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UM MQNUMENTO A BRJOSA Nada parece falhar neste livro colossal em páginas e peso e interesse, possível pela paixão que os autores nutriam pela equipa estudantil, tendo a obsessão de registar desde os vultos maiores até às figuras mais discretas, dos grandes momentos históricos as peripécias que revelam uma forma peculiar de estar na modalidade que enlouqueceu o mundo por Fernando Madaú "MÃE, ESTOU DESEMPREGADO", a faixa esticada no topo sul do Estádio do Jamor, a 20 de maio de 2012, essa tarde em que Mari- nho -já comparado ao mítico Bentes, o "rato atómico", sobre quem Manuel Alegre escre- veu um poema - garantiu a segunda Taça de Portugal para a Briosa, fazendo lembrar os le- treiros ostentados na politizada final de 1969 (I> , como "Melhor ensino, menos polícias", é quase só o que falta no livro Académica - His- tória do Futebol, de João Mesquita <2) (que não participou na atualização da segunda edição) e de João Santana (3) . Obra monumental sobre o futebol da As- sociação Académica de Coimbra (AAC), a es- crita elegante de João Mesquita percorre ca- da temporada da Briosa (4> , dos primeiros jo- gos em 1911 até à atualidade, mas dando sem- pre destaque a factos determinantes - como a necessidade de, em plena revolução, quan- do uma Assembleia Magna considerou que o futebol era alienante, a secção passar a ser ju- ridicamente o novo Clube Académico de Coimbra e, em 1984, retomar a designação feminina, como AAC/Organismo Autónomo de Futebol - ou a episódios que parecem ca- ricatos para os não academistas - como a ori- gem da rivalidade com o União, que dividiu, durante décadas, a Coimbra dos estudantes e dos doutores da cidade dos operários e cai- xeiros e que Deniz Jacinto (5> assim definiu: "Um Académica-União era o que se chama um caso sério: campo à cunha, repleto de uma multidão extraordinariamente aguerri- da que, as mais das vezes, transportava à sor- relfa, sob a capa ou debaixo do sobretudo, respeitáveis bengalas para o que desse e viesse." Nada parece falhar neste livro colossal em

UM MQNUMENTO A BRJOSA · 2012. 6. 9. · UM MQNUMENTO A BRJOSA Nada parece falhar neste livro colossal em páginas e peso e interesse, só possível pela paixão que os autores nutriam

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Page 1: UM MQNUMENTO A BRJOSA · 2012. 6. 9. · UM MQNUMENTO A BRJOSA Nada parece falhar neste livro colossal em páginas e peso e interesse, só possível pela paixão que os autores nutriam

UMMQNUMENTO

A BRJOSANada parece falhar neste livro colossal em páginas e peso e interesse, só

possível pela paixão que os autores nutriam pela equipa estudantil, tendo aobsessão de registar desde os vultos maiores até às figuras mais discretas, dos

grandes momentos históricos as peripécias que revelam uma forma peculiarde estar na modalidade que enlouqueceu o mundo

por Fernando Madaú

"MÃE, ESTOU DESEMPREGADO", a faixaesticada no topo sul do Estádio do Jamor, a20 de maio de 2012, essa tarde em que Mari-nho -já comparado ao mítico Bentes, o "rato

atómico", sobre quem Manuel Alegre escre-veu um poema - garantiu a segunda Taça de

Portugal para a Briosa, fazendo lembrar os le-treiros ostentados na politizada final de 1969(I>

, como "Melhor ensino, menos polícias", é

quase só o que falta no livro Académica - His-tória do Futebol, de João Mesquita <2) (que jánão participou na atualização da segundaedição) e de João Santana (3)

.

Obra monumental sobre o futebol da As-

sociação Académica de Coimbra (AAC), a es-crita elegante de João Mesquita percorre ca-da temporada da Briosa (4>

, dos primeiros jo-gos em 1911 até à atualidade, mas dando sem-

pre destaque a factos determinantes - comoa necessidade de, em plena revolução, quan-do uma Assembleia Magna considerou que o

futebol era alienante, a secção passar a ser ju-ridicamente o novo Clube Académico deCoimbra e, já em 1984, retomar a designaçãofeminina, como AAC/Organismo Autónomode Futebol - ou a episódios que parecem ca-ricatos para os não academistas - como a ori-

gem da rivalidade com o União, que dividiu,durante décadas, a Coimbra dos estudantese dos doutores da cidade dos operários e cai-xeiros e que Deniz Jacinto (5> assim definiu:"Um Académica-União era o que se chamaum caso sério: campo à cunha, repleto de

uma multidão extraordinariamente aguerri-da que, as mais das vezes, transportava à sor-

relfa, sob a capa ou debaixo do sobretudo,respeitáveis bengalas para o que desse e

viesse."Nada parece falhar neste livro colossal em

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páginas e peso e interesse, só possível pelapaixão que os autores nutriam pela equipaestudantil, tendo a obsessão de registar des-

de os vultos maiores até às figuras mais dis-

cretas, dos grandes momentos históricos às

peripécias que revelam uma forma peculiarde estar na modalidade que enlouqueceu o

mundo - como a fotografia de uma Receçãoao Caloiro em que Artur Jorge surge vestidode cowboy diante da porta férrea da Univer-sidade. Juntando a grandeza da enciclopédia(onde nem sequer falta a fotografia de todos

os jogadores da História da Académica e umalista dos futebolistas licenciados enquantovestiam a camisola negra) e a surpresa do al-

manaque (como a origem do grito F-R-A (6) oua legião de canários que Cândido de Oliveira(7) tinha no Hotel Astória), o rigor dos factos

e a emoção da interpretação, este livro capazde fazer inveja aos adeptos do Sporting,Benfica e FC Porto junta desde as presençasnas competições europeias e das cinco ante-riores finais da Taça a momentos menoslembrados, como aquele golo de Marito ao

Belenenses, num jogo do campeonato de

1986-1987, que se tornou, para quem o viu,um elogio à magia do futebol - pela dança nodrible a três adversários e pela geometria do

"chapéu" desde a linha do meio-campo atéàs malhas da baliza.

Os "pardalitos do Choupal", como os defi-niu o jornalista Vítor Santos no título de ABola com que, a 6 de novembro de 1961, re-latou a vitória da Académica sobre o Benfica

que tinha sido campeão europeu (8), conhece-

ram temporadas de grandeza e de serenida-

de, de aflição até ao fim e também de quedana segunda divisão, com destaque para a po-lémica de 1987-1988 <9)

. E a definição daque-le jornalista, quatro décadas depois, parececontinuar perfeita: "A Académica é isto - a

equipa dos 'escândalos' [no sentido de derro-tar os poderosos], a equipa dos 'impossíveis',

a equipa de que tudo se espera: o melhor e o

pior, o lógico e o ilógico, o natural e... o má-

gico. Há, realmente, 'qualquer coisa' naque-las camisolas negras, tecidas com a magia, a

tradição, a irreverência, a ladinice, o azouguedo ambiente de Coimbra e da sua eterna Aca-demia."

Naquelas 753 páginas (!) de um hino à Aca-démica destacam-se os grandes craques queencantaram adeptos no Campo de SantaCruz ou no Estádio Municipal (no Calhabé).Conforme as gerações, o primeiro "interna-cional" Alberto Gomes, o célebre AntónioBentes (sobre quem Assis Pacheco escreveu:"os espanhóis tiveram o Di Stéfano (10)

, os

portugueses tiveram o Bentes"), o fantasis-ta Augusto Rocha ("'o chinês', como é cari-nhosamente tratado em Coimbra"), os maisrecentes que convém não escolher para evi-tar melindres, os nacionais e os que exigemum planisfério de oriundos, da Albânia de

Abazaj a Trinidad e Tobago de Latapy. E se

Octaviano, um dos heróis da primeira Taçade Portugal, ao descrever a sensação que ja-mais esqueceria, admitiu "se fosse poeta, fa-ria um soneto, só da satisfação que senti",não tardaria até os vates passarem a fazerversos sobre a Briosa, com destaque para Ma-nuel Alegre.

Autêntico monumento em papel impres-so, onde tudo se descobre, se aprende, se re-corda, se confirma, talvez o mais curioso pa-ra os leitores que não são adeptos da Acadé-mica sejam mesmo episódios que, no presen-te mundo do chuto no cautchu, parecem im-possíveis. Três exemplos: o "oficial e futebo-lista" Faustino, um dos finalistas da Taça de

1939, em vez de ir até Coimbra festejar, re-

gressou a Mafra onde estava aquartelado e,antes da meia-final com o Sporting, tinha fei-to nessa mesma manhã uma marcha militarde... 30 quilómetros! Na temporada 1966--1967, em que a equipa de negro se sagraria

vice-campeã nacional, acabando a três pontosdo Benfica, confrontado com as aspirações es-

tudantis, Artur Jorge tinha comentado aos

jornalistas: "Qual título? Eu tenho um examede alemão amanhã!..." E quando Jorge Hum-berto, então quintanista de Medicina, rece-beu um convite para ir jogar no Inter de Mi-lão, foi pedir a um professor para lhe adiar o

exame, pois tinha de ir fazer uma partida à

experiência a S. Ciro, onde marcaria três dos

cinco golos na vitória ao Spartak da Jugoslá-via. "Três dias depois", lê-se no livro, "nomesmo estádio, iria jogar o Inter contra o

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Santos. Imaginem só - o Santos do famoso

Pele, mais famoso do que o nosso EusébioL.Foi-me pedido, com alguma insistência, queficasse para participar nesse jogo. Vontadenão me faltou, mas tinha prometido ao Prof.Fernando de Oliveira que voltaria, antes de 31

de julho, para fazer o meu exame de Patolo-

gia Cirúrgica. E voltei, a tempo de conseguiruma boa classificação."

Há ainda as causas políticas, dos jogadoresafricanos que desertaram para irem combaternos movimentos de libertação (França, porexemplo, como lembrará o "velho capitão"Mário Wilson, seria o comandante N'Dalo,"uma autêntica lenda viva do MPLA") à ca-misola oferecida pelo então presidente Cam-

pos Coroa aXanana Gusmão recordando queele tinha sido guarda-redes da Académica deDíli. E a especificidade dos adeptos comuns,pois alguns são "teóricos" (11) e, outros, inespe-rados. No 'Dia da Briosa' <12) de 1988, o entãoPR Mário Soares confessaria ao jornal O Jogo:"Tenho sempre mantido uma posição equi-distante em matéria de futebol, mas se há al-

gum clube pelo qual possa 'torcer' um poucoé pela Académica".

E, como João Mesquita não teve a alegriade ver a sua Académica ganhar uma Taça de

Portugal, pois nasceu dezoito anos após a mí-tica vitória sobre o Benfica no Campo das Sa-

lésias e morreu três antes do triunfo sobre o

Sporting no estádio do Jamor <13), a presente

edição de Académica - História do Futebol

apenas sublinha a façanha de 1939, quando,desde Lisboa até Coimbra, "nasceu a famosacantilena": "São horas de emalar a trouxa /Boa noite, oh! tia Maria. / Que a Briosa ga-nhava a Taça, / Já toda a gente sabia!"

(i) Em plena Crise Académica, que abalaria a

Primavera Marcelista, com a greve aos exames e

Coimbra ocupada pela polícia de choque, a carreira

da equipa de futebol foi um dos veículos cúmplices

Livro capazde fazer invejaaos adeptos doSporting, Benficae FC Porto, juntaa grandeza daenciclopédia (ondenem sequer falta afotografia de todosos jogadores

da Históriada Académicae uma listados futebolistaslicenciadosenquanto vestiama camisola negra)e a surpresado almanaque(como a origemdo grito F-E^-A oua legião de canáriosque Cândidode Oliveira tinhano Hotel Astória)Os "pardalitosdo Choupal",como os definiu ojornalista VítorSantos no títulode A Bola'com que, a 6 denovembro de 1961,relatou a vitóriada Académicasobre o Benfica quetinha sido campeãoeuropeu,conheceramtemporadas degrandeza e deserenidade, deaflição até ao fim etambém de quedana segunda divisão

Alguns adeptossão "teóricos"e, outros,inesperados.No 'Dia da Briosa'de 1988, o entãoPresidente daRepública MárioSoares confessariaao jornal 'O Jogo':"Tenho sempre

mantidouma posiçãoequidistante emmatéria de futebol,mas se há algumclube pelo qualpossa 'torcer'um poucoé pela Académica"

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Bentes, o 'rato atómico', de capa e batina Jorge Humberto a apanhar o comboio para Milão O estudante Artur Jorge numa Receção ao Caloiro

A euforia pela conquista da Taça de Portugal em 1939 Protestos contra o regime na politizada Final de 1969 Nos tempos da revolução foi preciso criar o Académico

da contestação estudantil, com o jornalista Carlos

Pinhão, anos mais tarde, a classificar aquela Final

como "um do maiores comícios de sempre contra o

regime" fascista. E os estudantes-atletas, quetambém participaram da crise (por exemplo, há

uma foto de uma assembleia geral a decidir a greveàs aulas onde se reconhece Vítor Campos), tinham

decidido que o capitão Gervásio, se ganhassem a

Taça (o Benfica de Eusébio venceupor 2-1), iria

entregar o trofeu ao presidente da Direção-Geral da

AAC, Alberto Martins.

(2) João Mesquita (Coimbra, 3 de junho de 1957 -Lisboa, 12 de março de 2009), jornalista e presidentedo Sindicato dos Jornalistas entre 1989 e 1993."Tinha seis anos quando viu jogar a Briosa pela

primeira vez." E, mesmo quando vivia em Lisboa,

sempre que podia acompanhava a Académica,torcendo aponta do bigode enquanto se emocionava

com o jogo, como se pode comprovar no filmeFutebol de Causas, de Ricardo Antunes Martins.

(2) João Santana (Lousa, 16 de janeiro de 1963),

professor de Físico-Química na Escola Secundária de

Anadia. "Acompanha os jogos da Académica a partirdos oito anos e, desde os onze, dedica-se a recolher parao seu acervo documental toda a espécie de

testemunhos escritos, orais e visuais sobre a

instituição."

(4) A expressão, como se explica no livro, já existia no

século XIX, com a dupla aceção de "briosa mocidade

académica" e "característica da Academia de

Coimbra".

(5) Deniz Jacinto (1915 - 1998), ensaísta, professor,

crítico, ator e encenador, foi presidente do Orfeon e

da Direção-Geral da AAC, mas será mais conhecido

como vulto maior do TEVC (Teatro dos Estudantes

da Academia de Coimbra), de que foi fundador e

onde seria um inesquecível diabo vicentino nas

peças encenadas por Paulo Quintela.

(6) A origem do célebre F-R-A é a organização a que

pertenciam alguns brasileiros a estudarem em

Coimbra, a Frente Republicana Académica, que se

opunha à ditadura de Getúlio Vargas. O grito

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académico, que seria um hino da FRA, começou a

ouvir-se na cidade do Mondego em 1937 e, no ano

seguinte, já era repetido por todas as vozes na

Queima das Fitas.

(j) Além da sua faceta de antifascista, preso no

campo de concentração do Tarrafal, e de ser um dos

fundadores de A Bola, Cândido de Oliveira (1896-

-1958) é uma figura histórica do futebol português,tendo treinado Belenenses, Sporting, Flamengo (Rio

de Janeiro), FC Porto e Seleção Nacional. Nas

últimas três décadas, seria o mister da Académica.

Morreu no Mundial da Suécia, onde estava como

enviado especial de A Bola.

(8) Tinha ganho a sua primeira final da Taça dos

Campeões Europeus, derrotando o Barcelona, em

Berna, por 3 -2, com golos de Águas, Ramellets (na

própria baliza) e Coluna.

(9) Além do estranho jogo entre Guimarães e Braga

- como se recorda no livro, o Record titulava

"Vitória e Braga deixaram de jogar quando o

resultado [um empate] já dava jeito [a ambos os

clubes para garantirem a permanência na IDivisão]") -, a Académica lançará a campanha que

ficaria conhecida como caso N'Dinga ("uma

ilegalidade nunca reparada"), alegando a má

inscrição do zairense do Guimarães.

(10) O argentino Alfredo Di Stéfano (nasceu em

1925), figura mítica do Real de Madrid e que jogou

pelas seleções da Argentina, da Colômbia e de

Espanha, épor muitos considerado o melhor

futebolista da História, superando Pele e Maradona.

(11) A primeira falange de apoio académica, criada

em 1928 (muitas décadas antes da Mancha Negra),chamava-se Baralha Teórica e, entre os seus dez

mandamentos para se ser um "teórico pedibolistico",

exigia-se que o candidato não tivesse "sido mordido

por cão danado ou arranhado por futrica" (isto é, na

gíria académica, o não -estudante).

(12) O Dia da Briosa, institucionalizado em 1984,

foi uma criação do então presidente Jorge Anjinho.

(13) Mas, na véspera e nesse dia, o Facebook estava

cheio de dedicatórias que os amigos lhe faziam."Confessa, João, andas por aí às voltas, não

conseguesficar quieto. A tua Briosa está lá hoje.

Estamos todos/as lá hoje. E as saudades também."

"Ainda ontem, na fila para entrar no estádio, ouvi

dizer a um sportinguista que conhecia bem o João

Mesquita que não se importaria de perder a Taça só

para o ver contente! Fiquei bastante tocado..."

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