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Um tratado pela formalização da guerra

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Entrevista cedida pelo sociólogo Luís Mir, estudioso da violência no Brasil, ao jornalista Fábio Caldeira Ferraz, em 2008, e publicada na revista Security.

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E N T R E V I S T AFábio Caldeira Ferraz

Rubens G

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“A nossa guerra

civil é só nossa”

Um tratado pelaformalização daguerra

Um tratado pelaformalização daguerra

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Fazer um check-up da segu-rança pública brasileira e uma

investigação acerca das conse-qüências da violência junto aosistema estatal de saúde. O médi-co, pesquisador e historiador LuísMir persegue essas duas metas aolongo das 960 páginas do seurecém-lançado Guerra Civil – Es-tado e Trauma (Geração Editorial).Os resultados obtidos em seu in-tento diagnosticam a “violênciacrônica” como sintoma de um Paísque não distribui renda e, simul-taneamente, sugerem alguns dosinsumos para um possível remé-dio contra esse mal.

As pistas que o levou à descri-ção desse quadro são realmentecontundentes. Esse paciente cha-mado Brasil detém indicadorestais como 56 mil assassinatos aoano, sendo 80% por arma de fogo;R$ 21 bilhões são gastos anual-mente pela rede pública de saúdeno atendimento às vítimas da vio-lência; 85% dos crimes são contrao patrimônio; e 1,3 milhão de ho-mens prestam serviço de segurançaprivada, contigente aproximada-mente cinco vezes superior ao dasForças Armadas.

Mir ficou à cata dessas pistaspor cinco anos. Valeu-se de cercade mil fontes, entre livros, traba-lhos acadêmicos, matérias e arti-gos publicados em jornais e revis-tas, além de mais de uma centenade sites, para compor suas con-clusões. Pode-se afirmar ainda queessa obra teve mais um filtro quan-do se contempla a trajetória profis-sional do autor: como jornalista,ele foi correspondente nas guerrasda Nicarágua, do Afeganistão (con-tra os russos), Irlanda do Norte, Irã-Iraque, Etiópia e Peru.

Desde a publicação dessa em-preitada, diz ele ter sido procura-do por membros de corporações

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policiais, secretários de segurançae empresários, todos interessadosem algum tipo de contato comsuas opiniões. Mir recebeu Secu-rity em seu estúdio em São Pauloe por mais de duas horas, e comafinco, embasou afirmações polê-micas como “as pessoas estão di-vidindo o bolo a bala” e “o Estadobrasileiro é a força motriz da vio-lência” e ainda “a segurança pri-vada tornou-se quase um suple-mento do Estado”, entre outras.

SEGURANÇA PRIVADA

SECURITY: Ao analisar a ques-tão da violência no Brasil, o senhordedica pouco espaço a um dosdesdobramentos deste tema, que éo mercado de segurança privada.O que houve?

Mir: Não era o enfoque do tra-balho. Segurança pública é segu-rança pública. Segurança privadaé segurança privada.

SECURITY: Mas a segundasó existe a partir das falhas daprimeira.

Mir: Isso. Mas é aí que está oproblema: a segurança privadanão pode substituir a segurançapública. Aquele vigilante priva-do defende uma casa, uma em-presa, um banco, enfim, ele de-fende um patrimônio. Esseprofissional não pode substituiro policial. O policial é um cidadãotreinado, armado, pago e manti-do pelo Estado para defender asociedade. Como ocorreu essedesvirtuamento da segurançapública no Brasil? O Estado bra-sileiro concentra os corpos poli-ciais nas ditas áreas economica-mente privilegiadas, e o restocondena ao deserto. Quando vaiaos bolsões de pobreza, vai emdiligências exterminadoras.

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SECURITY: O fato de o mercadode segurança privada movimentarao ano R$ 8 bilhões e já superar emnúmero o contingente de todas aspolícias do País juntas não seriauma prova de que a populaçãomais abastada também está aban-donada pelo Estado?

Mir: O Estado abandonou asruas, avenidas e escolas para con-centrar renda de forma brutal, afi-nal ele tem compromissos com ogrupo que o controla. Esse valorde R$ 8 bilhões saltará facilmentepara R$ 16 bilhões. A partir do mo-mento que o Estado for servido poressa vigilância privada e se afas-tar dos compromissos democráti-cos e com a população, ele abrecaminho para que esses dois se-tores – segurança pública e pri-vada – se choquem, e é inevitávelque se choquem. Hoje, em con-domínios de alto padrão, ao ocor-rer um assalto, pede-se para nãochamar imediatamente a polícia.Há determinadas áreas social-mente protegidas por vigilânciaprivada em que a polícia não en-tra. A polícia vê hoje com péssi-mos olhos a vigilância privada.Esse setor, na sua visão, estámelhor remunerado e equipado. Oaparato que dispõe, por exemplo,a vigilância bancária é superior aodas polícias Civil e Militar. Ocorre,então, um desvio de função emque a Polícia Militar e a Civil seprivatizam. Elas recebem um di-nheiro da padaria, um outro domercado, etc. Privatiza-se assimsua capacidade de prevenção,coerção e repressão, que é umalegalidade dada pelo Estado. Emmeio à falência e corrupção poli-cial, o que fazem comerciantes,empresários, etc.? Criam suaprópria polícia: a polícia privada.Em um quadro como esse, quemé público não é público e quem é

privado não é privado. Perdemtodos. Nada contra a segurançaprivada. É natural que as pessoasqueiram defender seu patrimônio.

SECURITY: Esse traço de certaforma já está na constituição destemercado durante o período mi-litar, não?

Mir: A segurança privada, con-forme a conhecemos atualmente,surgi no Brasil na década de 70 porconta dos assaltos a bancos porgrupos de extrema esquerda e, apartir daí, evolui para a segurançapatrimonial e pessoal. A segu-rança privada deixou de ser, diga-mos, uma garantia contra o ataquede megaquadrilhas e tornou-sequase um suplemento do Estado.Já há cabines da Guarda Civil Me-tropolitana de São Paulo que estãosendo usadas por seguranças pri-vados. Estão exigindo da segu-rança privada que ela se comportecomo polícia pública.

SECURITY: Historicamente,está na cultura das elites brasilei-ras o uso particular de forças desegurança, basta citar os jagun-ços e milícias do meio rural e ospistoleiros comuns às regiõesNorte e Nordeste. Em que isso serelaciona ao atual uso desta segu-rança privada, que é formalizadae paga impostos?

Mir: A elite brasileira sempre sedefendeu privadamente. A funçãopolicial do Estado foi sempre decunho social: repressão e controledas demandas sociais. Nas fazen-das sempre houve milícias pri-vadas. Com os capitães-do-mato,que eram encarregados de perse-guir escravos fujões, deu-se inícioà formação das forças públicas desegurança. A vigilância pública ea privada sempre se misturaramporque interessa ao Estado. Você

acha que para as empresas inte-ressa manter uma força parapoli-cial particular? Evidentemente,não interessa. Se o empresárioabre mão disso, terá de negociara vigilância de sua empresa com aárea policial, e isso custa.

SECURITY: Levando-se em con-ta a situação do País, qual deve ser oexato papel da segurança privada?

Mir: Fazer a defesa privada depatrimônio privado, desde queisso não a leve a desempenharpapéis que não lhe cabe. Colocarvigilantes armados para fazer aronda nos bairros é substituir asegurança pública. Quem deve fazeressas rondas é a Polícia Militar.

SECURITY: Mas por lei esse tipode serviço não pode ser prestadopor vigilantes armados.

Mir: Mas estão armados. Sabedo que a vigilância privada noBrasil ainda não se deu conta?Está sendo usada pelo Estadopara suprir suas deficiências. Issoé muito caro a essas empresas. Àmedida que ela suplementa asdeficiências do Estado, e chega aocupar o seu lugar, a segurançaprivada se torna proibitiva comer-cialmente. Se pegar hoje o custoda segurança privada empresariale bancária, observa-se que elassão absurdamente caras. O quedeveria ser um serviço passa a serquase um insumo. As empresasfuncionam como se fossem umacasamata, uma fortaleza. Maspara serem assim há um custo. AFipe (Fundação Instituto de Pes-quisas Econômicas) fez um estudoem que aponta o caso de famíliasque gastam 40% de seu ordenadoem segurança. Se somarmos tudoo que as empresas gastam comsegurança privada, chegamos aum percentual de 20% dos seus

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gastos. Muitos empresários meprocuram para saber como reduziros custos com segurança. Semprelhes respondo que isso é umaquestão social. A elite brasileiravive um processo de emburreci-mento e isolamento em relação aoPaís real.

SECURITY: O senhor conse-gue convencê-los com esses argu-mentos?

Mir: Não digo isso para con-vencê-los. No início de uma pales-tra para a diretoria de uma empresa,por exemplo, eu sempre faço umablague: quantos de vocês têmcarro blindado?

DESARMAMENTO

SECURITY: O senhor tem se de-clarado favorável à campanha pelodesarmamento. Por quê?

Mir: Nunca.

SECURITY: Em entrevista re-cente, o senhor disse não concordarcom os termos, mas que a finali-dade da campanha seria legítima.

Mir: Eu só vou falar sobre o Es-tatuto do Desarmamento daqui acinco, dez anos, quando começarema aparecer os primeiros resultados.

SECURITY: O Rio de Janeiro estádesarmando as pessoas seguindo osmoldes da campanha atual desde2001, e não se pode dizer que a se-gurança tenha melhorado.

Mir: Ao contrário, o tráfico dearmas cresceu, e muito. Quemestá sendo desarmado? É quem jáestava desarmado. Embora es-tivessem de posse de uma, não ausavam. Não houve uma únicaarma que estivesse em poder deum criminoso ou de uma quadri-

lha criminosa que tenha sido en-tregue voluntariamente. O Estadofaz uma campanha pelo desarma-mento sem dar uma contrapartida.Não melhoraram o patrulhamentodas fronteiras. Foram negociarcom o Paraguai? Setenta por centodas armas contrabandeadas parao País vêm do Paraguai. Para oBrasil recompensar em alguns mi-lhões o Paraguai, seria muito maisvantajoso do que continuar levan-do a situação como está.

SECURITY: Mas se há umaguerra civil, como o senhor avalia,e se não se pode contar com o Es-tado para garantir direitos e a in-tegridade das pessoas, recorrer àlegítima defesa parece um tantológico, não?

Mir: O princípio da legítima de-fesa é um princípio burro. Mas nãovou negar a existência de algo

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atávico ao ser humano, que se cha-ma instinto de defesa. Ter umaarma em casa é ineficaz, segundoestudos. Noventa e sete por cen-to das pessoas que tentam reagirmorrem porque não conseguemsuperar o fator surpresa. Se nosarmarmos, em breve, vamos re-solver disputas com vizinhos abala, disputas de trânsito, etc. Porconta disso é que existe uma coisachamada monopólio legal da violên-cia. E por isso é que foi atribuídoao Estado o monopólio da violência.

SECURITY: O fato de os crimino-sos saberem que não encontra-rão resistência não servirá comoum estímulo?

Mir: O fato de ter uma arma emsua posse pressupõe que, em casode assalto, está disposto a se de-fender, ou seja, admite matar uma

pessoa. Nesse caso, admite quevive em um país em que a suavida, a de seus filhos e de suafamília não têm garantia da segu-rança pública. A partir do momentoque você está armado, e vai dis-parar contra o bandido, você dá aele o mesmo direito de dispararcontra você. Essas são as regras.A legítima defesa implica sempreem violência, nunca em direito:direito que a polícia funcione, di-reito de viver em um país socialmen-te equilibrado. Inverteram as regras.

SECURITY: Afinal, o senhor éfavorável ou contrário à campanha?

Mir: É por isso que não concor-do com o princípio de ter a arma.Em sociologia há uma tese clássi-ca chamada produção social daviolência. A criminalidade é cria-da pela sociedade. Tanto é que a

elite defende que, quanto maisbandido, mais repressão. E, não,quanto mais bandido, vamos sen-tar à mesa e analisar o que estáacontecendo, vamos negociar. Ascidades brasileiras estão muitofeias. As casas estão cercadas pormuros e grades com pontas delança. Isso não existe em paísesafricanos. Basta analisar os siste-mas de defesa civil das casas bra-sileiras, sinais de um País emguerra. É só você olhar a topogra-fia arquitetônica das cidades bra-sileiras. Cada um com sua trin-cheira particular. Não estamos emum estágio pré-revolucionárioe o Estado brasileiro não tem umoponente à sua altura. A únicacoisa que temos é a falência dosistema de convivência social,que se resolve somente se o Es-tado abrir o cofre.

Historiador no portão de seu estúdio em São Paulo: “cada um com sua trincheira particular”

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SEGURANÇA PÚBLICA

SECURITY: Desde a publicaçãodo livro, o senhor chegou a ser pro-curado por algum representante deórgão público de segurança oumesmo pelo empresariado do setorpara discutir seu teor?

Mir: Quem tem me procuradomuito são pessoas vinculadas aoestudo da segurança. Mas o quemais me chama a atenção são asconsultas pedidas pelas secreta-rias de segurança. O que tem sidocomentado por especialistas acer-ca do meu trabalho é o seu enfo-que. Os estudos de segurançapública no Brasil sempre privile-giam as vítimas ou os autores pri-vados dessa violência. O meu li-vro inverte essa dinâmica: partedo autor principal da violência noBrasil, que é o Estado. Obviamente,que existem os autores privados,que são a macro e a microcrimi-nalidade. Mas é o Estado que temuma política de extermínio, e nãode prevenção à violência. Tem dedissolver a polícia que está aí. Essapolícia não serve para um Estadodemocrático. Tem de montar umnovo corpo policial. Tem de acabarcom a Polícia Militar. Ela não faznada preventivamente. Ele é umagente da lei, e não um agente dalei para alguns casos.

SECURITY: O que essas pessoasacham do que o senhor fala?

Mir: A situação da segurançano corpo da Polícia Civil e Militaré tão desesperada, tão catastróficaque os membros das corporaçõesentendem que seus trabalhos seresumem a “enxugar gelo”. Elessabem que, se não controlarem acorrupção dos corpos policiaisbrasileiros e se não conseguiremimplantar um novo tipo de policia-mento, a guerra civil vai se apro-

fundar e virá mais barbárie. Elessabem que esse modelo não servemais. Esse modelo que aí estásabe-se que não mantém mais umgrau aceitável de violência. Já nãotemos corpos policiais técnicos.Quando se fala em crise de segu-rança e medidas de segurançapública, a exigência é sempre maiscarros e armas. A partir do mo-mento que se aplicar a justiça deforma vertical e universal, até oEstado passará a cumprir a lei.Não temos um estado de justiçano País. No dia em que o Estadocumprir a lei, haverá redistribuiçãode renda. A única coisa que temosé a falência jurídica e social do mo-delo de repressão. Os secretáriosde segurança têm a incômodasensação de que o núcleo do pro-blema está no Estado. Lembradaquela famosa declaração dosecretário de Segurança de SãoPaulo, Saulo de Castro Abreu?

SECURITY: Qual delas?Mir: “A polícia já cumpriu seu

papel. Agora é uma questão so-cial.” Houve antes dessa declara-ção uma brutal repressão. A políciade São Paulo matou industrialmen-te durante três ou quatro anos.

SECURITY: Curiosamente, essemesmo secretário mais tarde voltoua público e continuou a se mostrarbastante truculento e a defender aestratégia de repressão do Estado.

Mir: Existe um clamor da classemédia para isso. As grandes mani-festações pedindo paz são reali-zadas nas zonas ricas. Você já viumanifestação nas favelas?

SECURITY: Até porque mani-festação de favelado não ganhaesse nome.

Mir: Exato. Vão chamar de agi-tação e mandar a polícia para lá.

Eu tenho absoluta certeza de queo secretário de segurança Saulo deCastro Abreu está convencido deque a polícia não pode continuarjogando o papel que joga.

SECURITY: O secretário já lheprocurou?

Mir: Não. Mesmo que tivesseprocurado, não lhe diria. Já osecretário de segurança do Rio deJaneiro, Marcelo Itagiba, que édelegado da Polícia Federal e teveuma formação cultural adequada,sabe que o maior problema de suapolícia está na corrupção. Oitentapor cento das pessoas mortas pelapolícia têm em média três tiros nascostas ou na cabeça, ou seja, exe-cução. Esses dados são do Insti-tuto Médico Legal.

SECURITY: Anthony Garotinho,quando secretário de segurança,lhe procurou?

Mir: Insisto. Não vou dizer. Oque aconteceu em Nova Yorkpara conseguir que os índices decriminalidade caíssem dras-ticamente quando foi implan-tando o plano de Tolerância Ze-ro? A primeira medida tomadafoi demitir 9 mil dos 25 mil poli-ciais da corporação. Um estudofeito – e que, inclusive, tinhamembros da segurança públicado Rio de Janeiro – dá como cer-to que 40% da atividade crimi-nosa do Rio de Janeiro tem a par-ticipação direta ou indireta depoliciais, ou seja, quase cadameio crime no Rio é policial.

GUERRA CIVIL ÉTNICA

SECURITY: Como corresponden-te internacional, o senhor cobriuguerras em diversos países. Ao ba-tizar seu último livro como GuerraCivil – Estado e Trauma, que em sua

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primeira parte disseca a violênciana sociedade brasileira...

Mir: Na verdade, a guerra civildentro da história brasileira é umacoisa que sempre vem esbarran-do na história da violência, namatriz do Estado brasileiro.

SECURITY: Em que essas guer-ras se aproximam?

Mir: No caso brasileiro, e há al-guma similaridade histórica comoutros países, o Estado é a matrizda violência. Estabeleceu-se nestePaís um modelo social inviável. Háum dado claro em relação a isso: oBrasil foi o último a abolir a escra-vatura no mundo. E, para manteraquele modelo, só com uma vio-lência permanente e crônica.Quem mantinha essa violência?Era o Estado. O conflito brasileirose aproxima das outras guerras namedida em que morre muitagente; é um dos mais sangrentosdo mundo. A guerra civil brasilei-ra é uma guerra social, é uma guer-ra de guetos, guetos étnicos depopulações discriminadas e mar-ginalizadas. O que quero dizer éque a macrocriminalidade ou amicrocriminalidade também sãoresponsáveis pelos índices decriminalidade, mas essa violênciacomeça no Estado brasileiro. Eleadmite um certo grau de violên-cia, um certo grau de morticíniocontra a população porque essaviolência serve para a manutençãode um certo status quo. Não temoscondições de integrar os 60 milhõesde afro-brasileiros ao sistemaprodutivo e educacional. Para isso,teríamos de redistribuir a renda.Qual o país no mundo hoje quetem 56 mil mortos por assassinatoao ano e, desses homicídios, 80%são por arma de fogo...

SECURITY: E não há uma guer-

ra declarada oficialmente.Mir: O Brasil é o campeão mun-

dial de mortes por arma de fogo.Não há um conceito ortodoxo deguerra civil. Pode ser um bandocontra outro bando ou uma etniacontra outra etnia que disputamterritório, água, riquezas, controledo Estado ou poder político. Masno Brasil é diferente. A nossa guer-ra civil é só nossa. O Brasil vemde três séculos de escravaturaindígena, depois ingressa na es-cravatura africana. Chega a faseindustrial, por volta de 1850, eleainda era um País agrícola, aindacom a escravatura. Mais tarde aboleisso. E entra no século 20, aindaagrícola, industrializando-se somen-te na segunda metade do séculopassado. Nessa transição o Paísconcentrou renda, ao invés de ha-ver um grande modelo de desen-volvimento econômico. A riquezado País está em 25 municípios. Orestante das cidades é um deser-to social. O Estado brasileiro estáentre os dez mais ricos – e aqui merefiro ao Estado, e não ao governobrasileiro. Ele é um Estado tão coesoe tão monolítico em seus interes-ses, que independe de governo.

SECURITY: Isso implicaria emdizer que se trata, então, de umaguerra de classes?

Mir: Pior é que não é. Trata-sede uma guerra étnica. Temosneste País o que se chama de cen-tro do Estado e centro do País, emque uma minoria, que não passade 20% da população, detém o con-trole do governo, das terras fér-teis, enfim, das riquezas nacionais.Os 80% restantes ficaram de fora.Só que, na década de 90, houveuma modernização econômicabrutal e selvagem. Essa moderni-zação, mesmo tendo um preçoalto, foi levada a cabo. E a desi-

gualdade brasileira se acentuoudemasiadamente, embora já vies-se crescendo desde os anos 70 e80. As pessoas querem dividir obolo, e vão dividi-lo a bala. Temoso homicídio como padrão nacionalde disputa.

SECURITY: Nesse caso ficadifícil entender a natureza desseconflito como étnica. Afinal, antesde ser negro, por exemplo, o sujei-to é pobre.

Mir: Mais eu lhe pergunto oseguinte: ele é pobre porque énegro ou é negro porque é pobre?Quando entra o processo de abo-lição da escratura, 50 anos antesele já estava planejado. O projetoera trazer grandes levas migrató-rias de população branca oriundada Europa para desafricanizar oPaís. Em 1888, já tinham entrado8 milhões de imigrantes europeus.Os negros brasileiros ao serem li-bertados não recebem créditos,não recebem terras, ou seja, nãorecebem condições de emanci-pação social, ao contrário dos imi-grantes europeus, que receberamcrédito subsidiado e terras férteis.Eles ocuparam o Sul do País. Nosistema penitenciário brasileiro,85% da população é negra.

SECURITY: Na estratégia de se-gurança pública atual, o senhorenxerga algum ponto positivo?

Mir: (Silêncio, seguido de longosuspiro) Enquanto não tivermosuma nova polícia, com um perfildemocrático, enquanto não tiveruma mesa de negociação no Paíspara colocar fim em questões se-culares, como fim do apartheidsocial e étnico. Se a gente não seredefinir e não se refundar comonação... A grande discussão hojeé quem vai se sentar à mesa equem vai abrir mão do quê.

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BID - Banco Interamericano de DesenvolvimentoSNSP - Secretaria Nacional de Segurança PúblicaFenavist - Federação Nacional de Vigilância e Transporte de ValoresUnesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a CulturaIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísticaProjeto Trauma é uma iniciativa de médicos e pesquisadores ligados à área de atendimento em emergências* Valores obtidos junto às Secretarias de Segurança Pública dos Estados (no RJ os valores foram cedidos pela Secretaria de Planejamento)

Números gerados pela violênciaFonte

Gasto em segurança pública

Gasto da América Latina relacionados à violência R$ 168 bilhões BID 1997Orçamento das secretarias estaduais de segurança pública de SP, RJ e MG R$ 13,6 bilhões Secretarias*Orçamento do Fundo Nacional de Segurança Pública R$ 170 milhões SNSPOrçamento do Fundo Nacional Penitenciário R$ 200 milhões SNSP

Mercado de Segurança Privada

Faturamento do mercado de segurança privada na América Latina em 2002 US$ 4,3 bilhões Fenavist 2004Faturamento do mercado de segurança privada no Brasil em 2003 R$ 7,5 bilhões Fenavist 2004Contingente de seguranças privados no Brasil 600 mil Fenavist 2004Contingente de seguranças privados clandestinos no Brasil 1,8 milhão Fenavist 2004

Óbitos por arma de fogo no Brasil

Quantidade de pessoas assassinadas em 2002 55.680 Unesco 2004Parcela de pessoas mortas por arma de fogo em 2002 80% Unesco 2004Pessoas assassinadas entre 1980 e 2000 600 mil IBGE 2004Parcela de pessoas entre 15 e 24 anos assassinadas entre 1980 e 2000 70% IBGE 2004Aumento da mortalidade por armas de fogo entre homens de 15 a 24,de 1980 a 2000 95% IBGE 2004Proporção de sobreviventes da violência para cada pessoa assassinada 200 Projeto TraumaPercentual médio de subnotificações de homicídios 21% Projeto TraumaPercentual médio de subnotificações de homicídios na região Nordeste 60% Projeto Trauma

Gastos públicos com cárcere

Gastos do Estado de São Paulo com segurança, penitenciárias epolícias em 1999 R$ 9,3 bilhões (3% do PIB) Projeto TraumaGastos do Estado do Rio de Janeiro (idem - SP) em 1995 R$ 2,5 bilhões (5% do PIB) Projeto TraumaQuantidade de detentos em dezembro de 2003 310 mil Projeto TraumaCrescimento anual médio da população carcerária 28% Projeto TraumaEstimativa de presos no Brasil em 2020 1,5 milhão Projeto TraumaQuantidade de novos presídios (800 vagas) a construir paraatender essa população até 2020 180 Projeto TraumaValor médio gasto hoje para a construção de umnovo presídio de 800 vagas R$ 20 milhões Projeto Trauma

Gastos do setor público de saúde no Brasil

Custo do atendimento médico às vítimas da violência nosistema público de saúde R$ 21 bilhões (40% do orçamento) Projeto TraumaOcupação dos leitos nos hospitais públicos brasileirospor vítimas da violência 40% Projeto TraumaDiária de internação em leito público de Unidade de Terapia Intensiva R$ 5 mil Projeto TraumaTempo médio de internação por trauma 20 dias Projeto Trauma