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I A lessandro Rocha um novo lugar para a linguagem Vida ACADÊMICA

um novo lugar para a linguagem · PDF fileNa tentativa de tornar a fé cristã mais ... e não querendo ser refém de uma perspectiva somente crítica que ... Aproximação do pensamento

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I

Alessandro Rocha

um novo lugar para a linguagem

VidaA C A D Ê M I C A

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Teologia sistemática no horizonte pós-moderno

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A lessa n d r o R o c h a

Teologia sistemática no horizonte pós-modernoum novo lugar para a linguagem teológica

Vida

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If./Vida

©2007, de Alessandro Rodrigues Rocha

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Vida

E d i t o r a V i d a

Rua Júlio de Castilhos, 280 CEP 03059-000 São Paulo SP

Tei.: Oxx 11 6618 7000 Fax: 0 xx 11 6618 7050vAvw.editoravida.com.brwwv.vidaacademica.net

P r o i b i d a a r e p r o d u ç ã o p o r q u a i s q u e r m e i o s ,

SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM IND1CAÇÀO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Nova Versão Internacional (NV1),®2001, publicada por Editora Vida, salvo indicação em contrário.■

Coordenação editorial: Sônia Freire Lula AlmeidaEdição: Judson CantoRevisão: írisGardinoDiagramação: Set-up TimeCapa: Marcelo Moscheta

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

R ocha, A lessandrp R odriguesTeolog ia sistem ática n o horizonte pó s-m o d ern o : um novo lugar para a lin gu agem teo lóg ica / A lessan d ro R od rigu es R ocha. — S ã o P au lo : E d ito ra

V id a , 2 0 0 7 .

Bibliografia.I S B N 9 7 8 -8 5 -7 3 6 7 -9 7 4 -8

1. L in guagem - F ilosofia 2 . T eolog ia - M eto d o lo g ia 3 . T eolog ia sistem ática 1. T ítu lo .

C D D -2 3 0 .0 1

índice para catálogo sistemático

1. T eolog ia sistem ática : F ilosofia e teoria : C ristian ism o 230 .01

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A Adriana, que me acompanhou de perto nas

dores e alegrias da pesquisa que resultou nesta obra.

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A

Clemir Fernandes, Douglas Conceição, Eduardo Rosa Pedreira, Elcio Sant’Anna,

Haroldo Reimer, Lauro Bayard, Luiz Longuini N eto, M anoel M oraes, M aria Eduarda, Marlene Gorni (Geni), O lga Sant’Anna,

Renata Portela.

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4 C o n c l u s ã o

Glossário

Bibliografia

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Prefácio

Todo professor, como qualquer outro profissional, tem sonhos

e ideais! Como professor de teologia, tenho os meus. Um deles é

não ser mero transmissor de conteúdo, mas encontrar alunos que,

por meio de um diálogo profundo, permitam que as aulas deixem

de ser monólogos chatíssimos, para se transformar em riças e cria­

tivas conversações teológicas. Acontece que, em razão do empo­

brecimento da reflexão teológica mais sólida no âmbito das nossas

igrejas locais e subseqüentemente dos nossos seminários, vai fi­

cando cada vez mais raro encontrar alunos assim (e professores

também!).

Alessandro é uma feliz exceção que infelizmente confirma a regra! Trata-se de alguém com quem se pode dialogar, pela rique­

za de conteúdo, seriedade acadêmica, brilhantismo de idéias e

abertura de reflexões. Com a ajuda dele, algumas das aulas trans-

formaram-se em ricos colóquios que me fizeram descer do pedes­

tal de professor e me colocar como um igual, um companheiro ao

lado de outro na construção de um saber teológico mais sólido,

porém mais arejado.O texto que o leitor tem as mãos é o resultado de sua disserta­

ção de mestrado, da qual tive a honra de ser seu orientador. Não

pode ser lido de uma “sentada”; ao contrário, em virtude de seu

pensamento tentacular, de sua linguagem apurada, precisamos

ler e reler alguns parágrafos para captar seu significado. Nem por

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isso é um texto obscuro, hermético, compreendido apenas pelos

iniciados. Ao contrário, quando vamos chegando ao seu âmago e

compreendendo sua proposta, então vai-se descortinando diante

de nós um novo caminho.

O que aqui se chama de novo caminho é a percepção do autor

de que a nossa Teologia Sistemática tem produzido um discurso

de uma só voz (univocidade), desconsiderando as inúmeras vozes

que nascem dos diferentes contextos dentro dos quais a vida acon­

tece e a teologia também. N a tentativa de tornar a fé cristã mais

inteligível ao mundo greco-romano, os primeiros esforços teoló­gicos dentro do cristianismo fizeram uso da metafísica grega, ele­

mento que é apontado pelo autor, como responsável por esta tendência univocizante e universalizante da Teologia Sistemática.

Com a opção radical pela metafísica, a teologia afastou-se radical­mente do outro pólo da cultura grega, o mito, que nada mais era

do que uma linguagem metafórica e que, por causa das suas imen­

sas possibilidades de interpretação, é por natureza polissêmica, car­

regada de muitas vozes. Usando a linguagem do autor, eu diria que a sublevação da metafísica na teologia sistemática fez que ela “se es­quecesse” de que a metáfora é por excelência a linguagem do mis­

tério, mistério pelo qual a teologia deve existir. Obviamente, essa

univocidade trouxe para nossa maneira de fazer teologia um pro­

fundo empobrecimento, por ser seu método um “samba de uma nota só” e, por isso, deixa de ecoar a riqueza infinita de outras

notas que, quando harmonicamente unidas, sempre produzem belas e diferentes sinfonias.

De posse dessa percepção, e não querendo ser refém de uma

perspectiva somente crítica que descreve a doença sem preocupa­

ção alguma de apontar remédios, o autor constrói, com o brilhan­

tismo que lhe é peculiar, uma proposta de superação dessa

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univocidade da teologia sistemática. Revelar neste prefácio que

proposta é essa seria como contar ao leitor o final do filme. Este é um prazer que deixo reservado a todos os que mergulharem com a atenção devida neste texto e, então, puderem como eu ter o pra­zer de dialogar com Alessandro!

E d u a r d o R o s a P e d re ir a Doutor em teologia pela PUC-R] e professor de ética corporativa

na Fundação Getúlio Vargas. E pastor da Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro.

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Introdução

Este estudo sobre a teologia sistemática manualista e seu dis­curso univocizante tem como ponto de partida a filosofia, passa pela fenomenologia da religião e pela antropologia, e visa à pro­posição de uma abordagem que abrigue em seu interior a multipli­cidade dos locais hermenêuticos.

Nossa preocupação fundamental foi a compreensão da impor­tância das mediações culturais (v. Glossário, mediação culturai) no discurso teológico, sobretudo do ponto de vista dogmático. Para esse fim, valemo-nos do suporte teórico da filosofia, da antropolo­gia e da fenomenologia numa dupla tarefa: evidenciar a tendência universalizante (v. Glossário, abordagem totalizante-universalizante) da teologia sistemática como herança das tradições metafísicas e propor, em contraposição a essa tendência, uma abordagem teo­lógica que contemple as vivências regionais da fé, em suas inúme­ras possibilidades pedagógicas — valorizando sobretudo a multiplicidade da linguagem metafórica como viabilizadora da autonomia dos saberes teológicos locais.

Por percebermos que a teologia sistemática manualista (v. Glos­sário, manualística) vive um momento de esgotamento de senti­do, em que a fé cristã se restringe à repetição dogmática de reflexões histórico-sociais do passado, vimos a necessidade de abordar criti­camente a “gestação” dos métodos e situá-los como construtos sociais. O resultado desse labor foi, em última instância, este li­vro, que pode vir a oxigenar a disciplina, possibilitando aborda­

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gens originais dos temas da fé que contemplem os novos sujeitos

históricos (v. Glossário, sujeito histórico).As reflexões aqui contidas justificam-se também socialmente,

considerando-se a distância existente entre os postulados da teo­

logia sistemática manualista e as questões vivenciadas pelo povo

de Deus em sua caminhada de fé. Os grandes temas da fé crista

não comunicam sentido existencial, passando a ser seu estudo

tão-somente um exercício apologético de ilustração. Nesse senti­

do, a teologia perde seu caráter dialético profundo e sua dimen­

são encarnacional.Nas tentativa de reabilitar os saberes locais, buscamos mini­

mizar a distância entre a teologia e os cristãos e, o mais importan­

te, reabilitar o terreno da existência cotidiana como elemento e

ponto de partida para o fazer teológico. Isso porque constatamos

ser o sistema manualista (e seus métodos) inadequado em relação

às questões próprias das realidades locais, fato evidenciado tam­

bém na docência teológica e na catequese. Em suma, propomo-

nos a “dar respostas a perguntas que não estão sendo feitas” .Toda esta obra baseia-se na seguinte questão central: “Como se

deu a formação do discurso de tendência universalizante utiliza­

do pela teologia sistemática na abordagem dos temas da fé cris­

tã?” . E, com a resposta encontrada, procuramos desenvolver uma

abordagem crítica que permita sua superação.Em decorrência do problema central, surgiram indagações

pertinentes: “Como verificar e compreender o processo que le­

vou a comunidade cristã antiga a privilegiar o uso da metafísica

em detrimento da metáfora na comunicação dos temas da fé?” ;

“Qual o resultado — sobretudo metodológico — desse proces­so para o discurso teológico dogmático-sistemático e como

mensurar essa contribuição para a teologia?”; “Como desenvol­

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ver uma possível crítica a procedimentos metodológicos que universalizam um local (histórico-social) em detrimento de ou­

tros e quais contribuições se podem receber dos aportes teóricos assumidos neste estudo?”. Para responder a isso, apoiamo-nos em

dois argumentos:

1) A formação do discurso teológico dogmático deve à filoso­fia grega os elementos fundamentais de sua elaboração metodológica.

2) A filosofia grega, contrapondo-se à mentalidade escorada em mitos, que acentuava a equivocidade (v. Glossário) hermenêutica e valorizava a metáfora como forma adequada de expressar as realidades que escapam ao cotidiano, esta- beleceu-se sobre a necessidade de uma afirmação da univo­cidade (v. Glossário) da verdade.

O unívoco, porém, só poderia ser afirmado com base em uma fonte fidedigna que transcendesse as realidades culturais (que são equívocas). Somente dessa forma seria possível afirmar uma resolução de abrangência universal. E a fonte fidedigna que a filosofia grega elaborou para afirmar a univocidade universal foi a metafísica.

Dessa hipótese central, surgiram ainda outras, de caráter com­plementar. Primeira, ao tomar dessa filosofia (ou seja, da media­ção cultural — v. Glossário) os elementos para a comunicação de sua experiência de fé, transformando-a em discurso sistemático, a teologia percorreu o mesmo caminho. Abandonando a equivo­cidade e a metáfora, aproximou-se gradativamente da univocidade e da metafísica. Segunda, como resultado desse processo temos a dogmatização dos temas da fé, ou seja, a ascensão de compreen- sões elaboradas na cultura ao status de verdades últimas e funda­

mentais.

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Diante desse discurso teológico, que potencializa, com base na metafísica, uma mediação cultural, cristalizando-a e transforman­

do-a em norma de alcance e vigência universais, é imperioso que se afirme o distanciamento da teologia das vivências históricas e

culturais. Isso é feito na afirmação das mediações culturais como fator determinante para novas abordagens metodológicas e exigiu a transferência da elaboração do método do locus (v. Glossário)

metafísico para o âmago dos processos culturais.Finalmente, como resposta à condição univocizante em que se

encontra a teologia sistemática manualista, causada pela cristali­

zação de uma mediação cultural normatizante, é preciso afirmar o “local” como princípio de uma nova abordagem metodológica. Assim, pudemos desenvolver o tema principal em três capítulos.

O primeiro capítulo, de caráter descritivo, versa sobre o proces­so de sublevação da metafísica (v. Glossário) “em detrimento da metáfora na comunicação dos temas da fé cristã” . Para evidenciar esse processo, percorremos a seguinte trajetória:

a) O caminho da univocidade: o surgimento da metafísica na filosofia grega

Heráclito e Parmênides como possibilidades na construção de uma teoria do conhecimento

Afirmação de uma possibilidade: a metafísica em Platão e Aristóteles

b) Da metáfora à metafísica: o caminho da afirmação da univocidade na teologia cristã

A metáfora no horizonte das vivências e da comunicação da fé

Aproximação do pensamento cristão à filosofia grega

O caminho da metafísica como instrumento sustentador da univocidade

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c) Abordagem metodológica resultante da afirmação metafísica no interior da teologia dogmático-sístemática

O segundo capítulo, que articula descrição e proposição, trata

da “ascensão, potencialização e evocação: processo de gestação da univocidade universalizante”.

a) Aproximação ao núcleo do discurso teológico

A experiência de fé e a necessidade/o desafio de cognosci- bilização (v. Glossário)

Mediação cultural como locus metodológico

Discurso sistemático como produto de uma reflexão sobrea experiência de fé

b) Abordagem totalizante-universalizante (v. Glossário) como cris­talização de uma mediação cultural

Desistoricização (v. Glossário) do discurso teológico

Mecanismos de controle do discurso teológico

No último capítulo, buscamos a elaboração de uma aborda­gem metodológica que dê conta dos resultados obtidos. Assim, propomos uma “afirmação do local como princípio de uma nova abordagem metodológica em teologia sistemática”. O caminho percorrido para a proposição dessa abordagem metodológica foi o seguinte:

a) A morte de Deus como ponto de partida para a libertação da metáfora

Nietzsche, Deus e a metafísica

Vattimo e a libertação da metáfora

b) O “local” como locus metodológico

Reabilitação da mediação cultural ou: reistoricização (v. Glos­sário) do discurso teológico

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Contribuições de Geertz com base em sua compreensão acerca do “local” como espaço hermenêutico de cultura

c) Considerações sobre a possibilidade de uma nova aborda­gem metodológica para o discurso teológico sistemático

Desse modo, partindo da sensação incômoda da inadequação do discurso sistemático da manualística protestante às realidades do “local” , apresentamos uma proposição metodológica (ainda

que embrionária), cujo propósito é reabilitar a multiplicidade discursiva das comunidades locais em suas mediações culturais. Para isso, convidamos o leitor a trilhar o caminho que conduz a uma terra comum, porém desconhecida, que é a própria realida­

de, a própria cultura, a própria fé —;,em suma, aos elementos que

possibilitam a existência da própria teologia.

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1Processo de sublevaçao da metafísica em detrimento da metáfora na comunicação dos temas da fé cristã

Tentar seguir radicalm ente a lógica não-vitim ária e

antimetafísica da revelação cristã significa permanecer pura e

simplesmente sem limites e sem orientações racionais? Talvez

sim, poderíamos afirmar [...] porque confiamos na certeza das

evidências metafísicas mais do que na interpretação que a co­

munidade dos crentes — e cada crente em sua própria liberda­

de — fornece da palavra divina em relação ao mutável porvir

da história? As respostas a esta pergunta podem ser apenas

duas: ou porque acreditamos que Deus é imutável, mas, en­

tão, ele é o Deus da metafísica ao qual seria difícil atribuirmos

a criação do mundo no tempo, e, ainda menos, a criação de

seres livres por amor, ou porque as evidências metafísicas es­

tão em reparo de qualquer eventualidade da liberdade, coloca­

das todas nas mãos da autoridade que é sua depositária para

sempre, e que, aliás, é chamada a impô-las mesmo quando a

livre busca descobre a sua insubsistência. Estas duas respostas

não são alternativas; em vez disso, na história antiga e recente

da Igreja, elas se entrelaçam em um modo difícil de ser des-

trinçado. Por isto, também, a sua prevalência, ainda tão maci­

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ça no nosso presente, não pode ser atribuída de forma simplista

à astúcia perversa dos clérigos. O que não quer dizer, porém,

que não devamos preparar continuamente a sua superação,

ainda que apenas na forma da Verwindung, com um esforço

de crítica radical.

V a t t im o , Depois da cristandade, p. 149-50.

O que propomos no presente capítulo é percorrer o itinerário

da sublevação da metafísica (v. Glossário) no âmbito da teologia cris­tã e na construção de seu discurso, apontando o gradativo abando­

no da metáfora como forma adequada de comunicar os temas da fé.

Para tanto, é indispensável conhecer o desenvolvimento da

metafísica na cultura grega, sobretudo pelo fato de que a teo­logia cristã refez esse mesmo caminho ao aproximar-se do mun­

do greco-romano, na tentativa de tornar compreensível sua

mensagem.O que se pretende com a indicação de um itinerário seme­

lhante na construção desses discursos — filosóficos e teológicos— é apontar as conseqüências imediatas na formulação de uma teoria do conhecimento subjacente a eles. Característica funda­mental dessa teoria do conhecimento é a afirmação da univocidade (v. Glossário) que, além de sustentar a metafísica, assenta os fun­

damentos da lógica e seu princípio da não-contradição.1O itinerário da filosofia grega compartilhado pela teologia cristã

produziu elementos nos âmbitos do conteúdo e do método. De um lado, acham-se os temas incorporados sincreticamente pela

teologia; de outro, as próprias técnicas de pesquisa que possibili­tam determinados temas.2

1 Urbano ZlLLES, Teoria do conhecimento, p. 43-61.2 Nicola A bbagnano, Dicionário de filosofia, p. 668.

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Neste capítulo objetivamos a discussão do método.3 É funda­

mental, portanto, rastrear o itinerário da metafísica, que estruturou

o discurso teológico-cristão — desde seus primeiros passos, em Parmênides, até sua construção última, em Aristóteles; das pri­

meiras aproximações de Clemente de Alexandria até Tomás de Aquino.4 Esse itinerário é, a um só tempo, o da afirmação da

metafísica e o da negação da metáfora; o do abandono da polissemia

pela afirmação da univocidade.

O caminho da univocidade: o surgimento da metafísica

na filosofia grega

A univocidade como forma de linguagem para expressar a rea­

lidade não é o tronco da existência do discurso, mas um ramo que

parte de outro tronco, polissêmico e, portanto, mais voltado à

equivocidade (v. Glossário): o mito.5

Galimberti estabelece a diferença entre o mito e o método cien­

tífico que advém da filosofia, indicando o mito como um cami­

nho com as seguintes peculiaridades:

Por isso é necessário seguir um caminho, mas como não se

indica o lugar a que se deve chegar, não se pode entender o

caminho como simples meio para alcançar a meta que deixa o

3 Não só no primeiro capítulo como em todo o texto, nós nos deteremos, sempre que possível, na influência metodológica da metafísica grega sobre a teologia cristã. Com isso, foca-se o presente trabalho no método e deixa-se a discussão dos conteúdos para etapa posterior ou para outras leituras.

4 Aniceto MOLINARO, Metafísica: curso sistemático, p. 22,3.5 Nesse caso, a realidade não é sustentada metafisicamente, mas metaforica­

mente. Os discursos estruturantes não dependem tanto de sua capacida­de uniformizadora, mas antes de sua capacidade de articular a multiplicidade. A metáfora torna-se aqui a mais relevante forma de produção de discurso.

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caminho para trás. Este é o motivo por que não há um método

para ler os mitos. Deixando para trás ironia, maiêutica, epoché,

dúvida, numa palavra os métodos do Ocidente, o mito inaugu­

ra aquele encontrar-se o caminho, aquele entreter-se no cami­

nho, sem possibilidade de que o resultado possa se oferecer

como meta alcançada.6

O mito, portanto, na perspectiva desse autor, consiste numa

via que afirma a caminhada mais que a meta, a vivência mais que a definição, a existência mais que a essência, a possibilidade desestruturadora da equivocidade mais que as certezas produzi­das pela univocidade. Para ele, o mito é instaurador de realidades,

e não definidor delas.O mito, com efeito, nunca é “este” ou “aquele”, no sentido

em que a lógica conecta um predicado a um sujeito. A expres­

são “é” , atribuída ao mito, tem sempre e apenas um significa­

do transitivo. Só se pòde dizer que o mito é isto ou aquilo no

sentido em que a aventua, a faz acontecer. A impossibilidade

de definir o mito com a lógica da razão testemunha a impos­

sibilidade lingüística intimamente ligada à incapacidade da ra­

zão de falar sem suprimir a fonte mesma da linguagem, pelo

que a relação com a linguagem se torna relação privilegiada,

em que o mito vem ou não à luz como fato lingüístico, en­

quanto ocasiona ou não vocábulos, exprime ou não culturas,

institui ou não linguagens.7

Nesse sentido, é necessário relacionar-se com o mito não como instrumento para desvendar a realidade, mas como palavra que fala — palavra grávida de sentido existencial.

6 Umberto G alimberti, Rastros do sagrado, p. 48-9.7 Idem, ibidem, p. 48.

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É contra essa impossibilidade lógica que o mito se instaura e

que a filosofia se apresenta como discurso acerca da verdade.8 Como afirma Zilles: “Até certo ponto se pode dizer que, na filosofia, se

expressa a autoconsciência de determinada época. Assim, filosofias expressam o ser homem em sua história” .9

A autoconsciência expressa na filosofia grega é resultado de um

processo histórico-político-cultural que se foi firmando sobre a necessidade de emancipar esses elementos do universo mítico, o

qual estruturava uma ordem social que gradativamente foi substi­tuída. Como diz Vernant:

Advento da pólis, nascimento da filosofia: entre as duas

ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para

que o pensamento racional não apareça, em suas origens,

solidário das estruturas sociais e mentais próprias da cidade

grega.10

A filosofia grega como discurso acerca da realidade é fruto de

uma cultura, sem a qual não pode ser eficazmente compreendida. Para além da pesquisa sobre o deslocamento do mito em direção à filosofia (que atende aqui ao propósito de percepção de seus de­

terminantes culturais), importa indicar a complexidade desse processo, que é a assunção das normas produtoras de discurso

a uma esfera atemporal, legitimadora das falas temporais — uma fonte de autoridade para as pretensões do discurso unívoco.

8 Há uma discussão entre os historiadores da filosofia se esta nasceu de uma transformação gradual dos mitos gregos ou de uma ruptura radical (Marilena Chauí, Introdução à história da filosofia, v. 1; Danilo M arcondes, Introdu­ção à história da filosofia).

5 Teoria do conhecimento, p. 45.10 As origens do pensamento grego, p. 141.

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Importa então compreender o surgimento da metafísica no âmbi­

to da filosofia grega como caminho de afirmação da univocidade.

Para legitimar a possibilidade de um discurso unívoco em

contraposição a outro, de caráter equívoco, próprio da poética

mítica, a filosofia passa a afirmar a unidade como essencial a toda

a existência. Essa unidade é evocada como princípio universal ca­

paz de abarcar toda a multiplicidade. Dessa forma, dizer sobre a

unidade é, ao mesmo tempo, dizer sobre a multiplicidade. O

múltiplo é dito não por ele mesmo, mas por uma pretensa essência

que o antecede e, em última instância, institui-o.

Inaugura-se dessa forma, na dimensão da racionalidade, a

dicotomia entre essência e existência. A existência, num primeiro

momento, é destituída de um núcleo em si mesma e, posteriormen­

te, reduzida à sombra de uma instância superior. E é exatamente

a metafísica que propõe essa abordagem, a qual posteriormente

granjearia para si o status de filosofia primeira.

A metafísica não considera o ente enquanto este ou aquele

ente, não o ente na sua diferença, variedade, diversidade, nos

seus setores ou regiões ou categorias determinadas e particula­

res; ela estuda o ente sob este único aspecto ou ângulo, segundo

o qual o ente simplesmente é ou é ente. Sob este aspecto a

metafísica estuda o ente precisamente naquilo que o determina

como ente, naquilo que faz com que o ente seja ente, naquilo

que faz com que o ente se tome ente. Assim fazendo, a metafísica

estuda o ser do ente: o ser é aquilo pelo qual o ente é ente.11

O ser da existência encontra-se fora dela. Nesse sentido, a exis­tência é entificada (v. Glossário, existência entificada), estando assim

11 Aniceto M o lin a ro , Metafísica, p. 7.

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sua compreensão última alienada a üma essência que se identifica com o próprio ser. Dessa forma, “a metafísica é ciência da totali­dade do ente visto a partir do ser” .12 E ainda: “Neste caso sendo a ciência da totalidade do ente, a metafísica é a ciência total: é ciência da totalidade do ser e é a totalidade da ciência”.13

A filosofia grega, distanciando-se da polissemia geradora de plurivocidade (v. Glossário), encontra na metafísica um instrumento adequado, capaz de sustentar um discurso unívoco que, por ser unívoco, pode ser referido como universal. Uma vez potencializado e legitimado numa esfera de autoridade a-histórica, ele é evocado como fundamento último da existência, ou seja, como sua pró­pria essência. Nesse sentido, discurso e realidade são identifica­dos como parte de uma mesma coisa. O discurso é a mesma realidade que anuncia. Por isso, ele acaba identificando-se com a própria essência da existência que inaugura.

Desse modo, a investigação metafísica é conduzida pela

preocupação de descobrir as razões supremas da realidade.

Quem faz metafísica perscruta o mistério do ser dos entes

com a finalidade de descobrir o que lhes dá consistência e os

preenche com a realidade.14

A metafísica está para a filosofia como um método de com­

preensão da verdade. Essa verdade alcançada pela filosofia com base na metafísica é absoluta, porque se identifica com o ser (funda­

mento último da existência). “Ser e verdade são a mesma coisa, e a metafísica, enquanto ciência do ser como tal, é ciência da verda­

12 Aniceto M olinaro, Metafísica, p. 7.13 Idem, ibidem, p. 8.14 Mareio Bolda da Silva, Metafísica e assombro: curso de ontologia, p. 30.

2 7

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de como tal” .15 Para completar seu método de produção de co­

nhecimento de caráter unívoco, a filosofia, além da metafísica, gerou a lógica, que marcaria a impossibilidade da contradição no

âmago de uma proposição que se pretendesse verdadeira.Embora tenha sido essa a caminhada feita pela filosofia em seu

período clássico, não era ela a única possibilidade. A assunção da

metafísica (e também da lógica) como método de produção de conhecimento na filosofia grega deu-se com base na afirmação do pensamento de Parmênides em detrimento do de Heráclito. Im­porta agora evidenciar a compreensão da realidade que subjaz ao pensamento desses filósofos, pois, com base nessa compreensão, torna-se possível entender a construção da teoria do conhecimen­to em cada um deles.

Heráclito e Parmênides como possibilidade na construção de uma teoria do conhecimento

Dentro da filosofia pré-socrática, salienta-se a filosofia de Heráclito e Parmênides. Trata-se de duas construções opostas, situa­das em dois pontos geográficos extremos: Éfeso, na Grécia asiática, e Eléia, no Sul da Itália. Essas duas localidades têm em comum o ponto de partida, herdado dos filósofos jônios: “Existe um princí­pio único que explique o mundo em seus diversos e múltiplos aspectos?” . De Éfeso, Heráclito apregoa que os contrários formam uma unidade; de Eléia, Parmênides afirma que os contrários ja­mais podem coexistir.16

Tanto Heráclito quanto Parmênides buscam afirmar uma teo­ria do conhecimento que possibilite ordenar a vida. A diferença fundamental entre os dois é o ponto de partida para essa tentativa

15 Aniceto M olinaro, Léxico de metafísica, p. 132.16 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 55.

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de ordenação e afirmação da verdade. Heráclito parte da experiên­

cia — da existência por assim dizer — , e Parmênides busca afir­mar a verdade das coisas no plano metafísico, naquele próprio da

essência.

A doutrina de Heráclito pode se resumir nos princípios seguintes: 1) O elemento primordial é o vir-a-ser. Tudo se acha em perpétuo fluxo, a realidade está sujeita a um vir-a-ser con­tínuo. O único princípio estável da realidade é a lei universal do próprio devir [...] 2) O vir-a-ser é antítese, luta, revezar-se de vida e de morte [...] 3) A unidade do real está na lei dialéti­ca, racional, do vir-a-ser; a causa da diferenciação das coisas está no devir.17

O devir, mobilismo como princípio fundador, é o centro do

pensamento de Heráclito. Os fragmentos de sua obra possibili­

tam essa compreensão. O fragmento 8 registra: “Tudo se faz por

contraste, da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”.18

O 49A apresenta: “Descemos e não descemos para dentro dos

mesmos rios; somos e não somos” .19 O 91 expõe: “Não se pode

entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e se junta novamen­

te, aproxima-se e se distancia”.20 E o 53 acrescenta: “A guerra (gr.

polemos) é o pai de todas as coisas” .21

Em Heráclito, deve-se entender o devir desde seu ponto de

partida cognoscitivo. Heráclito parte do dado da experiência: o

fluxo incessante das coisas e do sujeito cognoscente. “Ao fluxo da

17 Umberto Padovani & Luis C astagnola, História da filosofia, p. 101.18 Danilo M arcondes, Textos básicos de filosofia,'p. 15.19 Ibidem, p. 16.20 Ibidem, p. 17.21 Ibidem, p. 16.

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experiência Heráclito opõe a exigência da razão e a necessidade

religiosa da unidade permanente. A fé e a autoconsciência, segun­

do ele, permitem descobrir, no homem e nas coisas, a razão eter­

na, harmonia oculta e identidade dos contrários”.22Partindo da experiência (“Prefiro tudo aquilo que se pode

ver, ouvir, e entender.”23), Heráclito afirma poder encontrar “no homem e nas coisas” a verdade. Essa verdade realiza-se no devir,

ou melhor, faz-se e refaz-se no devir, no espaço próprio e concre­

to da existência. Uma teoria do conhecimento advinda do pen­samento de Heráclito consagra a concretude da vida como espaço único da afirmação e compreensão da verdade, não como coisa acabada, mas como um processo (devir contínuo), por assim

dizer, equívoco.Parmênides, ao contrário de Heráclito, tenta eliminar tudo o

que seja variável e contraditório. Ele contrapõe os conceitos de opinião (doxa) e verdade (gr. alétheiá). Descarta o conhecimento por meio dos sentidos como meras opiniões e opta pela certeza

que a razão produz por meios lógicos e dedutivos.Sua obra principal, o poema Sobre a natureza, expõe, no frag­

mento 8, essa separação ao propor a existência de dois caminhos, o da opinião e o da verdade. “A decisão sobre este ponto recai sobre a seguinte afirmativa: ou é ou não é. Decidida está, portan­to, a necessidade de abandonar o primeiro caminho, impensável e inominável (não é o caminho da verdade); o outro, ao contrário, é

presença e verdade.”24Analisando a contraposição de opinião e verdade no poema de

Parmênides, Chauí comenta:

22 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 56.23 Danilo Marcondes, Textos básicos de filosofia.24 Idem, ibidem, p. 13.

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É sintomático que o poema-fale em duas vias ou dois cami­

nhos que correspondem à palavra inspirada (a verdade como

não-esquecimento do que foi contemplado no invisível) e à

palavra leiga das assembléias (a verdade como decisão e opi­

nião compartilhada nas discussões públicas). Alétheia e doxaP

O simples enunciado de dois caminhos revela uma tendência à afirmação das categorias de verdadeiro e falso. Uma delas será tão-somente o depositório de todos os vícios que não se encon­tram na outra. Na teoria do conhecimento, advinda do pensa­mento de Parmênides, isso está amplamente evidenciado.

E agora vou falar; e tu, escuta as palavras e guarda-as bem pois vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação conce­bíveis. O primeiro diz que o ser é e que o não-ser não é; este é o caminho da convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, é, e que o não-ser é necessário; esta via digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é —r isto é impossível — , nem expressá-lo em palavras [...] afasta, portanto, o teu pensamento desta via de investigação, e nem te deixes arrastar a ela pela múltipla experiência do hábito.26

A distinção que Parmênides faz entre verdade e opinião, ser e não-ser, imobilismo e mobilismo aponta para a necessidade de afir­mação de um único aspecto, um único caminho como correspon­dente à realidade. Algumas questões, no entanto, impõem-se a esse pensamento. Como afirmar o uno em meio ao múltiplo? Como falar de imobilismo num ambiente marcado pela mobilidade? Do ponto de vista do método de produção de conhecimento, quais instrumentos podem ser utilizados nesse intento?

25 Marilena C hauí, Introdução à história da filosofia, p. 89.26 Danilo M arcondes, Textos básicos de filosofia.

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O pensamento de Parmênides inaugura na filosofia grega um método de conhecimento da verdade. Se esta não pode ser verificada na multiplicidade das interpretações nem na mobilida­de (aparências) das coisas sensíveis, é necessário buscá-la em ins­tâncias outras, com instrumentos capazes de aferi-la em meio às opiniões. Nesse sentido, Parmênides é considerado o primeiro a formular os princípios da lógica e da metafísica.27

Tanto a lógica (com seus princípios de identidade e não-con- tradição) quanto a metafísica (em sua identificação da verdade como não-esquecimento do contemplado no invisível) permitem

que Parmênides afirme a univocidade da verdade, a qual se funda

não no interior da existência, mas em outra dimensão, própria da

essência. “Para encontrar a verdade, o filósofo deve fixar-se no ser

além de toda multiplicidade.”28

O caminho da univocidade encontra na inauguração da

metafísica as condições necessárias à sua afirmação. A metafísica

passa a ser um instrumento de conservação da verdade única que

se estabelece na negação de toda multiplicidade. Dessa forma, o

pensamento de Parmênides apresenta-se fundador. Molinaro afir­ma a respeito de Parmênides:

Relativamente à multiplicidade, todo outro diferente do ser

deve ser negado: a planta é outro diferente do ser, e assim por

diante. Toda diferença, diversidade, variedade, enquanto ou­

tro diferente do ser, decai na negação, porque decai na anula­

ção do ser, ou seja, no não-ser: afirmar a multiplicidade das

coisas eqüivale a afirmar que o não-ser é. Se, portanto, o não-

ser não pode ser e se a multiplicidade é necessariamente, pelo

27 Marilena C hauí, Introdução à história da filosofia, p. 90-5.28 Aniceto M olinaro , Metafísica: curso sistemático, p. 23.

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menos no plano do rigor lógico e lingüístico, não ser é forçoso negar a multiplicidade: ela não passa de opinião, ilusão.29

A univocidade lógico-metafísica de Parmênides, para não dizer o ser (essência), precisa negar a existência. “Multiplicidade, mu­dança, nascimento e perecimento são aparências, ilusões dos sen­tidos.”30

Tanto Heráclito quanto Parmênides propõem uma teoria do conhecimento. Ambos se apresentam com possibilidades à filoso­fia. O pensamento de Parmênides, porém, sobretudo a lógica e a metafísica, será aquele que a influenciará em seu período clássico.

Afirmação de uma possibilidade: a metafísica em Platão e Aristóteles

Interessa neste momento não uma exposição exaustiva das obras de Platão e Aristóteles, mas a afirmação do pensamento de Parmênides, principalmente a metafísica, no interior da filosofia grega clássica em seus dois principais representantes.31 Além de trabalhar a continuidade de Parmênides, importa também evi­denciar a teoria do conhecimento (método) formulada por esses pensadores.

Platão (428-347 a.C.), em sua teoria do conhecimento, apro­xima num primeiro momento o pensamento de Heráclito ao de Parmênides. Na metafísica platônica, há lugar para o ser estático

29 Idem, ibidem, p. 23.30 Marilena C hauÍ, Convite à filosofia, p. 212.31 Dada a extensão dos textos desses dois autores e de um interesse específico

deste trabalho, as citações deste tópico serão, quase sempre, de comentaris­tas, e não dos próprios autores, para evitar transcrições muito longas, que desvirtuariam nosso foco, tornando este texto, além de enfadonho, extenso demais. Na Bibliografia, o leitor encontrará todas as obras pesquisadas.

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de Parmênides e para o mundo em devir de Heráclito.32 Isso,

contudo, não significa a assunção da existência ao status de digni­

dade, mas a organização da existência e da essência.

Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refe­

re ao mundo material e sensível, mundo das imagens e das

opiniões. A matéria, diz Platão, é por essência e natureza algo

imperfeito, que não consegue manter a identidade das coisas

[...] o mundo material ou de nossa experiência sensível é mutável

[...] e, por isso, dele só nos chegam as aparências das coisas e

sobre ele só podemos ter opiniões contrárias e contraditórias.

Por esse motivo, diz Platão, Parmênides está certo ao exigir que

a filosofia deva abandonar esse mundo sensível e ocupar-se com

o mundo verdadeiro, invisível aos sentidos e visível apenas ao

puro pensamento. O verdadeiro é o Ser, uno, imutável, idêntico

a si mesmo, eterno, imperecível, puramente inteligível.33

Platão toma o pensamento de Heráclito e Parmênides e arru-

ma-os num edifício de dois andares. Atentando para o erro de Parmênides em desconsiderar o devir, identificando-o com o não- ser,34 Platão afirma que o devir é legítimo de ser considerado, porém próprio da dimensão da existência em que as coisas são imperfeitas. As perfeições ou essências, que Parmênides identifica com o ser, estão em outra dimensão da realidade, em outro mun­

do, numa dimensão superior.Essa proposição de dois mundos que Platão apresenta em seu

diálogo, A República, revela sua compreensão acerca da apreensão

da verdade e como e onde ela é possível.

32 Batista M o n d in , Curso de filosofia., p. 63, v. 1.33 Marilena C hauí, Convite à filosofia.34 Gabriel Garcia M orente, Fundamentos da filosofia, p. 220.

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O mundo das idéias é o mundo do ser, o objeto do conhe­cimento verdadeiro, universal e necessário, isto é, a sede da verdade [...] nosso mundo sublunar é uma simples sombra do mundo das idéias, ou seja, não tem ser, é mera aparência, ou seja, objeto de um conhecimento que não passa de doxa (opi­nião). Com a teoria das idéias, Platão sustenta, pois, que o sensível só se explica mediante o recurso ao supra-sensível, o relativo mediante ao absoluto.35

A verdade só é possível com base na essência, nunca na existên­cia. A essência é forma que comunica sentido à existência. Mas como é possível entrar em contato com o mundo das idéias para tomar delas a compreensão da verdade?

Esse parece ser um problema para a demonstração do mundo das idéias (mundo inteligível) e para uma relação epistemológica que se possa ter com ele. Como o homem que se encontra preso no mundo das sombras (mundo sensível) pode falar da existência de uma dimensão que ele desconhece? Platão trabalha essa ques­tão principalmente em dois de seus diálogos: República (com o mito da caverna) e Mênon, nos quais desenvolve o argumento da reminiscência ou anamnese.36 “Temos Idéias de verdade, de bon­dade, de igualdade, a Idéia universal de homem, etc. Ora, estas Idéias nós não tivemos da experiência; logo, o conhecimento atual é recordação de uma intuição que se deu em uma outra vida.”37

35 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 71.36 Reminiscência (ou anamnese) é o mito platônico que diz que a alma é imortal

e, portanto, nasce e renasce muitas vezes, de tal modo que já viu tudo neste mundo e no outro, pelo que pode lembrar, em certas ocasiões, o que já sabia. “E como toda a natureza é congênese e a alma aprendeu tudo, nada impede que quem se recorde de uma só coisa (que é aquilo que se chama de aprender) encontre em si todo o resto, se tiver coragem e não se cansar na busca, já que buscar e aprender não são mais que reminiscência” (Mênon, p. 80-1).

37 Batista M ondim, Curso de filosofia, p. 60.

35

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O necessário é, portanto, aprender a recordar. Há no argu­

mento de Platão uma espécie de inatismo da verdade. A alma

preexistia no mundo das idéias, tendo-as contemplado. Por uma

sentença condenatória, foi unida ao corpo no mundo das som­

bras. Como conseqüência dessa queda, a alma já não mais recorda

as idéias que contemplou, porém ainda as traz em si. O argumen­

to da reminiscência garante a possibilidade do conhecimento da

verdade por imagens ou simulacros.

Se aprender é recordar, a ocasião, para isso, é o encontro

com as coisas deste mundo. As quais são cópias das idéias. No

sistema de Platão, a doutrina da reminiscência exerce três fun­

ções: a) fornece uma prova dá pré-existência, da espiritualidade

e da imortalidade da alma; b) estabelece uma ponte entre a

vida antecedente e a vida presente; c) dá valor ao conhecimen­

to sensitivo, reconhecendo-lhe o mérito de despertar recorda­

ções das idéias.38

Novamente, é possível perceber a aproximação que Platão pro­move entre o pensamento de Heráclito e o de Parmênides. Os

dois sistemas são valorizados hierarquicamente, produzindo uma

teoria do conhecimento que parte das imagens para as idéias, da

existência para as essências, das opiniões e crenças para a ciência.

Marilena Chauí, em Introdução à história da filosofia, reproduz

sistematicamente a teoria do conhecimento de Platão, dividindo-a

em duas partes: os objetos do conhecimento e os modos de co­

nhecimento aplicáveis aos objetos.39

38 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 74.39 P. 249-257, v. 1.

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Os objetivos do conhecimento

M UNDO INTELIGÍVEL

Bidos (do gr., formas, idéias)

Noésis (do gr., intuição intelectual): episteme

Ta mathéma (do gr., objetos matemáticos)

Diánoia (do gr., raciocínio dedutivo)

Os modos do conhecimento

M UNDO SENSÍVEL

Zóa (do gr., coisas vivas e coisas visíveis)

Pistis (do gr., crença) e Doxá (do lat., ópinião)

Eikones (do gr., imagens)

Eikasia (do gr., “imaginação”, simulacros)

Com base nessa sistematização, é possível compreender como o conhecimento da verdade se dá na filosofia platônica. De baixo para cima, os graus de conhecimento vão se tornando mais com­

plexos. Ao mundo sensível — das imagens, coisas vivas e visíveis— eqüivalem os simulacros, as crenças e opiniões acerca da verda­

de. Ao mundo inteligível aplica-se o raciocínio dedutivo e a intui­ção intelectual como forma de apreensão da verdade em sua essência. O mundo sensível é tão-somente um simulacro do inte­ligível. Aquele só é legítimo como ponte para alcançar este.

Dessa forma, Platão estabelece um paradigma na filosofia gre­ga no que diz respeito à teoria do conhecimento.40 Nesse

paradigma, o mundo inteligível é a forma de toda existência no

mundo sensível. A verdade só pode ser dita por meio das essên­

cias. A multiplicidade das coisas visíveis ganham unidade em sua

essência. Assim, o múltiplo só pode ser dito com base em sua

unidade, que se encontra fora dele. Todo conhecimento com esse

40 Paradigma: “modelo” ou “exemplo”. Platão emprega essa palavra no primeiro sentido (Timeu, 29b, 48e) ao considerar paradigma o mundo dos seres eter­nos, do qual o mundo sensível é imagem (Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p. 752).

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paradigma privilegia as essências de tal forma que as identifica

com o real. O real não é o visível, mas o invisível. Não é o sensível,

mas o inteligível. O realismo platônico é, portanto, estritamente

metafísico.

Em Aristóteles (384-322 a.C), a metafísica ganha sistematiza-

ção em seu nível mais complexo. Envolvido na busca do verdadei­

ro, ele afirma ser a metafísica a ciência capaz de dizer o ser como

ser. Na opinião dele, a metafísica é:

Uma ciência que investiga o ser como ser e os atributos que lhe são próprios em virtude de sua natureza. Ora, esta ciência é diversa de todas as chamadas ciências particulares, pois nenhuma delas trata universalmente do ser como ser.

Dividem-no, tomam uma parte e dessa estudam os atribu­tos: é o que fazem, por exemplo, as ciências matemáticas. Mas, como estamos procurando os primeiros princípios e as causas supremas, evidentemente deve haver algo a que eles perten­çam como atributos essenciais. Se, pois, andavam em busca desses mesmos princípios aqueles filósofos que pesquisaram os elementos das coisas existentes, é necessário que esses se­jam elementos essenciais e não acidentais do ser. Portanto, é do ser enquanto ser que também nós teremos de descobrir as primeiras causas.41

Essa ciência (episteme) à qual aspirava Aristóteles em toda a sua obra expressa um “saber fundado” ,42 um saber ciente de que ne­cessariamente é sempre assim, já que conhece a razão daquilo que é conhecido, seu fundamento último, sua causa.

41 Umberto Padovani & Luis C astagnola, História da filosofia, p. 125.42 Mareio Bolda da S ilva, Metafísica e assombro, p. 74.

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O próprio lugar da verdade é 0 ser assim como é. Nesse sen­

tido, a metafísica, como fdosofia primeira,43 será impreterivel-

mente uma filosofia do ser. Ela responde à necessidade de

conhecer o verdadeiro, à radical necessidade de averiguar o por­

quê último.

O pensamento de Aristóteles, no que diz respeito à metafísica,

não consiste numa ruptura com seus antecessores pré-socráticos,

sobretudo Heráclito e Parmênides, muito menos com Platão. Há

uma complexidade crescente da metafísica desde Parmênides até

Aristóteles. Assim como Platão, que havia aproximado Heráclito e

Parmênides e sistematizado a teoria desses filósofos em sua com­

preensão da realidade (mundos sensível e inteligível), Aristóteles

também o faz, porém observa que Platão, com seus mundos, ins­

taurava um dualismo entre essência e existência, que destinava

toda a compreensão da verdade a uma instância separada da

intelecção humana.

É nesse sentido que o pensamento aristotélico atinge seu maior

grau de complexidade: todo o edifício metafísico que vinha sendo

construído de Parmênides a Platão, no sentido da afirmação da

essência como elemento fundador de toda a existência, agora é

43 “Poder-se-ia perguntar se a Filosofia Primeira é universal ou se trata de um gênero, isto é, de uma espécie de ser, pois nem mesmo as ciências matemá­ticas são todas iguais a esse respeito — tanto a Geometria [quanto a] Astro­nomia estudam uma espécie particular de ser, enquanto a Matemática universal se aplica igualmente a todos. A isto respondemos que, se não existe substância além das que são formadas pela Natureza, a Física será a ciência primeira; mas, se existe uma substância imóvel, a ciência que a estuda deve ser anterior, e essa será a Filosofia Primeira, universal no sentido de ser a primeira. E a ela competirá a consideração de ser enquanto ser — tanto da sua essência como dos atributos que lhe pertencem enquanto ser” {Metafísica VI, 1026a, p. 25-30).

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introjetado no próprio ser humano. Essência e existência não ha­bitam dimensões distintas nem longínquas: elas coexistem num

mesmo “espaço” . O dualismo externo de Platão é internalizado

com Aristóteles.É na coisa44 que estão, na compreensão de Aristóteles, a existên­

cia e a essência, que ele identifica como matéria e forma. A “matéria é o elemento de que as coisas da natureza, os animais, os homens,

os artefatos são feitos” .45 A matéria tem como principal característi­ca o “possuir virtualidades [...] possibilidades de transformação, isto é, de mudança”.46 Já a forma “é o que se individualiza e determina uma matéria, fazendo existir as coisas ou os seres particulares” .47 A

particularidade da forma “é ser aquilo que uma essência é”.48Partindo dessa compreensão, o dualismo externo platônico só

se diferencia do dualismo interno aristotélico no tocante ao “lu­gar” para onde se dirige a pergunta pelo ser — se para fora ou para dentro das coisas. Permanece, contudo, o dualismo, assim como a hierarquização da essência (forma e existência)/matéria, na medida em que forma é “essência necessária ou substância das coisas que têm matéria. Nesse sentido, que está presente em Aristóteles, forma não só se opõe à matéria, mas a pressupõe”.49

À matéria e forma correspondem, na teoria do conhecimento de Aristóteles, os conceitos de particular e universal (v. Glossário).

O particular/matéria é próprio da dimensão das sensações e opi­niões, enquanto ao universal/forma corresponde a razão científica.

44 Nicola A bbagnano , Dicionário de filosofia, p.149-151. “Coisa” é o objeto natural, também denominado “corpo”.

45 Marilena C hauí, Convite à filosofia, p. 220.46 Idem, ibidem.47 Idem, ibidem.48 Idem, ibidem.49 Nicola A bbagnano , op. cit., p. 468.

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O conhecimento científico, a um só tempo, opõe-se às sensações, valorizando a razão. Matéria, portanto, é espaço da opinião (doxa), enquanto forma é digna de ciência (episteme).

Assim como Parmênides valoriza o imobilismo em detrimen­

to do mobilismo, que Platão hierarquiza, elevando ao absoluto a essência sobre a existência, Aristóteles elege como necessário o universal em relação ao particular.

Por universal, Aristóteles entende o que pertence a todos e a cada um por si e porquanto tal. Portanto, o universal não é só o que é comum a todos, mas o que pertence a todos e a cada um por essência. Por isso, quando Aristóteles diz: “Não há ciência senão do necessário”, pode dizer igualmente: “Não há ciência senão do universal”.50

O ser que é objeto da filosofia primeira de Aristóteles (aquele que vem antes da física) é a forma/ universal que dá sentido à maté­ria/particular. Toda ciência que queira conhecer a verdade deverá

dirigir-se ao ser/forma/universal e não ao ente/matéria/particular. Voltar-se ao universal e não ao particular permite, no que tange à produção de conhecimento, dizer o discurso unívoco sobre a multiplicidade. Todo múltiplo, a particularidade, encontra sua unidade no universal, assim como todo ente encontra sua essência no ser. Qualquer discurso que trilhe a senda da equivocidade, vol­tando-se ao particular, não é ciência, é apenas opinião.

Em Aristóteles, o caminho da univocidade sustentado pela elaboração da metafísica, iniciado em Parmênides, encontra-se em seu momento de maior sofisticação. A filosofia grega clássica encon­tra-se sistematizada. Embora haja uma tentativa de superação em

50 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 84.

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cada uma dessas escolas, é possível afirmar um princípio comum a elas: a separação de essência e existência e a identificação da essência como lugar próprio do ser. O que se diz de verdadeiro é

dito com base no ser.Sobre essa compreensão funda-se o conceito de ciência, capaz

de conferir confiabilidade a um discurso. Essa ciência é a metafísica,

então apresentada como paradigma na busca da verdade. Poste­

riormente, esse paradigma seria expandido para além das linhas

limítrofes da Grécia e atingiria outras terras, até mesmo aquelas

que viam brotar a teologia cristã.51

Da metáfora à metafísica: o caminho da afirmação da univocidade na teologia cristã

Após ter evidenciado o caminho da metafísica na filosofia gre­ga clássica e sua contribuição para a afirmação de uma teoria do conhecimento sustentadora de univocidade, só alcançável na di­mensão da essência e nunca na multiplicidade da existência con­creta, interessa neste momento a tarefa de evidenciar a similaridade do caminho trilhado pela teologia cristã comparado ao grego.

A filosofia grega clássica expandida no helenismo, somada sincreticamente a outras práticas filosóficas e religiosas do mun­do romano, constituiu o suporte cultural do discurso teológico- cristão. Não há determinismo cultural nessa teologia, e sim uma forte influência, sobretudo na dimensão da teoria do conheci­mento, que só é possível com a linguagem. “A linguagem teológica

do teísmo cristão nasce do encontro da mensagem profético-

51 O paradigma metafísico, próprio da filosofia grega, seria expandido no período da filosofia chamado helenístico ou greco-romano, que durou do final do século III a.C. até o século IV d.C. Nesse longo período, a teologia dos padres da Igreja seria amplamente influenciada.

4 2

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evangélica da divina monarquia cõm o mundo da cultura grega,

especialmente com a filosofia do platonismo”.52O encontro da mensagem evangélica com a cultura grega pre­

cisa ser compreendido, diferentemente das religiões de iniciação com base no caráter missionário do cristianismo e de sua tendên­

cia apologética.

Ao encontrar o mundo grego, o cristianismo tinha diante de si a tarefa de demonstrar que o Deus revelado da aliança era também o Deus desconhecido e misterioso, objeto trans­cendente do sentimento religioso universal, coincidindo inclu­sive com o princípio último da realidade (archè), buscado na ontologia grega. Assim, os apologetas do cristianismo pensa­ram encontrar na filosofia grega da religião, particularmente no platonismo, estoicismo e neoplatonismo, uma linguagem adequada para descrever o caráter extático da experiência reli­giosa.53

A teologia cristã encontra na filosofia grega o instrumental teórico capaz de lhe permitir comunicar sua experiência de fé de forma cognoscível. Para além dos conteúdos intercambiados nessa aproximação,54 é fundamental perceber a apropriação das estru­

52 Félix Alexandre Pastor, A lógica do inefável, p. 11-2. Também Tillich discute a influência da filosofia grega na teologia cristã ao longo de todo o primeiro capítulo de sua História do pensamento cristão. Küng, em A Igreja católica, afirma: “Os apologistas, que escreviam todos em grego, foram as primeiras figuras literárias a apresentar o cristianismo como crível a todo grupo interessado empregando termos, visões e métodos helenísticos que podiam ser entendidos por todos, p. 52. Libânio, em Introdução à teologia, volta a esse tema repetidas vezes — por exemplo, quando discute a teologia patrística e suas características, p. 115-26.

53 Op. cit., p. 13.54 V. nota 3.

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turas interiores do pensamento grego, identificadas aqui, princi­palmente, como metafísica e lógica. A primeira, em sua ênfase na afirmação do ser como essência dos entes e na negação do múlti­plo e conseqüente afirmação do uno, identifica a verdade em sua única possibilidade, em sua condição unívoca. A segunda, com sua lei de não-contradição, oferece os elementos de coerção/exclu- são, capazes de manter a univocidade dos discursos.

Falar sobre a similaridade das trajetórias da filosofia grega e da teologia cristã é, portanto, propor que ambas tenham percorrido o caminho da afirmação da metafísica como método adequado na construção da univocidade da verdade. Essa afirmação cons- trói-se sobre os escombros de outra compreensão acerca da reali­dade — uma compreensão mais consciente de sua equivocidade,55 manifesta sobretudo no amplo uso da metáfora como forma aproxi- madora do real.

Existe aqui uma contraposição entre metáfora e metafísica que precisa ser explicada. No ambiente da filosofia grega, ambas estão intimamente relacionadas.56 O uso da metáfora constitui o dis­curso alegórico, próprio do mundo sensível. Ele é necessário diante da impossibilidade de os não-filósofos compreenderem as idéias puras.57 A metáfora é válida à medida que não se identifica com as idéias, mas é sempre um instrumento necessário em relação à incapacidade da existência concreta e múltipla, que não pode co­nhecer a verdade, mas apenas opiniões e crenças.

Ela é, portanto, um instrumento pedagógico necessário, mas não ideal. A metafísica é que pode apresentar a realidade. Ela

55 V. nota 5.56 Até Platão, a metáfora é trabalhada ao lado da metafísica. Ela tem o papel de

comunicar significados mais profundos, próprios do mundo das Idéias. Já Aristóteles destina o uso da metáfora à dimensão da poética.

57 Francisco Garcia B a z á n , Aspectos incomuns do sagrado, p. 33-6.

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pode falar do ser, das idéias perfeitas — em suma, da verdade.

Isso se dá porque o ser, a perfeição, a verdade estão fora da existên­

cia concreta. Nesse sentido, a metáfora oferece sempre um simu­

lacro, enquanto a metafísica desvela a verdade que não está no

múltiplo apreendido em instância metafórica, mas no um encer­rado na essência.

Há na qualificação da metáfora uma desqualificação da

multiplicidade. Na filosofia, seu uso não é mais aquele da dimen­

são mítico-religiosa, mas apenas um passo para seu abandono, o que em Aristóteles se evidenciará. Na trajetória cristã, isso pode ser verificado num processo muito semelhante, já que, ao tomar

dessa filosofia os elementos para a comunicação de sua experiên­cia, transformando-a em discurso sistemático sobre a realidade, a teologia percorreu o mesmo caminho. Abandonando a equi­vocidade da metáfora (embora a mantivesse como elemento pos­sível ao seu discurso), aproximou-se gradativamente da univocidade da metafísica.

Falar sobre essa trajetória da teologia não consiste aqui em

outra coisa senão na tentativa de compreender a teoria do co­

nhecimento construída pelo discurso teológico-cristão em sua

relação com a filosofia grega. Em suma, como a compreensão

unívoca acerca da verdade, tão acentuada na teologia dogmática,

pôde surgir numa religião marcada tão fortemente pelo uso da

linguagem metafórica.

A metáfora no horizonte das vivências e da comunicação da fé

“A metáfora é, a serviço da função poética, a estratégia de dis­

curso pela qual a linguagem se despoja de sua função de descrição

direta para aceder ao nível mítico no qual sua função é libera­

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da.”58 Como diz Ricoeur, a metáfora é uma “estratégia de discur­so”, na qual a linguagem está despojada de sua condição descriti­va e conceituai. Por isso ela é tão cara à experiência religiosa, que se articula sobre a subjetividade. A experiência religiosa é indizí- vel do ponto de vista conceituai e, mesmo assim, é chamada a comunicar-se. Como, então, dizer o indizível? Certamente, no âmbito conceituai da linguagem isso não pode ser feito. Nesse sentido, a metáfora apresenta-se como instrumento fenomeno- lógico para a compreensão das experiências religiosas, com suas vivências e sua comunicação.

A pertinência da metáfora no discurso teológico (sistematiza- ção de experiências religiosas) acha-se nas palavras de Boff: “As metáforas não falam de uma equivalência formal e essencial, mas sim de uma equivalência funcional e dinâmica”.59 Sua relevância está na capacidade de produzir significado no interior de grupos que partilham os mesmos signos e comungam de um mesmo universo de significação. Dentro desse universo, a metáfora per­mite a elaboração de discursos que, mesmo partilhados, já que os signos são comuns, podem ser reelaborados à medida que os sig­nificados se tornam literais, perdendo o sentido existencial e pas­sando a ser compreensões padronizadas, conceituais. Depois que as expressões são dicionarizadas, elas perdem alcance simbólico, e nega-se a elas a polissemia.

O uso metafórico da linguagem contrasta com seu uso literal, que é simplesmente o uso-padrão em vigor dentro de uma comu­nidade lingüística e emprega palavras para transmitir sentidos convencionados, adequados ao registro em dicionário. Assim, os sentidos literais de uma palavra são, em termos aproximados, seus

58 R icoeur , Metáfora viva, p. 376.59 Teoria do método teológico, p. 332.

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sentidos lexicais — e “falar literalmente” eqüivale a pretender que

nossos enunciados sejam compreendidos em seu sentido-padrão ou dicionarizado. Em contraste com isso, a metáfora é uma forma de discurso não literal, isto é, figurativa. O discurso metafórico,

portanto, é uma forma de linguagem em que o sentido emprega­do pelo falante difere daquele constante do dicionário.60

A contraposição entre linguagem literal e metafórica e seu uso no discurso teológico têm como pano de fundo uma questão epistemológica. Por um lado, a linguagem literal pretende um

discurso unívoco fundado numa perspectiva essencialista das coi­sas. Por outro, a linguagem metafórica permite uma equivocidade no discurso teológico, que se fundamenta na existência múltipla das coisas. Em suma, para ser relevante e verdadeiro, o discurso

teológico deve fundamentar-se na essência ou na existência? Se na essência, a linguagem deve ser literal, capaz de identificar o dis­curso com a realidade, produzindo a univocidade da verdade. Se na existência, a linguagem será metafórica, compreendendo a teo­logia como ciência hermenêutica aberta à equivocidade e, por assim dizer, ao caráter provisório de seu discurso.

Ao comentar a condição hermenêutica da teologia e de sua relação com a semiótica (v. Glossário), Croatto aponta para a im­portância da polissemia, que aqui pode ser “metaforicamente” identificada com a equivocidade.

Na semiótica, diz-se que o sentido não é algo “objetivo” e

palpável que está no texto em estado puro, de modo que o

exegeta pudesse “encontrá-lo” graças a sua habilidade técnica e

seus recursos filológicos e históricos. Assim, quando há mui­

tas interpretações, todas menos uma estariam erradas. A deci­

60 John HlCK, A metáfora do Deus encarnado, p. 136-7.

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são sobre qual é a verdadeira viria de uma autoridade extra- textual [...] E o que é pior: a mensagem resulta atrofiada e não se pode depreender em novas leituras criativas. Talvez até dei­xe de ser mensagem.61

Embora Croatto esteja tratando do assunto no âmbito da exegese, sua reflexão é bastante apropriada a esta discussão. Quando ele afirma que, ao julgar haver um só sentido verdadeiro, a mensa­gem fica atrofiada, ou seja, destituída da possibilidade de novas leituras, coincide com o que se afirma aqui acerca da capacidade de literalizaçãó (v. Glossário) da metáfora, que apresenta o discur­so teológico unívoco. Seja na exegese, seja na dogmática, o encer­ramento da polissemia pretendido pela univocidade serve ao empobrecimento de sentido e à irrelevância da teologia.

Embora o argumento para a fixação de discursos histórico- culturais seja a necessidade da preservação da verdade doutrinária contra as heresias, Hick declara que, “na verdade, a heresia básica sempre foi a de tratar a metáfora religiosa como metafísica lite­ral” .62 Aqui é possível identificar um problema fundamental. A metáfora religiosa, isto é, o discurso teológico resultante das expe­riências religiosas das primeiras gerações cristãs, foi transmutada em metafísica literal no processo de sistematização e de proselitismo resultante da aproximação da cultura helênica com sua filosofia.

A univocização do discurso teológico tem sua gênese: não é de forma alguma ontológica. As primeiras gerações cristãs não a conheciam, como fica evidente na linguagem utilizada na época. Desde o uso da metáfora poética nas parábolas neotestamentárias, da linguagem equívoca das cartas paulinas, da escatologia e do gênero apocalíptico até os escritos pós-apostólicos, amplamente

61 Hermenêutica bíblica, p. 23.62 A metáfora do Deus encarnado, p. 145.

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voltados para a dinâmica da comunidade e para a função litúrgica nela presente, o que se constata é a polissemia teológica, não como

fragmentação destrutiva, mas como instrumento estruturador das múltiplas experiências de fé com o Cristo e a necessária comuni­cação delas.63

Faz-se necessário neste momento precisar a gênese da univo-

cização da polissemia presente nos discursos das primeiras gera­ções cristãs.

Aproximação do pensamento cristão à filosofia grega

O processo de univocização do discurso teológico-cristão con­funde-se com sua aproximação ao pensamento filosófico grego pre­sente no helenismo, a qual é fortemente marcada pela aceitação da filosofia platônica apresentada no médio-platonismo.64 O pen­samento platônico, sobretudo sua metafísica, serviu ao discurso

teológico-cristão em seu estágio até então mais elaborado.65

63 Esse tema pode ser aprofundado no estudo da literatura patrística feita por Hubertus R. Drobner em seu Manual de patrologia. Especificamente sobre o tema do uso das parábolas no NT, o texto de As parábolas de Jesus, de Joaquim Jeremias, trata com profundidade a importância da metáfora. No que diz res­peito ao uso da metáfora na elaboração do discurso teológico, em A metáfora do Deus encarnado, de John Hick, discute-se no âmbito do dogma a necessidade de rever o papel fundador da metáfora, ofuscado pela univocidade metafísica.

64 “Este termo designa a corrente de pensamento platônico dominante nos dois séculos do tempo imperial, destinada a desaguar no século III, no neoplatonismo [...] É justamente esse tipo de filosofia que exerce uma influência determinante nos apologetas gregos do século II d.C. (Atenágoras, Justino Mártir, Clemente de Alexandria e Orígenes). As apreciações sobre as várias escolas filosóficas, a admiração por Platão, os elementos característicos da doutrina da transcendên­cia de Deus, a doutrina das idéias como pensamentos de Deus contidos em sua inteligência e em seu logos, a concepção do nascimento do universo pela impo­sição das formas e da ordem sobre a matéria não gerada...” (Médio-platonismo, Dicionário patristico e de antiguidades cristãs, p. 920,1).

65 Paul T illich, História do pensamento cristão, p. 44.

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A Igreja, que recebera o mandato de tornar presente a mensa­

gem do evangelho até as extremidades da Terra, para poder esten­

der-se, tinha de traduzir seu conteúdo religioso em termos racionais,

para que fosse acessível ao pensamento e à tradição gregos. No

segundo século, iniciou-se a helenização do ensinamento cristão e

da linguagem teológica, nascida desse encontro. Preparou-se des­

se modo a expansão do cristianismo.66

As condições histórico-culturais daquele momento são funda­

mentais para a compreensão desse movimento teológico, chama­

do “apologética”.67 O encontro do cristianismo, com sua literatura

amplamente marcada por traços metafórico-poéticos e destinada

à liturgia e à catequese, com a cultura grega presente no helenismo

e no Império Romano, bastante contrária às narrativas mitológi­

cas já contrapostas à teoria da transcendentalidade de Deus, pro­

duziria uma adaptação um tanto sincrética daquela a esta, gerando

um discurso teológico bastante peculiar.

O cristianismo que, no dizer de Tillich, “teve que se expressar

em forma de respostas a certas acusações particulares [...] que

ameaçava o império romano e que era, do ponto de vista filosófi­

co, pura tolice, não mais que superstição misturada a fragmentos

66 Fernando Antônio F igu eired o , Teologia da igreja primitiva:o homem na visão histórica do mártir Justino, p. 17-20.

67 Tillich, na introdução à sua Teologia sistemática, discute a compreensão mais adequada que se deve ter da apologética. Ele diz que a teologia apologética, “que teve posição tão elevada na igreja primitiva, caiu em descrédito por causa dos métodos empregados nas tentativas abortivas para defender o cristianismo contra ataques do humanismo moderno, do naturalismo e do historicismo. Tentou descobrir lacunas em nosso conhecimento histórico e científico para encontrar um lugar para Deus e suas ações dentro de um mundo de outra forma completamente cal­culável e imanente [...] Esse procedimento indigno desacreditou tudo que é chamado apologética” (p. 45).

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filosóficos”,68 precisou dialogar, explicando sua experiência de fé

para ser entendido e aceito naquela cultura.Aquilo que na literatura teológica pós-apostólica era dito pela

perspectiva metafórica, ou seja, que transbordava a capacidade delimitadora da palavra, passaria a ser submetido gradativamente à necessidade de definição, tendo a palavra, como recipiente dos sentidos, de abrigar todos eles. O dizer metafórico aberto à equivocidade seria substituído pelo dizer metafísico gerador de conceitos unívocos. Nesse sentido, há uma subtração dos elemen­tos propriamente religiosos e um impedimento às interpretações espontâneas e populares.

Para evidenciar essas aproximações e a conseqüente sublevação do pensamento platônico,69 e com ele sua metafísica, impõe-se a necessidade de verificar seus principais interlocutores no interior do cristianismo.70

O primeiro deles é, sem dúvida, Justino Mártir. Nascido de pais pagãos, estudou filosofia antes de se converter ao cristianis­mo. Em suas obras, transparece o esforço de adaptação de um ho­mem formado segundo a filosofia grega e depois convertido para apresentar a fé aos seus contemporâneos. Por causa de sua teoria do logos espermáticos,71 foi-lhe possível afirmar que “não só não existe

68 História do pensamento cristão, p. 45.69 A influência platônica estendeu-se até a plena recepção teológica do

aristotelismo filosófico pela escola dominicana, em que Tomás de Aquino se destaca como principal sistematizador.

70 O pensamento filosófico não foi acolhido pela unanimidade dos teólogos, tampouco aceito de forma passiva. Homens como Taciano e principalmen­te Tertuliano opuseram-se a tal aproximação. Famosa é a sentença deste último: “Que tem [que ver] Atenas e Jerusalém? Que tem [que ver] a acade­mia e a igreja?”.

71 Justino afirma que “em todos os homens está o esperma tou logou. Este não é só a capacidade ou aptidão para apreender a verdade, mas é a própria verdade ínsita no homem [...] O ponto alto destas manifestações são os

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oposição entre filosofia e cristianismo, mas pode-se afirmar até

uma substancial identidade entre a primeira e a segunda”.72

Justino busca na filosofia o método capaz de lhe permitir o

desenvolvimento da tarefa de defender o cristianismo ante o “de­

safio” — externo e interno — que este experimentava. Esse desafio,

do ponto de vista interno, consistia em combater as heresias73 e, do

ponto de vista externo, superar a crítica que o considerava “pura

tolice [...] superstição misturada com fragmentos filosóficos”.74

O impacto da filosofia platônica sobre sua formação foi tão

grande que ele confessou: “Eu exultava principalmente com a con­

sideração do incorpóreo. A contemplação das idéias dava asas à

minha inteligência”.75 E ainda: “Que obra maior devemos reali­

zar senão a de mostrar como a idéia dirige todas as coisas? Conce­

bida em nós, e deixando-nos conduzir por ela, podemos

contemplar o engano dos outros e ver que em suas ocupações não

há nada de são, nem de agradável a Deus”.76

Sob essa influência, o discurso teológico-cristão, representa­

do em Justino, volta-se para a metafísica, distanciando-se das

fontes de reflexão teológica pós-apostólicas. Os espaços de pro­

profetas e os filósofos” (Fernando Antônio FIGUEIREDO, Curso de teologia patrística I, p. 120). Para Justino, a verdade está no logos, portanto externa à cultura e dada aos homens por sua reta ordenação. Assim, do ponto de vista da teoria do conhecimento, Justino alcança a verdade pela metafísica. Nisso ele se assemelha à teoria da intuição intelectual de Platão.

72 Médio-platonismo, Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs, p. 920,1.73 O termo “heresia” é bastante questionável. Seu uso é veiculado em

contraposição ao que se denomina “ortodoxia”. Aqui, deve-se entender “heresia” como pensamento teológico que se coloca ou é colocado à margem da interpretação teológica oficial.

74 V. nota 64.75 Justino Mártir, Diálogo com Trifão, p. 112.76 Ibidem, p. 114.

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dução teológica vão-se deslocando 'do interior das comunidades de fé, de sua liturgia e da ação pastoral na direção de outros cen­tros, de reflexão mais conceituai. Os próprios agentes dessa refle­xão irão diminuir, cedendo espaço gradativamente a especialistas.

Esse deslocamento da teologia que na metáfora se comunica numa dimensão mais funcional e dinâmica para outra, de ten­dência mais conceituai, encontra em Justino seu primeiro interlocutor. Ele mesmo declara: “Filosofia é a ciência do ser e do conhecimento da verdade, e a felicidade é a recompensa dessa ciência e desse conhecimento”.77

Na tarefa de aproximar o discurso teológico-cristão da filosofia grega, sobretudo a platônica, para além das contribuições de Justino, estão aquelas dadas pela escola de Alexandria, representa­da por dois nomes da maior relevância. O primeiro é Clemente. Filho de pais gentios, nascido provavelmente em Atenas por volta do ano 150. Convertido ao cristianismo, estudou com diversos professores até conhecer Panteno, em Alexandria, onde iria desen­volver seu ministério.78

“Em Clemente a veneração por Platão e a influência do platonismo contemporâneo assumem uma dimensão ainda mais ampla e desenvolvimentos ainda mais ricos do que em Justino.”79 Em Protréptico, Clemente pede a Platão que se torne seu compa­nheiro na busca de Deus.80

Longe de ser obra do demônio, dizia ele, a filosofia grega é, ao contrário, um bem. A ela coube a tarefa propedêutica de condu­zir os gentios a Cristo. O que a Lei fora para os judeus, a filosofia

77 Justino M ártir, ibidem, p. 114.78 Phototheus Boehner & Etiene G ilson, História da filosofia cristã, p. 33.79 Platonismo e os padres, Dicionário patristico e de antiguidades cristãs, p.

1157-1170.80 Ibidem, p. 1157-1170.

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foi para os gentios.81 Boehner e Gilson citam Clemente nas

Stromatas nos seguintes termos:

A fé em Cristo, a que agora se pretende restringir o alcance da razão humana, não existiu antes do advento do Salvador, quando se dispunha apenas da lei e da filosofia grega. A lei era, indubitavelmente uma expressão da vontade de Deus [...] Tam­bém os gregos, a despeito de todas as diferenças, encontravam- se numa situação semelhante. Não possuíam nem a lei nem a fé; a verdade lhes vinha do uso da razão natural [...] Isso se pode colher sem dificuldade da leitura de Platão [...] Não que Deus lhes falasse diretamente; mas nem por isso deixou de guiá-los indiretamente pela razão, que é também uma luz divina. De forma que a razão era para os pagãos o que a lei era para os judeus.82

Na compreensão de Mondin, “com a doutrina da função propedêutica da filosofia para a revelação, Clemente teve o mérito de ter superado a antinomia entre pensamento humano e verdade cristã e de ter dado assim o direito de cidadania, no seio do cristia­nismo, à filosofia grega e com ela a tudo o que pertence à razão e à natureza humana”.83

O outro grande nome da escola de Alexandria foi Orígenes. Nascido no Egito, por volta do ano 185 d.C., foi educado pri­meiramente pelo pai e, logo depois, em Alexandria, tornou-se dis­cípulo de Clemente, vindo mesmo a superá-lo. Como dizem Boehner e Gilson: “Com Orígenes, a escola catequética de Alexandria atin­ge o seu ponto mais alto [...] Orígenes supera Clemente em todos

81 Phototheus Boehner & Etiene G ilson, História da filosofia cristã, p. 35.82 Idem, ibidem, p. 35-6.83 Curso de filosofia, p. 124.

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os pontos de vista, e sobretudo pela penetração especulativa. So­bre os fundamentos lançados por Clemente pôde erguer o pri­

meiro edifício sistemático doutrinai” .84Com isso também concorda BofF, ensinando que “a primeira

escola de teologia sistemática foi o Didaskaleion de Alexandria, fundado no fim do Século II. Orígenes, seu maior representante,

nos dá a primeira síntese dogmática, em Dos Princípios" .85Da mesma forma que Justino e Clemente, Orígenes mantém

proximidade com a filosofia grega, principalmente a platônica, como mediação cultural (v. Glossário) no processo de produção teológica. Eusébio menciona-o, bem como sua relação com Platão,

afirmando: “Ele vivia em trato contínuo com Platão”.86Sendo impossível, como já afirmamos, mensurar a influência

dessas aproximações do ponto de vista dos conteúdos, é evidente que elas marcam profundamente o método de construção do dis­curso teológico-cristão, tanto em seu caráter apologético devedor

das leis da não-contradição quanto em sua tarefa, ainda incipiente em Orígenes, de sistematização dos temas da fé.

Seria necessário dizer que essa tarefa apologética, mesmo le­vando em consideração as observações feitas por Tillich,87 consis­

te na eliminação da pluralidade epistemológica. A polissemia é encarada como ameaça à verdade, pois esta não se encontra na

dimensão das opiniões ou das crenças (que seriam admitidas como heresias), mas na dimensão da episteme, da ciência das idéias. E daqui ela há de ser afirmada, para além de toda multiplicidade,

em sua univocidade.

s4 História da filosofia cristã, p. 48.85 Teoria do método teológico, p. 628.86 História Eclesiástica, p. 209.87 Ver nota 67.

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Tudo fica muito claro naquelas que serão as instâncias últimas da apologética: os concílios.88 Neles, está presente a objetivação mais radical da influência da filosofia grega sobre o pensamento cristão, tanto na linguagem construtora das sentenças dogmáticas, tão estranhas ao mundo bíblico, quanto na formulação dos anáte- mas, amplamente devedora dos princípios da não-contradição.

Nos concílios, as perguntas são pela essência das coisas, na clara intenção de delimitar e definir o discurso teológico, aten­dendo às exigências de justificação racional dos temas da fé em relação ao mundo greco-romano. Submete-se, portanto, a multiplicidade das experiências de fé, geradoras de narrativas polissêmicas, às exigências de categorias unívocas. Neles se esta­belece uma hierarquia que é a um só tempo epistemológica e po­lítica. Ao definir, isto é, ao afirmar conceitualmente os temas da fé, cria-se um princípio hermenêutico único, administrado pelo centro de controle dos sentidos hermenêuticos: a Igreja.

Na continuação do momento apologético do discurso teoló- gico-cristão, está o momento dialético. O discurso teológico dialético, já presente em Orígenes, em sua obra Dos princípios, tem como ênfase não só articular respostas pontuais a temas em conflito, mas propor uma sistematização dos temas da fé em for­ma de tratados. Esse fato cumpre o intento de sistematização da univocidade epistemológica, já presente de forma incipiente no discurso apologético. Como afirma Zilles:

Os primeiros padres cristãos não fizeram filosofia ex pro­fesso. Só recorriam a ela quando lhes ajudava a compreender

88 Fundamentais sio os quatro primeiros concílios (Nicéia I, Constantinopla I, Éfeso e Calcedônia), nos quais foram discutidos os principais temas da fé e elaborada a linguagem teológica apologético-dogmática (Justo C ollantes, A fé católica: documentos do magistério da Igreja).

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melhor a revelação cristã ou para defender-se contra os pa­gãos. Agostinho de Hipona, chamado ò mestre do Ocidente e o gênio do cristianismo, contudo elabora uma filosofia junto à teologia. A filosofia patrística representa o esforço de munir a fé de argumentos racionais. Entre os padres cristãos, Agosti­nho leva mais longe a conciliação entre a fé e a razão.89

Se Justino, Clemente e Orígenes foram os primeiros interlocu­tores da filosofia no interior do cristianismo, para se produzir uma teoria do conhecimento capaz de introduzir o discurso teológico- cristão no ambiente greco-romano, é Agostinho quem o fará de forma mais complexa, erigindo um sistema epistemológico de in­fluência definitiva sobre a teologia cristã.

Agostinho90 procede da tradição platônica, da qual é herdeiro por intermédio do neoplatonismo de Plotino.91 Mas ele a in­

89 Teoria do conhecimento, p. 99.90 Agostinho nasceu em Tagaste, em 354, de mãe cristã e pai ainda pagão, que

recebeu o batismo em 371, pouco antes de morrer. A primeira educação de Agpstinho foi estritamente humanística, feita de gramática e retórica. Tendo iniciado os estudos em Tagaste, foi completá-los em Cartago, onde, depois da leitura do Hortênsio (uma introdução à filosofia), de Cícero, começou a interessar-se tam­bém pela filosofia. Em Cartago, a filosofia então dominante era a maniquéia. Agostinho não tardou em fazer-se ardoroso defensor desse sistema, para grande desgosto de sua mãe. Aos 19 anos, começou a ensinar retórica em Cartago, rodea­do por um grupo de discípulos inteligentes e por muitos amigos, mas também por alunos indisciplinados. O comportamento destes e o desejo de fáma levaram Agostinho a transferir-se para Roma. Assim, depois de dez anos de ensino em Cartago, deixou a cidade (em 383) e foi para Roma. Por esse tempo, seu entusias­mo pelo maniqueísmo foi diminuindo lentamente. Em Roma, abandonou-o definitivamente para abraçar, por um breve período, o ceticismo da Academia. Depois de um ano em Roma, foi para Milão, onde Sfmaco lhe ofereceu a faculda­de de retórica. Em Milão, leu Plotino e sentiu-se fascinado pelo seu ensinamento sobre a incorporeidade de Deus e a imortalidade da alma. Assim, de cético, tomou-se logo neoplatônico. Mas a leitura de Paulo e os contatos com Ambrósio, bispo de Milão, convenceram Agostinho de que a verdade não estava nos livros dos filósofos, mas no evangelho de Jesus Cristo.

91 Agostinho dedica quase toda a sétima seção do primeiro tomo de A cidade de Deus à importância de Platão e à influência de Plotino, tanto em sua formação

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corpora no contexto cristão e, por esse motivo, transforma-a pro­fundamente, ao mesmo tempo que a completa e aprimora, nela corrigindo o que havia de mais discutível.

Agostinho não admite, com efeito, nem o universo inteli­gível das idéias subsistentes, nem o ineísmo platônico. Mas estas duas opiniões errôneas lhe pareciam envolver magníficos pressentimentos da verdade. Pois é de fato verdade que deve existir um mundo inteligível ou mundo das idéias, uma vez que o nosso pensamento procede por meio das idéias eternas e necessárias e por meio de referências a normas absolutas e imutáveis, que não descobriremos, evidentemente, no univer­so da percepção móvel, mutável e essencialmente múltiplo. Unicamente este mundo das idéias é a razão divina com a qual é preciso que estejamos de algum modo em comunicação, pois é unicamente por esta via que se conseguirá explicar que pen­samos e julgamos segundo normas que transcendem o espaço e o tempo.92

E exatamente esse ponto — o da teoria do conhecimento — também salientado por Jolivet, que precisa ser aprofundado aqui. Como e onde a verdade pode ser alcançada? “Sua contribuição à crítica do conhecimento foi a de fornecer as linhas gerais de uma justificação metafísica da verdade”.93

Para Agostinho, o conhecimento humano observa três opera­ções: os sentidos, a razão inferior e a razão superior. A estes eqüi­valem três grupos de objetos a serem conhecidos: qualidade dos corpos, leis da natureza e verdades eternas.94 Aos sentidos, cabe o

intelectual quanto na necessária compreensão e utilização deles no pensa­mento teológico-cristão.

92 Régis J ouvet, Metafísica, p. 44.93 Idem, ibidem, p. 46.94 Batista M on d in , Curso de filosofia, p. 136-40.

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conhecimento dos corpos; à razão inferior, as leis da natureza; à razão superior, as verdades eternas.

Como diz Mondin: “Agostinho tem realmente a convicção de que a alma é absolutamente superior ao corpo e de que, por isso, não pode depender dele em nenhuma de suas atividades, nem mesmo na sensitiva” .95 Agostinho assume o dualismo platônico, remetendo à instância externa toda a possibilidade de conheci­mento da verdade, que reside no mundo das idéias.

Não sem razão Zilles afirma: “Já que as idéias que regulam a verdade dos nossos juízos transcendem a mente humana, elas de­vem existir independentemente da alma humana. Deve existir uma espécie de mundo das idéias eternas que, como princípio absoluto e metafísico, garante a veracidade dos nossos conheci­mentos”.96 Isso significa que o fundamento do conhecimento humano e, portanto, teológico está fora da existência concreta. Mesmo as operações dos sentidos e da razão inferior precisam de um auxílio externo para serem realizadas.

A teoria de Agostinho guarda inúmeras semelhanças com a idéia platônica do conhecimento. Para Platão, o conhecimento dá-se por intuição intelectual, só possível por causa de sua doutri­na da reminiscência.97 Agostinho, não podendo concordar com esta, propõe a doutrina da iluminação, que consiste no auxílio divino que torna compreensíveis as “verdades eternas”.

O conhecimento das verdades eternas é obtido por meio de iluminação divina e não por meio da reminiscência. Agostinho, como Platão, está convencido de que as verdades eternas não podem vir da experiência, seja por causa da contingência do

55 Ibidem, p. 138.96 Teoria do conhecimento, p. 105.57 V. nota 36.

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objeto conhecido, seja por causa da contingência do sujeito que conhece. Mas como ele não admite a preexistência das almas no Hiperurânio, não lhe é possível explicar o conhecimento das verdades eternas pela doutrina da reminiscência como fizera Platão; recorre, por isso, à doutrina da iluminação.98

A doutrina agostiniana da iluminação consagra a metafísica como instrumento adequado de conhecimento da verdade no in­

terior do discurso teológico-cristão. A contingência do objeto e

do sujeito do conhecimento negativos, para Agostinho, legitima a

exterioridade dualística da verdade. É negada à teologia qualquer

identificação da relevância nas vivências concretas da fé no inte­

rior da comunidade cristã.

Para além das vivências da fé, o discurso teológico deve partir

de uma iluminação que lhe permita dizer a verdade sobre os te­

mas da fé. Essa verdade não admite contradição, pois não parte da

multiplicidade, na qual idéias contraditórias são possíveis, antes

afirma-se na univocidade decorrente da unidade que lhe oferece a idéia perfeita. Assim, tem-se pronta uma teoria do conhecimento capaz de produzir um discurso teológico complexo, amplo e

sistematizador.

Assim, ao processo de sublevação da metafísica no interior da

teologia cristã resta somente um único passo, possível de ser iden­

tificado no aristotelismo tomista. Tomás de Aquino" empresta

98 Batista M ondin, Curso de filosofia, p. 139.95 Tratamos aqui do pensamento de Tomás de Aquino somente em relação à

teoria da iluminação de Agostinho, uma vez que consideramos aqui ametafísica presente na teologia sistemática protestante (ou dogmática) emi­nentemente platônico-agostiniana e devemos ao pensamento aristotélico- tomista apenas a disposição lógica e estética. Isso se acentua, sobretudo, pelo fato de nosso olhar situar-se no âmbito protestante da reflexão teológica, que, com Lutero e Calvino, dá total notoriedade ao agostinianismo em detrimento

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do pensamento agostiniano a teoria da iluminação e torna-a abso­lutamente sua. A certeza, diz ele, “é em nós uma participação da luz divina. O humano não pode possuir, por si só, a regra infalível

da verdade, embora a possua em si mesmo, a saber, à luz do inte­lecto agente, do qual procede toda a certeza”.100

Tomás, no entanto, fxel às análises de Aristóteles, afasta-se de Agostinho quanto à maneira de conceber o modo de iluminação. Como afirma ele próprio, “se é verdade que nós conhecemos todas as coisas nas razões eternas, isto não requer nenhuma luz especial distinta da luz da inteligência” .101 Enquanto para Agostinho a alma recebe uma luz que a informa extrinsecamente, para Tomás a alma possui em si mesma a regra infalível da verdade, dando-se esta intrinsecamente na inteligência humana, que é o fórum apro­priado ao seu conhecimento.

Aquino faz, em relação a Agostinho, o mesmo caminho que Aristóteles trilhou em relação a Platão. Ele toma o dualismo externo da tradição platônica assumido por Agostinho e interioriza-o. A ver­dade, que só podia ser encontrada “no mundo das idéias” e alcançada por intuição intelectual, agora está na mente humana, e pode ser conhecida pela inteligência, ela própria um dom de Deus.

O caminho da metafísica como instrumento sustentador da univocidade

A formação do discurso teológico dogmático deve à filosofia

grega os elementos fundamentais de sua elaboração metodológica.

do tomismo. Uma contribuição tomista para nós é, sem dúvida, sua teolo­gia natural e, principalmente, suas provas teístas amplamente encontradas no sistema manualista. E até mesmo esse tema acha-se circunscrito na valo­rização da inteligência como instrumento capaz de conhecer a verdade.

100 Régis J olivet, Metafísica, p. 47.101 Idem, ibidem, p. 47.

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Essa filosofia, em contraposição à compreensão mítica, que acen­tuava a equivocidade hermenêutica e valorizava a metáfora como forma adequada às realidades que escapam ao cotidiano, estabe­leceu-se sobre a necessidade de afirmação da univocidade da ver­dade.

O unívoco, porém, só poderia ser afirmado com base numa fonte fidedigna que transcendesse as realidades culturais (que são equívocas). Negando dessa forma toda multiplicidade e conside­rando-a apenas sombra de uma realidade fundamental (não-ser), seria possível afirmar uma proposição de abrangência universal. A fonte fidedigna que a filosofia grega elaborou para afirmar a univocidade foi a metafísica.

Isso se explica de forma relativamente simples. Na multipli­cidade, não há um princípio que possa ser usado como instru­mento para afirmar o unívoco. A multiplicidade é geradora de interpretações: qualquer leitura que se faça dela produzirá polissemia hermenêutica. A criação da metafísica é, portanto, a maneira mais adequada de afirmar a univocidade. Fora do espaço físico, múltiplo na mais singela observação, é possível conceber uma essência que corresponda às coisas múltiplas e encerre a ver­dade acerca de todas as representações concretas, todos os simula­cros. O discurso que parte da essência é suficiente para expressar as representações. Nesse sentido, o discurso unívoco de abrangência universal é plenamente possível.

Não é a metafísica, portanto, que cria a univocidade que possi­bilita a universalização do discurso, mas a necessidade de negar o múltiplo, embutida na afirmação do unívoco e por ele gerada. É da insegurança desestabilizadora dos discursos científicos e reli­giosos, que temem a convivência com a multiplicidade de falas sobre a realidade, que surge a metafísica como forma de sustentar

a univocidade epistemológica, de caráter filosófico ou religioso.

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O discurso teológico-cristão, sobretudo o de corte dogmático, trilhou o mesmo caminho da filosofia grega. Nesse sentido, o fórum autorizado da verdade doutrinária não está na multiplicidade das interpretações, fruto das múltiplas experiências de fé, que em úl­tima instância são identificadas como “heresias” (palavra religiosa equivalente à “opinião” ou “crença”), mas numa dimensão que transcende o entendimento, identificando-se por vezes com o pró­prio Deus. Quem é capaz de dizer a verdade só o pode fazer por uma assistência direta da Divindade. Seu discurso, então, não é seu: é apenas a reprodução da fala divina.

E exatamente nesse aspecto que se fundamenta a legitimidade de um discurso universal sobre qualquer realidade cultural. O dis­curso dito não é de um homem que deseja sobrepor etnocen- tricamente sua perspectiva em relação a outras, mas é tão-somente o desvelamento das verdades eternas ditas com base na iluminação divina. O discurso teológico dogmático cristalizado e potencializado para além de seu tempo cultural só é possível por meio da metafísica, que se apresenta como seu elemento sustentador.

Essas primeiras conclusões precisam ainda ser aprofundadas, propriamente na dimensão do método utilizado pela teologia dogmática, visto que exatamente nessa instância é que se dá a possibilidade de sua subsistência.

Abordagem metodológica resultante da afirmação metafísica no interior da teologia dogmático-sistemática

Do processo de sublevação da metafísica na comunicação dos temas da fé cristã, resulta um método, ou seja, “um procedimen­to investigativo organizado, repetível e autocorrigível, que garan­ta a obtenção de resultados válidos”.102

102 Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p. 668.

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O processo que até aqui se buscou descrever só poderia resul­

tar numa perspectiva metodológica: aquela que, partindo “em sua

reflexão desde os princípios universais da fé e por dedução ia ex-

plicando-os, aplicando-os a outras realidades” .103 Trata-se, por­

tanto, de um método que parte de cima para baixo, que impõe o

dogma sobre a multiplicidade de situações concretas, sendo, nesse

sentido, apriorístico. As respostas já estão elaboradas, antes mes­

mo de as perguntas serem feitas. Reproduz-se dessa forma, na

dimensão metodológica, a superposição da essência sobre a exis­

tência concreta.

Esse é o método dedutivo que trabalha “de modo especial,

com o silogismo. Parte de afirmações universais, dos princípios da

fé (maior), estabelece uma afirmação de natureza filosófica (me­

nor) e conclui por dedução uma afirmação teológica”.104 Para

exemplificar esse processo, Libânio oferece o seguinte exemplo

acerca da cristologia: “Jesus é verdadeiro homem (maior: afirma­

ção de fé de Calcedônia); ora, um verdadeiro homem tem uma

liberdade e consciência humanas (menor: verdade filosófica), logo

Jesus tem uma liberdade e consciência humanas” .105

A utilização do método dedutivo é uma característica da teolo­

gia dogmático-sistemática, que alcança na alta escolástica seu ponto

de maior vigor. Suas principais ênfases estão em “sistematizar, definir, expor e explicar as verdades reveladas”,106 não só visando

a “mostrar o que estava incluído no universo da fé, mas também

a excluir as posições doutrinárias em oposição à fé, condenando

os erros, resolvendo as dificuldades, refutando as falácias dos

103 João Batista L ibânio, Introdução à teologia, p. 101.104 Idem, ibidem, p. 101.105 Idem, ibidem, p. 101.106 Ibidem, p. 101.

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adversários” .107 Ou, em outras palavras, afirmando a univocidade da verdade teológica.

Essa abordagem metodológica, com sua forte ênfase apologética a serviço da ortodoxia, criou um corpo doutrinário, um sistema totalizador dos temas da fé que, num primeiro momento, possi­bilitou o diálogo da teologia cristã com a cultura à sua volta. Mas foi lentamente perdendo o impulso, à medida que ia-se tornando reativa, ou seja, que ia-se limitando à defesa de seus postulados sem os colocar em contato com novas realidades.

Falando sobre esse momento da teologia com relação ao méto­do dedutivo, ou teologia dedutiva, Libânio prossegue:

Ele, que respondeu certamente de maneira excelente aos questionamentos da igreja em dado momento de sua história, foi-se enrijecendo, assumindo caráter abstrato, a-histórico for­mal e autoritativo. Transformou-se em poderoso instrumento da autoridade, coibindo a liberdade de pesquisa, perdendo sensibilidade aos novos problemas e temas que surgiam. Sua proximidade com o magistério eclesiástico foi tal que ela assu­miu certo ar de oficialidade, imutabilidade, universalidade.108

Essa relação de identidade entre o método dedutivo e a teologia dogmático-sistemática estendeu-se até as portas da modernidade.109

107 Ibidem.108 Introdução..., p. 102-3.109 No caso da tradição católica, a teologia dedutiva vigorou com muita força e,

mesmo com a hegemonia, até o Concilio Vaticano II, quando se buscou uma aproximação maior com as realidades concretas trabalhadas no interior da modernidade. No caso do protestantismo, a história é diferente. A Re­forma, sobretudo em Lutero, buscou questionar o sistema teológico medie­val e seu método grandemente endividado com a metafísica, abrindo espaço para a subjetividade hermenêutica com o livre exame das Escrituras. Já em sua segunda geração, porém, a Reforma sofreu um processo de enrijecimento de sua teologia, resultante do enrijecimento metodológico.

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Passada a primeira geração do protestantismo, um ensaio de sub­jetividade hermenêutica, instalou-se sobre a ortodoxia protestante a mesma tendência da teologia medieval, ou seja, a produção de ma­nuais de caráter totalizadores do conjunto dos temas da fé e de ten­dência universalizante. Seguiu-se, portanto, o mesmo caminho de enrijecimento da pesquisa e distanciamento dos problemas e propo­sições da modernidade, bem como do caráter apologético da teologia ortodoxa clássica. Acerca desse assunto, Mackintosh comenta:

Era uma época de amplos sistemas dogmáticos, da qual se costuma falar com um tom um tanto depreciativo, que resulta tão ignorante quanto absurdo. Não há dúvida de que é fácil impacientar-se com as limitações e a falta de flexibilidade de uma época que levou até seus extremos a doutrina da inspira­ção verbal e plena das Escrituras."0

Ele prossegue:

Nesse processo surgiu a ortodoxia tradicional — um fenô­meno histórico claramente distinto, que se caracteriza pela ten­dência de conceder valor absoluto às fórmulas dogmáticas, de considerar que a fé e o assentimento de um credo são um e a mesma coisa, de insistir nos termos da confissão ou do cate­cismo, sem ir sempre, mais além do som das palavras.111

Essa teologia vai-se distanciando exponencialmente da cul­tura, travando com ela uma batalha para preservar sua interpre-

Esse período é identificado como escolástica protestante ou ortodoxia pro­testante. A teologia sistemática atual (protestante) é devedora e por vezes dependente dessa ortodoxia e de sua tendência de produção de manuais totalizadores e universalizantes.

110 Teologia moderna, p. 18.111 Ibidem, p. 19.

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taçao particular das Escrituras e dá própria teologia. Não é ne­cessariamente em defesa das Escrituras, mas de uma interpreta­

ção cristalizada de suas palavras, elevadas à condição de verdade absoluta.

Ademais, a polêmica doutrinai tornou-se em sua marca registrada, e a atividade apologética, sobretudo em seu caráter popular, tem conseqüências nefastas para o sentido da verda­de. O que se tem em mente é a obtenção de pólvora e munição para a controvérsia; o propósito do campeão é destruir seu adversário mais do que convencê-lo.112

Na perspectiva do impacto da ortodoxia protestante sobre a teologia bíblica, Ladd afirma:

Os resultados obtidos pelos estudos históricos da Bíblia, realizados pelos reformadores, logo se perderam no perío­do imediatamente após a Reforma, e a Bíblia foi mais uma vez utilizada sem uma perspectiva crítica e histórica, para servir de apoio à doutrina ortodoxa. A Bíblia foi conside­rada não somente como um livro isento de erros e contra­dições, mas também como sem desenvolvimento ou progresso.113

Embora não haja unanimidade sobre as contribuições da orto­

doxia protestante para a teologia em geral nem para a sistemática em particular,114 pode-se claramente perceber seu forte caráter

112 M ackintosh, Teologia moderna, p. 20.113 Teologia do Novo Testamento, p. 14.114 Para Tillich, “a ortodoxia clássica protestante relaciona-se com uma grande

teologia. Poderíamos chamá-la de escolástica protestante, com todos os refi­namentos e métodos que a palavra escolástica inclui”. E também: “É a consolidação das idéias da Reforma, desenvolvidas em contraste com a contra-reforma” (História do pensamento cristão, p. 251). E ainda: “A ortodoxia

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reprodutor da teologia dogmática clássica, principalmente as ten­

dências totalizadoras e universalizantes, que, em última análise,

estruturam o discurso teológico unívoco.115

protestante era construtiva [...] os teólogos ortodoxos trabalharam objetiva e construtivamente, procurando apresentar a doutrina pura e completa de Deus, do homem e do mundo” (Perspectivas da teologia protestante nos séculos X IX e XX, p. 36). Também Maia, em Raízes da teologia contemporâ­nea, dedica uma sessão inteira para salientar o caráter positivo e construtivo da ortodoxia protestante (p. 233-54).

115 A presença da continuidade metodológica que há entre a teologia ortodoxa clássica e a protestante é também identificada na manualística contemporâ­nea (que de contemporânea pouco tem, visto que os principais textos foram escritos no final do século XIX e no início do século XX), basta perceber o que diz essa manualística em seu conceito de método, com base em seus mais ilustres representantes (traduzidos em língua portuguesa). Strong afir­ma: “... que adotamos neste compêndio, é o mais comum e mais lógico de pôr em ordem os tópicos da teologia. Parte da causa para o efeito [...] começa com os mais elevados princípios [...] e destina-se ao homem (Teologia siste­mática, p. 89, v. 1). Berkhof relata: “Há boas razões para começar com a doutrina de Deus, se partimos da admissão de que a teologia é o conheci­mento sistematizado de Deus de quem, por meio de quem, e para quem são todas as coisas. Em vez de surpreender-nos de que a dogmática comece com a doutrina de Deus, bem poderíamos esperar que seja completamente um estudo de Deus, em todas as suas ramificações, do começo ao fim"{Teologia sistemática, p. 21). Langston diz: “Explicar o universo do ponto de vista de Deus é relativamente fácil, mas explicar Deus do ponto de vista do universo é absolutamente impossível. Eis a razão por que adotamos em nosso méto­do a ordem que parte da revelação cristã, reforçando-a depois com o que se acha revelado no universo” (Esboço de teologia sistemática, p. 18). Falando da tendência totalizadora e harmônica da teologia sistemática, Grudem explica: “Essa definição indica que a teologia sistemática envolve compilar e entender todas as passagens relevantes da Bíblia sobre vários tópicos e então sintetizar claramente o seu ensino de tal modo que saibamos em que crer acerca de cada tema [...] Mas o núcleo da teologia sistemática permanece diferente, concentrando-se na compilação e, depois, na sistematização do ensino de todas as passagens bíblicas sobre um assunto específico [...] Na verdade, o adjetivo sistemática na teologia sistemática deve ser compreendi­do como algo semelhante a cuidadosamente organizada por tópicos’, en- tendendo-se que os tópicos estudados se ajustam uns aos outros de um modo coerente e incluirão todos os principais temas doutrinários da Bíblia” (Teologia sistemática, p. 1-4). Ainda sobre a perspectiva harmonizadora,

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Essa abordagem metodológica contribuiu e ainda contribui

para a sustentação do discurso unívoco próprio do sistema

manualista (v. Glossário, manualística), à medida que permite sua

reprodução em ambientes cada vez mais afastados da realidade

concreta. Partindo de cima, do universal em direção ao particular,

a teologia sistemática manualista garante a irredutibilidade de

sua fala, bem como sua univocidade.

E o que se pretende trabalhar no próximo capítulo, buscando- se evidenciar os caminhos que permitiram e ainda permitem a reprodução desse discurso, bem como sua cristalização e posterior ascensão ao status de normaprescritiva (v. Glossário).

Erickson ensina: “É importante aprender o que um autor bíblico fala, em diferentes contextos, acerca de determinado assunto. A doutrina, no entan­to, é mais que uma simples descrição do que Paulo, Lucas ou João disseram; e, portanto, precisamos juntar esses testemunhos, formando algum tipo de todo coerente [...] Esse esforço, é claro, já pressupõe uma unidade e coerên­cia entre os vários materiais e testemunhos bíblicos [...] Depois que o mate­rial doutrinário foi juntado de modo a formar um todo coerente, devemos buscar seu verdadeiro sentido” (Introdução à teologia sistemática, p. 21). Somente Hodge admite assumir o método indutivo em seu manual. Todos os indícios da utilização do método dedutivo, porém, estão ali presentes. Desde a arrumação dos temas, que partindo de Deus (universal) chega-se ao homem (particular), até a tendência harmonizadora, do ponto de vista interno, e apologética que a tradição manualista dedutiva tanto preza.

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2Ascensão, potencialização e evocação: processo de gestação da univocidade universalizante

Mundo metafísico — É verdade que poderia existir um mundo metafísico; dificilmente podemos contestar a sua pos­sibilidade absoluta. Olhamos todas as coisas com a cabeça humana, e é impossível cortar essa cabeça; mas permanece a questão de saber o que ainda existiria do mundo se ela fosse mesmo cortada. Esse é um problema puramente científico e não muito apto a preocupar os homens; mas tudo o que até hoje tornou para eles valiosas, pavorosas, prazerosas as suposi­ções metafísicas, tudo o que as criou, é paixão, erro e auto- ilusão; foram os piores, e não os melhores métodos cognitivos, que ensinaram a [se] acreditar nelas. Quando esses métodos se revelaram o fundamento de todas as religiões e metafísicas existentes, eles foram refutados. Então resta ainda aquela pos­sibilidade, mas com ela não se pode fazer absolutamente nada, muito menos permitir que felicidade, salvação e vida depen­dam dos fios de aranha de tal possibilidade. Pois do mundo metafísico nada poderia se afirmar além do seu ser-outro, um para nós inacessível, incompreensível ser-outro. Ainda que a existência de tal mundo estivesse bem aprovada, o conheci­

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mento deie seria o mais insignificante dos conhecimentos: mais ainda do que deve ser, para o navegante em meio a um perigo­so temporal, o conhecimento da análise química da água.

N ietzsch e , Humano, demasiado humano, p. 20.

Neste segundo capítulo, propomo-nos evidenciar as influências

da sublevação da metafísica (v. Glossário) no interior do discurso teológico-cristao, do ponto de vista metodológico, preponderan­

temente em seu corte sistemático-dogmático.Como resultado dessas influências, observa-se, em primeiro lu­

gar, a dogmatização dos temas da fé, instrumentalizados no âmbito da univocidade (v. Glossário) discursiva própria da teologia

apologética. Em seguida, esses temas dogmatizados são sistemati­zados em forma de tratados, para logo após serem circunscritos no âmbito da manualística, como vimos de tendência marcadamente

universalizante.1Esse processo é construído com a ascensão de compreensões

elaboradas no interior de uma cultura específica ao status de ver­

dades últimas e fundamentais. Diante dessa afirmação, duas con­siderações tornam-se necessárias. Em primeiro lugar, é preciso

salientar que o diálogo com a cultura grega (filosofia/metafísica) constituiu um passo importante para a teologia cristã,2 porque

1 Os passos mencionados — dogmatização, instrumentalização, apologética, proposição de tratados e sistematização manualística — compõem (pelo menos na nossa compreensão) o longo caminho da sublevação da metafísica, discutido no primeiro capítulo. A esse processo somam-se as contribuições do pensamento platônico-agostiniano, principalmente no que diz respeito à teoria do conhecimento e da iluminação, e do aristotelismo-tomista, na di­mensão da sistematicidade e da lógica (com seu princípio de não-contradição) e ainda da proposição de uma teologia natural, só possível pela compreensão da inteligência humana como participante do intelecto divino.

2 Félix Alexandre Pastor, em duas importantes obras, Semântica do mistério e A lógica do inefável, evidencia quanto a linguagem teológica é devedora à

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significava um diálogo daquela religião com os valores culturais

que representavam o ethos que a envolvia. No dizer de Tillich, esse diálogo pressupõe uma “base comum” entre a vivência religiosa

cristã e a cultura que lhe era própria.3Em segundo lugar, é preciso perceber que essa aproximação,

que no início pode ter significado a valorização da cultura na re­flexão teológica, foi cristalizada, e a experiência religiosa e a cultu­ra foram identificadas como elementos de um mesmo evento, a Revelação. Isso se deve em grande medida à natureza daquela cul­

tura interlocutora da religião cristã, ou seja, era um risco inerente

à aproximação entre o discurso cristão e a metafísica. Aquilo que

poderia ter constituído um caminho dialogai entre fé e cultura

tornou-se a ascensão de “uma cultura” específica como padrão

metodológico de caráter unívoco e de alcance universal.

Nesse sentido, a permanência da metafísica como padrão metodológico para a teologia sistemático-dogmática negava seu

valor primeiro quando se apresentava como elemento cultural ca­

paz de comunicar sentido a homens e mulheres de uma época.

Continuar assumindo a metafísica no discurso teológico é perma­necer afirmando anacronicamente a superioridade de uma cultu­ra em detrimento da nossa, constituída de homens e mulheres concretos e históricos.

E provável que essa ascensão cristalizadora de “uma cultura”

em detrimento das demais tenha partido de um instrumento

metodológico manipulado tecnicamente por um corpo de espe­cialistas. Esse “corpo de especialistas” pode ser chamado também

cultura grega, sobretudo à linguagem filosófica platônica. Também Paul Tillich aponta positivamente para o diálogo da religião cristã com a cultura grega, tanto em sua Teologia sistemática quanto na História do pensamento cristão.

3 Teologia sistemática, p. 15-6.

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“sociedade de discurso”, como o identifica Foucault.4 No interior

desse corpo-sociedade, a cristalização/univocização/universalização é reproduzida com o auxílio direto de seu instrumento meto­dológico.

Com essas primeiras observações, torna-se necessária uma apro­ximação mais criteriosa ao interior do processo dè elaboração da

univocidade universalizante no âmbito do discurso teológico siste- mático-dogmático. Para tanto, buscar-se-á de início a compreensão daquilo que seja o núcleo do discurso teológico para, logo após,

observar os mecanismos que promovem sua cristalização.

Aproximação ao núcleo do discurso teológico

Todo discurso teológico5 tem um núcleo gerador de sentido, sobre o qual é possível tecer-se uma dinâmica hermenêutica. Esse núcleo é a experiência cognoscibilizada de fé.6

Por experiência cognoscibilizada de fé entende-se o processo em três movimentos que se põe na origem de toda a teologia:

4 A 01'dem do discurso, p. 39.5 Quando se fala de “todo discurso teológico”, não se pretende identificação

alguma com a multiplicidade de discursos no interior da fé cristã. Antes, assume-se a autonomia de todos os credos religiosos como plenamente com­petentes para produzir teologia. Contudo, mesmo nessa perspectiva, é possí­vel identificar um núcleo comum. Isso não significa a relativização dos elementos característicos de cada religião, tampouco da religião cristã, mas a percepção de reações ao sagrado comuns a todas elas. Essas “reações comuns” à presença manifesta do sagrado é amplamente estudada no campo das ciên­cias da religião: Rudolf Otto em O sagrado, Mircea Eliade em O sagrado e o profano, e José Severino Croatto em As linguagens da experiência religiosa.

6 Há uma discussão intensa sobre se a fé produz algum saber, se a experiência religiosa é cognoscível. Por um lado, o positivismo científico nega toda possibilidade racional à experiência de fé; por outro, a concepção estrutura- lista toma o saber religioso como um conhecimento legítimo. Aqui não se acatará nenhum ponto de vista integralmente, mas buscar-se-á uma relação dialética entre eles e, por vezes, para além deles.

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experiência de fé, mediação cultural (v. Glossário) e discurso siste­

mático, como se vê neste diagrama:

A experiência de fé é o evento originador de toda a preocupa­ção religiosa e de todo o sistema religioso em geral. Essa experiên­cia em si mesma, porém, em sua dimensão exclusivamente subjetiva, não subsiste, pois precisa comunicar-se, tornar-se com­preensível e, por fim, tornar-se reprodutível. Sendo em si intraduzível, como se tornar comunicável?

Nesse intento, a experiência de fé encontra em seu exterior os signos necessários à sua comunicação. Afirma-se, então, a impor­tância da mediação cultural, que irá oferecer o veículo lingüístico adequado para que aquela experiência constitua um discurso sis­temático.

Assim, no centro de toda teologia, encontra-se uma experiência de fé que quer e precisa tornar-se cognoscível, ou seja, discurso sis­temático. Isso só será possível, contudo, numa cultura que se pro­ponha ser mediadora desse processo. Esses três passos são, portanto, elementos de um mesmo fato nuclear no discurso teológico. Esse processo é o que denominamos “fé cognoscibilizada”.

A experiência de fé e a necessidade/desafio de cognoscibilizaçao

O primeiro passo constituinte do núcleo da teologia é a ex­periência de fé. Essa experiência, porém, não significa o domí­nio sobre a fé, como quem conhece algo calcado numa

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experimentação.7 Fé significa, em vez disso, “estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente”/ Essa experiência não se

dá em determinada dimensão da vida, tampouco se oferece a um

ou outro sentido; antes, é “o ato mais íntimo e global do espírito humano”.9 “Ela ultrapassa cada uma das áreas da vida humana,

ao mesmo tempo que se faz sentir em cada uma delas.”10Em si, a experiência de fé não significa experiência de conheci­

mento, justamente porque isso demandaria a apreensão do co­

nhecido. No caso da experiência de fé, não se apreende um dado

cognoscível, antes se é apreendido nas teias do sagrado.11 Essa experiência, porém, não é irracional, tampouco respeita os cânones

da racionalidade iluminista, como afirma Tillich:

Fé não é, portanto, um ato de forças irracionais quaisquer, assim como também não é um ato do inconsciente; ela é, isto

7 Michel Meslin, em seu livro A experiência humana do divino, trabalha a questão nos seguintes termos: “A língua portuguesa apresenta nesse ponto uma lacuna que não lhe permite distinguir entre o que é apreendido, per­cebido, conhecido pelo sujeito através de uma experiência que lhe é pessoal e que poderíamos qualificar de experimenta], daquilo que é experimentado, quer dizer, conhecido pela observação repetida e controlada dos fatos reno­vados. Uma tal distinção indispensável para a análise da experiência religio­sa, como veremos, é, ao contrário, bem destacada pela dupla expressão germânica Erfahrung/Erlebnis: o primeiro termo designa um conhecimento derivado de uma prática, o segundo qualquer evento ou fato vivido e experimentado por uma pessoa” (p. 86).

8 Paul T illich, Dinâmica da fé, p. 5.9 Idem, ibidem, p. 7.10 Idem, ibidem, p. 8.11 Rudolf Otto, em seu livro O Sagrado, identifica o sagrado como “um ele­

mento de uma qualidade absolutamente especial, que se coloca fora de tudo aquilo que chamamos de racional [...] constituindo assim algo inefá­vel”. Mircea Eliade, em O sagrado e o profano, afirma que “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano” (p. 17).

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sim, um ato em que se transcendem tanto os elementos racio­nais como não-racionais da vivência humana.12

A experiência de fé pode ser caracterizada, então, como uma

experiência extática, em oposição a inerte, marcando seu caráter

supra-intelectual e seu sentimento de estreita comunhão e de­

pendência do sagrado. As forças que manejam essa dimensão da

vida concreta de homens e mulheres não são aquelas do domínio

da cognoscibilidade. São de outra ordem, mais “rebeldes” , pouco

respeitadoras da tendência unívoca da teologia sistemática.

Essa rebeldia quanto à delimitação, inerente à experiência de

fé, constitui, por sua vez, o elemento instabilizador do discurso

teológico. Será preciso lembrar a qualquer tempo que, no interior

do discurso teológico sistemático, cheio de pretensões universais,

está esse princípio desestruturador da univocidade, que vem a ser

essa abertura ao transcendente — não apenas ao transcendente

no sentido supranatural, mas sobretudo na transcendência que se

realiza na imanência, a qual se faz no interior das culturas.13

E na abertura para a transcendência que homens e mulheres

encontram o terreno apropriado para a experiência de fé.

O homem é impelido para a fé ao se conscientizar do infi­nito de que faz parte, mas do qual ele não pode tomar posse, como de que uma propriedade. Com isso está prosaicamente formulado aquilo que ocorre no curso da vida como “inquietude do coração”.14

12 Paul T iluch , Dinâmica da fé, p. 9.13 Leonardo Boff, em Tempo de transcendência, dedica um capítulo à discussão

dos “lugares privilegiados de experiência da transcendência”, no qual propõe o espaço da imanência como locus para as experiências com o transcendente.

uí Paul T iluch , op. cit., p. 11.

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A figura da inquietude do coração, proposta por Tillich, aponta para a dramaticidade inerente à experiência de fé. Há uma constan­

te certeza, eternamente incerta, acerca daquilo (ou daquele?) por que se é experimentado, uma impossibilidade de fundamentos só­lidos que amparem até mesmo as memórias da experiência de fé.

O chão da experiência de fé é de areia movediça, de brumas que podem até sugerir alguma segurança para quem observa das distâncias discursivas da apologética. Para aqueles que se aproxi­mam, porém, restam a inquietude, a tensão entre a alegria pro­funda que seduz ao poço movediço, que não quer cessar de entregar-se à incerteza, e a necessidade — fruto da consciência histórica — de mostrar a razoabilidade da experiência, sua possibilidade cognitiva,

sua demonstrabilidade como evento histórico e sua capacidade ra­cional. Essa tensão pode ser resumida no paradoxo formado por ter de dizer o indizível e comunicar o incomunicável.

Nesse momento, a experiência de fé, que não é apreensão cognoscível de algo, mas o ser apreendido por algo que não se oferece à cognição, encontra-se com sua necessidade/desafio de cognoscibilização (v. Glossário). Antes de discutir o processo de cognoscibilização da experiência de fé, porém, que seria o segun­do passo do núcleo da teologia, interessa compreender a neces­sidade/desafio que impulsiona essa experiência à cognoscibilização. Croatto declara: “Mesmo que a finalidade da vivência religiosa seja transcendente, trata-se de uma experiência humana, própria do ser humano e condicionada por sua forma de ser e pelo seu contexto histórico e cultural” .15

No interior dessa humanidade, surge em primeiro lugar a neces­sidade de comunicar, em signos mais ou menos precisos, a expe­

15 As linguagens da experiência religiosa, p. 41.

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riência de fé. Essa necessidade é, antes de tudo, existencial. Antes

de qualquer coisa, ela atende a um anseio profundo de tornar a experiência minimamente concreta para aquele que a vivenciou.

A necessidade existencial de conduzir a experiência rumo à cognoscibilização atende, antes de tudo, à dúvida que se apresenta irmã da própria fé.

Fé é certeza na medida em que se baseia na experiência do sagrado. Mas ao mesmo tempo a fé é cheia de incerteza, uma vez que o infinito, para o qual ela está orientada, é experimen­tado por um ser finito. Esse elemento de insegurança na fé não pode ser anulado; nós precisamos aceitá-lo.16

Tillich esclarece:

A dúvida que está contida em todo ato de fé não é nem a dúvida metódica nem a cética. Ela é a dúvida que acompanha todo o risco. Não se trata aqui nem da permanente dúvida do cientista nem da dúvida volátil do cético; é, isto sim, a dúvida de uma pessoa que está seriissimamente possuída por algo con­creto. Em contraste com as formas acima descritas, poder-se-ia denominar esse tipo de dúvida de dúvida existencial. Ela não pergunta se uma determinada tese é verdadeira ou falsa, nem rejeita toda a verdade concreta, mas ela conhece o elemento de incerteza próprio a toda verdade existencial. A dúvida inerente à fé sabe dessa incerteza e a toma sobre si num ato de coragem.17

A dúvida existencial, ou, como denomina Bruno Forte, “o ateís­mo de quem crê”,18 constitui a necessidade primeira de cognos-

16 Paul T iluch , Dinâmica da fé, p. 15.17 Ibidem, p. 18.18 A essência do cristianismo, p. 120.

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cibilizar a experiência de fé. Diferentemente dos discursos unívocos

e apologéticos e mesmo dos documentos escriturísticos, a fé em si não é “firme fundamento”.19 Ela torna-se fundamento à medida que aquele que a experimenta reage à sua insegurança, ou mesmo

à inexistência desses fundamentos.Esse ateísmo de quem crê ganha mais força com o excesso de

consciência histórica, produzido pela tradição iluminista, eviden­ciado sobretudo na literatura e na poesia. Um bom exemplo é o

relato metafórico de Jean-Paul Richter em seu Discurso do Cristo morto:

Certa vez, numa tarde de verão, eu estava deitado no alto de um monte, de frente para o sol, e adormeci. Tive um sonho, e nele despertei em um campo de mortos [...]. Todas as sombras estavam de pé em torno do altar [...]. E eis que desce sobre o altar uma figura alta e nobre, acompanhada por uma dor sem fim. E todos os mortos gritaram: “Cristo! Não há nenhum Deus?” Ele respondeu: “Não há [...]. Atra­vessei os mundos, subi até os sóis e percorri voando, ao lon­go das vias lácteas, os desertos do céu; mas não há Deus algum. Desci até onde o ser projeta suas sombras e perscru- tei no abismo gritando: “Pai, onde estás?” Mas ouvi somente a eterna tempestade que ninguém governa” [...]. Chegaram então ao templo as crianças falecidas e se lançaram diante da alta figura, junto ao altar, dizendo: “Jesus! Não temos um pai?” E ele respondeu em prantos: “Somos todos órfãos, eu e vós, estamos todos sem pai” [...]. E tudo então se tornou apertado, tétrico, angustiante — e uma badalada desmesura- da estava para marcar a última hora do tempo e fazer soço- brar o edifício do mundo [...] quando acordei. Minha alma

19 V. Hb 11.1.

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chorou da alegria de poder ainda adorar a Deus — e a alegria e o pranto e a fé nele foram a minha oração.20

Esse sonho é comum a todos os que desbravam o terreno mo­vediço da fé. “Respeitando a dignidade do não crer [...] o vento é chamado a questionar-se sobre a própria fé e, na fé pensada, a encontrar os abismos do não-crente que habita dentro dele”.21 Essa é a condição mais íntima de todo o discurso teológico. A partir daí, o que se pode fazer é desprezar tal condição e singrar as águas serenas do mar da univocidade ou assumi-la e, consciente dela, lançar a reflexão teológica ao encontro da inevitável equivocidade (v. Glossário) de seu discurso.

Seja qual for a opção assumida pela reflexão teológica, uma coisa é certa: “Esta co-presença de fé e não-crença tem suas raízes na própria condição humana”,22 sendo portanto improvável que essa dúvida não cumpra seu papel de direcionar a experiência para a cognoscibilização. Nisso consiste a dimensão da necessi­dade existencial inerente à experiência de fé.

Além da dimensão da necessidade, existe outra: a do desafio. Há um desafio proposto para a experiência de fé, que é a comuni­cação desta, não a fim de produzir segurança naquele que a expe­rimentou, mas de tornar possível sua reprodução exterior.

Outra forma de convencimento acerca da veracidade de uma experiência é vê-la sendo reproduzida. Quando alguém acolhe uma experiência de fé, ele ratifica sua veracidade e aponta para a contemporaneidade de sua relevância. Nisso se fundamenta o caráter proselitista das religiões em geral e do cristianismo em particular.23

20 Bruno F orte , A essência do cristianismo, p. 121.21 Idem, ibidem, p. 122.22 Idem, ibidem, p. 122.23 O caráter proselitista do cristianismo não se fundamenta apenas na necessi­

dade/desafio de superar a dúvida, embora essa dimensão seja importante,

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O desafio de tornar uma experiência subjetiva e individualiza­da como proposta de seguimento coletivo, que a assume como rito de iniciação, está na origem de praticamente todas as reli­giões. Uma vez que o proselitismo (ou movimento missionário) não é o nosso foco,24 basta indicar que a inefabilidade da expe­riência de fé encontra, no desafio da verossimilhação (v. Glossário) valorizada pela reprodução externa dessa experiência, um elemen­to importante no processo de sua cognoscibilização.

Unindo-se as peculiaridades da necessidade e do desafio que se apresentam à experiência de fé, é possível compreender como essa experiência indizível se vai transformando em fundamento até poder apresentar-se como discurso sistemático sobre o sagrado e suas relações com o mundo. O caminho que nos conduz de um pólo a outro, porém, precisa ser compreendido, pois é nele que

consiste o locus (v. Glossário) metodológico.

Mediação cultural como locus metodológico

A experiência de fé nasce destinada a se tornar um discurso complexo e sistematizado (por causa da necessidade/desafio). Isso, no entanto, só é possível por meio de um sistema lingüístico ca­paz de dizer o indizível, tornando-o cognoscível a tantos quantos

sobretudo em nossa perspectiva. Há também todas as relações de conflito e as disputas por poder que impulsionam os movimentos missionários e in­tensificam os ardores apologéticos.

24 Na esfera da comunicação da fé numa perspectiva missionária ou proselitista, existem vários estudos, feitos por praticamente todas as matrizes teológicas. Um trabalho importante nessa área é o de Eduardo Rosa Pedreira: Do confronto ao encontro, em que ele expõe os resultados de sua pesquisa acerca do exclusivismo, inclusivismo e pluralismo diante de algumas questões teológicas, inclusive da missiologia. Numa direção semelhante, estão as obras de Jacques Dupuis: O cristianismo e as religiões e Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso.

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o ouçam. Nesse sentido, pode-se ver acabado o processo que cons­titui a fé cognoscibilizada.

Sem a dimensão da mediação cultural, haveria uma polariza­ção entre experiência de fé e discurso sistemático, uma incomu- nicabilidade que inviabilizaria qualquer discurso minimamente relevante. Sem mediação cultural, a experiência de fé não trans­mitiria nenhum sentido existencial, e o discurso sistemático não pas­saria de peça literária cristalizada, fria e absolutamente irrelevante, dada tão-somente à reprodução sistemática de corte apologético.

É nesse sentido que se fundamenta a importância da mediação cultural. Ela é o locus da produção do conhecimento, ou seja, da cognoscibilidade. Ela não se encontra fora, não está em nenhum outro lugar senão no mundo “concreto” da linguagem.

O mundo da linguagem envolve o ser humano a partir do primeiro momento em que se dirige o seu olhar para ele, apre- sentando-se-lhe com a mesma determinação, necessidade e “objetividade” que definem o seu encontro com o mundo das coisas.25

E no espaço da mediação cultural, portanto, que se elabora o método de acesso à experiência de fé. E ela que atende à necessi­dade/desafio dessa experiência. O discurso sistemático que se há de fazer não corresponderá à experiência de fé em toda a sua extensão. Antes, apresentar-se-á dessa ou daquela forma, com base na me­diação cultural utilizada no processo de elaboração. Desse modo, a mediação cultural é a parteira que arranca das entranhas da ex­periência de fé aquilo que virá a ser discurso sistemático.

Esse processo maiêutico, realizado pela mediação cultural, dá-se

eminentemente no campo da palavra que, na visão de Cassirer,

25 Ernst C assirer, Filosofia das formas simbólicas, p. 80.

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“não é uma designação e denominação, não é, tampouco, um sím­bolo espiritual do ser, e sim uma parte real do mesmo”.26

A linguagem que permite a mediação cultural não é outra se­não a nossa — a linguagem dos homens e mulheres de existência concreta, condutora de suas utopias e, portanto, carregada de his­tórias e ideologias e vazada de esperanças. E por esse instrumento que, nas características apresentadas, encontra sua concretude, que a necessidade/desafio da experiência de fé ganha seu corpus dou­trinário.

Pela linguagem, chegamos à realidade, abrimo-nos ao mun­do, mesmo já antes de toda elaboração teórica expressa; esta pré-compreensão lingüística, pela qual o mundo se nos torna acessível, nos surge categorial, articulado, não como mera soma de objetos, mas ligado logicamente em “classes”, “gêneros”, “espécies” [...], é prolongada, depois, com maior aprofunda­mento teórico, pela ciência.27

Diz ainda Amado que “a linguagem do homem é enérgeia [W von Humboldt], isto é, força configuradora e estruturante; não se limita a pôr etiquetas em seres situados no mundo já constituído; toda a linguagem constitui um mundo, é cosmovisão”.28

É, portanto, fundamental perceber que a linguagem — e, por conseguinte, a mediação cultural — não é um simples apetrecho (destinado ao campo da oratória) do discurso teológico, e sim a chave hermenêutica para compreendê-lo, pois é em sua dimensão e domínio que se elabora o método que o possibilita.

Assim como é importante dizer que a mediação cultural efeti­

vada pela linguagem não pode ser relegada a uma dimensão se­

26 Filosofia das formas simbólicas, p. 80.27 João Amado, O prazer de pensar, p. 24.28 Idem, ibidem, p. 24.

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cundária do processo de produção do discurso teológico,29 deve-

se principalmente, no que diz respeito à relevância, apontar para sua centralidade. Se os elementos concretos — homens e mulhe­res — não forem respeitados e protagonizados, constituindo um

método que contemple essa concretude, o discurso teológico

caracterizado aqui como sistemático não comunicará sentido exis­tencial algum.

É nesse sentido que se funda e sustenta a importância da me­diação cultural. Se ela for considerada em sua centralidade, ou

seja, se no processo de construção do discurso teológico a media­ção cultural for levada a sério (e isso se dá na medida em que se propõe uma aproximação com os sujeitos históricos, a quem se dirige esse discurso, para compreender o conjunto de elementos que compõe seu horizonte existencial e, a partir daí, perceber qual

matriz dessa mediação deve ser instrumentalizada), então o dis­curso teológico mostrará sua relevância.

O grande desafio que se propõe à teologia e ao discurso que a quer comunicar é o de anunciar a homens e mulheres concretos, não à humanidade como categoria universal e genérica, aquilo que se mostra de forma hierofânica e indizível. O desafio não con­siste apenas em comunicar esse fato, o que já seria complexo, mas comunicá-lo na dimensão do horizonte existencial daquele e da­quela que constituem sujeitos históricos desse processo, dos que habitam um mundo particular.

M Embora pareça claro que o discurso teológico náo possa prescindir da cultu­ra como instância que promove mediação com base na linguagem (em determinada linguagem), permitindo assim seus postulados, isso não se verifica no caso da teologia sistemática manualista. O que se pode perceber é a cristalização de uma mediação cultural (a metafísica) que impede qual­quer outra. Dessa forma, o arco de elementos que compõe o horizonte existencial de homens e mulheres concretos não é identificado no interior desse discurso.

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Seja qual for a natureza do mundo, o problema essencial que levanta a relação cognitiva sob o aspecto do objeto conheci­do é o da probabilidade de transcrição cognitiva, da transforma­ção do objeto a conhecer em objeto conhecido. Como é que o que existe se pode tomar no que é conhecido? Trata-se do pro­blema da expressão — em palavras ou outros elementos cognitivos — do que é cognoscível ou conhecido. Pretende-se aqui elucidar a intuição ideal da adequação entre coisas e palavras, intuição que funda a possibilidade de toda a situação cognitiva.30

Por causa dessa complexidade, a preocupação com a escolha da

mediação cultural31 correspondente a cada horizonte existencial deve ser companheira inalienável de todo processo de produção

do discurso teológico. Forte comenta:

Por isso a consciência teológica mais esclarecida não usa a hermenêutica histórica como uma espécie de chave onicom- preensiva: ela se mantém discreta diante da excedência do Mistério e da irredutível variedade da história real. A razão teológica, então, só pode ser uma “razão aberta” [Walter Kasper], sempre posta em xeque pelas contradições da vida e sempre em busca da luz que a revelação de Deus em Jesus Cristo lança sobre ela.32

30 João A m a d o , op. cit., p.26.31 Em seu livro Teoria do método teológico, Clodovis Boff fala das possibilidades

de mediação cultural para a teologia. A primeira delas é a filosofia, que tem como funções concretas: ser parceira exigente do diálogo cultural, exercitar a arte de pensar e trabalhar o fundo filosófico implicado na teologia. Com a autonomia que as demais ciências tiveram em relação à filosofia no iluminismo, a teologia ganhou outras possibilidades de mediação. Entre tantas outras possíveis (psicologia, psicanálise, lingüística, economia, antro­pologia etc.), Boff aponta para as ciências sociais, em razão de sua ampla utilização na teologia latino-americana (p. 371-82).

32 Teologia em diálogo, p. 33.

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Tomando rumo semelhante, Libânio aponta para a necessidade de historicizar a mediação cultural e o método dela derivado:

As teologias escolástica e moderna deslizavam sobre trilhos epistemológicos e metodológicos bem plantados pela comuni­dade teológica. Hoje se desafia o teólogo a forjar seus trilhos e a encontrar novos dormentes em que prendê-los. Se o risco de errar cresce, o fascínio da aventura entusiasma.33

Trata-se, como diz Libânio, de um desafio para a comunidade cristã, em que “a comunidade na pessoa do teólogo cria a teologia, e a teologia, por sua vez, cria a comunidade com sua linguagem”.34

Esse desafio de criação e recriação do discurso e da própria comu­nidade é também analisado por Leonardo Boff a partir de três momentos em que a linguagem tenta sistematizar a experiência de fé. O primeiro momento é denominado “saber-imanência-iden- tificação”.35 Nele, “a palavra está a serviço do que experimenta­

mos de Deus. Fixamos uma representação. Inicialmente não temos ainda consciência de que se trata apenas de uma representação

daquilo que não pode ser representado” .36É o que se tem chamado aqui “cristalização de uma mediação

ou linguagem”, em que

Deus é identificado com os conceitos que dele fazemos. Ele habita nossos conceitos e nossas linguagens. Elabora­mos doutrinas sobre Deus e sobre o mundo divino, doutri­nas que se encontram nos vários credos e nos catecismos. Com tal procedimento tentamos encher de sentido último e

33 Introdução à teologia, p. 33.34 Idem, ibidem, p. 73.35 Experimentar Deus, p. 13.36 Idem, ibidem, p. 13.

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pleno nossa vida. Deus pode ser encontrado na intimidade do coração.37

O segundo momento, que Boff denomina “não-saber-trans- cendência-desidentificação”,38 é caracterizado quando, pela expe­riência de Deus, damo-nos conta da insuficiência de todas as imagens de Deus. Tudo que dele dizemos é figurativo, simbólico. Ele está além de todo o nome e desborda de todo conceito.

Esse momento pode ser identificado com o que aqui se tem dito acerca da necessidade de percepção do horizonte existencial ao qual se dirige o discurso teológico. À medida que se consegue essa percepção, relativiza-se um discurso monossêmico, que iden­tifica o objeto da experiência de fé com o discurso dela derivado. O que decorre disso é o que, no dizer de Boff,

pode surgir uma teologia da morte de Deus: decreta a morte de todas as palavras referidas ao divino, porque elas mais es­condem do que comunicam Deus. Não sabemos mais nada; desidentificamos Deus das coisas que dizemos dele. Por aí entendemos o lema dos mestres zen: “Se encontrares Buda, mata-o”. Se encontrares Buda, não é o Buda — é apenas sua imagem. Mata a imagem para estares livres para o encontro com o verdadeiro Buda.39

Logo após esse momento transitório de relativização do dis­curso teológico cristalizado, Boff comenta:

Num terceiro momento da experiência de Deus, reabilita­mos as imagens de Deus. Após tê-las afirmado (A), tê-las nega­do (B), agora criticamente nos reconciliamos com elas.

37 Boff, Experimentar Deus, p. 13.38 Idem, ibidem, p. 14.39 Idem, ibidem, p. 15.

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Assumimo-las como imagens e não mais como a própria identi­ficação de Deus. Compreendemos que nosso acesso a Deus só pode ser feito através das imagens. Começamos a saboreá-las porque estamos livres diante delas. Elas são andaimes, não a construção, e as acolhemos como andaimes.40

Com base nessa41 e nas demais contribuições, pode-se afirmar que é no espaço da mediação cultural que os métodos são criados — andaimes ou pontes que possibilitam falar o indizível da expe­riência de fé42 para atender ao imperativo da necessidade/desafio que dela se deriva.

Isso revela, ao mesmo tempo, a centralidade da mediação cul­tural na gestação do núcleo da teologia, isto é, da fé cognosci- bilizada, e o caráter do discurso sistemático, que não pode mais ser considerado nem apologeticamente defendido como depósito das verdades fundamentais, mas como produto de “uma reflexão” sobre a experiência de fé.

Discurso sistemático como produto de uma reflexão sobre a experiência de fé

Enfim, a experiência de fé com sua necessidade/desafio, cultural­mente mediada e cognoscibilizada por meio dos veículos lingüísticos,

40 B o ff , Experimentar Deus, p. 15-6, p. 15-6.41 Os três momentos da linguagem do discurso teológico apontados por Leo­

nardo Boff em Experimentar Deus sintetizam, de alguma forma, nosso pon­to de vista. Até aqui, já se tentou evidenciar o ponto A: identificação do discurso com a totalidade do sagrado; o ponto B: a necessidade de relativizar essa identificação a fim de permitir outras aproximações e mediações; o ponto C, que trata da conciliação com a linguagem em dimensão múltipla, constitui o tema do terceiro e último capítulo desta obra.

42 Prefere-se aqui a expressão “experiência de fé”, e não “experiência de Deus”, dado o ponto de vista que defendemos, que a circunscreve no campo do método, buscando dessa forma distanciar-se ao máximo de expressões e conceitos que a aproximem dos conteúdos.

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constitui um discurso sistemático. O núcleo da teologia está com­

pleto. Já é possível identificá-lo como fé cognoscibilizada.O discurso sistemático compreende o indizível cognosci-

bilizado. Ele é o produto da reflexão sobre a experiência de fé, mediado pelo conjunto de signos e símbolos capazes de comuni­car sentido ao horizonte existencial das comunidades em que se deram as experiências. É um produto social que só tem relevância à medida que efetivamente consegue manter uma relação dialogai com a comunidade de homens e mulheres concretos. E, portan­to, um elemento no processo nuclear da teologia, que precisa ser­vir à sua retroalimentação.

Uma vez constituído, o discurso sistemático sofre o risco da própria natureza, ou seja, de sua condição sistematizadora.43 Esse risco consiste em sua identificação como uma peça acabada capaz de comunicar sentido para além das fronteiras da cultura que o gerou. Ao abrigar em seu interior um sistema, esse discurso pode acabar servindo apenas de instrumento sistemático, ou seja, de seu reprodutor, iniciando assim um círculo44 que acaba por ex­cluir tanto a experiência de fé originária quanto qualquer outra mediação cultural.

Refletindo sobre essa questão na dimensão da história da teo­logia, Forte indica dois extremos possíveis ao discurso teológico.

43 Segundo Abbagnano, sistema é “uma totalidade dedutiva de discurso. Essa palavra [...] foi empregada para indicar o conjunto de premissas, e passou a ser usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado de­dutivamente, ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes deri­vam umas das outras [...] segundo Wolff: chama-se de sistema um conjunto de verdades ligadas entre si e com seus princípios” (op. cit., p. 908).

44 Esse círculo pode ser compreendido como virtuoso ou vicioso. Na perspec­tiva da teologia sistemática universalizante, aquela dos manuais, ele é virtuoso à medida que permite ser dito para além de qualquer fronteira. Em nossa perspectiva ele é vicioso, exatamente porque nega o processo do qual faz parte, como um produto.

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O primeiro ele denomina “sedução idealista”45 e afirma que “não faltaram reconstruções guiadas por teses preconcebidas, cujo sa­

bor se pode sentir até em algumas sínteses com forte acento manualista e dogmático, em que o propósito sistemático prevale­

ce sobre a complexidade do dado histórico”.46O segundo extremo ele identifica como “renúncia positiva”,47

na qual a “historicidade da revelação e de sua transmissão resisti­

ria de tal forma a toda interpretação totalizante (v. Glossário, abor­dagem totalizante-universaliante) , que nenhuma reconstrução

interpretativa se veria isenta de riscos ideológicos”.48Para além desses extremos, Forte propõe outra abordagem, que

ele denomina “narrativo-argumentativa”.49

E a escolha de uma narrativa crítica, consciente dos pró­prios limites, não-ingênua, não-positivista, não-fundada sobre a ilusória pretensão de chegar a atingir os dados como bruta facta, mas que nem por isso renuncia à possibilidade de mo­ver-se em um horizonte de historicidade aberta, não redutível ao sistema.50

Ele prossegue:

O acento mais histórico que sistemático comporta a re­núncia de teses interpretativas totalizantes, a escolha de frag­mentos, o caráter de uma narratividade pensante, quase modesta, porém não isolada da individuação de linhas

45 Forte, Teologia em diálogo., p. 24.46 Idem, ibidem, p.24.47 Idem, ibidem, p. 24.48 Idem, ibidem, p. 24.49 Idem, ibidem, p. 25.50 Idem, ibidem, p. 25.

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unificantes, capazes de propor horizontes interpretativos não- coercitivos, aptos a conferir sentido.51

A necessidade de abdicar de sistemas totalizantes (ou univer-

salizantes) mostra-se cada vez mais urgente em nossa época, que

“se caracteriza por uma suspeita geral contra todos os discursos

que tentam traduzir o definitivamente importante e o radical­

mente decisivo da vida humana”.52

Contribuição importante à tarefa de renunciar aos discursos

totalizantes, no que diz respeito a afirmar cada vez mais a centra-

lidade da mediação cultural no discurso teológico, obtemos de

GefFré, quando afirma que é “paradoxal que os textos da revelação

possam ser objeto de uma interpretação e que não temos a mesma

liberdade de interpretar os textos da tradição dogmática”.53A partir disso, ele propõe, quanto a relativizar o discurso sistemá­

tico que se volta contra a sua condição de construto social, só possível na dependência de uma mediação cultural, ele propõe uma ação hermenêutica sobre o sistema teológico que lhe devolva as fronteiras histórico-culturais e imponha-lhe sua condição de precariedade.

A ação hermenêutica proposta por Geflfré deve observar um conjunto de regras. A primeira registra que “para compreender o alcance de um enunciado dogmático é preciso forjar a situação hermenêutica correta que é determinada pelo jogo da pergunta e da resposta” .54 Nesse sentido, ele chama a atenção para a afirma­ção de que “uma definição dogmática só pode ser compreendida em relação com a questão histórica que a provocou”.55

51 F o r te , Teologia em diálogo, p. 25.52 Leonardo B o ff , Experimentar Deus, p. 20.53 G effrÉ , Crer e interpretar, p. 65.54 Idem, ibidem, p. 69-70.55 Idem, ibidem, p. 70.

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A segunda regra determina que as definições dogmáticas “de­

vem ser lidas à luz de nossa leitura crítica da escritura” .56 Dessa

forma, o discurso sistemático deve ser submetido ao texto funda­

dor da experiência cristã de fé.

Na terceira regra afirma que as definições dogmáticas “devem

ser interpretadas à luz do aspecto de correlação crítica entre a

experiência cristã fundamental e nossas experiências humanas de

hoje”.57 Novas experiências, mediadas por novos signos e símbo­

los, devem produzir um novo discurso sistemático. Esse processo,

porém, não se deve dar à revelia da experiência fundadora de fé.

Ele assinala em sua última regra: “Em alguns casos, a reinter-

pretação de um enunciado dogmático pode levar a uma refor­

mulação”.58 Vê-se claramente, portanto, a necessidade de indicar

o papel do discurso sistemático no núcleo da teologia, o qual não pode ser considerado um fim em si mesmo.

Embora tenha sido discutido até aqui o que é o núcleo teológi­

co em seus elementos constituintes, é necessário ainda perceber

como foi distorcido na teologia sistemático-dogmática manualista de tendência universalizante. E, ainda, perceber como a metafísica contribuiu para esse processo.

Abordagem totalizante-universalizante como cristalização de uma mediação cultural

Em nosso ponto de vista, como já dissemos, a metafísica não é o ponto fundamental. Nosso propósito é o de compreender como ela se estabeleceu de início como mediação cultural59 e posterior­

56 G effré, Crer e interpretar, p. 72.57 Idem, ibidem, p. 74.58 Idem, ibidem, p. 77.59 Esse tópico foi trabalhado no capítulo 1.

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mente como método perene. Ou seja, importa-nos perceber o processo de cristalização da mediação cultural e sua potencialização ao status de norma prescritiva (v. Glossário).

Como discutimos no tópico anterior, a mediação cultural é o locus metodológico, o espaço próprio para a elaboração de méto­dos que tornem comunicável a experiência de fé no horizonte exis­tencial concreto. O fator determinante, portanto, é o horizonte existencial onde se dá essa experiência. Ela deve contar com a mediação cultural mais adequada à tarefa de responder à necessi­dade/desafio derivada de si mesma. É somente nesse sentido que se legitima a relevância do método.

O método deve estar, portanto, a serviço do discurso teológi­co, para permitir que se realize a cognoscibilização da fé (v. Glossá­rio). Ou seja, que a experiência de fé tenha na mediação cultural um veículo capaz de se aproximar do horizonte existencial com­pleto de cada comunidade, em qualquer tempo histórico-cultural, para que o discurso sistemático construído nesse espaço seja rele­vante a essa comunidade.

O que se percebe, portanto, é que o discurso teológico em geral e o sistemático-dogmático em particular, por vezes, não con­seguem concretizar essa relevância. A respeito da teologia siste­mática, há mesmo um ataque à sua condição estéril e ao seu caminho meramente reprodutor e apologético. A respeito dessa esterilidade na periferia do mundo,60 Hebga argumenta:

Os padres elaboraram sua teologia com base principalmen­te nas categorias da filosofia neoplatônica. Santo Tomás ser­

60 O teólogo Meinrad Hebga é engajado numa reflexão teológica que preten­de romper com o padrão metodológico ocidental e, com isso, permitir que as culturas locais de terceiro mundo, até então não valorizadas, possam mediar as experiências de fé que delas emerjam. Seu ministério é desenvol­vido no continente africano.

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viu-se do aristotelismo. Aos concílios e papas só restava seguir um caminho totalmente traçado. A fé cristã passaria a expri­mir-se em termos greco-escolásticos fora dos quais sua orto­doxia não é garantida [...] Excluindo-se o bruto do Novo Testamento, a fé cristã se anuncia obrigatoriamente nos con­ceitos do pensamento ocidental.61

Ele prossegue:

Teria Deus, de fato, condenado a massa de nossos irmãos cristãos a repetir mecanicamente palavras e fórmulas estra­nhas a seu universo de pensamento, interpretadas para eles pelos poucos teólogos desculturados e ocidentalizados? É nisto que está a boa nova.62

O discurso teológico que encontrava relevância no próprio horizonte cultural passa a determinar, como norma prescritiva, toda reflexão posterior.

Mesmo no terceiro milênio, a atitude do cristianismo ofi­cial continua ambígua: por demais universalista nas palavras, mostra-se nos fatos de um particularismo monopolista estreito e intransigente. A judaização forçada foi esvaziada de autori­dade pelo Espírito Santo e pelos apóstolos. Quem nos salvará do ocidentalismo filosófico, jurídico e cultural erigido em ca­minho providencial único para a salvação em Jesus Cristo?63

Respondendo às próprias questões, Hebga propõe a necessidade

de um método teológico original que se desvie das teologias clás­

61 H ebga, Da generalização de um particular triunfante à procura da univer­salidade, in: Concilium 191, p. 73.

62 Idem, ibidem, p. 73.63 Idem, ibidem, p. 73.

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sicas,64 em razão do comprometimento destas com o universo cultural e filosófico europeus.65 Ele conclui qüe “as teologias clás­sicas não são suficientemente abertas para abraçar as nossas pro­blemáticas específicas”.66

Hebga, portanto, considera o discurso teológico clássico67 um discurso totalizante e universalizante de uma mediação cultural que, cristalizada, ascende a uma condição supra-histórica da qual consegue normatizar qualquer outra reflexão teológica. Esse pro­cesso sobrevive porque tal cristalização/ascensão significa a mono- polização de um método, a qual, por sua vez, significa a negação da dignidade da cultura do outro — e, por conseguinte, a nega­ção da dignidade do próprio outro, que não consegue enxergar-se naquele discurso teológico que pretende representá-lo.

Para evidenciar esse processo de cristalização e propor uma abordagem metodológica capaz de superá-lo, é fundamental compreender seu mecanismo de afirmação e sobrevivência — desde seu primeiro passo para desistoricizar a mediação cultu­ral até a implementação de mecanismos de controle do discur­

so teológico.

Desistoricização do discurso teológico

O primeiro passo para a cristalização de uma mediação cultu­

ral é a desistoricização (v. Glossário) do discurso teológico. Impor­ta aqui compreender esse processo em sua instância originante,

aquela que possibilitaria o discurso teológico sistemático unívoco

64 H ebga, Da generalização..., ibidem, p. 78.65 Idem, ibidem, p. 78.66 Idem, ibidem, p. 78.G7 Por “teologia clássica” entende-se a reflexão que compõe o deposito fidei,

produzida nos primeiros séculos da era cristã pelos pais da Igreja. Essareflexão é ratificada pelos concílios eclesiásticos dos primeiros seis séculos.

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e na qual este buscaria a legitimidade, como quem no passado encontra a razão de sua ação presente.68

A desistoricização consiste em anular a atualização da media­ção cultural, para identificar “aquela” mediação cultural como de­finitiva. Há, portanto, na raiz desse processo, o desejo univocizante de identificação de um método que permita a proclamação de um discurso, o qual, por sua vez, possa ser controlado por uma insti­tuição. A desistoricização serve, portanto, à hierarquização univocizante da fala e, em decorrência disso, do poder que dela emana.

Esse processo encerra inúmeras dimensões de poder além do teológico, principalmente porque se identificam, no interior de uma comunidade, aquelas pessoas, que podem acessar aquele dis­curso sobre aquele Deus. Essa dinâmica pessoa-discurso-Deus, uma vez acessada, tem como contrapartida uma dinâmica de res­posta Deus-discurso-pessoa. Isso cria uma estrutura necessária que, por sua vez, estabelece a impossibilidade de qualquer ação autô­noma, tanto na dimensão hermenêutica quanto, posteriormente, na política.

Nesse sentido, a univocizaçao do discurso teológico exerce um papel pedagógico num projeto de poder, pois é a dimensão da experiência de fé que consegue mobilizar as forças mais radicais do homem e da mulher. Se a univocidade já é afirmada no objeto dessa experiência, tudo que partir dela também o será.

A contribuição da metafísica para esse processo é enorme, pois

ela, em primeiro lugar, identifica o objeto da experiência de fé,

68 O processo de desistoricização do discurso teológico é analisado com relação ao período do encontro da religião cristã com o mundo helênico, sobretudo com a metafísica. Esse processo aconteceu outras vezes no interior do dis­curso teológico-cristão (e ainda acontece), mas sua matriz para o corte siste­mático do discurso teológico foi criada naquele momento.

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que é Deus, para além de toda multiplicidade, a qual, por sua

vez, é condenada como má. Em segundo lugar, em nome da con­

denação da multiplicidade, a metafísica cria uma coisa chamada

“essência”, que se superpõe a toda existência concreta. O Deus

uno e transcendente ilumina algumas pessoas para fazer cumprir

sua vontade circunscrita em seu discurso.

O risco dessa desistoricização é percebido por Cassirer, nos

seguintes termos:

O Ser Uno ao qual se apega o pensamento, e do qual este parece não poder desistir sem destruir a própria forma, afasta- se mais e mais do terreno do conhecimento. Ele se torna um mero x que, quanto mais proclama categoricamente a sua uni­dade metafísica como “coisa em si”, tanto mais se subtrai a toda e qualquer possibilidade de conhecimento, até finalmente ser relegado por completo aos domínios do incognoscível.®

Na observação de Cassirer, o que está em risco no processo é o que aqui se compreende como a própria experiência de fé. A transcendentalização absoluta do divino impede as experiências renovadas e identifica o espaço do discurso sistemático como locus para elas. O discurso sistemático, porém, não cumpre esse papel: ele é construto cultural baseado na experiência.

Boff também discute a questão: “Deus transcendente é repre­sentado como o Deus acima do mundo e, o que é pior, fora do mundo [...] Representado como totalmente fora do mundo, Deus de fato não seria experimentável” .70 E conclui: “Esse Deus está muito próximo do Deus do deísmo [...] Não é um Deus que se abaixa com profunda simpatia para com o ser humano. Não assu­

69 Filosofia das formas simbólicas, p. 17.70 Op. cit., p. 24.

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me a nadidade humana. Mas conserva, contrariamente ao que diz Paulo [v. Fp 2.6,7], uma majestática e transcendente divindade” .71

Fazendo um balanço da aproximação da religião cristã com a cultura helênica, Segundo chega às seguintes conclusões:

E claro que nem tudo é positivo nesse diálogo e que a teo­logia de nosso tempo destaca, uma e outra vez, de forma mais ou menos equilibrada, os aspectos negativos da inculturação da teologia cristã nas categorias de pensamento grego. De fato, temos que admitir que tudo estava longe de ser perfeito ou ao menos positivo, nesse mundo helênico com o qual a Igreja dialoga, na época patrística [...] na raiz do vazio cultural pro­duzido pela queda do Império Romano sob os bárbaros, o mundo mental helênico domina, durante muitos séculos, as elites do saber na cristandade e, conseqüentemente, sua con­cepção do dogma. E, por conseguinte, qual devia ser a autori­dade encarregada de mantê-lo e ensiná-lo.72

Após apontar para a influência desistoricizante que as catego­rias de pensamento grego exerceram sobre a teologia cristã, Se­gundo conclui:

Mesmo em plena idade moderna, o desejo de salvaguardar a cristandade ou mundo cristão leva a Igreja a aferrar-se a formas de pensar que, se já não são plenamente helênicas, são incapazes de compreender a crescente problemática da cultura do último meio milênio.73

Vale a pena levar Segundo em consideração, quando afirma que as categorias de pensamento já não são mais “plenamente

71 Idem, ibidem, p. 24-5.72 O dogma que liberta, p. 248.73 Idem, ibidem, p. 248.

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helênicas” , porém o que se afirma perenemente é a maneira de compreender a realidade, advinda dessas categorias. A lógica da

metafísica permanece com muito vigor no discurso teológico- cristao, sobretudo em seu corte sistemático, como percebem Croatto e Bonino:

A helenizaçáo da mensagem bíblica nos fez brincar muito com o “outro mundo”, entendido como o reino do que é imor­tal e descarnado, e a salvação de todos os males deste mundo. As coisas se resolverão depois. Porém em um universo que nada tem a ver com o presente.74

Essa maneira de compreender a realidade é, a um só tempo, o resultado da desistoricização do discurso teológico e seu instru­mento perpetuador. E uma questão séria que se circunscreve na dimensão da linguagem teológica75 e que deve ser tratada no âmbito da teologia crítica, como afirma Teixeira: “O exercício teo­lógico não pode ocorrer senão como razão crítica, caso contrário se desvia em discurso ortodoxo oficial, pontuado pela transcen- dentalização, ideologização e falsificação”.76 Deve haver “um tra­balho hermenêutico, que rompe com toda e qualquer possibilidade de dogmatização da teologia”.77

74 Alberto Fernando Roldán, Para que serve a teologia?, p. 44.75 Andrés Torres Queiruga, em O fim do cristianismo pré-moderno, enfrenta

esse problema com base em três questões fundamentais: a primeira, de caráter estrutural quanto à dificuldade constitutiva de toda linguagem mundana para expressar o não mundano; a segunda, na dimensão da mu­dança de paradigma, dentro da qual a revolução cultural produzida pela modernidade deve ser levada a sério; a terceira, de índole mais vivencial, alude às dificuldades e resistências que uma expressão adequada da vivência religiosa encontra (p. 71-104).

76 O lugar da teologia na(s) ciência(s) da religião, in: A(s) ciência(s) da religião no Brasil, p. 303.

77 Idem, ibidem, p. 303.

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Após perceber as possíveis conseqüências do processo de desistoricização do discurso teológico, é necessária uma aproxi­mação mais detida a seu interior, a fim de perceber como efetiva­mente se dá essa desistoricização em suas etapas constituintes, a saber: ascensão, potencialização e evocação. Para tanto, observe-se

o seguinte diagrama:

A MEDIAÇÃO CULTURAL

O processo de desistoricização do discurso teológico reprodu­zido pela teologia sistemática manualista (v. Glossário, manualística)

tem seu primeiro movimento na ascensão de uma mediação cul­tural, que a forma normatizante.

Isso se deu fundamentalmente no caso da metafísica. Ela sig­nificava naquele momento, como categoria do pensamento helênico, um elemento importante da cultura que constituía o ethos do cristianismo em sua fase de expansão. Dialogar com o pensamento helênico em geral e com a metafísica em particular era um passo importante para tornar cognoscibilizada a experiên­cia cristã de fé, a fim de apresentá-la em discurso sistemático rele­vante ao horizonte existencial daquela cultura.78

78 Há intensa discussão sobre a legitimidade da helenização da mensagem cristã. Para nós, porém, cabe evidenciar que a helenização cumpriu um papel

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É exatamente nesse sentido quê Tillich ressalta a importância

da teologia apologética dos primeiros séculos do cristianismo.79

Ela representava precisamente o esforço para dialogar com a cul­

tura, para encontrar uma “base comum”80 capaz de tornar com­

preensível a mensagem cristã. Ele afirma que “o movimento

apologético pode ser corretamente considerado o nascedouro de

uma teologia cristã mais elaborada” .8'

A forma de compreender a realidade própria da metafísica

transformou-se, no entanto, em impossibilidade de diálogo com

outras culturas. A verdade teológica, na dimensão da mediação

metafísica era exterior aos homens e mulheres e à própria existên­

cia concreta: era o resultado de um processo de iluminação. Essa

verdade, uma vez revelada, foi sistematizada, devendo agora ser

aceita sem críticas, em nome da defesa da ortodoxia.

N a dimensão da mediação metafísica, não há espaço para a

multiplicidade, já que ela constitui o não-ser. No múltiplo,

não há verdade, somente opiniões instauradoras de pluralis­

mo, que não combina com o discurso ortodoxo, por ser pró­prio da heresia.

Se a verdade não pode ser encontrada na multiplicidade, que

corresponde à existência concreta, deve ser buscada para além dela,

numa dimensão das essências, onde habitam os conceitos unívocos

capazes de transmitir sentido a todo o múltiplo.

dialético com o cristianismo e a cultura que lhe era própria e a qual queria alcançar com sua mensagem. Não se critica, portanto, a helenização ou metafisicização (v. Glossário) da mensagem cristã naquele tempo para aque­la cultura, e sim a cristalização daquela mediação cultural e sua ascensão ao status de norma prescritiva.

79 V. nota 67.80 Teologia sistemática, p. 15-6.81 História do pensamento cristão, p. 44.

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Esse foi — e ainda é — o risco que correu a teologia na utiliza­

ção das mediações culturais, acentuado na teologia dogmática clás­

sica na medida em que a metafísica ascendeu de sua condição de

mediação cultural ao status de norma prescritiva. Talvez o proble­

ma fundamental desse processo tenha sido a falta de consciência

quanto à limitação e precariedade de uma mediação, que só ofere­

ce relevância como elemento lingüístico compartilhado no hori­

zonte existencial da comunidade em que se dá esse processo.Com base na ascensão da metafísica, que privilegia o unívoco

em detrimento do equívoco, como norma prescritiva do discurso

teológico dogmático clássico, a teologia sistemática fundamenta

seu discurso universalizante, num processo dedutivo e univoci­

zante. Isso está na própria compreensão do sistema82 como con­

junto harmônico e harmonizador dos temas da fé e das experiências

dela decorrentes.Essa verdade teológica, por não estar na multiplicidade das

culturas, só pode ser expressa numa perspectiva universalizante, pois não constitui espaços epistemológicos legítimos. Dessa for­ma, dizer univocamente o discurso teológico é uma forma — ou a forma — de defender a verdade quanto aos temas da fé que cons­tituem basicamente a realidade total. Boff adverte sobre a arbitra­

riedade desse processo:

Nenhuma tendência pode monopolizar a teologia e se apre­sentar como a teologia. Em todo o dito está o não-dito. A razão (também a teológica) é finita. Por conseqüência, nenhu­ma geração de cristãos pode colocar e resolver todas as ques­tões apresentadas pela fé. Disto decorre que cada tendência teológica deve conhecer seu alcance e principalmente seus li­

82 V. nota 43.

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mites [...] Deve também estar aberta a acolher outras formas de sistematizar a fé.83

A questão, portanto, não se limita aos sistemas totalizantes e

universalizantes: ela vai além, tocando a própria compreensão do que seja ortodoxo. Quando uma mediação ganha status de norma

prescritiva, um discurso é identificado como o único verdadeiro, condenando todos os outros à condição marginal de heresia. Pelo menos por agora é possível concordar com Roldán, quando afir­ma que

é legítimo e até necessário que sistematizemos nossa fé, mas devemos estar conscientes de dois fatos: as influências filosófi­cas, sociológicas e culturais nessas sistematizações, e a nature­za revisável da tarefa. Do contrário, em uma espécie de reductio ad absurdum, diríamos que a teologia seria um fato acabado, somente se trataria de adquirir e estudar determinado tratado teológico. O problema estaria, nesse caso, em determinar qual seria o tratado teológico definitivo e irreversível.84

O segundo movimento do processo de desistoricização do dis­curso teológico é a potencialização que a mediação cultural sofre após ascender. Uma vez promovida a norma prescritiva, a desis­toricização é potencializada tanto do ponto de vista da autoridade quanto do alcance.

N a perspectiva da autoridade, a potencialização gera um desnivelamento fundamental na relação locutor-ouvinte.85

83 Igreja, carisma epoder, p. 36.84 Para que serve a teologia?, p. 49.85 Eni Orlandi discute essa questão no livro, A linguagem e seu funcionamento:

as formas do discurso, principalmente quando trata do discurso religioso e teológico.

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O locutor é quem geralmente manipula o método de acesso ao

discurso: encontra-se no plano espiritual, enquanto o ouvinte está

no plano temporal.A fala do locutor é revestida de autoridade porque seu discurso

não é seu nem de homens e mulheres históricos e culturais: perten­

ce a outro espaço, distante dos horizontes culturais concretos. O locutor, por assim dizer, é o guardião do método, que não é mais

compreendido como passível de revisão, tampouco de reinvenção.Ao ouvinte cabe a tarefa de adequar o discurso à sua realidade,

mesmo que isso constitua uma violência. O discurso passa a ser a distância perene, devendo ser univocamente interpretado e dis­tribuído aos mais distintos ouvintes. Nisso consiste o nivelamento

locutor-ouvinte.Na perspectiva do alcance, o discurso teológico sistemático

reveste-se de capacidade totalizante e universalizante. Uma vez que ascendeu e potencializou-se, a mediação cultural produz um discurso que encerra em si a totalidade das respostas às questões ligadas à necessidade/desafio inerente à experiência de fé. Todas as respostas são dadas de forma apriorística e sistematizadas num manual. Tem-se, então, a teologia sistemática manualista.

Esse manual, que representa um discurso, tem alcance univer­sal.86 Independentemente do horizonte existencial concreto em que se encontrem os homens e mulheres cristãos, as respostas às suas questões já estão dadas. Isso ocorre porque a mediação crista­lizada entendia que tais respostas deviam ser dadas com base na essência das coisas, e não em sua existência concreta.

Após a ascensão e potencialização da mediação cultural, o últi­mo movimento do processo de desistoricização do discurso teoló­

86 Não se discute aqui a universalidade dos temas da fé. O que se pretende discutir é a pretensa universalidade de uma interpretação desses temas.

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gico é a evocação. Uma vez elevado à norma prescritiva, o méto­do correspondente à metafísica como mediação cultural é evoca­do, como dito, numa suposta onipotência e onipresença. Ele é

agora supra-histórico, e sua narrativa é, por assim dizer, meta- histórica.87

Na evocação, dá-se a legitimação das tendências totalizantes e universalizantes e, sem dúvida, fecha-se o círculo vicioso da

desistoricização do discurso teológico. Esta, por sua vez, altera fundamentalmente o núcleo da teologia, como se observa neste diagrama:

NORMA PRESCRITIVA

O que a teologia sistemática manualista fez em seu discurso, com a desistoricização ocorrida com a sublevação da metafísica, foi elevar uma mediação, transformando-a em norma prescritiva,

impossibilitando com isso novas mediações; fixar o discurso siste­mático, que deveria ser apenas o construto de um processo, sob forma de manual totalizante e universalizante; cercear, por conse­guinte, a instância da experiência de fé, que não encontra no tér­mino do processo (mediação cultural e discurso sistemático) os

87 Por meta-histórico queremos dizer “os valores eternos que a história tende a realizar e que constituíram sua estrutura ou plano providencial que a rege” (Nicola A bbagnano, Dicionário de filosofia, p. 667).

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mecanismos que a contemplem como protagonista ou que levem

a sério o imperativo de sua necessidade/desafio.88Resta, então, perceber os mecanismos de controle desse dis­

curso que possibilitam sua manutenção, tanto na dimensão da

academia, supostamente o círculo culto, quanto na catequese e na

liturgia das vivências eclesiásticas.

Mecanismos de controle do discurso teológico

Todo o processo de desistoricização do discurso teológico serve

a um propósito específico, que é o da afirmação da univocidade da verdade. Uma vez garantida essa univocidade, torna-se neces­sária ainda sua manutenção, ou seja, o controle de toda discursividade dissonante. Mas, como pergunta Foucault, “o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem? Onde, afinal, está o perigo?”.89

O perigo da discursividade dissonante em relação à univocidade é que esta se fundamenta sobre princípios lógicos, que excluem o contraditório. Qualquer fala diferente põe em xeque a fala unívoca, propondo-lhe um dilema: se aquela (esfera da diversidade) é cor­reta, esta (esfera da univocidade) é incorreta, portanto é necessá­rio provar que ela (diversidade) não está tão certa quanto se imagina. Sua proposição não é mais que falácia. Para isso, aplica-se o ins­trumento apologético que mede o discurso outro com base nos critérios internos do discurso unívoco. O resultado será possivel­mente a condenação daquele e sua identificação como heresia (dis­

88 Embora a dimensão do desafio (anunciar para reproduzir a experiência) seja largamente contemplada no corte teológico que sustenta a teologia sistemática manualista, a dimensão relegada à condição marginal é a da necessidade (dúvida, incredulidade existencial), que não é acolhida como possibilidade ao crente em geral, muito menos ao teólogo.

89 A ordem do discurso, p. 8.

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curso interditado). Foucault identifica esse processo no interior

das sociedades e afirma:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu aconteci­mento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.90

Do controle da discursividade dissonante depende o discurso unívoco. Por isso, desistoricizá-lo é tarefa importante, mas isso não é tudo. É preciso também estabelecer mecanismos de contro­le que consigam manter sua univocidade. Os mecanismos de con­trole operam a fim de evidenciar sua legitimidade e superioridade

diante de qualquer outro discurso.O filósofo francês classifica os mecanismos de controle do dis­

curso em três grupos de procedimento de exclusão. O primeiro trata de limitar os poderes com base nos instrumentos de inter­dição da palavra,91 segregação ou loucura92 e vontade de verda­

50 Foucault, A ordem do discurso, p. 8-9.91 Ele afirma: “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as

interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso — como a psicanálise nos mostrou — não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que — isto a história não cessa de nos ensinar — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (idem, ibidem, p. 10).

92 “Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemu­nhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo” (idem, ibidem, p. 10-1).

107

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de.93 O segundo dedica-se a dominar as aparições aleatórias ao discurso oficial; esse domínio sobre o aleatório ocorre na dimen­

são do comentário94 do autor95 e na organização das discipli­nas.96 O terceiro age buscando selecionar os sujeitos que falam

93 “Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia- se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedago­gia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios de outrora, os laboratórios de hoje. Mas ela é também reconduzida mais profundamente, sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser assunto das cidades demo­cráticas, pois ele ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desi­gualdade” (Focault, A ordem do discurso, ibidem, p. 17-8).

94 “Suponho, mas sem ter muita certeza, que não há sociedade onde não existam narrativas maiores que se contam, se repetem e se fazem variar; fórmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram, confor­me circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma vez e que se conser­vam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo ou uma riqueza” (idem, ibidem, p. 21-2).

95 “Creio que existe outro princípio de rarefação de um discurso que é, até certo ponto, complementar ao primeiro [comentário]. Trata-se do autor. O autor, não entendido, é claro, como indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discur­so, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerên­cia” (idem, ibidem, p. 26). “O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo. O próprio autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu".

96 “... mas sem pertencer a uma disciplina, uma proposição deve utilizar ins­trumentos conceituais ou técnicas de um tipo bem definido [...] Em resu­mo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declara­da verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, no verdadeiro” (idem, ibidem, p. 33-4).

108

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nos espaços do ritual,97 na sociedade do discurso,98 na doutrina99

e na apropriação social.100A teoria de Foucault sobre a análise do discurso é, sem dúvida,

bastante adequada à análise do discurso teológico sistemático. Pretende-se aqui, no entanto, contribuir com uma análise que não se limita a Foucault, mas que com base nele dialoga com

outras perspectivas de produção de mecanismos de controle do discurso sistemático.

Para tanto, é interessante analisar esses mecanismos em três representações presentes no interior do discurso teológico siste­mático, sobretudo o manualista. A primeira representação é o que aqui se identifica como “magistério protestante”101 ou, como chama

97 “O ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinados tipos de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de sig­nos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção” (Foucault, A ordem do discurso, ibidem, p. 39).

98 “... como forma de funcionar parcialmente distinta há as ‘sociedades de discurso’, cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estri­tas...” (idem, ibidem, p. 39).

99 “A doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam” (idem, ibidem, p. 43).

'00 “...a apropriação social dos discursos. Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (idem, ibidem, p. 43-4).

101 Na perspectiva da teologia católica, o termo “magistério” não precisa ser colocado entre aspas, visto que é um dos três elementos fidedignos ou competentes para a reflexão teológica. Bernard Sesboiié, em sua obra,

109

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Foucault, “sociedade de discurso” .102 Esse é, possivelmente, um dos mais potentes mecanismos de controle do discurso, exata­mente porque sua ação se dá, acima de tudo, naqueles que dese­jam estabelecer-se como agentes do discurso teológico.

Reforçar o discurso unívoco, confundido ou afirmado como ortodoxo, constitui um rito de passagem ao qual todo novo teólo­go deverá submeter-se se quiser ser identificado como tal. Pensan­do nas condições do agente do discurso diante da sociedade de discurso, Foucault elabora o seguinte diálogo:

O desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém”.103

O “magistério protestante” é, portanto, quem seleciona os agen­tes do discurso, que irão reproduzi-lo em sua dimensão totalizante e universalizante. Os agentes são pessoas concretas, porém o “ma­

O magistério em questão: autoridade, verdade e liberdade na igreja, trabalha amplamente essa questão. Na perspectiva protestante, porém, o magistério não é (oficialmente) reconhecido por causa do postulado da sola scriptura.

102 V. nota 98.103 ^ ordem do discurso, p. 7.

110

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gistério” não é o somatório dessas pessoas; antes, é a instituição-

guardiã do discurso unívoco. Ao ingressar nele, o agente deve abrir mão de sua condição concreta e de seu horizonte existencial, para reproduzir e defender aquela verdade que supostamente emanou

da essência das coisas.Identificar esse “magistério-sociedade” no interior da teologia

sistemática manualista protestante não é tarefa simples, sobretu­do porque ele não se localiza oficialmente num lugar, a não ser na

dimensão simbólica da linguagem.Mesmo não havendo uma instituição oficial que controle o

discurso — se houvesse, seria mais fácil um diálogo crítico — , existe o mecanismo que opera coercitivamente, afirmando que

“ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” .104

Uma segunda representação dos mecanismos de controle do dis­curso teológico é o que aqui se identifica como “sedução da continui­dade histórica”,105 como afirma Castro: “No ciclo vicioso de leituras des-historicizantes, a ideologia ressuscita ‘as verdades fundadoras’ toda vez que uma nova idéia ameaça a explicação até então vigente”.106

A pregação de uma linha histórica ininterrupta das “verdades fun­dadoras” até determinado grupo que a sustenta no presente (ortodo­xia) é, sem dúvida, um elemento importante de coerção no âmbito da produção do discurso. Quem gostaria ou mesmo ousaria colocar-

se à margem do “discurso original fundador”?107 Castro afirma:

104 Foucault, A ordem do discurso, ibidem, p. 37.105 Esse tema é estudado por Foucault como elemento de controle do discurso,

porém é Castro, em A sedução da imaginação terminal, quem identifica seu uso no discurso teológico, chamando-o “o mito da continuidade histórica” (p. 53-78).

106 A sedução da imaginação terminal, p. 57.107 Idem, ibidem, p. 60.

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A história da igreja se transformou [...] numa determinada maneira de dispor e expor “a verdade” já adquirida pela teolo­gia (da repetição) sistemática [...] Assim não há espaço para qualquer análise crítica, existindo tão-somente uma exposição de dados selecionados, decorrentes de uma configuração já dada.108

Juan Luis também analisa a questão naquilo que denomina

“uma suposta continuidade perfeita ou visível de coisas e concei­tos”.109 Ele identifica essa tendência no interior da ortodoxia ca­tólica, afirmando que ela

esforçou-se, por exemplo, em fazer pensar que o “Pedro” de quem falam os sinóticos e a quem Jesus falou é igual a uma autoridade em quem Jesus já pensava para ser seu vigário e “sucessor de Pedro”, que esse, por sua vez, é igual ao “bispo de Roma”; e, finalmente, que “bispo de Roma”, no século II, é igual a “sumo pontífice”, no século XX.110

Como se vê, busca-se uma linha histórica composta por uma sucessão de eventos arrumados ideologicamente, isto é, uma ca­deia (no sentido literal e metafórico) hermenêutica harmônica a sugerir que o que se diz hoje é o que se disse numa origem provi­denciada pela força da própria Divindade.

Há, portanto, duas questões complicadas nessa perspectiva. A primeira, sugere haver uma origem providenciada pela Divinda­de, e a segunda identifica a verdade com uma filosofia da história que exclui a dialética em nome de um todo harmônico. Castro adverte:

108 C a st r o , A sedução da imaginação terminal, ib idem , p . 69-70.105 O dogma que liberta..., p. 230.1,0 Idem, ibidem, p. 230.

112

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O campo discursivo opera-um deslocamento ideológico. Enquanto em nível do discurso se diz que o passado deve de­terminar o presente, em outro nível, o que fica evidente é que as determinações ocorrem precisamente de modo inverso. O presente determina seletivamente a leitura do passado.111

Também Segundo adverte e propõe uma perspectiva que julga

adequada:

A crítica histórica, no entanto, e em benefício da teologia [...] não pode fazer outra coisa senão trabalhar contra esses anacronismos radicalmente enganosos. E isso não pelo pruri­do de tirar autoridade do sumo pontífice, mas para dar-lhe a autoridade de vida, e pelas justas razões que a apoiam de ver­dade.112

E exatamente contra esse tipo de pensamento que a “sedução

da continuidade histórica” opera seu poder, o qual pode ser iden­

tificado como elemento harmonizador. A sedução dá-se na capa­

cidade de expor os temas da fé num todo harmônico e dedutivo, onde o fiel encontra um “porto seguro”, ao menos na superfície

do mar da fé, para sua prática religiosa. Desse elemento harmo­

nizador, fruto da harmonização arbitrária e anacrônica da Histó­

ria, depende o “magistério” e sua atividade apologética.

Esse elemento harmonizador constitui a terceira representação

dos mecanismos de controle do discurso teológico do sistema

manualista. É a “sedução da harmonia estética” que age em toda a

sua capacidade para promover o “bem-estar” que leva à estabili­

dade, como afirma Moltmann:

111 A sedução..., p. 71.112 Op. cit., ibidem.

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Qualquer “summa” teológica consistente, qualquer sistema teológico reivindica a totalidade, a perfeita organicidade e a coerência universal. De princípio, deve-se poder dizer algo sobre o todo e sobre cada parte. Todos seus enunciados devem ser isentos de contradições e ajustar-se mutuamente. A arqui­tetura deve ser “como saída de uma fundição, inteiriça”.113

Nisto consiste a “sedução estética” do sistema manualista: a

sensação de entrar em contato com a verdade teológica em toda a sua extensão e profundidade. Uma segurança tranqüilizadora sur­ge da confrontação do fiel com uma catedral, erigida minuciosa­

mente no intuito de promover a percepção da harmonia entre todas as partes e em cada parte, em particular. Na contemplação dessa “catedral” , resta ao que contempla sentar-se em profunda

admiração e permanecer em contemplação.É exatamente nessa atitude de permanente contemplação que

se revela a força da “sedução estética” como poderoso mecanismo

de controle. Moltmann acrescenta:

Todo sistema teórico, inclusive o teológico, ostenta por isso ao menos um certo atrativo estético. Mas nisto reside também o seu poder de sedução: os sistemas poupam a muitos leitores, e certamente aos deslumbrados, o pensamento crítico pessoal e uma decisão independente e responsável, porque não se apre­sentam para serem discutidos.114

E conclui:

Mesmo quando não é fruto de dogmatismo, o pensamento dogmático se expressa na teologia com clara preferência pelas

113 Trindade e Reino de Deus, p. 11.1,4 Idem, ibidem, p. 11.

114

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teses; teses, porém, não colocadas-em discussão, mas sim como enunciados que postulam ou a concordância ou a rejeição, nunca um pensamento independente e a responsabilidade pes­soal. Induzem o ouvinte a pensar segundo elas, não segundo seu pensamento próprio.115

Dessa forma, fecha-se o ciclo dos mecanismos de controle do discurso teológico do sistema manualista, um “magistério” que fundamenta sua verdade como verdade original fundadora, com base na “sedução da continuidade histórica” que, por sua vez, lan­ça mão do recurso harmonizador para imobilizar qualquer discur­

sividade nas teias da “sedução da harmonia estética”.Esse ciclo de controle opera com o propósito de legitimar o

processo de desistoricização do discurso teológico, que age na in­tenção de impossibilitar novas mediações culturais, com base na ascensão/potencialização/evocação de uma mediação (metafísica), tornando-a norma prescritiva. Esse processo, por sua vez, impede

que o evento nuclear da teologia se dê no interior das comunida­des de fé, barrando a experiência de fé e sua capacidade inventiva, bem como seu poder mobilizador.

Encerra-se, portanto, esta etapa de reflexões. No primeiro ca­pítulo buscamos traçar o caminho da sublevação da metafísica univocizante em detrimento da metáfora e sua condição equivocizante. Neste capítulo buscamos, num primeiro momen­to, identificar um evento nuclear para toda teologia e, logo após, mostrar como o processo de sublevação, uma vez cristalizado, aca­

bou por impossibilitá-lo.As conclusões a que chegamos até aqui são tomadas como base

para uma proposta metodológica a ser indicada no próximo e

115 M oltm ann, Trindade..., p. 11.

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último capítulos. O leitor verá que contra toda tendência totalizadora e universalizante do sistema manualista, é necessária uma abordagem metodológica que contemple o local, ou seja, que reabilite a mediação cultural como locus metodológico.

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3Afirmação do “local” como princípio de uma nova abordagem metodológica em teologia sistemática

Homo Sum; nihil humani a me alienum puto, disse o cômi­co larino. Eu diria melhor: Nullum hominem a me alienum puto. Sou homem: nenhum outro homem considero estranho. Por­que o adjetivo humanus me é tão suspeito quanto o substanti­vo abstrato humanitas, humanidade. Nem o humano, nem a humanidade, nem o adjetivo simples, nem o adjetivo substantivado, mas sim o substantivo concreto: o homem. O homem de carne e osso, aquele que nasce, sofre e morre — sobretudo morre — que come, bebe, joga, dorme, pensa e ama, o homem que se vê e a quem se ouve, o irmão, o verda­deiro irmão.

Porque há outra coisa, a que também chamam homem e que é o sujeito de não poucas divagações mais ou menos cien­tíficas. É o bípede implume da lenda, o Zoom politikon de Aristóteles, o contratante social de Rousseau, o homo oeconomicus dos manchestereanos, o homo sapiens de Lineu, ou, se preferi­rem, o mamífero vertical. Um homem que não é daqui ou dali, desta ou de outra época, que não tem sexo nem pátria — uma idéia, enfim. Isto é, um não-homem. O nosso é outro, o

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de carne e osso: eu, você, meu leitor, aquele outro de mais

além, todos os que pisamos sobre a terra.

Unamuno, D o sentimento trágico da vida , p. 1-2.

No final do primeiro capítulo verificamos o domínio do méto­

do dedutivo ao longo da história da teologia dogmático-sistemá- tica, até o período identificado como ortodoxia protestante. A

intenção não era — nem é — discutir o método dedutivo, mas tão-somente apontá-lo como resultado da cristalização da metafísica

como norma prescritiva (v. Glossário) do discurso teológico siste­mático.

O que pretendemos até aqui foi evidenciar que o discurso teo­lógico sistemático, sobretudo o da manualística (v. Glossário), é

univocizante e busca de todas as formas uma fala unívoca, que a um só tempo consiga totalizar em seu interior, de forma harmô­nica e coerente, todos os temas da fé1 e ainda repeti-los (com autoridade dogmática) universalmente num exercício apriorístico

que pressupõe uma essência que corresponda a um pretenso ser eternamente separado de seu ente concreto.

Como vimos, isso corresponde a uma violência contra o núcleo da teologia, já que desistoriciza a mediação cultural (v. Glossário), e impossibilita sua renovação, estancando, assim, a experiência de fé como espaço fecundo e indomável — tudo isso para identificaro discurso sistemático (que não deveria ser mais que um precário conjunto aberto de signos e desejoso de reformulação) com algu­ma realidade última e permanente.

A função do método nesse processo é o de sustentar sua repro­dução, com mecanismos de afirmação e coerção. A afirmação dá-se no aspecto estético-harmônico que ele propõe, seduzindo-nos à

1 Hans Küng, Teologia a caminho, p. 117.

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contemplação acrítica versus imobilizadora. A dimensão coercitiva do método é claramente identificada na aplicação da lógica cujo

princípio da não-contradição, ou seja, impossibilidade da fala dissonante, sempre se submeterá ao instrumento do terceiro excluso (v. Glossário).

Esse método, aqui identificado como dedutivo, resulta da sublevação da metafísica (v. Glossário) no interior do discurso teo­lógico dogmático-sistemático, gerador da univocização do discurso. É preciso lembrar, no entanto, que não é a metafísica que gera o discurso unívoco, mas, sim, o desejo de univocidade — de contro­le do poder da palavra sagrada e de seus efeitos — (v. Glossário), que encontra nela o melhor instrumento para sua realização. O que se coloca como pano de fundo desse processo é a luta pela palavra, isto é, pelo controle de toda palavra, pelo direito de dizê- la e pela autoridade de declarar sua interdição.

E exatamente esse desejo de domínio da palavra, que pode ser mais bem realizado em sua dimensão unívoca, que identifica a ortodoxia religiosa.2 Tanto a ortodoxia clássica quanto sua repre-

2 Em nossa perspectiva, compreende-se “ortodoxia” como instituição que detém os instrumentos de controle da palavra teológica apresentada (ou quem sabe confundida) como verdade. Essa, portanto, não é a compreen­são mais ortodoxa sobre a ortodoxia. Andrade oferece-nos a seguinte defini­ção: “Qualidade de uma declaração doutrinária que se acha de acordo com o ensino revelado no Antigo e no Novo Testamento. Conjunto de doutri­nas provindas da Bíblia, e tidas como verdadeiras de conformidade com os credos, concílios e convenções da Igreja” (Dicionário teológico, p. 229). J. L. Parker, quanto à ortodoxia, afirma que ela “expressa a idéia de que certas declarações sintetizam com exatidão o conteúdo do cristianismo quanto às verdades reveladas e, portanto, são por sua própria natureza normativas para a igreja universal. Essa idéia está arraigada na insistência do NT de que o evangelho tem um conteúdo fatual e teológico específico [...] e de que não existe nenhuma comunhão entre aqueles que aceitam o padrão apos­tólico do ensino cristológico e os que o negam” (Ortodoxia, Enciclopédia histórico-teológica da igi-eja aistã, p. 70, v. 3). As definições de Andrade e Parker

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sentaçao protestante agem nesse sentido. E é a teologia sistemá­tica que se tem apresentado como seu mais forte bastião, agindo pedagogicamente para afirmar a ortodoxia, numa repetição siste­mática de seus postulados de poder, e para denunciar, num exer­cício apologético, os inimigos da fé.

Nem mesmo toda a crítica da modernidade à instrumen­talização da metafísica, feita pela ortodoxia cristã, foi capaz de fazer desmoronar essa fortaleza.3 Em grande parte por influência estadunidense (donde nos chegam praticamente todos os manuais), a teologia sistemática protestante manualista encontrou novo vi­gor. Os séculos XIX e XX, não coincidentemente com o surgi­

corroboram o que até aqui se tem dito: que a ortodoxia, como guardiã do discurso unívoco, busca no recurso da continuidade histórica (ela não é nada mais que o desdobramento do texto bíblico) seu ponto de afirmação. Ela se identifica com o texto bíblico, propondo uma única “verdade teoló­gica” transmitida e conservada ao longo da História. Nesse sentido, ortodo­xia não é um grupo com suas intencionalidades, perspectivas teológicas e pontos de vista políticos, mas é uma providência divina para a preservação da sã doutrina. A ortodoxia nega, portanto, toda a dimensão hermenêutica da teologia e toda possibilidade dissonante de seus postulados, bem como toda dimensão de precariedade que o discurso teológico traz em si. Como ponto de afirmação da ortodoxia, está a heresia. Aquela precisa desta para sua sobrevivência. E preciso encontrar e condenar o diferente para afirmar o idêntico. Aquilo que a ameaça é também o que a mantém e a faz crescer.

3 Apesar de não termos aqui o objetivo de discutir o declínio da metafísica em sua identificação com a mensagem cristã, é necessário indicar ao menos algumas fontes de pesquisa para esse assunto. Entre os clássicos estão: Críti­ca da razão pura, de Kant; A essência do cristianismo, de Feuerbach; Aurora, de Nietzsche; e, mais recentemente, Pensamentopós-metaflsico, de Habermas. No campo da teologia, os autores multiplicam-se. Num primeiro momen­to, neólogos como Semeler e, posteriormente, todos os considerados libe­rais. Tanto na pesquisa bíblica, com o método histórico-crítico, quanto na dimensão dogmática, com o movimento da história do dogma, são inúme­ros os textos e teólogos. No século XX, essa questão toma maior fôlego com a recepção da morte do Deus metafísico no interior da teologia. Desde Bonhoeffer até os teólogos radicais estadunidenses, o pranto (ou festa) pela morte de Deus, todos apontam para a derrocada da metafísica nas ciências em geral e na teologia em particular.

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mento do fimdamentalismo, foram bastante fecundos para a afir­

mação dessa tendência.4

Nosso desafio consiste na proposição de uma abordagem

metodológica que ofereça condições para uma ruptura com o dis­

curso teológico sistemático unívoco da manualística protestante,

principalmente com os resultados dessa univocização, que são suas

tendências totalizadoras e universalizantes (v. Glossário, aborda­gem totalizante-universalizanté) — tudo isso para permitir que o

discurso teológico possa articular sua fala em cooperação com as realidades locais em sua situação concreta.

Assim, os sujeitos históricos concretos de sociedades e culturas

distintas poderiam ver suas experiências de fé comunicadas nos

signos que lhes são próprios, constituindo discursos mais ou me­

nos sistemáticos (abertos à sua condição de precariedade), que não

representariam mais que a organização de suas experiências: nada de

totalização, tampouco de universalização, mas abertura à vivência lo­

cal e à concretude das experiências pontuais, das problemáticas próximas; em suma, do horizonte existencial concreto.

Antes de propormos uma abordagem metodológica que dê

conta disso, vale a pena atentar para o que diz Hans Küng acerca

da teologia dogmático-sistemática e para o que ele sugere. O

autor afirma que “a miséria da teologia dogmática — católica,

ortodoxa e também protestante — é o abismo que a separa da exegese histórico-crítica”.5 Isso constitui seu caráter reprodutivo,

4 No livro A sedução da imaginação terminal, Alexandre de Carvalho Castro, analisa essa questão, principalmente no primeiro capítulo, no qual mapeia, num exercício exaustivo, a linha editorial evangélica brasileira e a enorme influência que esta sofre de determinado grupo ou tendência teológica estadunidense.

5 Teologia a caminho, p. 111.

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seu afastamento da pesquisa, sua negação da realidade con­

creta como protagonista de seu discurso. Ele prossegue:

Evidentemente, uma teologia dogmática a-histórica está tão ultrapassada como uma exegese a-histórica. Uma teologia dogmática que utiliza os resultados exegéticos de forma insufi­ciente (seletiva) é por si mesma insuficiente. Uma teologia dogmática que permanece autoritária, em vez de trabalhar cri­ticamente, não é científica: atitude científica ante a verdade e disciplina metódica, discussão crítica dos resultados e exame crítico da colocação dos problemas e dos métodos são uma exigência tanto da teologia dogmática como da exegese. Como a Bíblia, também o dogma deve ser interpretado de forma his- tórico-crítica. Como a exegese moderna, também a teologia dogmática moderna deve procurar e manter uma estrita fun­damentação histórica: sua verdade deve ser sempre uma ver­dade constantemente ancorada na história.6

Para ele, diante do desafio de dialogar com o método histórico- crítico, que na verdade é o desafio de dialogar com a modernidade, a teologia dogmático-sistemática pode responder com três postu­ras distintas: na primeira, “a teologia dogmática pode bloquear

ou ignorar de fato os resultados da exegese histórico-crítica”;7 na segunda, pode “evitá-los, domesticá-los e passar por cima deles”8 numa espécie de harmonização; na terceira, assumiria essa “pro­vocação e modificaria seu próprio pensar”, respondendo respon­savelmente às questões críticas.9

6 K ü ng , Teologia a caminho, p. 113.7 Idem, ibidem, p. 113.8 Idem, ibidem, p. 113.9 Idem, ibidem, p. 113.

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As observações de Küng apontam pâra o distanciamento entre

a teologia sistemática e o mundo que a cerca. Essa é, na verdade,

a área da teologia mais resistente ao advento da crítica, em razão

do processo de cristalização desistoricizante que determinada

mediação cultural sofreu até ser elevada à condição de norma

prescritiva.

Não é possível, portanto, falar de diálogo crítico no interior

desse discurso sem antes questionar profundamente o processo de cristalização — e não só questioná-lo, mas também propor um

caminho alternativo àquele que se pretende desconstruir. E nesse

sentido que se quer apresentar aqui, em forma de apontamentos,

uma via de acesso ao discurso teológico sistemático sem cair num

sistema — certamente não num sistema totalizador, tampouco

universalizante.Essa via de acesso constitui um locus (v. Glossário) com o qual

se poderia elaborar uma nova abordagem metodológica aos temas

da fé, segundo o pensamento geertiano acerca do saber local e a

compreensão do existencialismo sobre a situação. O ponto de partida para a elaboração dessa abordagem metodológica, porém,

é a constatação da morte do Deus metafísico, por Nietzsche.

A morte de Deus como ponto de partida para a libertação da metáfora

O Deus que morreu e que teve sua morte anunciada na aurora

do século X X é aquele que nasceu do coito entre a religião cristã e

a cultura helênica, sobretudo platônica. O legado desse Deus foi

a afirmação de um dualismo intransponível entre o mundo do ser

e o do devir.Sua morte, que seria declarada por Nietzsche, vinha sendo pre­

parada e executada desde o anúncio da impossibilidade metafísica

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por Kant.10 Essa morte é a morte de uma representação lingüístico-

religiosa sobre a qual se erigiram os cânones da teologia cristã,

sobretudo a dogmática, no decorrer de toda a cristandadè.Não foi uma morte tranqüila — morrida, como o povo costu­

ma dizer — , mas o resultado de uma batalha por autonomia e

afirmação dos sujeitos históricos.11 Essa batalha mortal travada

com o Deus metafísico-platônico transmudado em cristão signi­

ficava exatamente a luta pela afirmação dos valores culturais no

interior de um discurso teológico que se vinha distanciando das

realidades concretas.

Referindo-se a essa batalha, Penzo, baseado no pensamento de

Nietzsche, declara: “A polêmica com o cristianismo decadente

revela-se, no fundo, como conseqüência lógica da polêmica com a

concepção platônica, que afirma a distinção entre mundo do ser e

mundo do devir” .12 E ainda: “Na concepção platônico-cristã, o

devir ver-se-ia privado de sua intrínseca perfeição e seria rebaixa­

do à condição de realidade imperfeita relativamente à realidade

mítico-metafísica, a que se atribui toda a perfeição”.13A morte declarada é, portanto, de uma representação

lingüístico-religiosa de Deus. O discurso teológico, porém, so­

bretudo o dogmático, forçou uma tal identificação dessa repre­

sentação com o Deus cristão que qualquer ataque àquele recai

10 Kant, em Crítica da razão pura, evidenciava a impossibilidade de falar objetivamente de Deus, desqualificando a metafísica como elemento rele­vante de construção de discurso científico.

11 A crise da metafísica e do discurso teológico-cristão coincide com a virada antropológica ocorrida na modernidade. Na busca por emancipação com relação à cristandadè, o homem moderno precisou demolir as colunas sobre as quais ela se estruturava.

12 Deus na filosofia do século XX, p. 29.13 Idem, ibidem, p. 30.

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inevitavelmente sobre este, como observa o importante teólogo

da morte de Deus:

Não há nenhuma necessidade imediata de aceitarmos que o Deus morto é o Deus da fé; por outro lado não pode­mos deixar de concluir que o Deus morto não é o Deus da idolatria, ou da falsa piedade, ou da “religião”, mas o Deus da Igreja cristã histórica e da cristandade. Por que — gosta­ríamos de perguntar — é necessário relacionar desse modo a Igreja com a cristandade? Porque quando ela ingressou no mundo helenístico, contribuindo para criar o mundo moder­no ocidental, tornou-se indissoluvelmente ligada à tradição histórica característica. Freqüentemente os teólogos moder­nos têm descoberto, com grande constrangimento, que, logicamente e lingüisticamente, não é possível dissociar os ritos, credos e dogmas da Igreja de seu invólucro ocidental.14

A constatação da morte de Deus é, portanto, uma grande bên­

ção para a teologia, à medida que liberta seu discurso das amarras da metafísica platônica, que, cristalizada, elaborou tão-somente uma univocidade discursiva. O ocaso do Deus metafísico pode significar a libertação da dimensão metafórica da linguagem na

produção do discurso teológico.A morte declarada é de uma perspectiva lingüística, que, mesmo

caduca, foi conservada como norma prescritiva. Mesmo estando morta, foi embalsamada e entronizada nas salas do magistério

protestante.O que aconteceu com a linguagem desposada pelo discurso da

teologia sistemática foi o que Mosé constata acerca da filosofia em relação à metafísica:

14 William H amilton, A morte de Deus, p. 29-30.

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A linguagem que, assim como a consciência, resulta de um aperfeiçoamento da capacidade de comunicação do mua- do orgânico, vai terminar por se constituir como a negação do corpo, ou seja, como a negação daquilo que a tornou possível.15

Alves acrescenta:

Ora, o anúncio da morte de Deus não é uma reportagem sobre o sepultamento de um ser eterno, mas antes a simples constatação de um colapso de todas as estruturas de pensa­mento e linguagem que o teísmo oferecia. Ela anuncia o fim de uma visão global de universo, de uma certa filosofia, de uma linguagem que articulava a experiência do homem pelo simples fàto de que uma nova maneira de pensar a vida, de encarar os seus problemas, de falar, está surgindo, e que contradiz e nega, de forma radical e irreconciliável, a forma velha.16

A questão fundamental para uma abordagem metodológica que pretenda ser uma alternativa àquela fundamentada sobre a metafísica consiste em se darem as boas-vindas a essa declaração de morte,17 na crença de que ela represente “o universo perdendo seu centro”18 e ainda que “o mundo supra-sensível não [tenha]

poder eficiente”19 para responder às questões encontradas no ho­

rizonte existencial dos homens e mulheres concretos.

Com a aceitação da morte de Deus e a idéia de que ela significa

a libertação da dimensão metafórica do discurso teológico é que

15 Nietzsche e a grande política da linguagem, p. 208.16 Liberdade e fé, p. 10.17 William H a m ilto n , A morte de Deus, p. 41.18 Idem, ibidem, p. 4l.19 Pierre T r o t ig n o n , Heidegger, p. 83.

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se torna possível abrir-se à multiplicidade e à concretude da vida,

sem a necessidade de impedir qualquer discurso dissonante, em

nome da preservação de uma verdade ortodoxa supostamente

absoluta, a qual pode voltar-se às comunidades de fé (não como

cristandade ou massa homogênea), tomando os signos que as iden­

tificam na comunicação de suas experiências.

Nietzsche, Deus e a metafísica

A morte de Deus, que em Feuerbach, Marx e Freud aparece

como uma tarefa, em Nietzsche transforma-se no simples anún­cio de boa nova.20

De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa — enfim o horizonte nos parece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.21

Nietzsche não mata Deus: ele constata sua morte. A constatação de que “Deus morreu” está intimamente ligada à história da cultu­ra ocidental. Dizer “Deus morreu” é declarar o fim de um funda­mento último, em torno do qual orbitavam, até então, determinados valores morais e religiosos. A morte de Deus é a morte de um paradigma. É a morte da metafísica. É a morte do platonismo.

Heidegger esclarece:

20 Rubem A lves, Liberdade efê, p. 29.21 Friedrich N ietzsche, A gaia ciência, p. 234.

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Assim, a expressão “Deus morreu” significa: O mundo supra-sensível não tem poder eficiente. Não desperdiça ne­nhuma vida. A Metafísica, ou seja, para Nietzsche, a filosofia ocidental entendida como platonismo, chegou ao fim.22

Essa constatação indica um processo já antigo, do qual os pró­prios cristãos participaram efetivamente. Quem matou Deus? Nietzsche dirá: “Seus próprios seguidores”. Na verdade, o Deus morto já começava a padecer, momentos depois de seu nascimen­to. Seus suspiros de vida ainda o sustinham, enquanto aquela que seria sua cripta23 detinha poder suficiente para manter os “apare­lhos” (também os de Estado) necessários à sua sobrevivência.

O que vinha definhando, apesar do esforço para que isso não acontecesse, era uma matriz cultural que se cristalizara, uma me­diação cultural transformada em norma prescritiva. Mesmo per­cebendo que a declaração de Nietzsche tem um alcance ainda mais vasto,24 pode-se dizer que ela se volta contra um discurso teológico que identificou o Deus cristão com uma representação cultural. Essa identificação foi tão radical que a representação to­mou o trono da Divindade.

A evidência maior dessa identificação está na reação de grande parte da teologia ao pensamento de Nietzsche. Rapidamente, iden­tificou-se em sua declaração a morte do Ser eterno. Isso porque, quando se volta para o trono do Eterno, boa parte dos cristãos, embalada por determinado discurso teológico, vê em seu lugar a representação lingüística metafísico-platônica assentada com toda

22 Apud Pierre T rotignon , Heidegger, p. 83.23 Robert A dolfs, Igreja, túmulo de Deus?.24 A crítica de Nietzsche não se dirige apenas à religião cristã com seu aparato

de moralidade. Ela também se destina à modernidade com sua idéia de progresso. Ele se volta contra toda expressão metafísica, tanto religiosa quanto científica.

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pompa e circunstância. Eles percebem,-no entanto, que essa re- presentaçao foi ali colocada pelo próprio discurso que se volta violentamente (violência apologética — quase um pleonasmo) contra aquela declaração que reentronizaria o Deus verdadeiro,

como declara Penzo:

Para o homem metafísico, a morte de Deus é vivida de modo dramático, justamente porque marca o fim de um longo desejo que é necessário ao homem para viver com uma cons­ciência de segurança. Nietzsche faz sua essa angústia “desespe­rada” do homem metafísico diante do “advento do niilismo”. Supera, porém, tal angústia, quando observa que a morte de Deus é um acontecimento cultural e existencial necessário para purificar a face de Deus e, por conseguinte, a fé em Deus.25

Penzo acrescenta: “Nietzsche não mata Deus, mas limita-se a constatar a ausência do divino na cultura de seu tempo, acusan­do, pelo contrário, por essa ausência e morte, o pensamento metafísico”.26 Essa é uma questão que a teologia ainda não en­frentou com a profundidade necessária,27 principalmente a teo­logia sistemática, que com seu discurso faz expandir a sombra do Deus morto. Como afirma o próprio Nietzsche: “Deus está mor­to; mas tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada — quanto a nós — nós teremos que vencer também a sua sombra”.28

25 Deus na filosofia do século XX, p. 31 -26 Idem, ibidem. p. 32.27 Mesmo após, do interior de um cárcere, ter gritado a necessidade de supe­

ração da metafísica que transformou Deus numa hipótese desnecessária, Bonhoeffer só seria levado a sério por um pequeno grupo de teólogos radicais que propuseram uma teologia da morte de Deus. Hoje, não é mais que um capítulo da história da teologia, ao qual se dispensa pouca importância.

28 A gaia ciência, p. 135.

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Lutar hoje contra a sombra do Deus morto constitui uma ta­refa metodológica. Apontar para o processo de putrefação de qual­quer discurso totalizador e universalizante, que impede a afirmação das culturas locais em nome da preservação de um “corpo” discursivo que não desfruta nenhuma vitalidade: nisso consiste a relevância da crítica à teologia sistemática manualista (v. Glossá­rio). No campo da teologia — protestante, principalmente — , é ela quem guarda as “cavernas” onde o Deus morto é adorado.

A tendência univocizante e absolutista com referência à verda­

de teológica, tão característica da teologia sistemática manualista, precisa sofrer os efeitos da declaração de Nietzsche, isto é, a da

morte do centro gravitacional de discursos unívocos. Precisa com­preender, mesmo que a “golpes de. martelo”, aquilo que observa Machado: “A expressão ‘morte de Deus’ é a constatação da ruptu­ra que a modernidade introduz na história da cultura com o desa­

parecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento divino”.29

Para a teologia, a contribuição fundamental do ataque de Nietzsche à metafísica, em sua representação deificada, sobretudo em seu corte sistemático, consiste na descredibilização de toda a abordagem essencialista. Dessa forma, o discurso humano sobre qualquer realidade, mesmo a divina, deverá assumir sua irredutível condição existencial. Nenhuma fala pode pretender uma identifi­cação com a realidade que não seja aquela que circunda quem a propõe. O discurso está condenado aos limites daqueles que o pro­nunciam. Nenhuma força divina potencializa qualquer discurso, conferindo-lhe alcance universal e uma decorrente univocidade.

Dessa condenação ao concreto, ao culturalmente delimitado, ao existencialmente vivível, emerge no pensamento de Nietzsche

29 Zaratustra, p. 48.

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a idéia do “Super-homem”. Mesmo não podendo esgotar aqui o alcance dessa idéia, interessa a relação desse “Super-homem” com a realidade concreta que Nietzsche faz representar como a terra e

que aqui se chama “local” ou “situação”.

Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra. Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar em quem vos fala de esperanças supra- terrestres [...] Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu e com ele morreram tais blasfêmias. Agora, o mais espantoso é blasfemar da terra, e ter em maior conta as entranhas do impenetrável do que o sentido da terra.30

Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche constata a morte de Deus, a descrença no além, em sua capacidade de comunicar

sentido existencial a homens e mulheres. E o que oferece em troca? “Não mais um além, mas um depois, um tempo posterior,

algum dia” .31

O que é de grande valor num homem é ele ser uma ponte e não um fim; o que se pode amar num homem é ele ser uma passagem, um acabamento. Eu só amo aqueles que sabem vi­ver como se extinguindo, porque são esses os que atravessam de um lado para o outro [...] Amo os que não procuram por detrás das estrelas uma razão para sucumbir e oferecer-se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra per­tença um dia ao Super-homem.32

30 Assim falou Zaratustra, p. 25.31 Zaratustra, p. 49.32 Op. cit., p. 27.

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Machado acrescenta: “Super-homem é todo aquele que supera

as oposições terreno-extraterreno, sensível-espiritual, corpo-alma;

é todo aquele que supera a ilusão metafísica do mundo do além e

se volta para a terra, dá valor à terra”.33

Assumir a metáfora de Nietzsche, segundo a qual na morte de

Deus está expressa a morte da metafísica e no surgimento do Super­

homem emerge o imperativo da vida concreta, pode levar o dis­

curso teológico a trilhar outro caminho que não o da univocidade

essencialista. Assumir que não há um eixo gravitacional sobre o

qual toda realidade deva ser compreendida, mas tantos eixos quantas forem as realidades localmente situadas, pode permitir a

um discurso teológico que, ao sistematizar uma experiência de fé,

assuma a mediação cultural própria da comunidade na qual se

originou aquela experiência.

Para nós, a contribuição do pensamento de Nietzsche à teo­

logia está na libertação da dimensão metafórica do discurso. Não

há mais a obrigação de dizer o unívoco: é possível agora abrir-se

à multiplicidade polissêmica e a toda discursividade teológica equí­voca.

Vattimo e a libertação da metáfora

Toda teologia que insista em fundamentar na metafísica a sis- tematização de seu discurso, mesmo depois de Nietzsche, não é mais que uma obra póstuma. Não há mais um centro de gravida­de, como lugar estável, seguro e regulador com o qual se construa a realidade. E necessário negar o jogo da metafísica que se funda e se constrói com base numa imobilidade fundadora e numa certe­za tranqüilizadora.

33 Zaratustra, p. 46.

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É esse rumo que toma o pensamento de Gianni Vattimo, prin­cipalmente em sua obra Depois da cristandadè: por um cristianismo não religioso,34 Vattimo vê o pensamento de Nietzsche com rela­ção à morte de Deus como uma abertura à possibilidade de crer, e não como determinação ao ateísmo. Trabalha também o concei­to de libertação da metáfora e de negação das metanarrativas filo­sóficas ou teológicas, apontando dessa forma novas possibilidades à teologia, principalmente na valorização da encarnação como pon­to de partida.

Com relação à possibilidade de crer, aberta pela declaração de Nietzsche sobre a morte de Deus, Vattimo começa dizendo:

O anúncio de Nietzsche, segundo o qual “Deus morreu”, não é tanto, ou principalmente, uma afirmação de ateísmo, como se ele estivesse dizendo: Deus não existe. Uma tese do gênero, a não-existência de Deus, não poderia ter sido profes­sada por Nietzsche, pois do contrário a pretensa verdade abso­luta que esta encerraria ainda valeria para ele como um princípio metafísico, como uma “estrutura” verdadeira do real que teria a mesma função do Deus da metafísica tradicional.35

Com isso, Vattimo habilita o pensamento de Nietzsche como instrumento possível à reflexão teológica. Não é o ateísmo que ele está anunciando, pois isso seria uma contradição ao seu ataque à metafísica. Ele está exatamente demolindo esta última.

34 Vattimo aborda o pensamento de Nietzsche em várias obras: Crer em acredi­tar (Relógio D’Água); O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na culturapós-modema (Martins Fontes); Introdução a Nietzsche (Presença); A religião (Estação Liberdade). Mas é em Depois da cristandadè que seu pen­samento se volta fundamentalmente para a relação entre a teologia e o pensamento de Nietzsche (principalmente no capítulo que trata da morte de Deus como libertação da metáfora).

35 Depois da cristandadè, p. 9.

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De forma muito simplificada, creio poder dizer que a épo­ca na qual vivemos hoje, e que com justa razão chamamos pós-moderna, é aquela em que não mais podemos pensar a realidade como uma estrutura ancorada em um único funda­mento, que a filosofia teria a tarefa de conhecer e a religião, talvez, a de adorar.36

Batendo a “golpes de martelo” aquilo que se pretendia consti­tuir o “fundamento único” para toda a realidade, Nietzsche, na

perspectiva de Vattimo, está liberando a experiência religiosa e seus discursos mais ou menos elaborados para se expressar com base em outros núcleos culturais e lingüísticos. Afirma ele:

Sob a luz da nossa experiência pós-moderna, isto significa que justamente porque este Deus fundamento último, que é a estrutura metafísica do real, não é mais sustentável, torna-se novamente, possível uma crença em Deus.37

Contrário a toda negação que faz a metafísica, e em decorrên­cia o discurso teológico sistemático manualista, quanto à legiti­midade do múltiplo, o pensamento de Vattimo possibilita encontrar no pluralismo um princípio, além de legítimo, fecun­do para o discurso teológico. Cessa a negação da existência como não-ser e a tendência de afirmar estruturas essenciais.

Com base na experiência do pluralismo pós-moderno, po­demos somente pensar o ser como um evento, enquanto a verdade não mais pode ser o reflexo de uma estrutura eterna do real e sim uma mensagem histórica que devemos ouvir e à qual somos chamados a dar uma resposta. Uma tal concepção

36 V a ttim o , Depois da cristandade, p. 11.37 Id e m , ib id em , p . 12 .

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da verdade não é válida apenas'para a teologia e a religião, mas, igualmente, para grande parte das ciências hoje.38

E na dimensão do pluralismo que se pode recuperar a legiti­

midade do múltiplo, que desde o encontro do cristianismo com a cultura helênica vinha sendo negado ou identificado como here­

sia. O múltiplo, o plural, é a outra fala, a fala do outro, que tem tanta relevância para sua comunidade religiosa e cultural quanto

a fala do eu tem para a sua.Na relativizaçao contida no plural, está o princípio da afirma­

ção do outro. Não como extensão do eu e de sua verdade — isso possibilitaria o discurso unívoco (o outro seria um eu exteriorizado) — , mas como ser autônomo, histórico, cultural e religioso. Esse outro pode não orbitar no mesmo eixo do eu. Isso quer dizer que os discursos não estão contrapostos num binômio “verdadeiro versus falso” , pois não há um absoluto ao qual deva corresponder o primeiro ou negar o segundo, mas eles encerram as compreensões acerca da realidade própria de seus horizontes culturais.

Nesse sentido, não se deveria mais falar de discurso teológico, mas de discursos teológicos. Tanto a dimensão do discurso quan­to a da teologia são pluralizadas. Não é somente afirmar o plural do discurso — isso é importante, mas principalmente o da teolo­gia. Caso contrário, seria uma simples afirmação da inculturação (v. Glossário). O pluralismo aponta para a necessidade de pensar a teologia no plural. De perceber e minimamente respeitar (e isso ainda não seria suficiente) a órbita autônoma de cada teologia.

Coloca-se, assim, uma nova tarefa diante da teologia, princi­palmente de seu corte dogmático. Como pensar os temas da fé para afirmar sua importância para a comunidade dos cristãos e, ao

38 V a t t im o , Depois da cristandadè, p. 13.

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mesmo tempo, perceber os limites que determinado sistema possui?

Como lidar com os temas da fé na tarefa de reistoricizá-los e, por assim dizer, destroná-los de sua condição unívoca? Como conjugar a universalidade dos temas da fé com as questões até aqui expostas?

Quem sabe seja essa a encruzilhada em que nos encontramos.

Aceitando a universalidade dos temas da fé, como nao aceitar a

universalidade do discurso? Esse não é realmente um problema,

já que se consegue perceber que a universalidade dos temas não

corresponde necessariamente à universalidade do discurso. Os

temas não se dão unicamente a uma perspectiva discursiva, em­

bora a ortodoxia o queira, mas eles estão abertos à dinâmica

hermenêutica das comunidades que os acolhem.

Refletindo o pensamento de Nieízsche, Foucault declara:

A morte da interpretação é o crer que há símbolos que exis­tem primariamente, originalmente, realmente, como marcas correntes, pertinentes e sistemáticas. A vida da interpretação, pelo contrário, é o crer que não há mais do que interpretações.

Todo discurso teológico, portanto, é um discurso. Isso não o esvazia de sua autoridade nem de sua relevância, porém limita-as à extensão da comunidade a quem se destinam primeiramente, ou seja, àqueles que partilham da mediação cultural utilizada como veículo de comunicação das experiências de fé.

Nesse sentido, impõe-se ao discurso teológico sistemático uma tarefa prática. Não mais aceitando uma perspectiva metodológica que nega o múltiplo afirmando a metafísica, cabe articular outra abordagem metodológica que contemple a pluralidade discursiva e sua limitação. Nessa direção, afirma-se ainda a contribuição de Vattimo, quando elabora aquilo que ele denomina “libertação da metáfora”:

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Pois bem, hoje parece que um-dos principais efeitos filosó­ficos da morte do Deus metafísico e do descrédito geral ou quase, em que caiu todo o tipo de fundamento filosófico, foi justamente o de ter criado um terreno fértil para uma possibi­lidade renovada da experiência religiosa. Tal possibilidade retorna [...] por meio da libertação da metáfora. É um pouco como se, no final, Nietzsche tivesse razão ao preconizar a cria­ção de muitos novos deuses: na Babel do pluralismo de fins da modernidade e do fim das metanarrativas, se multiplicam as narrativas sem um centro ou uma hierarquia.39

Vattimo observa que a libertação da metáfora é a libertação do discurso. E a possibilidade de dizer a própria experiência não com

os signos dos dominadores, mas da própria realidade. N a liberta­ção da metáfora, nega-se a hegemonia do discurso unívoco, que se pretendia regulador de toda discursividade. A dissonância meta­fórica desnuda toda intenção e arbitrariedade da sociedade de dis­curso e de seus mecanismos de controle. Dizer diferente é a melhor forma de apontar a fragilidade do dizer único.

O contrário disso deu-se na sublevação da metafísica. O dizer único condenou todo dizer contrário (ou tão-somente dissonante).

A apologética, no papel de aparelho de coerção, foi enquadrando toda a discursividade, harmonizando-a sob pena de sanções pesadíssimas, de anatematizações vexatórias e finalmente da rotulação de heresias. Teorizando sobre essa dinâmica de contro­

le, Vattimo observa:

Somente ao se estabelecer uma sociedade e uma casta de dominadores nasce a obrigação de se “mentir segundo uma regra estabelecida”, ou seja, de se usar, como única língua “apro­

39 Depois da cristandadè, p. 25.

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priada”, as metáforas dos dominadores, fazendo com que as outras linguagens sejam degradadas à condição de puras lin­guagens metafóricas, ao campo poético.40

No princípio, tudo era metáfora. Mesmo aquela que posterior­

mente buscou identificar-se com o discurso literal. A metáfora

literalizada, ou seja, identificada como discursividade unívoca, buscou reinar sobre as demais, desqualificando-as como elemen­

tos menores, incapazes de comunicar qualquer sentido relevante. O que a metáfora literalizada não viu foi que, à medida que nega­

va sua condição de metáfora, decretava sua morte, impedia sua força seminal.

O grupo que passou a valer-se da metáfora literalizada, vendo

que esta caminhava para a morte — e com ela todos os seus inte­resses, postulados e autoridade — , tratou de embalsamá-la e pos­teriormente removê-la do ambiente onde estavam as metáforas desqualificadas, de onde ela mesma havia saído. E, do alto de sua condição de norma prescritiva, mesmo morta, ela continuou re­forçando o discurso do grupo que a instrumentalizara.

Muitos chamavam a atenção do povo e mostravam que a me­

táfora literalizada: havia morrido por causa da literalização (v. Glossário). Diziam ainda que as demais metáforas não eram menores. Pelo contrário, foram declaradas menores exatamente porque encerravam em si a força seminal capaz de gerar uma nova realidade. Não era o que desejava o grupo, que encontrou na metáfora literalizada a melhor forma de reproduzir seu dis­curso de poder.

Até que, um dia, um “homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, pôs-se a gritar inces­

40 V attim o , Depois da cristandade, p. 25.

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santemente...” .41 Os gritos do louco diziam que a metáfora

literalizada havia morrido. Ele não parou de gritar até morrer.

Morreu louco, mas sua mensagem ecoou, e outros o ouviram, até

que se pôde compreender que aquilo que o louco dissera não era

loucura e que sua mensagem tinha um poder fantástico: o de

libertar as metáforas da condição de menor valor a elàs imposta.

Naturalmente, a libertação da metáfora de sua subordina­ção a um sentido próprio só aconteceu em linha de princípio, pois na prática, na sociedade pluralista, ainda estamos longe de ver realizada uma perfeita igualdade entre as formas de vida (culturas diversas, grupos, minorias, etc., de vários tipos) ex­pressas pelos diferentes sistemas de metáforas.42

É com relação à continuidade que Vattimo diz estar o processo incompleto e que se toma aqui a questão da libertação da metáfo­

ra como pano de fundo para a proposição de uma nova aborda­gem metodológica ao discurso teológico sistemático. Isso quer dizer

que a morte de Deus, de Nietzsche, e a libertação da metáfora, de Vattimo, não são suficientes para a proposição de uma nova abor­dagem metodológica. E preciso fazê-las dialogar ainda com ou­tros elementos, ou melhor, trabalhar outros elementos sobre o pano de fundo que elas representam. Não se pode, no entanto, sair desse momento sem levar em consideração os desdobramen­tos da fixação de tal pano de fundo, como diz Vattimo:

O reconhecimento de direitos iguais para as culturas ou­tras que no plano político ocorreu com o final do colonialismo e no plano teórico com a dissolução das “metanarrativas”

41 Friedrich N ie t z s c h e , A gaia ciência, p . 147.i2 Depois da cristandadè, p . 26.

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eurocêntricas, no caso das igrejas cristãs exige o abandono dos comportamentos “missionários”, isto é, da pretensão de levar ao mundo pagão a verdade única. O reconhecimento da ver­dade das outras religiões [...] requer um esforço intensificado para desenvolver a leitura espiritual da Bíblia e também de tantos dogmas da tradição eclesiástica, de maneira que se pos­sa colocar em evidência o cerne da revelação ou seja, a carida­de, mesmo à custa, obviamente, do enfraquecimento das pretensões de validade literal dos textos e de peremptoriedade do ensinamento dogmático das igrejas.43

O “local” como locus metodológico

O pano de fundo da libertação da metáfora está para uma nova abordagem metodológica como o métafísico esteve para a consti­tuição do discurso univocizante. Qualquer tentativa de proposição, incluindo a que se faz aqui, para desconstruir o discurso unívoco da teologia em geral e da sistemática em particular, não pode abrir mão da destituição do papel que a metafísica exerce (arbitrário?!) como eixo gravitacional absoluto. Somente com base nesse pano de fundo — o da libertação da metáfora como resultado da morte (metafísica) de Deus — será possível aqui se fazerem apontamentos de uma possível abordagem metodológica que contemple a polissemia discursiva.

Para tanto, buscar-se-á uma reabilitação da mediação cultural, uma reistoricização (v. Glossário) do discurso sistemático, com o propósito de permitir a circulação dos elementos que compõem o núcleo da teologia, ou seja, a fé cognoscibilizada (v. Glossário, cognoscibilização da fé).

Para levar a cabo esse intento, será preciso superar, metodolo- gicamente, o discurso teológico totalizador e universalizante da

43 Depois da cristandade, p. 64.

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teologia sistemática manualista. Para isso, propõe-se aqui a con­tribuição da antropologia de Geertz, naquilo que ele denomina

“saber local” . O que se pretende com isso é o restabelecimento das culturas e dos saberes locais como locus metodológico.

Reabilitação da mediação cultural ou reistoricização do discurso teológico

O branco açúcar que adoçará meu cafénesta manhã de Ipanemanão foi produzido por mimnem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro e afável ao paladar como beijo de moça, água na pele, florque se dissolve na boca. Mas este açúcar não foi feito por mim.

Este açúcar veioda mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.Este açúcar veiode uma usina de açúcar em Pernambucoou no Estado do Riotampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana e veio dos canaviais extensos que não nascem por acaso no regaço do vale.

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Em lugares distantes, onde não há hospital nem escola,homens que não sabem ler e morrem de fome aos vinte e sete anos plantavam e colheram a cana que viraria açúcar.

Em usinas escuras homens de vida amarga e duraproduziram este açúcarcom que adoço meu café esta manhã em Ipanema.44

Esse poema de Ferreira Gullar é uma enorme contribuição ao tópico que aqui discutimos.45 A consciência histórica proposta pelo poeta, essa capacidade de perceber a historicidade de deter­minada coisa, que por força da presença repetida tende a se tornar comum, é sem dúvida um elemento fundamental à perspectiva metodológica que queira afirmar o “local” como espaço seminal para a reflexão teológica.

44 Ferreira G ulla r , O açúcar, in: Toda poesia, Rio de Janeiro: José Olympio, 12. ed., 2002, p. 160-1.

45 Há um caminho fértil aberto à reflexão teológica em seu diálogo com a literatura. O espaço literário é, sem dúvida, de reflexão. Dele, emergem todas as questões problemáticas existenciais. Por não ter de ser (embora às vezes seja) dogmática, a literatura recebe a reflexão com mais liberdade. Os exemplos do diálogo entre teologia e literatura são vastos: Teologia e literatu­ra, de Antônio Manzato, em que se discute a obra de Jorge Amado; Deus no espelho das palavras, de Antônio Carlos de Melo Magalhães, em que, além de rever o movimento “teologia e literatura”, o autor propõe um método de abordagem; Fuga da promessa e nostalgia do divino, de Douglas Rodrigues da Conceição, em que se discute, com Dom Casmurro, de Machado de Assis, a antropologia como tema teológico; Teologia eMPB, de Carlos Eduardo Calvani, que promove um interessante diálogo entre a teologia e a música popular brasileira. Muitos se têm dedicado a esse diálogo: Maria Clara L. Bingemer, Rubem Alves, Rosângela Molento Ferreira e outros.

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Nessa proposta metafórica de reistoricização, o poeta consegue estabelecer a crítica, sem se distanciar, contudo, do saber de seu

objeto imediato. Ele percorre os caminhos e descaminhos dos ele­mentos, restituindo a importância devida a cada um de seus su­

jeitos e, de alguma forma, denunciando toda apropriação indébita, fruto de cristalizações ou de retenção de prestígios. Dessa forma, destrói toda impressão de que “o açúcar tenha surgido dentro do

açucareiro”.Nesse sentido, é possível perceber a importância de tomar o

discurso teológico com todo seu trato estético e cristalizado e reistoricizá-lo. Entendendo seus caminhos e descaminhos, conhe­cendo suas personagens e reconhecendo-as em sua condição de sujeitos históricos — sem perder o sabor da teologia e sua rele­

vância, mesmo que limitada para o mundo — não como categoria universal, mas como horizonte existencial de sentido.

A reistoricização do discurso teológico reabilita a mediação cultural. Quando se desmascara toda pretensão de identificação de um discurso com a totalidade do real — esse o princípio gera­dor da univocidade — , restaura-se a centralidade da mediação cultural no processo de comunicação da experiência de fé.

A reabilitação da mediação cultural corresponde à necessidade de ruptura com os mecanismos de controle do discurso teológico,

tão presentes no sistema manualista, sobretudo com aquele iden­tificado como sedução da continuidade histórica.

O discurso sistemático não é a continuidade ininterrupta dos textos originários desta ou daquela religião. Ele é o resultado da história dos efeitos de um longo processo hermenêutico.46 O re­

curso de recuar até as origens é um instrumento de legitimação

46 Este tema é amplamente tratado por Hans-George Gadamer, em seu céle­bre Verdade e método.

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de determinado grupo que controla o discurso. No cristianismo,

esse grupo é identificado como ortodoxia. Bloch, porém, afirma:

Indispensável, é claro, a uma correta percepção dos fenô­menos religiosos atuais, o conhecimento de seus primórdios não basta para explicá-los. A fim de simplificar o problema che­gamos a renunciar a nos perguntar até que ponto, sob um nome que não mudou, a fé, em sua substância, permaneceu realmente imutável. Por mais intacta que suponhamos uma tradição, fal­tará sempre apresentar as razões de sua manutenção.47

E necessário renunciar à tarefa de simplificação dos problemas. A tendência harmonizadora do sistema manualista, que já se apre­senta na proposta de trabalhar sincronicamente o texto bíblico tra- tando-o tão-somente como texto-prova, esconde o chão concreto da existência humana. Não há harmonia na vida concreta nem na atual, tampouco naquela vivida pelas personagens da Bíblia.

O grande problema da harmonização é que, sob seu véu, fica escondida a concretude da existência de homens e mulheres que amam e odeiam, riem e choram, comem e passam fome, moram e estão desabrigados, oprimem e são oprimidos, concordam e dis­cordam. Quando se nega visibilidade a essa concretude, o que se está fazendo é negar a possibilidade da multiplicidade e do con­traditório que esta carrega consigo.

O discurso teológico sistemático manualista opta pelo caminho da harmonização. Ao tomar qualquer manual sistemático, o leitor, nenhum leitor ou quem sabe somente o leitor estadunidense (e dos finais do século XIX) é incapaz de enxergar as questões que com­põem o arco de seu horizonte existencial, ali contempladas. Os temas são tratados de forma universal, com categorias abstratas e

47 Apologia da História-, p. 58.

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com datas histórico-sociais vencidas. Tudo isso em nome da preser­vação de um suposto discurso original. O quê não se percebe é que a originalidade de um discurso encerra quando se esgotam os ele­mentos que permitem sua compreensibilidade — não somente in­

telectual, mas também afetiva, existencial e espiritual.

Somente na renúncia a todo apriorismo axiomático é que se pode pensar na superação dessa perspectiva harmonizadora,

desistoricizadora e univocizante. Pois é exatamente essa perspecti­va que tem lançado a teologia sistemática no mais alto descrédito, como diz Aulen:

Essa disciplina, a teologia sistemática, não raro tem sido encarada com suspeitas — e o foi especialmente no século XIX — não só pelos que se dedicam aos estudos científicos como também pelos que se ocupam da vida espiritual. A razão dessa suspeita, quanto ao aspecto científico, justifica-se geral­mente pelo fato de se terem aceitado como axiomáticas certas conceituações da função da “dogmática”.

E preciso acolher o múltiplo e também o contraditório, não pelo gosto do contraditório em si, mas porque ele corresponde a comunidades distintas e a distinções numa mesma comunidade. O contraditório não é Satanás querendo desarticular a comunidade de fé: é, antes, o outro exigindo que seu discurso seja também considerado relevante. O que o discurso unívoco faz é identificar o outro com Satanás. Assim, Satanás é o outro. Isso não é mais que um recurso para legitimar um ponto de vista que se pretende hegemônico.

A lógica que subjaz a essa tentativa de hegemonia é a da afir­mação da superioridade de uns sobre os outros, de uma cultura sobre as demais, de um método sobre qualquer outro. Por vezes, a teologia sistemática manualista, univocizante ou hegemônica

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presta-se ao papel de aparelho ideológico dessa tentativa de superposicionamento cultural. Resta dizer não a qualquer tenta­tiva dessa natureza e repetir as palavras de Unamuno:

Tal outro povo é melhor? Perfeitamente, embora não en­tendamos direito o que significa isso de melhor ou pior. E mais rico? Concedido. E mais culto? Concedido também. Vive mais feliz? Já isso... Mas, enfim, seja! Vence, segundo o que chamam vencer, enquanto somos vencidos? Parabéns. Tudo isso está certo, mas é outro. E basta. Porque, para mim, tornar-me outro, quebrando a unidade e a continuidade de minha vida, é deixar de ser o que sou, isto é, simplesmente, deixar de ser. E isso não! Tudo menos isso!48

Reistoricizar é permitir (se é que essa tarefa cabe a alguém) que

o outro seja o outro. E isso não se dá na tentativa de provocar a

unidade a todo custo (sobretudo pelo caminho da harmonização e da univocizaçao), mas antes em ressaltar, ou melhor, em possi­

bilitar a visibilidade das diferenças.

No caminho da afirmação da unidade, do fundo comum a todos, destroem-se as diferenças que, por serem menores que os

grandes traços comuns, passam a ter menor ou nenhuma impor­

tância. É preciso, diante dessas tradições unificadoras e universali-

zantes, afirmar as peculiaridades, diferenças e regionalismos das experiências, dos saberes.

Disso, nenhuma abordagem metodológica que parta dos uni­versais (v. Glossário, universal) (se é que eles existem49) em direção

aos particulares (v. Glossário, particular) dá conta, tampouco ou­

48 Do sentimento trágico da vida, p. 11.49 Já há muito tempo essa suspeição foi levantada pelo nominalismo, ao se

afirmar que somente as coisas tomadas em si têm existência real e concreta.

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tra que pretenda o caminho inverso (dos particulares para os uni­versais), visto que também acabará por submeter os particulares a compreensões universais apriorísticas e axiomáticas.

Essa tarefa deve ser realizada em sua inalienável condição hu­mana e, portanto, delimitada e concreta, excetuando a dimensão da experiência de fé, que, embora seja também uma experiência só realizável na radicalidade da existência humana, deve ser enca­rada em sua dimensão fenomenológica. Todos os outros elemen­tos do evento nuclear da teologia são fundamentalmente humanos e devem ser tratados como tais.

Ainda não é suficiente, porém, falar sobre a humanidade desse processo, pois por humanidade entende-se uma categoria universal que não permite a visualização de rostos, histórias, lutas, de jogos e prazeres, que não se devem ausentar da produção do discurso teoló­gico em nenhum momento, tampouco da fase de sistematização.

Nisso consiste a importância de reabilitar a mediação cultural como locus metodológico. Só à medida que a mediação cultural— mas não outra senão aquela mais próxima, situada, local — for reistoricizada e reconduzida a seu papel de dar concretude à expe­riência de fé é que o discurso sistemático revelará em suas entra­nhas o horizonte existencial da comunidade à qual se dirige.

Para a realização dessa perspectiva metodológica, que acolhe a limitação do discurso teológico como uma de suas maiores quali­dades, é necessário ainda um aporte teórico que corresponda ao pano de fundo já estabelecido: a antropologia de Geertz, princi­palmente em seu capítulo sobre o saber local.

Contribuições de Geertz com sua compreensão acerca do local como espaço hermenêutico de cultura

Embora alguns dos que se julgam donos de alguma grande verdade ainda andem por aí, qualquer proposta de uma “teoria

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geral” a respeito de qualquer coisa social soa cada vez mais vazia, e aquele que professa ter tal teoria é considerado mega­lomaníaco. Suponho ser discutível se isso acontece porque ainda é muito cedo para se ter esperanças de uma ciência unificada, ou porque é tarde demais para acreditar nela. Nunca, porém, esta ciência única pareceu tão distante, mais difícil de imagi­nar, ou menos desejável do que agora.50

A aproximação aqui proposta entre teologia e antropologia, especificamente na perspectiva de Clifford Geertz,51 caminha na mesma direção dos elementos que compõem o pano de fundo de nossa perspectiva metodológica. Com a morte do eixo gravitacio- nal em torno do qual orbitavam as narrativas universais e essencia- listas, surge a possibilidade imperiosa de afirmação das realidades locais, onde se realizam as experiências concretas da existência, inclusive as da fé.

50 Clifford G eertz, Saber local, p. 10.51 O antropólogo americano Clifford Geertz (1926-), ao longo de sua carreira

iniciada na década de 1950, dedicou-se a uma variedade impressionante de temas: comércio local, desenvolvimento econômico, estruturas políticas tradicionais, parentesco e vida familiar, além da própria antropologia, da qual se tornou um dos principais teóricos contemporâneos. No tocante à religião, suas referências empíricas são experiências de campo vividas na Indonésia (década de 1950) e no Marrocos (década de 1960), base para uma série de escritos etnográficos. Nesse veio, além de artigos, Geertz publi­cou dois livros. Em A religião de Java (1960) procura traduzir as observa­ções realizadas numa cidade da Indonésia na apresentação de três variantes de uma tradição religiosa que se compunha de animismos: hinduísmo, budismo e islamismo. Em Observando o Islã (1968) acompanha em pers­pectiva histórica a relação entre a religião islâmica e duas formações nacio­nais, Indonésia e Marrocos. Paralelamente, Geertz escreveu textos de natureza teórica, com destaque para “a religião como sistema cultural”, publicado originariamente em 1966, e para o verbete que integra a Enciclopédia inter­nacional das ciências sociais (1968). Em seu livro mais recente, um capítulo é dedicado ao tema, articulando a retomada de percepções teóricas com obser­vações sobre a religião na cena mundial contemporânea. (Apud T eixeira, Faustino (Orgs.). Sociologia da religião. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 198-217.)

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É preciso abrir mão de teorias gerais, de tentativas de dizer tudo sobre o todo. Não é na explicação do todo que o discurso teológico encontrará sua relevância, mas na auscultação detida das partes. Se a teologia chegar a sistematizar o todo (tarefa sem­pre suscetível à manipulação e arrogância), deverá ser em virtude da soma das falas de suas partes. Em suma, é preciso renunciar ao encanto pretensioso do controle de um saber universalizante. Isso demanda uma desestabilização metodológica, uma desconstrução de paradigma, como diz Geertz:

Abandonar a tentativa de explicar fenômenos sociais através de uma metodologia que os tece em redes gigantescas de causas e efeitos, e, em vez disso, tentar explicá-los colocando-os em estruturas locais de saber é trocar uma série de dificuldades bem mapeadas, por outra de dificuldades quase desconhecidas.52

Essa necessária mudança metodológica, da perspectiva univer­sal para a local, não é geradora de estabilidades. Não se pretende indicar um modelo sobre o qual se possa trabalhar uma teologia sistemática que privilegie o “local” com seu espaço hermenêutico de afirmação do próprio discurso. Isso seria negar tudo o que até aqui se quis dizer. Num discurso teológico que privilegie o “lo­cal” , este é que irá oferecer os elementos para a sistematização das próprias experiências de fé.

A mediação cultural é aquela que já se encontra no interior das comunidades de fé. Não há método apriorístico nem axio­mas universais. Todos os elementos necessários à produção do discurso sistemático estão à disposição dos teólogos nas frontei­ras de sua comunidade ou daquela que estes tornaram como suas. Para Geertz, é como trocar um terreno bem mapeado por

52 Saber local, p. 13.

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outro, desconhecido. E é exatamente isto: assumir a tarefa teo­lógica na dimensão sistemática ou qualquer outra em sua condi­

ção de imprevisibilidade, em sua abertura para o vivido muito mais que para o imaginado. Nisso consiste a superação de um saber teológico desencarnado. Os mapas e as bússolas levam às

mesmas regiões geográficas, tanto do passado quanto do presen­te (o sul de ontem é o mesmo de hoje), embora isso não signifi­

que ir às mesmas pessoas.Ao ter de reinventar os instrumentos de sistematização das ex­

periências de fé, a teologia sistemática aproxima-se da teologia prática. Essa mútua iluminação significa assumir o protagonismo dos atores sociais locais, porque é na trajetória desses que o evento teológico original53 se atualiza. Afirma Pegoraro:

Por tudo isso, o ser humano não é uma essência dada de uma vez por todas, mas é uma existência que se constrói e que se conquista cada dia ao longo da história [...] Somos uma existência em processo de vir-a-ser nunca acabado.54

Nesse sentido, a perspectiva metodológica aqui esboçada, que assume o protagonismo dos saberes locais, das mediações cultu­rais das comunidades de fé situadas, deverá trilhar o caminho de distanciamento das teorias que partem de princípios universais,

estáveis e absolutos.55 É abandonar os mapas-múndi, continen­tais para escrever outros, a lápis e em papel de pão, mais modes­

tos, menos detalhados e, sobretudo, mais delimitados.

53 No caso da teologia cristã, é o evento pascal que se atualiza no interior da comunidade de fé. Mas certamente a atualização de eventos originários se dá no interior de outras comunidades de fé, que também podem ser eclip­sados por sistematizações universalizantes.

54 Fenomenologia e análise do existir, p. 36.55 Idem, ibidem, p. 36.

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Afirmar, porém, que não há um modelo predeterminado de

aproximação das experiências de fé peculiares as comunidades re­

ligiosas, no intuito de constituí-las discurso sistemático, não sig­

nifica dizer que não haja critérios metodológicos de aproximação

a tal fenômeno ou que estes não sejam válidos.

Os instrumentos de aproximação que constituem a aborda­

gem metodológica são necessários até mesmo para identificá-la em sua peculiaridade. Nesse sentido, é preciso indicar quais ins­

trumentos de aproximação compõem a abordagem que temos pro­posto. Nisso consistem as contribuições da antropologia de Geertz.

São dois os instrumentos que de forma complementar agem

aqui no intuito de possibilitar uma nova perspectiva discursiva à

teologia sistemática. O primeiro Geertz denomina “saber local” .

Este opera com a função de impor limites, ou seja, delimitar o

alcance dos postulados teológicos, assim como do discurso que se

possa emitir com base neles. O segundo Geertz chama “investiga­

ção do ponto de vista dos nativos”. Este faz perceber o necessário

protagonismo dos sujeitos históricos situados em determinado

local.Na perspectiva de um “saber local”, Geertz indica a irrelevân­

cia de uma abordagem que parta dos universais, de categorias generalizadoras. Ele se expressa nos seguintes termos:

A maioria dos universais é tão geral que não tem força ou interesse intelectual, é uma grande banalidade à qual faltam minuciosidade ou surpresa, exatidão ou revelação, e que por­tanto, tem pouquíssima serventia (“os povos de todas as religi­ões têm idéias sobre as diferenças entre os sexos...”); quando os universais têm um certo grau de não-trivialidade, pormenorização e originalidade, quando realmente afirmam algo suficientemente interessante para estar errado (como a ubiqüidade do comple­

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xo de Édipo, a necessidade funcional de as psiques e socieda­des terem costumes ligados ao luto...), eles são infundados.56

E continua, afirmando que há danos causados por uma pers­pectiva que parta dos universais:

A busca de universais afasta-nos do que de fato se revelou genuinamente produtivo, pelo menos na etnografia [...] Isto é, das obsessões intelectuais particulares, e nos leva para uma abrangência rala, implausível e predominantemente pouco ins­trutiva. Se você quiser uma boa generalização prática da antro­pologia, sugiro a seguinte: qualquer frase que comece por “Todas as sociedades têm...” é infundada ou banal.57

Essa visão de Geertz que pretende chamar a atenção da prática

antropológica à necessidade de voltar-se para a etnografia, bus­cando nesta o ponto de partida concreto para qualquer postula­do, adapta-se perfeitamente à nossa proposta metodológica.

Voltar-se contra as generalizações lingüísticas e conceituais con­

siste no pólo de contato entre este capítulo da antropologia de Geertz e a perspectiva teológica com que até aqui trabalhamos.

Além da negação das generalizações lingüísticas e conceituais, o conceito de Geertz sobre o saber local contribui ainda com ou­tros elementos, para possibilitar um discurso que não se identifi­que com qualquer forma de saber desencarnado. O primeiro deles é a necessidade de assumir limites, tanto na dimensão da reflexão que se volta aos objetos quanto na emissão de postulados. Discor­

rendo sobre essa necessidade com base no conceito de saber local, ele afirma:

56 Nova luz sobre a antropologia, p. 125.57 Idem, ibidem, p. 126.

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O título dessa discussão parece'presumir que a existência de limites é um argumento contrário a alguma coisa. (Por que não é ela chamada “o saber universal e seus limites”? Possivel­mente porque fazê-lo levantaria a possibilidade de que, sendo universal, ele não tivesse nenhuma e, portanto, não fosse um saber). Para minha mente limitada, o reconhecimento direto e franco dos limites — um dado observador, num certo momen­to e num dado lugar — é uma das coisas que mais recomen­dam todo esse estilo de realizar pesquisas. O reconhecimento de que todos somos o que Renato Rosalvo chamou de “obser­vadores posicionados (ou situados)”.58

E na renúncia de visões que “partem de lugar nenhum” que se

fundamenta um discurso concreto, situado e voltado para os ho­

mens e mulheres que não podem existir senão nos limites do arco de seus horizontes existenciais.

E óbvio que o acolhimento do limite no discurso teológico pode

sugerir enfraquecimento, e é exatamente assim. Percebendo-se li­

mitado, o discurso teológico sistemádco estará enfraquecido. Per­

derá sua capacidade totalizadora e universalizante e não poderá falar do todo com base em axiomas ou em categorias apriorísticas —

nisso consiste a contribuição da limitação de um saber local.

Não podendo falar com base em generalizações lingüísticas e

conceituais, o discurso teológico precisaria estabelecer-se sobre

“dados circunstanciados”59 — outro elemento que o saber local

oferece a essa perspectiva metodológica. Se não é mais possível

dizer conceitualmente o todo, “ao menos podemos dizer alguma

coisa (não que sempre o façamos, é claro) com certa concretude”.60

58 G eertz, Nova luz sobre a antropologia, p. 127.59 Idem, ibidem, p. 128.60 Idem, ibidem, p. 128.

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Voltar-se para determinada situação existencial concreta, aus­cultar a realidade de homens e mulheres situados e aproximar-se

das comunidades de fé para fenomenologicamente ouvir suas

experiências com o sagrado: nisso consiste privilegiar os “dados

circunstanciados”. Geertz afirma:

E claro, podemos estar errados, e muitas vezes estamos. Mas “apenas” ou “meramente” tentar compreender o Japão, a China, o Zaire ou os esquimós centrais (ou melhor, algum aspecto da vida deles num pedaço de sua linhagem no mundo) não é uma ninharia, ainda que pareça menos impressionante do que as explicações, as teorias ou seja lá o que tenha a “His­tória”, a “Sociedade”, o Homem, a Mulher, ou alguma outra entidade grandiosa e fugidia em letras maiúsculas.61

Assumir “limites” e “dados circunstanciados” para situar o dis­curso teológico sistemático no âmbito de um saber local é, por um lado, abrir mão de certo poder e domínio, mas, por outro, poder dizer efetivamente algo relevante a uma comunidade me­nor, porém existente. A opção está entre dizer universalmente a

um todo que não existe ou dizer local e particularmente a um grupo localizado composto por homens e mulheres com rostos e existência concretas.

Uma abordagem teológica que pretenda sistematizar a expe­riência de fé de uma comunidade local precisará, portanto, com­preender sua condição de precariedade, ou seja, sua incompletude. Isso exige do discurso teológico certa dose de humildade e uma disposição ao diálogo franco e aberto. Essa caminhada “ao parti­cular, ao local e ao oportuno, é um movimento, não uma doutri­

61 G eertz, Nova luz sobre a antropologia, p. 128.

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na, e, como qualquer movimento, precisa de realizações, não de

máximas para sustentá-lo”.62

Não sei se podemos dizer que isso é satisfatório como “res­posta às reivindicações críticas da universalidade e autorida­de” feitas contra o trabalho que emerge de “ponto(s) histórico(s) no tempo ou [...] de ponto(s) geográfico(s) no espaço” (como diz a acusação feita a esta discussão), nem tampouco o que se poderia considerar “satisfatório” aqui. Mas, como todo “saber local”, ele é substantivo, é de alguém e, por enquanto serve.63

Em interdependência com o saber local opera aquilo que Geertz

chama “investigação do ponto de vista do nativo”. Esse é o segun­do instrumento teórico para a proposição da abordagem metodo­lógica pretendida.

Investigar “do ponto de vista do nativo”64 significa assumir o

protagonismo dos sujeitos históricos situados em determinado local. É a renúncia de se impor um ponto de vista sobre uma outra realidade. Isso não significa uma anulação dos teólogos, pelo abandono dos elementos que compõem sua formação crítica, mas uma postura fenomenológica que permite não reduzir os fenôme­nos religiosos locais a outra condição senão àquela que eles apre­sentam.

E o cultivo da admiração e do respeito ao outro, ao diferente, ao não-eu. E a radical abertura à polissemia intrínseca às experiên­

62 Geertz, Nova luz sobre a antropologia, p. 129.63 Idem, ibidem, p. 129.64 Geertz chama atenção para a impropriedade da expressão “nativo”, porém

utiliza-a para indicar a necessidade de assumir a perspectiva do outro quan­do se vai falar dele e de seu universo. Essa perspectiva corresponde à afirma­ção hermenêutica de que toda interpretação deve levar em conta não só o solo pisado pelo intérprete, como também o olhar de quem analisa.

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cias de fé. É a aceitação da legitimidade do múltiplo. Ou, por

via negativa, é a renúncia a toda discursividade unívoca e

univocizante.A investigação “do ponto de vista do nativo” é realizada por

Geertz baseada na influência do pensamento do psicanalista Heinz Kohut, que propõe os conceitos de experiência-próxima e experiên-

cia-distante.65 Geertz toma essa contribuição como uma espécie

de tipologia que revela atitudes de investigação.

Um conceito de “experiência próxima” é, mais ou menos, aquele que alguém — um paciente, um sujeito, em nosso caso um informante — usaria naturalmente e sem esforço para de­finir aquilo que seus semelhantes vêem, sentem, pensam, ima­ginam etc. e que ele próprio entenderia facilmente, se outros o utilizassem da mesma maneira. Um conceito de “experiência distante” é aquele que especialistas de qualquer tipo — um analista, um pesquisador, um etnógrafo, ou até mesmo um padre ou um ideologista — utilizam para levar a cabo seus objetivos científicos, filosóficos ou práticos.66

Até mesmo o teólogo, de posse do instrumental que corres­ponde à experiência-distante, ao se dirigir às experiências de fé no

intuito de torná-las discursos sistemáticos, obtém na experiência-

próxima meios para ver os homens e mulheres como protagonis­

tas dessas experiências (e da multiplicidade correspondente a estas)

e também do próprio discurso que se pretende sistematizar.A questão não é se eles estão próximos ou distantes das realida­

des concretas, em que as comunidades atualizam as experiências originárias de sua fé. Não estamos falando apenas de proximidade

65 Clifford G eertz, Saber local, p. 87.66 Idem, ibidem, p. 87.

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física. Experiência-próxima e experiêncià-distante são determina­ções epistemológicas que, se conjuntamente trabalhadas, garantem tanto o rigor acadêmico do discurso teológico quanto sua relevância

histórica, religiosa, política, cultural e espiritual — não para a hu­manidade, mas para homens e mulheres situados no mundo.

Privilegiar a experiência-próxima, mesmo sem abrir mão dos

rigores críticos que algum distanciamento oferece, é investigar o

fenômeno religioso presente na experiência de fé, levando-se em

consideração prioritariamente o “olhar do nativo”, daquele que

empresta ao fenômeno religioso a carne simbólica da linguagem,

para que este ganhe cognoscibilidade.

Para captar conceitos que, para outras pessoas, são de ex­periência-próxima, e fazê-lo de uma forma tão eficaz que nos permita estabelecer uma conexão esclarecedora com os con­ceitos de experiência-distante criados por teóricos para captar os elementos mais gerais da vida social, é, sem dúvida, uma tarefa tão delicada, embora um pouco menos misteriosa que colocar-se “embaixo da pele do outro”, [sic]67

Investigar “do ponto de vista do nativo”, em sua radical com­preensão epistemológica, consiste em perceber a pluralidade

discursiva como resultado da multiplicidade dos locais culturais.

Isso não é uma realidade a ser combatida apologeticamente, mas

um solo fecundo para a teologia, desde que esta compreenda a

limitação imposta à sua discursividade. Em suma, é como afirma

Geertz, na tentativa de mostrar onde encontra o “sentido concre­

to” para tal comunidade: “Em um certo sentido, ninguém sabe

isto tão bem quanto eles próprios; daí o desejo de nadar na cor­

67 G eertz, Saber local, p. 88.

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rente de suas experiências, e a ilusão posterior de que, de alguma

forma, o fizemos” .68Dessa forma, estar-se-ia rompendo definitivamente com a pers­

pectiva teológica do sistema manualista, que, graças à cristaliza­ção da metafísica e de sua ascensão a norma prescritiva, formata toda discursividade com base num único padrão afirmado como ortodoxo, ou seja, como verdade teológica. Quando se encara o outro como protagonista de sua história e de todas as experiências

que a compõem, o que pode acontecer é o que Geertz registra:

Em vez de tentar encaixar a experiência das outras culturas dentro da moldura desta nossa concepção, que é o que a tão elogiada “empatia” acaba fazendo, para entender as concep­ções alheias é necessário que deixemos de lado nossa concepção, e busquemos ver as experiências de outros com relação à sua própria concepção do “eu”.69

Com essas contribuições do pensamento de Geertz, trabalhadas sobre o pano de fundo da morte de Deus como ponto de partida para a libertação da metáfora, é possível tecer algumas considera­ções sobre uma possível perspectiva metodológica destinada à teo­logia sistemática.

Considerações sobre a possibilidade de uma nova abordagem metodológica para o discurso teológico sistemático

Foi com o propósito de identificar a existência de uma discursividade univocizante na teologia sistemática, tão bem ca­racterizada pela modalidade manualista, desde sua origem até

68 G eertz, Saber local, p. 89.69 Idem, ibidem, p . 91.

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articulações mais recentes, e o impacto'que esse fato causa sobre

o núcleo da teologia, que desenvolvemos os argumentos prece­

dentes.

Os indícios do atentado à vida da teologia estão por toda par­

te: desde a “experiência de fé” agonizante, que se vê substituída

por um modelo doutrinário que tenta regular sua intrínseca sub­

jetividade, passando pela “mediação cultural”, que a partir de um

processo de desistoricização (v. Glossário) foi relegada à identifica­

ção com um cadáver mumificado detentor das chaves do sentido,

até o “discurso sistemático” que, desviado de sua condição de

construto social, observa seu definhamento profundo e contí­

nuo, transmudado na tentativa apologética de encontrar o elixir

da vida.

M odelo doutrinário regulador

Saber desen carn ado (ou mumificado)

Enquadram entoapologélico

Uma forma ainda mais adequada de descrever a dependência funesta que o discurso unívoco carrega em si e dissemina por onde passa pode-se dar numa leitura interpretativa (e não poderia ser diferente) da obra de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina.

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No diálogo entre Severino e a mulher da janela, que mais tarde descobre ser rezadeira, desvenda-se um paradoxo do ser­

tão, lugar das experiências profundas da vida.70 A sobrevivência

que se afirma como “sobremorrência”, ou seja, a sobrevivência com a morte, ou melhor, da cultura da morte (e por que não da

morte da cultura?).

— Agora se me permite

minha vez de perguntar:

como a senhora, comadre,

pode manter o seu lar?

— Vou explicar rapidamente,

logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta,

vivo de a morte ajudar.

— E ainda se me permite

que lhe volte a perguntar:

é aqui uma profissão

trabalho tão singular?— É, sim, uma profissão,

e a melhor de quantas há:

sou de toda a região rezado ra titular.

— E ainda se me permite

mais outra vez indagar:

70 A imagem do sertão, do deserto, dos lugares áridos e desprovidos dos ele­mentos fundamentais à vida é recorrente na literatura brasileira. Sem querer impor um sentido à obra de João Cabral, mas compreendendo sua abertura polissêmica, pode-se sugerir que esses espaços são sempre reservados a expe­riências existenciais profundas.

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é boa essa profissão em que a comadre ora está?— De um raio de muitas léguas vem gente aqui me chamar;a verdade é que não pude queixar-me ainda de azar.— E se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim neste lugar?— Como aqui a morte é tanta só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa no mar, retirantes às avessas, sabem do mar para cá.Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato;

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nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear.71

O discurso unívoco mantém com a teologia uma relação mui­to semelhante àquela que a vida mantém com a morte nos sertões cabralinos. Sua sobrevivência só é possível a partir da morte. Da morte da palavra polissêmica, da realidade múltipla, da existência concreta. Da morte de todo vir-a-ser, que, asfixiado, é forçado a dar lugar a um pretenso ser que se afirma na estabilidade da essência distante de toda realidade.

Essa morte da qual depende a vida da univocidade, não é even­to pascal nem reencarnatório, tampouco qualquer outra perspec­tiva redentora que a morte possa oferecer. É morte definitiva, que interrompe a vida e rouba qualquer esperança. Ainda pior: é mor­te que vai pedagogicamente criando ao seu redor uma cultura de morte e a morte da cultura.

E na declaração da morte dessa morte, portanto, que a vida — não da palavra “vida”, mas da vida da palavra — pode novamente ressurgir. Essa é, de fato, a grande contribuição do pensamento de Nietzsche à teologia, que, com isso, vê liberta sua possibilida­de polissêmica revelada na metáfora.

Após as ferozes agressões “a golpes de martelo” com que Nietzsche desafiou a metafísica platônica e a teologia que se iden­tificou com ela, o discurso teológico em geral e o sistemático em particular estão liberados de sua órbita ao redor de um único eixo hermenêutico.

Isso significa uma reação do evento nuclear da teologia, que não mais submete a experiência de fé e a mediação cultural a um

71 João Cabral de, M ello N e t o . Morte e vida severina e outros poemas em voz alta. 26. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 84-5.

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discurso unívoco mantido por uma'prática apologética. Antes, integra-se ao devir, à concretude do mundo, no sentido de “virar a velha sentença doutrinai em sentença nova e contrária: ‘Extra mundum nulla salus, fora do mundo não há salvação”.72

Dinamizado pelo sopro de vida contido no último suspiro do

Deus morto, o discurso sistemático pode-se aproximar do evento teológico nuclear com uma nova postura.

MEDIAÇÃOCULTURAL

Aproxim açãofenom enológica

Saberencarn ado

Aberturapolissêm ica

Quanto à “experiência de fé”, a aproximação é fenomenológica. Admiração e respeito à experiência do cristão com relação ao sa­grado passam a ser elementos fundadores no processo de cognoscibilização da fé. A fé cognoscibilizada não se pode furtar à transparência dos elementos peculiares das múltiplas experiências.

Isso é uma abertura ao sagrado — não a uma codificação ou identificação deste, mas àquele que se revela no horizonte exis­tencial concreto de homens e mulheres situados histórico-cul- turalmente. Dessa aproximação fenomenológica, depende toda a discursividade teológica na tarefa de sistematizar as experiên­cias de fé.

72 Edward S ch illeb eeck x , História humana, p. 13.

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Essa aproximação, por sua vez, aponta para um saber teológico

encarnado. Encarnação que acontece na aceitação radical da pró­

pria cultura como elemento mediador de todo o saber teológico.

Isso consiste em abrir mão de toda universalização de um local

em nome da universalização do “local” como espaço hermenêutico

gerador de saberes. É lançar fora a univocidade sustentadora de

projetos de domínio, em nome do acolhimento do falar metafóri­

co que permite a identificação do eu existencial naquele discurso

que se dirige a ele, como diz Hick:

O falar metafórico produz o efeito de uma familiaridade ou intimidade entre os falantes e entre eles e seu mundo, de modo que a enunciação de uma metáfora pode ser vista como um sinal de que o falante considera seus ouvintes como per­tencentes a um subconjunto diferenciado por um vínculo de intimidade.73

Isso significa uma virada lingüística, que, abandonando a di­

mensão conceituai da fala, abre-se à sua condição simbólica para

produzir um saber encarnado. Para Forte, significa abandonar a

dimensão “sistemática” da teologia em nome da “simbólica”:

Assim a “simbólica” retorna à práxis — não com sínteses definitivas e completas, com sistemas fechados e onicom- preensivos, mas com propostas provisórias e críveis, como convém ao pensamento da profecia. A teologia como história se torna docta spes, esperança em busca da palavra com que se dizer crivelmente, spes quaerens intellectum74

73 H ick, A metáfora do Deus encarnado, p. 138.74 Forte, Teologia em diálogo, p. 116.

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O discurso resultante da aproximação fenomenológica à expe­riência de fé geradora de um saber encarnado só pode ser

polissêmico. Busca trabalhar o conjunto das experiências religio­sas de determinada comunidade de fé em sistemas que compre­endem sua limitação e incompletude.

Esse discurso sistemático polissêmico ocupa um lugar impor­tante somente na medida em que retroalimenta uma postura

fenomenológica e encarnacional, com respeito à experiência de fé e à mediação cultural.

O acento da perspectiva metodológica que propomos não re­

cai, portanto, sobre o discurso sistemático, como pretende a pers­pectiva univocizante, e sim sobre o processo de vivência da fé no

interior das culturas, pois é esse processo que possibilita a atuali­zação do evento originante da fé, e não o discurso cristalizado, como pretende a ortodoxia.

Os critérios gerais adequados à nova abordagem metodológica aqui proposta são aqueles oferecidos pela antropologia de Geertz: “saber local” e investigação “do ponto de vista do nativo”, que

agindo de forma complementar garantem, do ponto de vista teó­rico, a autonomia das comunidades locais diante da tarefa de sis­tematizar suas experiências religiosas.

Em suma, o método proposto não garante nenhum postulado teológico, nenhuma definição quanto aos temas da fé, nenhum esquema apriorístico ou axiomático, mas simplesmente ferramen­tas que permitam à própria comunidade de fé falar sobre suas experiências, sem ter de se dobrar a normas prescritivas nem a definições teológicas (preconcebidas em algum momento históri- co-cultural) que se queiram universais.

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4Conclusão

Passaremos em revista, mesmo que resumidamente, as conse­qüências do esforço de pensar criticamente o discurso teológico sistemático do sistema manualista protestante.

A hipótese sobre a qual refletimos foi a de que esse discurso, fortemente marcado por tendências totalizadoras e universalizantes, opera na produção de um discurso unívoco e univocizante.

Buscamos evidenciar ao longo da argumentação que essa uni- vocidade, radicalmente contrária a toda multiplicidade, procurou na metafísica seu melhor instrumento teórico capaz de possibilitar uma abordagem metodológica perpetuadora da univocidade.

Além de evidenciar o processo metodológico que procura man­ter a univocidade discursiva do sistema manualista, buscamos propor uma abordagem metodológica capaz de superar a univer­

salização de um discurso que é habitualmente elevado ao status de norma prescritiva.

O primeiro passo para se desenvolver uma análise do discurso

teológico sistemático univocizante consistiu na tentativa de rastrear

sua gênese. Isso se deu pela aproximação dos elementos da teoria

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do conhecimento, que deu suporte à teologia cristã em suas pri­

meiras elaborações.Esse esforço levou-nos à constatação de um processo de suble-

vação da metafísica no horizonte teológico cristão. Ou seja, foi na

metafísica que a tendência univocizante da teologia dogmática,

guardada pela ortodoxia, encontrou seu melhor instrumento teó­

rico.

Temos como hipótese que essa sublevação ocorreu em detri­

mento da metáfora, que consistia no veículo lingüístico ampla­

mente utilizado e mais adequado, como apontado neste texto,

no âmbito da comunicação das experiências e dos temas da fé na

comunidade cristã pré-filosófica (no que se refere à filosofia pla­

tônica).Com isso queremos dizer que a teoria do conhecimento grada-

tivamente foi negando a legitimidade da multiplicidade e aproxi-

mando-se da univocidade. Isso é o mesmo que dizer que ela foi

afastando-se da metáfora e aproximando-se da metafísica.

Para evidenciar essa hipótese, tentamos refazer o caminho da

univocidade na filosofia grega, ou seja, o surgimento da metafísica, para então propor que a teologia cristã teria percorrido caminho

semelhante.No caso da filosofia grega, a sublevação da metafísica surgiu

como opção à univocidade, como abandono e negação de toda

crença e opinião (toda multiplicidade), em nome da ciência, da episteme (do unívoco). Essa opção é tipificada no confronto do

pensamento de Parmênides e no de Heráclito e na eleição do pri­

meiro.A escolha da negação da multiplicidade significa abandonar

a possibilidade de qualquer teoria do conhecimento com base

na concretude da vida, da existência ordinária, do real circuns­

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crito na materialidade. Em outras palavras, a existência concreta

não pode oferecer ao pensamento filosófico mais que engano e

confusão.

O caminho proposto por Parmênides foi consagrando-se à

medida que foi sendo assumido pelas duas principais escolas da

filosofia grega clássica. A metafísica, característica fundamental

do pensamento de Parmênides, foi assumida e radicalizada tanto

por Platão quanto por Aristóteles. Foi o primeiro, contudo, quem

deu a ela os primeiros contornos, que seriam acolhidos pela teolo­

gia crista em sua trajetória rumo à ortodoxia e seus dogmas.

Esse mesmo caminho (da metáfora à metafísica) foi percorrido

pela teologia cristã, tornando-se o caminho da afirmação da

univocidade no interior de sua linguagem. Mesmo tendo nascido

(e isso boa parte da linguagem do N T revela) num ambiente de

uma linguagem plural, a teologia rapidamente se dirigiu à nega­

ção de sua legitimidade.

Essa negação, marcada por violentos esforços apologéticos,

encontrou no sistema filosófico platônico os elementos teóricos adequados a seu intento: excluir a multiplicidade e instaurar a

univocidade.

A aproximação do pensamento cristão à filosofia grega é carac­

terizada por figuras importantes do cristianismo como Justino

Mártir, Clemente de Alexandria e Orígenes, mas principalmente

Agostinho e, em alguma medida, Tomás de Aquino.

Instrumentalizada por esses ícones do pensamento cristão, a

filosofia grega, mais especificamente a metafísica platônica, tor­

nou-se o melhor sustentador da univocidade. Prática essa que se

solidificou porque constituiu um método de produção de conhe­

cimento teológico, principalmente para a teologia dogmático- sistemática.

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O segundo passo, após buscar a gênese do discurso univocizante

praticado pela teologia sistemática, procurou evidenciar seus me­

canismos de perpetuação e os danos causados à relação da teo­

logia com as comunidades de fé. Chamamos a isso “processo de

elaboração da univocidade universalizante”. Esse processo opera

com o propósito de cristalizar uma perspectiva metodológica, iden­

tificando-a como norma prescritiva, supra-histórica e totalizadora.

Para mostrar como funciona, buscamos desenvolver um concei­

to que permitisse falar de um núcleo ou evento nuclear comum a

toda a teologia, denominado “fé cognoscibilizada”, composta de

três elementos que, juntos, a perfazem: experiência de fé, media­

ção cultural e discurso sistemático.Esse núcleo da teologia é que garante, se observado, sua rele­

vância diante das comunidades de fé. O discurso univocizante

impede esse evento nuclear da teologia. Isso se dá quando o dis­

curso cristaliza uma mediação cultural, que é o espaço metodoló­

gico, elevando-a ao status de norma prescritiva.Ferindo de morte a mediação cultural, estanca-se a circularidade

do núcleo, concentrando toda a força no discurso sistemático que, de simples construto, passa a ser discurso ortodoxo, devendo ser

dito de forma unívoca. Na medida em que o discurso sistemático

é supervalorizado, a mediação cultural perde espaço teológico;

dessa forma a experiência de fé distancia-se das realidades concre­

tas. O resultado é que as experiências de fé passem a acontecer

distantes da história “real” das pessoas e das sociedades.

O processo implica uma desistoricização da produção teológi­

ca, isto é, um distanciamento entre os postulados teológicos e as

comunidades para os quais eles são dirigidos. À medida que se afasta da existência concreta, o discurso sistemático manualista

encontra-se ainda mais à vontade para propor postulados que

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aprofundam as marcas de sua tendência totalizadora e univer- salizante.

Essa tendência é fortalecida quando surge uma série de meca­nismos de controle sobre qualquer discurso que destoe da ten­dência unívoca. Tais mecanismos agem para seduzir teólogos e a comunidade de fé com vistas à simples reprodução sistemática de um discurso também sistemático e fora dos limites da experiência histórica.

O primeiro e o segundo passos perfizeram o movimento que vai da metáfora à metafísica. O terceiro aponta para a necessidade de trilhar o caminho da metafísica à metáfora e oferece os instru­mentos teóricos para tal empreendimento.

Tanto o conceito de metafísica quanto o de metáfora podem ser tomados aqui como metáforas, ou seja, imagens com as quais se pôde questionar o papel da linguagem quando aplicada ao dis­curso teológico sistemático.

Para efetivar nossa proposta, buscamos restabelecer o espaço da mediação cultural como locus metodológico. Nesse sentido, buscamos afirmar o “local” com o princípio de uma nova abor­dagem metodológica ao discurso teológico sistemático. Para isso, foi estabelecido um pano de fundo teórico que possibilitasse a valorização da multiplicidade e de possíveis afirmações dos sa- beres locais.

Tomando-se como ponto de partida a morte de Deus, via Nietzsche, pudemos afirmar a libertação da metáfora, cuja lápide se identificava como ortodoxia.

A libertação da metáfora proposta por Vattimo, sobre a leitura de Nietzsche, fundamentou a proposta da afirmação do “local” como espaço legítimo do discurso teológico. A univocidade, por isso, deveria ceder espaço à polissemia discursiva que melhor cor­responde à multiplicidade cultural.

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Esse caminho possibilita a reabilitação da mediação cultural

que provoca a reistoricização do discurso’teológico. Os elementos

lingüísticos que comunicam sob forma de discurso sistemático a

experiência de fé devem ser próprios da comunidade que a experi­

menta.

Sobre o pano de fundo da morte de Deus e da libertação da

metáfora, fixaram-se as contribuições do antropólogo Clifford

Geertz para se desenvolverem os elementos necessários à nossa

abordagem metodológica.Esses elementos — “saber local” e “investigação do ponto de

vista do nativo” — foram tomados para afirmar uma abordagem

metodológica que inicia sua trajetória confessando sua limitação— não por ausência de rigor científico, mas por força de sua con­

dição genética.

Ela nasce para afirmar o local, não o universal; o polissêmico,

não o unívoco; o múltiplo, não o ortodoxo. Assim, nossa proposta é a de que, na fragilidade discursiva consciente, a teologia pode

encontrar sua relevância.O leitor observará que ao longo da produção deste texto, al­

guns elementos se mostraram deficitários, ou por impossibili­

dade de aprofundamento em alguns momentos, ou por nossa

limitação. Alguns desses elementos merecem ser mencionados.

O primeiro deles foi a pouca atenção dispensada a Aristóteles e

a Tomás de Aquino, uma vez que nos detivemos na matriz filosó­

fica que mais influenciou o pensamento cristão dos primeiros sé­

culos e do protestantismo.O segundo elemento é a heterodoxia com que se tratou a orto­

doxia. Está claro para nós que a leitura da ortodoxia aqui feita não é a corrente. Isso não se deu desavisadamente, mas de forma cons­

ciente e proposital.

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O terceiro — mas certamente não o último — é a escolha

proposital pela falta de precisão ao se propor uma abordagem

metodológica: propor um método acabado e formatador parece­

ria uma total incoerência.

O mais adequado seria propor linhas gerais que possibilitas­

sem o respeito à autonomia das culturas locais no processo de

produção teológica. Isso, no entanto, pode ter limitado a efetivação

desse tópico.

Outro motivo dessa falta de precisão está em não considerar­

mos o tema suficientemente esgotado. Isso significa sugerir outro

tema, quem sabe o desdobramento deste, a ser explorado.

Faltam ainda a) uma discussão no campo da teologia das reli­

giões de caráter macroecumênico que possa abordar a discursividade

teológica com base na identidade cultural de cada credo religioso

em sua decorrente multiplicidade e b) uma melhor compreensão

da ortodoxia cristã, e de outras matrizes religiosas, sobre uma aná­

lise de discurso que tenha na morte de Deus seu único eixo gravi- tacional.

Embora consciente das limitações apresentadas, julgamos ter contribuído para uma abordagem metodológica e, o mais impor­tante, para que a teologia, sobretudo em seu corte sistemático, encontre, de forma respeitosa nas comunidades locais e nos espa­ços do cotidiano, os elementos adequados à sua elaboração discursiva.

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Glossário

Abordagem totalizante-universalizante.Esta abordagem caracteriza-se pela tentativa de produzir uma ex­

plicação sobre determinado objeto, que ao mesmo tempo dê conta de sua totalidade (o objeto em todas as suas variáveis) e de sua extensão (a explicação sobre o objeto com validade em qualquer tempo e lugar). Essa abordagem encontra-se bastan­te relacionada com o método dedutivo que, percorrendo o ca­minho do universal ao particular, privilegia sempre discursos mais teóricos e abstratos.

Para aprofundar: L i b â n i o , J.B . Introdução à teologia, Loyola. R o l d á n , A.E Para que serve a teologia, Descoberta.

Cognoscibilização (V. cognoscibilização da fé).

Cognoscibilização da fé.Neologismo de que fizemos uso para identificar o que chamamos

como núcleo da fé. No núcleo da fé há um movimento para tornar a experiência de fé comunicável numa determinada lin­guagem; a esse processo chamamos cognoscibilização da fé.

Equivocidade.A expressão equivocidade evoca o termo equívoco. Uma distinção

importante deve ser feita. Tomamos a expressão aqui não em seu sentido de dicionário, em que equívoco é sinônimo de erro, mas na perspectiva da filosofia da linguagem, na qual equívoco está em contraposição direta a unívoco (v. univocidade).

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Equivocidade é, portanto, a condição da linguagem em que

um nome pode evocar várias interpretações, sem estar subor­

dinado a um conceito fechado. Um termo compreendido em

sua equivocidade é um signo do qual podem partir muitos

conceitos.

Para aprofundar: A b b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins

Fontes. R ic o e u r . P. A metáfora viva, Loyola. E v a n s , C. S. Dicio­nário de apologética e filosofia da religião, Vida.

Desistoricizaçao.Processo de desistoricizar. Negação da dimensão histórica de

determinada coisa ou evento. No caso da teologia, essa abor­dagem não leva em consideração a dimensão histórica de de­

terminados dogmas ou opiniões de fé, bem como sua incidência sobre o discurso teológico.

Para aprofundar: Küng, H. Teologia a caminho, Paulinas.

Existência entificada.

Processo que submete a existência concreta a uma substância/es­sência fora mesmo da existência. Tendência ligada ao

essencialismo no qual o fundamento da existência humana não

está nela mesma, mas numa realidade que a supera.Para aprofundar: A b b a g n a n o , N. Introdução ao existencialismo,

Martins Fontes. A b b a g n a n o , N. Dicionário defilosofia, Martins Fontes. B r u g g e r , W. Dicionário de filosofia, Herder.

Inculturação.

Conceito relacionado à cultura. Relação de influência que uma cultura estabelece com outra para colocar numa o que é da

outra. Quando está relacionado com a teologia, fala-se de incul­

turação da fé. Nesse sentido trata-se da aproximação, da utili­

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zação e da influência mútuas que o cristianismo trava no en­contro com uma cultura não marcada por determinado con­

junto de valores.Para aprofundar: M ir a n d a , M .F . Inculturação da fé, Loyola.

L ite r a l iz a ç ã o .

Tornar literal. Fixar um único sentido para determinado discurso,

negando, por isso, a capacidade polissêmica (diversidade de

sentidos) que o discurso, escrito ou oral, possui. Essa tendên­

cia está presente na teologia, sobretudo na exegese e na

hermenêutica fundamentalista, nas quais realidade e discurso

são identificados como a mesma coisa.

Para aprofundar: C r o a t t o , S. Hermenêutica bíblica, Sinodal.

K ü NG, H. Teologia a caminho, Paulinas.

Locus.Locus (latim) significa lugar. No âmbito do nosso trabalho, a

expressão é utilizada em sua acepção teológico-técnica. Dessa

forma, locus é o lugar original e originante do discurso teológi­co. Significa dizer que locus é o lugar/o ponto de onde parti­mos para falarmos da fé. No escopo desta obra a discussão está

em se o locus teológico mais adequado é o universal ou local/

particular.Para aprofundar: B o f f , C . Teoria do método teológico,V o z e s .

L ib â n io , J.B. Introdução à teologia, L o y o la .

M a n u a l í s t i c a .

Neologismo referente a manual (mannuale). Em teologia, cha­

ma-se manualística certa abordagem que procura encerrar de­terminado tema da fé num único tratado de abrangência

supra-histórica (v. abordagem totalizante-universalizanté). Em

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outras palavras, trata-se de uma tendência metodológica da

teologia sistemática em depender dos manuais. Um exemplo

típico dessa abordagem está nos manuais de teologia sistemá­tica, escritos em determinado lugar e tempo, que acabam por

ser evocados como autoridade nos mais distintos lugares, in­

dependentemente da cultura específica de cada um deles.

Mediação.Elemento originante do núcleo da teologia (v. cognoscibilização da

fé). Mediação cultural é o aporte teórico utilizado para se co­

municar determinada experiência (de fé, em nosso caso) em

determinado lugar e tempo. É o instrumental lingüístico e

cultural que permite tornar compreensível a comunicação de

uma mensagem. A teologia tem-se valido de inúmeras media­

ções culturais ao longo de sua história. Durante muitos sécu­

los ela utilizou a filosofia grega clássica. Desde o século XIX,

outras ciências têm servido — dialogicamente — de mediado­ras do seu discurso.

Para aprofundar: A n d r a d e , P.EC. Fé e eficácia, Loyola. B o f f , C. Teoria do método teológico, Vozes. G o n z á l e s , J. L. Introdução à teologia cristã, Academia Cristã. H e i g t h , R . Dinâmica da teo­logia, Paulinas. R o l d á n , A. F. Para que serve a teologia, Desco­berta.

Mediação cultural.V. mediação.

Metafisicização.Neologismo referente à metafísica. Fixação de determinado discurso

nas estruturas teóricas da metafísica. Identificação da mensagem

cristã com a filosofia platônica e neo-platônica. Cristalização

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de uma mediação cultural e subseqüente continuidade entre

realidade e discurso.

Para aprofundar: B o r n h e i m , G. Metafísica e finitude, Perspectiva.

P a s t o r , F. A. Semântica do mistério, Loyola. P a s t o r , F. A. A

lógica do inefável, Loyola.

Norma prescritiva.Determinada mediação cultural (v. mediação cultural) fixada como

única (v. metafisicização) e evocada como autoridade absoluta

no processo de produção teológica.

Particular.Que é uma parte ou pertence a uma parte. O termo é tomado

aqui para indicar a dimensão local e concreta da realidade.

Além disso, toma-se o particular em seu papel nos métodos

indutivo e dedutivo (v. universal).Para aprofimdar: A jb b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins

Fontes. B r u g g e r , W. Dicionário de filosofia. Herder.

Plurivocidade.Neologismo referente à pluralidade de vozes. Contraposição à

univocidade (v. univocidade). Por plurivocidade compreende-

se a abordagem que contempla um ambiente plural em que o

discurso teológico pode ser expresso de igual forma. Essa abor­

dagem poderia chamar-se também polissemia.

Reistoricização.Neologismo referente ao processo de tornar novamente histórico,

reistoricizar (v. desistoricização). Nesta obra, reistoricizar é o

movimento fundamental que a teologia precisa fazer para reen­

contrar seu espaço de relevância. O próprio método indicado

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aqui pretende contribuir para a reistoricização do discurso te­

ológico.

Sublevação metafísica.Movimento de superposição da metafísica sobre formas de pensar

a realidade mais ligadas ao materialismo. Esse movimento pode

ser encontrado tanto na filosofia grega, quanto na teologia cristã

(v. metafisicização).

Semiótica.Teoria que estuda os signos (símbolos) com a finalidade de

interpretá-los. A semiótica está ligada, portanto, à hermenêutica.

Para aprofundar: C r o a t t o , S. Hermenêutica bíblica, Sinodal.

R i c o e u r , P. A metáfora viva, Loyola. R i c o e u r , P. Ensaios sobre interpretação bíblica, Novo Século. A b b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins Fontes.

Sujeito histórico.A expressão sujeito histórico tem seu significado amplamente vin­

culado às ciências humanas e sociais, sobretudo àquelas que dialogam mais com o neo-marxismo e o existencialismo. Por

sujeito, compreende-se a pessoa que, em suas relações com a

sociedade, não se reduz a um objeto dessa relação. Sujeito é aquele que, de forma autônoma, participa da construção de

seu mundo. Sujeito histórico, portanto, é a expressão que designa a pessoa em estado ‘adulto’, não alienada dos direi­

tos e dos deveres decorrentes de estar no mundo. Com rela­

ção à teologia, essa expressão indica uma nova forma de

participação por parte do cristão nas proposições acerca dos temas da fé, não mais de forma passiva ou alienada, mas ativa

e propositiva.

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Teologia sistemática manualista.

V. manualística.

Terceiro excluso.Termo da lógica formulado primeiramente por Aristóteles. Afir­

ma que, dadas duas proposições com o mesmo sujeito e o mes­mo predicado, uma afirmativa e a outra negativa, uma delas é necessariamente verdadeira e a outra necessariamente falsa. O princípio do terceiro excluso está ligado diretamente ao prin­cípio da não-contradição. Como a metafísica, a lógica grega também influenciou a teologia cristã, sobretudo por possibili­tar o desenvolvimento da apologética. Isso, na prática, signifi­ca a impossibilidade de convivência de discursos diferentes sobre um mesmo tema da fé cristã.

Para aprofundar: A b b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, M a r t in s

F o n te s . C h a u í , M . Convite à filosofia, Á t ic a . M a r it a in , J. A ordem dos conceitos, A g ir .

Universal.Possibilidade de um juízo ser válido para todos os seres racionais.

O termo é tomado aqui para indicar certa abordagem à reali­dade com base em categorias abstratas não relacionadas com as dimensões local, cultural e histórica. Nessa perspectiva, a teo­logia pode emitir juízos universais sem nem mesmo verificar as contingências históricas dos lugares para os quais se dirige. São, portanto, juízos feitos apriori (v. particular e desistoricização).

Para aprofundar: A b b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins

Fontes. B r u g g e r , W. Dicionário de filosofia. Herder.

Univocidade.Abordagem que advoga a continuidade entre o discurso e a reali­

dade. Identificação de um discurso com o real, de forma que

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qualquer outra tentativa de nomear esse real seja imediatamente tida como falsa. A univocidade sustenta sua condição de exclu­

sividade discursiva manipulando os princípios da não-contra- dição e do terceiro excluso (v. equivocidade e terceiro excluso).

Verossimilhaçao.Neologismo referente a tornar verossímil.

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Editora Vida em março de 2007.

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TeologiaSISTEMÁTICANO HORIZONTE PÚS-MODERNO

A preocupação fundamental deste estudo foi compreender a importância das mediações culturais no discurso teológico,sobretudo em seu aspecto dogmático. Para esse fim, o autor parte da filosofia, da antropologia e da fenomenologia numa dupla tarefa: evidenciar a tendência da teologia sistemática em herdar as tradições metafísicas e propor uma abordagem teológica que contemple as vivências regionais da fé.

Um estudo como este justifica-se pelo panorama em que se vê a teologia sistemática num momento de esgotamento de sentido e, portanto, de relevância. Infelizmente, o quadro atual aponta uma abordagem dos temas da fé cristã restrita à repetição sistemática de reflexões histórico-sociais do passado.

A proposta de Alessandro é a de que a teologia se distancie, por um momento, das vivências histórico-culturais e que seja dado espaço às mediações culturais como fator determinante para novas abordagens metodológicas.

Alèssandro R. R ocha , pastor, mestre em Teologia Sitemática pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (R J), doutorando em Teologia Sistemática pela PUC-RJ. Membro do Instituto de Estudos de Religião e Sociedade da América Latina e membro da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil.

VidaA C A D Ê M I C A

w w w . v i d a a c a d e m i c a . n e tCategoria: EXCELÊNCIA: Área histórico-sistemática/

Teologia sistemática