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OSMAR MOREIRA DOS SANTOS UM OSWALD DE BOLSO: CRÍTICA CULTURAL AO ALCANCE DE TODOS Alagoinhas – Bahia 2010

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OSMAR MOREIRA DOS SANTOS

UM OSWALD DE BOLSO: CRÍTICA CULTURAL

AO ALCANCE DE TODOS

Alagoinhas – Bahia2010

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Copyright© 2010 by Osmar Moreira dos Santos

CAPAxxxxxxxxxx

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃOQuarteto Editora

REVISÃO DE TEXTOSJosé Carlos B. Sant’Anna

FICHA CATALOGRÁFICA xxxxxxxxxx

Rua Mello Moraes Filho, nº 189, Fazenda Grande do Retiro – CEP: 40.352-000

Tels.: (71) 3116-2837/2838 –Fax: (71) 3116-2902Salvador-Bahia – e-mail: [email protected]

Impressão e acabamentoTodos os direitos desta edição reservados à:

Quarteto EditoraAv. Antonio Carlos Magalhães, 3213

Edificio Golden Plaza, sala 702 e 1009 – Iguatemi41275-000 – Salvador – Bahia

Telefax: (71) 3452-0210 /Telefone: (71) 3353-5364Email: [email protected]

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Para Jaita, companheira em todas as perambulações!

Para minha família, que me ensinou o abecedário sem conhecê-lo

Para Arrigo, meu filho, sempre de longe, mas muito perto!

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Agradecimentos

Ao Roberto Seidel, pela paixão teórica an-tropofágica;

A toda galerinha do NUES – Núcleo de Estudos da Subalternidade, de ontem e de hoje, pela prática sempre renovada do socia-lismo libertário;

A toda comunidade de Letras do Campus II da UNEB, pela revolução político-acadê-mica em curso;

Aos estudantes do Mestrado em Crítica Cultural, por ativarem a maquinaria cul-tural sempre de um lugar pósdisciplinar e fronteiriço;

A toda comunidade cultural do território Agreste de Alagoinhas e Litoral Norte, pelas

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microrrevoluções envolvendo os seus siste-mas municipais de cultura;

Aos artistas, gestores, produtores, consumi-dores e agitadores culturais em todo Brasil, pela construção de outra imagem de cultura para os povos situados no Anel Equatorial;

Aos meus colegas pesquisadores da cultura, por acreditarem que sem pesquisa não há outra alternativa entre a cabeça primitiva e o rosto cristão;

A todos os anônimos/as que em seu coti-diano trituram os valores reativos da cultura global e/ou local com sua sensibilidade e cabeça pesquisadora.

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Sumário

Apresentação 9

Para se ler no campo de batalha 29

Quem é que é a violência antropofágica? 37

Antropofagia como tecnologia da memória cultural 79

Tecnologias do signo e devir revolucionário nas pessoas 119

Epílogo 137

Referências Bibliográficas 141

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Apresentação

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Apresentação

A antropofagia é um desses conceitos — tal-vez até um desses pontos nodais — que, de há uns trinta anos para cá, vem disputando — ou ainda: é disputada —, enquanto possibilidade de apreensão daquilo que nos fosse peculiar. A presente obra que a leitora, o leitor tem em mãos — Um Oswald de bolso: crítica cultural ao alcance de todos, de auto-ria do Prof. Osmar Moreira — é instigante, um acontecimento, porque nos coloca exatamente no meio desses aspectos nodais, em que o simbólico, o imaginário e o real se tocam. A propósito desse acontecimento representado pela obra do Prof. Os-mar, gostaria de, a cunho de “nariz de cera”, esboçar brevemente alguns âmbitos de ocorrência — se é que eu o possa dizer assim — do pensamento de Oswald de Andrade justamente no lapso de tempo dos últimos decênios.

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A proposição da antropofagia, por Oswald de Andrade, no seu Manifesto Antropófago, no número 1 da Revista de Antropofagia, em 1928, no contexto dos movimentos de vanguardas mo-dernistas e modernizadores do âmbito simbólico brasileiro, pode ser considerada como uma ruptura em relação ao pensamento da inteligência nacional, com respeito ao tipo de proposição utópica da nação — portanto, olhando para o futuro.

Neste momento em que ele escreve, ainda bastante em voga estão as doutrinas positivistas e deterministas, importadas na segunda metade do séc. XIX, bem como o pensamento racialista. A pergunta anterior aos movimentos de vanguardas era sobre a possibilidade de “civilização nos tró-picos”, cuja resposta sempre soava mal, porque topava na problemática do “mimetismo cultural” e na conformação mestiça da cultura nacional.1

Se é possível constatar, nos anos 30 do séc. XX, a emergência, no Brasil e na América Latina, de um novo viés de observação, que já foi denomi-

1 Veja-se: VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

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nado de “culturalismo dos anos 30”, também não é de somenos importância que se questione se não se trata meramente de um deslocamento retórico. De toda forma, é possível divisar um deslocamento no rumo cultural, ao mesmo tempo em que se permite a fundamentação para a emergência de “uma série de paradigmas que tem como meta a regeneração e reivindicação da identidade mestiça do homem latino-americano no contexto ocidental”.2

Conforme Lourdes Martinez-Echazábal,Na década de 20, coube a Oswald de Andrade proceder à ruptura — se é que podemos falar de uma — com o paradigma de raça em favor de uma visão culturalista/nacionalista. Mas foi o discurso simultaneamente moderno e conservador de Freyre em Manifesto Regionalista (1926), em Casa-Grande & Senzala (1933) e, posteriormente, em Sobrados & Mucambos (1936) o

2 MARTINEZ-ECHAZÁBAL, Lourdes. O culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. (Ed.). Raça, ciência, sociedade. Rio de Janeiro, Fio-Cruz/CCBB, 1996, p. 107-124, aqui p. 109.

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que mais chama a atenção por causa de seu impacto (e permanência) tanto nos discursos políticos e acadêmicos quanto no imaginário popular.3

Como bem assinalado pela autora, se, por um lado, Oswald precedeu as rupturas então em curso, por outro, não foram as suas proposições que figuraram como impactantes num primeiro momento, apesar de o paradigma da antropofagia ser considerado hoje como precursor de outros, tais como o de “transculturação” (cunhado pelo cubano Fernando Ortiz, nos anos 30, e disseminado pelo crítico uruguaio Angel Rama). A cunho de exem-plo, Walter realça a semelhança da “transcultura-ção” com a “antropofagia” de Oswald de Andrade, a quem, aliás, concede o título de radical precursor da transculturação ortiziana.4

Trata-se, contudo, de observar que estas ca-tegorizações são recentes. Voltou-se às vanguardas modernistas justamente no momento em que se

3 Idem, p. 114-15.4 WALTER, Roland. Narrative Identities: (Inter)Cultural

In-Betweenness in the Americas. Bern/Berlin/Frankfurt/New York: Peter Lang, 2003, p. 364.

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discutia a pertinência do pós-moderno para as cha-madas periferias: existiria uma pós-modernidade periférica? O que era a nova teoria cultural que se planteava a partir da visada latino-americana?5 Perguntava-se agora, no bojo do novo culturalismo dos anos 80 para os 90, por “La modernidad des-pués de la pos-modernidad”, pela “Neovanguardia y postvanguardia”, ou ainda, pela “Modernidad y mezcla cultural”.6

Oswald então foi o pensador que, ao invés de só olhar para o futuro, olha para o passado. Lá encontra o antropófago. Inicia o Manifesto assim: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Econo-micamente. Philosophicamente”.

5 Estas duas perguntas procuraram ser respondidas em: HER-LINGHAUS, Hermann; WALTER, Monika. (Ed.). Posmodernidad en la periferia: enfoques latinoamericanos de la nueva teoría cultural. Berlin: Langer, 1994.

6 Sugestivos títulos de artigos, respectivamente, de autoria de Néstor García Canclini, Nelly Richard e Beatriz Sarlo, compilados In: BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. (org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina/UNESP, 1990, obra que também reúne Manifestos e Declarações latino-americanos entre 1921 e 1959.

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A partir de então, a antropofagia passa a ser ressignificada, para ser resposta ao já assina-lado mimetismo crônico da literatura e cultura periférica. Mantém, por um lado, a tropologia intimamente atrelada à própria noção de Novo Mundo, se pensarmos no encontro de Colombo com os canibais do Caribe, em cujo contexto já temos uma primeira inversão: o navegador, em seu delírio de nomeação, fazendo uso do excipiente da aproximação sugestiva das palavras que ouvia dos habitantes autóctones com os quais travou contato, reconheceu na palavra “canibal” o parentesco com a gente Can — no caso: do Grande Khan —, de cuja existência tinha notícia por meio da leitura das obras de Marco Polo, de forma que delirantemente imaginou que estava no Oriente.7

Desse encontro, contudo, já fica retida uma primeira ideia do canibalismo antropofágico que, um pouco mais tarde (em meados do séc. XVI) e um pouco mais ao sul (na costa do atual estado

7 Cf. SOUZA, Carlos Mascarenhas de. Dos canibais senti-mentais às hospitalidades contemporâneas. In: NOVAES, Cláudio C.; SEIDEL, Roberto H. Espaço nacional, fron-teiras e deslocamentos na obra de Antônio Torres. Feira de Santana: EdUefs, 2010, p. 140-158.

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do Rio de Janeiro), foi explorado pelas narrativas de Hans Staden (que foi cativo dos antropófagos tupinambás, conseguindo, contudo, fugir), cuja obra8 foi bastante divulgada em sua época e, re-centemente, transformada em filme sob a direção de Luiz Alberto Pereira.9 Este imaginário em torno da antropofagia surge também em romances, como Meu querido canibal, de Antônio Torres,10 que em-preende a busca de vestígios sobre a figura quase mítica do chefe tupinambá Cunhambebe, sob cuja liderança as tribos tupinambás se confederaram para resistir à invasão do colonizador.

Em meu entender, esta revisitação, ao final do século passado, dos episódios que culminaram na demarcação do Novo Mundo, contribuiu para que a antropofagia se tornasse paradigmática para a compreensão desta mesma realidade americana, podendo-se postular, inclusive, de ela poder ter

8 STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-1555). Trad. Pedro Süssekind. 5. ed. Rio de Janeiro: Dantes, 2004.

9 PEREIRA, Luiz Alberto. (dir.). Hans Staden. Brasil: La-pfilme, 1999. 1 filme em DVD. 92 min.

10 TORRES, Antônio. Meu querido canibal. 5. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2004 [2000].

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este caráter de instituição da própria ideia de americanidade. É desse mesmo contexto que nos fala Bernd, quando, ao tratar das “mobilidades teóricas interamericanas”, constata que o “conceito de antropofagia cultural” foi o que mais atenção despertou por parte de pesquisadores canadenses, exemplificando, justamente a partir dos anos 80 e no bojo das ditas migrações e transferências cultu-rais, a desterritorialização do conceito do Sul para o Norte, sendo que este movimento poderia ser compreendido como contra-hegemônico.11

Ainda com respeito aos usos da antropofagia neste contexto de fim de século, vale a pena a refe-rência ao âmbito das artes plásticas. Em 1997, em palestra constante da programação oficial da Docu-menta X — dessa grande exposição de artes realizada de cinco em cinco anos em Kassel, na Alemanha, considerada, ao lado da Bienal de São Paulo e da de Veneza, como uma das mais importantes no âmbito

11 BERND, Zilá. Mobilidades teóricas interamericanas. Interfaces Brasil/Canadá — Revista da ABECAN [Asso-ciação Brasileira de Estudos Canadenses], n. 8, p. 13-25, 2008. — Aqui é interessante assinalar que a transculturação também é colocada como um destes conceitos-paradigmas que faz este movimento do Sul para o Norte.

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das artes —, assisti ao crítico argentino, curador de exposições em Nova York, Carlos Basualdo, falando da importância da antropofagia para o seu trabalho de crítico e curador especificamente, bem como acerca dela no contexto da exposição daquele ano.

A curadora da Documenta daquele ano foi a francesa Catherine David, que havia atuado por algum tempo no Rio de Janeiro. Além das obras de Hélio Oiticica e de Lygia Clark, novos artistas brasileiros, tais como Cabelo, Tunga e Lilian Za-remba estavam em evidência. Se o crítico argentino radicado em Nova York falava da antropofagia, ali também estavam Edward Said e Gayatri Chakra-vorty Spivak falando do pós-colonial, bem como Suely Rolnik falando do “hibridismo” na obra de Lygia Clark, donde se vislumbra bem essa econo-mia das trocas teóricas.

No ano seguinte, na XXIV Bienal de São Paulo, novamente, a antropofagia está em evi-dência, mediante todo um núcleo sobre ela e canibalismos.12 Exposições, como se sabe, podem

12 CHOUGNET, Jean-François. Tupi or not tupi, that is the question. In: XXIV BIENAL de São Paulo. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismos. São

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ser propositivas ou retrospectivas. Nos dois casos em tela, parece que se trata de ambas as coisas: de um lado, a retrospectiva é visualizada nas obras em exposição; de outro, a ereção de uma “coleção” por parte da curadoria pode, eventualmente, ser propositiva. De toda sorte, como já demonstrei em outro trabalho,13 se, num primeiro momento, os efeitos do paradigma antropofágico se mantiveram relativamente circunscritos ao âmbito disciplinar da literatura, eles são verificados, a partir deste novo culturalismo das últimas três décadas, em um contexto mais ampliado. — Isto acerca de uma contextualização geral da antropofagia.

Passemos, pois, à presente obra.O presente trabalho, contudo, empreende

outra empreitada: a antropofagia aqui é contex-tualizada dentro do conjunto da obra de Oswald, a partir da leitura atenta e acurada da produção poética, memorialística e, principalmente, dos

Paulo: A Fundação, 1998, v. 1, p. 86-93.13 SEIDEL, Roberto H. A questão da alteridade na cultura

brasileira: uma leitura de “Meu querido canibal”, de Antônio Torres. Studium — Revista de Filosofia, v. 9, p. 127-145, 2006.

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dispersos e fragmentários. Daí que surge outro panorama que, ao meu ver, é altamente original: trata-se da vinculação e do comprometimento re-volucionário da obra de Oswald como um todo e da antropofagia especificamente. Se os usos supra referidos da antropofagia soem ser acima de tudo descritivos, temos agora se elucidando um uso propedêutico.

Um Oswald de bolso: crítica cultural ao alcance de todos, do Prof. Osmar Moreira, vem justamente trazer mais uma visada importante para a antropo-fagia, agora devidamente instrumentalizada para o trabalho não só de análise, mas caracteristicamente para a agitação cultural, ou seja, como paradigma orientador da ação cultural. Conforme o autor: “para aqueles interessados em pensar a violência antropofágica como um valor crítico cultural imprescindível a um descentramento do olhar do colonizador e suas redes de poder”.

Assomam já nesta citação três dos quatro ou cinco aspectos que gostaria de realçar e que perpassam a obra como um todo, de forma, por assim dizer, nodal: a) antropofagia como violên-cia; b) antropofagia como crítica e ação cultural;

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c) antropofagia como descentramento des/pós-colonizador; d) antropofagia como utopia e e) antropofagia como tecnologia.

Caso se aceite como fato a proposição de que “[...] vivemos numa sociedade oligárquica, hierárquica, violenta e autoritária”14, sociedade esta caracterizada pela ocorrência da “cidadania atrofiada”, que gera o “não-cidadão”, o “cidadão mutilado”15, a vinculação da antropofagia com a violência parece fazer sentido. Como colocado já nas primeiras páginas, a violência antropofágica é uma atividade crítica, pois implica “atacar com saúde”, promovendo “operações de limpeza”. Para deslindar este aspecto da violência, Osmar Moreira parte do pensamento de Pierre Clastres, que elucida o “estado permanente de guerra” das comunidades ditas primitivas como condição de existência da liberdade comunitária contra a opressão de um estado centralizado.

14 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Salvador: Pre-feitura de Salvador/Secretaria Municipal de Educação e Cultura; Governo da Bahia/Secretaria de Cultura, 2007, p. 53.

15 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 7. ed. São Paulo: EdUSP, 2007.

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Sabe-se que o estado tem como um de suas principais características o fato de ser o monopo-lizador da violência, daí o paradoxo de que, ao mesmo tempo, é incompetente para estabelecer as regras de controle da violência. À medida que se descobre que a “máquina de guerra” das ditas sociedades primitivas tinha como sentido princi-pal evitar a violência de um estado centralizador e, portanto, detentor do monopólio da violência, descortina-se o potencial crítico da antropofagia.

Veja-se como o coloca o autor: “um sentido diferencial da violência (antropofágica) seria um devir ativo da violência reativa”, sendo que “entrar no maquinismo reativo da violência e deslocá-la a partir de um agenciamento afirmativo da máquina de guerra como um valor que foi recalcado, domes-ticado para que se possa criar condições afirmativas de sociabilidade entre os homens onde quer que eles existam”. Vê-se, pois, recolocada a questão da violência em um sentido diferencial, onde a maqui-naria da guerra possa arrecadar sentidos afirmativos — e, portanto, críticos —, rumo ao fortalecimento dos laços comunitários entre os seres humanos — e realço — estejam onde estiverem.

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De certo, aqui a antropofagia descola do seu sentido endógeno, para arrecadar sentido mais abrangente... Sobre este tópico da antropofagia como violência, especificamente no que diz respei-to à questão do estado, seria de se fazer referência ao trabalho de Paulo Arantes que, em Extinção16, discorre sobre a conjuração do contemporâneo, es-pecialmente sobre o “estado geral de guerra perma-nente sem previsão de fim”, ou, em outros termos, sobre o “estado de sítio permanente sem previsão de término”. Refere-se o filósofo às “guerras justas” contra os pretensos terroristas esfomeados e exclu-ídos pelas políticas neocolonialistas.

Se, da leitura de Um Oswald de bolso, exsur-ge a possibilidade da maquinaria de guerra contra o estado e a favor da liberdade comunitária, da análise de Arantes é desvelado o equívoco de uma filosofia que desde Kant imagina a paz perpétua nas mãos de um estado forte. Violência para evi-tar uma violência maior, para evitar o estado, no primeiro caso; a violência de uma situação pós-estado nacional, no segundo. A leitora, o leitor

16 ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.

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terá como elucidar esta questão a partir da leitura da presente obra.

No que concerne à antropofagia como uto-pia, a presente obra reconstrói o pensamento de Oswald, quando coloca em cena a “utopia caraíba”, atrelada à “revolução caraíba”, por intermédio da já referida “violência diferencial”. Há um afloramento do recalcado quando entra em cena o “Matriarcado de Pindorama”, quando a questão de gênero é pau-tada. Junto com a tematização do individualismo, primitivismo e coletivismo, desponta a questão da cidadania. Tudo isso argumenta no rumo do “Anel Equatorial”, ali, justamente ali onde até a pouco tempo cria-se não ser possível civilização, nem tampouco estilo (— pois sim! A questão no âmbito da literatura era balizada nestes termos: pobre, subalterno, periférico, marginal — todos sem estilo!).

O Anel Equatorial vai promover a utopia e a revolução diferencial, ele é pensado como espaço desse novo devir. Aqui Osmar, na esteira de Os-wald, vai promover a subversão de estruturas do âmbito da dominante, ensejando o afloramento do recalcado, mediante a valorização afirmativa e revo-

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lucionária das culturas negras e indígenas, não sem elencar as ciladas tabula rasa dos reducionismos binários, para além da mera oposição das lógicas do colonizador e do colonizado.

Daí desponta a outra questão, sem dúvida importante para o próprio Oswald, notadamente, a relação da antropofagia com a técnica e a tec-nologia. Na arqueologia que Osmar Moreira faz, é-nos possível juntar as peças todas, dispersas ao longo de toda a obra de Oswald, peças estas que fazem emergir a noção do “bárbaro tecnicizado”, que seria a síntese entre o homem natural e o homo faber, o homem técnico (civilizado). Na síntese, significa nem negar a tecnologia, nem elogiá-la completamente; nem ingenuidade, nem despudor acrítico.

Há aqui uma questão que era chave para as vanguardas e, ao que tudo indica, ainda o é para nós, a saber, a de compatibilizar os quatro movi-mentos constitutivos da modernidade, todos eles perpassados pela tecnologia: o projeto emancipador das formas simbólicas e seu respectivo mercado autônomo; o projeto de expansão que concerne à ampliação do conhecimento, ao desenvolvimento

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técnico-industrial e ao lucro; o projeto renovador, que diz respeito ao aprimoramento e às invenções; e o projeto democratizador ou educativo.17 Depois da revisão do moderno pelo pós-moderno, o desa-juste constatado ainda se mantém...

A obra de Osmar Moreira ainda traz a inte-ressante questão do apagamento e exclusão que o pensamento do Oswald sofreu de seus contempo-râneos. Demais disso, o que surge como relevante de toda a presente obra, é a elucidação de um “pensamento estranho”, ou da “estranheza do pen-samento” de Oswald de Andrade que, ao longo de toda a sua vida, não deixou de pensar de forma re-volucionária — daí a importância das citações que Osmar traz para ilustrar o apagamento e a exclusão sofridos por Oswald. Parece-me, contudo, que a estranheza do pensamento oswaldiano, quando mobilizada junto com a sua própria performance e junto com a sua biografia, tudo isso se transforma em metodologia, ou melhor: em tecnologia. Daí o aspecto altamente instigante da obra que Osmar Moreira nos traz: transformar o conjunto de uma obra que, apesar de distante já temporalmente, nos

17 Cf. Canclini, no artigo citado.

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traz o exemplo de vigor e construção de um pro-jeto revolucionário, desvelando-se em seu próprio processo. E o subtítulo o nomeia: “crítica cultural ao alcance de todos”.

E, no capítulo final, elenca-se cinco oficinas, bem no sentido de “tecnologias do signo” para mobilizar o “devir revolucionário nas pessoas”. As oficinas propostas, em parte remontam ao trabalho do Prof. Osmar Moreira no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural na UNEB II, em parte às atividades de extensão com a comunidade extra-universitária, no contexto da sensibilização para princípios orientadores do agenciamento da crítica e ação cultural, bem como remontam à própria história de vida do autor, no sentido da ressignificação da própria história de vida em um sentido revolucionário. Esta parte final, portanto, surge como aplicabilidade imediata de todo o esforço epistemológico empreendido ao longo desta pequena-grande obra.

Um Oswald de bolso: crítica cultural ao al-cance de todos, do Prof. Osmar Moreira, além de um acontecimento, é também uma oferenda para a coletividade do século XXI.

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Que a leitora, que o leitor se deliciem com o banquete!

Prof. Dr. Roberto SeidelProfessor de Teoria da Literatura e

Estudos Culturais na UEFS

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Um Oswald de bolso: crítica cultural ao alcan-ce de todos destina-se principalmente aos artistas, gestores de instituições culturais, educadores com foco em cultura como prática libertária, agitadores e consumidores de representações e signos cultu-rais, todos/as, direta ou indiretamente envolvidos na institucionalização da malha cultural no Brasil, a partir de 2003, com a criação da PEC nº 150/2003, que destina recursos à cultura com vinculação orçamentária, de 2005, com a criação da PEC nº 416/2005, que institui o Sistema Nacional de Cultura, de 2008, com a criação da PEC nº 236/2008, que propõe a inserção da cultura no rol dos direitos sociais. Antes de ser um manual para esse conjunto de atores e personalidades culturais, este livro é um roteiro de estudos para quem quiser conhecer e pesquisar a gênese da atual política cul-

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tural brasileira, um antídoto contra o nazifascismo cultural e o stalinismo tardio e uma experimentação permanente do signo cultural, capaz de combinar a invenção de formas com um conteúdo político revolucionário e comunitário.

Entre o modernismo que conquistou a língua literária e estabeleceu as condições de pos-sibilidade para uma consciência do Brasil e uma cultura pós-64 que adota as ruínas da linguagem como lugar da invenção e deixa de lado o nacional e o universal para cotidianizar a política e politizar o cotidiano, cremos que com a nova política cultural em curso e seus eixos de atuação nos mais de 5.000 municípios brasileiros — cultura como um bem simbólico; cultura como um acesso não apenas às obras universais, mas aos modos de produção; cul-tura como possibilidade de gerar emprego e renda, já podemos vislumbrar outra nação brasileira, cujos protagonistas — o povo brasileiro, formaram-se com o “biscoito fino” massivamente distribuído pelo tropicalismo e estão se empenhando — à maneira modernista, para fazerem dos “tristes trópicos” ou Anel Equatorial o lugar da alegria e de reinvenção da humanidade.

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Não é à toa que, em 2005, ano do Brasil na França, o então ministro da cultura Gilberto Gil, em discurso datado de 11 de janeiro, apresenta o crivo da contemporaneidade da cultura brasileira como condição de exposição de nossa riqueza cul-tural, para além dos clichês da mulata, do samba e do futebol.

Através de três perspectivas1, “Raízes do Bra-sil”, “Verdade Tropical” e “Galáxias”, outro Brasil plural e internacional se anuncia com “exposições patrimoniais”, “arte contemporânea”, “fotografia”, “arquitetura”, “dança”, “design”, “artes cênicas”, “música clássica”, “música popular”, “colóquios”, “literatura”, “cinema e audiovisual” disseminadas por toda França, de março a dezembro, cujas pers-pectivas, respectivamente, pautavam para e com povos do mundo inteiro a necessidade de uma redescoberta do Brasil (indígena, negro, barroco), de uma reinvenção de novos roteiros culturais sob o crivo da música, além da afirmação de novas formas de pensar e de combinar ideias a partir da bricolagem.

1 Consultar site do Ministério da Cultura www.cultura.gov.br

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Do ano do Brasil na França e também do “ano do Brasil no Brasil”, conforme o ministro Gil, 2005 é o ano da I Conferência Nacional de Cultura e suas repercussões em conferências estaduais e em fóruns territoriais e locais por todo país ao longo dos últimos cinco anos. Esse movimento de agita-ção cultural que vem tomando conta do país, se do ponto de vista da teoria da política cultural (Can-clini, 1997) temos o estabelecimento de parâmetros para a entrada e saída da modernidade, se do ponto de vista de uma economia política (Antonio Negri, Michael Hardt, 2005), os parâmetros para uma revolução em rede, sem mencionar aqui todo um conjunto de textos estimulados pelos encontros de cultura mobilizados pelo programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, que tratam das mais diferentes questões, cremos que falta um texto que mobilize uma crítica da cultura e coloque nos devidos termos os níveis de mobilização que devemos empreender para que o escravo não apenas queira ser “homem livre”2, mas que de fato o seja.

2 Para encenar e dramatizar este “homem livre”, de fato, estamos — O Mestrado em Crítica Cultural, construindo

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Em três tópicos Quem é que é a violência antropofágica?, Antropofagia como tecnologia da memória cultural e Tecnologias do signo e devir revo-lucionário nas pessoas temos, respectivamente, um debate sobre a noção de violência antropofágica como um retorno em diferença das sociedades contra o estado e suas formas de imposição en-quanto representante de uma classe dominante; um debate sobre memória cultural a partir dos usos da tecnologia e da performance oswaldiana enquanto artista e pensador cultural; e uma série de oficinas sobre o signo cultural visando a um devir revolucionário nas pessoas.

O retorno em diferença dessa noção de “sociedade contra o estado” implica que os novos sujeitos empenhados no atual movimento cultural no Brasil devam agir tanto contra o estado neolibe-ral, que faz da cultura um “bom negócio”, quanto

em Alagoinhas, juntamente com a Fundação Iraci Gama de Cultura (FIGAM) e o Núcleo de Artes Matriz (NA-MWAKA), um movimento para a construção do Museu do Homem Livre que, além de inserir a cidade entre as mais importantes cidades históricas da Bahia, acaba de receber um forte recurso financeiro do Ministério da Cultura, através do IPHAN.

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também contra o retorno de um estado totalitário, de viés stalinista, que separa cultura de política fazendo desta uma forma de controle daquela.

A memória cultural expandida e recuperada pela tecnologia e pela performance do artista implica não só uma imagem da possibilidade de emergên-cia e da proliferação de novos arquivos em todos os municípios brasileiros como sustentabilidade de uma crítica do local ao global hegemônico e excludente, mas a reversão da noção de arquivo ao vislumbrá-la e praticá-la a partir de biografias e autobiografias3.

Quanto ao devir revolucionário nas pessoas, sobretudo naquelas envolvidas com a institucio-nalização da malha cultural no Brasil, primeiro perguntar sobre o que se faz com o que se consome culturalmente. Qual seria a posição de cada um na hora do quebra-quebra cultural, se do lado do sistema hegemônico, ou se do lado das redes produtivas e libertárias.

3 Cf. ARFUCH, Leonor. Crítica cultural entre política y poé-tica. Argentina: Fondo de Cultura Economica de España, 2008.

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Em suma, este Um Oswald de bolso: crítica cultural ao alcance de todos é como uma caixa de ferramentas para quem quiser reunir as persona-lidades culturais de um dado bairro (ou em seu conjunto) em qualquer cidade brasileira — ou situada no Anel Equatorial, e perguntar pelo siste-ma municipal de cultura e seu lugar na economia política: qual a arrecadação do município e desta qual a destinada à cultura? Quais os latifundiários, grandes comerciantes, empresários locais e de que forma inseri-los como os novos mecenas? Como construir um movimento cultural, local, para dar conta de todas as demandas da política cultural e seus editais? Como fazer das escolas municipais e estaduais um lugar permanente de debate e de agitação cultural? Ou ainda: como mudar o perfil profissiográfico dos estudantes dos cursos de Letras, Ciências Humanas e de Ciências Sociais Aplicadas de modo que as disciplinas Política Cultural, Ges-tão Cultural, Patrimônio Cultural, Agenciamento Cultural, Produção Cultural, entre outras, façam parte de sua formação? Eis o sentido para que este livro esteja no bolso e na cabeça daqueles que fazem da cultura uma máquina de guerra a favor da vida comunitária e seus modos de vida libertários.

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Quem é que é a violência antropofágica?

Ser contra uma determinada moral ou estar fora dela não é ser imoral. Atacar com saúde os crepúsculos de uma classe dominante não é de modo algum ser pouco sério. O sarcasmo, a cólera e até o distúrbio são necessidades de ação e dignas operações de limpeza, principalmente nas eras de caos, quando a vasa sobe, a subliteratura trona e os poderes infernais se apossam do mundo em clamor.

(Oswald, Meu testamento, 1944, p. 53)

Benedito Nunes em seu ensaio Antropofagia ao alcance de todos1, além de mapear o território crítico e filosófico da antropofagia oswaldiana, con-segue ainda indicar endereços valiosos para aqueles interessados em pensar a violência antropofágica

1 NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: A utopia antropofágica. Texto que integra os manifestos e o conjunto de textos filosóficos de Oswald de Andrade pu-blicados pela Editora Globo em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990.

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como um valor crítico cultural imprescindível a um descentramento do olhar do colonizador e suas redes de poder.

Símbolo da devoração, a antropofagia é a um tempo metáfora, diagnóstico e terapêutica: me-táfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira da imolação pelos tupis do inimigo valente apressado em combate, englobando tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de nossa autonomia intelectual; diagnóstico da so-ciedade brasileira como sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o crescimento, e cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia ritual pelos jesuítas; e tera-pêutica, por meio dessa ação violenta e sistemática, contra os mecanismo sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as manifestações literárias e artísticas, que, até a primeira década do século XX, fizeram do trauma repressivo — de que a catequese cons-— de que a catequese cons- de que a catequese cons-tituiria a causa exemplar, uma instância censora, um superego coletivo.2

Como se pode flagrar no parágrafo anterior, a violência antropofágica é uma atividade crítica

2 NUNES, Benedito. Op. cit. p. 15-16.

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que tem como cena inspiradora a “cerimônia guerreira da imolação” retornando em diferença para compor uma vontade de corte e de ruptura com um modelo de subjetividade3 que, ao longo de cinco séculos, se não foi causa direta dos geno-cídios perpetrados em nome do amor e da fé ainda se constitui como um bloco de poder voltado para o aniquilamento e captura do desejo de liberdade e de afirmação da vida sobre a terra.

Por esse viés de pesquisa e agenciamento, um sentido diferencial da violência antropofágica, en-tão, poderia ser produzido a partir de um diagrama teórico que mobiliza pelo menos cinco lugares ou domínios estratégicos diferenciados: etnologia, his-tória, antropologia da sociedade contemporânea, teoria da literatura e micropolítica.

3 A noção de subjetividade aqui está vinculada à pesquisa contemporânea pós-estruturalista que desloca tanto a no-ção de sujeito sociológico quanto à de indivíduo e procura funcionar mais como um operador transversal que num só lance articula vontade de dominação reativa e suas forças de resistência e de criação. Cf. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. Nesse sentido, tem-se aqui um texto exemplar.

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Em arqueologia da violência,4 Pierre Clastres, após longo e intensivo convívio com os Yanomami e apoiado em ampla literatura etnográfica sobre as sociedades originárias, defende a tese de que a guerra era um fenômeno estruturante daquelas sociedades e somente a partir dessa máquina de guerra como um horizonte teórico poder-se-ia cartografar, sem formular falsos problemas, o ser social, cultural e político, cuja vontade essencial seria afirmar sua autonomia tribal, indivisão, totalidade, multiplicidade e, ao mesmo tempo, negar permanentemente, através da manutenção do estado de guerra entre as tribos, a emergência da figura do Estado.

A figura do Estado pensada num outro domínio de pesquisa, a história, aparece como uma das instituições que, por lidar diretamente com a produção e execução das leis, nos intriga pelo fato de ainda não ter sido suficientemente competente para estabelecer as regras de controle da violência.

4 CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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Se as sociedades primitivas estabeleceram regras claras e politicamente definidas para o estado permanente de guerras entre as comunidades tri-bais, as sociedades históricas e civilizadas fundaram o Estado para reprimir a guerra e consequentemen-te perder o controle sobre a violência.

Preocupado com a proliferação exacerbada da violência, em final dos anos 1960, e a ausência quase total de formulação teórica sobre o problema, Eric J. Hobsbawn em As regras da violência5, defi-ne a violência física sobre as pessoas como direta, quase sempre resultando em sangue e mutilação; e indireta, “onipresente nas comunicações de massa e nos espetáculos” nas quais imagens da “bomba” e de “Auschwitz” são os melhores exemplos.

O mais grave é que a encenação política pro-duzida pelo Estado liberal acaba engendrando nas pessoas as mais nefastas distorções interpretativas do problema quando para o estado permanente de violência sempre se associa à noção vaga e abstrata

5 HOBSBAWN, Eric J. As regras da violência. In: Revolu-cionários: ensaios contemporâneos. Trad. João Carlos Vítor Garcia e Adelângela Saggioro Garcia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

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da não-violência. O que acaba por impedir uma racionalização e uma discussão do problema por parte dos membros das sociedades violentas.

Daí ser um fenômeno que deriva para algo mais grave: são em parte os defensores da não-vio-lência os que, direta ou indiretamente, mais apóiam a sua prática, do mesmo modo que se comporta indiferente ao seu descontrole. Conforme Hobsba-wn, “[...] podemos pensar que qualquer violência é pior que a não violência. Mas a pior violência é a que escapa ao controle humano”6.

Se o Estado é uma instituição que reprime a guerra e ao mesmo tempo perde o controle so-bre as regras da violência, então a emergência e o desenvolvimento da hierarquia e o individualismo numa sociedade como a brasileira parecem indicar que o retorno da violência é sua forma de expressão mais acabada.

Sobre essa problemática, Gilberto Velho em Violência e cidadania7 argumenta que as categorias

6 HOBSBAWN, Eric J. Op. cit., p. 215.7 VELHO, Gilberto. Violência e cidadania. In: Individua-

lismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

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sociais no Brasil foram definidas a partir de um modelo hierarquizante, cujas origens remontam à Idade Média europeia, e que se cristaliza na representação da plantation clássica, desenvolvida por Gilberto Freire, donde a relação senhor de engenho/escravo se repete a mesma para usineiros/proletários rurais e urbanos; modelo que desde sempre foi afetado, no Brasil, pela emergência de um outro modelo o do individualismo renas-centista, passando pela Reforma e, mais adiante, com incentivo do próprio Estado, abriu-se num desdobramento tipo Entradas e Bandeiras, o ciclo do ouro, do gado que, se, por um lado, abre espaço para que se produza uma escala de valores em que o indivíduo possa ser unidade social significativa, por outro, em muitos pontos, cruza-se, imbrica-se com aquele modelo hierarquizante: ambiguidade cujas consequências seriam identificar todo exercício de cidadania como subversão.

Conforme Gilberto Velho “A ambiguidade hierarquia-individualismo e o autoritarismo do Estado combinam-se para impedir o florescimento da noção de cidadão”8.

8 VELHO, Gilberto. Op. cit., p. 148.

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Um outro ponto desse diagrama teórico sobre a violência seria: a violência da escrita do Ocidente. Em dois textos breves Freud e a violência da abertura do caminho como facilitação (Bahnung, frayage), o arrombamento (Effraction) e A memória e o rastro mnésico (trace, spur): posteriormente (après-coup, nachträglich)9, Evando Nascimento agencia elementos essenciais ao debate a cerca da compre-ensão da operaçã derridiana da noção de recalque desenvolvido pela psicanálise freudiana.

O gesto derridiano consistiria em retomar o projeto, o bloco mágico e a interpretação dos sonhos, entre outros10, cartografar elementos que ainda filiam Freud ao discurso metafísico ocidental e sua lógica dicotomizadora quantidade/qualidade, inconsciente/consciente, dentro/fora e deslocá-lo a partir de outro paradigma que leva em conta a no-ção de relação de forças (formulada por Nietzsche e

9 NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura: notas de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. Niterói, RJ: EdUFF, 1999, p. 163-173.

10 DERRIDA, Jacques. Freud e a cena da escritura. In: A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz M. N. Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971..

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retomada por Martin Heiddeger, Gilles Deleuze11) e ir mais além: oferecer à psicanálise a possibilidade de produção de outros operadores e, dela, ao mesmo tempo reter a noção de memória, bloco mágico, para pensá-los como metáfora da escrita.

Temos assim, portanto, a possibilidade de visibilizar a violência como uma relação de forças: a violência da escrita ao se impor logo-fono-etnocêntricamente12 e sua resistência (ativa) como diferença: a escritura.

A atividade micropolítica13 é violência ativa, nômade, à medida que é jogo, descentramento, pos-sibilidade de agenciamento e vontade de “dobrar” séries logocêntricas instituídas e distribuídas nas mais diferenciadas formas de micronazifascismos e, ao mesmo tempo, engendrar outras possibilidades semióticas, outras lógicas suplementares.

11 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. António M. Magalhães. Porto-Portugal: Rés-Editora Ltda., s/d.

12 SANTIAGO, Silviano (Superv.). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976..

13 Sobre micropolítica, cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1990; GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1999..

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As linhas dobradas desse diagrama teórico sobre a violência envolveriam, então, os seguintes pontos: 1. A máquina de guerra como algo estru-turante nas sociedades primitivas; 2. A emergência do Estado e a repressão da guerra e o descontrole da violência 3. A ambiguidade hierarquia-individu-alismo tendo como expressão imediata a violência 4. A violência da escrita versus a produtividade da escritura 5. A violência micropolítica como jogo e vontade de produção de outras racionalidades e práticas políticas moleculares.

Em abstração simples: um sentido diferencial da violência (antropofágica) seria um devir ativo da violência reativa14. Em outros termos: entrar no ma-quinismo reativo da violência e deslocá-la a partir de um agenciamento afirmativo da máquina de guerra como um valor que foi recalcado, domesticado, para que se possa criar condições afirmativas e libertárias de sociabilidade entre os homens, mulheres e crian-ças: onde quer que eles existam.

Numa hipótese de trabalho mais restrita, a violência antropofágica como valor crítico cultural,

14 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. António M. Magalhães. Porto-Portugal: Rés-Editora Ltda., s/d.

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em Oswald de Andrade, implica um investimento contra os modos reativos de uma racionalidade instrumental15 e suas relações de poder e, ao mesmo tempo, afirmar-se como um desvio, um aconte-cimento da periferia do mundo empenhado em repensar a subjetividade num contexto em que a cultura revolucionária, entre os anos 1930 e 1950, passa a experimentar uma radical ambiguidade quanto ao seu poder de contestação fundado seja nos universais da modernidade estética16, seja no

15 Um conceito caro de Max Weber pelo qual é posto em ques-tão a noção de racionalidade desenvolvida pelo marxismo e retomado posteriormente por Adorno e Horkheimer e Jür-gen Habermas. Sobre o último, ver especialmente o texto La teoría de la racionalización de Max Weber. In: HABERMAS, Jürgen. La teoría de la racionalización de Max Weber. In: Teoria de la acción comunicativa (Vol. 1). Versión castellana de Manuel Jiménez Redondo. Madri: Taurus, 1987. Teoria de la acción comunicativa, p. 197-330, v. 1.

16 Sobre modernidade estética, cf. HABERMAS, Jürgen. O projeto inacabado da modernidade. In: Arte em revista. São Paulo, Centro de Arte Contemporânea, n.7, p. 86-89, ago/1973, e a pesquisa recente realizada por Antoine Compagnon. In: COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade.Trad. Cleonice P. B. Mourão; Consuelo F. Santiago; Eunice Galéry. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

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travamento político em seu sentido stalinis-ta17.

Em Meu testamento18, texto de 1944, Oswald de Andrade produz uma imagem “icástica” da cultura periférica que merece ser ativada, liberada, de certas forças reativas da crítica e historiografia literárias, bem como de certa teoria da cultura.

Para Oswald, entre os 60º acima do trópico de câncer, ao norte, situam-se alguns países (Egito, Judeia, Grécia, Roma, Europa moderna, Estados Unidos, Japão) que, por uma série de condições (geográficas, culturais), produziram formas de representação cultural e modos de apropriação econômica que refletem como esses países têm demorado em seu poder de conquistar e dominar, além de estabelecer as regras do jogo no processo civilizatório. Entre os 60º abaixo do trópico de capricórnio, ao sul, situam-se alguns países, ou situações culturais (Sul do Brasil, Argentina, Aus-

17 DEUTSCHER, Isaac. Stalin: uma biografia política. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

18 ANDRADE, Oswald de. Meu testamento. In: A utopia antropofágica. São Paulo: Globo/SEC-SP, 1990;.

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trália), que se movem na mesma vontade de repetir o gesto colonizador.

A diferença, portanto, seria o Anel Equatorial (maior parte do Brasil, América Latina, o conti-nente africano, Índia, China): região intervalar do planeta que, apesar do conformismo, da miséria estruturante, das sequelas deixadas pelo processo de colonização, tais países acordam, emergem para a possibilidade de uma reversão histórica. Bem enten-dida, e articulando aqui a ambivalência radical do pensamento oswaldiano, tal reversão pode estrategi-camente estar filiada aos ideais do socialismo sovié-tico — pré-stalinista, e suas formas de disseminação internacionais, como pode, num corte serial, está preparando uma imagem para a “revolução caraíba, a maior de todas as revoluções”.

Em seu mapeamento do processo civilizató-rio, procura realizar uma dobra no sentido vetorial da história encarando-a como forma cíclica: em primeiro lugar, teríamos na Judeia dos profetas um ciclo coletivista e a produção de um referencial re-ligioso que se dissemina, “exorbitando”, portanto, “da infraestrutura” de dominação existente. Em outras palavras, há uma vontade nesse coletivismo

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que não se deixa dominar pelas formas de domi-nação estruturais de seu tempo; em segundo, e em contraposição ao ciclo coletivista, teríamos a emergência de um individualismo, agenciador das linhas do humanismo ocidental, que se dissemina a partir da cultura grega e romana.

Os dois ciclos, apesar das contradições e imbricamentos, se alternam indicando que a emergência ou o retorno de um ou outro (Judeia dos profetas, ciclo coletivista que retorna na Idade Média; primeiro período humanista (marcado pelo individualismo) do século V (a.C) que retorna no Renascimento se dá em função de que “a superes-trutura exorbitou da estrutura”.

É acreditando nessa potência da vontade de subversão da estrutura dominante por parte de cul-turas recalcadas que Oswald de Andrade agencia, pelo viés da violência antropofágica, os elementos de força de uma cultura periférica produzida no Anel Equatorial. É certo que as linhas desse agen-ciamento não podem ser visibilizadas apenas em Meu Testamento: neste texto, produz-se apenas uma imagem do anel, e noutros, anteriores (Poesia Pau-Brasil) e posteriores (escritos filosóficos), uma rede

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textual que configura suas conexões, estratégias e potencialidade revolucionária.

Se, até então, em plena segunda guerra mun-dial, tivemos uma alternância de dois ciclos (um coletivista e outro individualista) em que o último, em sua leitura, parece destroçar-se pelo cogumelo atômico, a possibilidade de emergência de uma cul-tura revolucionária atravessando o Anel Equatorial, aponta para outro tipo de coletivismo. Ou ainda: é possível afirmar que, apesar de todas as contradi-ções que existem em sua obra, e de toda violência epistemológica de seu tempo, há uma vontade em Oswald de Andrade de dizer: nem individualismo, nem coletivismo, o que seria, pois?

A composição dessa paixão oswaldiana pelo paradoxo, para além de sua filiação à dialética hegeliana, já foi desenhada em muitas leituras contemporâneas de sua obra. Em O elogio da tole-rância racial19, Silviano Santiago faz uma leitura de Pau-Brasil, mostrando que, pelo enfoque cultural, em vez de um enfoque político ou economicista — quase sempre subjacente ao conceito de classe

19 SANTIAGO, Silviano. Elogio da tolerância racial. Idéias/Jornal do Brasil. 9/9/90, p. 8-11.

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dominante nas interpretações reducionistas de então, permite a Oswald produzir uma imagem afirmativa e revolucionária da cultura negra e in-dígena: o suficiente para desviar as interpretações dominantes quando tratam de pensar o passado colonial e a relação do centro com a periferia, ou das relações da cultura europeia com o outro.

Tal reducionismo estaria configurado seja na intolerância em relação à representação do índio como herança cultural, em Machado de Assis, na intolerância ao primitivismo em Habermas, no etnocentrismo em Caio Prado, no índio como “tabula rasa” em Graça Aranha.

Se essa visão reducionista está correta quan-do “percebe o grande perigo de se incorporar à modernidade, pelo traço do primitivismo, as atro-cidades cometidas pela tradição colonial e escra-vocrata brasileira”, o que implicaria uma forma de concepção histórica dos românticos e uma forma ingênua e nociva de nacionalismo, por outro lado, está incorreta quando não percebe “o centramento da verdade histórica na razão europeia”. E reence-na a questão levantada por Max Weber: “porque fora da Europa nem a evolução científica, nem a

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artística, nem a estatal, nem a econômica foram conduzidas pelos caminhos da racionalização que são próprios ao ocidente?”

Em Pau-Brasil, teríamos a inserção da imagem do negro e do índio (e também da mulher) num quadro de referência cultural que inseriria o Brasil num movimento de ocidentalização do mundo.

As meninas da gareEram três ou quatro moças bem moças e bem gentis

Com cabelos mui pretos pelas espáduasE suas vergonhas tão altas e tão saradinhas

Que de nós as muito bem olharmosNão tínhamos nenhuma vergonha

Os selvagens Cena

Mostraram-lhes uma galinha O canivete voouQuase haviam medo dela E o negro comprado na cadeiaE não queriam por a mão Estatelou de costasE depois a tomaram como espantados E bateu coa cabeça na pedra

Em As meninas da gare flagramos o olhar deslumbrado do colonizador ante o sexo sarado das índias e podemos, imediatamente, divisar no gesto as marcas de um olhar que remonta a um passado de exclusão da mulher (europeia) pelo homem vestido e

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ao mesmo tempo o fluxo de uma vontade paranóica. O olhar de Caminha traduz tanto um sistema de repressão quanto a miragem de uma conquista: a ambiguidade de um modelo de subjetividade que faz da mulher uma imagem a ser, ao mesmo tempo, denegada (a pecadora, a bruxa, a sedutora) e adorada (a virgem, a mãe de Deus).

Por conter, em si, uma violência genérica e ambígua, este olhar reencena a figura bruta do pai como o lugar do logos, do caminho definido, da lei, do princípio de realidade: no olhar de Caminha a presença do pai e pela presença do pai a violência colonizadora (o estupro, a doença venérea, o rapto, o genocídio, a prostituição da mulher).

A violência diferencial oswaldiana exprime-se em demarcar uma cena fundadora da sexualidade europeia na América, e em tomá-la como um lugar teórico pelo qual seria pensado o matriarcado, o patriarcado, e a síntese diferencial e utópica: o matriarcado de pindorama20.

20 Oswald de Andrade. A crise da filosofia messiânica. Aqui temos a seguinte figuração teórica: matriarcado (o homem natural) a tese. O patriarcado (o homem civilizado) a antí-tese. O retorno do matriarcado de pindorama (o bárbaro

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Em Os selvagens temos o olhar de surpresa e estupefação pelo destino de uma cultura que se separou da natureza. A lógica do olhar indígena parece cruzar imagens de aves livres e soltas pela floresta com a de uma ave aprisionada, domestica-da. E talvez perguntasse pelo valor de uma cultura que retira o poder de voar das aves e se compraz com a sua domesticação.

Que lógica operaria a correspondência entre o aprisionamento das aves, dos animais e a dos homens? O poema de Oswald opõe duas lógicas: a do colonizador que se coloca no centro e elimina a possibilidade de alteridade e que vê o índio como seu passado primordial a ser civilizado, catequiza-do, submetido às leis linguísticas e religiosas ou, no pior das hipóteses, um inimigo a ser eliminado su-mariamente, e a lógica do selvagem que vê na figura do europeu o nível mais acabado da degradação, o resultado de um processo de civilização que desan-dou, uma promessa de vitalidade que se perdeu,

tecnicizado) a síntese. Tanto o homem natural quanto o seu retorno no matriarcado de pindorama articula a imagem da mulher como condição dos processos de subjetivação politizada, ou melhor, de resistência aos modos dominantes do patriarcado.

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um inimigo forte que precisa ser devorado a bem de um devir ativo e descontínuo da história.

Em Cena, o negro: e a escravidão como o negócio espúrio que circula livremente na textua-lidade do Ocidente, da filosofia de Hegel ao gesto incendiário de Rui Barbosa. A violência que arranca o negro da África Ocidental (Nigéria, Benin, Togo e Ghana) e o aprisiona de forma múltipla (navios, cadeias, fazendas, senzalas, favelas) ganha uma plasticidade admirável em poemas de Pau-Brasil.

O canivete que voou em direção às costas do negro comprado na cadeia indica um gesto de traição e conivência histórica irreparável do qual par-tilham em surda dialética o texto jurídico, o aparato religioso, as representações estéticas. A plasticidade oswaldiana implica um corte serial e a fixação de um signo inaugural pelo qual o modernismo brasileiro haveria de conjurar a vergonha de uma cultura por ter convivido séculos com a escravidão e de jamais ter sido capaz de representá-la com olhos livres.

A mulher como signo do retorno em diferen-ça do matriarcado que descentraria a figura todo poderosa e a presença do pai; o índio como rebeldia e máquina de guerra contra o Estado e seus vetores

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da história; o negro como a pele textual por onde se faria a cartografia das formas de escravidão da subjetividade de um povo: eis as linhas de inversão cultural que vão entranhar e perseguir a atividade crítica oswaldiana.

Quando produz a imagem do Anel Equato-rial em Meu Testamento quer, de um só golpe, fazer da violência antropofágica uma oferenda teórica para uma atividade política que alinhe rizomatica-mente as mais diferentes potências da periferia do mundo. Se ainda toma emprestado do marxismo o conceito de classe para alinhar índios, negros e mulheres em direção a uma reversão da história, por outro lado, esvazia tão profundamente os con-ceitos de indivíduo, de coletividade, de utopia, de revolução, de lógica ocidental, de noção patriarcal de cultura e civilização que no mínimo nos leva a perguntar que coisa estranha21 é essa que atravessa o pensamento cultural oswaldiano.

21 Essa estranheza parece dizer da forma assistemática com que Oswald produz tais reflexões presentes desde sua produção poética, experimentalismo romanesco, teatro, crítica jornalística a sua figura pública e performática. A consistência de seu pensamento reside no vitalismo que intui e articula.

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Se no Anel Equatorial vislumbrado por Oswald em Meu Testamento não temos ainda uma imagem política radical da mulher lutando por direitos civis e inventando trincheiras contra a imposição, repressão e modos de representação do macho branco sobre a mulher, nem uma ima-gem do índio como reordenação dos tribalismos contemporâneos contra as territorializações etno-cêntricas, nem a imagem do negro como um crivo por onde passa uma avaliação radical dos valores das formas de espoliação produzidas pelo homem branco, mas temos já em Pau-Brasil, a Certidão de Autonomia do Cidadão Brasileiro22, em escri-tos dos anos 1940, uma crítica ao imperialismo nazifascista e ao stalinismo, além da invenção do conceito de mulatização que aponta para um devir negro do branco, e em escritos filosóficos dos anos 1940/1950, ao criticar as formas de messianismo, entre eles o marxismo, um mapeamento dos ele-mentos de uma revolução diferencial, a revolução caraíba, em que figura a imagem do bárbaro tec-nizado como síntese: por onde desejos e vontades,

22 SANTIAGO, Silviano. Elogio da tolerância racial. Idéias/Jornal do Brasil. 9/9/90, p. 8-11.

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antes reprimidos e recalcados, seriam ativados, a bem de uma revolução das formas de representação e da criação de novos espaços de sociabilidade.

As imagens históricas e contemporâneas do nazismo, fascismo, do stalinismo, os escom-bros da grande guerra (“os poderes infernais se apossando do mundo em clamor”) são violentas e abrangentes demais para que se possa fugir delas. O antropófago, contra isso, acredita na devoração como princípio ordenador e afirmador do caos, por isso agencia imagens de outro tipo de sociedade guerreira (na América, África, Ásia, no Anel Equa-torial) como possibilidade de eleição de outro tipo de cidadania escrita e legitimada através do livro de poemas: cartografia dos sistemas de repressão, poética da radicalidade contra os modelos de escrita da subjetividade, possibilidade de outras abertu-ras semióticas e vontade de instauração de outras práticas políticas, tendo por base a “contribuição milionária de todos os erros”. Ou seja, a experi-mentação permanente do pensamento selvagem e suas formas de bricolagem.

Entretanto, essa máquina de guerra, essa violência crítica, foi desde sempre reprimida, com-

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batida, negada, distorcida, vilipendiada por todas as formas de reducionismos e aparelhos de Estado distribuídos em toda parte. Ouçamos um pouco daquilo que Tristão de Ataíde23, o pensador cristão da crítica modernista, espalhou em jornais e livros sobre a Poesia Pau-Brasil:

Num primeiro momento, vemos o olhar de desdém ceder lugar ao reconhecimento do livro de poemas que emerge com intenso poder de disseminação

[...] É de 1923, creio eu, o seu Mani-festo da Poesia Pau-Brasil.

Passou inteiramente despercebido no momento, como uma tolice engraça-da e inofensiva. Manteve-se, porém. Prospera. Ramifica-se. Começa a co-municar-se ao grande público. Louva-se de ter por si as “elites”. E já não há mais o direito de desconhecê-la.24

23 Lima, Alceu Amoroso. Estudos Literários (v. 1). Sua pro-dução crítica, conforme Afrânio Coutinho, tem início em 1919 e se prolonga por mais de 50 anos.

24 Lima, op. cit., p. 915.

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Num outro momento a armadura do crítico se põe em ação e se, por um lado, se esquiva ao jogo e à encenação propostos pela poesia Pau-Brasil, de outro, passa a julgá-la por um falso critério de originalidade

[...]A poesia Pau-Brasil não merece o ridículo não. Ridicularizá-la é fazer o que ela procura. E nem isso é origi-nal, pois tão ridículo como eles são os moedores de sonetos que continuam a despejar o seu laissé pour compte sobre as estantes dos livreiros e as colunas de jornais. É preciso combatê-la. Nem silenciar, nem lhe dar armas.25

Entre o silêncio, que faria Pau-Brasil agen-ciar livremente a contribuição milionária de todos os erros, e a queda na armadilha, que exporia a crítica ao ridículo, Tristão opta por combatê-la a todo custo: o que acaba por multiplicar as formas do autoritarismo crítico, a intolerância, além da exposição ao etnocentrismo mais flagrante.

[...] O que pretendem, portanto, o Sr. Oswald de Andrade e o grupo de seus

25 Idem, p. 916.

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admiradores é abolir todo o esforço poético no sentido da lógica, da bele-za, da construção, e nadar no instin-tivo, na bobagem, na mediocridade. Exaltar a vulgaridade. Chegar ao puro balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do almofadinha dos ca-fés. Curvar o joelho diante de todos os prosaísmos. Voltar ao bárbaro ou deleitar-se no suburbano26.

Em outra passagem, além da incapacidade ou ausência de pressupostos críticos para lidar com o conceito de originalidade, acaba se perdendo também nas noções de fonte e influência e sendo apanhado pelas dentadas do antropófago

[...] Toda a originalidade novinha em folha do Sr. Oswald de Andrade, toda a sua literatura mandioca, abo-rígene, precabrálica, precolombiana, premongólica, toda ela é bebidinha, direta e indiretamente, em duas fon-tes europeias muito recentes e muito conhecidas: o dadaísmo francês e o expressionismo alemão.

26 Idem, p. 917.

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[...] A essas formas degeneradas, de-sesperadas que foram as mais recen-tes, precederam outras anteriores, no mesmo sentido. Há muito que a arte europeia procurava desintelectualizar-se. Sentia-se inteligente demais. Precisa tomar aquele “banho de estupidez” que o pai do Pau-Brasil (...) hoje nos acon-selha a nós que mal tivemos tempo de ser inteligentes e a quem o suicídio seria quase um aborto. Logo, um crime.”27

Vemos nos excertos acima que, em nome da construção e em defesa da inteligência nacional, temos a revelação do malestar do colonizado; em vez de um questionamento das razões históricas que produziram o ser colonizado e todas as suas implicações reacionárias, temos a mera repetição da noção de intelectual ou de sujeito moderno, ainda articulado pelo prisma do universal burguês, cristão e europeu.

Esse tipo de atitude crítica diante de uma obra de arte como a poesia Pau-Brasil, condenan-do-a como degenerada e, além disso, estabelecendo sua filiação ao que havia de mais “degenerado” na

27 Idem, p. 994-995.

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arte modernista europeia, tal atitude crítica, em certo sentido, se conecta perfeitamente com a von-tade e “sensibilidade artística” de Hitler ao investir na destruição sistemática de toda obra de arte que contivesse traços “deformadores” da realidade28 e, a partir daí, imperiosamente, além de saquear museus em toda Europa, ainda faz devir reativo todo sentido da produção clássica e renascentista: em nome das formas perfeitas que convergiriam ao arianismo puro, cujas consequências foram o extermínio de milhões de judeus e a disseminação da intolerância racial por toda parte.

Essa relação faz sentido porque, ainda que reconheçamos a existência indissociável das esferas da arte e da cultura, do Estado e da sociedade, e a necessidade de definição clara dos domínios de pro-dução intelectual, não podemos deixar de constatar que todas as conexões entre as esferas e domínios são possíveis. E aquilo que pareceria circular livre e inocentemente num campo de saber, como a crítica literária, não passa da repetição disfarçada de uma brutalidade ou de um preconceito que remonta

28 Cf. COHEN, Peter. A arquitetura da destruição. Imovision/Sonopress. 1999 (Vídeo em português).

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a outras fronteiras. Ou melhor, a insuspeitados pontos de contatos só articulados por certas mo-dalidades de crítica judicativa e etnocêntrica.

A arte europeia aspirava há muito por essa “jubolização” do cérebro. E outra coisa não foi senão isso, o delírio da arte negra. Não essa grande arte negra que Frobenius [...] descobriu no Sudão [...] não essa grande arte, mas a arte grosseira e atual das tribos degeneradas, a arte dos manipanços e feitiços abomináveis, que Guillaume Appolinaire divulgou e alguns pinto-res como Dérain, Matisse, Picasso ou Vlamink elevaram às nuvens há vinte anos. Dessa época era também o de-lírio dos primitivos.29

Se Pau-Brasil desperta tanto furor em críti-cos, poetas, historiadores, seus contemporâneos; se a atitude de um Tristão de Ataíde pode ser tomada como uma espécie de paradigma de “combate” de toda uma geração, imaginemos como essa vontade de apagamento e exclusão não se multiplica com a emergência do Manifesto Antropófago: única lei do

29 Lima, op. cit., 995.

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mundo. Expressão mascarada de todos os individua-lismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz30. A violência oswaldia-na ganha aqui um contorno mais programático e move-se numa vontade de agenciamento coletivo de enunciação que, para além de um problema estético já resolvido com Pau-Brasil, engendra a possibilidade política de reversão cultural: o Anel Equatorial vislumbrado em Meu testamento.

Quanto mais procura inverter o eixo da cultura (A reabilitação do primitivo é uma tarefa que compete aos americanos)31 mais investe numa teatralidade do pensamento como estratégia contra “o inimigo de muitas faces”. Interiorizar o exterior essa é a palavra de ordem diferencial.

Para formar uma cultura brasileira forte é necessidade histórica “devorar” o índio, retirado de cena com a chegada do europeu; o negro,

30 ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Utopia antropofágica. São Paulo: Globo/SEC-SP, 1990.

31 Oswald de Andrade. A reabilitação do primitivo. In: Estética e política. Texto de 1954, lido por Di Cavalcanti, num encontro de intelectuais realizado no Rio de Janeiro. Questão alinhada ao problema geral e dominante de seu pensamento sobre identidade: Tupi or not tupi...

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desde sempre recusado e tomado negativamente nas formas de representação estética e cultural; o europeu, máquina poderosa de elaboração daquilo que mais sofisticado havia na América e que, desde sempre, servira de objeto de desejo e captura; o americano do norte com o seu cinema e a tecnologia; o oriente e sua forma de encarar o ocidente. Enfim, fazer o matriarcado das Américas atravessar o patriarcado para que se pudesse dizer: nem somente o homem natural (a tese), nem somente o civilizado (a antítese), mas o homem natural tecnizado (a síntese) como potência e virtualidade.

É encenando a dialética hegeliana, colo-cando as máscaras do comunismo, subvertendo as cenas mais consagradas do pensamento cristão e metafísico, arlequinal e palhaço da burguesia, que Oswald, a um só tempo, desloca as formas do individualismo renascentista como encena a possibilidade de outras formas de coletivismo.

Ao índio, ao negro, à mulher, ao excluído de toda sorte que vagam pelo Anel Equatorial, a violência antropofágica é uma doação contra os modos patriarcais de exclusão e captura.

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A imagem transgressora de cultura elaborada por Oswald de Andrade parece encontrar o seu limite à medida que não temos muita alternativa senão alinhá-la às noções de vanguarda estética ou histórica. Se alinhamos essa imagem à vanguarda estética, temos uma negação da história com ênfase no primitivismo ou num socialismo libertário no futuro, segundo argumentação de Octávio Paz em Os Filhos do Barro32; por outro lado, se a alinhamos à vanguarda histórica (e temos exemplos de sobra quando pomos o foco no flerte oswaldiano com a política cultural de massa da URSS), acaba se esbarrando naquilo que Silviano Santiago flagrou com muita precisão em Sobre plataformas e testa-mentos33: uma ausência de solo histórico.

Para Silviano, nesse texto, Ponta de lança, Oswald de Andrade teria sido o único intelectual brasileiro que, na década de 1940, especialmente em 1944, pode continuar polemizando, comba-

32 PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

33 Silviano Santiago. Sobre plataformas e testamentos. In: Ponta de lança.

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tendo xenofobismos, elogiando a emergência de ícones da cultura pop internacional em lugar do Jeca-tatu de Monteiro Lobato; elegendo, com ale-gria, a poesia Pau-Brasil como marco diferencial do Modernismo brasileiro, e, além disso, proliferando contra as formas de intolerância racial o conceito de mulatização.

Ainda assim não se pode deixar de notar e reconhecer uma contradição e um limite em sua noção de história, principalmente porque Silviano Santiago, amparado na imagem do sindicalismo inglês descrita por Eric Hobsbawn, não o poupa e pega com bastante crueldade o elogio que Oswald faz ao Jubiabá de Jorge Amado:

A rebeldia primitiva, rural, interpre-tada milagrosa e anacronicamente pelo stalinismo no romance proletário brasileiro, felizmente não encontra contrapartida nos romances urbanos escritos hoje em dia. Nos anos 40, Oswald nem de longe suspeitaria do que poderia acontecer com as suas idwias se esticadas para um determi-nado lado34.

34 Idem, p. 19.

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Ainda que depois da segunda guerra mundial e início dos anos 1950 venha se dedicar ao estudo fi-losófico e à releitura da antropofagia em textos como A crise da filosofia messiânica (1950), Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial (1950), A marcha das utopias (1953) e em estudos sobre o matriarcado em Variações sobre o matriarcado e Ainda o matriarcado, o que leva o próprio Silviano Santiago em textos como A permanência do discurso da tradição no modernismo35, a exigir da crítica à obra de Oswald uma leitura de seus escritos filosóficos e apontar sua reflexão sobre utopia e sobre o tempo (o retorno em diferença do matriarcado de Pindorama) como originalidades intocadas de seu pensamento, a imagem de revolução Caraíba, que atravessa toda sua obra, ainda careceria de outro suporte teórico capaz de flagrar aquele “exorbitar da estrutura” como emergência revolucionária.

Essa atividade intempestiva, embora aponte para outro ciclo histórico desvinculado das noções de individualismo e coletivismo fundadas num

35 SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra.. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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paradigma iluminista e logocêntrico, deslocando, com esse gesto crítico a dialética e suas formas de operação teórica e metodológica, por outro lado não é vitalista o suficiente — ou seja, não possui todos os recursos teóricos paralógicos, para pensar a historicidade pela economia do desejo.

Com essa noção de violência antropofágica ambivalente engendra um maquinismo crítico capaz de dobrar um modelo patriarcal de cultura por dentro do sistema e se apropria das regras do patriarcado para fazê-lo devir diferencial pela imagem do matriarcado de Pindorama. Se nesse movimento crítico, às vezes se deixa cair nas ma-lhas de um pensamento dialético, o suficiente para atrair todo o tipo de inimigo da sua obra e pessoa, por outro lado consegue disseminar uma imagem cultural irrefutável e de onde derivarão muitas interpretações estéticas e culturais do Brasil e da civilização.

No segundo caso, pensemos na leitura da antropofagia realizada pelo concretismo e em espe-cial o texto de Haroldo de Campos Da razão antro-pofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira36.

36 CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São

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Os cortes radicais vão investir na noção linear de historiografia literária brasileira desenvolvida tanto por Antonio Cândido em Formação da Literatura Brasileira quanto por Afrânio Coutinho em A Literatura no Brasil.

Embora seguindo pressupostos críticos di-ferenciados, aquele um viés sociológico este um viés esteticista, não deixam de cair nas armadilhas da origem e no elogio do espírito que subjaz ao logocentrismo ocidental. Temos, na proposta de uma historiografia constelar, uma substituição do diacronismo por um sincronismo radical.

Numa outra perspectiva desconstrutora, Lúcia Helena, em Uma literatura antropofágica37, interpreta a antropofagia oswaldiana como uma “corrente estética” e a faz retroagir aos primór-dios da colonização como uma “atitude estético-cultural” que atravessa a obra de poetas do quilate de Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, Mário de Andrade etc., e que fará da literatura brasileira uma potência liberadora e radical sempre capaz de enfrentar seus modelos e os colocar em questão.

Paulo: Perspectiva, 1992.37 Lúcia Helena. Uma literatura antropofágica.

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Nessa linha de irreverência, a violência antropofágica se dissemina na atividade crítica de outros tantos autores como Leila Perrone-Moisés38, ao alinhá-la, no domínio da literatura comparada, à escritura desconstrutora de Jorge Luis Borges; Roberto Corrêa dos Santos39 acentua a força do pensamento antropofágico ao realizar uma in-teriorização do exterior e divisar a possibilidade contemporânea de uma exteriorização do exterior; Raul Antelo em Canibalismo e diferença40, alinha a antropofagia oswaldiana ao pensamento de Ge-orges Ribemont-Dessaignes para quem “o meio mais puro de testemunhar o amor ao próximo seria comendo-o”.

O texto de Raul Antelo acredita que o cani-balismo seria uma estratégia crítica, movida pela vontade do excesso e procedimento paradoxal capaz de enfrentar a exaustão e o impasse do pen-

38 Leila Perrone-Moisés. Literatura comparada, intertexto e antropofagia.

39 SANTOS, Roberto Corrêa dos. O político e o psicológico, estágios da cultura. In: TELES, Gilberto Mendonça et ali. Oswald Plural. Rio de Janeiro: Ed. da UERJ, 1995.

40 Raul Antelo. Canibalismo e diferença. In: Nuevo Texto Crítico.

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samento ocidental e, pela metáfora da cura, que é subjacente ao canibalismo em questão, re-escrever a modernidade.

Quanto aos inimigos da antropofagia, num sentido restrito, poderíamos dizer que se prolife-ram desde o lançamento do Manifesto Antropófago e da Revista de Antropofagia em 1928 quando regionalistas, cristãos e xenófobos de toda estirpe vão repudiá-los de todos os lados a tal ponto que no começo dos anos 1930, Oswald, Raul Bopp, Aníbal Machado e outros passam, conforme dizer de Oswald,41 a ser os cães viralatas do modernismo e a sofrerem todo tipo de ataque e com tamanha magnitude que podemos constatar seus remanes-centes ou herdeiros nos mais diferentes lugares da atividade crítica brasileira.

O mais curioso é que todos os inimigos da antropofagia oswaldiana parecem seguir todos os passos do combate estabelecidos por Tristão de Ataíde ao repudiar a poesia Pau-Brasil: a começar pelo desdém em relação à “tolice engraçada e inofensiva” fixada lá e que encarna no “contador

41 ANDRADE, Oswald de. Ponta de lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

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de piadas” que se distribui pelos quatro cantos da academia brasileira, universidades, livros didáticos, entre outros espaços.

Um segundo aspecto do ataque seria em torno da ausência de originalidade de Pau-Brasil ou da antropofagia, ambos “bebidinhos” de fon-tes europeias. Nessa linha, estão o crítico Heitor Martins e seu “Canibais europeus e antropófagos brasileiros”42, Roberto Schwartz43 e sua intolerân-cia ao “infantilismo”, Mário de Andrade e seus seguidores, confessando seu horror ao poema piada, Rui Espinheira Filho44, apegado à rostidade cristã, e sua desconfiança na cabeça pesquisadora do antropófago, os intelectuais do ISEB e seu desprezo pela contribuição milionária de todos os erros inscrita no nomadismo político do povo, sempre tomado como rebanho alienado45 e, mais

42 Heitor Martins. Canibais europeus e antropófagos brasi-leiros. In: Oswald de Andrade e outros.

43 SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta mo-dernista. In: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

44 Rui Espinheira. S.m.r.45 ORTIZ, Renato. Alienação e cultura: o ISEB. In: Cultura

brasileira e identidade nacional. 2. ed. São Paulo: Brasilien-

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recentemente, mesmo após, a revolução tropicalista na cultura brasileira e ocidental, ainda temos um Sérgio Paulo Rouanet46 e sua condenação ao irra-cionalismo “suburbano” e neonietzcheano, além de Tolentino e sua repetição de lemas fascistas, na análise que faz, em maio de 1998, da antropofagia e do tropicalismo47.

Todas essas formas de combate ao vitalismo radical e assistemático da violência antropofágica oswaldiana, se, por um lado, diz da coexistência ativa do pensamento em sua multiplicidade, de outro, parece constituir uma memória ou um “bloco mágico” de alta voltagem para se fazer um mapeamento e/ou cartografia do sistema de repres-são intelectual no Brasil do século XX.

Neste livro de bolso, ao contrário, e am-pliando a imagem de repressão ao pensamento libertário no Brasil, realizada por Benedito Nunes, as formas de repressão ao livre pensamento não se desfazem nessa virada de século. O gesto repressivo

se, 1986.46 ROUANET, Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1987.. 47 TOLENTINO, Bruno. Revista Bravo, maio de 1998.

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do colonizador à antropofagia, entre os índios, parece se repetir nos modos de atuação e vigilância subjacentes ao etnocentrismo contemporâneo.

Desse modo, a violência antropofágica exer-cida e disseminada por Oswald de Andrade confere outro estatuto à antropofagia ritual. E se encontra-mos algum lugar na memória cultural para inserí-la é devido à noção mesma de memória que aqui será modificada: passar de uma memória que, por força de encenação de uma memória do homem europeu, nunca foi memória do povo brasileiro48, para uma noção de inconsciente maquínico49 e re-volucionário, ou ainda a de inconsciente político50, como traços e marcas nos corpos, articulados às formas de expressão e de singularidades de indiví-duos, tribos, culturas, nações, sobretudo às situadas no Anel Equatorial.

48 Silviano Santiago, Apesar de dependente, universal.49 GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações polí-

ticas do desejo. Trad. Suely Belinha Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1981..

50 JAMESON, Frederic. O inconsciente político: a narrati-va como ato socialmente simbólico. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1992.

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A violência antropofágica como atividade voltada para a construção de uma noção de cidada-nia brasileira, ou, mais abrangentemente, para uma cidadania dos povos situados no Anel Equatorial: quase todos situados abaixo da categoria de cida-dãos ou relegados a cidadãos de segunda, terceira e quinta categorias.

Uma caixa de ferramentas para realizar um diagnóstico da violência colonizadora, em suas mais variadas versões, e agenciar forças das culturas recalcadas e guerreiras para estabelecer aquilo que é sua vontade mais radical: violentar a violência desenfreada e sem controle que subjaz às hierar-quias e aos individualismos vinculados a todo tipo de selvageria e agenciar possibilidades de novas leis alternativas e construir e praticar a liberdade como um permanente exercício de transgressão.

Se num primeiro momento a violência an-tropofágica pensada por Oswald de Andrade parece se inspirar na antropofagia ritual entre as sociedades indígenas e tribais pré-cabralinas para combater outra violência instituída a partir do modelo de subjetividade produzido pelo patriarcado ou, mais especificamente, pela Catequese no Brasil — ins-— ins- ins-

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piração que remonta ao desvio propriamente de uma cosmologia dominante para a possibilidade de outra cosmologia diferencial (e aqui pensamos na tese Araweté: os deuses canibais, de Viveiros de Castro, em que o maquinismo e a intercambiân-cia do desejo é engendrado tanto pela figuração da vontade dos deuses que devoram quanto dos homens que desejam ser devorados pelos deuses)51 — num segundo momento, disseminada essa ima- num segundo momento, disseminada essa ima-gem de diferença cosmológica (Weltsanchauung) como um desvio e como possibilidade entre os oprimidos do Anel Equatorial, é preciso retomar a máquina guerreira como garantia de produção de uma singularidade entre as novas formas de tribalismo ou devires coletivos de indivíduos e/ou devires indivíduos de coletivos.

A violência antropofágica em Oswald de Andrade estabelece desde sempre uma espécie de conexão rizomática com a filosofia a golpes de martelo, só que com uma origem diferencial: em vez de pré-socráticos, agencia imagens da máquina de guerra das sociedades indígenas que, em sua interpretação, devêm afirmativas e como possibi-

51 Eduardo Viveiros de Castro. Araweté: os deuses canibais.

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lidade constelar das posicionalidades52, figuradas nessa miríade utópica e caraíba de associações de homens, mulheres e crianças livres.

52 DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

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Em sua tentativa de reintegrar arte e vida, a vanguarda não queria, é claro, unir o conceito burguês de realidade à igualmente burguesa noção de uma alta cultura autô-noma. Para usar os termos de Marcuse, eles não queriam ligar o princípio de realidade à cultura afirmativa, já que estes dois princípios se constituíam mutuamente através de sua separação. Ao contrário, incorporando a tecnologia na arte, a vanguarda libertou a tecnologia de seus aspectos instrumentais e dessa forma minou tanto a noção burgue-sa de tecnologia como progresso, quanto à de arte como “natural”, “autônoma” e “orgânica”.

(Andreas Huyssen, Memórias do Modernismo, p. 32)

A problemática envolvendo tecnologia, van guarda e ação sobre a memória cultural em Oswald de Andrade ganharia outra visibilidade se recorrêssemos inicialmente ao seu livro de me-

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mórias intitulado Um homem sem profissão: sob as ordens da mamãe1.

Nesse livro de memórias incompletas, ainda que os acontecimentos narrados percorram um arco temporal que vai somente da infância até o final da segunda década do século XX — faltando, portanto, toda a intempestiva trajetória dos anos 1920 aos 1950, temos uma série de elementos bio(biblio)gráficos indispensáveis à composição de uma performance2 que indica o quanto Oswald soube se apropriar de todo um aparato tecnoló-gico disponível em seu tempo para produzir uma imagem cultural e projetar uma reflexão que, se por um lado é um excessivo elogio ao homo faber, por outro, soube muito bem produzir linhas de fuga, cartografias, endereços contra a subjetividade fabricada ou o contra o homem como um produto das sociedades tecnocráticas3.

1 Oswald de Andrade. Um homem sem profissão: sob as ordens da mamãe.

2 Performance aqui diz do caráter ficcional que as biografias podem assumir ao reinventar cenas de vida, pelo cruza-mento de dados reais com ficcionais, experiências vividas ou vivenciáveis. Sobre essa questão, ver tese de Evelina Hoisel sobre o Grande Sertão: Veredas.

3 Tanto o homo faber quanto o homem produto das socie-

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Juntemos, então, as peças oferecidas pelo livro de memórias com outras peças dispersas em manifestos, poemas, romances e reflexão filosó-fica para fazermos intercambiar a performance entranhada ao livro de memórias com a imagem tecnológica lapidar de sua obra: o bárbaro tecni-zado como síntese do homem natural + o homem técnico (civilizado)4.

Talvez seja difícil refutar que Oswald de Andrade tenha sido o artista e pensador do mo-dernismo brasileiro que mais ativamente soube afirmar a potência da tecnologia: tanto para mudar o conceito de arte, entre nós, quanto para poder disseminar e discutir a sua importância (a da tec-nologia) numa sociedade como a brasileira, cuja singularidade paradoxal faz coexistir temporalida-

dades tecnocráticas ajusta-se perfeitamente ao conceito do homem técnico ou civilizado que, em intercâmbio com o homem em seu estado natural, compõe, em Oswald, aquilo que seria o retorno do bárbaro tecnicizado no matriarcado de Pindorama.

4 A noção “bárbaro” aparece já no Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1923); “Bárbaro tecnicizado” no Antropófago (1928) e ganha rentabilidade sistemática em A crise da filosofia messiânica (1950).

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des que articulam uma sociedades tribais, arcaicas, tradicionais às mais avançadas5.

A tecnologia é, paradoxalmente, nossa condição de possibilidade de uma cartografia permanente dos desmandos e violências que, rea-tivamente, a própria tecnologia pode assumir em sociedades contraditórias e periféricas, do mesmo modo que pode funcionar como um aparato ou antenas sofisticadas de recepção e disseminação das sutilezas e da sensibilidade que fazem cruzar todos os tipos de sociedades humanas. Afirmar a tecnologia a partir de Oswald de Andrade é ao mesmo tempo: não negá-la, o que seria uma ingenuidade, nem elogiá-la in totum, o que seria uma obscenidade.

A performance oswaldiana flagrada no livro de memórias diz de cenas da infância e adolescência que implicam uma escuta, uma incorporação e uma dramatização dos sinais de vida moderna que

5 Multiplicidade de tempos que produzirá também um múltiplo devir: devir ócio, devir negociação do negócio, devir matriarcal, devir negro, devir índio, devir mulata, devir eldorado, devir futebol etc., remetendo para a com-plexidade do desejo de um povo formado por raças muito distintas.

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brotam com a cidade de São Paulo de fins de século XIX: o fonógrafo da família vizinha “americaniza-da”, o bonde assustando as pessoas, os postes da Light, o cinema como fotografias animadas, e, já no início do século XX, a prematura atividade jor-nalística em o “Diário Popular”6, a perambulação por cidades europeias, a deglutição do manifesto futurista e a vontade de produzir uma imagem diferencial do Brasil.

Tudo isso faz com que o conhecimento de si e de seu país se dêem no exterior, já que na pro-dução de identidade nacional, aqui, só dispunha de um fantasma do ocidente a ser atravessado, e lá, na circulação das identidades em diferença, eram as culturas periféricas que faziam a festa. Nesse sentido, a cena da subjetividade o faz estrangeiro em sua terra, como demasiado familiar em Paris.

6 Além de articulista do “Diário Popular”, estreando em 1909 com o artigo “Pennando”, é redator e crítico teatral. Desde então passa por uma série de jornais, “Jornal do Comércio” (1916), funda o “Pirralho” em 1917, redator da “Gazeta” (1918), “Correio da Manhã” (1924), funda, com Pagu, “O Homem do Povo” em 1931, colaborador em “Diário de São Paulo” (1944). Ver cronologia. In: ANDRADE, Oswald. Obras Completas.

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Se as cenas de vida pessoal compõem uma performance, a atividade de vanguarda, manifesta a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, vai produzir uma imagem cultural, e ambas vão estar atravessadas por um feeling tecnicus7 ou pela tecnologia como um afeto: um mecanismo de engendramento de uma outra potencialidade hu-mana, sobretudo a expansão da potencialidade dos esquecidos na periferia do mundo contra quem a tecnologia tem desenvolvido, até então, um papel reativo de exclusão e de apagamento. Nesse cru-zamento de questões, a Semana de Arte de 22 é ao mesmo tempo um momento performático que envolve vários artistas e o lugar de uma oficina de imagens do Brasil.

Oswald de Andrade compreende daí que sem tecnologia não há nenhuma vanguarda possível, ne-nhum biscoito fino poderia chegar às massas. Assim teríamos outra leitura da conferência intitulada O

7 Operador textual e crítico descoberto e/ou construído pelo autor deste livro ao flagrar a tendência contemporânea de ampliação da potência do ser humano — de pensar, sentir, multiplicar-se no outro e para o outro, a partir da incorporação de apetrechos tecnológicos disponíveis no mercado cultural.

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esforço intelectual do Brasil contemporâneo8 que fará na Sorbonne em 1923: disseminar a imagem de um esforço cultural de legitimação da “fé panteísta da raça” e ao mesmo tempo se apropriar de meios técnicos de expressão artística explorados pelos movimentos de vanguarda daquele momento.

A imagem da “fé panteísta da raça” deixa na Europa sua vestimenta acadêmica e arcaica, em termos de tecnologia, e ganha uma forma diferen-cial de expressão a partir dos textos marcadamente de vanguarda: o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o romance Memórias sentimentais de João Miramar. E se, conforme Paulo Prado, Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy — umbigo do mundo — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra9, é preciso ir um pouco mais longe: se a Europa é o lugar da mira-da histórica pela qual teríamos uma reversão da imagem do Brasil, é somente na América que a palavra escrita, como técnica, terá condições de

8 Oswald de Andrade, O esforço intelectual do Brasil con-temporâneo. In: Estética e política.

9 Paulo Prado. Poesia Pau Brasil. In: ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 5. ed. São Paulo: Globo/SEC-SP, 1991.

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se expandir pelo papel decisivo jogado pela tec-nologia, que alinha pensamento selvagem (viés de articulação de uma subjetividade diferencial) e imagem de cinema (procedimento mecânico de desierarquização da aura da escrita ou da cultura grafocêntrica)10.

Não há como negar, na linha de um para-digma alimentado por uma dialética negativa11, uma filiação dos movimentos de vanguarda na América Latina às vanguardas europeias, entre-tanto, é possível afirmar, por um viés paradoxal, que é na América Latina o lugar onde a vanguarda europeia passa pelo crivo mais radical: ao se expor como aquilo que já tinha sido realizado há séculos,

10 Pensamento selvagem e natureza da imagem cinematográ-fica podem ser articulados pelo operador “bricolagem” pre-sente em textos como Pensamento selvagem, de Lévi-Strauss; Serafim: um grande não livro, de Haroldo de Campos; A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin etc.

11 Rouanet, em As razões do Iluminismo, alinhando a dialética negativa a partir de Adorno e Hockheimer. E de como tal procedimento interpretativo para encarnar todo o modo iluminista de leitura do mundo contra o qual Deleuze em Nietzsche e a filosofia havia sugerido o Super-homem nietzschiano.

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seja entre os índios ou entre os negros, a imagem revolucionária virava imitação quase grotesca da-quilo que se encontrava ainda em plena ebulição nas tribos existentes ou que já havia sido destruído pela mesma vontade de ruptura que impregnava o espírito vanguardista12.

Essa constatação faz com que poetas do quilate de Oswald de Andrade selecionem um ele-mento forte da cultura diferencial, o bárbaro, pelo qual passará toda a técnica: seja a arte de escrever ou a de produzir imagens via mecânica. Nesse gesto, temos uma atividade radical que, para além de romper, realiza uma questão absolutamente in-quietante: Tupy or not Tupy, eis a questão13. Questão que nenhuma vanguarda europeia teria condições de formular pelos simples fato de não saber mais perguntar, impregnada que estava, há milênios, de uma excessiva vontade de ruptura14.

12 Uma tematização dessa questão encontra-se em Silviano Santiago. Cf. SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

13 Oswald de Andrade. Manifesto Antropófago.14 Pelo viés de uma história do pensamento, a cultura europeia

sempre foi de ruptura. Sobre isso, Martin Heidegger. Sobre o humanismo e HABERMAS, Jürgen. O projeto inacabado

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Em Os filhos do Barro15, Octavio Paz não deixa aleatórios os elementos de uma arqueologia da vontade de ruptura como em O arco e a lira16, por exemplo, mas realiza uma distinção funda-mental entre vanguarda europeia e modernismo anglo-americano que, num certo domínio de reflexão — espécie de filosofia da civilização, é imprescindível a uma visão mais sistemática da modernidade no ocidente. Temos no ensaio clássi-co O ocaso da vanguarda um mapeamento de duas vontades estético-revolucionárias: uma é a vontade de ruptura que subjaz à vanguarda europeia, outra é a vontade de não-ruptura que subjaz à vanguarda ou modernismo anglo-americano.

Puxando os fios dessa disjunção, Paz nos diz:

da modernidade. In: Arte em revista. São Paulo, Centro de Arte Contemporânea, n.7, p. 86-89, ago/1973..

15 Cf. PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Especialmente os ensaios “A tradição da ruptura”, “Analogia e ironia” e “O ocaso da vanguarda”.

16 Cf. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Neste texto, a questão da ruptura no Ocidente parece mais alinhada às leituras de Heiddeger: leitor dos pré-socráticos.

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A vanguarda europeia afirma a estéti-ca da exceção. Eliot quer reintegrar a exceção religiosa — a separação pro-testante — na ordem cristã de Roma e Pound pretende inserir a singula-ridade histórica que são os Estados Unidos em uma ordem universal; Dadá e os surrealistas destroem os códigos e lançam sarcasmos e escar-ros contra os altares e as instituições, Eliot acredita na igreja e na monar-quia, Pound propõe aos Estados Unidos a imagem de Chefe-Filósofo-Salvador, um híbrido de Confúcio, Malatesta e Mussolini; para a van-guarda europeia, a sociedade ideal está fora da história — é o mundo dos primitivos ou a cidade do futuro, o passado sem datas ou a utopia co-munista e libertária — enquanto os arquétipos que nos oferecem Eliot e Pound são impérios e igrejas modelos históricos; Dadá tanto nega as obras do passado como as do presente, os poetas anglo-americanos empenham-se na reconstrução de uma tradição; para uns, os surrealistas, o poeta es-

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creve o que lhe dita o inconsciente, poesia é escrever a outra voz, que fala em cada um de nós quando calamos a voz da vigília, para os anglo-ame-ricanos a poesia é técnica, domínio, maestria, consciência, lucidez; Breton foi trotskista e Eliot, monarquista. A lista de oposições é interminável. Até nos “erros” políticos e morais, a sime-tria da oposição reaparece: o fascismo de Pound corresponde ao stalinismo de Aragon, Éluard e Neruda.17

Se a vanguarda europeia, pelo que vimos na leitura de Paz, move-se numa vontade de ruptura e o modernismo anglo-americano, embora tributário dos principais poetas de vanguarda europeia, move-se numa vontade de reconstrução do passado defor-mado pelo romantismo, qual seria, então, a vonta-de da vanguarda latino-americana? Pelo enfoque de Paz, há uma filiação da vanguarda latino-americana com a vontade de ruptura existente na vanguarda europeia: seja pelo viés de uma vanguarda estética que teria o dadaísmo como modelo; seja pelo viés

17 PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 174-175.

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de uma vanguarda histórica e política na linha do modelo soviético e stalinista.

Por essa filiação quase sempre estabelecida, também, pela crítica e historiografia literária, já que todo empenho crítico e historiográfico do moder-nismo ou era, dissimuladamente, um segmento do nazifascismo ou movia-se contra o capitalismo e as mazelas da sociedade burguesa, fica muito difícil produzir uma alternativa epistemológica para a vanguarda latino-americana: ou é uma cópia degra-dada da vanguarda histórica ou estética ou, numa hipótese duvidosa, uma dobra do movimento revolucionário que finalmente mudaria o mundo, reverteria a história. Em suma: a vanguarda latino-americana, em função dos paradigmas de leitura, seja ele sociológico ou estruturalista18, desde sempre foi colocada num beco sem saída.

18 Embora se encontre, em histórias da crítica do moder-nismo, a descrição de várias correntes críticas, denotando haver portanto uma diversidade do pensamento, é possível subsumi-las em dois grandes eixos de pensamento: um que gira em torno da sociologia, outro em torno da linguística. Sobre esses lugares de pensamento, ler Deleuze & Guattari. 20 noviembre 1923: postulados de la linguística.

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Se Octavio Paz, mais de meio século depois, ainda não consegue interpretar o movimento de vanguarda fora do eixo de uma lógica dicotômica, o que teriam dito teóricos, críticos, poetas latino-americanos da época de vanguarda, divididos que estavam entre a crítica da dominação europeia na América Latina, por um lado, e a crítica de uma nova dominação que se anuncia, pós Primeira Guerra Mundial, com a emergência dos EUA? Certamente não faltaram críticos de todas as estirpes a condenarem a produção latina como uma cópia degradada: tudo porque parece haver um centramento na razão estética europeia e uma compartimentalização da obra de arte.

Talvez um deslocamento dessa razão estética e a abertura da obra de arte para outros diálogos, realizados num outro domínio de pesquisa — a crítica cultural —, engendrem novas possibilidades de interpretação da vanguarda, principalmente a vanguarda pensada e praticada por Oswald de Andrade.

Andreas Huyssen, em Memórias do moder-nismo19, defende a ideia de que nos Estados Uni-

19 Andreas Huyssen. A dialética oculta: vanguarda — tecno-logia — cultura de massa. In: Memórias do modernismo.

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dos nunca se acreditou que a arte fosse capaz de mudar o mundo e que a maneira contemporânea de recuperar “aquela imagem de unidade política e artística da vanguarda atualmente perdida, e que pode nos ajudar a forjar uma nova unidade entre política e cultura” seria interpretá-la pelo prisma de sua relação com a tecnologia.

Levando mais adiante aquilo que Peter Bürke em Teoria da vanguarda havia estabelecido como distinção entre dadaísmo e os movimentos anteriores, por aquele movimento, além de atacar a “instituição arte”, ser também uma ruptura radical com a estética referencial e a noção de obra de arte como “autônoma” e “orgânica”, Huyssen nos diz:

Vou mais além: nenhum outro fator influenciou mais a emergência da nova arte de vanguarda que a tecnolo-gia, que não só incendiou a imagina-ção dos artistas (com o dinamismo, o culto à máquina, a beleza da técnica, as atitudes construtivista e produ-tivista), como penetrou no coração mesmo da obra. A verdadeira invasão da tecnologia pode ser mais bem en-tendida através de práticas artísticas

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como a colagem, a montagem, a foto-montagem; e desembocaram ainda na fotografia e no filme, formas de arte que podem não ser reproduzidas, mas que são na verdade planejada para a reprodutibilidade técnica.”20

Em relação à vanguarda histórica de que foi protagonista a União Soviética e os aliados, cujo imperativo partidário seria engajar a arte no sentido de uma consciência revolucionária das massas, Huyssen nos alerta de que ainda é preciso considerar a sua ênfase na “transformação cultu-ral do cotidiano”, para que se possa “desenvolver estratégias para o contexto cultural e político de hoje”, embora reconheça que a perda de sua po-tência de contestação (da vanguarda histórica) se deu inapelavelmente com a ascensão da indústria cultural ocidental que, se por um lado fomentou a emergência de uma nova oposição conceitual em torno do erudito/popular, amplamente (um quase clichê) disseminado nas teses acadêmicas, por outro, responde, no mais das vezes, a um conformismo sem precedentes na história da humanidade.

20 Huyssen, op. cit, p. 30.

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De forma mais impiedosa em relação à van-guarda europeia, Antoine Compagnon em Cinco paradoxos da modernidade21, apoiado em Baudelaire como um paradigma irretocável da modernidade estética, vai associar o surrealismo de André Breton e de outros artistas (salvaguardando somente Salva-dor Dali em alguns momentos), a um movimento de terror que mais produziu teorias do que obras e que funcionou como uma espécie de sintoma de um problema difícil para a arte de vanguarda: ser o “verdadeiro novo” e ao mesmo tempo ser capaz de criticar o imperativo de novidade que é também da natureza do mercado capitalista.

E resumindo e, ao mesmo tempo, questio-nando a tese de Theodor Adorno em Teoria Estética nos diz:

Já que a sociedade burguesa se define como uma sociedade não tradicio-nal, a negação moderna da tradição

21 Cf. COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade.Trad. Cleonice P. B. Mourão; Consuelo F. Santiago; Eunice Galéry. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. Cf. especialmente os capítulos “A religião do futuro: vanguardas e narrativas ortodoxas” e “Teoria e terror: o abstracionismo e o surrealismo”.

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e a autoridade estética do novo são historicamente inelutáveis. O novo nega, então, menos as práticas ante-riores do que a tradição enquanto tal. Assim, segundo Adorno, “ele somente ratifica o princípio burguês da arte”. O papel do novo, na arte moderna, se explica simultaneamente, como uma consequência do domínio do novo no mercado em geral e como uma resistência às leis do mercado. En-quanto o marxismo vulgar levava toda a tradição moderna para o lado da modernidade burguesa, como simples anticonformismo boêmio e tendência à arte pela arte, a análise de Adorno a leva inteiramente para o lado da van-guarda. Mas a questão persiste: como separar o novo verdadeiro do novo mercantil, que é apenas aparência de novo? Sob o nome de novo, Adorno não estaria confundindo a variação, criadora de simples surpresa, nos li-mites de um gênero ou de um estilo, e a negação subversiva e revolucionária da própria tradição?22

22 Antoine Compagnon, op. cit, p. 61-62.

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O drama da vanguarda europeia, na leitura de Antoine Compagnon, aponta tanto para as aporias da própria crítica à modernidade quanto para a emergência de duas tendências artísticas que vão conviver com o mercado, o expressionismo abstrato e a art pop, e mais: a arte se deslocou de Paris para Nova York após 1945.

Mas ou menos nessa linha de leitura e inter-pretação de Huyssen e Antoine Compagnon, Sil-viano Santiago nos oferece uma série de endereços para a leitura da vanguarda no Brasil, fora de um centramento na razão estética europeia. Ou me-lhor: fora de um viés dadá de leitura e interpretação do passado quanto do futuro. Em A permanência do discurso da tradição no modernismo23, estabelece um plano de reflexão em que aparecem como pressupostos T. S. Eliot em Tradição e talento indi-vidual e Octavio Paz em Os filhos do barro, e, como objeto de análise e leitura, os modernistas de 22; em especial a noção de utopia em Murilo Mendes e Oswald de Andrade: este alinhado a um retorno

23 SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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em diferença do matriarcado de Pindorama, aquele a um movimento escatológico do tipo cristão, em que Cristo retorna o mesmo.

A leitura de Silviano deixa as seguintes pistas: se Eliot acerta quando mostra a importância e a permanência dos grandes poetas da tradição oci-dental na produção poética dos novos poetas do modernismo, num outro sentido revela-se eurocên-trico quando recalca, esquece e apaga as tradições diferenciais, deslize que se choca frontalmente com o ideário do modernismo brasileiro e sua pesquisa dominante sobre o índio e o negro.

Se Octavio Paz mapeia de forma exemplar a tradição da ruptura, situando as estratégias de desconstrução dos pilares da modernidade, a saber, o tempo, a história, a ética e a estética, por outro, não consegue desenvolver a noção de tradição da analogia, ao alinhar a atividade e a atitude dos poetas modernistas aos esquemas do pensamento do século XVI.

E lendo o texto de Octavio Paz através dos sinais de vida pós-moderna que emergem como pano de fundo, portanto, desfazendo suas dico-tomias latentes e, ancorado numa crítica cultural

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que encena um declínio da arte e uma ascensão da cultura, Silviano Santiago interpreta a viagem feita pelos modernistas Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, ciceroneando o poeta de vanguarda Blaise Cendrars, às cidades barrocas de Minas gerais em 1924, como uma possibilidade de leitura intervalar da vanguarda modernista: agora não mais pelo viés de ruptura, mas por uma releitura ou (leitura ativa) da tradição como condição de possibilidade de emergência de uma universalidade diferencial contra a dependência cultural.

Puxando, então, os fios de tais discussões, podemos dizer que a imagem do bárbaro tecnizado, como síntese do homem natural (tese) + o homem técnico e civilizado (antítese), pode se configurar como uma noção teórico-cultural que responde aos vários enfoques sobre vanguarda apresentados: por afirmar a tecnologia, figura-se como a diferen-ça latino-americana no contexto das dicotomias descritas por Octavio Paz; por selecionar a natu-reza como o outro a ser respeitado e escutado no jogo das trocas simbólicas e nas práticas culturais e civilizatórias desfaz, ou coloca em outros ter-mos, o elogio de Huyssen ao aparato tecnológico

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norte-americano que, para além da apropriação dos europeus realizada do século XVI ao século XIX, os EUA vão encarar a natureza como algo a ser dominado, domesticado, confundido com aquela paisagem inteira de grupos humanos.24

Ou ainda, a imagem do bárbaro tecnizado, como uma imagem teórico-cultural, pode dizer nem cultura erudita (por sua história de dominação e exclusão entre nós) nem cultura de massa (pela imagem imperialista subjacente e o fascínio pela homogeneização), e engajar radicalmente a cópia latino-americana numa leitura ativa das duas tradi-ções da modernidade, seja a modernidade francesa ou norte-americana, multiplicando, desse modo, os paradoxos de Antoine Compagnon, e fazer emergir o Brasil como uma utopia diferencial, como disse Silviano, uma utopia que se dá aqui e agora: nem a utopia nitidamente marxista, — em seu viés stalinista25, nem a utopia tal qual definida

24 A vocação norte-americana pelo domínio da natureza encontra sua melhor expressão num texto de Octavio Paz intitulado Whitman, poeta da América, ou ainda na postura indecorosa dos EUA na Eco 92, no Rio de Janeiro, diante da discussão e assinatura do tratado sobre biodiversidade.

25 Grifos meus.

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pelo modelo da Revolução francesa — para Oswald, a utopia é caraíba26.

A encenação ativa das tradições recalcadas ou, em outros termos, a vanguarda diferencial pensada por Oswald — alternativa conceitual que nos leva a relativizar o mal estar de Silviano Santiago no final de sua conferência sobre A permanência do discurso da tradição no modernismo, ao considerar que a substituição da ruptura por um enfoque pelo viés da tradição muitas vezes pode “beirar” o neo-conservadorismo, é uma encenação que ao mesmo tempo libera as vanguardas latino-americanas dos clichês críticos e historiográficos e articula a tecno-logia como possibilidade de exposição da miséria a que foi relegada a periferia do mundo, ou mais do que isso: contra a tecnologia do tempo erigida pela metafísica do capital, diríamos com Jean-Francois Lyotard em A vanguarda e o sublime27, a vanguarda em Oswald é um acontecimento, é a possibilidade sempre da pergunta o que ocorrerá? Posto que a tarefa vanguardista continua a ser a de desfazer a presunção

26 Silviano Santiago, op., cit., p. 107.27 Jean-François Lyotard, O sublime e a vanguarda. In: O

inumano: considerações sobre o tempo.

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do espírito em relação ao tempo28. Nesse sentido, a imagem do bárbaro tecnizado, por conter em si natureza e técnica, engaja a subjetividade numa crítica ativa tanto das sociedades disciplinares quanto prenuncia uma crítica às sociedades de controle29.

Desde o Manifesto de Poesia Pau-Brasil, Oswald vem criticando o determinismo do século XIX e sua visão de toupeira sobre a natureza “o trabalho contra o detalhe naturalista — pela síntese; contra a morbidez romântica — pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”30.

Se a morbidez romântica dizia de uma sub-jetividade falsa por querer exteriorizar um interior de acordo com as regras de uma metafísica clássica e se o detalhe naturalista, ao conjugar ciência e técnica, diz de uma arrogância teórica que julga a paixão pelas fórmulas matemáticas ou funda

28 Lyotard, op. cit., p. 111.29 Sobre a noção de controle social e de pensamento, ver

DELEUZE, Gilles. Sobre as sociedades de controle. In: Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992..

30 Oswald de Andrade. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. In: A utopia antropofágica, p. 43.

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para si o direito de interpretar positiva e objetiva-mente as nuanças da subjetividade humana — o que apenas indica que a passagem da morbidez romântica para o detalhe naturalista é o reflexo de uma continuidade da metafísica filosófica para uma ciência metafísica, a invenção e a surpresa dizem de um agenciamento daquilo que ficou recalcado e de uma nova visibilidade ativa: a poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

Contra a ciência técnica e sua vontade de controle das subjetividades, temos a inocência jogadora que desfaz as regras de dominação em função da invenção e da surpresa. Contra as so-ciedades disciplinares e suas regras de conduta moral (a igreja, a escola, o estado, o parnasianis-mo), temos um agenciamento dos signos de uma reversão radical.

Se o Manifesto da Poesia Pau-Brasil implica um agenciamento de forças instintivas e matriciais contra a apropriação da natureza pelo tecnicismo naturalista em suas conexões reativas com as so-ciedades disciplinares, o Manifesto Antropófago e escritos filosóficos posteriores levam mais além esse agenciamento contra as sociedades de controle que

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passam a lançar seus tentáculos a partir das guerras mundiais.

E aqui caberia um diálogo com Jürgen Habermas em Ciência e técnica como “ideologia”31. Seguindo uma tradição sociológica que articula Max Weber, Marx, Parsons, Durkheim e outros, Habermas procura, no ensaio acima referido, res-ponder a uma problemática articulada por Herbert Marcuse em torno da questão da tecnologia como dominação.

Para Marcuse, no entender de Habermas, Max Weber não interpretou adequadamente a no-ção de “forças produtivas” e “relações de produção”, concebidas por Marx, de modo que fosse possível pensar a ciência e a tecnologia contemporâneas como uma forma de dominação contra a qual se haveria de engendrar outras formas tecnológicas contradominantes.

Discordando tanto da leitura de Max Weber, realizada por Marcuse, quanto das categorias de Max Weber, que não pode entender a racionalida-de instrumental e tecnológica pelo prisma da ação

31 Jürgen Habermas. Técnica e ciência como “ideologia”.

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comunicativa, Habermas, após situar o problema da técnica nas sociedades tradicionais, de destacar ainda a disjunção da ciência e técnica nas sociedades burguesas que perduraram até meados do século XIX e de enfatizar a inseparabilidade de ciência e técnica nas sociedades “tardo-capitalistas” que emergem no final do século XIX e se complexificam a partir do pós-guerra, vai dizer da insuficiência da interpretação do capitalismo contemporâneo pelo prisma da economia política, esvaziando, portanto, o conceito de luta de classes, posto que o próprio Estado, diferentemente das suas funções prescritas pelas interpretações do século XIX, move-se, agora, numa vontade de determinar uma “política das compensações”, o que acaba por tornar obsoleta, entre outras coisas, toda a vontade de politização das massas, controladas que estão por regras sociais, cuja tônica dominante é a cientificação da técnica.

Dito isto e retomando os termos do diálogo proposto, poderíamos intuir que se a cientificação da técnica, enquanto força reativa, não detém a última palavra sobre o controle das consciências e da subjetividade, senão seria destituída de sentido toda a cartografia realizada por Habermas, então

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a imagem de bárbaro tecnizado pode se constituir como uma força de criação, uma força ativa que, se não implica, como queria Marcuse, numa in-versão do aparato tecnológico, é violência crítica32 suficiente para quebrar modelos dominantes e abrir outras possibilidades semióticas: implicando, desse modo, outros investimentos de desejo, outros mo-dos diferenciais de pensar, outras práxis.

Daí a performance oswaldiana, de que falá-vamos acima, implicar também um deslocamento da noção de individualismo burguês que atravessa a postura de Habermas em sua interpretação da técnica. A imagem de bárbaro tecnizado implica o quanto a técnica pode ser devorada pela natureza e ambas se modificarem mutuamente, ou pensada de outro modo: o bárbaro ao devorar a técnica se modifica e modifica a técnica.

O indivíduo, a tribo, a cultura não serão mais as mesmas com a proliferação da técnica, do mesmo modo que a técnica será modificada infinita e diferencialmente pela ação do indivíduo, a tribo e

32 A noção de violência antropofágica como um valor crítico cultural é desenvolvida no tópico anterior: Quem é que é a violência antropofágica?

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a cultura. Além disso, leituras como a de Habermas esquecem que as tecnologias da inteligência nas sociedades avançadas33, no limite, coincidem com as “tecnologias ritualísticas” das sociedades ditas pri-mitivas34. Ou seja: o primado da técnica no mundo civilizado ou nas sociedades contemporâneas encon-tra o seu crivo no manancial de natureza que habita o homem: o ritual simbólico, o poder diferencial do corpo, as formas da intuição, as forças instintivas, o pensamento selvagem, as performances, a circu-laridade do tempo, todos, para além do recalque e do apagamento técnico-civilizatório, têm seu ponto de cruzamento com o hipertexto35 que configura as formas da inteligência nas sociedades avançadas.

Na teatralidade do pensamento oswaldiano, então, o bárbaro tecnizado implica um desloca-mento da noção de indivíduo sociológico pensado pelo iluminismo a que se filia grande parte do pensamento ocidental contemporâneo36 e se co-

33 Sobre essa questão ler Pierre Lévy. As tecnologias da inteli-gência: o futuro do pensamento na era da informática.

34 Pierre Lévy. Os três tempos do espírito: a oralidade primá-ria, a escrita e a informática. In: op. cit., 75-86.

35 Idem36 Cf. HALL, Stuart. Identidade Cultural. São Paulo: Funda-

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necta com uma noção paradoxal, mais ou menos na linha daquilo que foi visibilizado por Gilles Deleuze e Guattari: nem é cabeça primitiva, nem é rostidade cristã: mas a emergência de uma cabeça pesquisadora37.

Se o bárbaro tecnizado, nem é cabeça primi-tiva, nem rostidade cristã, mas uma cabeça pesqui-sadora, então, o seu percurso pode ser demarcado somente a partir de situações performáticas: desde as cenas de infância e adolescência erigidas pela biografia, passando por cenas históricas como a da Semana de Arte Moderna, às imagens de efeito de sua atividade político-partidária, o “palhaço da burguesia”, o “casaca de ferro na Revolução Proletária”, indo culminar com a imagem poética do homem cordial38 que colhe na obra de arte sua referência de mundo contra as formas endurecidas

ção Memorial da América Latina/SEC, 1997.37 Gilles Deleuze & Félix Guattari. Ano zero: rostidade. In

Mil Platôs. Através desse conceito, podemos substituir a noção de indivíduo por agenciamento coletivo de enuncia-ção, também desenvolvido em outro livro de Félix Guattari intitulado Cartografias do desejo.

38 ANDRADE, Oswald de. In: Utopia antropofágica. São Paulo: Globo/SEC-SP, 1990.

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que instituem a subjetividade num lugar extrema-mente vulnerável à ação reativa de uma sociedade tecnológica e violenta.

A cabeça pesquisadora, flagrada na imagem do bárbaro tecnizado, é tanto uma atividade crí-tica contra as formas legitimadas de produção da subjetividade quanto uma cena paradigmática: é somente através do ócio, próprio das sociedades contra o Estado, que é possível criar as condições de possibilidade de se negociar o negócio, próprio das sociedades patriarcais e capitalistas.

Os dados biográficos inscritos na performan-ce são multiplicados pela obra ficcional que, por conter em si a encenação do limite, muitas vezes faz do romance um quase-poema que por sua vez é um quase-romance ou elos lírico-trágicos de histórias de vida.

Em Memórias sentimentais de João Mira-mar39, a memória é a do futuro, escrita através das imagens de cinema que perfuram a tela do romance: o drama de um empresário que se move na vontade de tomar o cinema como uma forma

39 ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo/SEC-SP, 1990.

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de representação privilegiada (em sua linguagem a máxima devoração: teatro, dança, música, filosofia, fotografia, literatura), mas que se esbarra em formas de legitimação cultural que desde sempre encerram em si um impasse intransponível: a legitimação da literatura num país que mais investe na produção de um analfabetismo sistemático.

A partir de passagens como Fragmento 2: Éden

A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história.

Apenas nas noites dos verões dos serões de grilos armavam campo aviatório com berros do invencível São Bento as baratas torvas da sala de jantar40.

Fragmento 99: Laboratório

Secadores cilindravam primeiras provas em desenvoltas fitas quilometrais.

Escuros salões conduziam por mata-

40 Idem, p. 45.

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burros unidos e sorrateiros faróis re -ve ladores.

Tanques fixavam secretas maravilhas de luz para matinées e soirées de écrans41.

Fragmento 147: O antípoda

“Sr. Dr. Joãozinho

Nós aqui estamos satisfeito por saber que vão todos bem nós aqui va-mos indo Regular o Dito da Belmira está muito crescido e experto, moram agora na cedade. Nós estamos só aqui e eu vou moral na Estação. Comprei um lote de terra de Sociedade e vou fazer uma casa para moral. Desponha do

Amigo que lhe estima Minão da Silva.”42

podemos dizer que a tecnologia que atravessa o romance, se por um lado rompe com as formas instituídas de se fazer literatura num país sem tra-dição literária ou, como diria Antonio Cândido, uma literatura que é um galho de outra de quinta

41 Idem, p. 79.42 Idem, p. 98.

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categoria43, por outro, agencia uma fala recalcada que tanto pode ser a do cinema quanto àquela que se exprime pelo pensamento selvagem.

Desse modo, o livro passa a ser a cidade de São Paulo, escrita com outros signos mais acessí-veis àqueles para quem o livro, na sua identidade metafísica e ocidental, sempre se constituiu num objeto capturado: retirado da linha do desejo. Miramar é então metáfora de um laboratório das sensibilidades ou algo mais radical: metáfora de um movimento no pensamento para que outra percepção possa ser pensada e praticada sem o nível de exclusão que a literatura em suas conexões com o reativo aparato político das formas de poder jamais deixou de produzir no Brasil e entre os povos situados no Anel Equatorial.

Em Oswald, o feeling tecnicus faz com que o romance deixe de integrar uma série ou de pertencer a um compartimento genérico, à medida que dialoga com o poema e este, por seu turno, com os signos da cidade, ou vice-versa, formando uma estrutura de anel de moebius, em que tudo se interpenetra, permi-tindo ver outras estruturas seriadas e seriáveis.

43 Antonio Cândido. Formação da literatura brasileira, v.1.

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A estrutura poética do romance Miramar se cruza com a narratividade descentrada da poesia Pau-Brasil, cujo efeito de cruzamento põe desde sempre em crise o cânone do modernismo. Se a tônica da literatura do modernismo brasileiro é a conquista da “língua literária” em prol da “consciência nacional”44, a vanguarda diferencial em Oswald pode ainda dizer: “não é bem isso”. Na linha dessa dúvida potencial e pendendo mais para a leitura de Silviano Santiago em O Elogio da Tolerância racial combinado com A permanência do discurso da tradição no modernismo do que para a leitura de Haroldo de Campos em Uma poética da radicalidade45, por ainda se mover numa dialética da tradição da ruptura, diríamos que, em vez da acomodação vanguardista em torno da “conquista da língua literária”, tanto a sua prosa quanto a poesia rasura essa mesma “língua literária” com a inscrição de outras linguagens, o movimento de câmera do cinema, o improviso do jazz, as linhas

44 Nelson Werneck Sodré. História da literatura brasileira e seus fundamentos econômicos.

45 Haroldo de Campos. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 5. ed. São Paulo: Globo/SEC-SP, 1991.

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da pintura cubista, a vontade de instalação dadá, do mesmo modo que faz a “consciência do nacio-nal” passar pelo crivo das tensões entre o local e o internacional46.

Esse empreendimento só é possível porque há uma consciência performática e um agenciamento de dados tecnológicos que retiram da tecnologia seu aparato instrumental, fazendo-a mover numa outra direção: em vez de estar incorporada à ideia de progresso que constitui o pensamento messiânico, é mais uma dobra que implica tanto uma afirma-ção do ócio nas malhas do negócio quanto uma emergência de condições para a efetivação da ideia de laboratório onde o internacional será triturado pelo local, a bem de uma multiplicidade de imagens do Brasil. A tecnologia então estaria incorporada, nessa reversão oswaldiana, aos olhos livres que re-elaborariam os signos de uma cultura messiânica cruzando-os com signos de culturas diferenciais.

46 O discurso acerca da nação em Oswald, ao produzir uma imagem de minorias tais como os negros, índios, mulheres, já como um ruído da noção de classe ou de luta de classes, pode ser tomado como o primeiro intelectual brasileiro que atenta para uma oposição entre local e internacional.

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A “fé panteísta da raça” seria o motor de re-invenção do conceito de nação. O sol, a lua, as estre-las, os rios, o mar, a natureza, presentes no discurso religioso do índio e do negro, vêm reorientando a sensibilidade para um tratamento mais sofisticado ao planeta terra, além de colocar desde sempre em questão a forma religiosa dominante no Ocidente.

Os barbarismos linguísticos distribuídos no cotidiano e nas entrelinhas dos discursos jurídico, religioso e científico, os modos de pensamento selvagem suspendendo sempre a fixação de um logocentrismo entre nós, e a fé diferencial organi-zada nesse laboratório de culturas distintas, trans-bordam, contaminam, excedem na alegria dos que não sabem e descobrem, na inocência criadora, nas formas da ingenuidade, nos erros milionários que contribuem para fazer da nação uma comunidade imaginada, da etnicidade uma ficção, do consumo a possibilidade de ser cidadão, e do sinal de me-nos a única possibilidade ser mais: potência que escapa sempre as formas de dominar, prescrever, classificar.

Por escapar às formas teleológicas do ociden-te, a fé panteísta da raça, por estar articulada com

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outras forças, reorganiza a noção de tempo e de memória textual e segue, na fulguração oswaldiana, uma regra simples: Apenas práticos e experimentais. Sem reminiscências livrescas47.

Ainda que possamos refutar o sonho oswal-diano ou condená-lo como um disparate, a partir do argumento sociológico e histórico de que, em seu tempo, o Brasil não dispunha das condições tecnológicas estruturantes para a emergência do bárbaro tecnizado — a exemplo da pesquisa de Renato Ortiz em A moderna tradição brasileira48, ao situar a emergência da tecnologia entre nós somente em fins dos anos 50, quando Oswald, aliás, já estava morto, nenhuma cartografia da sensibilidade brasileira pode deixar de mencionar o crivo dos “olhos livres” por que passou a civiliza-ção da técnica. Crivo sem o qual, talvez, nenhuma “desleitura” do Brasil seria possível.

O homem sem profissão, sob as ordens da mamãe, tanto pode ser um signo que põe em ques-tão a ordem do trabalho nas sociedades capitalistas

47 Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau-Brasil. 48 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 5. ed. São

Paulo: Brasiliense, 1994.

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gerenciadas pelo Estado técnico (responsável direto pelas condições de exploração e pela criação dessa legião de miseráveis espalhados pelo mundo), quanto pode dizer da atividade oswaldiana em busca de uma representação diferencial do ócio no limiar do retorno em diferença do Matriacado de Pindorama. Pelo questionamento do trabalho, mobiliza-se a tecnologia em favor do ócio, e pela apologia do ócio, agencia-se todo um aparato esté-tico para uma restauração da cidade subjetiva49.

A máquina tecnológica instrumental de tanto investir numa captura do desejo de vida, de sociabilidade, de afirmação de agoridades, acaba por engendrar cabeças pesquisadoras nos lugares mais insuspeitados; e aquilo que seria reativo na tecnologia passa a ser a condição de possibilidade de emergência dos desejos: devir cordial, devir ócio, devir tribal, devir idade de ouro da idade do ouro.

Os fragmentos de vida dispersos na biografia incompleta implicam fulgurações entre a atividade estética e a teoria política em torno da tecnologia: a escritura de vida pondo em questão uma escrita de

49 GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. Rio de Janeiro. Vozes, 1999.

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dominação há muito engendrada com o advento da técnica.

Os signos de uma cultura ativa e diferencial articulados por Oswald permitem encarar a cultura de um ponto de vista histórico, fazê-la passar por um crivo pré-histórico50, para que sejam possíveis outras cartografias, outras racionalidades, outras tecnologias do pensamento: eis a vanguarda em Oswald como proliferação de outras memórias. E que nada tem de novo — posto que os nossos índios já experimentassem isso há milênios, mas ao mesmo tempo é algo que ainda precisa ser ex-perimentado pelas novas tribos que retornam e se proliferam pelo mundo a fora.

50 Gilles Deleuze. A cultura encarada do ponto de vista pré-histórico, pós-histórico e histórico. DELEUZE, Gilles. In: Nietzsche e a filosofia. Trad. António M. Magalhães. Porto-Portugal: Rés-Editora Ltda., s/d.

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Tecnologias do signo e devir revolucionário nas pessoas

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Modernizar o passado é uma evolução musicalCadê as notas que estavam aqui, não preciso delas!Basta deixar tudo soando bem aos ouvidosO medo dá origem ao malO homem coletivo sente a necessidade de lutarO orgulho, a arrogância, a glóriaEnchem a imaginação de domínioSão demônios os que destroem o poder bravio da huma-

nidadeViva Zapata! Viva Sandino! Antônio ConselheiroTodos os Panteras NegrasLampião sua imagem e semelhançaEu tenho certeza, eles também cantaram um dia.

Chico Science, Monólogo ao pé do ouvido

Não é a palavra mágica que sustenta no ser humano a sua dimensão plástica e cósmica, mas a capacidade de indivíduos, tribos, comunidades de esvaziá-la de sua fortuna metafísica e transcenden-

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tal1 e submetendo-a, portanto, ao seu contexto de luta e prática discursiva, sempre implicados a um devir socialista e libertário.

As oficinas abaixo — como exercícico de desmontagens da palavra mágica, antes de partilhar dessa vontade de expressão cósmica e transcen-dental, que recobre a humanidade de misérias e produz os farrapos humanos, convidam a todos/as a reinventarem a sua condição de existência a partir de um radical materialismo cultural2, para quem a maior obra de arte será vida pós-abolição da luta de classes inserida num contexto de distribuição equitativa dessa riqueza produzida pela natureza e pela acumulação da força de trabalho.

Oficina 1:

Todo sujeito acontece na linguagem e com a linguagem. Acontecer na linguagem, enquanto

1 Confrontar os livros Posições, de Jacques Derrida, com Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure.

2 Para uma introdução ao materialismo cultural, cf. CEVAS-CO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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sujeito, é se dar conta de que consumimos signos enquanto comemos (produtos da culinária afro-descendente a exemplo da série acarajé, abará, pimenta, poderiam dialética e virtualmente se opor à série mac’donalds numa escala e multiplicidade planetária), enquanto ouvimos (música tonal para contemplar as alturas não é a mesma coisa da ato-nal para tocar a terra e sentir seu próprio peso), olhamos (o fetichismo burguês formata a realidade de um jeito, a possibilidade libertária, fundada no valor de uso e na socialização da riqueza, implica objetividades novas e outros mundos inaugurais) cheiramos (em vez de crack e cocaína, frutas cain-do do pé e nas lembranças luminosas) e tocamos às coisas. Os signos que consumimos podem nos consumir ou serem re-elaborados e constituírem a performance de cada um enquanto criadores e/ou reprodutores de realidades.

A palavra não nasce grudada na coisa que representa, uma coisa representada pode, além da palavra, ser recoberta de outros signos, embora haja sempre uma comunidade semântica que encena um imperativo da fala e impõe uma transcendência do significado, uma multiplicidade de agências (a

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escola, a igreja, o estado, o partido, o dicionário, etc.,) que elege e dissemina sujeitos de enunciação (pastores, políticos, professores, dicionaristas, etc.,) e uma lógica que impõe um modo de pensar e que pode cercear sujeitos consumidores de signos, além de bloquear-lhes sua potência de pensar e de perguntar.

Perguntar sobre quem é que é isso ou aquilo, sob que condições históricas e políticas recebeu tal e qual significado, sob que artimanhas circula numa dada comunidade linguística, qual o ponto de sua implosão3 aberto a sujeitos criadores de re-alidades, é garantir e sustentar um consumo ativo dos signos, e/ou representações, que não paramos de consumir.

Uma miríade de comunas socialistas e libertá-rias, do ponto de vista de um materialismo cultural, pressupõe a existência de uma inteligência estético-política entre associações de homens, mulheres e crianças livres, capazes ao mesmo tempo de esvaziar o sentido de um poder político absoluto e ao mesmo tempo o sentido absoluto de qualquer signo.

3 Cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Ro-berto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1988.

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Oficina 2:

Tomemos a parada Disney como uma feira de signos em movimento e imaginemos, além das crianças enfeitiçadas pelo espetáculo, uma invasão de outras crianças que implodissem simbolicamen-te seus carros alegóricos. Mamulengos e bonecos de pano ridicularizando o sorriso do capital embaixo das perninhas levantadas da pequena princesa ou a serialização de pequenos monstrengos diante do espelho da branca de neve. Ou ainda: o der-ramamento de baldes de tinta vermelha ou sacos de q suco de groselha simulando as ondas do mar sobre o qual trafegaria o barco do Peter Pan e suas aventuras capitalistas pelo mundo.

Já que uma meta-Parada Disney (crianças produzindo oficinas desconstrutivas durante o cor-tejo) ou uma metanovela das oito (cenas desmon-tando truques melodramáticos) não costumam fazer parte dos livros didáticos que são impostos às escolas de formação básica brasileiras, por que não inventarmos outra pedagogia do lúdico (nós críticos culturais, artistas, professores, produtores, agitadores e consumidores de cultura massiva e

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hegemônica) começando por uma arqueologia dos videogames? Imaginem uma festa na escola em que estudantes, em oficinas preparatórias, construíssem a indumentária de seus personagens prediletos e os encenassem numa guerra de símbolos.

Oficina 3:

A constituição de um coletivo não pode pres-cindir de um devir coletivo de cada indivíduo nem de um devir indivíduo desse mesmo coletivo. O devir coletivo de cada indivíduo significa deixar-se marcar, consumir representações como formas de valor e de perspectivas inaugurais e práticas continuadas. O devir indivíduo do coletivo significa a constituição de um corpo, uma corporação, com vontades alinhadas por princípios e traduzidas por uma sintaxe. O pro-blemático na constituição desses devires é: destruir o indivíduo em nome do coletivo e destruir o coletivo como imposição de um indivíduo.

Há duas noções de coletivo e de indivíduo que precisam aqui ser esconjuradas para que a ciência como ação direta, e disponível a qualquer grupelho, possa ser de novo reencenada e praticada.

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A primeira noção de indivíduo destruída pelo coletivo deriva da prática nazifascista na po-lítica e disseminada por segmentos artísticos e cul-turais (a Parada Disney, por exemplo). Sua lógica de destruição implica em agir em nome de deus, da família, da pátria e da propriedade, ou ainda, em nome da raça pura, para, em primeiro lugar, impedir o indivíduo do acesso a uma tecnologia do signo (quem inventou deus?, como sobreviver sem o gregarismo da família, como fazer da língua uma pátria dos despejados cultural, territorial e ontologicamente?, quem estabeleceu o cercado, criou as leis que o legitimaram e o projetaram para além dos tempos, constituindo, assim, uma meta-física da propriedade privada?) em segundo lugar, impedi-lo do acesso à mobilização de um coletivo que multiplique as formas de deus, de família como princípio de uma estética da existência. Mátrias no lugar de pátrias. O sentido sem apriori e como acontecimento em movimento.

A segunda noção de indivíduo destruída pelo coletivo deriva da prática stalinista na política e disseminada por segmentos artísticos culturais. Sua lógica de destruição implica em agir em nome

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do partido, comunista, evocando seus fundadores, mas traindo e falsificando seus princípios. Um exemplo histórico: a destruição física de dezenas de milhares de bolcheviques revolucionários ou, de forma mais branda, a imposição de uma autocrítica como forma de humilhação pública e de destruição de suas forças de subjetivação. Condição na qual qualquer revolucionário, destituído de sua potência de devir coletivo, ou se suicidaria ou se tornaria um farrapo humano ante o grande czar.

A prática stalinista disseminada por segmen-tos artísticos culturais já não se configura mais em impor o chamado realismo socialista aos artistas4 e suas obras, proibindo-lhes a experimentação e impondo-lhes a propaganda partidária como valor estético e universal da classe trabalhadora (artistas e suas obras tiveram energia semiótica suficiente para não sucumbirem a tal barbárie), mas em separar a cultura da política como se formas de fazer e pra-ticar política (mesmo no estado e entre partidos e sindicatos) não fosse cultura, não dependesse de

4 Para uma reversão dessa noção de realismo socialista, ler Fredric Jameson, O inconsciente político, e Leon Trotski, Literatura e revolução.

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homens, mulheres, que nomeiam situações, pro-duzem representações, fundam lógicas de governar e controlar, e estão, por sua condição histórica, completamente vulneráveis àqueles que detêm a tecnologia dos signos.

Oficina 4:

Tomando por ponto de partida a atividade coletiva e crítica desenvolvida na disciplina Meto-dologia da Pesquisa em Crítica Cultural e no Curso de Formação de gestores, produtores, artistas e agitadores culturais, ambas desenvolvidas no Mes-trado em Crítica Cultural do DEDC II/UNEB, a primeira como disciplina obrigatória, o segundo, como um curso de extensão, fizemos da arte de pesquisar uma espécie de técnica de arrombamento e ocupação de espaços epistemológicos:

Princípio nº 1:

Se a riqueza material existente na face da terra deriva da natureza (água, ar, minérios, luz, etc.,) e da força de trabalho de bilhões de trabalhadores, então

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é preciso destruir urgentemente a lógica capitalista que: a) valoriza apenas o produto do trabalho e colo-ca toda a riqueza na mão de poucos parasitas; b) faz do fetiche e do simulacro a realidade nossa de cada dia, impedindo abstrações e objetivações de outras formas de realidade fundadas na est-ética do trabalho e na vida socialista; c) coloca no poder representan-tes da classe média para destruírem as formas de organização dos trabalhadores e/ou encenarem uma organização mecanicista e burocrática do socialismo condenada ao idealismo e à pura abstração.

Princípio nº 2:

A crítica cultural só faz sentido se investe contra essa lógica capitalista, implode permanen-temente essa noção de cultura que se quer hege-mônica, e emerge em cada trabalhador, em cada sujeito anônimo, em cada tribo, em cada coletivo, em cada comunidade, em cada nação, como caixa de ferramentas que permita a cada um, ou em co-letividade, a redefinição de uma cultura alternativa e como máquina de guerra.

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Princípio nº 3:

Cultura como máquina de guerra implica uma experiência estética e vitalista: se forças da barbárie tentam separar a vida daquilo que a vida pode, as forças plásticas e afirmativas, por outro lado, permitem à vida resistir, criar, no limite do que pode, inclusive para transformar essas forças da barbárie em forças afirmativas.

Princípio nº 4:

Toda crítica cultural deve também partir de uma cultura da linguagem: quem nomeou isso e/ou aquilo e sob que condições? Como esvaziar os significados transcendentais e conferir sentido ao mundo de acordo com a nossa potência de renomeá-lo, com a nossa potência de poetizá-lo? O peso do mundo não deve ficar nem com os camelos, pois, bem pensado, esse peso é só uma palavra e seus fantasmas.

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Princípio nº 5:

Se o ato de conhecer envolve obstáculos que dizem da predisposição do espírito de quem quer conhecer algo e, ao mesmo tempo, das conquistas técnicas, terminológicas, metodológicas, teóricas de um dado campo do conhecimento, então a crítica cultural deve, antes de tudo, estimular seus pesquisadores a reverem suas memórias como um arquivo público, a lerem um arquivo público como uma série de poemas, a produzirem conhecimento sempre experimentalmente e na fronteira de todas as disciplinas.

Princípio nº 6:

Se nas frestas e tocas de todos os simulacros e falsificações sobre quem de fato e de direito po-dem usufruir de toda a riqueza material existente, existem um mercado cultural anônimo, uma ética e uma estética socialista surda, mil formas de sintaxes entre os excluídos, formas indiciárias de intercâm-bio e coexistência de todas as temporalidades, e, pipocando em todos os lugares, formas de guerri-

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lhas como em jogos de videogames, então está na hora de começarmos a socializar essas técnicas de arrombamento da lógica cultural do capitalismo tardio, a partir da afirmação de uma política pú-blica cultural heterotópica.

Ou seja: como na comuna de Paris, desar-mar os soldados do prefeito, do governador e do presidente, e armar o povo com muitos livros, bibliotecas comunitárias, cinemas digitais, ilhas de produção caseiras e/ou de fundo de quintal; garantir a eleição, através de amplo debate público, de outros representantes, bem como destituí-los do poder, tão logo pisem na bola e/ou traiam o seu mandato. Os salários, remunerações, dos novos agentes culturais, devem tomar como parâmetro a cultura do dinheiro em movimento na economia solidária e nas cooperativas de consumo e de pro-dução, e termos como único parâmetro de justiça: a apropriação da matéria prima, das máquinas e das fábricas, e distribuí-las a quem de fato produz a riqueza!

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Oficina 5:

Minha história de vida pode ser encenada em quatro atos: rebeldias como depredação do si, reconstituições sintáticas com agenciamento do si, provocações estético-políticas como dramatização de um devir coletivo do indivíduo e de um devir indivíduo do coletivo, multiplicação de agências para uma tecnologia dos signos.

Minha rebeldia parece ter ganhado forma quando meu pai, um gerente de fazendas (eu tinha 6 para 7 anos) me disse na próxima semana você vai pra Vitória da Conquista estudar e não ser mais um desses tabaréus. Minha mãe, que até hoje não sabe ler nem escrever, me ensinou a abecedário de cor e salteado. Ao longo de 7 anos conclui o ginásio, e sempre longe de minha família e a vi-sitando apenas em período de férias, fui monitor do professor de matemática e, além de contar, ler e escrever bem, aprendi a falsificar e a ficcionalizar minha realidade familiar.

Acreditava que com essa semiótica do falso, produziria outra imagem de mim e resolveria a difícil equação, inconsciente, é claro, de que a

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melancolia que tomava o meu corpo e espírito, implicava distanciar-me dos valores de minha famí-lia para não ser mais um dos tabaréus e ao mesmo tempo não me deixar levar pelo fetichismo que minha condição de estudante, entre uma galerinha de classe média formada por futuros latifundiários, fatalmente me lançaria contra mim mesmo e meus valores ainda virtuais e por construir.

Teria sido necessário um quase confronto com a loucura, regada ainda com cannabis sativa, para que aquela semiótica do falso se dobrasse numa linguagem pura e em carne viva: batimen-tos cardíacos, suor frio, medo da morte e perda absoluta do ser.

De fato, é dessa linguagem pura e em carne viva que emerge, num materialismo radical, a possibilidade de se reconstituir uma nova sintaxe e empreender um agenciamento do si. Arqueolo-gia da infância e adolescência cenarizando minha família, seus valores, seus desejos, sua estética de vida empreendida a duras penas em contexto de ditadura militar e sob o peso de quase 500 anos de colonizações de toda ordem e de várias formas. Agenciamento e seleção de cenas afirmativas, li-

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vros, discos. Estudos de gramática e matemática. Revisão autodidática de todas as disciplinas do ensino fundamental e médio. Leitura e interpre-tação de quase todas as mostras de cinema da sala Walter da Silveira/Salvador-BA, entre os anos de 1983 e 1990. Um curso de Letras como se fizesse medicina, enfatizando teoria da literatura e a lei-tura dos clássicos como James Joyce, Dostoievski, Graciliano e Drummond. Uma dissertação (Folhas venenosas do discurso: um diálogo entre Oswald de Andrade e João Ubaldo) e uma tese (Um banquete antropofágico: violência originária e táticas de ne-gociação cultural emergentes no Brasil), a primeira, como oficina do paradoxo; a segunda, como má-quina de desmontagem discursiva.

As provocações estético-políticas como dramatização de um devir coletivo do indivíduo e de um devir indivíduo do coletivo tomaram como alvo: o corpo docente de Letras, sobretudo doutorandos e doutores, e sindicalistas da UNEB5, além do corpo discente dos cursos do Campus

5 A propósito desse debate envolvendo uma gama de profes-sores da UNEB, encontra-se em preparação o livro UNEB em si menor: escritos de agitação política e acadêmica.

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II, em Alagoinhas. Como produzir um saber ao mesmo tempo ciência e ação direta. Nem capital, nem trabalho: que fazer para abolir a luta de classes sem termos que passar de novo pelo stalinismo e seus fantasmas.

A única alternativa possível, entre a ausência quase completa das condições de trabalho e estudo, e o radical incômodo com a prática da banalidade acadêmica para justificar a anulação da energia criativa em Bahia carlista, era fazer da Iniciação Científica um agenciamento coletivo. Com a implantação do Programa de Pós-graduação em Crítica Cultural, derivado de uma imensa história de lutas, criamos uma agência não só para desen-volver uma tecnologia dos signos, mas multiplicá-la como uma condição de luta permanente contra as formas de barbárie.

Em suma, basta interrogar-se qualquer in-di víduo, tribo, comunidade, enquanto “blocos má gicos” da cultura, sobre que marcas no corpo e/ou no espírito elegeria/selecionaria como algo a ser dramatizado, para se ter não apenas o ponto de partida de uma revolução, com seu agenciamento das forças brutas, suas formas de funcionamento,

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seus pontos de ruptura e ressemiotização discur-siva, mas toda uma perspectiva de novas práticas políticas moleculares.

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Epílogo

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Epílogo

Violentar a violência colonizadora que mar ca os corpos de indivíduos, tribos, grupos, culturas, nações, sobretudo aquelas que estão situadas no Anel Equatorial (entre os 60º acima do trópico de câncer, ao norte, e entre os 60º abaixo do trópico de capricórnio, ao sul), ficcionalizar a própria existência como estratégia de sobrevivência ante à barbárie capitalista disseminada nos quatro cantos do mundo e promover uma desmontagem per-manente das formas de representação do ocidente branco, capitalista, logocêntrico, eurocêntrico, falocêntrico e patriarcal, constituem os valores mais ativos e acessíveis da antropofagia oswaldiana como crítica da cultura.

Palavras que nomeiam pessoas, fotos que representam lugares e cenas de vida, instrumentos de trabalho que indicam marcas sobre o corpo do

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mundo e suas transformações na história, engajam toda e qualquer pessoa/tribo/comunidade numa revolução de sua condição cultural se, como caixa de ferramenta, violentarmos os sentidos a priori dos nomes, abrirmos outro espectro de nomeação de novas séries que digam respeito a singularidades de nossas vidas, politizarmos o sentido de reparação quanto à ordem capitalista e nos posicionarmos como novos communards capazes de, através de nossas oficinas de fundo de quintal, prepararmos novos e permanentes antídotos contra a ociden-talização do mundo, seu ressentimento e má consciência.

A rigor, e da perspectiva da antropofagia como teoria e crítica cultural, quaisquer que sejam as formas de representação de uma dada comuni-dade (pintura rupestre, oralidade, instrumentos de trabalho, formas de se pintar, de fazer sexo, de cultuar a natureza e seus deuses, de nomear plantas, ideias e sentimentos), há sempre a possibilidade de uma dobra que torna visíveis formas de exploração e ao mesmo tempo de libertação, formas de ficcio-nalidade e ao mesmo tempo de restabelecimento da ordem objetiva e situacionalizada, formas de

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transcendência e ao mesmo tempo de sua radical imanência: basta disseminar formas de oficina cultural que permitam combinar uma cena de vida como cultura política associada a um grau zero de sua própria nomeação e/ou legislação metafórica.

Assim como a leitura de um poema permite a que um leitor assuma uma posicionalidade como sujeito poético e engendre representações as mais diferenciadas e sempre abertas a outras perspectivas de mundos e suas realidades, o mesmo se pode dizer de uma situação política da perspectiva antropofá-gica: uma assembleia de uma dada tribo, comuna, grupelho que coloque no poder quem quer que seja como seu/sua representante, tal assembleia deve não só conceber as regras do jogo, mas proliferar as formas de sua invenção e reinvenção, de modo que o poder seja sempre um lugar vazio e o poder de criar — democraticamente, sempre um acon-— democraticamente, sempre um acon- democraticamente, sempre um acon-tecimento, nunca um trucidamento.

Nesse sentido, a crítica da cultura deve passar necessariamente pelo esvaziamento do sentido de um poder político absoluto e ao mesmo tempo do sentido absoluto de qualquer signo e sustentar a emergência de um devir coletivo do indivíduo,

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bem como de um devir indivíduo do coletivo — como naquela miríade de associações de homens, mulheres e crianças livres, como condição de uma prática permanente da liberdade de criar e de re-sistir às barbáries.

Os pobres serão a salvação do mundo, diria Jean-Luc Godard. E Oswald completaria: princi-palmente aqueles/as que perambulam sem rumo pelas tocas e trilhas situadas no Anel Equatorial. Restos de gentes, típicas dos “tristes trópicos”, farão dos ossos dos antepassados e das bugigangas eletrônicas os instrumentos para os novos e antigos ritornelos.

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