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UMA AVENTURA SECRETA DO MARQUÊS DE BRADOMÍN

Uma aventura secreta do Marquês de Bradomín

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Livro da Teresa Veiga, premiado PRÉMIO DE CONTO 'CAMILO CASTELO BRANCO' 2008.

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UMA AVENTURA SECRETA

DO MARQUÊS DE BRADOMÍN

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Título: Uma aventura secreta do Marquês de Bradomín

© Teresa Veigae Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008

Todos os direitos reservados

ISBN 978-972-795-267-0

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Teresa Veiga

Uma aventura secretado Marquês de Bradomín

contos

Cotovia

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Índice

As Parcas p. 9

Uma aventura secreta do Marquês de Bradomín 55Introdução 55A Princesa cigana 71Edwarda 91Luís e Comba 102Conclusão 120

O Maldito, Marianina, e o feitiço da Rocha da Pena 123

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Em meados do século vinte existiam ainda nocentro de Lisboa muitos prédios de boa aparência,arrendados a uma burguesia abastada que precisavade dez ou mais divisões para fazer face à complexi-dade da vida doméstica e permitir a coabitação, emterritórios distintos, de pais, prole e criadagem.

Num desses prédios, situado numa rua central,integrado num conjunto de edifícios todos iguais,pintados de azul claro, que ostentavam medalhõescom grupos escultóricos ao longo da cornija e porcima da altíssima porta de entrada e um vão enqua-drado por colunas dóricas no segundo andar, queera considerado o andar nobre, vivia, precisamentenesse andar, a família do engenheiro Rui Pelágio,reduzida à viúva e à filha desde que ele falecera e osdois filhos mais velhos, casados, habitavam em casaprópria.

O engenheiro nascera no Ribatejo, estudara emLisboa e aos vinte e sete anos era secretário doministro das obras públicas por interferência de umamigo que lhe devia alguns favores e a quem inte-ressava cimentar aquela amizade. Uma viagem de

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trabalho levara-o a Bragança onde conheceu Fran-cisca Arroyo, ainda muito jovem mas já órfã de paie mãe, rica e de boa linhagem o suficiente para enca-beçar a lista dos bons partidos e que nesse momentoansiava por uma paixão com desenlace rápido, quea subtraísse à custódia dos familiares rapaces, arma-dos em guardiões da sua moralidade.

De regresso a Lisboa o engenheiro, homemmulherengo e eminentemente prático quando se tra-tava dos seus interesses, escreveu e enviou três car-tas que chegaram ao mesmo tempo aos seus desti-natários: a primeira à amante de longa data, pondotermo à relação por sentir que não a amava o sufi-ciente para a levar ao altar; a segunda a João Arroyo,pedindo-lhe autorização para se corresponder coma sobrinha; a terceira à mãe, que vivia sozinha nacasinha de aldeia da modesta pensão que ele lhefazia chegar às mãos todos os meses, prevenindo-ade que ia mudar de casa e dando-lhe o endereço daposta restante.

Um ano depois casava com Francisca Arroyo einstalavam-se no andar em Lisboa onde iam passaro resto das suas vidas. Depois disso a carreira doengenheiro levou-o a desempenhar diversas funçõesna Administração Pública sem nunca desmerecer dafama de profissional competente e de uma lealdadea toda a prova ao regime, mas nunca foi tão longequanto auguravam o seu valor intrínseco e as pro-messas contidas nos seus brilhantes inícios. No

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entanto, se sentiu alguma frustração soube ocultá-lasob uma capa de indiferença e quando diante delese comentava o salto para uma posição de poder deum desconhecido, encolhia os ombros e dizia que oideal para cada um era viver de acordo com as suasíntimas convicções sobre a melhor maneira de des-frutar da vida.

O engenheiro sabia do que falava pois era fre-quentador das salas de jogo e bordéis das ruas daBoavista e do Poço dos Negros com o mesmo recatocom que gozava as delícias da vida familiar.

De facto seria difícil imaginar uma existênciamais ordenada, mais livre de canseiras, cuidados epreocupações, do que a que ele levava junto dafamília. A sua única exigência era ser bem servido epara que tudo corresse sobre rodas ele próprio con-tratara duas criadas que já lhe tinham prestado ser-viços antes do casamento e com elas inaugurara onovo lar para o qual contribuíra ainda com a mobí-lia do quarto do casal, a do escritório, e vários qui-los de folhelho, no tempo em que os travesseiros depenas e os colchões de sumaúma eram luxos dosamos e os servos dormiam em leitos de chumbo.As duas criadas eram irmãs e a mais nova sofria deum ligeiro atraso mental mas o que parecia umaopção desastrada revelou-se vantajosa em termospráticos pois a mais velha encarregava-se de supriras limitações da outra e exercia sobre ela uma vigi-lância tirânica para justificar a exigência que fizera

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de igual tratamento para as duas, igual paga. Graçasa elas Francisca Arroyo nunca teve de se preocuparcom tarefas domésticas e foi poupada aos dramasvividos pelas amigas, muito causticadas pelas expe-riências calamitosas com serviçais desonestas ouincompetentes.

Além das suas qualidades como força de traba-lho as duas irmãs tinham outra ainda mais rara epreciosa: eram dois túmulos. É evidente que aolongo de mais de três décadas de coabitação Fran-cisca ficara a saber tudo o que havia para sabersobre elas mas esse tudo era quase nada e os senti-mentos que elas lhe inspiravam praticamente nãotinham evoluído desde o primeiro dia. Por vezesainda tinha uns rebates de consciência em que seacusava de insensibilidade e egoísmo mas ao mesmotempo que se penitenciava logo se absolvia pois asduas irmãs eram tão destituídas de afabilidade esimpatia, para não falar na fealdade grotesca da maisnova, que teria sido difícil conseguirem noutro ladoa estabilidade e sossego de que gozavam na sua casa.Assim, limitava-se a ser correcta e justa e não lhepassava pela cabeça que por detrás daquelas mentesobtusas se pudessem esconder pensamentos incon-fessáveis.

Os dois filhos, que nasceram com intervalo detrês anos, cansaram-na física e moralmente mais doque se atrevia a confessar. O engenheiro só vinha paracasa à hora do jantar e se um filho adoecia sem gravi-

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dade pedia à mulher como supremo favor que fossepara o quarto das crianças e o deixasse dormir des-cansado. Tinha aliás o maior respeito pela sublimefunção da maternidade e quase não interferia na edu-cação dos filhos por considerar que esse papel cabiaà mãe mas à medida que cresciam tornou-se mais crí-tico e falava muitas vezes nas vantagens para a for-mação do carácter de um ambiente de disciplina eautoridade.

O certo é que, fosse uma decisão brusca ou lon-gamente planeada, conseguiu algo que pareciaimpossível. Quando o mais velho completou a ins-trução primária usou de toda a sua influência para oconvencer de que só os melhores, os eleitos, entra-vam para o Colégio Militar, e o rapaz, que era vivo eaudacioso e por isso respeitado e temido pelos cole-gas, julgando que ia ter um amplo campo para assuas manobras, não deu tréguas à mãe enquanto elanão consentiu na separação. O mesmo se passou, naaltura própria, com o segundo filho, menos rebeldee menos arrojado que o primeiro, mas confiante naprotecção do irmão e seduzido pelas aventuras virisque iria partilhar com ele.

Francisca sofreu bastante com a ausência dosfilhos embora reconhecesse que a educação querecebiam no Colégio se reflectia em melhor com-portamento e melhores maneiras em vez de reforçar,como receara, o seu lado mais turbulento e brutal.Com a aceitação veio a consciência de que ficara

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muito sozinha e do vazio das horas por preencher.Durante um ano viajou algumas vezes até Bragançaonde reatou com as amizades de infância e os seusantigos conhecimentos sociais. A casa de família,onde tudo lhe falava dos cari giorni sob o doce jugopaterno, voltou a exercer sobre ela o mesmo encan-tamento secreto, e o excesso de sensações, actuandocomo uma droga, fazia-a viver num estado de exal-tação permanente, em que tão depressa se apode-rava dela o espírito da combatividade como se ator-mentava por estar votada a uma existência medíocrefeita de artimanhas, concessões, pensamentos sigilo-sos e devaneios sem substância nem consequênciaspráticas.

Foi então que engravidou novamente, sem che-gar a perceber se fora por acaso ou se o marido seservira desse meio para restabelecer a ordem quejulgava ameaçada. O engenheiro apostou até ao fimque vinha ali o terceiro herdeiro mas perante a será-fica menina que resistia a erguer as pálpebras ecomunicava através de trejeitos dos lábios cor-de--rosa e súbitas movimentações dos dedos longos efinos, emudeceu, e dias depois confidenciava aosíntimos que nunca imaginara poder vir a apaixonar--se por outra mulher.

O nascimento de Rita deu novo alento ao casa-mento e suavizou o carácter do engenheiro que setornou mais caseiro e responsável. Tinha orgulhonos filhos e premiava-os com dinheiro pelos bons

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resultados escolares mas manifestava pela filha umapreferência gritante que nunca procurou esconder.Desde que nascera que a fizera passar à frente detudo e de todos e a revolta e o sofrimento à ideia deque não a tornaria a ver tornaram-lhe a agonia insu-portável ao morrer de um cancro fulminante nopâncreas precisamente no dia em que ela fez catorzeanos.

A morte do engenheiro, consumada em poucosdias, foi como um trovão ribombando pelos céus,que mete medo mas aparentemente não causa estra-gos. Deixava três filhos criados e a família em situa-ção económica desafogada. A mulher compadeceu--se muito do homem barbaramente arrancado à vidasem que nada o fizesse prever mas não sentiu faltado marido que em devido tempo apeara do pedestale aprendera a apreciar pelo seu justo valor. Conti-nuou a viver com a filha e as duas criadas na casaque já não pensava em deixar porque já não eranova e não prescindia do seu conforto e manteve ohábito de passar todos os meses uns dias em Bra-gança, dias em que lhe parecia aproveitar a pleni-tude dos seus recursos sem ter a sensação de tempoperdido como acontecia em Lisboa, além de que asidas e vindas com seus preparativos e peripécias e aspequenas decisões a tomar depois de uma ausência,davam à sua vida aquele mínimo de excitação que àfalta de melhor se confunde com a sedução domundo. A filha acompanhou-a algumas vezes mas

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sempre contrafeita, pelo que a mãe entendeu quenão devia impor-lhe essa obrigação moral e ficouainda mais à vontade para usufruir do prazer de dis-por da sua vida com plena liberdade. Aliás a relaçãoentre ambas baseava-se na tolerância e respeitomútuo e era uma mistura de conivência tácita e des-prendimento. Mesmo estando em casa podiam pas-sar quase todo o dia sem se ver, encontrando-seapenas às horas das refeições, e os seus diálogos,quase sempre de réplica e contra réplica sobre umfundo de controvérsia, caracterizavam-se pela bre-vidade, dando a impressão, a um observador quenão as conhecesse, de uma paz forçada, um equilí-brio subtil forjado pelo hábito e a conveniência,que repousava num conflito latente ou pelo menosnum equívoco.

No entanto, nada mais errado. Francisca Arroyogostaria sem dúvida que a filha fosse mais sociável eRita insurgia-se por vezes contra o espírito para o seugosto demasiado crítico e mordaz da mãe mas comono íntimo cada uma delas sabia que a outra seriacapaz de se atirar a um poço para a salvar, não seesforçavam por esbater essas e outras divergências.

Aos vinte e sete anos Rita conseguira um empregocomo assistente, recepcionista e ocasionalmentemulher de limpezas no consultório de um médico jábastante idoso e com pouca clientela. Havia dias emque não aparecia nenhum doente. Rita aproveitava otempo para ler um romance que trazia de casa e fazer

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exercícios de inglês num velho Método dos tempos deestudante do pai. Havia dois anos que era autodidactaem inglês, contra a opinião da mãe que queria queela frequentasse um curso de línguas, menos pelodiploma que para se distrair e ver gente. Como o con-sultório só abria umas horas da parte da tarde, asmanhãs de Rita eram passadas na cama ou desvane-ciam-se sem nenhum proveito, tanto quanto era pos-sível saber, pois toda a actividade em casa se proces-sava de maneira discreta e silenciosa.

Ultimamente, no entanto, Rita pusera a hipótesede voltar a estudar, talvez um curso de História ouCiências da Natureza, e a mãe, desejando-o dofundo do coração, evitava tocar no assunto para nãoencorajar o demónio da contradição que podiainfluenciar negativamente o livre-arbítrio da filha.Na verdade, depois de durante muitos anos nuncase ter preocupado com essa coisa abstracta e longín-qua que era o futuro, Francisca Arroyo começava ater insónias quando pensava no que seria da filhadepois da sua morte. É certo que tinha confiançanos dois filhos mais velhos, um médico e o outroengenheiro, formados pela Academia Militar. Mascomo nunca tinha havido entre Rita e os irmãos ver-dadeiras relações fraternas, dada a diferença de ida-des e o afastamento de casa dos rapazes desde osdez anos, não era de esperar que se lembrassemmuitas vezes dela a não ser que as contingências davida os forçassem a vir em seu auxílio. Claro que

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tudo seria mais fácil se Rita casasse mas aos vinte esete anos nunca tivera um namorado, o que come-çava a tornar-se embaraçoso e obrigava Francisca aalguns malabarismos verbais para tornear a questãoquando o assunto era abordado pelas amigas, con-seguindo, através das suas meias palavras cheias dereticências, deixar no ar a sugestão de que algoacontecera ou estava para acontecer. O outro sonho,o de ver a filha tirar um curso superior, pareciaquase tão intangível como o primeiro, mas tinha avantagem de ser um combate solitário em que pornorma se escondem os fracassos e só as vitóriasganham visibilidade. Ela costumava invocar o seucasamento precoce para justificar não ter prosse-guido os estudos mas o seu estatuto económico e asua cultura caótica forjada na leitura superficial delivros e revistas, que lhe dava uma maneira livre edesordenada de falar, colocava-a em pé de igual-dade com as amigas que tinham tirado cursos supe-riores de Ciências ou Letras e que acorriam aos seuschás deixando-a exausta, pois cada vez tinha menospaciência para fingir entusiasmo em conversas quese alimentavam de maledicência, invejas e intrigas.Depois da morte do marido, numa maré de genero-sidade, decidiu dar quatro horas semanais do seutempo a uma instituição para jovens em risco ondelhe cabia ajudá-las a preparar-se para o exame daquarta classe. A experiência não durou muito por-que ela não conseguiu aceitar as regras retrógradas

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impostas pela comunidade de padres e beatas àseducandas e deixou-lhe como legado apenas umpunhado de histórias que contava entre o riso e aindignação. Ao contrário da mãe, Rita levava tudoa sério e tinha dificuldade em perceber o ridículode certos comportamentos. Vendo-a remeter-se aum silêncio prudente Francisca lamentava que elativesse tamanha ausência de sentido de humor ecaía por dentro numa disposição soturna porquelhe parecia que um ser sem malícia está condenadoà infelicidade.

O episódio do postal, tão estranho que podería-mos duvidar de que tivesse acontecido se não fos-sem os desenvolvimentos posteriores, deu-lhe infe-lizmente razão, mas teve a vantagem de provocaralgumas mudanças que abriram um novo capítulona vida de mãe e filha.

Ao regressar a casa para almoçar, no estado deagradável fadiga de quem fez o que quis e andou poronde quis, Francisca Arroyo abriu como habitual-mente a caixa do correio da entrada do prédio, ondese amontoava bastante correspondência depois dealguns dias em que ficara vazia. Ao reuni-la os seusolhos foram imediatamente atraídos para um postalilustrado endereçado à filha e que não tinha reme-tente. O postal era a reprodução fotográfica de umapaisagem a preto e branco, pelo menos a senhoraArroyo tinha ideia de ter visto uma mancha parda epouco contrastante, embora fosse incapaz de dizer

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se era um espaço urbano, com casas e cumeeiras, ouuma paisagem de montanha ou de planície, ou omar domesticado de uma estância de veraneio, oude garantir que fosse mesmo uma paisagem, poisqualquer esforço para recordar fazia mergulharbruscamente no nada a recordação, como acontecequando tentamos reapropriarmo-nos dos sonhos.Em contrapartida lembrava-se perfeitamente de queestava escrito com tinta preta e que a letra era firme,aplicada, e de certa maneira tão atrevida e grosseiracomo o conteúdo. O mesmo se podia dizer da assi-natura, o nome próprio abreviado e um apelido vul-gar, prolongado num arabesco rebuscado, digno deum faia de viela. O texto, dada a exiguidade doespaço destinado à correspondência, não excediadois ou três parágrafos e Francisca Arroyo nem teveconsciência de que o lia pois tudo se passou num ins-tante que parecia fora do tempo e reger-se por leisespeciais. Ao levantar a cabeça viu a porteira queaparecera ao cimo das escadas que conduziam ao seucubículo miserável na cave e, já crispada pelo ódioque lhe corria nas veias, sentiu com mais força quenunca toda a aversão que ela lhe inspirava. Não cor-respondeu ao seu cumprimento e ignorou-a ostensi-vamente enquanto atravessava o vestíbulo fazendoressoar os saltos dos sapatos, sem conseguir evitar osgestos bruscos ao abrir e fechar a grade do elevador.A lenta ascensão dos dois andares e o compasso deespera no patamar, longe de a acalmar, aumentaram

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o seu estado de tensão até ao limite do suportável.Foi direita ao quarto e, sem tornar a olhar para opostal, rasgou-o em quatro pedaços com a feroci-dade de uma fera ao cair sobre a presa. A seguir asua preocupação foi dar-lhes sumiço, para quenenhum fragmento tivesse a mais longínqua hipó-tese de ser resgatado. Depois de ter feito desapare-cer a prova da infâmia começou logo a sentir-se maisaliviada. Decidiu que não ia contar nada à filhaembora fosse discutível se não seria mais sensato pô--la de sobreaviso. De qualquer forma, ainda que qui-sesse enfrentar com ela a estranha ocorrência, teriamuita dificuldade em fazer-se entender, pois nãoconseguia deduzir nenhuma acusação concreta. Sósabia que alguém, um homem vil, sem escrúpulos,de baixa extracção, um ordinário com pretensões aespirituoso, tivera a audácia de dirigir à sua filha umconjunto de gracejos de cariz sexual, troçando delae amesquinhando-a com essa habilidade para oultraje assassino que exige além de um coraçãotorpe uns fumos de inteligência e a certeza da impu-nidade. Que a obra viesse assinada ainda tornava oacto mais monstruoso e o autor mais temível, se bemque a identidade dele tivesse sofrido o mesmo pro-cesso de apagamento que tudo o resto. Portantoeram só impressões, de fazer eriçar os cabelos e ran-ger os dentes mas não mais que isso, o que FranciscaArroyo poderia dizer à filha se quisesse abrir-lhe osolhos para uma realidade que a jovem porventura

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ignorava e, na impossibilidade de ser mais explícita,receava ferir inutilmente Rita e criar entre as duasum mal estar irreparável.

Nessa noite, ao jantar, mostrou-se mais conver-sadora do que de costume mas não descobriu na ati-tude da filha nenhuma perturbação. Nos dias seguin-tes, continuando a observá-la atentamente, pôdeconfirmar que assim era: Rita não fazia ideia dodesassossego que ia no espírito da mãe e não revelavao mínimo sinal de inquietação; não estava mais dis-tante, nem mais triste, mais hostil ou mais agitada.Concluiu, com plena certeza, que ela não esperavacarta nenhuma e, embora isso parecesse adensar omistério, as consequências práticas eram tão impor-tantes que a gravidade dos factos se diluía. Quemquisera ofendê-la vira os seus intentos frustrados e asenhora Arroyo estava convencida de que o crimi-noso depressa sentiria o vazio e a inutilidade do seuacto ao perceber que cometera um crime sem vítima.Achou que o assunto estava arquivado e agradeceuà providência divina ter-lhe permitido interceptar edestruir o postal antes de ele ter começado a expan-dir o seu veneno. E ao pensar na filha como vítimaexpiatória de crimes incertos num mundo cada vezmais alucinado e cruel sentiu que uma onda de amora avassalava, mais forte do que todas as paixões queconhecera e a única que a acompanharia até ao seuúltimo alento. Compensar Rita, convencê-la a apro-veitar melhor a sua juventude, libertá-la de todas

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as cadeias mesmo ao preço de infringir as conven-ções, tornou-se o seu principal objectivo, quase umaobsessão. A viúva ainda desejável e preocupada coma impressão que causava apagava-se para dar lugar àmãe, companheira inseparável da filha. Seria umaaliança indestrutível, plena de consolações paraambas, a mais bela e doce etapa da sua vida.

Um mês depois faziam as malas para Madrid, aprimeira de uma série de viagens que ela planeara,depois de ter usado de todas as suas artes para obtero consentimento da filha.

Francisca Arroyo tinha lá feito uma curta esta-dia havia muitos anos, jovem recém-casada pendu-rada do braço do marido e tão submissa aos seusinteresses que quase não vira nada do que lhe inte-ressava por o engenheiro ter uma verdadeira fobia apassar o dia em recintos fechados.

Agora os papéis tinham-se invertido e ela prepa-rava-se para servir de guia à filha, orientando-sepelos seus próprios critérios e com a ajuda de algu-mas leituras e dos folhetos turísticos que fora pes-soalmente buscar ao Consulado. A realidade, porém,foi diferente, pois Rita não partilhava muitos dosgostos da mãe e chegava a deixá-la sozinha no meioda rua e a seguir em frente, como se não encontrasseum meio termo entre submissão e tirania. A agitaçãoincessante da multidão nas largas avenidas do cen-tro, em que Francisca se sentia como peixe na águano seu papel de figurante de um espectáculo gran-

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dioso, não merecia da filha senão uma atenção fria edesinteressada que traduzida em palavras devia que-rer dizer algo como que nada daquilo lhe dizia ver-dadeiramente respeito. A sua atitude começou amudar no segundo dia, dedicado à Madrid dosÁustria. Ao começo da tarde, mãe e filha sentaram--se numa esplanada da Plaza Mayor. A senhoraArroyo aproveitava os momentos de descanso paraler a informação relativa àquilo que os seus olhosviam ou tinham acabado de ver, convencida de queos processos da memória se reforçam quando aoolhar mental se juntam as sugestões do ambiente etentava interiorizar tudo o que acontecera de dra-mático e glorioso ali no coração da velha Madridentre o século dezassete e o século vinte. Ao pousaro livro para contemplar o Edifício da Panaderia nãoviu Rita. Pensou que ela tivesse ido dar uma volta àPraça e perscrutou o vasto espaço em todas as direc-ções mas os minutos passavam e a filha não apareciae desvaneceu-se a sua esperança de que pudesseestar oculta atrás da estátua de Filipe III. Não valiaa pena espreitar o interior das confeitarias e lojas derecuerdos sob as arcadas pois sabia que a filha fugiadesses lugares. Levantou-se e deixou-se ficar espe-cada porque não lhe ocorria mais nada para fazer —não podia, por exemplo, chamar em voz alta pelafilha; não era uma criança nem um cão — mas o seuagudo sentido das conveniências dizia-lhe que elaprópria estava a tornar-se uma presença notada

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e incómoda enquanto o seu bom senso natural aaconselhava a dominar os nervos e esperar. Estavanesta indecisão e quase à beira das lágrimas quandoviu um homem dirigir-se a ela, um espanhol seco,moreno, com algumas rugas marcadas e o cabelodemasiado preto para ser natural, que se lembravade ter visto no hall do hotel à conversa com umcompatriota que lhe chamara Montera. De maneiracortês, mas sem sombra de amabilidade servil norosto impassível, o homem disse que acabava de vera sua filha na Plaza de la Villa e que esperava que aaustera Madrid não as estivesse a desiludir. O alívioque ela sentiu, juntamente com a gratidão por o des-conhecido ter ousado abordá-la no único intuito dea tranquilizar, transmitiram uma vivacidade parti-cular aos seus agradecimentos. Ainda conservavaalgo dessa animação no rosto quando pouco depoisa filha veio ao seu encontro e se sentou novamente àmesa sem uma explicação, mostrando-se muito sur-preendida ao saber que a mãe não a ouvira dizer queia andar mais um pouco enquanto ela lia. Como Ritanão sabia mentir, Francisca teve de aceitar que aidade e um fundo de egoísmo mais forte que as suasboas intenções a faziam incorrer em distracçõesimperdoáveis. Não gostou, no entanto, do mododesdenhoso como a filha se referiu a Montera, comquem se cruzara na Plaza de la Villa, que a cumpri-mentara simulando um conhecimento que não exis-tia e que ainda por cima se arvorara em mensageiro,

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servindo-se dela para estabelecer contacto e insi-nuar-se no espírito da mãe. É certo que a reacção deRita não era novidade. Desde que Francisca enviu-vara ficara muito claro que Rita não aceitaria bemum segundo casamento da mãe, e esta oposição, quenem chegara a ser formulada verbalmente, servira--lhe de alibi para rejeitar a simples ideia de um com-promisso. Desde então a sua vida sentimental limi-tara-se a uma ligação feita de encontros esporádicose nem sempre felizes com um mal casado separadoda mulher, homem culto, requintado e atormen-tado, que a nevrose tornara de convívio impossívele cujo suicídio a lançara numa segunda viuvez.Quando isso aconteceu já se tinha afastado da maiorparte dos conhecimentos que frequentavam a casano tempo do marido e como recebia cada vez menostambém cada vez menos era convidada. Já quase sórestavam os parentes de Bragança e o núcleo restritodas amigas de longa data mas também entre estesmortes e afastamentos iam criando vazios sucessi-vos. Que a filha se arrogasse o direito de armar emsua guardiã pareceu-lhe de repente insuportável e,num repente de que logo se arrependeu, disse-lheque se Montera, que na véspera jantara sozinho,viesse cumprimentá-las, o convidaria a sentar-se àsua mesa. Depois desta declaração instalou-se umsilêncio incomodativo entre ambas, que não duroumuito tempo porque a senhora Arroyo quebrou-ona primeira oportunidade e a filha reagiu sem vestí-

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gios de ressentimento como se, igualmente vulnerá-veis, estivessem condenadas a entender-se.

A meteorologia fê-las alterar o plano de visitasprevisto para o dia seguinte. Durante a noite aatmosfera invernal que envolvia Madrid numa cam-pânula cor de chumbo desfez-se como se deusesbenfazejos a tivessem soprado para longe. Fran-cisca, a quem o bom tempo deixava sempre umpouco eufórica, decidiu que deviam aproveitar o diapara passear no Parque do Retiro e nos jardins doPalácio Real. Andaram de caleche, navegaram nolago, fizeram-se fotografar por um preço exorbi-tante, em suma, não desperdiçaram nenhuma hipó-tese de divertimento por imposição de Francisca,apesar da falta de entusiasmo da filha para quemqualquer actividade pouco séria era rotulada de“infantilidades”. Ao descer as escadas do Palácio deCristal onde decorria uma exposição de pedrassemipreciosas, cruzaram-se com Montera que subiano seu passo elástico e decidido, quase um poucoprecipitado, como se estivesse atrasado para umencontro. E a verdade é que quando viu FranciscaArroyo ficou preso ao degrau durante um segundoe só depois levou a mão ao chapéu enquanto ela,apanhada de surpresa, reagia com o sorriso rasgadoe o franzir de sobrancelhas que davam ao seu rostouma vivacidade particular quando confrontada comum agradável acontecimento. Que pelo segundo diaconsecutivo se tivessem encontrado casualmente

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numa cidade com a dimensão de Madrid era real-mente motivo de admiração, mas dar-lhe um realcequase de prodígio parecia lançar uma luz dúbiasobre as reais intenções de Francisca e legitimar adúvida sobre se aquela mulher bem penteada, bemvestida, de maneiras um tanto descuidadas e quefalava a todos com urbanidade, não estava no íntimopredisposta a contrair novas simpatias. Nem a filha,no entanto, poderia dizer se ela queria deixar reca-dos ou se agia assim naturalmente. O engenheiro,que só entendia o deboche, referia-se àquilo comoos segredos da abelha. E Filipe, o doente dos ner-vos, queria-a alegre e picante para aliviar o seu sofri-mento.

No quarto dia, cumprindo o calendário estabe-lecido, foram a pé, logo de manhã, para o Museu doPrado. Começaram pelas obras de El Greco e pelapintura veneziana do século XVI, que Franciscaexpunha, com entusiasmo triunfal, à ignorância res-peitosa da filha. Por vezes chegava a assustá-la, sur-gindo de repente por detrás do seu ombro para sus-surrar uns comentários admirativos ou repetir-lhe oque acabara de ler no guia de que se munira paracada sala. No entanto o momento mais alto da visitaestava programado para depois do almoço e decerto modo tudo o que viam não passava de umaviagem magnífica antes de alcançarem o Olimpoonde moravam Velázquez e Goya.

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