a duas cavilhas para poder tocar o violoncelo com comodidade e deuma forma segura.

    Tinha um Gernimo Amati em sua casa, assim como Aubrey tinha um

  • Guarnieri, mas ambos viajavam com velhos instrumentos que podiamsuportar temperaturas extremas e muita umidade. Ao princpio da tarde osvelhos instrumentos desafinaram muito, mas com o tempo conseguiramafin-los como desejavam, e, fazendo-se uma sinal com a cabea,comearam a tocar um dueto que conheciam muito bem porque o haviamexecutado juntos amide por mais de dez anos, mas no qual encontravamsempre algo novo, alguma frase meio esquecida e particularmente feliz.Revezavam-se para acrescentar fragmentos prpios, como pequenasimprovisaes ou repeties, e poderiam ter agradado ao fantasma deCorelli, porque demonstravam o atrativo que sua msica ainda tinha para asgeraes posteriores; mas no agradavam a Preserved Killick, o despenseirodo capito.

    Tin, tin, tin! zombou Killick para seu companheiro ao ouvir osconhecidos sons. J esto tocando outra vez. Fico com vontade de pr-lhes veneno para ratos nas torradas com queijo.

    No podem seguir muito tempo disse Grimble. A agitao estaumentando extraordinariamente.

    Era verdade. A fragata estava fazendo movimentos to bruscos quemesmo Jack, que era como um trito, teve que sentar-se sobre um escaninhopara ficar encaixado em um lugar. Quando trocou a guarda, depois decomer as tradicionais torradas com queijo, subiu ao convs para aferrar asmaiores e deixar a fragata pairar com a gvea maior rizada, pois, pelo menosconforme a estimativa que tinha feito, j havia alcanado o ponto ao qual sedirigia. Esperava que ao amanhecer o inevitvel abatimento tivesse feito oresto, e que agora o movimento da fragata fosse menos violento.

    muito desagradvel ficar l encima? perguntou Stephenquando Jack regressou. Ouo o estrondoso rudo da chuva na clarabia.

    No to desagradvel como estranho respondeu Jack. Estnegro como uma boca de lobo e nem por assomo se v uma estrela. Tudoest molhado. Tambm h uma forte agitao com ondas que parecem tertrs direes diferentes, o que ilgico, e se vem relmpagos de um intensocolorido vermelho acima das nuvens. Mas h algo mais que no sei como

  • chamar.Ento aproximou a lanterna do barmetro, moveu a cabea de um lado

    para o outro e voltou a se sentar no escaninho dizendo que, sem dvida, omovimento da fragata era menos violento e talvez poderiam regressar aoandante.

    Com muito gosto disse Stephen, se puderem me amarrar cadeira com um cabo ao redor da cintura.

    Certamente que sim disse Jack. Killick! Killick, amarre o doutor cadeira e traga outra garrafa de vinho do porto.

    O andante seguiu seu lento curso com um curioso, imprevisvel eofegante ritmo, e ambos o levaram at o vacilante final, lanando-se umolhar de censura cada vez que algum dava uma nota falsa.

    Proponho que brindemos a Zfiro, o filho de Astreo disse Jack.Quando estava se servindo de uma taa de vinho, a fragata deu um

    violento cabeceio, como se tivesse cado em um buraco. Esteve a ponto decair e o vinho da taa saltou pelo ar, formando uma massa compactadurante um segundo.

    Isto no sair bem disse Jack. Que demnios foi esse estrpito?Por um momento ficou imvel escutando, e depois, ao ouvir que

    batiam porta, gritou: Entre! Senhor, o senhor West, o oficial de guarda, diz que se ouvem

    disparos pela amura de bombordo informou Norton, um jovem recmnomeado guarda-marinha, jorrando gua sobre o piso de quadros brancos enegros.

    Obrigado, senhor Norton disse Jack. Irei imediatamente.Guardou rapidamente o violino no estojo e subiu correndo para o

    convs. Ainda estava na escada quando ouviu outro estrpito, e to logochegou ao castelo de popa, sob a copiosa chuva, ouviu vrios mais pela proa.

    Ali, senhor disse West, assinalando uma vermelha labaredaborrada por causa da chuva morna. Vo e vm. Acho que estamos sob ofogo de morteiros.

  • Chame todos para seus postos ordenou Jack, e o ajudante docontramestre fez a batida. Senhor West... Senhor West! Est me ouvindo?

    Ento, alando muito a voz, pediu uma lanterna, e pde ver a Westestendido de bruos, sangrando.

    Larguem o velacho! gritou Jack.A fragata se ps com o vento a favor, e enquanto ganhava velocidade,

    dois marinheiros da guarda de popa levaram West para baixo. Larguem tambm a vela de estai de proa e a bujarrona!

    acrescentou.A fragata voltou vida, e todos voltaram a ocupar seus postos de

    combate to ordenadamente e com tanta rapidez que Jack, se tivesse tidoum momento para observ-lo, teria se sentido satisfeito.

    Stephen ainda se encontrava na enfermaria com Martin, aindasonolento, e com Padeen, ainda a meio vestir, quando desceram West. Eatrs dele trouxeram meia dzia de marinheiros da proa, dois dos quaisainda podiam caminhar.

    Tem uma fratura na sutura coronal disse Stephen, depois deexaminar West debaixo da potente luz de uma lanterna. E tambm, estalacerao que aparentemente no tem importncia. Est em comaprofundo. Padeen e Davies, levantem-no com muito cuidado e o ponhamno colcho que fica ali detrs no piso. Ponham-lhe de bruos com umtravesseiro sob a testa para que possa respirar. O seguinte!

    O seguinte era um caso de fratura no brao esquerdo e vrios talhos nolado, e requereu um prolongado processo: costurar, cortar com tesouras evendar. O homem tinha uma fortaleza extraordinria inclusive para ummarinheiro, e entre ofegos lhes contou o ocorrido. Era o serviola do lado debombordo da coxia e tinha visto de repente uma labareda vermelha porbarlavento e depois um resplendor sob as nuvens. Quando avisou aoconvs, ouviu um rudo como se cassem pedras ou metralha na gvea,depois um estrondo, e imediatamente se encontrava abaixo. Passou umtempo estendido no corrimo, olhando pelos embornais e empapado pelachuva, antes de compreender o que havia ocorrido, e viu outras duas

  • labaredas. Eram parecidas com as dos canhes, mas de um vermelho maisintenso e podiam ver-se durante mais tempo. Talvez fossem de uma bateria,talvez de sucessivos disparos. Depois, pela agitao e por um solavanco dafragata, caiu no castelo, onde ficou at que o velho Plaice e Bonden orecolheram.

    As lamrias de um homem que estava de um lado se converteramquase em gritos.

    Ai, ai, ai! Desculpem-me companheiros, mas no posso suportar. Ai,ai, ai!

    Senhor Martin, por favor, v ver o que podemos fazer disseStephen. Sarah, querida, d-me a agulha com fio de seda.

    Quando lhe deu, Sarah disse ao seu ouvido: Emily est assustada.Stephen assentiu com a cabea enquanto segurava a agulha com a

    boca. No estava, por assim dizer, assustado, mas temia pr um instrumentoou uma sonda no lugar inadequado. Mesmo ali embaixo, a fragata se moviacom uma violncia que nunca havia visto antes. A lanterna oscilava a umavelocidade vertiginosa e com um movimento arrtmico, e ele quase nopodia se manter de p.

    Isto no pode continuar murmurou.Mas continuou, e pela noite, enquanto ele e Martin trabalhavam, a

    parte de sua mente que no se ocupava de sondar, serrar, enfaixar, costurare vendar, atendia e registrava em parte o que passava ao seu redor: aconversa dos marinheiros que curava e dos que esperavam para seratendidos, as notcias sobre os novos casos, a interpretao que osmarinheiros faziam dos diversos sons e gritos que se ouviam no convs.

    O mastaru de proa caiu.Seguiu uma longa conversa sobre as bombardadas e os morteiros que

    levavam, e houve assentimento e opinies contrrias. Stephen, quenecessitava ter a mente muito clara e o pulso firme, pensou: Se tivessefolhas de coca!.

    Os marinheiros diziam a meia voz que, ainda que o cesto da gvea do

  • maior estivesse partido, rachado ou quebado, deveriam baixar ao convs omastaru de toda forma, porque a marejada era muito forte e a pobrefragata ia virar de um momento para o outro. Compadeciam-se com oscompanheiros que estavam no convs e acreditavam que a situao era piorque na rpida corrente diante do cabo Sumburgh.

    Em um dia como o de hoje nasceu Judas Iscariote lembrou ummarinheiro de Orkney.

    Senhor Martin, a serra, por favor. Segure o penduricalho e estejapreparado para o torniquete. Padeen, no deixe que se mova.

    Stephen se inclinou sobre o paciente e disse: Isto doer um pouco, mas no durar muito. No se mova.A amputao foi seguida de outro desconcertante exemplo de feridas

    com rasgadura. Ento chegou Reade, e detrs Killick com uma xcara decaf tapada.

    O capito lhe apresenta seus respeitos, senhor disse Reade. Dizque provavelmente o pior j passou, porque se vem estrelas ao sul-sudoestee a marejada j no to forte.

    Muito obrigado, senhor Reade respondeu Stephen. E que Deuste bendiga, Killick.

    Bebeu a metade e passou a outra para Martin. Diga-me, abriram muitos buracos no casco? Ouvi que as bombas

    esto funcionando e que h bastante gua no fundo. Oh, no, senhor! Os mastros e o cesto da gvea do maior sofreram

    danos, mas a gua se deve a problemas da fragata, porque a presso sob ospescantes fez com que as juntas se abrissem um pouco. Poderia dizer-mecomo esto o senhor West e os marinheiros de minha brigada Wilcox eVeale?

    O senhor West ainda est inconsciente. Acredito que terei que abrir-lhe o crnio amanh. A Wilcox lhe amputamos os dedos faz um momento.No disse nem uma palavra, e acho que ficar bem. E esperarei queamanhea para atender ao Veale, porque os olhos so muito delicados enecessitamos de luz natural.

  • Bem, senhor, j no tardar em chegar. Canopo est baixando eamanhecer muito logo.

  • CAPTULO 2

    Um desanimado amanhecer e um sol vermelho-sangue; e apesar domar estar se acalmando com rapidez, ainda estava mais agitado do quemuitos marinheiros j tinham visto, com gigantescas ondas e umaextraordinria marejada. Agora era uma massa cinza que fazia violentosmovimentos sob o cu, de um mortio colorido branco, mas os nicos sinaisde vida que ainda havia nele eram os dois barcos, agora desmantelados, quecabeceavam como barquinhos de papel em uma calha. Encontravam-se acerta distncia um do outro, ambos aparentemente destroados e semcontrole. A certa distncia deles, para barlavento, acabava de aparecer umailha formada por negras rochas e cinzas vulcnicas. J no saa fogo dacratera, mas de vez em quando, com um som estridente, saa um jorro devapor de gua mesclado com cinzas e gases vulcnicos. No momento queJack avistou a ilha, tinha uma altura de cento e oitenta ps, mas as ondas jhaviam varrido grandes quantidades de escria de hulha, e quando o solterminou de sair da escurido, tinha menos de cinqenta.

    A embarcao que estava mais ao norte, a Surprise, encontrava-semuito perto. Estava a pairar com uma estai do trinquete no nico mastromacho que no havia sofrido danos. Os tripulantes faziam tudo o que umgrupo de homens fatigados podia fazer (todos tinham trabalhado durantetoda a noite) para reparar o destroado cesto da gvea do maior e colocarpelo menos a verga maior. Tinham muitos motivos para faz-lo, pois a presa,que estava desmantelada, girando sobre si mesma de tal maneira que asondas cobriam as bordas, encontrava-se muito perto por sotavento. Mas noestavam seguros de que, apesar de parecer inutilizada, seus tripulantes nocolocariam uma bandola e se afastariam, passando desapercebidos graas aomau tempo, entre as cegantes tormentas que se aproximavam.

    Puxem das bolinas de bombordo! gritou o capito Aubrey,olhando ansiosamente o mastaru de reserva. Puxem! Amarrem-no! Voltou-se para o imediato e disse: Tom, quanto eu gostaria que o doutorsubisse ao convs antes que a ilha se perca de vista.

  • Tom Pullings moveu a cabea de um lado para o outro. Quando o vi pela ltima vez, faz uma hora mais ou menos, caa de

    sono e tinha sangue at o pescoo e perto dos olhos, por onde passara a mo. Seria uma lstima que perdesse isto disse Jack.Ainda que no fosse um naturalista, desde as primeiras luzes estava

    impressionado no s por aquela paisagem formada por minerais, comotambm pelos animais mortos que havia ao redor, at onde a vistaalcanava. De ambos os lados da fragata, formando uma faixa de quase ametade de seu comprimento, havia inumerveis peixes mortos, a maioriadesconhecidos para ele, entre os que flutuavam uma baleia de um cinza nomuito escuro, criaturas dos abismos e enormes lulas. Mas no se vianenhuma ave, nem uma s gaivota. Nesse momento, uma rajada de vaporsulfuroso da ilha quase o afogou.

    No me perdoaria nunca se no lhe digo continuou Jack. Achaque se deitou para dormir?

    Bom dia, cavalheiros cumprimentou Stephen desde a escada docastelinho. Que isso que me contaram de uma ilha?

    Estava muito bagunado, sem se lavar nem se barbear, sem peruca,com a camisa manchada de sangue seco e ainda um sangrento aventalatado cintura, e era bvio que achava inapropiado seguir adiante ataquele lugar sagrado.

    Deixe-me ajudar-te disse Jack, avanando pelo empinadaconvs.

    Stephen tinha lavado as mos, no os braos, e pareciam brancas luvasem contraste com omarrom-avermelhado destes. Jack lhe pegou por umamo, ajudou-lhe a subir e o conduziu at o costado.

    Ali est a ilha indicou. Porm, diga-me, como est West? Ealgum dos outros marinheiros est ferido gravemente?

    West no experimentou nenhuma mudana e no posso fazer nadaat que haja mais luz e mais estabilidade. E quanto aos outros, ainda h riscode infeco e gangrena, porm, se Deus quiser, ficaro bem. Ento que essa a ilha. Porm, meu Deus, como o mar est! Parece um cemitrio movedio.

  • Jesus, Mara e Jos! Tem baleias, sete, isto , oito espcies de tubares, peixesacantopterigios, cefalpodes... e todos meio cozidos. Isto exatamente doque nos falou o doutor Falconer, do Daisy: uma erupo submarina, umagrande turbulncia, a apario de uma ilha de rocha e cinzas vulcnicascom um cone do qual saem chamas, vapores venenosos, bombas vulcnicase escria. Em nenhum momento me dei conta do que sucedia, apesar de tervisto l embaixo as tpicas feridas com rasgadura, s vezes acompanhadas dequeimaduras, e da prova de que enormes objetos esfricos golpearam asvelas, os mastros e, certamente, ao pobre West. Voc sabia o que se passava,n?

    No at que comeamos a amarrar e ecaixar com as primeiras luzes respondeu Jack. E quando me trouxeram algumas dessas bombas... Atem uma, junto ao cabrestante, que deve pesar cinqenta libras... e memostraram as cinzas vulcnicas que a chuva no havia varrido. Ento vitudo claramente. Acho que teria percebido antes se a ilha houvesse lanadolabaredas de forma constante durante certo tempo, como Stromboli, mas ssaam rajadas muito parecidas com as de uma bateria de morteiros. Pelomenos no estava to equivocado sobre o Franklin: est justamente a, asotavento. Ter que subir na carreta da caronada para v-lo. Aqui estminha luneta.

    Ao doutor Maturin lhe interessava infinitamente menos o Franklin quea enciclopdia da vida martima que se movia com as ondas ali embaixo, massubiu, olhou pela luneta e disse:

    Est em muito ms condies, sem nenhum mastro. E como sebalana! Acha que poderemos captur-lo? Parece que nossas velas no estobem.

    Talvez respondeu Jack. Dentro de uns cinco minutos a fragataj ter suficiente velocidade para manobrar. Mas no h pressa, porque noconvs do barco h poucos marinheiros e no so muito rpidos. Prefiro quenos aproximemos quando estejamos totalmente preparados, para que nohaja problemas nem se percam paus nem cabos e, muito menos, vidas.

    Soaram as seis badaladas e Stephen disse:

  • Tenho que descer.Jack o levou pela mo at a escada e, depois de recomendar que se

    agarrasse bem para proteger sua apreciada vida, perguntou se iam reunir-separa desjejuar, e acrescentou que aquela infernal marejada diminuiria torpido como tinha aumentado.

    Um desjejum tardio? Com muito prazer respondeu Stephen,descendo de um em um os degraus e movendo-se como um homem velho,conforme notou Jack pela primeira vez.

    Foi depois desse tardio desjejum que Stephen se sentou debaixo de um

    toldo para contemplar o Franklin, que se via cada vez maior. Estava umpouco mais reposto e convencido de que no teria valido a pena conservarcomo exemplares os animais marinhos mortos porque estavam muitoestragados pelo calor, os golpes e as grandes mudanas de profundidade. Elee Martin se conformaram em contar pelo menos os principais gneros erecordar tudo o que o doutor Falconer dissera sobre a atividade vulcnicasubmarina, to freqente nessa regio, pois quase no tinham energia paramais. O vento amainara, uma lufada de chuva havia levado a poeiravulcnica, e o sol brilhava com extraordinria intensidade sobre as agitadasguas. A Surprise, com a traquete e a gvea maior, aproximava-selentamente do barco corsrio, raras vezes superando os trs ns. Osartilheiros carregaram e sacaram os canhes, e os marinheiros que iam passarpara abordagem tinham suas armas a mo, mas j no tinham medo. A presatinha sofrido muitos mais danos que a fragata, tinha muitos menosmarinheiros e provises e no tentava escapar. Havia que admitir que scom um pedao do mastro maior e outro do mastro mezena de apenas trsps, alm do mastro traquete partido pela base, sua situao eradesesperadora; contudo, podia ter feito algo com a exrcia rompida queestava por cima da borda, pendendo dos amantilhos e dos estais, com ospaus que ainda se viam no castelo e com o gurups, que estava intacto, epor isso os marinheiros da Surprise a olhavam com certo desprezo. Posto queas monstruosas ondas estavam diminuindo rapidamente, tinham aceso os

  • fogos da cozinha muito cedo, e como era quinta-feira, todos eles tinhamcomido uma libra de carne de porco razoavelmente fresca, meia pinta deervilhas secas, parte das batatas-doces de Moahu que restavam e, como algoadicional, uma grande quantidade de pudim de passas. Tambm tinhamtomado um quarto de pinta de rum de Sydney, declaradamente diludocom trs quartos de pinta de gua e suco de limo, e como agora tinham oestmago cheio e bom estado de nimo, achavam que todas as coisasvoltavam a sua ordem natural, que a fragata, apesar de ter sofrido muitosdanos, logo estaria arrumada e seguiria aproximando-se da presa.

    Se aproximou mais e mais, e quando a caprichosa brisa virou a proa,Jack fez rumo ao sudoeste para que a fragata avanasse paralela ao Franklincom as velas amuradas para o lado contrrio. Quando no barco viram que afragata mudava o rumo, ouviram-se a bordo gritos confusos e caiu pelaborda uma espcie de balsa, tripulada por um s homem com umabandagem ensangentada ao redor da cabea. Jack soltou as escotas paraque a velocidade da fragata diminuisse, e quando se aproximou um poucocom a marejada, o homem gritou:

    Por favor, poderia dar-nos um pouco de gua para os marinheirosferidos? Esto morrendo de sede.

    Rendem-se?O homem se ergueu pela metade para responder (notou-se que no era

    um autntico marinheiro) e gritou: Como pode falar assim em um momento como este, senhor? Deveria

    ter vergonha.Falava com voz escandalosa e em tom indignado. A expresso de Jack

    no mudou, mas depois de uma pausa em que a balsa seguiu aproximando-se, gritou para o contramestre, que estava no castelo:

    Senhor Bulkeley, ordene baixar o esquife do doutor com um par debarris de gua.

    Se tm um cirurgio a bordo, agiria como um cristo se aliviasse a dordesses homens disse o marinheiro, ainda mais perto.

    Por Deus que... Jack comeou a dizer ao mesmo tempo que se

  • ouviram exclamaes no corrimo, mas como Stephen e Martin j haviamdescido para buscar seus instrumentos, limitou-se a acrescentar: Bondene Plaice, levem-nos ao barco. E joguem um cabo para essa balsa. SenhorReade, tome posse do barco.

    Desde que havia comeado a perseguio, Stephen estava refletindo

    sobre qual seria sua linha de conduta no caso de que triunfassem. Suamisso, em qualquer caso, seria muito delicada, pois pressupunha atividadesque iam contra os interesses da Espanha na Amrica do Sul, em ummomento em que era, pelo menos nominalmente, aliada do Reino Unido. Eagora que o governo britnico se vira obrigado a negar a existncia dessamisso, era muito mais delicada ainda. No queria que Dutourd, a quemconhecera em Paris, lhe reconhecesse, no porque fosse partidrio deBonaparte ou estivesse relacionado de alguma forma com o servio secretofrancs, mas porque tinha muitas relaes e falava muito; demais para queum servio secreto pensasse em utiliz-lo. Dutourd era o homem que estavana balsa, o dono do Franklin, e uma srie de fatos lhes levaram a ficar toprximos, separados por um cabo de no mais de vinte ps. Dutourd, umhomem veemente e apaixonado, havia se entusiasmado, como muitos desua poca, com a idia de formar um paraso terreno em um lugar de climaperfeito, onde houvesse igualdade e justia e, tambm, abundncia semtrabalho excessivo, atividades comerciais ou uso do dinheiro, umaverdadeira democracia, uma Esparta mais alegre. Ao contrrio da maioria,era rico o bastante para pr em prtica a teoria e adquiriu esse barco corsrionorte-americano, encheu-o de futuros colonos e certo nmero demarinheiros, a maioria franco-canadenses e da Luisiana, e zarpou para a ilhade Moahu, situada ao sul do Hava, onde, com a ajuda do chefe da partenorte e sua prpia capacidade de persuaso, esperava fundar sua colnia.Mas o chefe do norte cometera abusos contra alguns marinheiros e barcosbritnicos, e o capito da Surprise, que fora enviado para resolver a situao,derrotou ele antes de que o Franklin, um barco de guerra privado combandeira norte-americana, regressasse de patrulhar a zona. A perseguio

  • comeara em um lugar que parecia outro mundo, e agora estava chegandoao seu fim. Quando o abarrotado esquife subia e descia com as ondas,atravessando o ltimo quarto de milha, Stephen sentiu alvio ao pensar queh muitos anos em Paris usara o segundo de seus sobrenomes, Maturin eDomanova pois Mathurin, que se escrevia com uma ag, mas sepronunciava sem ele, curiosamente se associava com a idiotice na griadaquele tempo, e que era mais fcil fingir-se de estpido que de sbio,assim que, ainda que poderia ser um erro aparentar que no sabia francs,no tinha que fal-lo muito bem.

    Aproximar o balsa do pescante ordenou Reade. Aproximar o balsa do pescante, sim, senhor repetiu Bonden, e,

    olhando por cima do ombro, atento marejada, seguiu remando com fora.A balsa, dando um solavanco, aproximou-se do costado do Franklin, queestava to afundado na gua que Dutourd no teve que dar um passo;muito grande para subir a bordo. Depois de esperar que as ondas subissemduas vezes, Bonden engatou o croque. Com uma mo Dutourd ajudouStephen a subir pela destroada borda, e com a outra tirou o chapu,dizendo:

    Estou profundamente comovido porque teve a bondade de vir,senhor.

    Stephen compreendeu imediatamente que se inquietaradesnecessariamente, porque no agradecido olhar que acompanhava estaspalavras no havia a menor indicao de que o reconhecesse. Era lgico queum homem pblico como Dutourd, que constantemente se dirigia amultides e conhecia a vintenas ou mesmo centenas de pessoasdiariamente, no recordasse de algum que tinha conhecido vrios anosatrs e com quem s se encontrara trs ou quatro vezes no salo de madameRoland, antes da guerra, quando suas idias republicanas o fizeram trocar onome de Du Tourd para Dutourd, e depois em dois ou trs banquetesdurante a curta paz. Contudo, ele teria reconhecido a Dutourd, um homemsurpreendente, com mais vitalidade que a maioria, pelo que dava aimpresso de ser mais corpulento do que na realidade era, e com uma

  • expresso alegre e uma grande loquacidade. Era muito charmoso emantinha a cabea erguida. Ao mesmo tempo que estes pensamentospassavam por sua mente, observou que de proa a popa havia uma grandedesolao, maranhas de velas e cabos e paus quebrados, e que os tripulantesestavam desmoralizados. Alguns ainda bombeavam mecanicamente, mas amaioria deles estavam bbados ou esgotados.

    Martin, Reade e Plaice subiram a bordo do Franklin em trs sucessivosmovimentos ascendentes das ondas, enquanto Bonden os protegia. EntoReade tirou o chapu e, com voz alta e clara, disse:

    Monsieur, je prends le commandement de ce vaisseau. ( Senhor, estouassumindo o comando deste navio).

    Bem, monsieur respondeu Dutourd.Reade avanou para o pedao do mastro maior que restava; Plaice

    amarrou o botal de um ala que estava solto. Depois, em meio da indiferenados tripulantes do Franklin, iaram a bandeira britnica e se ouviram algunsvivas na Surprise.

    Cavalheiros disse Dutourd, a maioria dos feridos esto nacabine. Eu os conduzirei at l.

    Quando desciam pela escada, ouviram Reade pedir a Bonden, quetinha uma potente voz, que chamasse o contramestre da fragata, seuajudante, Padeen e todos os marinheiros de que pudessem prescindirporque a presa estava a ponto de afundar.

    No lado de estibordo da cabine, uma dzia de homens estavamdeitados uns junto aos outros, e outro estava estendido sobre o escaninhoprximo das janelas de popa, e como fazia muito calor, tinham uma sedeterrvel. O barco estava to inclinado para bombordo que no outro ladohavia uma mistura de vivos e mortos que se molhavam com cada onda, edali saam lamrias, gritos que pediam ajuda e que lhes resgatassem, e umdesagradvel odor.

    Vamos, senhor, tire a casaca disse Stephen.Dutourd obedeceu, e os trs tiraram dali aos homens com muito

    cuidado. Arrastaram os mortos at a meia coberta e colocaram os vivos os em

  • ordem conforme a urgncia de seu caso. Seus homens lhe obedecem? perguntou Stephen. Acredito que alguns respondeu Dutourd, mas a maioria est

    bbada. Ento, diga-lhes que joguem os mortos pela borda e que tragam

    baldes de gua e esfreges para limpar o lugar que ocupavam. Assomando-se por uma janela de popa destroada, gritou: Barret,Bonden! Pode subir o barrilete para que o senhor Martin e eu o peguemos?

    Vou tentar respondeu Bonden. Teremos que tirar esse homem da disse, assinalando com a

    cabea para o que estava no escaninho. Est morto. Era o capito informou Dutourd. O ltimo disparo da fragata

    causou sua morte e a da maioria da tripulao. E um canho explodiu.Stephen assentiu com a cabea. J vira o terrvel estrago que podia

    provocar uma descarga e tambm um canho ao explodir. Podemos deix-lo cair pela janela? Tenho que atender a estes

    homens imediatamente. Muito bem disse Dutourd.Quando o rgido cadver caiu ao mar, Bonden gritou: Agarre-o quando suba com as ondas.Ento o barrilete subiu a bordo, e Martin tirou a tampa com um mao.

    S tinha uma lata velha para servir a gua, mas com aquele calor abrasadornem a lata nem a sujeira tinham importncia, somente a infinitamentevaliosa gua.

    Uma pinta suficiente, senhor; se no, vai se arrebentar disseStephen para Dutourd. Sente-se aqui e deixe-me ver sua cabea.

    Debaixo do leno, o sangue seco e o cabelo assanhado, tinha um corteno couro cabeludo. Parecia feito com uma navalha, mas provavelmentehavia sido produzido por um pedao de metal que saltara pelo ar. Stephen orecortou, lavou e costurou, sem que tivesse nenhuma reao quandointroduzia a agulha. Depois lhe ps uma venda em cima.

    Isto suficiente pelo momento. Por favor, suba ao convs e ordene

  • aos seus homens que bombeiem mais rpido. E pode dar-lhes o outrobarrilete.

    Stephen estava muito acostumado a ver as consequncias de umabatalha naval, e Martin no pouco, mas aqui as habituais feridas causadaspelos canhonaos e pedaos de madeira desprendidos e o terrvel efeito daexploso de um canho estavam acompanhados pelas estranhas feridasprovocadas pela erupo vulcnica, laceraes piores que as que tinhamvisto na Surprise e, como o Franklin navegava quase contra do vento,queimaduras mais graves. Os dois estavam exaustos, tinham provisesescassas e lhes faltavam as foras e a respirao na atmosfera enrarecida dacabine, e sentiram um grande alvio ao ver Padeen aparecer com estopa,vendas, ripas e tudo o que um homem inteligente poderia pensar, e ao ouvirao senhor Bulkeley, o contramestre, ordenar aos tripulantes do Franklin quebombeassem. Era possvel que no compreendessem o francs docontramestre, mas no podiam equivocar-se com respeito ao aoite, asindicaes com o dedo e seu terrvel vozeiro. Jack tinha mandado comPadeen, alm do contramestre e todos os marinheiros experimentados deque podia prescindir, a Davies O Lerdo, que obedecia em tudo Stephen. E osdois mdicos atenderam por turnos aos pacientes com a ajuda desses doishomens fortes, que podiam carregar, segurar e impedir seu movimento.

    Quando iam cortar uma perna na altura do quadril, Reade desceu e,virando seu plido rosto, disse:

    Senhor, vou levar o capito do Franklin com seus papis para afragata. Quer mandar alguma mensagem?

    Nenhuma, obrigado, senhor Reade. Padeen, segure-o agora. Antes de ir, pode dizer ao contramestre que tire a capa da escada do

    castelinho?Stephen no pde ouvir sua voz pelo lamuriento e prolongado grito

    que o paciente deu, mas um momento depois tiraram a capa que estavasobre eles e a fedorenta cabine se encheu de brilhante luz e de uma fresca elimpa brisa martima.

  • Desde o primeiro momento, Jack no gostou de nada do que ouviu deDutourd. Stephen o descreveu como um homem benevolente a que foraenganado po aquele maldito miservel do Rousseau e mais tarde havia sedeixado levar pela paixo que sentia por sua doutrina, baseada, era verdade,no dio pela pobreza, a guerra e a injustia, mas tambm na presuno deque os homens eram bons e iguais por natureza e que s necessitavam deuma mo firme e amiga que os levasse para o caminho adequado, o caminhode tornar realidade todo seu potencial. Isto, obviamente, requeria a aboliodo presente ordem, que tanto lhes havia pervertido, e das igrejasestabelecidas. Essa era uma antiqssima teoria e com muitas variaesconhecidas, mas Stephen nunca tinha ouvido express-la to claramentenem de forma to apaixonada nem com tanta convico. Mas nem a paixonem o convencimento chegaram a Jack com o resumo de Stephen, aindaque estava muito clara a doutrina que igualava a Nelson a um de seusbarqueiros, e agora olhava friamente o bote que se aproximava.

    A frieza se converteu em franca desaprovao porque Dutourd, depoisde subir a bordo da forma tradicional, com marinheiros colocados no costadooferecendo-lhe cabos, no cumprimentou aos oficiais no castelo de popa.Alm disso, esquecera de levar uma espada para fazer a rendio formal.Jack se retirou imediatamente para sua cabine, dizendo a Pullings:

    Tom, por favor, traga esse homem abaixo com seus papis.Recebeu Dutourd sentado, mas no ordenou a Killick que lhe trouxesse

    uma cadeira, e ao prpio cavalheiro disse: Conforme acredito, senhor, o senhor fala ingls com soltura. Com certa soltura, senhor. E usarei toda a que tenho para

    agradecer-lhe o gesto humano que teve com meus homens. O cirurgio eseu ajudante se comportaram de forma extraordinria.

    O senhor muito amvel, senhor disse Jack, fazendo uma cortsinclinao de cabea; e depois de perguntar-lhe por sua ferida, acrescentou: Pelo que entendi o senhor no um marinheiro de profisso e noconhece bem os costumes que imperam no mar.

    Quase no os conheo, senhor. J governei um barco de recreio,

  • porm, para navegar por alto mar, sempre contratei a um capito. Noposso me considerar um marinheiro, pois passei muito pouco tempo no mar.

    Jack pensou: Isso muda um pouco as coisas. E depois lhe pediu: Por favor, mostre-me seus papis.O ltimo capito que Dutourd tinha contratado era uma pessoa muito

    organizada, alm de um experimentado navegante e um excelentemarinheiro, assim que Dutourd lhe entregou um conjunto de documentosmuito completo envolvido em um pedao de lona alcatroada.

    Jack os revisou com satisfao, mas depois franziu o cenho e voltou aolh-los.

    Onde est sua licena, sua patente de corso? No tenho nenhuma patente de corso, senhor respondeu

    Dutourd, negando com a cabea e sorrindo timidamente. Sou um simplescidado, no um oficial da marinha. Meu nico propsito era fundar umacolnia em benefcio da humanidade.

    No tem licena, nem norte-americana nem francs? No, no. Nunca me ocorreu pedir uma. uma formalidade

    necessria? Muito necessria. Recordo que recebi uma carta do titular do Ministrio da Marinha

    na qual me desejava uma feliz viagem. Acha que me servir? Acho que no. Sua felicidade incluu capturar algumas presas,

    conforme acredito. Pois... sim, senhor. No pensar que uma impertinncia dizer que,

    infelizmente, nossos pases esto em guerra. Isso eu sei. Mas as guerras se fazem conforme certas normas. No

    so revoltas nas quais qualquer um pode participar e se apropiar do quepossa vencer. Temo que se no pode mostrar nada melhor que uma cartadesejando-lhe feliz viagem, dever ser enforcado por pirata.

    Lamento ouvir isso. Mas tanto com relao s presas como aosaspectos puramente relacionados com fazer o corso, o senhor Chauncy, ocapito, de fato, tem autorizao de seu governo. Navegvamos com

  • bandeira norte-americana, como recordar. Encontra-se em um envelopeque tem escrito Dotes e referncias do senhor Chauncy e que est em cimade minha escrivaninha.

    No o trouxe? No, senhor. O jovem cavalheiro com um s brao me disse que no

    tinha nem um momento a perder, assim que deixei todas minhas coisaspessoais.

    Mandarei algum para procur-lo. Por favor, descreva aescrivaninha.

    uma escrivaninha ordinria de nogueira com tiradores de lato ecom meu nome em uma placa, mas quase no h esperanas de que possamencontr-la agora.

    Por que diz isso? Meu amigo, j vi o que fazem os marinheiros a bordo de um barco

    capturado.Jack, sem responder, olhou pela escotilha e viu que Bulkeley e seus

    ajudantes haviam colocado um pau no pedao do mastro mezena. O barcoestava a pairar, com uma improvisada vela ao tero, e se movia muito maissuavemente. A Surprise ia se atracar com ele dentro de poucos minutos.

    H algum oficial sobrevivente que no esteja ferido? perguntou. Nenhum, senhor. Todos morreram. Algum servente? Sim, senhor. Escondeu-se abaixo com os refns. Killick! Killick! Chame o capito Pullings. Sim, sim, senhor disse Killick, que sabia responder cortesmente

    quando havia convidados ou prisioneiros de classe superior. O capitoPullings.

    Mas em vez do capito Pullings, apareceu o jovem Norton, que disse: Com sua permisso, senhor. O capito Pullings e o senhor Grainger

    esto no tope tratando de colocar a cesto da gvea. Posso levar-lhes umamensagem?

    J chegaram to longe, to cedo? No os moleste em um momento

  • to delicado, senhor Norton. V correndo ao convs, pea emprestado umalto-falante e grite ao Franklin que Bonden e Plaice tenha preparados aoservente do senhor Dutourd com seu ba e sua escrivaninha para que ostragam a bordo assim que disponham de um momento. Mas antes leve estecavalheiro cmara dos oficiais e diga ao despenseiro que lhe sirva o quepea. Vou subir ao cesto da gvea do traquete.

    Sim, sim, senhor. O servente, o ba e a escrivaninha do senhorDutourd to cedo como disponham de um momento. E o senhor Dutourdpara a cmara dos oficiais.

    Dutourd abriu a boca para dizer algo, mas j era muito tarde. Jack jogoupara um lado a casaca e saiu rapidamente da cabine, fazendo tremer acoberta a sua passagem.

    Por aqui, senhor, por favor disse Norton.Bonden ouviu a mensagem alguns minutos depois, quando estava

    subindo a bordo um mastaru pelos amantilhos. Ento falou com ocontramestre.

    Senhor Bulkeley, tenho que levar o servente do senhor Dutourd, seuba e sua escrivaninha para a fragata. Posso pegar o esquife?

    Sim, companheiro disse o contramestre com a boca cheia deestopa, a menos que possa caminhar. E traga-me um par de lanteones{4}

    e de moites e, tambm, um rolo de cnhamo de Manila de uma polegada emeia que est atrs da escotilha de proa.

    Jack regressou cabine muito satisfeito. Apesar da ausncia do senhor

    Bulkeley e de muitos marinheiros de primeira, a Surprise se recuperara deforma extraordinria. Era verdade que pelo menos restava meia dzia demarinheiros do castelo que, independentemente dos papis, podiam terservido como contramestres em barcos de guerra, e tambm era verdadeque, como Jack era rico, tinha uma grande quantidade de apetrechos;porm, de toda forma, a mudana do estado de caos que havia aoamanhecer para o atual, quase de perfeita ordem, era realmente assombrosa.

  • A esse passo, a fragata, com os quatro pares de contraestais que lhecolocaram pela manh, poderia estar navegando com as gveas e as maioresno dia seguinte, pois os ventos alsios j haviam se fixado sobre o mar, agoraem um estado quase normal.

    Diga ao senhor Dutourd que venha. Mas seu nome Turd comentou Killick a seu companheiro

    Grinshaw, antes de ir cmara dos oficiais para despertar ao francs deolhos avermelhados.

    Aqui tem, senhor disse Jack quando fizeram o francs entrar nacabine. Aqui est seu ba e aqui est o que parece ser sua escrivaninha acrescentou, assinalando uma caixa com uma prancha de metal que Killicktinha polido, e que tinha escrito o nome Jean du Tourd.

    Assombroso! exclamou Dutourd. Nunca pensei voltar a v-la. Espero que possa encontrar o envelope de que me falou. Estou seguro de que sim, porque ainda est fechado com chave

    disse Dutourd, buscando a chave. Com sua permisso, senhor Adams, o apreciado escrevente de

    Jack, interrompeu-lhes. Falta menos de um minuto para a hora. Desculpe-me, monsieur disse Jack, levantando-se de um salto.

    Voltarei dentro de alguns momentos. Por favor, busque esse papel.Jack e Adams faziam uma srie de observaes a determinados

    intervalos: a direo e intensidade do vento, a corrente, a pressobaromtrica, as variaes da bssola, a umidade, a temperatura do ar e a domar, junto com a salinidade a diferentes profundidades e a intensidade doazul do cu. Esta srie de observaes tinham que ser feitas ao redor domundo e entregues a Humboldt e Royal Society, e era uma lstima querompessem a seqncia em um momento to importante.

    Uma comprida pausa; gritos prpios da navegao; o clique-clique-clique das lingetas do cabrestante. Nesse momento uma grossa verga subiue, quase imediatamente depois do grito Amarrar!, o capito Aubreyregressou.

    Encontrei o certificado anunciou Dutourd, saindo de sua letargia

  • e entregando-lhe um papel. Alegro-me de sab-lo disse Jack.Sentou-se em sua escrivaninha e, depois de ler o documento

    atentamente, franziu o cenho e disse: Sim, est muito bem. Isto permite ao senhor William B. Chauncy,

    que presumivelmente era o capito contratado pelo senhor, apresar,queimar e destruir barcos ou navios que pertenam a Sua Majestade oulevem sua bandeira, mas no menciona ao senhor Dutourd; no o mencionaem nenhuma parte.

    Dutourd no disse nada, mas ficou plido e levou a mo cabea. Jackteve a impresso de que j no lhe importava se iam lhe enforcar ou no porpirataria, mas que o deixassem deitar-se um pouco tranqilamente.

    Jack ficou pensativo alguns momentos e depois disse: Bem, senhor, devo confessar que o senhor um tipo de prisioneiro

    anmalo, como a criatura que no humana nem uma ave nem umarenque, mas tem algo de todos: a esfinge. O senhor o dono de um barco,uma espcie de capito, mas no est no rol, e tambm uma espcie depirata. No estou seguro do que devo fazer com o senhor. Como no temum comando por escrito, no posso trat-lo como a um oficial e no podeficar na cmara dos oficiais.

    Aps uma pausa, durante a qual Dutourd fechou os olhos, Jackprosseguiu:

    Porm, afortunadamente, a Surprise uma embarcao bastantegrande com uma tripulao pequena, e na coberta inferior, justo na proa,fizemos cabines para o condestvel, o contramestre e o carpinteiro. Aindarestam dois livres, pode ficar em uma. Posto que nenhum de seus oficiaissobreviveu, ter que comer sozinho, mas provavelmente os oficiais lheconvidaro amide. E, sem dvida, ter liberdade para ficar no castelo depopa.

    Dutourd no disse nada sobre a oferta. Baixou a cabea, e por causa dobalano, caiu da cadeira de cabea. Jack o recolheu, deitou na parte superiordo escaninho de popa, que era acolchoado, e chamou a Killick.

  • O que pensa, senhor? perguntou seu despenseiro. No v queest sangrando como um porco por debaixo da venda?

    Killick foi correndo ao sanitrio para buscar uma toalha e a ps debaixoda cabea de Dutourd.

    Agora tenho que tirar todas estes cobertores e met-los em gua friaimediatamente, mas no h gua, porque o barril do convs est vazio e atque Astillas no venha no reparar a manivela da bomba.

    No se preocupe com os cobertores manchados de sangue disseJack; e seu repentino mau humor, devido ao terrvel cansao, alcanouinclusive a Killick. V rapidamente com Grinshaw cabine que fica junto do contramestre, pea uma maca ao senhor Adams, pendure-a, e deite-onele. E ordene que levem tambm seu ba, ouviu?

    O terrvel cansao havia se estendido aos dois barcos, equiparando osalegres vencedores aos tristes vencidos. Os dois grupos teriam renunciado aobutim ou liberdade contanto que lhes permitissem descer para descansar.Mas isso no era possvel. Os poucos prisioneiros que se achavam bemtinham que bombear constantemente para manter seu barco flutuando oupuxar um cabo ao ouvir a ordem; e em ambas embarcaes, todos osmarinheiros deviam permanecer no convs at que tivessem desdobradovelame suficiente para ficar ao pairo sem correr risco em caso de tormenta,pois nem ao meio-dia nem agora, pela tarde, o cu parecia confivel.

    De todos, os nicos que aparentemente estavam inativos eram osmdicos. Haviam voltado para a fragata fazia pouco tempo, fizeram asrondas da enfermaria e seus arredores, e agora esperavam para quehouvesse um momento de pausa na atividade geral e algum levasseMartin para passar a noite no Franklin, atravessando a estreita faixa de guaturbulenta que separava as embarcaes. Ainda que os dois soubessemremar, a sua maneira, no podiam se permitir machucar os dedos, porqueera muito provvel que tivessem que fazer alguma operao.

    Estavam observando como extraiam os pedaos dos mastros quebradose os substituam por bandolas, e de vez em quando Stephen explicava asdiferentes operaes.

  • Ali, v? perguntou. Onde esto aquelas pernas longas que seunem altura do cesto da gvea, com dois grandes moites no ponto deun