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Uma breve história da Filosofia · sofistas, professores sagazes que treinavam os estudantes na arte da retórica e cobravam muito caro por isso. Sócrates, em contrapartida, não

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CAPÍTULO1

Ohomemqueperguntava

SÓCRATESEPLATÃO

Hácercade2.400anos,emAtenas,umhomemfoicondenadoàmorteporperguntardemais.

Houvefilósofosantesdele,masfoicomSócratesqueoassuntorealmentedespontou.Sea

filosofiatemumsantopadroeiro,Sócrateséoseunome.

Denarizachatado,rechonchudo,malvestidoeumpoucoestranho,Sócrateseraumsujeito

deslocado.Emborafossefeioenãotomassebanhocomfrequência,eletinhaumgrandecarismae

umamentebrilhante.TodosemAtenasconcordavamquenuncaexistiualguémcomoelee

provavelmentejamaisexistiria.Eleeraúnico.Mastambémeraextremamenteinoportuno.Elese

consideravaumdaquelesinsetosdepicadadolorosa,ummoscardo.Sãoirritantes,masnão

causamdanostãosérios.Noentanto,nemtodosemAtenasconcordavamcomisso.Algunso

amavam;outrosoconsideravamumainfluênciaperigosa.

Quandojovem,SócratesfoiumbravosoldadoquelutounaGuerradoPeloponesocontra

osespartanoseseusaliados.Quandoatingiuameia-idade,eleperambulavapelaágora,parava

aspessoasdetemposemtemposefaziaperguntasembaraçosas.Issoeramaisoumenostudoo

quefazia.Porém,suasperguntaseramafiadíssimas:pareciamsimples,masnãoeram.

UmexemploseriaaconversadelecomEutidemo.Sócratesperguntou-lheseserenganador

correspondiaaserimoral.“Éclaroquesim”,respondeuEutidemo,oqueparaeleerauma

obviedade.“Maseseumamigoestivessemuitotristeequisessesematar,evocêroubasse-lhea

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faca?Nãoseriaesteumatoenganador?”,perguntouSócrates.“Sim,comtodacerteza”.“Mas

fazerissonãoseriamoralemvezdeimoral?Trata-sedeumacoisaboa,nãoruim–emboraseja

umatoenganador”,disseSócrates.“Sim”,respondeuEutidemo,queaessaalturajáhaviametido

ospéspelasmãos.Sócrates,aousarumcontraexemplo,mostrouqueocomentáriogeralde

Eutidemodequeserenganadoréimoralnãoseaplicaatodasassituações.Eutidemonão

perceberaissoantes.

RepetidasvezesSócratesdemonstrouqueaspessoasqueencontravanaágorarealmente

nãosabiamoquepensavamsaber.Umcomandantemilitardariainícioaumaconversaestando

totalmentecertodequesabiaoquesignificavaa“coragem”,mas,depoisdevinteminutosna

companhiadeSócrates,iriaemboratotalmenteconfuso.Aexperiênciadeveriaser

desconcertante.Sócratesadoravarevelaroslimitesdoqueaspessoasentendiamgenuinamente,

bemcomoquestionarassuposiçõesqueserviamdebaseparasuasvidas.Paraele,eraum

sucessoquandoumaconversachegavaaofimeaspessoaspercebiamoquãopoucosabiam.Algo

muitomelhordoquecontinuarmosacreditandoqueentendemosalgoquandonaverdadenão

entendemos.

Naquelaépoca,emAtenas,osfilhosdosnobreseramenviadosparaestudarcomos

sofistas,professoressagazesquetreinavamosestudantesnaartedaretóricaecobravammuito

caroporisso.Sócrates,emcontrapartida,nãocobravaporseusserviços.Defato,elediziaque

nãosabiadenada,entãocomopoderiaensinar?Issonãoimpediaqueosestudanteso

procurassemeouvissemsuasconversas,mastampoucootornavabenquistoentreossofistas.

Umdia,seuamigoQuerefonteconsultouoOráculodeDelfos.Ooráculoeraumavelha

sábia,querespondiaperguntasfeitaspelosvisitantes.Suasrespostasgeralmentetinhamaforma

deumenigma.“ExistealguémmaissábioqueSócrates?”,perguntouQuerefonte.“Não”,foia

resposta.“NinguémémaissábioqueSócrates.”

Aprincípio,SócratesnãoacreditouquandoQuerefontecontou-lheoocorridoeficou

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bastanteconfuso.“ComopossoserohomemmaissábiodeAtenasquandoseitãopouco?”,

pensouele.Sócratespassouanosquestionandoaspessoasparaversealguémeramaissábioque

ele.Porfim,entendeuoqueooráculoquisdizerequeavelhaestavacerta.Muitaspessoaseram

boasemváriascoisasquefaziam–carpinteiroserambonsemcarpintaria,soldadoserambons

naartedaluta.Masnenhumadessaspessoaseraverdadeiramentesábia.Elasrealmentenão

sabiamdoqueestavamfalando.

Otermo“filósofo”origina-sedaspalavrasgregasquesignificam“amoràsabedoria”.A

tradiçãofilosóficaocidental,aquelaqueestelivrosegue,espalhou-sepordiversaspartesdo

mundoapartirdaGréciaantiga,àsvezesfertilizadaporideiasdoOriente.Otipodesabedoria

queelavalorizaébaseadonoargumento,noraciocínioeemperguntas,enãoemacreditarnas

coisassimplesmenteporquealguémimportantenosdissequesãoverdade.ParaSócrates,a

sabedorianãoerateroconhecimentodediversosfatosousabercomofazeralgo.Asabedoria

significavaentenderaverdadeiranaturezadanossaexistência,inclusiveoslimitesdoque

podemossaber.OsfilósofosdehojeagemmaisoumenosdamaneiracomoSócratesagia:fazem

perguntasrigorosas,buscamrazõeseevidências,lutampararesponderalgumasdasquestões

maisimportantesquepodemosfazersobreanaturezadarealidadeesobrecomodevemosviver.

AocontráriodeSócrates,noentanto,osfilósofosmodernostêmobenefíciodetercomobase

praticamente2.500anosdepensamentofilosófico.Estelivroexaminaideiasdealgunsdos

principaispensadoresqueescreveramnessatradiçãodopensamentoocidental,umatradiçãoque

teveiníciocomSócrates.

OquefaziadeSócratestãosábioeraofatodecontinuarfazendoperguntasedeestar

sempredispostoadebatersuasideias.Avida,declaravaele,sóvaleapenaservividaquando

pensamosnoqueestamosfazendo.Umaexistênciasemanáliseéadequadaparaogado,masnão

paraossereshumanos.

Sócratesrecusou-seaescreverqualquercoisa,oqueéincomumparaumfilósofo.Para

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ele,falareramelhordoqueescrever.Palavrasescritasnãopodemreplicar;nãopodemnos

explicarnadaquandonãoasentendemos.Aconversafrenteafrenteeramuitomelhor,diziaele.

Duranteumaconversa,podemoslevaremcontaotipodepessoacomquemconversamos;

podemosalteraroquedizemosparaqueamensagemsejacompreendida.Comoeleserecusavaa

escrever,ésobretudopormeiodaobradePlatão,seuprincipalpupilo,quetemosumaboaideia

sobreoqueessehomemnotávelfalavaenoqueacreditava.Platãoregistrouumasériede

conversasentreSócrateseaspessoasquequestionava.Essesescritossãoconhecidoscomo

diálogosplatônicoseconstituemgrandesobrastantodeliteraturaquantodefilosofia–decerta

forma,PlatãofoioShakespearedesuaépoca.Lendoessesdiálogos,temosumanoçãodecomo

eraSócratesedoquantoeleerainteligenteeexasperador.

Naverdade,nãosetratadeumatarefatãosimples,poisnemsemprepodemosdistinguirse

PlatãoestavaescrevendooqueSócratesrealmentedisseouseestavacolocandosuaspróprias

ideiasnabocadeumpersonagemqueelechamoude“Sócrates”.

UmadasideiasqueamaioriadaspessoasacreditaserdePlatãoenãodeSócrateséade

queomundonãoéoquerealmentepareceser.Háumadiferençasignificativaentreaparênciae

realidade.Amaioriadenósconfundeaparênciascomrealidade.Pensamosqueentendemos,mas

nãoentendemos.Platãoacreditavaquesomenteosfilósofosentendemcomoomundo

verdadeiramenteé.Emvezdeconfiarnossentidos,elesdescobremanaturezadarealidadepelo

pensamento.

Paradefenderisso,Platãodescreveumacaverna.Nessacavernaimaginária,hápessoas

acorrentadasviradasparaumaparede.Diantedelas,aspessoasveemsombrastrêmulasque

acreditamcorresponderàscoisasreais.Masnãosão.Oqueveemsãosombrasprojetadaspor

objetosconduzidosnafrentedeumafogueiraqueficaláatrás.Essaspessoaspassaramavida

inteirapensandoqueassombrasprojetadasnaparedesãoomundoreal.Atéqueumdossujeitos

selibertadascorrentesesegueemdireçãoaofogo.Seusolhosficamturvosaprincípio,mas

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depoiselecomeçaaverondeestá.Caminhaaostropeçosparaforadacavernae,porfim,

consegueolharparaosol.Quandoelevoltaparaacaverna,ninguémacreditanoqueelediz

sobreomundoláfora.Ohomemqueselibertaécomoofilósofo:elevêalémdasaparências.As

pessoascomunsnãotêmmuitanoçãodarealidadeporquesecontentamemolharoqueestá

diantedelasemvezderefletirprofundamentesobreascoisas.Contudo,asaparênciassão

enganadoras.Oqueveemsãosombras,nãoarealidade.

Essahistóriadacavernaestáligadaaoqueficariaconhecidocomoateoriaplatônicadas

formas.Amaneiramaisfácildecompreendê-laécomumexemplo.Penseemtodososcírculos

quejáviunavida.Algumdeleseraumcírculoperfeito?Não.Nenhumdeleseraumcírculo

absolutamenteperfeito.Emumcírculoperfeito,todosospontosdacircunferênciasão

equidistantesdopontocentral.Círculosreaisnuncaalcançamesseêxito.Contudo,vocêentende

oqueeudissequantouseiaspalavras“círculoperfeito”.Entãooqueéessecírculoperfeito?

Platãodiriaqueaideiadeumcírculoperfeitoéaformadeumcírculo.Paraentendermosoqueé

umcírculo,precisamosnosconcentrarnaformadocírculo,enãonoscírculosexistentesque

traçamoseexperimentamospelosentidodavisão,poistodossãoimperfeitosdealgumamaneira.

Igualmente,segundoPlatão,sequisermoscompreenderoqueéabondade,precisamosnos

concentrarnaformadabondade,enãoemexemplosparticularesquetestemunhamos.Os

filósofossãoosmaisapropriadosparapensarsobreasformasnessesentidoabstrato;aspessoas

comunssãoinduzidasaoerropelomundoquandooapreendempelossentidos.

Comoosfilósofossãobonsempensarsobrearealidade,Platãoacreditavaqueeles

deveriamestarnogovernoedetertodoopoderpolítico.EmARepública,suaobramaisfamosa,

eledescreveumasociedadeimagináriaperfeita.Osfilósofosestariamnotopoeteriameducação

especial,massacrificariamseusprópriosprazeresemnomedoscidadãosquegovernavam.

Abaixodelesestariamossoldadostreinadosparadefenderopaíseabaixodelesestariamos

trabalhadores.Platãoacreditavaqueessestrêsgruposdepessoasconfigurariamumequilíbrio

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perfeito,comoumamentebem-equilibradacujaparteracionalmantivesseasemoçõeseos

desejoscontrolados.Infelizmente,seumodelodesociedadeeraprofundamenteantidemocráticoe

manteriaaspessoassobcontrolepormeiodacombinaçãodeforçaementiras.Grandepartedas

artesseriabanida,tendocomobasesuaideiadequeeramfalsasrepresentaçõesdarealidade.Os

pintoresretratavamaaparência,masasaparênciassãoenganadorasemrelaçãoàsformas.Cada

aspectodavidanarepúblicaidealdePlatãoseriaestritamentecontroladodecima.Éoquehoje

chamaríamosdeEstadototalitário.Platãopensavaquepermitirovotoaopovoeracomodeixar

queospassageirosguiassemumnavio–melhordeixarocomandoporcontadaquelesquesabem

oqueestãofazendo.

AAtenasdoséculoVa.C.erabemdiferentedasociedadequePlatãoimaginouemA

República.Eraumaespéciededemocracia,emborasomentedezporcentodapopulação

pudessemvotar.Mulhereseescravos,porexemplo,estavamautomaticamenteexcluídos.No

entanto,oscidadãoseramiguaisperantealei,ehaviaumelaboradosistemadesorteiospara

garantirquetodostivessemumachancejustadeinfluenciarasdecisõespolíticas.

AtenascomoumtodonãovalorizouSócratesdemodotãoexaltadoquantoPlatãoo

valorizou.Longedisso.MuitosateniensesacreditavamqueSócrateseraperigosoequeestava

deliberadamentedestruindoogoverno.Em399a.C.,quandoSócratesestavacomsetentaanosde

idade,Meletoolevouajulgamento.EleafirmouqueSócratesnegligenciavaosdeuses

atenienses,introduzindonovosdeusespróprios.EletambémsugeriuqueSócratesensinavaaos

jovensasecomportaremmal,encorajando-osasevoltaremcontraasautoridades.Ambasas

acusaçõeserambastantesérias.Édifícilsaberoquantoelaseramprecisas.TalvezSócrates

realmentedesencorajasseseusestudantesaseguirareligiãoestabelecida,eháalgumaevidência

dequeelegostavadezombardademocraciaateniense,oquecombinariacomseucaráter.O

certoéquemuitosateniensesacreditavamnasacusações.

Houveumavotaçãoparaconsiderá-loculpadoounão.Maisdametadedos501cidadãos

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quecompunhamoimensojúrioconsiderouculpadoeosentenciouàmorte.Seelequisesse,

provavelmentepoderiatersedefendidoeevitadoaexecução.Contudo,emvezdisso,fielàsua

reputaçãodemoscardo,irritouaindamaisosateniensesargumentandoquenãofizeranadade

erradoequeelesdeveriam,naverdade,recompensá-locomrefeiçõesgratuitaspelorestoda

vidaemvezdepuni-lo.Masesseargumentonãofoibemaceito.

Elefoicondenadoàmorte,tendodetomarvenenofeitodecicuta,umaplantaqueparalisa

gradualmenteocorpo.Sócratesdespediu-sedaesposaedostrêsfilhos,depoisreuniuseus

estudantesaoredordesi.Setivessetidoaescolhadecontinuarvivendoemsilêncio,semfazer

maisperguntasaninguém,elenãoteriaaceitado.Preferiamorreraviverassim.Sócratestinha

umavozinteriorquelhediziaparacontinuarquestionandotudo,eelenãoatrairia.Então,tomou

umcálicedevenenoemorreulogodepois.

NosdiálogosdePlatão,noentanto,Sócratesaindavive.Essehomemdifícil,quecontinuou

fazendoperguntasepreferiumorreraparardepensarsobrecomoascoisasrealmentesão,tem

sidoumainspiraçãoparaosfilósofosdesdeaquelaépoca.

OimpactoimediatodeSócratesfoiexercidosobreaquelesqueocercavam.Alémde

Platão,outrograndepupilodeSócratesfoiAristóteles,umtipodepensadorbastantediferente.

CAPÍTULO2

Averdadeirafelicidade

ARISTÓTELES

“Umaandorinhasónãofazverão”.ProvavelmentevocêdevepensarqueessafraseédeWilliam

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Shakespeareoudealgumoutrograndepoeta.Atépoderiaser.Masnaverdadeelaédeumlivro

deAristóteleschamadoÉticaaNicômaco,querecebeuessetítuloporserdedicadoaoseufilho,

Nicômaco.Aristótelesqueriadizerque,paraprovarqueoverãocomeçou,éprecisomaisde

umaandorinhaoumaisdeumdiaquente.Domesmomodo,pequenosprazeresnãorepresentama

verdadeirafelicidade.Paraele,afelicidadenãopassavadealegriamomentânea.

Surpreendentemente,eleacreditavaqueascriançasnãopodiamserfelizes,oquepareceum

absurdo.Seascriançasnãopodemserfelizes,quempode?Noentanto,issorevelaoquantosua

visãodefelicidadeeradiferentedanossa.Ascriançasestãoapenascomeçandoavivere,por

isso,nãotiveramumavidaplenaemnenhumsentido.Averdadeirafelicidade,argumentava

Aristóteles,exigiaumavidamaislonga.

AristótelesfoidiscípulodePlatão,quehaviasidodiscípulodeSócrates.Dessemodo,

essestrêsgrandespensadoresformamumacorrente:Sócrates-Platão-Aristóteles.Geralmente

funcionaassim:gêniosnãocostumamsurgirdonada.Amaioriadelesteveumprofessorque

serviudeinspiração.Masasideiasdessestrêssãobemdiferentesumasdasoutras.Cadauma

teveumaabordagemoriginal.Parasimplificar,Sócratesfoiumexcelentedialogador,Platãofoi

umescritorfenomenaleAristótelesinteressava-seportodasascoisas.SócratesePlatão

acreditavamqueomundoquevemoseraumpálidoreflexodaverdadeirarealidade,quesó

poderiaseralcançadapormeiodopensamentofilosóficoabstrato;Aristóteles,emcontrapartida,

erafascinadopelosdetalhesdetudoqueocercava.

Infelizmente,quasetodososescritosdeAristótelesquesobreviveramtêmaformade

anotaçõesdeaulas.Porém,essesregistrosdeseupensamentoaindaexercemumimpacto

gigantesconafilosofiaocidental,mesmoquemuitasvezesoestilodeescritasejafrio.

Aristótelesnãofoiapenasumfilósofo:eletambémerafascinadoporzoologia,astronomia,

história,políticaedrama.

AristótelesnasceunaMacedôniaem384a.C.DepoisdeestudarcomPlatão,viajare

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trabalharcomotutordeAlexandre,oGrande,elefundouaprópriaescolaemAtenas,chamada

Liceu.Trata-sedeumdosmaisfamososcentrosdeensinodomundoantigo,algoparecidocom

asuniversidadesmodernas.Delá,eleenviavaparaforapesquisadoresquevoltavamcomnovas

informaçõessobretodososassuntos,desociedadepolíticaabiologia.Eletambémfundouuma

importantebiblioteca.EmumafamosapinturadorenascentistaRafael,AescoladeAtenas,

Platãoapontaparacima,paraomundodasformas;Aristóteles,aocontrário,estácomamão

voltadaparaomundodiantedesi.

Platãoteriasecontentadoemfilosofardedentrodeumgabinete;Aristótelesqueria

explorararealidade,estaqueexperimentamospormeiodossentidos.Elerejeitouateoriadas

formasdeseuprofessor,poisacreditavaqueamaneiradeentenderqualquercategoriageralera

examinandoseusexemplosparticulares.Assim,paraentenderoqueéumgato,precisaríamos

observargatosreais,enãopensarabstratamentenaformadogato.

UmadasquestõesqueocupouareflexãodeAristótelesfoi:“Comodevemosviver?”.

SócratesePlatãojáhaviamfeitoessapergunta.Anecessidadederespondê-lafazpartedoque

levaaspessoasàfilosofiapelaprimeiravez.Aristótelestinhaumarespostaprópria,queemsua

versãosimplesera:“Buscandoafelicidade”.

Masoquesignifica“buscarafelicidade”?Hojemuitaspessoasentenderiamaexpressão

comomodosdecurtirasipróprias.Paravocê,talvezafelicidadeenvolvafériasnoexterior,ira

festasefestivaisdemúsicaoudesfrutarotempocomosamigos.Ouaindaagarraroseulivro

predileto,ouiraumagaleriadearte.Essascoisaspodematéseringredientesdeumaboavida,

masAristótelescertamentenãoacreditavaqueamelhormaneiradevivererasairembuscade

prazerescomoesses.Navisãodele,umaboavidanãoseresumiriaaisso.Apalavragregaque

Aristótelesusavaeraeudaimonia,quecostumasertraduzidacomo“prosperidade”ou“sucesso”,

enãocomo“felicidade”.Éalgoquevaialémdassensaçõesdeprazerquetemosaotomar

sorvetedemangaouacompanharavitóriadeumtimeesportivo.Aeudaimonianãodizrespeito

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amomentosefêmerosdealegria,ouacomonossentimos.Elaémaisobjetivadoqueisso.Trata-

sedeumtermobastantedifícildecompreender,poisestamosmuitoacostumadosapensarquea

felicidadedizrespeitoapenasaomodocomonossentimos.

Pensenumaplanta.Sevocêregá-la,colocá-laparatomarluzetalvezadubá-laumpouco,

elavaicrescereflorescer.Senegligenciá-la,amantivernoescuro,deixarqueinsetoscomam

suasfolhasouqueelaseque,elavaimurcharemorrer,ounomínimoparecerumaplantanada

viçosa.Ossereshumanostambémpodemflorescercomoasplantas,emboranós,diferentemente

delas,façamosescolhassobrenósmesmos:decidimosoquequeremosserefazer.

Aristótelesestavaconvencidodaexistênciadanaturezahumanaedequeosseres

humanos,comodizia,têmumafunção.Háummododevidaquecombinamaisconosco.Oque

nosdistanciadosanimaisedetodasasoutrascoisaséofatodepodermospensareraciocinar

sobreoquedevemosfazer.Apartirdisso,eleconcluiuqueomelhortipodevidaparaoser

humanoéaquelequeusaospoderesdarazão.

Surpreendentemente,Aristótelesacreditavaqueascoisassobreasquaisnãosabemosnada

–inclusiveosacontecimentosapósamorte–poderiamcontribuirparaanossaeudaimonia.Isso

soaestranho.Supondoquenãoexistavidaapósamorte,dequemaneiraascoisasqueacontecem

quandonãoestamosmaisporpertoafetamnossafelicidade?Bem,imaginequevocêtenhafilhos

equesuafelicidaderesida,emparte,nasesperançasparaofuturodascrianças.Se,deforma

lamentável,seufilhoadoeceseriamentedepoisdevocêtermorrido,asuaeudaimoniaterásido

afetadaporisso.NavisãodeAristóteles,suavidaterápiorado,mesmoquevocêrealmentenão

saibasobreadoençadoseufilhoenãoestejamaisvivo.Issoexplicitabemsuaideiadequea

felicidadenãoésóumaquestãodecomonossentimos.Afelicidade,nessesentido,dizrespeitoà

nossarealizaçãoglobalnavida,algoquepodeserafetadopeloqueacontececomaspessoasque

sãoimportantesparanós.Essarealizaçãotambémpodeserafetadapeloseventosquenão

controlamosenãoconhecemos.Ofatodeestarmosounãofelizesdependeparcialmentedaboa

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sorte.

Aquestãocentralé:“Oquepodemosfazerparaaumentarachancedaeudaimonia?”.A

respostadeAristótelesera:“Desenvolverotipocertodecaráter”.Precisamossentirostipos

certosdeemoçãonomomentocerto,eelesfarãocomquenoscomportemosbem.Emparte,isso

dependerádecomofomoscriados,poisamelhormaneiradedesenvolverbonshábitosépraticá-

losdesdecedo.Portanto,asortetambémtemoseupapelnisso.Bonspadrõesdecomportamento

sãovirtudes;padrõesruinssãovícios.

Pensenavirtudedacoragemduranteaguerra.Talvezumsoldadoprecisecolocara

própriavidaemriscoparasalvaralgunscidadãosdoataquedeumexército.Otemerárionãose

preocupacomaprópriasegurança.Eletambémpoderiaentrarnumasituaçãoperigosa,talvezaté

quandonãoprecisasse,masissonãoéaverdadeiracoragem,esimaaçãoimprudentedecorrer

riscos.Nooutroextremo,osoldadocovardenãoconseguesuperarseumedoosuficientepara

agirdemaneiraapropriadaeficaráparalisadodiantedoterrornomomentoexatoemquemaisse

precisadele.Osujeitovalenteoucorajoso,noentanto,tambémsentemedonessasituação,masé

capazdedominá-loeagir.Aristótelespensavaquetodavirtudeestáentredoisextremoscomo

esses.Aqui,acoragemestánametadedocaminhoentreatemeridadeeacovardia.Issocostuma

serchamadonadoutrinadeAristótelesdejustomeio.

AabordagemdeAristótelesàéticanãotemuminteresseapenashistórico.Muitos

filósofosmodernosacreditamqueeleestavacertoquantoàimportânciadedesenvolveras

virtudesequesuavisãodoqueéafelicidadeeraprecisaeinspiradora.Elesacreditamque,em

vezdeprocuraraumentarnossosprazeresnavida,deveríamostentarnostornarpessoasmelhores

efazeracoisacerta.Issoéoquefazavidacaminharbem.

TudoissolevaacrerqueAristótelesestavainteressadoapenasnodesenvolvimento

pessoaldoindivíduo.Maselenãoestava.Ossereshumanossãoanimaispolíticos,argumentava

ele.Precisamosconseguirvivercomosoutroseprecisamosdeumsistemadejustiçapara

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lidarmoscomoladomaisobscurodanossanatureza.Aeudaimoniasópodeseralcançadaem

relaçãoàvidaemsociedade.Nósvivemosjuntos,eprecisamosencontrarnossafelicidade

interagindobemcomaquelesquenoscercam,emumestadopolíticobemordenado.

Entretanto,agenialidadedeAristótelesteveumefeitocolaterallastimável.Eleeratão

inteligente,esuapesquisaeratãoabrangente,quemuitaspessoasqueliamsuasobras

acreditavamqueeleestavacertoemrelaçãoatudo.Issofoipéssimoparaoprogresso,epéssimo

paraatradiçãofilosóficainiciadacomSócrates.Durantecentenasdeanosdepoisdasuamorte,a

maioriadosestudiososaceitouasideiasaristotélicassobreomundocomoverdades

inquestionáveis.Paraeles,bastavaprovarqueAristóteleshaviaditoalgo.Issoéoquese

costumachamarde“verdadeporautoridade”–acreditarquealgotemdeserverdadeporque

umaimportantefigurade“autoridade”dissequeera.

Oquevocêpensaqueaconteceriasejogasse,deumlugaralto,doisobjetosdomesmo

tamanho,umdemadeiraeoutromaispesado,deferro?Qualdeleschegariaprimeiroaochão?

Aristótelespensavaqueomaispesadocairiamaisrápido.Naverdade,oqueacontecenãoé

isso.Elescaemnamesmavelocidade.Porém,comoAristótelesdissequeomaispesadocaía

maisrápido,praticamentetodosacreditaram,duranteaIdadeMédia,queissoseriaverdade.Não

eraprecisotermaisprovas.Paratestaressaafirmação,GalileuGalilei,noséculoXVI,

supostamentejogoudotopodatorredePisaumabolademadeiraeumaboladecanhão.Asduas

atingiramosolonomesmomomento.EntãoAristótelesestavaerrado.Masteriasidofácil

demonstrarissomuitotempoantes.

Confiarnaautoridadedeoutrapessoaeraalgocompletamentecontraoespíritoda

pesquisadeAristóteles.Etambéméalgocontraoespíritodafilosofia.Aautoridadeporsisó

nãoprovaabsolutamentenada.OsmétodosprópriosdeAristóteleseramainvestigação,a

pesquisaeolivreraciocínio.Afilosofiaflorescenodebate,napossibilidadedeestarerrada,na

contestaçãodevisõesenaexploraçãodealternativas.Felizmente,emtodasasépocashouve

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filósofosprontosparapensardemaneiracríticasobreoqueosoutrosdizemestarcerto.Um

filósofoquetentoupensardemaneiracríticasobreabsolutamentetudofoiocéticoPirro.

CAPÍTULO3

Nãosabemosnada

PIRRO

Ninguémsabenada–eessaafirmação,inclusive,éincerta.Nãodeveríamosconfiarnoque

acreditamosserverdade,poispoderíamosestarnosconfundindo.Épossívelquestionartudoe

duvidardetudo.Amelhoropção,portanto,émanteramenteaberta.Paranãosedecepcionar,

nãosecomprometa.Esseeraoprincipalensinamentodoceticismo,umafilosofiaquefoipopular

durantemuitosanosnaGréciaantigaedepoisemRoma.AocontráriodePlatãoeAristóteles,os

céticosmaisradicaisevitavammanteropiniõessólidasarespeitodoquequerquefosse.Ogrego

antigoPirro(c.365-c.270a.C.)foiomaisfamosodoscéticosetalvezomaisradicaldetodos

ostempos.Semdúvidanenhuma,eleteveumavidaímpar.

Talvezvocêacreditequesaibadetodosostiposdecoisas.Vocêsabequeestálendoneste

momento,porexemplo.Masoscéticoscontestariamisso.Penseemporquevocêacreditaque

estárealmentelendo,emvezdeestarimaginandoquelê.Épossívelteralgumacerteza?Você

aparentaestarlendo–éissoquelheparece.Mastalvezestejaalucinandoousonhando(ideiaque

RenéDescartesdesenvolveriamaisoumenosoitocentosanosdepois;verCapítulo11).A

insistênciadeSócratesemdizerquetudooquesabiaeraquesabiatãopoucotambémerauma

posiçãocética.MasPirroalevoumuitomaislonge,talvezatélongedemais.

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SetomarmoscomoverdadeirososrelatossobrePirro(etalvezdevêssemossercéticosem

relaçãoaelestambém),veremosqueelefezcarreiraemnãolevarnadaasério.Assimcomo

Sócrates,Pirronãodeixounadaescrito.Oquesabemossobreelevemdorelatofeitoporoutras

pessoas,muitasvezesséculosdepoisqueelemorreu.DiógenesLaércio,porexemplo,dizque

Pirrotornou-seumacelebridade,foinomeadosacerdoteemÉlida,ondemorava,eque,em

homenagemaele,osfilósofosnãopagavamimpostos.Nãotemoscomosaberaveracidade

dessasinformações,pormaisinteressantesquepareçamser.

Atéondesabemos,noentanto,Pirrocolocouseuceticismoempráticademaneirasbem

extraordinárias.Eleteriavividomuitopoucosenãotivesseamigosqueoprotegessem.Todo

céticoradicalprecisademuitasorteoudoapoiodepessoasmenoscéticassequiserviver

bastantetempo.

Vejamoscomoeleentendiaavida.Nãopodemosconfiartotalmentenossentidos,poisàs

vezeselesnosenganam.Éfácilcometerumerroemrelaçãoaoquevemosnoescuro,por

exemplo.Oquepareceumaraposapodesersóumgato.Oupodemosouviralguémnoschamar

quandonaverdadeéosomdoventonasárvores.Comonossossentidosnosenganamcom

frequência,Pirroresolveununcaconfiarneles.Elenãoexcluíaapossibilidadedeobter

informaçõesprecisaspelossentidos,masficavasempreatentoàquestão.

Dessemodo,enquantoamaioriadaspessoasinterpretariaavisãodabeiradeum

despenhadeirocomoumaforteevidênciadequeseriaumatolicecontinuarandandonaquela

direção,Pirronãoofaria.Elepoderiaestarsendoenganadopelossentidos,entãonãoconfiava

neles.Atémesmoasensaçãodoprópriopédobrando-senabeiradoabismoouasensaçãode

queocorpopendeparafrentenãooteriaconvencidodequeestavaprestesacairsobreasrochas

láembaixo.Elesequertinhaclarezadequecairsobreasrochasseriaruimparaasaúde.Como

poderiatercertezaabsolutadisso?Seusamigos,quepresumivelmentenãoeramtodoscéticos,

evitavamqueelesofresseacidentes;porém,senãoofizessem,Pirrocorreriaperigootempo

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inteiro.

Porquetermedodecãesselvagenssenãopodemostercertezadequeelesqueremnos

ferir?Sópelofatodeestaremlatindo,mostrandoosdentesecorrendoemnossadireçãonão

significaqueseremosmordidos.E,mesmoseoscãesnosmordessem,nãoquerdizerque

necessariamenteiriadoer.Porqueseimportarcomotráfegodoscarrosaoatravessaraestrada?

Podeserquenenhumdelesbataemnós.Quemsabeaocerto?Equediferençafaz,afinal,se

estamosvivosoumortos?Dealgumamaneira,Pirroconseguiulevaracaboessafilosofiada

totalindiferençaesuperoutodosospadrõesdecomportamentoetodasasemoçõeshumanas,

comunsenaturais.

Detodomodo,issoéoquenosdizalenda.Algumasdessashistóriasprovavelmenteforam

inventadaspararidicularizarsuafilosofia,maséimprovávelquetodassejamfictícias.Por

exemplo,ésabidoqueelesemantevetotalmentecalmoaonavegarporumadaspiores

tempestadesjátestemunhadas.Oventorasgavaasvelasempedaços,eondasgigantescas

quebravamsobreobarco.Todosaoredordeleestavamterrificados,enquantoelenãose

importounemumpouco.Comoasaparênciasmuitasvezesnosenganam,elenãopodiatercerteza

absolutadequecausariamalgummal.Pirroconseguiumanter-seempazatémesmoenquantoo

maisexperientedosmarinheirosentravaempânico.Eledemonstrouqueépossívelmanter-se

indiferente,inclusivenessascircunstâncias.Enissoháumapontadeverdade.

Quandoerajovem,PirrovisitouaÍndia.Talvezessaviagemtenhasidoafontede

inspiraçãodeseuestilodevidaincomum.AÍndiatemumalongatradiçãodeprofessores

espirituais,ougurus,quepassamporprivaçõesfísicasextremasequaseinacreditáveis:são

enterradosvivo,pendurampesosempartessensíveisdocorpoouvivemsemanassemcomer

paraatingirapazinterior.Certamente,aabordagemdePirroàfilosofiaaproximava-seàdeum

místico.Independentementedastécnicasqueusasseparaesseobjetivo,eledefatopraticavao

quepregava.Suaserenidadementalimpressionavaprofundamenteaspessoasqueocercavam.

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Elenãoseperturbavacomnadaporqueacreditavaqueabsolutamentetudoseresumiaauma

questãodeopinião.Senãohácomodescobriraverdade,entãonãohámotivosparaseaborrecer.

Porisso,podemosnosdistanciardetodasascrençasfortes,poiselassempreenvolvemailusão.

SetivéssemosconhecidoPirro,provavelmentepensaríamosqueeleeralouco.Etalvezele

fosse,decertomodo.Masseuscomportamentosevisõeseramconsistentes.Elepensariaque

nossasváriascertezaseramsimplesmenteirracionais,umobstáculoàpazdeespírito.Diriaque

estamosaceitandocoisasdemais.Écomosetivéssemosconstruídoumacasanaareia.Asbases

donossopensamentosãotãosólidasquantogostaríamosquefossemeprovavelmentenãonos

farãofelizes.

Pirroresumiudemodoimpecávelsuafilosofianaformadetrêsperguntasquedeveriam

serfeitasportodosaquelesquequeremserfelizes:

Comoascoisasrealmentesão?

Queatitudedeveríamosadotaremrelaçãoaelas?

Oqueacontecerácomaquelequenãotomaressaatitude?

Asrespostasdeleeramsimpleseiamdiretoaoponto.Emprimeirolugar,jamais

poderemossabercomoomundorealmenteé–issoestáalémdanossacapacidade.Ninguém

jamaisconheceráanaturezaúltimadarealidade,poisconhecê-laéimpossívelparaosseres

humanos.Entãoesqueçaisso.EssavisãovaitotalmentecontraateoriadasformasdePlatãoe

contraapossibilidadedequeosfilósofospoderiamconhecê-laspormeiodopensamento

abstrato(verCapítulo1).Emsegundolugar,ecomoresultadodaprimeiraresposta,não

deveríamosnoscomprometercomnenhumavisão.Comonãopodemosconhecernadacom

exatidão,deveríamossuspendertodososjuízoseviveravidadeumamaneiradescomprometida.

Tododesejoquetemossugereacrençadequeumacoisaémelhordoqueaoutra.Ainfelicidade

surgedofatodenãoconseguirmosoquequeremos.Masnãopodemossaberseumacoisaé

melhordoquetodasasoutras.Pirroacreditavaque,parasermosfelizes,devemosnoslibertar

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dosdesejosenãonosimportarcomamaneiracomoascoisasserevelam.Dessaforma,nada

afetaránossoestadodeespírito,queserádetranquilidadeinterior.Emterceirolugar,se

seguirmosesseensinamento,aconteceráconoscooseguinte:começaremosporficaremudecidos,

presumivelmenteporquenãosaberemosoquedizersobreascoisas.Comotempo,estaremos

livresdetodapreocupação.Issoéomelhorquepoderíamosesperardavida.Quaseuma

experiênciareligiosa.

Essaéateoria.PareceterfuncionadoparaPirro,emborasejadifícilverosresultados

delaacontecendocomamaiorpartedahumanidade.Poucosdenóschegarãoaatingirotipode

indiferençaqueelerecomendava.Enemtodosserãosortudosobastanteparateramigosqueos

salvemdospioreserros.Naverdade,setodosseguissemoconselhodePirronãorestariamais

ninguémparaprotegeroscéticospirrônicosdesipróprios,etodaaescoladafilosofiamorreria

muitorápidodepoisdeescorregarnabeiradadosprecipícios,jogar-senafrentedoscarrosou

seratacadaporcãesferozes.

OpontofracobásicodaabordagemdePirroéeleterpartidodo“Nãopodemosconhecer

nada”paraaconclusão“Portanto,devemosignorarnossosinstintosesentimentossobreoqueé

perigoso”.Nossosinstintosnossalvamdemuitosperigospossíveis.Elespodemnãoser

totalmenteconfiáveis,masissonãosignificaquedevemosignorá-los.Supõe-seatéqueopróprio

Pirrotenhaseafastadoquandofoimordidoporumcachorro:nãoconseguiusuperarporcompleto

suasreaçõesautomáticas,pormaisquequisesse.Dessemodo,experimentareexercero

ceticismopirrônicopareceperverso.Enãoestáclaroseviverdessamaneiraproduzapazde

espíritoquePirropensavaqueproduziria.Épossívelsercéticoemrelaçãoaoceticismode

Pirro.Podemosperguntarseatranquilidaderealmentesurgirásenosarriscarmostalcomoelese

arriscou.TalvezpossaterfuncionadocomPirro,masqueevidênciatemosdequefuncionará

conosco?Podemosnãoestar100%certosdequeumcãoferoznosmorderá,masfazsentidonão

arriscarsetivermos99%decerteza.

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NemtodososcéticosnahistóriadafilosofiaforamtãoextremadosquandoPirro.O

ceticismomoderadotemumalongatradiçãopautadaemquestionarsuposiçõeseexaminarcom

cuidadoasevidênciasdoqueacreditamos,sematentativadevivermoscomosetudofosse

colocadoemdúvidaotempotodo.Essetipodequestionamentocéticoestánocoraçãoda

filosofia.Todososgrandesfilósofosforamcéticosnessesentido,queéoopostododogmatismo.

Umsujeitodogmáticotemmuitaconfiançadequeconheceaverdade.Osfilósofoscontestamo

dogma,perguntamporqueaspessoasacreditamnoqueacreditam,quetiposdeevidênciadão

suporteasuasconclusões.IssofoioqueSócrateseAristótelesfizeram,eéoqueosfilósofos

atuaistambémfazem.Maselesnãofazemissoporamoraoqueédifícil.Oobjetivodoceticismo

filosóficomoderadoéchegarmaispertodaverdade,ouaomenosrevelarcomoépoucooque

sabemosoupodemossaber.Vocênãoprecisacorreroriscodedespencardeumabismoparaser

essetipodecético,masprecisaestarpreparadoparaperguntarepensarcriticamentenas

respostasdaspessoas.

EmboraPirropregassequenoslibertássemosdetodasaspreocupações,amaioriadenós

nãoconseguiuselivrardelas.Umadessaspreocupaçõesbásicaséofatodequetodosnós

morreremos.Epicuro,outrofilósofogrego,tevesugestõesbrilhantesdecomopodemoslidarcom

essaquestão.

CAPÍTULO4

OJardim

EPICURO

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Imagineoseuprópriofuneral.Comoeleserá?Quemestarálá?Oqueaspessoasdirão?Você

deveimaginá-lodesuaperspectiva,comoseaindaestivesseláobservandoosacontecimentos,a

partirdeumlugarespecífico,talvezdecima,oudeumacadeirapertodequemsofresuaperda.

Ora,algumaspessoasacreditamnafortepossibilidadedeque,depoisdamorte,sobrevivemosao

corpofísicocomoumaespéciedeespíritoquetalvezsejacapazdeveroqueaconteceneste

mundo.Porém,paraaquelesdenósqueacreditamqueamorteéofinal,háumverdadeiro

problemanisso.Todavezquetentamosimaginarquenãoestamosmaisnestemundo,nóso

fazemosimaginandoqueestamoslá,observandooqueaconteceenquantolánãoestamos.

Quervocêconsigaounãoimaginarsuaprópriamorte,parecebastantenaturalsentirao

menosumpoucodemedodanãoexistência.Quemnãotemeriaaprópriamorte?Sehádeexistir

algumacoisaquenosdeixeaflitos,certamenteéamorte.Pareceperfeitamenterazoávelnos

preocuparmosemnãoexistir,mesmoqueissovenhaaacontecerdaquiamuitosanos.Éalgo

instintivo.Agrandemaioriadaspessoasjápensouseriamentesobreisso.

Epicuro(341-270a.C.),antigofilósofogrego,afirmavaqueomedodamorteerauma

perdadetempoebaseava-seemumafalsalógica.Tratava-sedeumestadodeespíritoque

deveriasersuperado.Sepensarmosseriamentesobreamorte,nãodeveremostermedonenhum

dela.Umavezquetivermoscompreendidodefatooqueestamospensando,apreciaremosmuito

maisonossotempoaqui–oque,paraEpicuro,eramuitoimportante.Oobjetivodafilosofia,

acreditavaele,eratornaravidamelhor,ajudaraencontrarafelicidade.Algumaspessoas

considerammórbidorefletirsobreaprópriamorte,masparaEpicuroeraumamaneiradetornar

avidamaisintensa.

EpicuronasceunailhagregadeSamos,nomarEgeu.Passouamaiorpartedavidaem

Atenas,ondesetornouumafiguraadmirada,atraindoumgrupodeestudantesqueviviamcomele

emumacomunidade.Nogrupohaviamulhereseescravos–umasituaçãoraranaantigaAtenas.

Issonãofaziadeleumsujeitobenquisto,excetoparaseusseguidores,quepraticamenteo

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adoravam.Eledirigiaessaescoladefilosofiaemumacasacomumjardim,queporissoficou

conhecidacomoOJardim.

Assimcomomuitosfilósofosantigos(ealgunsmodernos,comoPeterSinger:verCapítulo

40),Epicuroacreditavaqueafilosofiadeveriaserprática.Eladeveriamudaromodocomo

vivemos.Portanto,eraimportantequeaquelesquesejuntassemaelenoJardimcolocassema

filosofiaemprática,emvezdesimplesmenteaprenderemsobreela.

ParaEpicuro,achavedavidaerareconhecerquetodosnósbuscamosoprazer.E,oqueé

maisimportante,evitamosadorsemprequepodemos.Issoéoquenosmove.Eliminaro

sofrimentoeaumentarafelicidadetornaráavidamelhor.Amelhormaneiraparaviver,então,

seriaesta:terumestilodevidabastantesimples,sergentilcomopróximoecercar-sede

amigos.Dessemodo,seremoscapazesdesatisfazeramaiorpartedosnossosdesejos.Não

seremosdeixadoscomoquererdealgoquenãopodemoster.Nãoénadabomteraânsia

desesperadaporumamansãoquandonãotemosdinheiroparacomprá-la.Nãopodemosperdera

vidainteiratrabalhandoparaconseguiraquiloqueprovavelmenteestáalémdonossoalcance.É

muitomelhorterumavidasimples.Senossosdesejosforemsimples,serãofacilmentesatisfeitos

eteremostempoeenergiaparagozardascoisasqueimportam.EssaeraareceitadeEpicuro

paraafelicidade,eelafazmuitosentido.

Talensinamentoeraumaespéciedeterapia.OobjetivodeEpicuroeracurarseusalunos

dadormentalelevá-losacreroquantoadorfísicapodiatornar-sesuportávelcasoelesse

lembrassemdeprazerespassados.Eleafirmavaqueosprazeresnãosãoagradáveissóno

momentoemqueacontecem,mastambémquandosãolembrados,eporissoseusbenefícios

podemserduradouros.Quandoestavamorrendoeumpoucoindisposto,eleescreveuparaum

amigosobrecomoconseguiusedistrairdadoençalembrando-sedoprazerdasúltimasconversas

dosdois.

Issoébastantediferentedoqueapalavra“epicurista”significahoje.Équaseooposto.

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Um“epicurista”éaquelequeadoracomidasrefinadas,aquelequesedeleitanoluxoenaluxúria.

Epicurotinhapredileçõesmuitomaissimplesdoqueessesignificadosugere.Eleensinavaa

necessidadedesermoderado–cederaosapetitesgananciosossócriariacadavezmaisdesejos

e,nofinal,gerariaaangústiamentaldeumdesejonãorealizado.Essetipodevidadequerer

sempremaisdeveriaserevitado.Eleeseusseguidoresalimentavam-sedepãoeáguaemvezde

comidasexóticas.Quandosecomeçaabeberumvinhocaro,muitoembreveacaba-sequerendo

bebervinhosaindamaiscaros,oquegeraumaarmadilhadequerercoisasquenãosepodeter.

Apesardisso,osinimigosdeEpicuroafirmavamque,nacomunidadedoJardim,osepicuristas

passavamamaiorpartedotempocomendo,bebendoefazendosexounscomosoutrosemuma

orgiainterminável.Foidaíquesurgiuosignificadodeturpadode“epicurista”.Seosseguidores

deEpicurorealmentefizessemisso,estariamemcompletodesacordocomosensinamentosdo

mestre.Émaisprovável,portanto,queessefosseapenasumrumormalicioso.

UmaatividadeàqualEpicurocertamentededicouamaiorpartedoseutempofoiaescrita.

Eleeraprolífico.Registrossugeremqueeleescreveutrezentoslivrosemrolosdepapiro,

emboranenhumdelestenhasobrevivido.Oquesabemossobreeleprovémbasicamentede

anotaçõesescritasporseusseguidores.Elessabiamoslivrosdomestredecor,mastambém

transmitiramseusensinamentosporescrito.Algunsdessespergaminhossobreviveramnaforma

defragmentos,preservadosnacinzavulcânicaquecaiuemHerculano,pertodePompeia,quando

omonteVesúvioentrouemerupção.Outrafonteimportantedeinformaçõessobreos

ensinamentosdeEpicuroéolongopoemaSobreanaturezadascoisas,escritopelopoetae

filósoforomanoLucrécio.CompostomaisdeduzentosanosdepoisdamortedeEpicuro,opoema

sintetizaosensinamentosbásicosdesuaescola.

Então,voltandoàperguntaqueEpicurofez,porquetemeramorte?Amortenãoéalgoque

aconteceanós.Quandoacontece,nãoestamoslá.LudwigWittgenstein,filósofodoséculoXX,

repetiuessavisãoquandoescreveuemseuTractatusLogico-Philosophicusque“amortenãoé

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umacontecimentodavida”.Aideiaaquiéqueosacontecimentossãocoisasque

experimentamos,masamorteéaremoçãodapossibilidadedaexperiência,enãoalgumacoisa

daqualpoderíamosterciência,oualgoporquepassaríamosdealgumamaneira.

Epicurosugeriuque,quandoimaginamosanossaprópriamorte,amaioriadenóscometeo

errodepensarquealgumacoisadenósrestaráparasentiroqueaconteceaocorpo.Masesseé

umentendimentoequivocadosobreaquiloquesomos.Estamosligadosaumcorpoindividual,

nossacarneenossosossos.ParaEpicuro,nósconsistimosdeátomos(emboraoquequisesse

dizercomotermofosseumpoucodiferentedoquedefinemoscientistasmodernos).Namorte,

quandoessesátomosseseparam,osujeitodeixadeexistircomoindivíduodotadode

consciência.Aindaquealguémpudessecuidadosamentereconstruirmeucorpojuntandotodosos

pedaçosedepoislhedevolvesseavida,nãoterianadaavercomigo.Onovocorpovivonão

seriaeu,apesardeseparecercomigo.Eunãosentiriaasdoresdele,pois,quandoocorpodeixa

defuncionar,nadapodetrazê-lodevoltaàvida.Acadeiadeidentidadeteriasidoquebrada.

Epicuropensavaqueumaoutramaneiradecurarseusseguidoresdomedodamorteera

apontandoadiferençaentreoquesentimossobreofuturoeoquesentimossobreopassado.Nós

nosimportamoscomum,masnãocomooutro.Pensenopassadoantesdoseunascimento.Houve

todoumtempoduranteoqualvocênãoexistiu.Essepassadonãoserefereapenasaotempoem

quevocêestevenoúterodasuamãe,ouaopontoantesdevocêserconcebidoeque,paraosseus

pais,eraapenasumapossibilidade,massimatrilhõesdeanosantesdevocêsurgir.Emgeral,

nãonospreocupamospornãotermosexistidodurantetodosessesmilêniosantesdonosso

nascimento.Porquedeveríamosnosimportarcomtodoessetempoduranteoqualnãoexistimos?

Então,seissoforverdade,porquenosimportartantocomtodaaeternidadedanãoexistência

apósamorte?Nossopensamentoéassimétrico.Todosnóstemosatendênciadenospreocupar

comotempodepoisdamorte,enãocomotempoantesdonascimento,masEpicuroconsiderava

issoumerro.Quandoentendermosesseerro,começaremosapensarnotempoquesucedeamorte

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talcomopensamosnotempoqueaprecede.Portanto,nãoseriaumagrandepreocupação.

Algumaspessoasrealmentesepreocupamemviraserpunidasdepoisdamorte.Epicuro

tambémdescartavaessapreocupação.Osdeusesnãoestãoemnadainteressadosnasuacriação,

diziaelecomsegurançaparaseusseguidores.Elesexistemseparadosdenósenãoseenvolvem

comomundo.Entãodevemosnossentirbemcomisso.Estaéacura–acombinaçãodesses

argumentos.Sedercerto,nósnossentiremosmuitomaisrelaxadosemrelaçãoànossafuturanão

existência.Epicuroresumiutodaasuafilosofianoseguinteepitáfio:

“Eunãoera;fui;nãosoumais;nãomeimporto.”

Sevocêacreditaquenãopassamosdeseresfísicos,compostosdematéria,equenãohá

sériosriscosdesermospunidosdepoisdamorte,entãoébempossívelqueoraciocíniode

Epicuroconvença-odequenãohámotivosparatemeramorte.Talvezvocêaindasepreocupe

comoprocessodamorte,poiselecostumaserdolorosoeédefinitivamentevivido.Issoé

verdade,mesmoquesejairracionaldesgastar-serefletindosobreamortepropriamentedita.No

entanto,lembre-sedequeEpicuroacreditavaqueboasmemóriaspodemaliviarador,oque

significaqueeletinhaumarespostaatéparaisso.Porém,sevocêacreditaserumaalmaemum

corpo,equeessaalmapodesobreviveràmortecorpórea,éimprovávelquelhesirvaacurade

Epicuro:vocêconseguiráimaginaracontinuidadedasuaexistênciamesmodepoisqueseu

coraçãoparardebater.

Osepicuristasnãoestavamsozinhosaopensarnafilosofiacomoumtipodeterapia:a

maioriadosfilósofosgregoseromanospensavaassim.Osestoicos,emparticular,eram

conhecidosporensinarcomoserpsicologicamenteinflexíveldiantedeacontecimentosinfelizes.

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CAPÍTULO5

Aprendendoanãoseimportar

EPITETO,CÍCERO,SÊNECA

Secomeçaachoverquandoestamosprestesasairdecasa,éuminfortúnio.Mas,setemosde

sair,alémdecolocarmosumcasaco,pegarmosumguarda-chuvaoucancelarmosocompromisso,

nãohámuitooquepossamosfazer.Nãopodemosfazerachuvaparar,nãoimportaoquanto

quisermos.Deveríamosnosaborrecercomisso?Oudeveríamossimplesmenteserfilosóficos?

“Serfilosófico”nãosignificanadaalémdeaceitaroquenãosepodemudar.Eoquedizerdo

inevitávelprocessodeenvelheceroudabrevidadedavida?Comonossentiríamosarespeito

dessascaracterísticasdacondiçãohumana?Damesmamaneira?

Quandoaspessoasdizemquesão“filosóficas”emrelaçãoaoquelhesacontece,estão

usandoapalavracomoosestoicosateriamusado.Onome“estoico”vemde“stoa”,umpórtico

pintadoemAtenasondeessesfilósofoscostumavamencontrar-se.Umdosprimeirosdelesfoi

ZenãodeCítio(334-262a.C.).Osprimeirosestoicosgregostinhamumagrandevariedadede

concepçõesdeproblemasfilosóficossobrerealidade,lógicaeética,masficarammais

conhecidosporsuasvisõesarespeitodocontrolemental.Suaideiabásicaeraadequesó

deveríamosnospreocuparcomascoisasquepodemosmudarenãodeveríamosnosperturbar

commaisnada.Assimcomooscéticos,osestoicostinhamatranquilidadedeespíritocomoalvo.

Mesmoquandosedeparassecomeventostrágicos,comoamortedeumentequerido,oestoico

deveriapermanecerimpassível.Nossaatitudeemrelaçãoaoqueaconteceestádentrodolimite

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donossocontrole,aindaqueoqueaconteçanãoesteja.

Aideiadequesomosresponsáveispeloquesentimosepensamoseracentralparao

estoicismo.Podemosescolhercomoseránossareaçãoàboaeàmásorte.Algumaspessoas

pensamqueasemoçõessãocomooclima.Osestoicos,aocontrário,pensavamqueaquiloque

sentimosarespeitodeumasituaçãooudeumeventoéumaquestãodeescolha.Asemoções

simplesmentenãoacontecemconosco.Nãotemosdenossentirtristesquandoalgoquequeremos

dáerrado;nãotemosdesentirraivaquandoalguémnosengana.Elesacreditavamqueas

emoçõesobscureciamoraciocínioecausavamdanosaojuízo.Nãodeveríamossócontrolá-las,

mas,semprequepossível,eliminá-lasporcompleto.

Epiteto(55-135d.C.),umdosúltimosestoicosmaisfamosos,haviasidoescravo.

Suportoumuitasadversidadeseconheciaadoreafome–mancavaporcontadeumapancada

muitofortequelevou.Elesevaleudaprópriaexperiênciaparadeclararqueamentepode

permanecerlivremesmoquandoocorpoéescravizado.Eissonãoeraapenasumateoria

abstrata.Seusensinamentosincluíamaconselhamentopráticosobrecomolidarcomadoreo

sofrimento.Emsuma:“Nossospensamentosdependemdenós”.Essafilosofiaserviude

inspiraçãoparaonorte-americanoJamesB.Stockdale,pilotodecombate,quefoiderrubadono

nortedoVietnãduranteaGuerradoVietnã.Stockdalefoitorturadomuitasvezesemantidonuma

solitáriadurantequatroanos.Eleconseguiusobreviveraplicandooqueselembravadeter

aprendidodoensinamentodeEpitetoemumcursoquefeznafaculdade.Enquantodesciade

paraquedassobreoterritórioinimigo,decidiumanter-seimpassíveldiantedetudoqueo

fizessem,nãoimportandooquãoinóspitofosseotratamento.Comonãopoderiamudara

situação,nãodeixariaqueelaoafetasse.Oestoicismodeuaeleaforçaparasuperaradorea

solidãoqueteriamdestruídoamaioriadaspessoas.

EssafilosofiadatenacidadecomeçounaGréciaantiga,masfloresceunoImpérioRomano.

DoisescritoresimportantesqueajudaramaespalharoensinamentoestoicoforamMarcoTúlio

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Cícero(106-43a.C.)eLúcioAneuSêneca(1a.C.-65d.C.).Abrevidadedavidaea

inevitabilidadedoenvelhecimentoeramassuntosqueparticularmentedespertavamointeresse

dosdois.Elesreconheceramqueoenvelhecimentoéumprocessonaturalenãotentarammudaro

quenãopoderiasermudado.Noentanto,elestambémdefendiamquedevíamosfazerdonosso

tempoaquiomelhordostempos.

Cíceropareciadesdobrar-semaisdoqueamaioriadaspessoas:eraadvogadoepolítico,

alémdefilósofo.EmseulivroSobreavelhice,eleidentificouquatroproblemasprincipaisno

envelhecimento:émaisdifíciltrabalhar,ocorpotorna-semaisfraco,acaba-seaalegriados

prazeresfísicoseamorteestápróxima.Envelheceréinevitável,mas,comoargumentavaCícero,

podemosescolhercomoreagiraesseprocesso.Deveríamosreconhecerqueodeclínionaidade

avançadanãoprecisatornaravidaintolerável.Primeiro,osvelhospodemganharmaisfazendo

menosporcontadaexperiência,entãoqualquertrabalhoquefaçampodesermaiseficaz.Se

corpoementeforemexercitados,nãonecessariamenteseenfraquecerãodemodoradical.E,

mesmoquandoosprazeresfísicostornam-semenosagradáveis,osidososconseguempassar

maistemponacompanhiadeamigoseconversando,oqueébastantecompensador.Porfim,ele

acreditavaqueaalmaviviaparasempre,entãoosidososnãodeveriamsepreocuparcoma

morte.AatitudedeCíceroeraadequedeveríamostantoaceitaroprocessonaturaldo

envelhecimentoquantoreconhecerqueaatitudequetomamosdiantedelenãoprecisaser

pessimista.

Sêneca,outrograndedifusordasideiasestoicas,adotouumalinhasemelhantequando

escreveusobreabrevidadedavida.Nãosecostumaouviraspessoasreclamandoqueavidaé

longademais.Amaioriadizqueelaécurtademais.Hámuitacoisaparasefazerempouco

tempo.NaspalavrasdogregoantigoHipócrates,“Avidaécurta,aarteélonga”.Osidososque

conseguemperceberamorteaproximando-segeralmentedesejamapenastermaisalgunsanos

paraqueconsigamrealizaroquequeriamnavida.Porém,muitasvezesjáétardeeelesacabam

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entristecendo-secomoquepoderiateracontecido.Anaturezaécruelaesserespeito.Justamente

quandoestamosatingindooaugedascoisas,morremos.

Sênecanãoconcordavacomessavisão.Eletinhaváriostalentos,comoCícero,e

encontravatempoparaserdramaturgo,políticoeumbem-sucedidohomemdenegócios,alémde

filósofo.Paraele,oproblemanãoeraofatodenossavidasercurta,massimoquantousamoso

tempoquetemosdemaneiratãoruim.Maisumavez,oquemaisimportavaparaeleeraanossa

atitudeemrelaçãoaosaspectosinevitáveisdacondiçãohumana.Nãodeveríamosnosaborrecer

poravidasercurta,massimfazeromelhordela.Elechamouatençãoparaofatodequealgumas

pessoasviveriamcemanosdaformamaistranquilapossívele,mesmoassim,talvez

reclamassemqueavidaécurtademais.Naverdade,avidaélongaosuficientepararealizar

muitascoisas,desdequesefaçamasescolhascertas:senãoadesperdiçarmosemtarefasinúteis.

Algumaspessoasperseguemariquezacomtantaenergiaquesequertêmtempoparafazeroutra

coisa;outrascaemnaarmadilhadededicartodootempolivreàbebidaeaosexo.

Seformosdescobririssosomentenavelhice,serátardedemais,pensavaSêneca.Ter

rugasecabelosbrancosnãogarantequeumidosopassouamaiorpartedotempofazendoas

coisasvaleremapena,aindaquealgumaspessoasajamequivocadamentecomoseofizessem.

Alguémqueiçaasvelasdeumbarcoeassimsedeixalevarpelastempestadesnãoestevenuma

viagem;apenasfoijogadodeumladoparaooutro.Omesmoacontececomavida.Estarforade

controle,sercarregadopelosacontecimentossemtertempoparaasexperiênciasmaisvaliosase

significativas,ébemdiferentedeviververdadeiramente.

Umdosbenefíciosdeterumavidaboaéquenãoprecisaremostermedodenossas

memóriasquandoenvelhecermos.Seperdermosnossotempo,nãovamosquererpensar,aoolhar

paratrás,emcomopassamosnossavida,poisprovavelmenteserádolorosodemaiscontemplar

todasasoportunidadesqueperdemos.Époressarazãoquetantaspessoaspreocupam-secom

trabalhostriviais,acreditavaSêneca–éumaformadeevitaraverdadeemrelaçãoàquiloque

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nãoconseguiramfazer.Eleincitavaosleitoresaseretiraremdamultidãoeevitaremseesconder

desimesmosporestaremocupados.

SegundoSêneca,como,então,deveríamosviver?Oidealestoicoeravivercomoum

recluso,longedasoutraspessoas.Sênecadizia,combastantediscernimento,queamaneiramais

fecundadeexistireraestudandofilosofia.Eraumaformadeserverdadeiramentevivo.

AvidadeSênecadeuaeleinúmeraschancesdepraticaroquepregava.Em41d.C.,por

exemplo,foiacusadodeterumarelaçãoamorosacomairmãdoimperadorCaioCésar

(Calígula).Nãosesabeaocertoseorelacionamentoaconteceuounão,masoresultadoéqueele

foienviadoparaoexílioemCórsega,ondepassouoitoanos.Depoisasortevirouparaoseu

ladomaisumavezeelefoichamadodevoltaaRomaparasetornarotutordeummeninode

dozeanos,ofuturoimperadorNero,dequemposteriormentefoiredatordediscursose

conselheiropolítico.Noentanto,essarelaçãoacaboudeformaterrível:outraviradadodestino.

NeroacusouSênecadefazerpartedeumaconspiraçãoparamatá-lo.Dessavez,nãohouve

escapatória.NeropediuqueSênecasesuicidasse.Recusarestavaforadequestão,eolevariaà

execuçãodetodomodo.Resistirseriainútil.Eletirouaprópriavidae,fielaoseuestoicismo,

chegouaofimtranquiloeempaz.

Umadasmaneirasdeencararmosoprincipalensinamentodosestoicosépensá-locomo

umtipodepsicoterapia,umasériedetécnicaspsicológicasquetornarãonossavidamais

tranquila.Livre-sedasemoçõesdesagradáveisquemaculamopensamentoetudoserámuito

maisfácil.Infelizmente,noentanto,mesmoquevocêconsigaacalmarasemoções,podeacabar

descobrindoqueperdeualgodeimportante.Oestadodeindiferençadefendidopelosestoicos

podediminuirainfelicidadediantedoseventosquenãoconseguimoscontrolar.Contudo,talvez

tenhamosdepagaropreçodenostornarmosfrios,insensíveisetalvezatémenoshumanos.Se

esseforopreçodatranquilidade,talvezsejaaltodemais.

Emboratenhasidoinfluenciadopelafilosofiaantiga,Agostinho,umdosprimeiroscristãos

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cujasideiasveremosaseguir,estavalongedeserumestoico.Eraumhomemdegrandespaixões,

comumaprofundapreocupaçãosobreomalquevianomundoeumdesejodesesperadode

entenderDeuseseusplanosparaahumanidade.

CAPÍTULO6

Somosmarionetesdequem?

SANTOAGOSTINHO

Agostinho(354-430)queriadesesperadamenteconheceraverdade.Comocristão,acreditavaem

Deus.Massuacrençadeixoumuitasperguntassemresposta.OqueDeusqueriaqueelefizesse?

Comodeveriaviver?Noquedeveriaacreditar?Elepassouamaiorpartedasuavidapensandoe

escrevendosobreessasquestões.Osriscoserammuitoaltos.Paraaquelesqueacreditamna

possibilidadedepassaraeternidadenoinferno,cometerumerrofilosóficopareceter

consequênciasterríveis.ComopensavaopróprioAgostinho,elepoderiaacabarqueimandono

enxofreparasempreseestivesseerrado.Umdosproblemassobreosquaiselesedebruçavaera

porqueDeuspermitiuomalnomundo.Arespostadeleaindaépopularentremuitoscrentes.

Noperíodomedieval,aproximadamentedoséculoVaoséculoXV,afilosofiaeareligião

estiveramintimamenteligadas.Osfilósofosmedievaisestudaramosfilósofosgregosantigos,

comoPlatãoeAristóteles,masadaptaramsuasideias,aplicando-asasuasprópriasreligiões.A

maioriadessesfilósofoseracristã,porémhouveimportantesfilósofosjudeuseárabes,como

MaimônideseAvicena.Agostinho,quemuitotempodepoisfoicanonizado,destaca-secomoum

dosmaiores.

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AgostinhonasceuemTagaste,nortedaÁfrica,ondehojeéaArgélia,masnaépocaainda

faziapartedoImpérioRomano.SeunomeverdadeiroeraAurélioAgostinho(emlatim,Aurelius

Augustinus),emborahojesejapraticamenteconhecidoapenascomoSantoAgostinhoou

AgostinhodeHipona(porcausadaúltimacidadeemqueviveu).

AmãedeAgostinhoeracristã,enquantoopaiseguiaumareligiãolocal.Aostrintaanos,

depoisdasloucurasquefeznaadolescênciaenoiníciodaidadeadulta,quandoteveumfilho

comumaamante,Agostinhoconverteu-seaocristianismoeacaboutornando-sebispodeHipona.

ÉsabidoqueelepediuaDeusparadeixardeterdesejossexuais,“masnãoagora”,poisainda

apreciavamuitoosprazeresmundanos.Emumestágiomaisavançadodavida,Agostinho

escreveumuitoslivros,incluindoConfissões,AcidadedeDeusequasemaiscemoutros,

baseando-sefortementenasabedoriadePlatão,masconferindo-lhetraçoscristãos.

AmaioriadoscristãospensaqueDeustempoderesespeciais:queeleouelaéosupremo

bem,sabetudoepodefazertudo.Tudoissofazpartedadefiniçãode“Deus”,quenãoseriaDeus

semessasqualidades.Deusédescritodeformassemelhantesemmuitasoutrasreligiões,mas

Agostinhosótinhainteressenaperspectivacristã.

QuemacreditanesseDeusteráaindadeadmitirqueexistemuitosofrimentonomundo.

Seriamuitodifícilnegarisso.Partedessesofrimentoéoresultadodomalnatural,como

terremotosedoenças.Partedeve-seaomalmoral:omalcausadopelossereshumanos.

Assassinatoetorturasãodoisexemplosclarosdomalmoral.MuitoantesdeAgostinhocomeçar

aescrever,ofilósofogregoEpicuro(verCapítulo4)reconheceuqueissoapresentaum

problema.ComopoderiaumDeusbometodo-poderosotoleraromal?SeDeusnãopode

impedirqueissoaconteça,entãonãopodeserverdadeiramentetodo-poderoso.Hálimitesnoque

elepodefazer.Mas,seDeusétodo-poderosoeparecenãoquererdeteromal,comopodeser

eleosupremobem?Issonãopareciafazersentido,eéalgoqueconfundemuitaspessoasaté

hoje.Agostinhoconcentrou-senomalmoral.PercebeuqueaideiadeumDeusquesabedo

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acontecimentodessetipodemalenãofaznadaparaevitá-loédifícildeentender.Elenãose

satisfaziacomaideiadequeDeusagedemaneiramisteriosa,queestáalémdacompreensão

humana.Elequeriarespostas.

Imagineumassassinoprestesamatarsuavítima;eleestádiantedelacomumafacaafiada.

Umatoverdadeiramentemauestáprestesaacontecer.Contudo,sabemosqueDeusépoderosoo

suficienteparadeteressaação.Paraisso,bastariamalgumasalteraçõesmínimasnosneurônios

dopretensoassassino.OuDeuspoderiadeixartodasasfacasmoleseborrachudastodavezque

alguémtentasseusá-lascomoarmamortal.Dessemodo,asfacasresvalariamnavítima,e

ninguémficariaferido.Deustemdesaberoqueestáacontecendo,poiselesabeabsolutamente

tudo.Nadalheescapa.Etemdenãodesejarqueomalaconteça,poisissofazpartedoque

significaserobemsupremo.Mesmoassim,assassinosmatamsuasvítimas.Facasdeaçonão

viramborracha.Nãohánenhumlampejodeluz,nenhumtrovão,aarmanãocaimilagrosamente

damãodoassassino,nemoassassinomudadeideianoúltimominuto.Oqueacontece,então?

Esteéoclássicoproblemadomal,oproblemadeexplicarporqueDeuspermitetais

acontecimentos.Presume-seque,setudovemdeDeus,entãoomaldevevirdeDeustambém.Em

certosentido,Deusdeveterdesejadoqueissoacontecesse.

Quandoeramaisjovem,AgostinhotinhaumamaneiradeevitaracrençadequeDeus

queriaqueomalacontecesse.Eleeramaniqueísta.Omaniqueísmofoiumareligiãoquesurgiuna

Pérsia(hoje,Irã).OsmaniqueístasacreditavamqueDeusnãoeraonipotente.Aocontrário,havia

umalutaeternaentreforçasidênticas,obemeomal.Portanto,nessavisão,DeuseSatãestavam

presosnumabatalhacontínuapelocontrole.Osdoiseramextremamentefortes,masnenhumdeles

erapoderosoosuficienteparadestruirooutro.Emdeterminadoslugaresedeterminados

momentos,omalsesobressaía,masnuncadurantemuitotempo.Abondadeacabariaretornando,

triunfante,maisumavez.Issoexplicavaporqueessascoisasterríveisaconteciam:omalé

provenientedasforçasobscuras,eabondade,dasforçasdaluz.

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Osmaniqueístasacreditavamqueabondadesurgiadentrodenós,queelavinhadaalma.

Jáomalvinhadocorpo,comtodososseuspontosfracos,desejoseatendênciadenoslevar

paraomaucaminho.Issoexplicavaporqueaspessoas,àsvezes,voltavam-separaasmásações.

Oproblemadomalnãoeratãograndeparaosmaniqueístasporqueelesnãoaceitavamaideiade

queDeusfossetãopoderosoapontodecontrolartodososaspectosdarealidade.SeDeusnão

tinhapodersobretudo,então,alémdenãoserresponsávelpelaexistênciadomal,ninguém

poderiaculpá-lopornãoconseguirevitaromal.Osmaniqueístasteriamexplicadoasaçõesdo

assassinocomoforçasdastrevasagindodentrodele,levando-onadireçãodomal.Essasforças

seriamtãopoderosasnoindivíduoqueasforçasdaluznãopoderiamderrotá-las.

Emumaidademaisavançada,Agostinhorejeitouaabordagemmaniqueísta.Elenão

conseguiaentenderporquealutaentreobemeomalseriainterminável.PorqueDeusnão

venciaabatalha?Nãoeracertoqueasforçasdobemerammaisfortesqueasdomal?Pormais

queoscristãosaceitassemapossívelexistênciadeforçasdomal,elasnuncasãotãograndes

quantoaforçadeDeus.MasseDeuseraverdadeiramentetodo-poderoso,comoAgostinho

passouaacreditar,osproblemasdomalpermaneceriam.PorqueDeuspermitiaomal?Porque

haviatantomal?Asoluçãonãoénadafácil.Agostinhopensouexaustivamentesobreesses

problemas,esuaprincipalsoluçãobaseou-senaexistênciadolivre-arbítrio:acapacidade

humanadedecidiroquefazer.Esseargumentocostumaserchamadodedefesadolivre-arbítrioe

trata-sedeumateodiceia–atentativadeexplicaredefenderaideiadecomoumDeusbom

permitiaosofrimento.

Deusconcede-nosolivre-arbítrio.Vocêpodeescolher,porexemplo,sevaiounãolera

próximafrase.Estaéasuaescolha.Senãoháninguémforçandovocêacontinuarlendo,então

vocêélivreparaparar.Agostinhoconsideravaqueterlivre-arbítrioébom,jáquenospermite

agirmoralmente.Nóspodemosdecidirserbons;paraele,issosignificavaseguiros

mandamentosdeDeus,principalmenteosdezmandamentos,alémdo“amoraopróximo”pregado

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porJesusCristo.Porém,aconsequênciadetermoslivre-arbítrioéquepodemosdecidirfazero

mal.Podemosserdesencaminhadosepraticarmásações,comomentir,roubar,ferirouatématar

aspessoas.Issocostumaacontecerquandonossasemoçõessubjugamarazão.Desenvolvemos

fortesdesejosporobjetosepordinheiro.CedemosàluxúriaesomosdistanciadosdeDeuse

seusmandamentos.Agostinhoacreditavaqueonossoladoracionaldeveriamanteraspaixões

sobcontrole,visãoqueelecompartilhavacomPlatão.Ossereshumanos,aocontráriodos

animais,têmopoderdarazãoedeveriamusá-lo.SeDeustivessenosprogramadodemodoa

sempreescolhermosobemsobreomal,nãocausaríamosnenhumdano,mastambémnão

seríamoslivresenãopoderíamosusararazãoparadecidiroquefazer.Deuspoderiater-nos

feitodessemodo.Agostinhoargumentavaquefoimuitomelhortermosescolha.Docontrário,

seríamoscomomarionetesnasmãosdeDeus,quecontrolarianossosfiosparaquesemprenos

comportássemosbem.Nãohaveriasentidonenhumempensarsobrecomosecomportar,pois

sempreescolheríamosautomaticamenteaopçãodobem.

Então,Deusépoderosoosuficienteparaevitartodoomal,masaexistênciadomalnão

estádiretamenteligadaaDeus.Omalmoraléresultadodasnossasescolhas.Agostinho

acreditavaqueeletambémeraparcialmenteoresultadodeescolhasdeAdãoeEva.Assimcomo

muitoscristãosdaquelaépoca,eleestavaconvencidodequeascoisasderamterrivelmente

erradonoJardimdoÉden,talcomodescritonoprimeirolivrodaBíblia,oGênesis.Quando

AdãoeEvacomeramofrutodaárvoredoconhecimentoetraíramaDeus,trouxeramopecado

paraomundo.Essepecado,chamadodepecadooriginal,nãofoialgoqueafetouapenassuas

própriasvidas.Agostinhoafirmavaqueopecadooriginaleratransmitidodegeraçãoageração

peloatodareproduçãosexual.Atémesmoumacriança,emseusprimeirosmomentosdevida,

carregatraçosdessepecado.Opecadooriginalnostornamaispropensosaopecado.

Paramuitosleitoresdehoje,essaideiadequedevemosnosculpareserpunidosporações

cometidasporoutrosémuitodifícildeaceitar.Issopareceinjusto.Noentanto,aideiadequeo

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maléresultadodonossolivre-arbítrio,enãodiretamentedeDeus,aindaconvencemuitosfiéis–

elapermitequeestesacreditememumDeusonipotente,onipresente,quesófazobem.

Boécio,umdosescritoresmaisconhecidosdaIdadeMédia,acreditavanesseDeus,mas

travoucombatecomumaoutraquestãosobreolivre-arbítrio:aquestãodecomopodemos

escolherfazertudoseDeusjásabeoquevamosescolher.

CAPÍTULO7

AconsolaçãodaFilosofia

BOÉCIO

Sevocêestivessepreso,esperandopelaprópriaexecução,passariaseusúltimosdiasescrevendo

umlivrodefilosofia?Boéciopassou.Eescreveuoqueveioaseroseulivrodefilosofiamais

conhecido.

OnomecompletodeBoécio(475-525),umdosúltimosfilósofosromanos,eraAnício

MânlioTorquatoSeverinoBoécio.ElemorreuexatamentevinteanosantesdaquedadoImpério

Romanoparaosbárbaros.Mas,enquantoestavavivo,Romajáestavadecaindo.Assimcomo

CíceroeSêneca,seuscompanheirosromanos,Boéciopensavaqueafilosofiaeraumaespéciede

autoajuda,umamaneirapráticadetornarnossavidamelhor,bemcomoumadisciplinado

pensamentoabstrato.EletambémfoiresponsávelpelarecuperaçãodePlatãoeAristóteles,cuja

obratraduziuparaolatim,mantendosuasideiasvivasnumaépocaemquesecorriaoriscode

seremperdidasparasempre.Comocristão,seuslivrosatraíamosfilósofosquesedevotavamà

religiãonaIdadeMédia.Suafilosofia,então,formouumaponteentreospensadoresgregose

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romanoscomafilosofiacristã,queviriaaserdominantenoOcidentedurantedécadasdepoisde

suamorte.

AvidadeBoéciofoiumamisturadeboaemásorte.OreiTeodorico,umgodoque

governavaRomanaépoca,deuaeleoaltocargodecônsul.Comohonraespecial,osfilhosde

Boéciotambémforamnomeadoscônsules,emborafossemmuitojovensparachegaraopostopor

méritopróprio.Tudopareciaestarindobemnavidadele:erarico,tinhaumaboafamíliae

recebiatorrentesdeelogios.Dealgumamaneiraeleconseguiuarrumartempoparaosestudos

filosóficosparalelosaotrabalhonogoverno,eeraumescritoretradutorprolífico.Passavapor

umexcelentemomento.Contudo,suasortevirou.AcusadodeconspiraçãocontraTeodorico,ele

foiexpulsodeRomaeenviadoparaRavena,ondefoipreso,torturadoeexecutadoporuma

combinaçãodeestrangulamentoeespancamentoatéamorte.Elesempreafirmouserinocente,

masosacusadoresnãoacreditavamnele.

Enquantoestevenaprisãosabendoquemorreriaembreve,Boécioescreveuumlivroque,

depoisdesuamorte,foiamplamentedifundidonaIdadeMédia:AconsolaçãodaFilosofia.O

livrocomeçacomBoéciodentrodacela,sentindopenadesimesmo.Derepente,percebequehá

umamulherolhandoparaele.Elapareciaserdaalturanormaldossereshumanos,masàsvezes

pareciaelevar-seatéoscéus.Usavaumvestidorasgado,floreadocomumaescadaque

começavanaletragregapieterminavanaletragregateta.Emumadasmãos,elaseguravaum

cetro;naoutra,livros.EssamulhereraaFilosofia.Quandocomeçouafalar,disseaBoéciono

queeledeveriaacreditar.Elaestavazangadaporeleterseesquecidodelaevieralembrar-lhe

decomodeveriaestarreagindoaoquelheacontecia.Orestodolivro,escritoumaparteem

prosaeumaparteemverso,éaconversadosdois,quetratasobreasorteeDeus.Amulher,

Filosofia,aconselhaBoécio.

EladizaBoécioqueasortesempremudaequeissonãodeveriasurpreendê-lo.Estaéa

naturezadasorte:serinstável.Arodadafortunagira.Àsvezesestamosporcima,outrasvezes

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porbaixo.Podeserqueumdiaumreimuitoricosevejanapobreza.Boéciotinhadeaceitarque

ascoisassimplesmenteeramassim.Asorteéaleatória.Ofatodetermossortehojenãogarantea

sortedeamanhã.

Osmortais,explicaFilosofia,sãotolospordeixarqueafelicidadedependadealgotão

instável.Averdadeirafelicidadesópodevirdedentro,dascoisasqueossereshumanos

conseguemcontrolar,enãodealgoqueamásortepodedestruir.Estaéaposiçãoestoicaque

vimosnoCapítulo5.Éissooqueaspessoashojequeremdizerquandosedescrevemcomo

“filosóficas”arespeitodosacontecimentos:elastentamnãoserafetadasporaquiloqueestáfora

doseucontrole,comooclimaouquemsãoseuspais.Nada,dizFilosofiaparaBoécio,éterrível

emsi–aterribilidadedependedecomopensamosnela.Afelicidadeéumestadodeespírito,

nãodomundo–umaideiaqueEpitetojáhaviareconhecidoantes.

FilosofiaquerqueBoéciovolte-separaelanovamente.Eladizqueelepodeser

plenamentefelizapesardeestarpresoesperandoamorte.Elavaicurá-lodetodoosofrimento.

Amensageméqueriquezas,poderehonranãotêmvalor,poispodemirevir.Ninguémdeveria

basearaprópriafelicidadenessesfundamentosfrágeis.Afelicidadedevevirdealgomais

sólido,algoquenãopodeserlevadoembora.ComoBoécioacreditavaqueviveriadepoisda

morte,buscarafelicidadenascoisasmundanasetriviaiseraumerro.Afinal,eleperderiatodas

elasquandomorresse.

MasondeBoéciopodeencontraraverdadeirafelicidade?ArespostadaFilosofiaéque

eleaencontraráemDeusounabondade(asduascoisasacabamrevelando-seseramesma).

Boéciofoicristãodesdecedo,masnãomencionaissoemAconsolaçãodaFilosofia.ODeus

queFilosofiadescrevepoderiaseroDeusdePlatão,apuraformadabondade,masleitores

posterioresreconhecemoensinamentocristãosobreafaltadevalordashonraseriquezasea

importânciadeseconcentraremagradaraDeus.

Durantetodoolivro,FilosofialembraBoéciodoqueelejásabe.Issotambéméalgoque

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vemdePlatão,poiseleacreditavaqueascoisasqueaprendemossão,naverdade,umaespécie

dereminiscênciadeideiasquejátemos.Defato,nuncaaprendemosnadanovo,apenastemos

nossamemóriarefrescada.Avidaéumalutaparalembrarmosoquejásabíamosantes.Oque

Boéciojásabia,atécertoponto,équeestavaerradoemsepreocuparcomaperdadaliberdadee

dorespeitopúblico.Essasquestõesestãoamplamenteforadoseucontrole.Oqueimportaésua

atitudediantedasituação,eissoéalgoqueelepodeescolher.

Todavia,Boécioestavaconfusocomumproblemagenuínoquepreocupavamuitaspessoas

queacreditavamemDeus.Sendoperfeito,Deustinhadesabertudooqueacontecia,mastambém

tudooqueviriaaacontecer.IssoéoquequeremosdizerquandodesignamosDeuscomo

“onisciente”.Então,seDeusexiste,eletemdesaberquemganharáapróximaCopadoMundoe

oquevouescrevernapróximafrase.Eledeveteroconhecimentopréviodetudooquevai

acontecer.Oqueeleprevêdevenecessariamenteacontecer.Portanto,nestemomento,Deussabe

qualseráodesdobramentodetodasascoisas.

Dissosegue-sequeDeusdevesaberqualseráminhapróximaação,mesmoqueeuainda

nãotenhacertezadoquefarei.Nomomentoemquetomoumadecisãosobreoquefazer,parece

quediferentesfuturospossíveissurgemdiantedemim.Semevejodiantedeumabifurcaçãona

estrada,possoirparaadireitaouparaaesquerdaousimplesmenteparar.Nestemomento,eu

poderiaparardeescrevereprepararumcafé.Oupossoescolhercontinuardigitandono

computador.Issopareceserminhadecisão,algoqueescolhoounãofazer.Nãoháninguémme

forçandoatomarumaououtradireção.Demaneirasemelhante,vocêpoderiaescolherfecharos

olhosagorasequisesse.ComopodeDeussaberoqueacabaremosfazendo?

SeDeussabequaisserãonossaspróximasações,comopodemosterumaescolhagenuína

sobreoqueiremosfazer?Seriaaescolhaapenasumailusão?Parecequenãopossoterlivre-

arbítrioseDeussabetudo.Hádezminutos,Deuspoderiaterescritonumpedaçodepapel:

“Nigelcontinuaráescrevendo”.Porserverdade,eunecessariamentecontinuariaescrevendo,

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quereusoubesseounãodissonaquelemomento.Masseelefizesseisso,eucertamentenãoteria

escolhidooquefiz,aindaquesentissecomosetivesseescolhido.Minhavidajáestaria

delineadaparamimemcadamínimodetalhe.E,senãotemosnenhumaescolhaarespeitode

nossasações,atéquepontoéjustonospunirourecompensarpeloquefazemos?Senãopodemos

escolheroquefazer,entãocomoDeuspodedecidirseiremosounãoparaocéu?

Issoémuitoperturbador.Éoqueosfilósofoschamamdeparadoxo.Nãoparecepossível

quealguémsoubesseoquefareiequeaindaassimeutivesseumalivreescolhasobreoquefaço.

Essasduasideiasparecemcontradizer-semutuamente.Contudo,ambassãoplausíveisse

acreditarmosqueDeuséonisciente.

MasFilosofia,amulhernaceladeBoécio,temalgumasrespostas.Eladizquenóstemos

simlivre-arbítrio.Elenãoéumailusão.PormaisqueDeussaibaoquefaremos,nossasvidas

nãosãopredestinadas.Ou,ditodeoutraforma,oconhecimentodeDeusarespeitodasnossas

açõesfuturasédiferentedapredestinação(aideiadequenãotemosescolhasobreoque

faremos).Nósaindatemosumaescolhasobreoquefazer.OerroépensaremDeuscomoseele

fosseumserhumanoqueobservaodesdobramentodascoisasnotempo.FilosofiadizaBoécio

queDeuséatemporal,foradetodootempo.

IssosignificaqueDeusapreendetudoemuminstante.Deusvêpassado,presenteefuturo

comoumacoisasó.Nós,mortais,estamospresosaumacontecimentoapósooutro,masnãoé

assimqueDeusosvê.ArazãodeDeusconhecerofuturosemdestruirnossolivre-arbítrioesem

nostransformaremumaespéciedemáquinaspré-programadassemabsolutamentenenhuma

escolhaéofatodeDeusnãonosobservaremnenhummomentoespecífico.Elevêtudodeuma

únicavezdemaneiraatemporal.EFilosofiadizaBoécioqueelenãodeveriaesquecerqueDeus

julgaossereshumanosemrelaçãoacomosecomportam,àsescolhasquefazem,mesmoque

saibadeantemãooquefarão.

SeFilosofiativerrazãosobreisso,eseDeusexiste,elesabeexatamentequando

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terminareideescreverestafrase,mascontinuasendominhalivreescolhaterminá-lacomum

pontofinalnesteexatomomento.

Você,enquantoisso,aindaélivreparadecidirsevaiounãoleropróximocapítulo,que

examinadoisargumentosarespeitodacrençanaexistênciadeDeus.

CAPÍTULO8

Ailhaperfeita

ANSELMOEAQUINO

TodosnóstemosumaideiadeDeus.Entendemosoque“Deus”significa,queracreditemosou

nãoqueeledefatoexista.Comcerteza,vocêestápensandonasuaideiadeDeusnesteexato

momento.EissoparecebemdiferentededizerqueDeusrealmenteexiste.Anselmo(c.1033-

1109),padreitalianoquesetornouarcebispodaCantuária,tinhaumavisãobastantediferente:

comseuargumentoontológico,eleafirmatermostradoque,porumaquestãodelógica,ofatode

termosumaideiadeDeusprovaqueDeusrealmenteexiste.

OargumentodeAnselmo,incluídonolivroProslogion,começacomaafirmação

incontestáveldeque“nãosepodeconcebernadaquesejasuperioraDeus”.Estaéapenasoutra

formadedizerqueDeuséomaisgrandiosodosseresimagináveis:grandiosoempoder,em

bondadeeemconhecimento.Nãosepodeimaginarnadamaisgrandiosoqueele–poisessealgo

seriaDeus.Eleéosersupremo.EssadefiniçãodeDeusnãoparececontroversa:Boécio(ver

Capítulo7)odefiniademaneirasemelhante,porexemplo.Emnossamente,podemoster

claramenteumaideiadeDeus.Issotambéméindiscutível.MasentãoAnselmoapontaqueum

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Deusexistenteapenasemnossamente,masnãonarealidade,nãoseriaomaisgrandiosodos

seresconcebíveis.UmDeusqueexistissenarealidadecertamenteseriaomaisgrandioso.Esse

Deuspoderiaconcebivelmenteexistir–atémesmoosateuscostumamreconhecê-lo.Contudo,um

DeusimaginadonãopodesermaisgrandiosoqueumDeusexistente.Portanto,concluiuAnselmo,

Deusdeveexistir.Talconclusãosegue-selogicamentedadefiniçãodeDeus.SeAnselmoestiver

certo,podemostercertezadequeDeusexistesimplesmentepelofatodetermosumaideiadele.

Trata-sedeumargumentoapriori,umargumentoquenãosebaseianaobservaçãosobreo

mundoparachegaraumaconclusão.Éumargumentológicoque,partindodeumponto

incontestável,pareceprovarqueDeusexiste.

Anselmousouoexemplodeumpintorqueimaginaacenaantesdepintá-la.Em

determinadomomento,opintorpintaoqueimaginou.Então,apinturaexistetantonaimaginação

quantonarealidade.Deusédiferentedessetipodecaso.Anselmoacreditavaqueera

logicamenteimpossívelterumaideiadeDeussemqueDeusdefatoexistisse,aopassoque

podemos,commuitafacilidade,imaginaropintorquejamaistenhapintadooquadroque

imaginou,demodoqueapinturasóexistanamentedele,masnãonomundo.Deuséoúnicoser

dessetipo:podemosimaginaranãoexistênciadetodasasoutrascoisassemnoscontradizermos.

SeentendermosverdadeiramenteoqueéDeus,reconheceremosqueseriaimpossívelsuanão

existência.

Muitaspessoasquecompreenderama“prova”deAnselmoacercadaexistênciadeDeus

suspeitamdequeháalgoduvidosonamaneiracomoelechegaaessaconclusão.Parece

simplesmentehaveralgoerradonoargumento.Pouquíssimaspessoaspassaramaacreditarem

Deustendoapenasesseraciocíniocomobase.Anselmo,emcompensação,citouumapassagem

dosSalmossegundoaqualsomenteumtolonegariaaexistênciadeDeus.QuandoAnselmoainda

estavavivo,umoutromonge,GaunilodeMarmoutier,criticouseuraciocínioapresentandoum

experimentomentalqueserviadesuporteparaaposiçãodostolos.

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Imaginequeemalgumlugardooceanoháumailhaaondeninguémpodechegar.Essailha

temmuitasriquezaseérepletadetodososfrutos,árvores,plantasexóticaseanimais

imagináveis.Eelanãoéhabitada,oqueatornaumlugaraindamaisperfeito.Naverdade,trata-

sedailhamaisperfeitaquesepodeimaginar.Sealguémdizqueessailhanãoexiste,nãohá

muitadificuldadeementendermosoquesequerdizercomisso.Fazsentido.Massuponhaque

alguémlhedigaqueessailhadevedefatoexistirporqueémaisperfeitadoquequalqueroutra

ilha.Vocêtemumaideiadela.Porém,elanãoseriaailhamaisperfeitasesóexistisseemsua

mente.Então,eladeveexistirnarealidade.

Gauniloafirmouque,sealguémusasseesseargumentoparatentarnospersuadirdequea

maisperfeitadasilhasrealmenteexiste,provavelmenteacharíamosqueéumapiada.É

impossíveltrazeràexistênciarealumailhaperfeitaapenasimaginandocomoelapoderiaser.

Seriaumabsurdo.AideiadeGauniloéqueoargumentodeAnselmoparaaexistênciadeDeus

temamesmaformaqueoargumentoparaaexistênciadailhamaisperfeita.Senãoacreditamos

queamaisperfeitadasilhasimagináveispossaexistir,porqueacreditarnaexistênciadomais

perfeitodosseresimagináveis?Omesmotipodeargumentopoderiaserusadoparaimaginara

existênciadetodosostiposdeseres:nãosóailhamaisperfeita,masamontanhamaisperfeita,a

construçãomaisperfeita,aflorestamaisperfeita.GauniloacreditavaemDeus,maspensavaque

oraciocíniodeAnselmosobreDeus,nessecaso,nãosesustentava.Anselmorespondeu

concluindoqueseuargumentosófuncionavanocasodeDeusenãodeilhas,poisasoutras

coisassãosimplesmenteasmaisperfeitasdentrodesuaespécie,enquantoDeuséomaisperfeito

detudo.ÉporessarazãoqueDeuséoúnicoserquenecessariamenteexiste:oúnicoquenão

poderianãoexistir.

Duzentosanosdepois,emumapequenapartedeumaobramuitograndechamadaSuma

teológica,outrosantoitaliano,TomásdeAquino(1225-1274),esboçoucincoargumentos,as

cincovias,parademonstraraexistênciadeDeus.Hoje,ascincoviassãomaisconhecidasque

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qualqueroutrapartedaobra.Asegundaviaeraoargumentodacausaprimeira,umargumento

que,comograndepartedafilosofiadeAquino,erabaseadoemoutroargumentousadomuito

antesporAristóteles.AssimcomoAnselmo,Aquinoqueriausararazãoparaprovaraexistência

deDeus.Oargumentodacausaprimeiratomacomopontodepartidaaexistênciadocosmos–

tudooquehá.Olheaoredor.Deondevemtudo?Arespostaimediataéquecadacoisaexisteeé

oqueéporqueteveumtipodecausa.Penseemumaboladefutebol.Elaéprodutodemuitas

causas–dacriaçãoefabricaçãodaspessoas,dascausasqueproduziramamatéria-primaetc.

Masoquecausouaexistênciadamatéria-prima?Eoquecausouessascausas?Podemos

retrocederetraçaressecaminho.Eretrocedermaisumpouco.Masessacadeiadecausase

efeitosnãoacabariasendoeterna?

Aquinoestavaconvencidodequenãopoderiahaverumasérieintermináveldeefeitose

causasprecedentesqueretrocedessemeternamentenotempo–umregressoinfinito.Sehouvesse

umregressoinfinito,significariaquejamaisexistiriaumacausaprimeira:algumacoisateria

causadoqualquercoisaquepensássemosseraprimeiracausa,quetambémteriaumacausa,e

assiminfinitamente.MasAquinopensavaque,logicamente,emalgummomentohaviaumacoisa

quetinhadesencadeadoascausaseosefeitos.Seissoforverdade,devehaveralgoquenãofoi

causadoequedeuinícioàsériedecausaseefeitosquenostrouxeatéondeestamosagora.A

causaprimeira,declarouele,devetersidoDeus.Deuséacausanãocausadadetudooque

existe.

Filósofosposterioresderammuitasrespostasaesseargumento.Algunsapontaramque,

mesmoqueconcordemoscomAquinodequedeveterhavidoalgumacausanãocausadaquedeu

inícioatudo,nãohánenhummotivoparticularparaacreditarqueessacausanãocausadafosse

Deus.Umacausaprimeiranãocausadateriadeserextremamentepoderosa,masnãohánada

nesseargumentoparasugerirqueelapreciseterqualquerdaspropriedadesqueasreligiões

costumamafirmarqueDeustem.Porexemplo,talcausanãocausadanãoprecisariaser

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supremamenteboa;tampoucoteriadeseronisciente.Elapoderiatersidoumaespéciedeondade

energia,enãoumDeuspessoal.

OutraobjeçãopossívelaoraciocíniodeAquinoéadequenãotemosdeaceitarsua

suposiçãodequenãopoderiahaverumregressoinfinitodeefeitosecausas.Comosabemos?

Paratodacausaprimeiraquesepossasugerircomorigemdocosmos,épossívelperguntar:“Eo

queacausou?”.Aquinosimplesmenteassumiuque,secontinuássemosfazendoamesmapergunta,

chegaríamosaumpontoemquearespostaseria“Nada.Éumacausanãocausada”.Masnãoestá

claroseessarespostaémelhordoqueapossibilidadedehaverumregressoinfinitodeefeitose

causas.

SantoAnselmoeSãoTomásdeAquino,concentradosnacrençaemDeusecomprometidos

comumestiloreligiosodevida,formamumnítidocontrastecomNicolauMaquiavel,pensador

profanocomparadoporalgunsaodemônio.

CAPÍTULO9

Araposaeoleão

NICOLAUMAQUIAVEL

Imaginequevocêsejaumpríncipe,dotadodepoderabsoluto,governandoumacidade-estado,

comoFlorençaouNápoles,naItáliadoséculoXVI.Vocêdaráumaordemeelaseráatendida.Se

quisermandaralguémparaacadeiaporterfaladoalgocontravocê,ouporsuspeitardeque

houveumaconspiraçãoparamatá-lo,vocêpodefazê-lo.Hátropasaoseudispor,preparadas

parafazeroquevocêquiser.Masvocêestácercadoporoutrascidades-estados,governadaspor

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ambiciososqueadorariamtomaroseuterritório.Comovocêsecomportaria?Deveriaser

honesto,cumprirsuaspromessas,agirsempredemaneirabenevolente,acreditarnomelhordas

pessoas?

NicolauMaquiavel(1469-1527)pensavaqueessaprovavelmenteseriaumamáideia,

emboratalvezvocêquisesseparecerhonestoeparecerbomnessesentido.Segundoele,àsvezes

émelhormentir,quebrarpromessaseatématarosinimigos.Umpríncipenãoprecisariase

preocuparemmantersuapalavra.Comodiziaele,umpríncipeeficaztemde“aprenderanãoser

bom”.Omaisimportanteeramanter-senopoder,equasetodasasformasdefazerissoeram

aceitáveis.Opríncipe,livronoqualelefalasobreessascoisas,tevefama(einfâmia)mesmo

antesdeserpublicadoem1532.Algumaspessoasodescreveramcomomalignoou,namelhor

dashipóteses,comoomanualdosfacínoras;outrasoconsideraramorelatomaisprecisojá

escritosobreoqueacontecenapolítica.Muitospolíticosatuaisleramolivro,embora

pouquíssimosadmitam,revelando,talvez,queestãocolocandoempráticaosprincípiosdaobra.

Opríncipenãofoiescritoparatodos,esimparaquemchegourecentementeaopoder.

Maquiaveloescreveuenquantomoravaemumafazendaacercadeonzequilômetrosaosulde

Florença.NoséculoXVI,aItáliaeraumlugarperigoso.Maquiavelnasceuecresceuem

Florença.Foinomeadodiplomataquandojovemeconheceudiversosreis,umimperadoreo

papaemsuasviagenspelaEuropa.Elenãodavamuitaimportânciaaessaspessoas.Oúnico

líderquerealmenteoimpressionavaeraCésarBórgia,umhomemimplacável,filhoilegítimodo

papaAlexandreVI,quenãoseimportavanadaemenganarosinimigosematá-losenquanto

assumiaocontroledeumagrandepartedaItália.NoqueserefereaMaquiavel,Bórgiafeztudo

corretamente,masfoiderrotadopelamásorte:adoeceujustamentequandofoiatacado.Amá

sortetambémteveumpapeldedestaquenavidadeMaquiavelefoioassuntosobreoqualele

maissedebruçou.

QuandoosMédici–umafamíliaextremamenterica–retomaramopoder,jogaram

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Maquiavelnaprisão,afirmandoqueelefizerapartedeumaconspiraçãoparaderrubá-los.

AlgunscolegasdeMaquiavelforamexecutados,maselesobreviveuàtorturaefoilibertado.Sua

puniçãopornãoterconfessadonadafoiserbanido.Maquiavelfoidesligadodapolíticae

condenadoanãovoltarparaacidadequeamava.Foiquandoseretirounocampo,ondepassaria

astardesimaginandodiálogoscomosgrandespensadoresdopassado.Emsuaimaginação,eles

discutiamqualseriaamelhormaneiradeseconservarnopoderenquantolíder.Éprovávelque

eletenhaescritoOpríncipetantoparaimpressionarosgovernantesquantoparatentarconseguir

trabalhocomoconselheiropolítico.AssimelepoderiaretornarparaFlorençaeparaosencantos

eperigosdapolíticareal.Masoplanonãodeucerto:Maquiavelacaboutornando-seescritor.

AlémdeOpríncipe,eleescreveuváriosoutroslivrosdepolíticaefoiumdramaturgodesucesso

–suapeçaMandrágoraéencenadaatéhoje.

EntãooqueexatamenteMaquiavelaconselhavaeporqueissochocoutantoamaioriade

seusleitores?Aideiafundamentaleraadequeumpríncipeprecisavateroqueelechamoude

virtù.Emitaliano,essapalavrasignifica“firmeza”ouvalor.Oqueissosignifica?Maquiavel

acreditavaqueosucessodependemuitodaboasorte.Elepensavaquemetadedoqueacontece

conoscodeve-seaoacasoemetadeéresultadodenossasescolhas,mastambémacreditavaque

podemosmelhoraraschancesdesucessoagindobravaerapidamente.Sóporqueasorte

desempenhaumgrandepapelemnossavidanãoquerdizerquetenhamosdenoscomportarcomo

vítimas.Umriotemdefluir,issoéalgoquenãopodemosdeter;porém,seconstruirmosbarreiras

erepresas,aumentaremosachancedesobreviver.Emoutraspalavras,umlíderqueseprepara

bemeagarraaoportunidadequandoelasurgetemumaprobabilidademaiordesucessodoque

outroquenãoofaz.

Maquiavelestavadecididoquesuafilosofiadeveriaserenraizadanaquiloquerealmente

acontece.Elemostravaaosleitoresoquequeriadizerpormeiodeumasériedeexemplosda

históriarecente,envolvendoprincipalmentepessoasqueeleconhecia.Porexemplo,quando

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CésarBórgiadescobriuqueosmembrosdafamíliaOrsiniplanejavamderrubá-lo,oslevoua

crerquenãosabiadenada.Induziuoslíderesaseencontrarcomeleemumlugarchamado

Sinigaglia.Quandochegaram,elematoutodos.Maquiavelaprovouaarmadilha.Paraele,parecia

umbomexemplodevirtù.

Emoutraocasião,quandoBórgiaassumiuocontroledeumaregiãochamadaRomanha,

colocounopoderumcomandanteparticularmentecruel,RemirrodeDeOrco,queapavoravao

povoobrigando-oalheobedecer.Quandoaregiãoseacalmou,Bórgiaquisafastar-seda

crueldadedeDeOrco.Entãoomatou,esquartejouocorpoedeixouospedaçosnapraçada

cidadeparaquetodosvissem.Maquiavelaprovouessaabordagemrepulsiva,quelevouBórgiaa

conseguiroquequeria:manterdoseuladoopovodeRomanha.OpovoestavafelizporDeOrco

termorrido,masaomesmotempopercebeuqueBórgiadeviaterencomendadooassassinato,e

issoosamedrontava.SeBórgiaeracapazdessetipodeviolênciacontraseuprópriocomandante,

ninguémestariaseguro.Portanto,aosolhosdeMaquiavel,aatitudedeBórgiafoivalorosa:ela

demonstravavirtùeeraexatamenteotipodecoisaqueumpríncipesensíveldeveriafazer.

IssodáaentenderqueMaquiavelaprovavaoassassinato.Elecertamenteoaprovavaem

algumasocasiões,seosresultadosojustificassem.Masessenãoeraoobjetivodosexemplos.O

queeleestavatentandomostrareraqueocomportamentodeBórgiaaomatarosinimigosetornar

umexemploseucomandanteDeOrcodeucerto.Issogerouosefeitosdesejadoseevitouuma

catástrofeprevista.Comseumododeagirrápidoecruel,Bórgiacontinuounopodereevitouque

opovodeRomanhasejuntassecontraele.ParaMaquiavel,oresultadofinaleramaisimportante

doqueomodocomoeraatingido:Bórgiaeraumbompríncipeporquenãohesitavaquandodevia

fazeroqueeranecessárioparasemanternopoder.Maquiavelnãoaprovariaoassassinato

despropositado,ouseja,matarpormatar;porém,osassassinatosdescritosnãoeramassim.

Maquiavelacreditavaqueagircomcompaixãonaquelascircunstânciasteriasidodesastroso:

ruimtantoparaBórgiaquantoparaoEstado.

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Maquiavelressaltaqueémelhor,comolíder,sertemidodoqueseramado.Teoricamente,

omelhoréseramadoesertemido,masissoédifícildeconseguir.Sevocêconfiarnumpovoque

oama,correráoriscodeserabandonadoemmomentosdeadversidade.Sefortemido,opovo

terámedodetraí-lo.Issofazpartedocinismohumano,davisãoestreitadanaturezahumana.

Maquiavelpensavaqueossereshumanoseramsuspeitos,gananciososedesonestos.Setiverde

serumgovernantedesucesso,énecessárioquesaibadisso.Éperigosoacreditarqueaspessoas

cumprirãosuaspromessas,anãoserquetenhampavordasconsequênciasdenãocumpri-las.

Sevocêconseguirchegaraondequerdemonstrandobondade,cumprindosuaspromessase

sendoamado,façadessaforma(oupelomenosaparentequefaz).Docontrário,precisará

combinaressasqualidadeshumanascomqualidadesanimais.Outrosfilósofosenfatizaramqueos

líderesdeveriamconfiaremsuasqualidadeshumanas,masMaquiavelpensavaque,àsvezes,o

lídereficazteriadeagircomoumabesta,aprendendocomaraposaeoleão.Araposaé

perspicazeconseguereconhecerarmadilhas,aopassoqueoleãoéextremamentefortee

ameaçador.Nãoébomsercomoumleãootempotodo,agindoapenascomaforçabruta,pois

issoolevaráaoriscodecairnumaarmadilha.Tambémnãosepodeagirsomentecomouma

raposaesperta:vocêprecisarádaforçadoleãoparasemanteremsegurança.Contudo,seconfiar

naprópriabondadeesensodejustiça,nãodurarámuitotempo.Felizmente,aspessoassão

ingênuas:deixam-selevarpelasaparências.Portanto,comolíder,éprecisoterêxito,

demonstrandoserhonestoegentilenquantoquebrapromessaseagecruelmente.

Lendoisso,éprovávelquepensequeMaquiavelnãopassavadeumhomemmal.Muitas

pessoasacreditamnisso,eoadjetivo“maquiavélico”éamplamenteempregadocomoinsulto

parasereferiràquelequeestáprontoparafazertramoiaseusaraspessoascomoquerem,mas

outrosfilósofosacreditamqueMaquiaveldemonstroualgoimportante.Talvezobom

comportamentonãosirvaparaoslíderes.Umacoisaésergentilnavidacotidianaeconfiarnas

promessasquenosfazem;todavia,setivermosdegovernarumEstadoouumpaís,podeseruma

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políticabastanteperigosaconfiarqueosoutrospaísessecomportarãobemcomrelaçãoanós.

Em1938,oprimeiro-ministrobritânicoNevilleChamberlainacreditouemHitlerquandoeste

deusuapalavradequenãotentariaexpandiraindamaisoterritórioalemão.Hojeissoparece

ingênuoetolo.MaquiavelteriaditoparaChamberlainqueHitlertinhatodasasrazõespara

mentirequenãoseriabomconfiarnele.

Poroutrolado,nãodevemosesquecerqueMaquiavelapoiouatosdeextremabrutalidade

contrainimigosempotencial.AtémesmonomundosanguináriodaItáliadoséculoXVI,sua

confessaaprovaçãodocomportamentodeCésarBórgiapareciachocante.Muitosdenóspensam

quedeveriahaverlimitesrígidosparaasaçõesdeumlíderemrelaçãoaseuspioresinimigose

queesseslimitesdeveriamserestabelecidosporlei.Senãohouverlimites,acabaremoscomo

tiranosselvagens.AdolfHitler,PolPot,IdiAmin,SaddamHusseineRobertMugabeusaramos

mesmostiposdetécnicasqueCésarBórgiaparasemanternopoder.Issonãoéexatamenteuma

boapropagandaparaafilosofiadeMaquiavel.

OpróprioMaquiavelvia-secomoumrealista,umsujeitoquereconheciaqueaspessoas

eramfundamentalmenteegoístas.ThomasHobbescompartilhavadessavisão,queservede

sustentáculoparaexplicarcomoelepensavaqueasociedadedeveriaserestruturada.

CAPÍTULO10

Sórdida,embrutecidaecurta

THOMASHOBBES

ThomasHobbes(1588-1679)foiumdosmaiorespensadorespolíticosdaInglaterra.Porém,

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poucossabemqueelefoiumfanáticoporexercíciosfísicosdesdemuitojovem.Hobbes

costumavasairtodamanhãparaumalongacaminhadaesubiacolinasaltasatéperderofôlego.

Carregavaumabengalaespecialfeitacomumtinteironaponta,casotivessealgumaboaideia

enquantoestivessefora.Essesujeitoalto,derostocorado,alegre,queusavabigodeetinhaa

barbaumpoucorala,foiumacriançadoente.Noentanto,quandoadulto,foiextremamente

saudávelejogoutênisatéficarvelho.Comiamuitopeixe,bebiamuitovinhoecostumavacantar

–entrequatroparedes,longedosouvidosalheios–paraexercitarospulmões.E,obviamente,

comoamaioriadosfilósofos,tinhaumamenteextremamentedinâmica.Oresultadofoiqueele

viveuatéos91anos,umaidadeexcepcionalparaoséculoXVII,quandoaexpectativadevida

médiaerade35anos.

Apesardeseucarátergenial,Hobbes,assimcomoMaquiavel,tinhaumavisãonegativa

dossereshumanos.Eleacreditavaquebasicamentesomostodosegoístas,movidospelomedoda

morteepelaesperançadeganhospessoais.Todosnósbuscamosterpodersobreosoutros,

independentementedepercebermosounão.Sevocênãoconcordacomessadescriçãoda

humanidade,entãoporquetrancaaportaquandosaidecasa?Certamentenãoseriaporquesabe

daexistênciademuitagentequeadorariaroubartodasassuascoisas?Massomentealgumas

pessoassãoegoístas,vocêdiria.Hobbesdiscordava.Eleconsideravaque,nofundotodosnóso

somos,equesóoEstadodedireitoeaameaçadepuniçãopoderiammanter-nossobcontrole.

Aconsequênciadisso,argumentavaele,eraqueseasociedadesedissolvessee

tivéssemosdevivernoqueelechamavade“estadodenatureza”,semleisouninguémpara

aplicá-las,todosnósroubaríamosemataríamosquandonecessário.Aomenosteríamosdefazer

issosequiséssemoscontinuarvivendo.Emummundoderecursosescassos,principalmentese

estivéssemoslutandoparaencontrarcomidaeáguaparasobreviver,poderiaatéserracional

mataroutraspessoasantesqueelasnosmatassem.NamemoráveldescriçãodeHobbes,avida

foradasociedadeseria“solitária,pobre,sórdida,embrutecidaecurta”.

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RetireopoderdoEstadodeimpedirqueaspessoasusemasterrasdosoutrosematem

quemquerqueseja,eoresultadoseráumaguerraintermináveldetodoscontratodos.Édifícil

imaginarumasituaçãopior.Nessemundosemleis,nemmesmoomaisforteestariaseguropor

muitotempo.Todosnósprecisamosdormire,enquantoestamosadormecidos,somosvulneráveis

aoataque.Atéomaisfraco,seespertoosuficiente,seriacapazdedestruiromaisforte.

Talvezvocêpensequeumadasmaneirasdeevitarsermortoseriasejuntaraosamigos.O

problemaéquenãosepodetercertezadequeaspessoassãoconfiáveis.Seoutrosprometemnos

ajudar,podeserqueemalgummomentosejadointeressedelesquebrarsuaspromessas.

Qualqueratividadehumanaquerequeracooperação,comoplantaralimentosemlargaescalaou

construirprédios,seriaimpossívelsemumnívelbásicodeconfiança.Sósaberíamosque

estamossendoenganadosquandofossetardedemaisetalvez,nestemomento,alguémesteja

literalmentenosapunhalandopelascostas.Nãohaverianinguémparapuniroapunhalador.

Nossosinimigospoderiamestaremqualquerlugar.Viveríamosavidainteiracommedodo

ataque:umaperspectivanadaatraente.

Hobbesargumentavaqueasoluçãoseriacolocarumindivíduoouparlamentopoderosono

comando.Osindivíduosnoestadodenaturezateriamdeentraremum“contratosocial”,um

acordoparaabrirmãodesuasperigosasliberdadesemnomedasegurança.Semoqueele

chamoude“soberano”,avidaseriacomouminferno.Osoberanoreceberiaodireitodeimpor

severaspuniçõesaqualquerumquepisasseforadalinha.Hobbesacreditavaque

reconheceríamoscomoimportantesalgumasleisnaturais,comadequedeveríamostrataros

outroscomogostaríamosdesertratados.Asleisnãoservemparanadasenãoháalguémoualgo

forteosuficienteparafazercomquetodosassigam.Semleisesemumsoberanopoderoso,as

pessoasnoestadodenaturezapodiamesperarumamorteviolenta.Oúnicoconsoloéqueuma

vidadessetiposeriamuitobreve.

Leviatã(1651),olivromaisimportantedeHobbes,explicaemdetalhesospassos

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necessáriosparasairdopesadelodoestadodenaturezaparaumasociedadesegura,naquala

vidaésuportável.“Leviatã”éummonstromarinhogigantescodescritonaBíblia.ParaHobbes,

eleeraumareferênciaaograndepoderdoEstado.OLeviatãabrecomailustraçãodeumgigante

emdestaquesobreumacolina,segurandoumaespadaeumcetro.Odesenhoécompostode

muitaspessoasbemmenores,reconhecivelmenteaindaindivíduos.OgiganterepresentaoEstado

poderoso,tendocomochefeumsoberano.Semumsoberano,acreditavaHobbes,tudose

desintegrariaeasociedadesedividiriaemindivíduosseparados,prontosparadestruirosoutros

indivíduosnabuscapelasobrevivência.

Osindivíduosnoestadodenatureza,então,teriamrazõesmuitoboasparaquerertrabalhar

juntasebuscarapaz.Eraaúnicaformadeseprotegerem.Semisso,suasvidasseriamterríveis.

Asegurançaeramuitomaisimportantedoquealiberdade.Omedodamortelevariaaspessoasa

formaremumasociedade.Hobbespensavaqueelasconcordariamemabrirmãodesualiberdade

paraestabelecerumcontratosocialcomooutro,umapromessaquepermiteaosoberanoimpor

asleis.Seriamelhorqueaspessoastivessemumaautoridadepoderosanocomandodoque

lutassemumascontraasoutras.

Hobbesatravessoutemposdifíceis,inclusivenoútero.Elenasceuprematurodepoisque

suamãeentrouemtrabalhodepartoaoouvirqueaInvencívelArmadaEspanholaestava

dirigindo-separaaInglaterraeinvadiriaopaís.Felizmente,issonãoaconteceu.Depois,ele

escapoudosperigosdaGuerraCivilInglesamudando-separaParis,masomedorealdequea

Inglaterrapudessefacilmentecondescenderàmonarquiaperseguiuseusúltimosescritos.Foiem

ParisqueeleescreveuLeviatã,retornandoàInglaterralogodepoisdesuapublicaçãoem1651.

Assimcomomuitospensadoresdesuaépoca,Hobbesnãofoiapenasfilósofo–eleerao

quechamaríamoshojede“homemrenascentista”.Tinhaumprofundointeresseporgeometriae

ciência,bemcomoporhistóriaantiga.Adoravaliteraturaquandojovemechegouaescrevê-lae

traduzi-la.Nafilosofia,àqualcomeçouasededicarnameia-idade,eramaterialistaeacreditava

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queossereshumanoseramnadamaisdoqueseresfísicos.Aalmanãoexiste:somosapenas

corpo,oqual,emúltimainstância,éumamáquinacomplexa.

OsmecanismosderelógioseramatecnologiamaisavançadanoséculoXVII.Hobbes

acreditavaqueosmúsculoseosórgãosdocorpoequivaliamaessesmecanismos:eleescreveu

algumasvezessobreas“molas”daaçãoeas“rodas”quenosmovem.Estavaconvencidodeque

todososaspectosdaexistênciahumana,inclusiveopensamento,eramatividadesfísicas.Emsua

filosofia,nãohaviaespaçoparaaalma.Estaéumaideiamodernaquemuitoscientistas

sustentamatualmente,maseraradicalnaépocadeHobbes.Elechegouinclusiveaafirmarque

Deusdeviaserumobjetofísicogigantesco,emboraalgumaspessoasinterpretassemissocomo

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umatentativadisfarçadadedeclararqueeraateu.

OscríticosdeHobbespensamqueelefoilongedemaisaoconsentirqueosoberano,quer

fosseumrei,umarainhaouoparlamento,tivessetamanhopodersobreoindivíduonasociedade.

OEstadoqueeledescreveseriaoquehojechamamosdeautoritário:umEstadoemqueo

soberanotempraticamentepoderesilimitadossobreoscidadãos.Apazpodeserdesejável,eo

medodamorteviolentaumforteincentivoparasesubmeteraospoderesquemantêmapaz.

Contudo,colocartantonasmãosdeumindivíduoougrupodeindivíduospodeserperigoso.Ele

nãoacreditavanademocracia;nãoacreditavanacapacidadedaspessoasdetomardecisõespor

sipróprias.MassesoubessedoshorrorescometidospelostiranosnoséculoXX,teriamudado

deideia.

Hobbesfoifamosoporrecusar-seaacreditarnaexistênciadaalma.RenéDescartes,seu

contemporâneo,emcontraste,acreditavaqueaalmaeocorpoeramcompletamentedistintosum

dooutro.ProvavelmenteporissoHobbespensavaqueDescarteseramuitomelhoremgeometria

doqueemfilosofiaedeveriaater-sesomenteàprimeira.

CAPÍTULO11

Estaríamossonhando?

RENÉDESCARTES

Vocêescutaodespertador,desliga-o,levantadacama,veste-se,tomacafédamanhã,apronta-se

paramaisumdia.Derepente,algoinesperadoacontece:vocêacordaepercebequeestava

sonhando.Emseusonho,vocêestavadespertoedandoseguimentoàvida,masnaverdadeainda

estavaroncandoembaixodocobertor.Sevocêjáteveumadessasexperiências,entenderáoque

digo.Elasgeralmentesãochamadasde“falsodespertar”epodemserbastanteconvincentes.O

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filósofofrancêsRenéDescartes(1596-1650)teveumaqueodeixoupensando.Comoelepoderia

tercertezadequenãoestavasonhando?

ParaDescartes,afilosofiaeraumentremuitosinteressesintelectuais.Elefoium

matemáticobrilhante,talvezmaisconhecidoporterinventadoas“coordenadascartesianas”–

supostamentedepoisdeverumamoscacruzandootetoepensandoemcomopoderiadescrever

suaposiçãoemváriospontos.Aciênciatambémofascinava,eeleeratantoastrônomoquanto

biólogo.Suareputaçãocomofilósofodeve-seprincipalmenteaMeditaçõeseaDiscursodo

método,livrosnosquaiseleexplorouoslimitesdoquepossivelmentepodiaconhecer.

Comoamaioriadosfilósofos,Descartesnãogostavadeacreditaremnadasemantes

examinarporqueacreditavanaquilo;eletambémgostavadefazerperguntascomplicadas,que

outraspessoasevitavamfazer.Obviamente,elepercebeuquenãopodiaviverquestionandotudo

otempointeiro.Seriaextremamentedifícilviversenãotomássemoscertascoisascomo

verdadeirasnamaiorpartedotempo,oquePirrosemdúvidadescobriu(verCapítulo3).Mas

Descartespensouquevaleriaapenatentarumaveznavidadescobriroqueelepodiasabercom

certeza.Paraisso,eledesenvolveuummétodo,hojeconhecidocomométododadúvida

cartesiana.

Ométodoébastantesimples:nãoaceitenadacomoverdadeirosehouveramínima

possibilidadedequenãooseja.Penseemumgrandesacodemaçãs.Vocêsabequedentrodo

sacoexistemalgumasmaçãsestragadas,masnãotemcertezadequaissãoelas.Vocêquerchegar

aopontodeterumsacosócommaçãsboas.Comochegariaaesseresultado?Umamaneiraseria

despejartodasasmaçãsnochãoeexaminarumaauma,guardandodevoltasomenteaquelasque

vocêtivesseabsolutacertezadeseremboas.Talvezvocêdescartasseduranteoprocesso

algumasmaçãsboas,porqueelasparecemestarumpoucoestragadaspordentro,masa

consequênciaseriaterumsacosócommaçãsboas.Ométododadúvidacartesianaeramaisou

menosassim.Vocêtomaumacrença,como“estouacordado,lendoestelivro”,examinando-a,e

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sóaaceitasetivercertezadequeelanãoéerradaouenganadora.Sehouveromínimoespaço

paraadúvida,rejeite-a.Descartesanalisoudiversascoisasnasquaisacreditavaequestionouse

eletinhaounãocertezadequeelaseramoquepareciamser.Seriaomundorealmentetalcomo

pareceser?Tinhaelecertezadequenãoestavasonhando?

Descartesqueriaencontrarumacoisadaqualpudessetercerteza.Issoseriaosuficiente

paraquetivesseumapoiofixonarealidade.Porém,haviaoriscodeadentraremumredemoinho

dedúvidaseacabarpercebendoqueabsolutamentenadaeracerto.Aquieleteveumacerta

atitudecética,masdiferentedoceticismodePirroeseusseguidores.Estesqueriammostrarque

nadapodiaserconhecidocomcerteza;Descartes,porsuavez,queriamostrarquealgumas

crençassãoimunesatémesmoàsformasmaisradicaisdeceticismo.

Descartescomeçousuabuscaporcertezaspensandoprimeironasevidênciasquevêm

pelossentidos:visão,tato,olfato,paladareaudição.Podemosconfiarnossentidos?Não

totalmente,concluiuele.Ossentidosàsvezesnosenganam.Cometemoserros.Pensenoquevocê

vê.Suavisãoéconfiávelemrelaçãoatudo?Devemosconfiarsempreemnossosolhos?

Umbastãoretodentrodaáguapodeparecertortoseoolhamosdelado.Umatorre

retangularpodeparecerarredondadaàdistância.Todosnósàsvezescometemoserrossobreo

quevemos.Descartesafirmavaquenãoseriasábioconfiaremalgoquejánosenganouno

passado.Dessemodo,elerejeitaossentidoscomopossívelfontedecerteza,poisnuncaestará

certodequeossentidosnãooestãoenganando.Provavelmenteossentidosnãonosenganamna

maiorpartedotempo,masavagapossibilidadedequepodemviranosenganarsignificaque

nãopodemosconfiarneles.Masaondeissoolevou?

Acrença“estouacordadolendoestelivro”provavelmentelhepareceumacerteza.Você

estáacordado,acredito,elendo.Comopoderiaduvidardisso?Noentanto,jámencionamosque

podemospensarqueestamosacordadosnosonho.Comovocêsabequenãoestásonhandoagora?

Talvezimaginequeasexperiênciasquevivesãoreaisdemais,detalhadasdemaisparaserem

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sonhos,masinúmeraspessoastêmsonhosbastantevívidos.Vocêtemcertezadequenãoestá

sonhandoagora?Comosabedisso?Talveztenhaacabadodesebeliscarparaverseestá

acordado.Senãoofez,tente.Oqueissoprova?Nada.Vocêpodetersonhadoquesebeliscou.

Entãopodiaestarsonhando.Seiquenãopareceeémuitoimprovávelqueissoesteja

acontecendo,masnãopodehaverespaçoparaamenorsombradedúvidasobresevocêestá

sonhandoounão.Portanto,paraaplicarométododadúvidacartesiana,éprecisoaceitarquea

crença“estouacordadolendoestelivro”nãoéumacertezatotal.

Issomostraquenãopodemosconfiartotalmentenossentidos.Nãopodemostercerteza

absolutadequenãoestamossonhando.Mascertamente,dizDescartes,atémesmonossonhos,2

+3=5.ÉnessepontoqueDescartesusaumexperimentomental,umahistóriaimagináriapara

afirmarsuaideia.Eleforçaadúvidaatéoseulimitemáximoeelaboraumtesteaindamaisárduo

paraqualquercrençadoqueotestedapergunta“poderiaeuestarsonhando?”.Elediz:imagine

queháumdemônioincrivelmentepoderosoeinteligente,mastambémamigável.Essedemônio,

seexistir,poderiafazerparecerque2+3=5todavezquevocêfizesseasoma,mesmoqueo

resultadofosse6.Nãoteriacomosaberqueodemôniofaziaisso.Vocêsimplesmenteestaria

somandonúmerosdemodoinocente.Tudoparecerianormal.

Nãoénadafácilprovarqueissonãoestejaacontecendoagora.Talvezessedemônio

inteligenteeamigávelestejaentãomeiludindodequeestousentadoemcasaescrevendono

computador,quandonaverdadeestoudeitadonumapraianosuldaFrança.Outalvezeuseja

apenasumcérebronumacubacheiadelíquidonumaprateleiradolaboratóriododemônio.Ele

podetercolocadoeletrodosnomeucérebroeestámeenviandomensagenseletrônicasquedãoa

impressãodequeestoufazendoumacoisa,quandonaverdadeestoufazendooutra

completamentediferente.Talvezodemônioestejamefazendopensarqueestoudigitando

palavrasquefazemsentido,quandonaverdadeestouapenasdigitandoamesmaletraumavez

atrásdaoutra.Nãohácomosaber.Nãohácomoprovarqueissonãoestejaacontecendo,por

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maisloucoqueissopossaparecer.

EsseexperimentomentaldodemôniomalignoéaformadeDescarteslevaradúvidaao

limite.Sehouvessealgodoqualpudéssemostercertezanãoserumenganoprovocadopelo

demônio,seriamaravilhoso.Issonosdariaummeioderesponderàspessoasqueafirmamnão

serpossívelconhecerabsolutamentenadaaocerto.

OpróximopassodeDescarteslevouaumadaslinhasmaisconhecidasnafilosofia,

emboraonúmerodepessoasqueconheceacitaçãosejamuitomaiordoqueaspessoasquea

compreendem.Descartespercebeuque,mesmoseodemônioexistisseeoestivesseenganando,

deveriaexistiralgoquenãopodiaserinduzidopelodemônio.Comoeleestavadefatotendoum

pensamento,ele,Descartes,temdeexistir.Odemônionãopoderiafazê-loacreditarqueele

existiasenãoexistisse,porqueumacoisaquenãoexistenãopensa.“Penso,logoexisto”(cogito

ergosum,emlatim)foiaconclusãodeDescartes.Estoupensando,entãotenhodeexistir.Tente

fazerisso.Comoestátendoumpensamentoouumasensação,éimpossívelduvidardasua

existência.Oquevocêéconstituioutraquestão–vocêpodeduvidardequetenhaumcorpo,ou

duvidardequetenhaumcorpoqueconsegueveretocar.Masnãopodeduvidardequeexiste

comoalgumtipodecoisapensante.Talpensamentoseriaautocontestador.Quandocomeçamosa

duvidardanossaprópriaexistência,oatodadúvidaprovaqueexistimoscomoserpensante.

Issonãopodeparecergrandecoisa,masacertezadesuaprópriaexistênciafoimuito

importanteparaDescartes.Elaomostrouqueaquelesqueduvidavamdetudo–oscéticos

pirrônicos–estavamerrados.Elatambémfoioiníciodoquechamamosdedualismocartesiano.

Trata-sedaideiadequeanossamenteéseparadadocorpoeinteragecomele.Éumdualismo

porquehádoistiposdecoisa:amenteeocorpo.GilbertRyle,filósofodoséculoXX,

ridicularizouessavisãocomoummitodofantasmanamáquina:ocorpoeraamáquina,eaalma

ofantasmaquenelahabitava.Descartesacreditavaqueamenteeracapazdeproduzirefeitosno

corpoevice-versa,porqueosdoisinteragiamemdeterminadopontonocérebro–aglândula

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pineal.Contudo,seudualismoodeixoucomsériosproblemassobrecomoexplicarqueuma

coisanãofísica,aalmaouamente,produzamudançasemumacoisafísica,ocorpo.

Descartesestavamaiscertosobreaexistênciadamentequedocorpo.Eleeracapazdese

imaginarnãotendoumcorpo,masnãoconseguiaimaginar-sesemumamente.Seimaginassenão

terumamente,aindaestariapensando,oqueprovariaqueeletinhaumamenteporquenão

poderiaterabsolutamentepensamentonenhumsenãotivesseumamente.Essaideiadequecorpo

ementepodemserseparadosedequeamenteouoespíritonãoéfísico,nemfeitodesangue,

carneeossos,émuitocomumentreosreligiosos.Muitoscrentesesperamqueamenteouo

espíritoaindavivadepoisdamortedocorpo.

Noentanto,provaraprópriaexistência,postoqueelepensava,nãoteriasidosuficiente

pararefutaroceticismo.Descartesprecisavadeoutrascertezasparaescapardoredemoinhoda

dúvidaquehaviaevocadocomsuasmeditaçõesfilosóficas.EleargumentouqueumbomDeus

deveexistir.UsandoumaversãodoargumentoontológicodeSantoAnselmo(verCapítulo8),ele

seconvenceudequeaideiadeDeusprovaaexistênciadeDeus–Deusnãoseriaperfeito,anão

serquefossebomeexistisse,talcomoumtriângulonãoseriaumtriângulosemosângulos

interioresquesomam180graus.Outrodeseusargumentos,oargumentodamarca,sugeriaque

sabemosqueDeusexisteporqueeledeixouumaideiaimplantadaemnossamente–nãoteríamos

umaideiadeDeusseElenãoexistisse.DepoisdetermoscertezadequeDeusexiste,afase

construtivadopensamentodeDescartestorna-semuitomaisfácil.UmbomDeusnãoenganariaa

humanidadeemrelaçãoàscoisasmaisbásicas.Portanto,concluiuDescartes,omundodeveser

maisoumenoscomonósovivenciamos.Quandotemospercepçõesclarasedistintas,elassão

confiáveis.Aconclusãodele:omundoexisteeémaisoumenoscomopareceser,aindaque

algumasvezespossamoscometererrossobreoquepercebemos.Algunsfilósofos,porém,

acreditamqueissonãopassadeumpensamentofantasiosoequeodemôniomalignopoderia,

comamesmafacilidade,tê-loenganadosobreaexistênciadeDeuscomooenganouque2+3=

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5.SemacertezadaexistênciadeumbomDeus,Descartesnãoteriasidocapazdeiralémdo

conhecimentodequeeraumserpensante.Eleacreditavaquehaviamostradoumasaídado

completoceticismo,masseuscríticosaindasãocéticosemrelaçãoaisso.

Descartes,comovimos,usouoargumentoontológicoeoargumentodamarcaparaprovar

asipróprioqueDeusexistia.SeuconterrâneoBlaisePascaltinhaumaabordagembastante

diferentequantoàquestãodaquiloemquedevemosacreditar.

CAPÍTULO12

Façamsuasapostas

BLAISEPASCAL

Sejogamosumamoedaparaoalto,elapodedarcaraoucoroa.Aprobabilidadedesairumou

outroladoéde50/50,anãoserqueamoedatenhaumainclinação.Portanto,realmentenão

importadequeladovocêaposte,poisaprobabilidadedesaircaraoucoroaacadavezquea

moedaéjogadaéexatamenteamesma.OquevocêfariasenãotivessecertezaseDeusexisteou

não?Seriacomojogarumamoedaparacima?ApostariananãoexistênciadeDeuseviveria

comobementendesse?OuseriamaisracionalagircomoseDeusexistisse,mesmoquea

probabilidadedeissoserverdadesejamínima?BlaisePascal(1623-1662),queacreditavaem

Deus,pensoubastantenessaquestão.

Pascaleracatólicodevoto.Contudo,aocontráriodemuitoscristãosdehoje,eletinhauma

visãoextremamentesombriadahumanidade.Eleerapessimista.Emtodaparte,elevia

evidênciasdopecadooriginal,dasnossasimperfeiçõesque,segundoele,deviam-seaofatode

AdãoeEvateremtraídoaconfiançadeDeusaocomeramaçãdaárvoredoconhecimento.

AssimcomoAgostinho(verCapítulo6),eleacreditavaqueossereshumanossãomovidospelo

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desejosexual,nãosãoconfiáveiseentediam-semuitofacilmente.Todossãounsmiseráveis.

Todosvivemnatensãoentreangústiaedesespero.Deveríamosperceberoquantosomos

insignificantes.OcurtotempoquepassamosnaTerra,emrelaçãoàeternidadeanteriore

posteriorànossavida,quasenãotemsentidonenhum.Cadaumdenósocupaumespaçoínfimo

noespaçoinfinitodouniverso.Poroutrolado,Pascalacreditavaqueahumanidadetinhaalgum

potencial,desdequenãoperdêssemosDeusdevista.Estamosemalgumlugarentrebestase

anjos,masprovavelmentebemmaispertodasbestasnamaioriadoscasosenamaiorpartedo

tempo.

OlivromaisconhecidodePascal,Pensées[Pensamentos],foicompostodefragmentos

dosseusescritosepublicadoem1670,depoisdesuamorteprecoceaos39anos.Eleéescrito

emumasériedeparágrafoscurtoselaboradosmagnificamente.Ninguémsabeaocertocomoele

planejoujuntaraspartesnumtodo,masoprincipalobjetivodolivroéclaro:defendersuaversão

docristianismo.Pascalnãohaviaterminadoolivroquandomorreu:aordemdaspartesé

baseadanaformacomoeleorganizouospedaçosdepapelempilhasamarradascomum

barbante.Cadapilhacorrespondeaumaseçãodolivropublicado.

Pascalfoiumacriançadoentee,durantetodaasuavida,continuoudebilitadofisicamente.

Elenuncaparecebememretratospintados.Elenosfitacomolhoslacrimejantes.Quandojovem,

encorajadopelopai,Pascaltornou-secientista,trabalhouemideiassobrevácuosedesenhou

barômetros.Em1642,inventouumacalculadoramecânicaquepodiasomaresubtrairusandoum

instrumentopontudoparagirarosnúmerospresosaengrenagensintrincadas.Eleacrioupara

ajudaropainosnegócios.Dotamanhodeumacaixadesapatos,acalculadoraeraconhecida

comoPascalinae,emborafosseumpoucodeselegante,elafuncionava.Oúnicoproblemaerao

altocustodesuaprodução.

Alémdesercientistaeinventor,Pascaleraummatemáticoinvejável.Suasideias

matemáticasmaisoriginaiseramsobreprobabilidade.Masfoicomofilósofodareligiãoe

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escritorqueeleviriaaserlembrado.Nãosepodedizerqueelegostariadeserchamadode

filósofo:seusescritosincluíammuitoscomentáriossobrecomoosfilósofossabiampoucoe

sobreoquantoassuasideiaseramirrelevantes.Eleseconsideravaumteólogo.

Pascaldeixouamatemáticaeaciênciaparaescreversobrereligiãoquandojovem,depois

detersidoconvertidoaumacontroversaseitareligiosaconhecidacomojansenismo.Os

jansenistasacreditavamnapredestinação,ideiadequenãotemoslivre-arbítrioedequeapenas

pouquíssimaspessoasjáhaviamsidopré-selecionadasporDeusparairemparaocéu.Eles

tambémacreditavamemummododevidabastanterígido.Pascalumavezrepreendeuairmã

quandoaviuacariciandoofilho,poiselenãoaprovavamanifestaçõesdeemoção.Elepassou

seusúltimosanosvivendocomomongee,emborasofressemuitoporcausadadoençaqueo

acaboumatando,conseguiuescrever.

RenéDescartes(temadoCapítulo11)–assimcomoPascal,devotocristão,cientistae

matemático–acreditavaserpossívelprovaraexistênciadeDeuspelalógica.Pascalpensavao

contrário.Paraele,acrençaemDeusrelacionava-secomocoraçãoecomafé.Elenãofoi

persuadidopelostiposderaciocíniocomumenteusadospelosfilósofosarespeitodaexistência

deDeus.Elenãoestavaconvencido,porexemplo,dequeerapossívelverevidênciasdasmãos

deDeusnanatureza.Paraele,eraocoração,enãoocérebro,oórgãoquenoslevaaDeus.

Apesardisso,emseusPensées,eleapresentouumargumentobastanteplausívelpara

convenceraquelesquenãoestãocertosseDeusrealmenteexisteaacreditaremDeus,um

argumentoqueficouconhecidocomoapostadePascal.Esseargumentoerabaseadoemseu

interessepelaprobabilidade.Sevocêforumapostadorracional,enãoapenasumviciado,

desejaráteramelhorchancedeganharumgrandeprêmio,mastambémminimizarasperdas

semprequepossível.Apostadorescalculamprobabilidadese,emprincípio,apostamdemaneira

correspondente.EntãooqueissosignificaquandosetratadeapostarnaexistênciadeDeus?

SupondoquevocênãosaibaseDeusexisteounão,hádiversasopções.Vocêpodeviver

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comoseDeusdefinitivamentenãoexistisse.Seestivercerto,terávividosemseiludircomuma

possívelvidaapósamortee,porisso,teráevitadoaangústiadiantedapossibilidadedenão

chegaraocéuportersidoumpecadordemasiado.Tambémnãoteráperdidotemponaigreja

orandoparaumserinexistente.Masessaabordagem,emboratenhaalgunsbenefíciosclaros,traz

consigoumgranderisco.SevocênãoacreditaemDeuseelerealmenteexiste,vocênãosóterá

perdidoachancedaglórianoscéus,comotambémacabaránoinferno,ondeserátorturadopor

todaaeternidade.Paraqualquerpessoa,esteéopiordosfinaisimagináveis.

Poroutrolado,PascalsugerequevocêpodeescolhervivercomoseDeusexistisse.Pode

orar,iràigreja,leraBíblia.SeficarprovadoqueDeusrealmenteexiste,vocêganharáomelhor

prêmiopossível:apossibilidadedaglóriaeterna.SeescolheracreditaremDeusquandona

verdadeelenãoexiste,osacrifíciofeitonãoterásidotãogrande(e,presumivelmente,vocênão

existirámaisdepoisdamorteparasaberqueestavaerradoeficartristeporcontadotempoedo

esforçoperdidos).NaspalavrasdePascal,“emcasodevitória,ganha-setudo;emcasode

derrota,perde-senada”.Elereconheceuquetalveznãoaproveitemosos“prazeresque

envenenam”:oluxoeoprestígio.Masseremosfiéis,honestos,modestos,gratos,generosos,bons

amigosesemprediremosaverdade.Nemtodosveriamaquestãonessestermos.Pascal

provavelmenteestavatãoimersoemumestilodevidareligiosoquenãopercebeuquealgumas

pessoasnãoreligiosasconsiderariamumsacrifíciodevotaravidaàreligiãoeviverdailusão.

Noentanto,comoafirmaPascal,deumladoexisteachancedaglóriaeternaseacreditarmosem

Deuseestivermoscorretos,ealgumasilusõeseinconvenientesrelativamentepequenosse

estivermoserrados.Deoutrolado,corremosoriscodeirparaoinfernosenãoacreditarmosem

Deuseeleexistir,masospossíveisganhossecomparamàeternidadenocéu.

TambémnãopodemosficarindecisosemrelaçãoàexistênciaounãodeDeus.Doponto

devistadePascal,setentarmosfazerisso,poderemosterosmesmosresultadosqueteríamosse

nãoacreditássemosnaexistênciadeDeus:acabaríamosnoinferno,oupelomenosnãoteríamos

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acessoaocéu.SevocêrealmentenãosabeseDeusexiste,oquedeveriafazer?

Pascalconsideravaarespostaóbvia.Sevocêforumapostadorracionaleobservaras

probabilidadescomumbomolhar,veráquedeveriaapostarnaexistênciadeDeus,mesmoque,

comonocasodamoeda,hajaumapequenachancedeestarcorreto.Opossívelprêmioéinfinito

eapossívelperdanãoégrande.Nenhumserracionalfariaoutracoisaquenãofosseapostarna

existênciadeDeuscomessasprobabilidades,pensavaele.Obviamente,háumriscodese

apostaremDeuseperder,nocasodeelenãoexistir,porémesseéoriscoquesecorre.

Masesevocêconsegueveralógicadissotudoe,mesmoassim,nãosentirdecoraçãoque

Deusexiste?Érealmentedifícil(talvezatéimpossível)convencer-nosaacreditaremalgoque

suspeitemosnãoserverdade.Tenteacreditarqueexistemfadasemseuguarda-roupa.Vocêpode

atéimaginá-las,oqueémuitodiferentederealmenteacreditarqueelasestejamlá.Nós

acreditamosnaquiloquejulgamosserverdade.Eisanaturezadacrença.Então,comoumapessoa

queduvidadaexistênciadeDeuspassaaterféemDeus?

Pascaltinhaumarespostaparaisso.Depoisdeperceberqueseriamelhoracreditarem

Deus,vocêprecisaráencontrarumamaneiradeseconvencerdaexistênciadeleeterfé.Oque

devefazeréimitaraspessoasquejáacreditamemDeus.Passeumtemponaigrejafazendoo

mesmoqueaspessoasfazemlá.Tomeáguabenta,participedasmissaseassimpordiante.

Pascalpensavaquelogovocêestaránãosóimitandoasaçõesdessaspessoas,comotambém

tendoascrençaseossentimentosqueelastêm.Éasuamelhorchancedeganharavidaeternae

evitaroriscodatorturaeterna.

NemtodosconsideramoargumentodePascalabsolutamenteconvincente.Umdos

problemasmaisclaroséqueDeus,seexistir,nãoserámuitofavorávelàspessoasquesó

acreditamneleporserestaaapostamaissegura.Essapareceserumarazãoerradaparaacreditar

emDeus.Elaéegoístademaisporserbaseadainteiramentenodesejopessoaldesalvara

própriaalmaaqualquercusto.UmdosriscosseriaqueDeuspoderiaimpediraentradanocéu

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daquelesqueusassemoargumentodaaposta.

OutroproblemasériocomaapostadePascalénãolevaremcontaapossibilidadedeque,

aoadotá-la,vocêpodeestaroptandopelareligiãoerradaepeloDeuserrado.Pascaldavaa

opçãodetermosféemumDeuscristãoouemnenhumDeus,mashámuitasoutrasreligiõesque

prometemaglóriaeternaaosfiéis.Seumapessoadessasreligiõesmostra-secorreta,oindivíduo

queadotouaapostadePascal,aooptarporseguirocristianismo,podeestarseexcluindoda

felicidadeeternanocéutãocertamentequantoaquelequerejeitaacreditaremDeus.SePascal

tivessepensadonessapossibilidade,talveztivessesidoaindamaispessimistaemrelaçãoà

condiçãohumana.

PascalacreditavanoDeusdescritonaBíblia;BaruchEspinosatinhaumavisãobem

diferentedadeidade,visãoestaquelevoualgunsasuspeitaremdequeeleeraumateudisfarçado

CAPÍTULO13

Opolidordelentes

BARUCHESPINOSA

AmaiorpartedasreligiõesensinaqueDeusexisteemalgumlugarforadomundo,talveznocéu.

BaruchEspinosa(1632-1677)eraumaexceção,poispensavaqueDeuséomundo.Paradefender

seuargumento,eleescreviasobre“DeusouNatureza”–querendodizerqueasduaspalavras

referem-seàmesmacoisa.DeuseNaturezasãoduasmaneirasdedescreverumaúnicacoisa.

Deuséanatureza,eanaturezaéDeus.Estaéumaformadepanteísmo–crençadequeDeusé

tudo.Foiumaideiaradicalqueoenvolveuemumagrandequantidadedeconfusões.

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EspinosanasceuemAmsterdãeerafilhodejudeusportugueses.Naépoca,Amsterdãfazia

sucessoentreaspessoasquefugiamdaperseguição,masatémesmoláhavialimitesàsvisões

quepodiamserexpressas.Apesardetersidocriadonareligiãojudaica,Espinosafoi

excomungadoeamaldiçoadopelorabinonasinagogaem1656,quandotinha24anosdeidade,

provavelmenteporquesuasvisõessobreDeuseramheterodoxasdemais.EledeixouAmsterdãe

mudou-separaHaia.Apartirdaí,passouaserconhecidocomoBeneditodeEspinosa,enão

Baruch,seunomejudeu.

Muitosfilósofosficavamimpressionadoscomageometria.Asfamosasprovasdevárias

hipótesesgeométricasdadasporEuclides,filósofogregoantigo,iamdealgunsaxiomassimples

ousuposiçõesiniciaisaconclusõescomoadequeasomadosângulosinterioresdeumtriângulo

éigualadoisângulosretos.Oqueosfilósofoscostumamadmirarnageometriaéaformacomo

elacaminha,apassoslógicoscuidadosos,depontosiniciaispré-estabelecidosatéconclusões

surpreendentes.Seosaxiomassãoverdadeiros,entãoasconclusõestêmdeserverdadeiras.Esse

tipoderaciocíniogeométricoinspiroutantoRenéDescartesquantoThomasHobbes.

Espinosanãosóadmiravaageometria;eleescreviafilosofiacomosefossegeometria.As

“provas”emseulivroÉticaparecemprovasgeométricaseincluemaxiomasedefinições.Supõe-

sequeelastêmamesmalógicaimplacáveldageometria.Contudo,emvezdeostópicostratarem

dosângulosdostriângulosedacircunferênciadoscírculos,elesversamsobreDeus,natureza,

liberdadeeemoção.Espinosasentiaqueerapossívelpensarnessesassuntoseanalisá-lostal

comoraciocinamossobretriângulos,círculosequadrados.Elechegaaterminarasseçõescom

“QED”,abreviaçãodequoderatdemonstrandum,expressãolatinaquesignifica“como

queríamosdemonstrar”eapareceemlivrosdegeometria.Espinosaacreditavaquetantoomundo

quantoonossolugarneletinhamumalógicaestruturalsubjacentequepoderiaserreveladapela

razão.Nadaéoqueéporacaso;háumpropósitoeumprincípioparatudoisso.Tudoseencaixa

emumsistemagigantesco,eamelhormaneiradeentenderissoépelaforçadopensamento.Essa

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abordagemàfilosofia,enfatizandoarazãoenãooexperimentoeaobservação,costumaser

chamadaderacionalismo.

Espinosagostavadeficarsozinho.Foinasolidãoqueencontrouotempoeapazde

espíritoparaseguircontinuarosestudos.Provavelmentetambémeramaisseguronãofazerparte

deumainstituiçãomaispública,dadassuasvisõessobreDeus.Tambémporessarazão,seulivro

maisfamoso,Ética,sótenhasidopublicadodepoisqueelemorreu.Emboratenhaadquiridoa

famadeserumpensadorextremamenteoriginalenquantoaindaestavavivo,rejeitouaofertapara

ocuparumacadeiranaUniversidadedeHeidelberg.Noentanto,ficavafelizpordiscutirsuas

ideiascomalgunspensadoresqueovisitavam.OfilósofoematemáticoGottfriedLeibnizeraum

deles.

Espinosalevavaavidademaneirabastantesimples,morandoemhospedariasemvezde

compraraprópriacasa.Elenãoprecisavademuitodinheiroeconseguiasobrevivercomoque

ganhavacomopolidordelentesemaisalgunspequenospagamentosfeitosporquemadmirava

seutrabalhofilosófico.Aslentesquefaziaeramusadaseminstrumentoscientíficos,como

telescópiosemicroscópios.Issopermitiaqueelecontinuasseindependenteetrabalhassenas

hospedarias,masinfelizmentetambémcontribuiuparaquemorressecedo,aos44anos,deuma

infecçãopulmonar.Elerespiravaofinopódevidroquesesoltavadaslentes,eébemprovável

queissotenhaprejudicadoseuspulmões.

SeDeuséinfinito,diziaEspinosa,segue-sequenãopodeexistirnadaquenãosejaDeus.

SedescobrirmosalgonouniversoquenãosejaDeus,éporqueDeusnãoéinfinito,poisDeus

poderia,emprincípio,tersidoessealgo,bemcomotodasasoutrascoisas.Todossomospartes

deDeus,mastambémosãoaspedras,formigas,folhasdegramaejanelas.Tudo.Todasas

coisasestãointegradasemumtodoincrivelmentecomplexo,mas,emúltimainstância,tudooque

existeépartedeumaúnicacoisa:Deus.

OsreligiosostradicionaispregavamqueDeusamavaahumanidadeerespondiaapreces

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pessoais.Estaéumaformadeantropomorfismo–atribuirqualidadeshumanas,comocompaixão,

aumsernãohumano,Deus.AmaisextremaformadeantropomorfismoéimaginarDeuscomoum

homembondoso,debarbalongaesorrisogentil.ODeusdeEspinosanãosepareciaemnada

comisso.Ele–outalvezdemaneiramaisprecisa,“isso”–eraimpessoalenãoseimportava

comnadanemcomninguém.SegundoEspinosa,podemosedevemosamaraDeus,masnão

espereseramadodevolta.Issoseriacomoseumamantedanaturezaesperassequeelaoamasse

devolta.Naverdade,oDeusqueeledescreveétãocompletamenteindiferenteemrelaçãoaos

sereshumanoseaoqueelesfazemquemuitospensavamqueEspinosanãoacreditavaemDeuse

queseupanteísmoeraumdisfarce.Elefoitomadocomoateístaecontrárioàreligiãoaomesmo

tempo.Afinal,comopoderiaserconsideradaumapessoaqueacreditaqueDeusnãoseimporta

comahumanidade?Noentanto,daperspectivadeEspinosa,eletinhaumamorintelectualpor

Deus,umamorbaseadonoentendimentoprofundo,obtidopelarazão,oqueestavalongedeser

umareligiãoconvencional.Asinagogaprovavelmenteestavacertaemexcomungá-lo.

AsideiasdeEspinosasobreolivre-arbítriotambémeramcontroversas.Eleera

determinista.Issosignificaqueacreditavaquetodaaçãohumanaeraoresultadodecausas

anteriores.Umapedrajogadaparacima,sepudesseteraconsciênciadeumserhumano,pensaria

quesemoveporvontadeprópria,mesmoquenãosemovesse.Oquenaverdadeapropele

adianteéaforçadoarremessoeosefeitosdagravidade.Apedrapensariaqueela,enãoa

gravidade,controlasuatrajetória.Comossereshumanosaconteceomesmo:imaginamosestar

escolhendolivrementeoquefazemosetermoscontrolesobrenossasvidas.Masissoporqueem

geralnãoentendemosamaneiracomonossasescolhaseaçõesforamprovocadas.Naverdade,o

livre-arbítrioéumailusão.Nãoexiste,emabsoluto,aaçãolivreespontânea.

Emborafossedeterminista,Espinosaacreditavaquealgumtipodeliberdadehumanabem

limitadaerapossíveledesejável.Apiormaneiradeexistireraestarnoqueelechamoude

servidão:àcompletamercêdasemoções.Quandoalgoderuimacontece,alguémérude,por

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exemplo,eperdemosacalmaenosenchemosdeódio,essaéumamaneirabastantepassivade

existir.Simplesmentereagimosaosacontecimentos.Eventosexternoscausam-nosraiva.Não

estamosnocontroledejeitonenhum.Amaneiradeescapardissoéterumamelhorcompreensão

dascausasquemoldamocomportamento–ascoisasquenoslevamaterraiva.Segundo

Espinosa,omelhorquetemosafazerélevarasemoçõesasurgiremdasnossasescolhas,enão

doseventosexternos.Mesmoqueessasescolhasjamaispossamserplenamentelivres,émelhor

sermosativosdoquepassivos.

Espinosaéumsujeitotípicodafilosofia.Elefoipreparadoparasercontroverso,

apresentarideiasquenemtodosestavamprontosparaouviredefendersuasvisõescom

argumentação.Pormeiodaescrita,elecontinuainfluenciandoquemlêsuaobra,mesmoquando

discordamenfaticamentedoqueeledisse.AcrençadequeDeuséanaturezanãofoiaceitana

época,masdepoisqueEspinosamorreuconquistouadmiradoresbastantenotáveis,incluindoo

romancistavitorianoGeorgeEliot,quefezumatraduçãodeÉtica,eofísicoAlbertEinstein,do

séculoXX,que,emboranãotenhatidocoragemparaacreditaremumDeuspessoal,revelouem

umacartaqueacreditavanoDeusdeEspinosa.

ODeusdeEspinosa,comovimos,eraimpessoalenãotinhacaracterísticashumanas;

portanto,nãopunirianinguémporseuspecados.JohnLocke,nascidonomesmoanoque

Espinosa,tomouumalinhabemdiferente.Suadiscussãodanaturezadoquechamadesi-mesmo

[self]foiparcialmenteinspiradaemsuapreocupaçãosobreoqueacontecerianodiadojuízo

final.

CAPÍTULO14

Opríncipeeosapateiro

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JOHNLOCKEETHOMASREID

Comoquevocêsepareciaquandobebê?Setiverumafotografiadaépoca,dêumaolhadanela.

Oquevê?Eramesmovocênafotografia?Vocêéprovavelmentemuitodiferentehoje.Consegue

selembrardecomoeraserumbebê?Amaioriadenósnãoconsegue.Todosnósmudamoscomo

tempo.Crescemos,nosdesenvolvemos,amadurecemos,decaímos,esquecemosdascoisas.A

maioriadenósenche-sederugas,ocabeloacabaficandobrancooucai,mudamosnossas

opiniões,nossosamigos,nossaformadevestir,nossasprioridades.Dessemodo,emquesentido

vocêseria,quandovelho,amesmapessoaqueobebêqueforaoutrora?Essaperguntasobreo

quefazdeumapessoaamesmacomopassardotempofoiumadasqueatormentouofilósofo

inglêsJohnLocke(1632-1704).

Locke,assimcomomuitosfilósofos,tinhainteressesamplos.Entusiasmava-secomas

descobertascientíficasdosamigosRobertBoyleeIsaacNewton,envolveu-senapolíticada

épocaetambémescreveusobreeducação.LogodepoisdaGuerraCivilInglesa,fugiuparaa

HolandaacusadodeterseenvolvidoemumaconspiraçãoparamataroreiCarlosII,recém-

restituídonaépoca.Depoisdisso,Lockedefendeuatolerânciareligiosa,argumentandoserum

absurdotentarforçaraspessoaspormeiodatorturaamudarsuascrençasreligiosas.Suaideia

dequetemosaliberdade,afelicidade,apropriedadeeodireitoàvidadadosporDeus

influenciouosmembrosdacomissãoqueescreveramaConstituiçãodosEstadosUnidos.

NãotemosnenhumafotografiaoudesenhodeLockequandocriança,maséprovávelque

tenhamudadobastanteàmedidaqueenvelheceu.Quandochegouàmeia-idade,eleeraumafigura

magra,deolharpenetranteecabelocompridoeirregular.Quandobebê,noentanto,teriasido

bemdiferente.UmadascrençasdeLockeeraadequeamentedeumrecém-nascidoécomoum

quadrobranco.Nãosabemosnadaquandonascemos,etodooconhecimentoquetemosvemda

experiênciadevida.QuandoobebêLockecresceuetornou-seumjovemfilósofo,adquiriutodos

ostiposdecrençasetornou-seapessoaquehojeconhecemoscomoJohnLocke.Masemque

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sentidoelefoiamesmapessoaqueobebê,eemquesentidooLockedemeia-idadeeraamesma

pessoaqueelefoiquandojovem?

Essetipodeproblemanãopodeserlevantadosomenteparasereshumanosquese

perguntamsobresuarelaçãocomopassado.ComopercebeuLocke,issopodeserumaquestão

quandopensamossobremeias.Setemosumameiacomumburacoeoremendamos,edepois

remendamosoutroburacoemaisoutro,acabaremostendoumameiaqueconsisteapenasde

remendos,semnadamaisdomaterialoriginal.Elaaindaseráamesmameia?Emcertosentido,

sim,poisháumacontinuidadedepartesdameiaoriginalàmeiatotalmenteremendada.Contudo,

emoutrosentido,elanãoéamesmameia,poisnelanãorestanadadomaterialoriginal.Ou,

então,penseemumaárvore.Elanascedeumasemente,perdeasfolhastodososanos,cresce,os

galhoscaem,maselacontinuasendoamesmaárvore.Seriaasementeamesmaplantaqueo

brotoeseriaobrotoamesmaplantaqueaárvore?

Umadasmaneirasdetrataraquestãosobreoquetornaumserhumanoamesmapessoa

comopassardotemposeriaapontarquesomoscoisasvivas.Somososmesmosanimaisque

éramosquandobebês.Lockeusavaapalavra“homem”(quesignificatanto“homem”quanto

“mulher”)parasereferirao“animalhumano”.Elepensavaqueeraverdadeirodizerque,no

decorrerdavida,cadaumdenóspermaneciaomesmo“homem”nessesentido.Háuma

continuidadedoserhumanoquesedesenvolvenodecorrerdavida.Todavia,paraLocke,sero

mesmo“homem”erabemdiferentedeseramesmapessoa.

SegundoLocke,eupoderiaseromesmo“homem”,masnãoamesmapessoaquefui

anteriormente.Comoassim?Oquefazdenósamesmapessoacomopassardotempo,diziaele,

éanossaconsciência,apercepçãoquetemosdonossosi-mesmo[self].Aquilodequenão

podemosnoslembrarnãofazpartedenóscomopessoas.Parailustrarisso,eleimaginouum

príncipeacordandocomaslembrançasdeumsapateiroeumsapateiroacordandocomas

memóriasdeumpríncipe.Opríncipeacordanopalácio,comoédecostume,eparatodosos

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efeitoseleéamesmapessoaqueeraquandofoisedeitar.Porém,comosuasmemóriassãodeum

sapateiroemvezdassuaspróprias,elesentequeéumsapateiro.OobjetivodeLockeera

mostrarqueopríncipeestácertoporsentirqueéumsapateiro.Acontinuidadecorporalnão

importanessecaso.Oquevalenasquestõessobreaidentidadepessoaléacontinuidade

psicológica.Sevocêtemmemóriasdeumpríncipe,éporqueéumpríncipe.Setiverasmemórias

deumsapateiro,éporqueéumsapateiro,mesmoquetenhaocorpodeumpríncipe.Seo

sapateirotivessecometidoumcrime,quemseriaresponsabilizadoporissoseriaaquelecom

corpodepríncipe.

Éclaroqueasmemóriasnãosãotrocadasassim.Lockeusavaesseexperimentomental

paradefenderumargumento.Entretanto,algumaspessoasafirmamqueépossívelmaisdeuma

pessoahabitaromesmocorpo.Trata-sedeumacondiçãoconhecidacomodistúrbiodemúltipla

personalidade,quandoparecequediferentespersonalidadesapresentam-secomoumúnico

indivíduo.Lockepreviuessapossibilidadeeimaginouduaspersonalidadescompletamente

diferentesvivendonomesmocorpo–umaseapresentandoduranteodiaeaoutraduranteanoite.

Paraele,seessasduasmentesnãotêmacessoumaàoutra,entãosetratadeduaspessoas.

ParaLocke,questõesrelacionadasàidentidadepessoalestavamintimamenteconectadasà

responsabilidademoral.EleacreditavaqueDeussópuniriaaspessoaspeloscrimesqueelasse

lembrassemdetercometido.Apessoaquenãoselembrassemaisdeterfeitoomalnãoseriaa

mesmapessoaquecometeuocrime.Navidacotidiana,éclaro,aspessoasmentemsobreaquilo

dequeselembram.Portanto,sealguémafirmaterseesquecidodoquefez,osjuízesrelutamem

deixá-lairembora.MascomoDeussabetudo,serácapazdedizerquemmereceapuniçãoe

quemnãomerece.UmaconsequênciadavisãodeLockeseriaque,seumcaçadordenazistas

encontrasseumidosoque,quandojovem,foraguardadeumcampodeconcentração,oidososó

seriaresponsávelpeloqueconseguisseselembrar,enãoporoutroscrimes.Deusnãoopuniria

poraçõesdasquaiseleseesqueceu,aindaqueosjúriscomunsnãolhedessemobenefícioda

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dúvida.

AabordagemdeLockeàidentidadepessoaltambémrespondeuaumaquestãoqueocupou

algunsdosseuscontemporâneos.Elesseperguntavamseprecisávamosdomesmocorpoparaser

trazidosdevoltaàvidaparachegaraoparaíso.Sesim,oqueaconteceriaseoseucorpofosse

comidoporumcanibalouanimalselvagem?Comovocêreuniriatodasaspartesdocorpopara

serressuscitadodosmortos?Seocanibalcomeuseucorpo,partesdevocêsetornaramparte

dele.Então,comoseriapossívelrestabelecerocorpotantodocanibalquantoodacarnedo

canibal(istoé,você)?Lockedeixouclaroqueoqueimportavaeraseramesmapessoanavida

apósamorte,enãoomesmocorpo.Nessavisão,poderíamosserasmesmaspessoasse

tivéssemosasmesmasmemórias,aindaqueelasestivessemligadasaumcorpodiferente.

UmaconsequênciadavisãodeLockeéquevocêprovavelmentenãoéamesmapessoaque

obebêdafotografia.Vocêéomesmoindivíduo,masnãopodeseramesmapessoa,excetose

conseguirselembrardeserumbebê.Suaidentidadepessoalsóseestendeatéondevaisua

memóriaemrelaçãoaopassado.Omesmoacontecequandoasmemóriasseenfraquecemna

velhice:aextensãodoquevocêécomopessoatambémdiminuirá.

AlgunsfilósofosacreditamqueLockefoiumpoucolongedemaisaoenfatizaramemória

autoconscientecomoabasedaidentidadepessoal.NoséculoXVIII,ofilósofoescocêsThomas

ReidapresentouumexemplomostrandoumpontofraconaformadeLockepensarsobreoqueé

serumapessoa.Umvelhosoldadopodelembrar-sedacoragemqueteveemumabatalhaquando

aindaerajovem;e,quandoerajovem,poderialembrar-sedequelevaraumasurraquandogaroto

porroubarmaçãsdeumpomar.Contudo,navelhice,osoldadonãopodemaisselembrardesse

acontecimentodainfância.Poderiadefatoessepadrãodememóriasquesesobrepõemsignificar

queovelhosoldadoaindaéamesmapessoaqueogaroto?ThomasReidpensavaqueeraóbvio

ovelhosoldadoaindaseramesmapessoaqueogaroto.

DeacordocomateoriadeLocke,ovelhosoldadoeraamesmapessoaqueojovem

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soldado,masnãoeraamesmapessoaqueogarotoquelevaraasurra(porqueovelhosoldado

haviaseesquecidodisso).Contudo,tambémdeacordocomateoriadeLocke,ojoveme

corajososoldadoeraamesmapessoaqueacriança(porqueeleconseguiaselembrardo

episódiodopomar).Issonosdáoresultadoabsurdodequeovelhosoldadoéamesmapessoa

queojovemsoldadocorajosoedequeojovemsoldadocorajosoéamesmapessoaquea

criança;mas,aomesmotempo,ovelhosoldadoeacriançanãosãoamesmapessoa.Poruma

questãológica,issonãofazomenorsentido.ÉcomodizerqueA=BeB=C,masAnãoéigual

aC.Aidentidadepessoal,parece,baseia-seemmemóriassobrepostas,enãoemumarecordação

total,comoqueriaLocke.

OimpactodeLockecomofilósofocorrespondeamuitomaisdoquesuadiscussãosobrea

identidadepessoal.EmseulivroEnsaiosobreoentendimentohumano(1690),eleapresentaa

visãodequenossasideiasrepresentamomundoparanós,massomentealgunsaspectosdesse

mundosãocomoparecemser.IssolevouGeorgeBerkeleyacriarsuaprópriaexplicaçãoda

realidade.

CAPÍTULO15

Oelefantecinza

GEORGEBERKELEY(EJOHNLOCKE)

Vocêjáparouparapensarsealuzdageladeirarealmenteseapagaquandofechaaportae

ninguémmaispodevê-la?Comopoderiaver?Talvezimprovisandoumacâmera.Masentãoo

queacontecequandovocêdesligaacâmera?Eumaárvorecaindonumaflorestaondeninguém

podeescutar?Elafazrealmentealgumbarulho?Comovocêsabequeoseuquartocontinua

existindo,semserobservado,quandovocênãoestádentrodele?Talvezeledesapareçatodavez

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quevocêsai.Seriapossívelpedirquealguémverificasseparavocê.Aquestãocomplicadaé:

elecontinuaexistindomesmoquandonãoéobservadoporninguém?Nãoestáclarocomo

poderíamosresponderaessasquestões.Amaioriadenóspensaqueosobjetoscontinuam

existindoquandonãosãoobservadosporqueessaéaexplicaçãomaissimples.Amaioriadenós

tambémacreditaqueomundoqueobservamosestádefatoláfora,enãoapenasemnossamente.

Noentanto,deacordocomGeorgeBerkeley(1685-1753),filósofoirlandêsquesetornou

bispodeCloyne,tudooquedeixadeserobservadodeixadeexistir.Senãohánenhumamente

conscientedolivroquevocêestálendo,elenãoexistirámais.Quandovocêestáolhandoparao

livro,conseguevê-loetocaraspáginas,mas,paraBerkeley,issonãosignificanadaalémdeque

vocêtemexperiências.Nãoimportaseháalgumacoisaláfora,nomundo,causandoessas

experiências.Olivroéapenasumareuniãodeideiasemsuamenteenamentedeoutraspessoas

(etalveznamentedeDeus),nãoalgoalémdamente.ParaBerkeley,todaanoçãodeummundo

exteriornãofazsentidonenhum.Tudoissopareceircontraosensocomum.Certamenteestamos

rodeadosdeobjetosquecontinuamexistindoquerestejamosounãocientesdele,nãoé?Berkeley

achavaquenão.

ÉcompreensívelquemuitaspessoastenhampensadoqueBerkeleyestavaloucoquando

começouaexplicitaressateoria.Naverdade,foisomentedepoisdesuamortequeosfilósofos

começaramalevá-loasérioereconheceroqueeleestavatentandodizer.QuandoSamuel

Johnson,umcontemporâneodeBerkeley,soubedateoria,chutouumapedranaruaedisse:“É

destemodoquearefuto”.Johnsonacreditavatercertezadequeascoisasmateriaisexistemenão

sãoapenascompostasdeideias–elesentiubemforteodedobaternapedraquandoachutou,

entãoBerkeleydeviaestarerrado.Todavia,BerkeleyeramaisinteligentedoqueJohnson

pensava.Sentiradurezadeumapedracontraopénãoprovavaaexistênciadeobjetosmateriais,

apenasaexistênciadaideiadeumapedradura.Tantoque,paraBerkeley,oqueelechamavade

pedranadamaiséqueassensaçõesqueelasuscita.Nãohánenhumapedrafísica“real”portrás

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doquecausouadornopé.Naverdade,nãohárealidadenenhumaportrásdasideiasquetemos.

Berkeleyàsvezesédescritocomoidealista,eàsvezescomoimaterialista.Eraidealista

porqueacreditavaquetudooqueexistiaeramasideias;eeraimaterialistaporquenegavaqueas

coisasmateriais–osobjetosfísicos–existiam.Assimcomomuitosoutrosfilósofosdiscutidos

nestelivro,eleerafascinadopelarelaçãoentreaparênciaerealidade.Amaiorpartedos

filósofos,acreditavaele,estavamerradossobreoqueeraessarelação.Emparticular,ele

argumentavaqueJohnLockeestavaerradosobrecomonossospensamentosrelacionam-secomo

mundo.ÉmaisfácilentenderaabordagemdeBerkeleycomparando-acomadeLocke.

Lockepensavaque,seolhamosparaumelefante,nãovemosoelefanteemsi.Oque

tomamoscomoelefantenaverdadeéumarepresentação:oqueelechamoudeumaideiana

mente,algocomooretratodeumelefante.Lockeusavaapalavra“ideia”parasereferira

qualquercoisaquepudéssemosperceberoupensar.Quandovemosumelefantecinza,a

qualidadedocinzanãopodesimplesmenteseralgonoelefante,poiselepareceriaserdeoutra

corsobumaluzdiferente.AqualidadedocinzaéoqueLockechamoude“qualidade

secundária”.Elaéproduzidapelacombinaçãodecaracterísticasdoelefanteecaracterísticasdo

nossoaparatosensorial–nessecaso,oolho.Acordapele,atexturaeocheirodococôdo

elefantesãoqualidadessecundárias.

Asqualidadesprimárias,comotamanhoeforma,segundoLocke,sãocaracterísticasreais

dascoisasnomundo.Asideiasdasqualidadesprimáriaslembramessascoisas.Quandovemos

umobjetoquadrado,oobjetorealquedáorigemànossaideiadoobjetotambéméquadrado.

Masquandovemosumquadradovermelho,oobjetorealnomundoqueprovocanossapercepção

nãoévermelho.Objetosreaisnãotêmcor.Assensaçõesdecor,acreditavaLocke,vinhamda

interaçãoentreastexturasmicroscópicasdosobjetosenossosistemavisual.

Contudo,háaquiumproblemasério.Lockeacreditavaqueháummundoláfora,omundo

queoscientistastentamdescrever,massóchegamosatéeledemaneiraindireta.Eleerarealista,

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poisacreditavanaexistênciadeummundoreal.Essemundorealcontinuaexistindo,mesmo

quandoninguémestácientedele.AdificuldadeparaLockeésabercomoomundoé.Elepensa

quenossasideiasdasqualidadesprimárias,comoformaetamanho,sãoboasrepresentaçõesda

realidade.Mascomoexplicar?Comoempirista,alguémqueacreditaqueaexperiênciaéafonte

detodonossoconhecimento,eledeveriaterboasevidênciasparaafirmarqueasideiasdas

qualidadesprimáriaslembramomundoreal.Massuateorianãoexplicadequemaneiraelesabia

comoeraomundoreal,vistoquenãopodemosiratéeleparaverificar.Comopodiatertanta

certezadequeasideiasdasqualidadesprimárias,comoformaetamanho,lembramasqualidades

domundorealforadenós?

Berkeleyalegavasermaisconsistente.AdespeitodeLocke,elepensavaquenós

percebemosomundodiretamente,issoporqueomundonãoconsistedenadaalémdeideias.

Tudooqueexisteéaexperiênciacomoumtodo.Emoutraspalavras,omundoetudooqueestá

nelesóexistemnamentedaspessoas.

ParaBerkeley,tudooqueexperimentamoseemquepensamos–umacadeiraouumamesa,

onúmero3etc.–sóexistenamente.Umobjetoéapenasareuniãodeideiasquenóseoutras

pessoastemosdele.Elenãotemnenhumaexistênciaalémdisso.Semalguémparavê-losou

ouvi-los,osobjetossimplesmentedeixamdeexistir,poisosobjetosnãosãonadaalémdas

ideiasqueaspessoas(eDeus)têmdeles.Berkeleyresumiuessaestranhavisãoemlatimcomo

“Esseestpercipi”–ser(ouexistir)éserpercebido.

Porisso,aluzdageladeiranãopodeestarligada,eaárvorenãopodefazerbarulho

quandonenhumamenteasexperimenta.Essapareceriaseraconclusãoóbviaretiradado

imaterialismodeBerkeley.MasBerkeleynãopensaqueosobjetospassamaexistiredeixamde

existircontinuamente.Elepróprioreconheceuqueissoseriaestranho.EleacreditavaqueDeus

garantiaaexistênciacontínuadasnossasideias.Deusestavaconstantementepercebendoas

coisasnomundo,eporissoelascontinuavamexistindo.

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IssofoirepresentadoemdoispoemashumorísticosescritosnoiníciodoséculoXX.

Vejamosoprimeiro,quesalientaaestranhezadaideiadequeumaárvoredeixariadeexistirse

ninguémaestivesseobservando:

Eraumavezumhomemquedisse:

Deusiarir

sesoubessequeaárvore

continuaaexistir

quandoninguémestáaqui.

Issoestátotalmentecorreto.OaspectomaisdifícildeaceitarnateoriadeBerkeleyéque

umaárvorenãoestariaemseulugarsenãohouvesseninguémaexperienciando.Osegundoéa

solução,umamensagemdeDeus:

Meucaroamigo,estousempreaqui,

eéporissoqueaárvore

continuaráaexistir.

Deusaobserva

semnuncadesistir.

UmadificuldadeóbviaparaBerkeley,noentanto,éexplicarcomopodemosestarsempre

erradosemrelaçãoàscoisas.Setudooquetemossãoideias,enãoháoutromundoportrás

delas,comosabemosadiferençaentreosobjetosreaiseasilusõesópticas?Arespostadeleera

queadiferençaentreaexperiênciadoquechamamosrealidadeeaexperiênciadeumailusãoé

que,quandoexperimentamosa“realidade”,nossasideiasnãosecontradizemumasàsoutras.Por

exemplo,quandoolhamosumremodentrod’água,elepodeparecertortovistodasuperfícieda

água.ParaumrealistacomoLocke,averdadeéqueoremoérealmentereto–elesóparece

torto.ParaBerkeley,temosumaideiadeumremotorto,maselacontradizasideiasquetemosse

colocarmosamãodentrodaáguaetocá-lo.Sentiremos,assim,queeleéreto.

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Berkeleynãopassavaotempointeirodefendendoseuimaterialismo.Haviamuitomais

coisasparaelefazernavida.Eleeraumhomemsociáveleadorável,eseusamigosincluíam

JonathanSwift,autordeAsviagensdeGulliver.Nofinaldavida,Berkeleyelaborouumplano

ambiciosoparaconstruirumauniversidadenailhadeBermudaseconseguiuumgrandeapoio

financeiroparamontá-la.Infelizmenteoplanodeuerrado,emparteporqueelenãohavia

percebidooquantoBermudaseralongedocontinenteeoquantoeradifícillevarsuprimentosaté

lá.Noentanto,depoisdesuamorte,eleteveumauniversidadenacostaoestedosEstadosUnidos

nomeadaemsuahomenagem–Berkeley,naCalifórnia.Ahomenagemocorreuporcontadeum

poemaqueeleescreveusobreaAmérica,quecontinhaestalinha:“Oeste,ahistóriadoimpério

segueseucaminho”,versoqueagradavaaumdosfundadoresdauniversidade.

TalvezaindamaisestranhoqueoimaterialismodeBerkeleysejasuapaixão,naidade

avançada,porfomentaraáguadealcatrão,umremédiofeitocomalcatrãodepinhoeágua.

Esperava-sequeessaáguacurassetodasasdoenças.Elechegouaopontodeescreverumlongo

poemasobrecomoomedicamentoerafantástico.Emboraaáguadealcatrãotenhasidopopular

durantealgumtempo,etalvezatétenhafuncionadoparacurarenfermidadesmaissimples,pois

elatemumalevepropriedadeantisséptica,certamentenãoéumremédioconhecidohoje.O

idealismodeBerkeleynãosedifundiudamesmamaneira.

Berkeleyéoexemplodeumfilósofoqueestavapreparadoparaseguirumargumento

aondequerqueelefosse,atémesmoquandoparecialevaraconclusõesquedesafiavamosenso

comum.Voltaire,emcontrapartida,tevepoucotempoparaessetipodepensadorou,naverdade,

paraamaioriadosfilósofos.

CAPÍTULO16

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Omelhordetodososmundospossíveis?

VOLTAIREEGOTTFRIEDLEIBNIZ

Vocêfariaomundodojeitoqueéseoestivesseprojetando?Provavelmentenão.Porém,no

séculoXVIII,algumaspessoasargumentaramqueaquelemundoeraomelhordetodososmundos

possíveis.“Tudooqueé,écorreto”,declarouopoetainglêsAlexanderPope(1688-1744).Tudo

oqueexistenomundoédojeitoqueéporumarazão:tudoéobradeDeus,eDeusébometodo-

poderoso.Doenças,inundações,terremotos,incêndiosflorestais,secas–tudofazpartedoplano

deDeus.Nossoerroénosconcentrarmosdemaisemdetalhesindividuaisenãoverocontexto

comoumtodo.SepudéssemosnosdistanciareverouniversodeondeDeusestá,

reconheceríamosaperfeiçãoqueeleé,comotodasascoisasseencaixametudooqueparece

malé,naverdade,partedeumplanomuitomaisamplo.

Popenãoestavasozinhoemseuotimismo.OfilósofoalemãoGottfriedWilhelmLeibniz

(1646-1716)usouoseuprincípiodarazãosuficienteparachegaràmesmaconclusão.Elesupôs

quedevehaverumaexplicaçãológicaparatudo.ComoDeuséperfeitoemtodososaspectos–

issofazpartedadefinição-padrãodeDeus–,segue-sequeDeusdevetertidoexcelentesrazões

paracriarouniversoexatamentedaformacomocriou.Nadapoderiaserdeixadoaoacaso.Deus

nãocriouummundoabsolutamenteperfeitoemtodososaspectos–issotornariaomundoo

próprioDeus,poisDeuséacoisamaisperfeitaqueháoupodehaver.Maseledeveterfeitoo

melhordosmundospossíveis,oúnicocomamínimaquantidadedemalnecessárioparaobter

esseresultado.Nãopoderiahaverumamaneiramelhordejuntarospedaçosdoqueesta:nenhum

projetoteriaproduzidomaisbondadeusandomenosmal.

François-MarieArouet(1694-1778),maisconhecidocomoVoltaire,nãoviadessa

maneira.Elenãoseconformavadejeitonenhumcomessa“prova”dequetudoestáindobem.

Elesuspeitavaprofundamentedossistemasfilosóficosedotipodepensadorqueacreditater

todasasrespostas.Essedramaturgo,satírico,escritordeficçãoepensadorficoumaisconhecido

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emtodaaEuropaporsuasideiasfrancas.AesculturamaisfamosadaimagemdeVoltaire,feita

porJean-AntoineHoudon,conseguiucapturarosorrisocerradoeospésdegalinhadessehomem

espirituosoecorajoso.Defensordaliberdadedeexpressãoedatolerânciareligiosa,Voltairefoi

umafiguracontroversa.Acredita-se,porexemplo,queeletenhadito:“Nãoconcordocomoque

vocêdiz,masdefendereiatéamorteoseudireitodedizê-lo”,umafortedefesadoprincípiode

queatémesmoasideiasquedetestamosmerecemserouvidas.NaEuropadoséculoXVIII,

porém,aIgrejaCatólicacontrolavacomrigidezoquepodiaserpublicado.Muitosdoslivrose

peçasdeVoltaireforamcensuradosequeimadosempúblico,eelechegouaserpresona

Bastilha,emParis,porterinsultadoumpoderosoaristocrata.Masnadadissooimpediude

desafiarospreconceitoseaspretensõesdaquelesqueocercavam.Noentanto,hojeeleémais

conhecidocomooautordeCândido(1759).

Nessecurtoromancefilosófico,Voltairedestruiucompletamenteotipodeotimismosobre

ahumanidadeeouniversoquePopeeLeibnizhaviamexpressado,eofezdemodotãodivertido

queolivrologosetornouumcampeãodevendas.Sabiamente,Voltairenãocolocouseunomena

capa;docontrário,suapublicaçãooterialevadoàprisãomaisumavezporridicularizaras

crençasreligiosas.

Cândidoéopersonagemcentral.Seunomesugereinocênciaepureza.Noiníciodolivro,

eleéumjovemserviçalqueseapaixonadesesperadamentepelafilhadopatrão,Cunegundes,

maséexpulsodocastelodopaidelaquandoosdoissãoflagradosnumasituaçãoconstrangedora.

Daíemdiante,emumanarrativarápidaemuitasvezesfantástica,eleviajaporpaísesreaise

imaginárioscomseututordefilosofia,dr.Pangloss,atéquefinalmentesereencontracomseu

amorperdido,Cunegundes,emboraagoraelaestejavelhaefeia.Emumasériedeepisódios

cômicos,CândidoePanglosstestemunhameventosterríveiseencontrampelocaminhodiversos

personagensquesofreramdesgraçashorrendas.

Voltaireusaotutordefilosofia,Pangloss,paraexporumaversãocaricaturadadafilosofia

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deLeibniz,daqualzombaoescritor.Tudooqueacontece,sejadesastrenatural,tortura,guerra,

estupro,perseguiçãoreligiosaouescravidão,Panglosstratacomomaisumaconfirmaçãodeque

elesvivemnomelhordosmundospossíveis.Emvezdelevá-loarepensarsuascrenças,cada

desastresóaumentasuaconfiançadequetudoaconteceparaomelhoredequeascoisastinham

deserassimparaproduziramaisperfeitasituação.Voltairedeleita-seaorevelararecusade

Panglossemveroqueestádiantedele,eissoseriaumaimitaçãodootimismodeLeibniz.Mas,

parafazerjusaLeibniz,suaideianãoeraadequeomalnãoacontece,massimadequeomal

existenteeranecessárioparapromoveromelhormundopossível.Noentanto,Voltaireestá

sugerindoquehátantomalnomundoquedificilmenteseriaprovávelqueLeibnizestivessecerto

–essemalnãopodeseromínimonecessárioparaatingirumbomresultado.Simplesmentehá

muitadoresofrimentonomundoparaqueateoriadeLeibnizfosseverdadeira.

Em1755,houveumdospioresdesastresnaturaisdoséculoXVIII:oterremotodeLisboa,

quematoumaisde20milpessoas.Acidadeportuguesafoidevastadanãosópeloterremoto,mas

tambémpelotsunamiqueveioemseguidaedepoisporincêndiosquesealastrarampordias.O

sofrimentoeaperdadevidaschocouacrençadeVoltaireemDeus.Elenãoconseguiaentender

comoumacontecimentocomoessepoderiafazerpartedeumplanomaior.Aescalade

sofrimentonãofazianenhumsentidoparaele.PorqueumbomDeuspermitequeissoaconteça?

EletampoucoconseguiaentenderporqueLisboaeraoalvo.Porqueláenãoemoutrolugar?

Emumepisódio-chavedeCândido,Voltaireusouessatragédiarealparaajudara

construirseuargumentocontraosotimistas.ObarcodosviajantesnaufragapertodeLisboaem

umatempestadequemataquasetodosabordo.Oúnicosobreviventedatripulaçãofoium

marinheiroqueaparentementehaviaafogadodepropósitoumdosamigos.Noentanto,apesarda

óbviafaltadejustiçanesseacontecimento,Panglossaindavêtudooqueacontecepelofiltrode

seuotimismofilosófico.AochegaraLisboalogodepoisqueoterremotodevastaraacidadee

deixaradezenasdemilharesdepessoasmortasoumorrendoemvoltadele,Panglosscontinua,de

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maneiraabsurda,sustentandoqueestátudobem.Norestantedolivro,ascoisasficamainda

pioresparaPangloss–eleéenforcado,dissecadovivo,espancadoepostopararemarumagalé.

Mesmoassim,eleaindaseagarraàcrençadequeLeibnizestavacertoporacreditaremuma

harmoniapreestabelecidadetudooqueé.Nãoháexperiênciaqueafastedesuascrençaso

obstinadoprofessordefilosofia.

AocontráriodePangloss,Cândidovaisemodificandopoucoapoucocomoquevê.

Emboranoiníciodajornadaelecompartilhedasvisõesdoprofessor,nofinaldolivrosuas

experiênciasotornamcéticosobretodaafilosofiaeeleoptapordarumasoluçãomaisprática

aosproblemasdavida.

CândidoeCunegundesreconciliam-seevivemjuntoscomPanglosseváriosoutros

personagensemumapequenafazenda.Umdospersonagens,Martinho,sugerequeaúnica

maneiradetornaravidasuportáveléparardefilosofaretrabalhar.Pelaprimeiravezeles

começamacooperar,ecadaumdáseguimentoàatividadequemelhorsabeexecutar.Quando

Panglosscomeçaaargumentarquetudoderuimquehaviaacontecidonavidadeleseraummal

necessárioquehavialevadoaessaconclusãofeliz,Cândidodizquetudobem,masque

“devemoscultivarnossojardim”.Essassãoasúltimaspalavrasdahistóriaetêmaintençãode

transmitirumafortemensagemaoleitor.Afraseéamoraldolivro,aconclusãodessagrande

piada.Emumníveldahistória,Cândidoestásimplesmentedizendoqueelesprecisamcontinuar

comotrabalhonafazenda,queprecisammanter-seocupados.Emumnívelmaisprofundo,

porém,cultivarnossojardim,paraVoltaire,éumametáforaparafazeralgoútilparaa

humanidadeemvezdesimplesmentefalarsobrequestõesfilosóficasabstratas.Issoéqueos

personagensdolivroprecisamfazerparaflorescereserfelizes.Voltaire,noentanto,refere-se

incisivamentenãosóaoqueCândidoeseusamigosdeveriamfazer,massimaoquetodosnós

devemosfazer.

Voltaireerabemdiferentedosoutrosfilósofosporserrico.Quandojovem,elefezparte

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deumgrupoquedescobriuumproblemanosistemadeloteriadogovernoecomproumilharesde

bilhetespremiados.Investiudemaneiraamplaeenriqueceuaindamais.Issodeuaelea

liberdadefinanceiraparadefenderascausasemqueacreditava.Acabardevezcomainjustiça

erasuapaixão.UmdeseusatosmaisimpressionantesfoidefenderareputaçãodeJeanCalas,

queforatorturadoeexecutadoporsupostamentetermatadooprópriofilho.Calaseraclaramente

inocente:ofilhosuicidara-se,masacorteignorouasevidências.Voltairenãoconseguiureverter

ojulgamento.NãohavianenhumachancedealívioparaopobreJeanCalas,quedefendeusua

inocênciaatéoúltimosuspiro;contudo,aomenosseus“cúmplices”foramlibertados.Éissoque,

naprática,significa“cultivarnossojardim”paraVoltaire.

PelomodocomoVoltairezombada“prova”dePanglossdequeDeusproduziraomelhor

dosmundospossíveis,poderíamosconcluirqueoautordeCândidoeraateu.Naverdade,

emboranãotenhatidotempoparaumareligiãoorganizada,eleeradeísta,alguémqueacredita

haverevidênciasvisíveisdaexistênciaedodesígniodeDeusaseremencontradasnanatureza.

Paraele,observarocéuduranteanoiteeratudooqueprecisavaparaprovaraexistênciadeum

Criador.DavidHumefoiextremamentecéticoemrelaçãoaessaideia.Suascríticasaesseestilo

deraciocíniosãodevastadoras.

CAPÍTULO17

Orelojoeiroimaginário

DAVIDHUME

Dêumaolhadaemumdosseusolhosnoespelho.Eletemumalentequefocalizaaimagem,uma

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írisqueseadaptaàmudançadeluzepálpebrasecíliosqueoprotegem.Sevocêolharparaum

dosdoislados,oglobooculargiranaprópriaórbita.Étambémmuitobonito.Comopôde

acontecerumacoisaassim?Oolhoéumabelapeçadeengenharia.Comopôdeumolhosetornar

algodessetiposimplesmentepeloacaso?

Imagine-secaminhandoaostropeçõesnaselvadeumailhadesertaquando,derepente,

chegaaumagrandeclareira.Vocêsobesobreasruínasamontoadasdeumpaláciocommuros,

escadas,trilhasejardinsepercebequeaquilonãoestariaaliporacaso.Alguémdevetê-lo

projetado,talvezumaespéciedearquiteto.Seencontramosumrelógioquandosaímosparaum

passeio,érazoávelsuporqueelefoifeitoporumrelojoeiroequefoicriadocomumpropósito:

informarashoras.Aquelasengrenagensminúsculasnãoaparecemsozinhasemseuslugares.

Alguémdeveterconcebidooprocessointeiro.Essesexemplosparecemdizeramesmacoisa:é

praticamentecertoqueobjetosqueparecemtersidocriadostenhammesmosidocriados.

Penseentãonanatureza:árvores,flores,mamíferos,pássaros,répteis,insetoseaté

amebas.Essesserestambémdãoasensaçãodequeforamcriados.Organismosvivossãomuito

maiscomplexosdoquequalquerrelógio.Mamíferostêmsistemasnervososcomplexos,sangue

circulandopelocorpoegeralmenteseadaptammuitobemaoslugaresquehabitam.Dessemodo,

comcertezaumCriadorincrivelmentepoderosoeinteligentedevetê-losfeito.EsseCriador–

umrelojoeirodivinoouumarquitetodivino–temdetersidoDeus.Oupelomenoseraissoque

muitaspessoaspensavamnoséculoXVIIIquandoDavidHumeescrevia–ealgumasaindahoje.

EsseargumentoparaaexistênciadeDeuséconhecido,demodogeral,comoargumentodo

desígnio.NovasdescobertascientíficasfeitasnosséculosXVIIeXVIIIpareciamdarsuportea

ele.Microscópiosrevelaramacomplexidadedeanimaisaquáticosminúsculos;telescópios

mostraramabelezaearegularidadedosistemasolaredaViaLáctea.Esseselementostambém

pareciamtersidoformadoscomgrandeprecisão.

OfilósofoescocêsDavidHume(1711-1776)nãoestavaconvencidodisso.Influenciado

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porLocke,propôs-seaexplicaranaturezadahumanidadeenossolugarnouniverso

considerandocomoadquirimosconhecimentoeoslimitesdoquepodemosaprenderusandoa

razão.AssimcomoLocke,eleacreditavaquenossoconhecimentovemdaobservaçãoeda

experiência;portanto,estavaparticularmenteinteressadoemumargumentoparaaexistênciade

Deusquecomeçassecomaobservaçãodealgunsaspectosdomundo.

Eleacreditavaqueoargumentododesígnioerabaseadonalógica.SeuInvestigaçãosobre

oentendimentohumano(1748)incluiuumcapítuloqueatacavaaideiadequepodemosprovara

existênciadeDeusdessamaneira.Essecapítuloemaisoutroargumentandoquenuncaera

razoávelacreditarnosrelatosdetestemunhasarespeitodemilagresforamextremamente

controversos.Naépoca,eradifícilserabertamentecontrárioacrençasreligiosasnaGrã-

Bretanha.IssoquerdizerqueHumenuncaconseguiuempregoemumauniversidade,embora

fosseumdosgrandespensadoresdaépoca.Seusamigosoaconselharamanãopermitira

publicaçãodeseumaispoderosoataqueaosargumentoscomunsparaaexistênciadeDeus,o

Diálogossobreareligiãonatural(1779),enquantoestivessevivo.

OargumentododesígnioprovaaexistênciadeDeus?Humepensavaquenão.Oargumento

nãoforneceevidênciasuficienteparaconcluirqueumseronipotente,oniscienteeonipresente

devaexistir.GrandepartedafilosofiadeHumefoiconcentradanotipodeevidênciaque

podemosdarparaapoiarnossascrenças.Oargumentododesígniobaseia-senofatodequeo

mundoparecetersidoprojetado.Contudo,argumentavaHume,sóporquepareceprojetadonão

querdizernecessariamentequefoiprojetado;tampoucoseseguequeDeustenhasidoo

projetista.Comoelechegouaessaconclusão?

Imagineumabalançaantigacobertaparcialmenteporumadivisória,demodoquesó

podemosverumdospratos.Sevirmosopratosubir,concluiremosqueoqueestánooutroprato

émaispesadodoqueopratoquevemos.Nãopodemosdizerseoobjetoqueestánooutroprato

temaformadeumcuboouesfera,qualsuacor,sehápalavrasescritasnele,seécobertode

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pelosouqualqueroutrodetalhe.

Nesseexemplo,estamospensandoemcausaseefeitos.Emrespostaàquestão“Oque

causouomovimentodesubidadoprato?”,tudooquepodemosresponderé“Acausafoialgo

maispesadonooutroprato”.Nósvemosoefeito–opratosubindo–etentamosdescobrira

causaapartirdele.Mas,semmaisevidências,nãohámuitomaisoquedizer.Tudooque

dissermosserámerasuposição,enãohácomosabermosseéverdadeounãosenãoolharmos

portrásdadivisória.Humepensavaqueestamosemumasituaçãosemelhanteemrelaçãoao

mundoquenoscerca.Nósvemososefeitosdeváriascausasetentamosdescobriraexplicação

maisprováveldessesefeitos.Vemosumolhohumano,umaárvore,umamontanha,etudoparece

tersidoprojetado.Masoquedizersobreoprovávelprojetista?Oolhoparecetersidocriado

poralguémquepensounamelhormaneiradefazê-lodarcerto.Dissonãosesegue,noentanto,

quequemcriouoolhotenhasidoDeus.Porquenão?

GeralmentesepensaqueDeustemtrêspoderesespeciaisjámencionados:eleé

onipotente,oniscienteeonipresente.Aindaquecheguemosàconclusãodequealgomuito

poderosotenhacriadooolhohumano,nãotemosevidênciaparadizerquesejaonisciente.Oolho

temalgumasimperfeições.Ascoisasdãoerrado:muitaspessoasprecisamdeóculosparaver

corretamente,porexemplo.UmDeusonipotente,oniscienteeonipresentecriariaoolhodessa

maneira?Possivelmente.Masasevidênciasquetemosaoobservarmosoolhonãomostramisso.

Namelhordashipóteses,elasmostramquealgoaltamenteinteligente,muitopoderosoe

habilidosoocriou.

Masasevidênciasmostramissosempre?Háoutrasexplicaçõespossíveis.Comosabemos

queoolhonãofoicriadoporumaequipededeusesinferioresquetrabalhamjuntos?Os

mecanismosmaiscomplexossãofeitosporumaequipedepessoas;porqueomesmonãovale

paraoolhoeoutrosobjetosnaturais,supondoquetodostenhamsidocriados?Amaioriados

prédioséerguidaporumaequipedeconstrutores;porqueumolhoseriadiferente?Outalvezo

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olhotenhasidofeitoporumdeusbemvelhoquejátenhamorrido.Ouporumdeusmuitojovem

queaindaestavaaprendendoacriarolhosperfeitos.Comonãotemosevidênciasparadecidir

entreessasdiferenteshistórias,nãopodemostercertezaapenasobservandooolho–umobjeto

aparentementeprojetado–dequeeletenhadefinitivamentesidocriadoporumúnicoDeusvivo

comospoderestradicionais.Humeacreditavaque,secomeçarmosapensarseriamentenesse

tema,chegaremosaconclusõesbastantelimitadas.

OutroargumentoqueHumeatacoufoiodosmilagres.Amaioriadasreligiõesafirmaque

milagresacontecem.Pessoassãoressuscitadasdosmortos,andamsobreaáguaoucuram

doençasdeformarepentina;imagenscomeçamachorar,ealistacontinua.Masdeveríamos

acreditarquemilagresacontecemsóporquenosdisseramqueacontecem?Humepensavaque

não.Eleeraprofundamentecéticoquantoaessaideia.Sealguémnosdizqueumhomemse

recuperoupormilagredeumadoença,oqueissosignifica?Paraquealgofosseummilagre,

pensavaHume,eraprecisodesafiarumaleidanatureza.Umaleidanaturezaeraalgodotipo

“Ninguémmorreedepoisretomaàvida”,“Estátuasjamaisconversam”ou“Ninguémpodeandar

sobreaágua”.Háumaquantidadeenormedeevidênciasdequeessasleisdanaturezasão

válidas.Contudo,sealguémtestemunhaummilagre,porquemotivodeveríamosacreditarnele?

Pensenoquevocêdiriaseumamigoentrassecorrendoagorapelasalaedissessequeviualguém

caminhandosobreaágua.

Humeacreditavaquesemprehaviaexplicaçõesmaisplausíveissobreoqueacontecia.Se

seuamigodissequeviualguémcaminhandosobreaágua,ésempremaisprovávelqueeleesteja

sendoenganadoouquetenhaseequivocadodoquetertestemunhadoummilagregenuíno.

Sabemosquealgumaspessoasadoramserocentrodasatençõesementemparaisso.Estaéuma

possívelexplicação.Mastambémsabemosquetodosnóspodemosentendermalascoisas.

Cometemoserrosotempotodoemrelaçãoaoquevemoseouvimos.Écomumquerermos

acreditarquevimosalgodiferentedousualeassimevitamosaexplicaçãomaisóbvia.Atéhoje

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hámuitaspessoasquepulamdiretoparaaconclusãodequetodosomsemexplicaçãodurantea

madrugadaéoresultadodeatividadessobrenaturais–fantasmasperambulandoporaí–,enão

devidoacausasmaisordináriascomoumratoouovento.

Emboratenhacriticadosistematicamenteosargumentosusadospeloscrentesreligiosos,

Humenuncadeclarouabertamentequeeraateu.Talveznãotenhasido.Suasobraspublicadas

podemserlidascomoseafirmassemaexistênciadeumainteligênciadivinaportrásdecada

coisanouniverso,sóquejamaispodemosdizermuitosobreasqualidadesdessainteligência

divina.Ospoderesdarazão,quandousadoslogicamente,defatonãodizemmuitosobreas

qualidadesqueesse“Deus”deveter.Baseadosnisso,algunsfilósofospensamqueeleera

agnóstico.Maséprovávelquetenhasidoateunofinaldavida,emborativessedesistidodesê-lo

bemantesdisso.Quandoestavamorrendoeumamigofoivisitá-loemEdimburgonoverãode

1776,Humedeixouclaroquenãoteriamumaconversadeleitodemorte.Longedisso.James

Boswell,cristão,perguntouaHumeseeleestavapreocupadocomoqueaconteceriadepoisque

morresse.Humedissequenãotinhanenhumaesperançadesobreviveràmorte.Elerespondeuo

queEpicurodeveriaterrespondido(verCapítulo4):dissequesepreocupavacomoque

ocorreriadepoisdamortetantoquantosepreocupavacomoqueaconteceraantesdeternascido.

Humetevecontemporâneosbrilhantes,muitosdosquaiseleconheceupessoalmente.Um

deles,Jean-JacquesRousseau,teveumimpactosignificativonafilosofiapolítica.

CAPÍTULO18

Nascemoslivres

JEAN-JACQUESROUSSEAU

Em1766,umhomembaixo,deolhosescuros,vestindoumlongocasacodepele,foiassistira

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umapeçanoteatroDruryLaneemLondres.Amaioriadospresentes,inclusiveorei,GeorgeIII,

estavamaisinteressadanovisitanteestrangeirodoquenoespetáculoapresentadonopalco.Ele

pareciadesconfortávelepreocupadocomseupastor-alemão,poisprecisoudeixá-lotrancadono

quarto.Essehomemnãogostavadotipodeatençãoquereceberanoteatroeestariamuitomais

felizemalgumlugarnocampo,sossegado,procurandofloresselvagens.Masquemeraele?E

porquetodosoachavamtãofascinante?Tratava-sedograndepensadoreescritorsuíçoJean-

JacquesRousseau(1712-1778).Sensaçãoliteráriaefilosófica,achegadadeRousseaua

Londres,aconvitedeDavidHume,provocouotipodecomoçãoemovimentaçãoquehoje

provocariaumafamosapopstar.

Nessaépoca,aIgrejaCatólicahaviabanidováriosdeseuslivrosporconteremideias

religiosasnadaconvencionais.Rousseauacreditavaqueaverdadeirareligiãovinhadocoraçãoe

nãoprecisavadecerimônias,masforamsuasideiaspolíticasquecriaramosmaioresproblemas.

“Ohomemnascelivreeportodaparteencontra-seacorrentado”,declarouelenoiníciode

seulivroOcontratosocial.Nãoésurpreendentequeosrevolucionáriossoubessemessas

palavrasdecor.MaximilienRobespierre,assimcomomuitosdoslíderesfranceses,as

consideravainspiradoras.Osrevolucionáriosqueriamquebrarascorrentesqueosricoshaviam

colocadoemtantospobres.Algunsmorriamdefome,enquantoseusmestresricosgozavamdeum

altopadrãodevida.ComoRousseau,osrevolucionáriostinhamódiodecomoosricosse

comportavam,enquantoospobresmalconseguiamencontraroquecomer.Elesqueriama

verdadeiraliberdadejuntocomaigualdadeeafraternidade.Noentanto,éimprovávelque

Rousseau,quemorreuumadécadaantes,tivesseapoiadoaatitudedeRobespierredeenviarseus

inimigosparaaguilhotinaemum“reinadodeterror”.Cortaracabeçadosoponentesseriamais

adequadoàlinhadepensamentodeMaquiavel,enãoàsua.

SegundoRousseau,ossereshumanossãonaturalmentebons.Nãocausaríamosmuitos

problemassemorássemosnumafloresta,deixadoscomnossosprópriosrecursos.Masbasta

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sermosretiradosdesseestadodenaturezaecolocadosemcidadesparaascoisascomeçarema

darerrado.Tornamo-nosobcecadosportentardominarosoutroseobteraatençãodosoutros.

Essaposturacompetitivadiantedavidatemefeitospsicológicosterríveis,eainvençãodo

dinheirosóospioraaindamais.Ainvejaeaganânciaresultamdofatodevivermosjuntosem

cidades.Nomundosilvestre,os“nobresselvagens”seriamsaudáveis,forteseprincipalmente

livres,masacivilizaçãoparecetercorrompidoossereshumanos.Apesardisso,Rousseauera

otimistaquantoaencontrarumaformamelhordeorganizarasociedade,umaformaque

permitiriaaosindivíduosprosperarem,teremêxitoeaindaassimseremharmoniososunscomos

outros,trabalhandoemproldeumbemcomum.

OproblemaqueelecolocouparasimesmoemOcontratosocial(1762)foiencontraruma

maneiradeaspessoasviveremjuntaseseremtãolivresquantoseriamsevivessemforada

sociedade,masaomesmotempoobedecendoàsleisdoEstado.Issopareceserimpossívele

talvezrealmenteoseja.Seocustodesetornarpartedeumasociedadefoiumaespéciede

escravidão,seriaumpreçomuitoaltoasepagar.Aliberdadenãoandademãosdadascomas

regrasestritasimpostaspelasociedade,poisessasregraspodemsercomocorrentesque

impedemdeterminadostiposdeação.Todavia,Rousseauacreditavaquehaviaumasaída.Sua

soluçãofoibaseadanaideiadevontadegeral.

Avontadegeraléoquequerquesejamelhorparatodaacomunidade,todooEstado.

Quandoaspessoasescolhemreunir-seporproteção,parecequetêmdeabrirmãodemuitas

liberdades.IssoéoqueHobbeseLockepensavam.Édifícilentendercomopodemoscontinuar

genuinamentelivreseaindaviveremumgrandegrupodepessoas–temdehaverleisque

mantenhamaspessoassobcontrole,bemcomoalgumasrestriçõesdecomportamento.Mas

Rousseauacreditavaque,comoindivíduosvivendoemumEstado,nóspodemostantoserlivres

quantoobedeceràsleisdoEstado;paraele,emvezdeopostas,asideiasdeliberdadee

obediênciapoderiamserunificadas.

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ÉfácilinterpretarequivocadamenteoqueRousseauquisdizercomvontadegeral.

Vejamosumexemplomoderno.Seperguntarmosàmaioriadaspessoassobrealtosimpostos,

elasdirãoquepreferemnãopagá-los.Naverdade,essaéumamaneiracomumdeosgovernosse

elegerem:elesprometembaixarovalordosimpostos.Sehouvessecomoescolherpagar20%ou

5%dosganhoscomoimpostos,amaioriaprefeririapagarovalormaisbaixo.Masessanãoéa

vontadegeral.OquetodosqueremfazerquandoquestionadoséoqueRousseauchamariade

vontadedetodos.Emcontraste,avontadegeraléoquetodosdevemquerer,oqueseriabom

paratodaacomunidade,enãosóparacadaumdosindivíduospensandodemodoegoísta.Para

determinaroqueéavontadegeral,precisamosignorarosinteressespróprioseassimnos

concentrarnobemdetodaasociedade,nobemcomum.Seaceitarmosquemuitosserviços,como

amanutençãodasestradas,precisamserpagoscomimpostos,entãoserábomparatodaa

comunidadequeastaxassejamaltasosuficienteparapossibilitaramanutenção.Seforembaixas

demais,todaasociedadesofrerá.Esta,então,éavontadegeral:queosimpostossejamaltoso

suficienteparapossibilitarumbomníveldosserviços.

Quandoaspessoasjuntam-seeformamumasociedade,elassetornamumtipodepessoa.

Cadaindivíduo,portanto,fazpartedeumtodomaior.Rousseauacreditavaqueamaneirade

todossemanteremverdadeiramentelivresnasociedadeeraobedeceràsleisqueestivessemem

sintoniacomavontadegeral.Taisleisseriamcriadasporumlegisladorinteligente.Atarefa

dessapessoaseriacriarumsistemalegalqueajudasseosindivíduosasemanteremem

consonânciacomavontadegeral,emvezdebuscaremarealizaçãodeinteressesegoístasàcusta

dosoutros.Averdadeiraliberdade,paraRousseau,éfazerpartedeumgrupodepessoasque

busquemoqueédeinteressedacomunidade.Nossosdesejosdevemcoincidircomoqueé

melhorparatodos,easleisdevemnosajudaraevitarmosagirdemodoegoísta.

MasesevocêpensasseoopostodoqueseriamelhorparaoEstado?Comoindivíduo,

vocêpodenãoquererseateràvontadegeral.ArespostadeRousseaunãoéaquetodos

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gostariamdeouvir.Elememoravelmente(e,antes,preocupantemente)declarouquesealguém

nãoreconhecessequeobedeceràsleisestavanointeressedacomunidade,essealguémdeveria

ser“forçadoaserlivre”.Quemseopusesseaoquefossedointeressedasociedade,embora

pensasseescolhercomliberdade,sóseriagenuinamentelivreaoagirdeacordocomavontade

geral.Mascomoforçaralguémaserlivre?Vocênãoestariafazendoumaescolhalivresefosse

forçadoalerorestantedolivro,nãoémesmo?Comcerteza,forçaralguémafazeralgoéo

opostodedeixá-lofazerumalivreescolha.

ParaRousseau,noentanto,issonãoeraumacontradição.Aquelequenãoconseguisse

identificaracoisacertaafazersetornarialivreaoserforçadoaobedecer.Comotodosemuma

sociedadefazempartedessegrupomaior,precisamosreconhecerquedeveríamosseguira

vontadegeral,enãonossasescolhasindividuaiseegoístas.Nessavisão,sósomoslivresde

verdadequandoseguimosavontadegeral,mesmoquandosomosforçadosafazê-lo.Essaeraa

crençadeRousseau,masmuitospensadoresposteriores,incluindoJohnStuartMill(verCapítulo

24),argumentaramquealiberdadepolíticadeveseraliberdadeparaqueoindivíduofaçaas

própriasescolhassemprequepossível.Naverdade,háalgolevementesinistronaideiade

Rousseau,quereclamoudofatodeahumanidadeestaracorrentada,emsugerirqueforçaralguém

afazeralgoéoutraespéciedeliberdade.

Rousseaupassougrandepartedavidaviajandodeumpaísparaoutro,fugindoda

perseguição.ImmanuelKant,emcontraposição,malsaíadesuaprópriacidade,emborao

impactodeseupensamentotenhasidosentidoemtodaaEuropa.

CAPÍTULO19

Realidadecor-de-rosa

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IMMANUELKANT(1)

Seusarmosóculoscomlentescor-de-rosa,elasvãocolorirtodososaspectosdanossa

experiênciavisual.Podemosesquecerqueestamosusandoosóculos,masmesmoassimeles

continuarãoafetandooquevemos.ImmanuelKant(1724-1804)acreditavaquetodosnós

compreendemosomundoporumfiltrocomoesse.Ofiltroéamentehumana.Eladeterminacomo

experimentamostudoeimpõedeterminadaformanaexperiência.Tudooquepercebemos

acontecenotempoenoespaço,etodamudançatemumacausa.Noentanto,segundoKant,isso

nãosedeveàmaneiracomoarealidadeéemúltimainstância,massimaumacontribuiçãoda

nossamente.Nãotemosacessodiretoaomodocomoéomundo.Etambémjamaispodemostirar

osóculoseverascoisascomorealmentesão.Essefiltroestápresoemnós,esemeleseríamos

totalmenteincapazesdeexperimentarqualquercoisa.Tudooquepodemosfazeréreconhecer

queaexistênciadeleeentendercomoeleafetaecoloreoqueexperimentamos.

TantoamentequantoavidadopróprioKanterambastanteordenadaselógicas.Elenunca

secasoueimpunhaasimesmoumpadrãorestritoparaviverocotidiano.Paraquenãoperdesse

tempo,seuempregadooacordavaàscincodamanhã.Eletomavaumchá,fumavaumcachimboe

começavaatrabalhar.Eraextremamenteprodutivoeescreveumuitoslivroseensaios.Depoisde

escreverumpouco,iadaraulasnauniversidade.Àsquatroemeiadatarde–semprenomesmo

horário,todososdias–,Kantsaíaparacaminhar:subiaedesciaaruaexatamenteoitovezes.Na

verdade,aspessoasquemoravamnacidadedeKönigsberg(hoje,Kaliningrado)costumavam

acertarosrelógiosquandoelepassava.

Comoamaioriadosfilósofos,Kantpassouavidatentandoentendernossarelaçãocoma

realidade.Basicamenteédissoquetrataametafísica,eelefoiumdosmaioresmetafísicosda

história.Kantinteressava-separticularmentepeloslimitesdopensamento,oslimitesdaquiloque

podemosconhecereentender.Issofoiparaeleumaobsessão.Emseulivromaisfamoso,Crítica

darazãopura(1781),eleexplorouesseslimites,levando-osaoextremodoquefazsentido.

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Nemdelongeolivroédefácilleitura:opróprioKantodescreviacomoumaleituraseverae

obscura–eeleestavacerto.Pouquíssimaspessoasafirmaramentenderrealmenteolivro,e

grandepartedoraciocínioécomplexaetemjargãopesado.Aleiturapodedarasensaçãode

estarmoslutandocontraumdensomatagaldepalavrassemmuitosensodeparaondeestamos

indoepoucoslampejosdaluzdodia.Masoargumentocentralébastanteclaro.

Comoéarealidade?Kantpensavaquejamaisteremosumquadrocompletodecomoas

coisassão.Jamaisaprenderemosalgodiretamentearespeitodoquechamamosdemundo

numênico,istoé,sobreoquequerqueestejaportrásdasaparências.Algumasvezes,Kantusaa

palavranoumenon(singular),eoutrasvezesapalavranoumena(plural),algoquenãodeveria

terfeito(Hegeltambémapontaisso,verCapítulo22):nãosabemossearealidadeéumaou

muitas.Arigor,nãopodemossaberabsolutamentenadasobreomundonumênico,ouaomenos

nãoconseguimosterinformaçõessobreeledemododireto.Noentanto,podemosconhecero

mundofenomênico,omundoquenoscerca,omundoqueexperienciamoscomossentidos.Olhe

pelajanela.Oquevocêvêéomundodosfenômenos–grama,carros,céu,prédiosouqualquer

outracoisa.Nãopodemosveromundonumênico,somenteofenomênico,masomundonumênico

seocultaportrásdetodasasnossasexperiências.Eleéoqueexisteemumnívelmaisprofundo.

Dessemodo,algunsaspectosdoqueexistesempreestarãoportrásdanossaapreensão.

Contudo,pelopensamentorigoroso,podemosterumamaiorcompreensãodoqueteríamoscom

umaabordagempuramentecientífica.AprincipalquestãodeKantnaCríticadarazãopuraera

esta:“Comoépossíveloconhecimentosintéticoapriori?”.Essaperguntaprovavelmentenãofaz

omenorsentidopravocê.Vamosexplicá-laumpouco;aideiaprincipalnãoétãodifícilquanto

pareceàprimeiravista.Primeirodevemosexplicarapalavra“sintético”.Nalinguagem

filosóficadeKant,“sintético”éoopostodeanalítico.“Analítico”significaverdadeiropor

definição.Então,porexemplo,“todososhomenssãodosexomasculino”éverdadeiropor

definição.Issosignificaquepodemossaberqueessafraseéverdadeirasemfazerquaisquer

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observaçõesdehomensreais.Nãoprecisamosverificarquetodossãodosexomasculino,pois

nãoseriamhomenssenãofossemdosexomasculino.Nãoéprecisonenhumtrabalhodecampo

parachegaraessaconclusão:vocêdescobririaissodasuaprópriacadeira.Apalavra“homens”

tememsiaideiadesexomasculino.Écomoafrase“Todososmamíferosalimentamsuaprole”.

Maisumavez,nãoéprecisoexaminartodososmamíferosparasaberqueelesamamentamsua

prole,poisissofazpartedadefiniçãodemamífero.Seencontrarmosalgoquepareçaserum

mamífero,masnãoalimentesuaprole,saberemosquenãopodeserummamífero.Juízos

analíticostratamsimplesmentededefinições,portantonãonosoferecemnenhumconhecimento

novo.Elesexplicitamoqueassumimoscomoverdadeiroaodefinirumapalavra.

Oconhecimentosintético,aocontrário,requeraexperiênciaouaobservaçãoenosfornece

umainformaçãonova,algoquesimplesmentenãoestácontidonosignificadodaspalavrasou

símbolosqueusamos.Sabemos,porexemplo,quelimõessãoamargos,massódepoisdetê-los

provado(ouporquealguémnoscontaqueexperimentoulimões).Nãoéumaverdadepor

definiçãoquelimõessãoamargos–trata-sedealgoqueaprendemospelaexperiência.Outro

juízosintéticopoderiaser“Todososgatostêmrabo”.Issoéalgoqueteríamosdeinvestigarpara

saberseéounãoverdadeiro.Sósabemosquandoolhamos.Naverdade,osgatosdaraçamanx

nãotêmrabo.Ealgunsperderamorabo,mascontinuamsendogatos.Aperguntasobresetodos

osgatostêmrabo,então,éumaquestãodefatosobreomundo,enãosobreadefiniçãode“gato”.

Ébemdiferentedojuízo“Todososgatossãomamíferos”,quenãopassadeumaquestãode

definiçãoe,portanto,éumjuízoanalítico.

Então,ondeficaoconhecimentosintéticoapriori?Oconhecimentoapriori,comovimos,

éoconhecimentoqueindependedaexperiência.Trata-sedeumconhecimentoprévio,ouseja,

queantecedeaexperiênciaquetemosdele.NosséculosXVIIeXVIII,houveumdebatesobrese

temosounãoalgumconhecimentoapriori.Demodogeral,osempiristas(comoLocke)

pensavamquenão,enquantoosracionalistas(comoDescartes)pensavamquesim.QuandoLocke

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declarouquenãohaviaideiasinatasequeamentedascriançaseracomoumquadrobranco,ele

estavadizendoquenãohaviaconhecimentoapriori.Issofazparecerque“apriori”significa

simplesmenteomesmoque“analítico”(e,paraalgunsfilósofos,ostermossãointercambiáveis).

MasnãoparaKant.Elepensavaqueoconhecimentoquerevelaverdadessobreomundo,ainda

quesurjaindependentementedaexperiência,épossível.Paradescreveressetipode

conhecimento,Kantapresentouacategoriaespecialdoconhecimentosintéticoapriori.Um

exemplodeconhecimentosintéticoapriori,queopróprioKantusava,éaequaçãomatemática7

+5=12.Emboramuitosfilósofospensassemqueessasverdadessãoanalíticas,umaquestãoda

definiçãodesímbolosmatemáticos,Kantacreditavaquesomoscapazesdesaberapriorique7+

5éiguala12(nãoprecisamosverificarainformaçãocomobjetosouobservaçõesnomundo).

Contudo,temosaomesmotempoumnovoconhecimento:éumjuízosintético.

SeKantestivercorreto,trata-sedeumgrandeavanço.Antesdele,filósofosque

investigaramanaturezadarealidadetrataram-nasimplesmentecomoalgoqueestáalémdenóse

quecausanossaexperiência.Adificuldade,portanto,eracomopoderíamosteracessoaessa

realidadeafimdedizermosalgodesignificativosobreelasemqueoditonãopassassedemeros

palpites.OgrandeinsightdeKantfoiodeque,pelopoderdarazão,nóspoderíamosdescobrir

característicasdenossamentequecoloremtodaanossaexperiência.Aorefletirdemaneira

árduasobreascoisas,poderíamosfazerdescobertassobrearealidadequetinhamdeser

verdadeiras,enãoapenaspordefinição:elaspoderiamserinformativas.Kantacreditavaque,

peloargumentológico,eleconseguiuoequivalenteaprovarqueomundonecessariamentedevia

nosaparecercomocor-de-rosa.Elenãosóprovouquetodosestamosusandoóculoscomlentes

cor-de-rosa,comotambémfezdescobertassobreasváriastonalidadesderosaqueessesóculos

conferematodaaexperiência.

Depoisderespondersatisfatoriamenteàsquestõesfundamentaissobrenossarelaçãocoma

realidade,Kantvoltousuaatençãoparaafilosofiamoral.

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CAPÍTULO20

Esetodosfizessemisso?

IMMANUELKANT(2)

Vocêescutaumabatidanaporta.Quandoabre,depara-secomumrapazquenitidamenteprecisa

deajuda:estáferidoesangrando.Vocêocolocaparadentroeoajudaasesentirseguroe

confortável,depoischamaumaambulância.Comcerteza,essaéacoisacertaasefazer.De

acordocomKant,sevocêoajudasimplesmenteporquesentepenadele,estanãoseriadejeito

nenhumumaaçãomoral.Suasolidariedadeéirrelevanteparaamoralidadedaação.A

solidariedadefazpartedoseucaráter,masnadatemavercomoqueécertoouerrado.Para

Kant,amoralidadenãodizrespeitoapenasaoquefazer,mastambémaporquefazer.Aqueles

quefazemacoisacertanãoofazemsóporcausadomodocomosesentem:adecisãoprecisaser

baseadanarazão,poiséelaquedizqualéonossodever,independentementedecomo

porventuranossentimos.

Kantpensavaqueasemoçõesnãodeviamsemisturarcomamoral.Ofatodetermosou

nãoemoçõesnãopassadeumaquestãodesorte.Algumaspessoassentemcompaixãoeempatia,

outrasnão.Algumassãomedíocreseachamdifícilsergenerosas;outrassesentemextremamente

alegrespordoardinheiroepossesparaajudarosoutros.Masserboméalgoquetodapessoa

razoáveldeveriasercapazdeatingirpormeiodasprópriasescolhas.ParaKant,sevocêajudao

rapazporquesabequeéseudever,estáagindomoralmente.Estaéacoisacertaafazerporqueé

oquetodosfariamseestivessemnamesmasituação.

Issopodesoarestranhoaosseusouvidos,poiséprovávelquepensequeosujeitoque

sentepenadorapazeoajudaporcausadissoteriaagidomoralmenteetalvezfosseumapessoa

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melhorporsentiressaemoção.IssoétambémoqueAristótelesteriapensado(verCapítulo2).

MasKantestavacerto.Nãoestamosagindomoralmentequandofazemosalgosimplesmentepor

causadamaneiracomonossentimos.Imaginealguémquesentisseaversãoaoverorapaz,mas

aindaassimcontinuasseeoajudassepordever.Talpessoaseriaobviamentemaismoralaos

olhosdeKantdoquealguémqueagiuporcompaixão.Apessoaquesentiuaversãoclaramente

estariaagindopelosensodedever,poisnaverdadeseriaimpulsionadapelasemoçõesna

direçãooposta,sendoencorajadaanãoajudar.

Pensenaparáboladobomsamaritano.Eleajudaumhomemnecessitadoquevêdeitadona

beiradaestrada.Todososoutrosapenaspassamevãoembora.Oquefazdobomsamaritanoum

homembom?Seosamaritanoajudasseohomempensandoquecomissoiriaparaocéu,estanão

seria,navisãodeKant,umaaçãomoral.Eleestariacuidandodohomemcomoumaformade

chegaraalgumlugar–ummeioparaumfim.Seoajudassesomenteporcompaixão,nãoseria

nadabomaosolhosdeKant.Contudo,seoajudasseporquereconhecequefazpartedoseudever

equeseriaacoisacertaafazernaquelacircunstância,Kantdiriaqueobomsamaritanofoi

moralmentebom.

AvisãodeKantsobreasintençõesémaisfácildeseraceitadoquesuavisãodas

emoções.Amaioriadenósjulgaosoutrospeloquesetentafazer,enãopelosucessodaação.

Penseemcomovocêsesentiriasefosseacidentalmenteatingidoporumpaiqueestivesse

correndoparaimpedirqueofilhofosseparaomeiodarua.Comparecomamaneiracomovocê

sesentiriasefosseatingidodepropósitoporalguémquequerapenassedivertir.Opainão

queriamachucarvocê,masobrutamontessim.Noentanto,comomostraopróximoexemplo,ter

boasintençõesnãoéosuficienteparaumaaçãomoral.

Ouve-seoutrabatidanaporta.Vocêabreevêsuamelhoramiga,queparecepálida,

preocupadaesemfôlego.Eladizqueestásendoperseguidaporumsujeitoquequermatá-la.Ele

temumafaca.Vocêadeixaentrareelacorreparaseescondernoandardecima.Algumtempo

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depois,ouve-seoutrabatidanaporta.Dessavezéosupostoassassino,comumolhar

transtornado.Elequersaberondeestásuaamiga.Elaestádentrodecasa?Escondidaemalgum

armário?Ondeelaestá?Naverdade,elaestánoandardecima,masvocêmenteedizqueelafoi

paraoparque.Comcerteza,vocêfezacoisacertaaoinduzirosupostoassassinoaprocurá-lano

lugarerradoeprovavelmentesalvouavidadasuaamiga.Estaseriaumaaçãomoral,nãoé

mesmo?

NãodeacordocomKant.Eleacreditavaquenãodeveríamosmentir–emnenhuma

circunstância.Nemmesmoparaprotegerumaamigadeumsupostoassassino.Mentirésempre

moralmenteerrado.Semexceção,semdesculpas–porquenãopodemoselaborarumprincípio

moraldequetodosdevemmentirquandolhesforapropriado.Nessecaso,sevocêtivesse

mentidoesuaamigativesseidoparaoparquesemvocêtervisto,vocêseriaoculpadodo

assassinatodela.Atécertoponto,amortedelateriasidosuaculpa.

EsseexemploéumdosqueKantusavaemostracomosuavisãoeraradical.Nãohavia

exceçõesquantoadizeraverdade,nemmesmoquantoaosdeveresmorais.Todosnóstemoso

deverabsolutodedizeraverdadeou,comodiziaele,umimperativocategóricodedizê-la.Um

imperativoéumaordem.Imperativoscategóricosdiferenciam-sedosimperativoshipotéticos.Os

imperativoshipotéticostêmaformade“Sequiserx,façay”.“Senãoquerirparaaprisão,não

roube”éumexemplodeimperativohipotético.Osimperativoscategóricossãodiferentes.Eles

servemcomoinstruções.Nessecaso,oimperativocategóricoseriasimplesmente“Nãoroube!”.

Trata-sedeumaordemquenosdizqualéonossodever.Kantacreditavaqueamoraleraum

sistemadeimperativoscategóricos.Oseudevermoraléoseudevermoral,quaisquerquesejam

asconsequências,quaisquerquesejamascircunstâncias.

Kantacreditavaqueoquefazdenóssereshumanos,aocontráriodosoutrosanimais,éo

fatodepensarmosreflexivamentesobrenossasescolhas.Seríamoscomomáquinassenão

pudéssemosagircomumaintenção.Quasesemprefazsentidoperguntarparaumserhumano“Por

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quevocêfezisso?”.Nósnãoagimossomenteporinstinto,mastambémbaseadosnarazão.A

formadeKantdizerissoéemtermosde“máximas”apartirdasquaisagimos.Amáximaé

apenasoprincípiosubjacente,arespostaàpergunta“Porquevocêfezisso?”.Kantacreditava

queamáximasubjacenteànossaaçãoeraoquerealmenteimportava.Elediziaquedeveríamos

agirsomentesobasmáximasuniversalizáveis.Paraquealgosejauniversal,éprecisoser

aplicadoatodasasoutraspessoas.Issoquerdizerquedeveríamosfazersomenteaquiloque

fizessesentidoparatodososoutrosnamesmasituação.Semprepergunteasimesmo:“Esetodos

fizessemisso?”.Nãofaçaumadefesaprópria.Kantacreditavaque,naprática,issosignificava

quenãodeveríamosusarosoutros,massimtratá-loscomrespeito,reconhecendoaautonomia

daspessoasesuacapacidadecomoindivíduosdetomar,porcontaprópria,decisõespensadas.

Essareverênciapeladignidadeepelovalordossereshumanosindividuaiséocernedateoria

modernadosdireitoshumanos.ÉagrandecontribuiçãodeKantparaafilosofiamoral.

Émaisfácilentendermosaquestãocomumexemplo.Imaginequevocêtenhaumcomércio

quevendafrutas.Quandoaspessoascompramsuasfrutas,vocêsempreastrataeducadamentee

devolveotrococorreto.Talvezvocêfaçaissoporjulgarqueébomparaosnegóciosequeas

pessoasvoltarãoparagastarmaisdinheironoseucomércio.Seessaéaúnicarazãoqueolevaa

devolverotrococorreto,vocêestátratandoaspessoascomoummeioparaobteroquequer.

Kantacreditavaquecomonãopodemossugerirquetodasaspessoastratemosoutrosdessa

maneira,poisessanãoeraumaformamoraldecomportamento.Entretanto,sevocêdevolveo

trococorretoporquereconhecequeéseudevernãoenganarosoutros,trata-sedeumaação

moral,poisébaseadanamáxima“Nãoenganeosoutros”,umamáximaqueeleacreditava

aplicar-seatodososcasos.Enganaraspessoaséumaformadeusá-lasparaobtermosoque

queremos.Nãopodeserumprincípiomoral.Setodomundoenganasseatodos,nãoexistiria

confiança:ninguémacreditarianoquecadaumdiz.

VejamosoutroexemplousadoporKant:imaginequevocêestejacompletamentefalido.Os

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bancosnãolheemprestarãodinheiro,vocênãotemnadaparavendere,senãopagaroaluguel,

serádespejado.Entãoencontraumasolução:pedirdinheiroemprestadoaumamigo.Sua

promessaépagá-loaindaquesaibaquenãoconseguirápagá-lo.Esseéseuúltimorecurso,e

vocênãoconseguepensaremoutramaneiradepagaroaluguel.Issoseriaaceitável?Kantafirma

quepedirdinheiroemprestadosemaintençãodedevolverseriaimoral.Arazãopodenos

mostrarisso.Seriaumabsurdoparaqualquerumpegardinheiroemprestadoeprometerdevolvê-

lomesmosabendoquenãoseriapossível.Esta,maisumavez,nãoéumamáxima

universalizável.Façaapergunta:“Esetodosfizessemisso?”.Setodosfizessemfalsas

promessascomoessa,aspromessassetornariamtotalmenteinúteis.Portanto,seriaerradoagir

assim.

Essamaneiradepensarsobreocertoeoerradobaseadanobomraciocínio,enãona

emoção,ébemdiferentedoquepensavaAristóteles(verCapítulo2).ParaAristóteles,uma

pessoaverdadeiramentevirtuosasempretemossentimentosapropriadosefazacoisacertacomo

resultadodessessentimentos.ParaKant,ossentimentosapenasobscurecemoproblema;torna-se

maisdifícilperceberseosujeitoestágenuinamentefazendoacoisacerta,ouseapenasparece

quefaz.Kanttornouamoralalgopraticávelporqualquerpessoaracional,tivesseounãosorteo

suficienteparatersentimentosqueamotivassemaagirbem.

AfilosofiamoraldeKantcontrastatotalmentecomafilosofiamoraldeJeremyBentham,

assuntodopróximocapítulo.EnquantoKantargumentavaquealgumasaçõeseramerradas

independentementedasconsequências,Benthamafirmavaqueoimportanteeramtãosomenteas

consequências.

CAPÍTULO21

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Contentamentoprático

JEREMYBENTHAM

SevocêalgumdiavisitaraUniversityCollegeLondon,talvezfiquesurpresoaoencontrarJeremy

Bentham(1748-1832),oupelomenosoquesobroudocorpodele,emumavitrine.Sentado,ele

olhadiretamenteparanósemantémapoiadaentreosjoelhossuabengalapredileta,queele

apelidoude“malhada”.Acabeçaéfeitadecera,masorestantefoimumificadoeémantidoem

umacaixademadeira,emboracostumasseestarexposto.Benthamachavaqueseucorporeal–

eleochamavadeautoícone–ficariamelhorcomomemorialdoquecomoumaestátua.Então,

quandomorreu,em1832,deixouinstruçõessobrecomolidarcomseusrestosmortais.Aideiana

verdadenuncasepopularizou,emboraocorpodeLênintenhasidoembalsamadoeexpostoem

ummausoléuespecial.

AlgumasdasideiasdeBenthamerammaispráticas.Tomemoscomoexemploseuprojeto

deumaprisãocircular,opanóptico.Eleodescreveucomo“ummoinhoparatransformar

vagabundosemhonestos”.Umatorredeobservaçãocolocadanocentropermitequepoucos

guardasvigiemumgrandenúmerodeprisioneirossemqueelessaibamseestãoounãosendo

observados.Esseprincípioéusadoemalgumasprisõesmodernaseatémesmoemdiversas

bibliotecas.Foiumdeseusgrandesprojetosparaareformasocial.

MasmuitomaisimportanteeinfluentedoqueissofoiateoriadeBenthamsobrecomo

deveríamosviver.EssaideiadeBentham,conhecidacomoutilitarismoouprincípiodamaior

felicidade,afirmavaqueacoisacertaafazeréaqueproduziriaamaiorfelicidade.Emboranão

fosseaprimeirapessoaasugeriressaabordagemàmoral(FrancisHutcheson,porexemplo,já

haviafeitoessaproposta),Benthamfoioprimeiroaexplicaremdetalhescomoelapoderiaser

colocadaemprática.ElequeriareformarasleisdaInglaterraparaqueamaiorfelicidade

pudessesermaisprovável.

Masoqueéfelicidade?Diferentespessoasparecemusarapalavradediferentesmaneiras.

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ArespostadeBenthamerabastantedireta.Tudodizrespeitoacomonossentimos.Felicidadeé

prazereausênciadador.Quantomaiorforoprazerouquantomaioraquantidadedeprazer

sobreador,maiorseráafelicidade.Paraele,ossereshumanoserammuitosimples.Adoreo

prazersãoasgrandesdiretrizesdevidaqueanaturezanosdeu.Nósbuscamosexperiências

prazerosaseevitamosasdolorosas.Oprazeréaúnicacoisaboaemsi.Queremostodasas

outrascoisasporqueacreditamosqueelasnosdarãoprazerouajudarãoaevitarador.Desse

modo,quererumsorvetedecremenãoéumacoisaboadeserbuscadaporsimesma.Éprovável

queosorvetenosdêprazerquandoosaboreemos.Demaneirasemelhante,vocêtentaevitarse

queimarporqueseriamuitodoloroso.

Mascomofazemosparamedirafelicidade?Pensenumaépocaemquefoirealmentefeliz.

Comofoiessaépoca?Vocêconsegueclassificarsuafelicidadecomumnúmero?Porexemplo,o

níveldefelicidadeeradeseteouoitoemdez?Euconsigomelembrardeumaviagemdebalsa

saindodeVenezaquepareciaserumnoveemeio,outalvezatédez,quandoopilotofoideixando

acidadecomosolsepondosobreaquelalindapaisagem,aáguaespirrandonomeurostoe

minhaesposaemeusfilhosdivertindo-seàsrisadas.Nãopareceumaideiaabsurdaconseguirdar

notaparaexperiênciasdessetipo.Benthamcertamenteacreditavaqueoprazerpodiaser

quantificadoediferentesprazerescomparadosnamesmaescala,nasmesmasunidades.

Cálculofelicíficofoionomequeeledeuaométodoparacalcularafelicidade.Primeiro,

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descubraoquantodeprazercausaráumaaçãoespecífica.Leveemconsideraçãoquantotempoo

prazervaidurar,suaintensidadeeaprobabilidadedeoriginaroutrosprazeres.Depoissubtraia

quaisquerunidadesdedorquepossamsercausadaspelaação.Oquerestaréovalorde

felicidadedaação.Benthamchamavaissode“utilidade”,pois,quantomaisprazerumaação

ocasionar,maisútilelaseráparaasociedade.Éporissoqueateoriaéconhecidacomo

utilitarismo.Compareautilidadedaaçãocomapontuaçãodeoutrasaçõespossíveiseescolhaa

queprovocarmaisfelicidade.Simples.

Equantoaoutrasfontesdeprazer?Comcerteza,émelhorterprazerporalgoedificante,

comoaleituradepoesia,doquebrincandodealgumjogoingênuooutomandosorvete,certo?

NãodeacordocomBentham.Nãoimportademodonenhumcomooprazeréproduzido.Paraele,

sonharacordadoseriatãobomquantoverumapeçadeShakespeare,seasduasações

provocassemigualfelicidade.Eleusavaoexemplodeumjoguinhoinfantilboboqueusava

varetas,muitopopularnaépoca,eapoesia.Tudooquecontaéaquantidadedeprazergerado.

Seoprazerforomesmo,ovalordaatividadeseráomesmo:segundoavisãoutilitarista,brincar

comvaretaspodesertãomoralmentebomquantolerpoesia.

ImmanuelKant,comovimosnoCapítulo20,argumentavaquetemosdeveres,como“nunca

minta”,queseaplicamatodasassituações.Bentham,noentanto,acreditavaqueconsideraruma

açãocorretaouincorretadependedosresultadosprováveis.Essesresultadospodemser

diferentesconformeascircunstâncias.Mentirnemsempreénecessariamenteerrado.Podehaver

momentosemquementiréacoisacertaafazer.Se,nocômputogeral,mentirgeraumafelicidade

maiordoquedizeraverdade,mentirseráaaçãomoralmentecorretanessascircunstâncias.Se

umamigoperguntaseumacalçajeansnovacaiubemounão,alguémquesegueasideiasdeKant

teriadedizeraverdade,mesmoquenãofosseoqueoamigoquisesseouvir;umutilitarista

calculariaseamaiorfelicidaderesultariadedizerumamentiraleve.Sesim,amentiraseráa

respostacerta.

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OutilitarismofoiumateoriaradicalparaserapresentadanofinaldoséculoXVIII.Umdos

motivoseraque,aocalcularafelicidade,afelicidadedetodoseraigual;naspalavrasde

Bentham,“todosvalemcomoum,eninguémvalemaisqueum”.Ninguémtemtratamento

especial.Oprazerdeumaristocratanãovaliamaisqueoprazerdeumpobretrabalhador.Mas

nãoeraassimqueseordenavaasociedade.Osaristocratasinfluenciavamamplamenteomodo

comoaterraerausada,emuitostinhaminclusiveodireitohereditáriodesesentarnaCâmara

dosLordesedecidirsobreasleisdaInglaterra.Nãoédesurpreenderquealgunssesentissem

desconfortáveiscomaênfasedadaporBenthamàigualdade.Talvezaindamaisradicalparaa

épocafossesuacrençadequeafelicidadedosanimaiserarelevante.Comoelessãocapazesde

sentirprazeredor,osanimaisfaziampartedesuaequaçãodafelicidade.Nãoimportavaqueos

animaisnãopudessemraciocinaroufalar(emboraparaKantissoimportasse),poisessasnão

eramascaracterísticasrelevantesparaainclusãomoralnavisãodeBentham.Oqueimportava

erasuacapacidadeparaadoreoprazer.Essaéabasedemuitascampanhasatuaisemproldo

bem-estardosanimais,comoadePeterSinger(verCapítulo40).

ParaainfelicidadedeBentham,houveumacríticadevastadoraàsuaabordagemgeralpor

enfatizarquetodasascausaspossíveisdoprazersejamtratadasigualmente.RobertNozick

(1938-2002)criouoseguinteexperimentomental.Imagineumaparelhoderealidadevirtualque

nosdáailusãodeviveranossaprópriavida,massemoriscodesofrerousentirdor.Depoisde

estarmosconectadosdurantealgumtempoaesseaparelho,esqueceremosquenãoestamosmais

experimentandoarealidadedemododiretoeseremostotalmentetomadospelailusão.Esse

aparelhogeraumagrandevariedadedeexperiênciasquenossãoprazerosas.Écomoumgerador

desonhos–elapodenosfazerimaginar,porexemplo,queestamosmarcandoogoldecisivoda

CopadoMundooutendoasfériasdosnossossonhos.Tudooquepudernosproporcionaro

maiorprazerpoderásersimulado.Ora,comooaparelhonitidamentemaximizarianossosestados

mentaisdecontentamento,nósdeveríamos,naanálisedeBentham,nosconectaraelepara

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aproveitaraomáximoavida.Essaseriaamelhormaneirademaximizaroprazerediminuira

dor.Muitaspessoas,noentanto,pormaisquegostemdeusartalaparelhodetemposemtempos,

jamaisaceitariamserconectadasparaorestodavidaporquevalorizammuitomaisoutrascoisas

doqueumasériedeestadosmentaisdecontentamento.IssoparecemostrarqueBenthamestava

erradoaoargumentarquetodasasformasdeprovocaramesmaquantidadedeprazersão

igualmentevaliosasequenemtodossãoguiadosapenaspelodesejodemaximizaroprazere

diminuirador.Issoéumtemaquefoiretomadoporseuexcepcionalpupilo,edepoiscrítico,

JohnStuartMill.

Benthamestavaimersoemsuaprópriaépoca,ansiosoparadescobrirsoluçõesparaos

problemassociaisqueocercavam.GeorgWilhelmFriedrichHegelalegavasercapazderecuar

eterumavisãogeraldetodoocursodahistóriahumana,umahistóriaquesedesdobrousegundo

umpadrãoquesomenteosintelectosmaisimpressionantespoderiamapreender.

CAPÍTULO22

AcorujadeMinerva

GEORGW.F.HEGEL

“AcorujadeMinervasóvoaaoanoitecer”.EstaeraavisãodeGeorgWilhelmFriedrichHegel

(1770-1831).Masoqueissosignifica?Naverdade,apergunta“Oqueissosignifica?”éuma

perguntaqueosleitoresdasobrasdeHegelsefazemcomfrequência.Suaescritaéterrivelmente

difícil,emparteporque,assimcomoKant,Hegelexpressava-seemumalinguagemmuitoabstrata

ecostumavainventaralgunstermos.Talvezninguém,nemmesmoopróprioHegel,tenha

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entendidotodaasuaobra.Adeclaraçãosobreacorujaéumadaspartesmaisfáceisdedecifrar.

ÉaformadeHegelnosdizerqueasabedoriaeacompreensãonocursodahistóriahumanasó

acontecerãoemumestágiomaisavançado,quandoolharmosparaoquejáaconteceu,como

alguémquerevêosacontecimentosdodiaquandoanoitecai.

Minervaeraadeusaromanadasabedoriaecostumavaestarassociadaaumacorujasábia.

OfatodeHegeltersidosábiooutoloémotivodedebate,mascomcertezaeleerainfluente.Sua

visãodequeahistóriasedesdobrariadeumamaneiraparticularinspirouKarlMarx(ver

Capítulo27)ecertamentemudouoqueacontecia,postoqueasideiasdeMarxincitaram

revoluçõesnaEuropanoiníciodoséculoXX.Contudo,Hegeltambémirritoumuitosfilósofos.

Algunstrataramsuaobracomoumexemplodoriscodeseusartermosdeformaimprecisa.

BertrandRussell(verCapítulo31)chegouamenosprezá-la,enquantoA.J.Ayer(verCapítulo

32)declarouqueamaiorpartedasafirmaçõesdeHegelnãoexpressavaabsolutamentenada.

ParaAyer,aescritadeHegeleramaissemsentidodoqueinformativaebemmenosatraente.

Outros,inclusivePeterSinger(verCapítulo40),consideravamopensamentodeHegel

extremamenteprofundoeargumentavamquesuaescritaédifícilporqueasideiascomqueHegel

lutavaeramoriginaisdemaisedifíceisdeapreender.

HegelnasceuemStuttgart,noquehojeéaAlemanha,em1770ecresceunaerada

RevoluçãoFrancesa,quandoamonarquiaforasuperada,eumanovarepública,estabelecida.Ele

achamavade“gloriosoamanhecer”e,comseuscolegasestudantes,plantouumaárvorepara

comemorarosacontecimentos.Omomentodeinstabilidadepolíticaetransformaçãoradicalo

influenciaramparaorestodavida.Haviaumasensaçãorealdequeassuposiçõesfundamentais

podiamserderrubadas,dequeoquepareciaserimutávelparatodoosemprenaverdadenão

precisavaser.Issolevouaoentendimentodequeasideiasquetemosestãodiretamente

relacionadasàépocaemquevivemosenãopodemsertotalmentecompreendidasforadeseu

contextohistórico.Hegelacreditavaque,naépocaemqueviveu,umestágioimportantíssimona

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históriahaviasidoatingido.Emnívelpessoal,eleprogrediudaobscuridadeparaosholofotes.

Começouatrabalharcomotutorparticulardeumafamíliaricaantesdesemudareassumiro

cargodediretordeumaescola.Comotempo,acabousetornandoprofessornaUniversidadede

Berlim.Algunsdeseuslivrosconsistiamoriginalmentedeanotaçõesdeaulasfeitasparaajudar

osestudantesaentendersuafilosofia.Quandomorreu,Hegeleraofilósofomaisconhecidoe

admiradodesuaépoca.Issoéfascinante,dadooquantosuaobrapodeserdifícil.Contudo,um

grupodeestudantesentusiasmadosdedicou-seaentenderediscutiroqueHegelensinoue

apresentarasimplicaçõespolíticasemetafísicasdesuaobra.

ProfundamenteinfluenciadopelametafísicadeImmanuelKant(verCapítulo19),Hegel

chegouarejeitaravisãodeKantdequearealidadenumênicasubjazaomundodosfenômenos.

Emvezdeaceitarqueanoumenaestejaalémdapercepçãoquecausanossaexperiência,Hegel

concluiuqueamentequemoldaarealidadesimplesmenteérealidade.Nãohánadaalémdela.

Masissonãoquerdizerquearealidadepermaneciaemumestadofixo.ParaHegel,tudoestáem

processodemudança,eessamudançatomaaformadeumaumentogradualnaautoconsciência,

nossoestadodeautoconsciênciaestabelecidopeloperíodoemquevivemos.

Pensenotododahistóriacomoumlongopedaçodepapeldobradosobresi.Sópodemos

entenderoquehánopapelaodesdobrá-lo.Domesmomodo,sópodemossaberoqueestá

escritonofinaldopapeldepoisdeabri-lo.Háumaestruturasubjacenteàformacomoelese

desdobra.ParaHegel,arealidadeestáconstantementemovendo-senadireçãodoseuobjetivode

entenderasimesma.Ahistórianãoéabsolutamentealeatória.Elaestáindoparaalgumlugar.

Quandoaolhamosemretrocesso,vemosqueelatinhadesedesdobrardessamaneira.Essaideia

éestranhaquandoaouvimospelaprimeiravez,esuspeitoqueamaioriadaspessoasnão

concordarácomHegeldepoisdelerisso.Paraamaioriadenós,ahistóriaestámaispróximade

comoHenryFordadescreveu:“Apenasumadesgraçaapósaoutra”.Ahistóriaéumasériede

eventosqueacontecemsemnenhumplanejamentogeral.Podemosestudarahistóriaedescobrir

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ascausasprováveisdesseseventosepredizerumpoucodoquepoderiaacontecernofuturo,mas

issonãosignificaqueelatenhaumpadrãoinevitáveltalcomoHegelpensava.Issonãoquerdizer

queelaestejaindoparaalgumlugar.E,comcerteza,nãosignificaqueestejagradualmentese

tornandoconscientedesi.

OestudodahistóriafeitoporHegelnãoeraumaatividadeseparadadesuafilosofia,mas

simaprincipalpartedesuafilosofia.Paraele,históriaefilosofiaestavamentrelaçadas.Etudo

estavadirecionando-separaalgomelhor.Essaideianãoeraoriginal.Areligiãogeralmente

explicaahistóriacomoselevasseaumpontofinal,comoasegundavindadeCristo.Hegelera

cristão,porémsuaexplicaçãoestavalongedeserortodoxa.Paraele,oresultadofinalnãoeraa

segundavinda.Hegelacreditavaqueahistóriatinhaumalvofinalqueninguémhaviadefato

consideradoantes:avindagradualeinevitáveldoEspíritopelamarchadarazão.

MasoqueéoEspírito?EoquesignificaoEspíritotornar-seconsciente-de-si?Apalavra

emalemãoparaEspíritoéGeist.Osacadêmicosdiscordamsobreseusignificadopreciso;

algumaspessoaspreferemtraduzi-lapor“Mente”.ParecequeHegelquerrepresentarcomo

termonadamaisqueamenteúnicadetodaahumanidade.Hegeleraidealista–pensavaqueo

EspíritoouaMenteerafundamentaledescobresuaexpressãonomundofísico(em

contraposição,osmaterialistasacreditamqueamatériafísicaéofundamento).Hegelrecontoua

históriadomundoemtermosdeaumentosgraduaisdaliberdadeindividual.Graçasaoquepara

unséliberdade,masparaoutrosnãooé,estamosnosmovendodaliberdadeindividualparaum

mundonoqualtodossãolivres,umEstadopolíticoquepermiteacolaboraçãodetodosparaa

sociedade.

Hegelacreditavaqueumadasmaneirasdeprogredirmosnopensamentoépeloembatede

umaideiaeseuoposto,equepodemoschegarmaispertodaverdadeseguindoseumétodo

dialético.Primeiro,alguémapresentaumaideia–umatese.Essateseéconfrontadacomsua

contradição,comumavisãoqueadesafie–suaantítese.Desseconfrontoentreduasposições

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surgeumaterceiraposiçãomaiscomplexa,quelevaemconsideraçãoasduasanteriores–uma

síntese.Edepois,namaioriadoscasos,essasíntesecomeçatodooprocessonovamente.Anova

síntesetorna-seumatese,queéconfrontadacomumaantítese.Tudoissocontinuaacontecendo

atéqueocorraoplenoentendimento-de-siporpartedoEspírito.

OprincipalpropósitodahistóriaéoentendimentoporpartedoEspíritodesuaprópria

liberdade.Hegelnarrouesseprogressodesdeaquelesqueviviamsobodomíniodegovernos

tiranosnaantigaChinaeÍndia,quenãosabiamqueeramlivres,atéaépocadele.Paraesses

“orientais”,somenteogovernantetodo-poderosoexperimentavaaliberdade.NavisãodeHegel,

aspessoascomunsnãotinhamabsolutamentenenhumaconsciênciadeliberdade.Ospersas

antigoseramumpoucomaissofisticadosnoreconhecimentodaliberdade.Elesforamderrotados

pelosgregos,eissotrouxeprogresso.Osgregos,edepoisosromanos,tinhammaisconsciência

daliberdadedoqueaquelesqueosantecederam.Noentanto,aindamantinhamescravos.Isso

mostravaqueelesaindanãocompreendiamtotalmentequeahumanidadecomoumtododeviaser

livre,enãosóosricosouospoderosos.EmumafamosapassagemdeseulivroAfenomenologia

doespírito(1807),Hegeldiscutiualutaentreummestreeumescravo.Omestrequerser

reconhecidocomoumindivíduoconsciente-de-sieprecisadoescravoparaatingiresseobjetivo,

masnãoadmitequeoescravotambémmereçareconhecimento.Essarelaçãodesiguallevaauma

luta,comamortedeumdosdois,masalutaéautodestrutiva.Porfim,mestreeescravoacabam

reconhecendoquenecessitamumdooutroequeprecisamrespeitaraliberdadeumdooutro.

Noentanto,segundoHegel,foisócomocristianismo,quedesencadeouumaconsciência

dovalorespiritual,quealiberdadegenuínatornou-sepossível.Emsuaprópriaépoca,ahistória

realizouseuobjetivo.OEspíritotornou-seconscientedesuapróprialiberdade,easociedade

eraumresultadoordenadopelosprincípiosdarazão.Issoeramuitoimportanteparaele:a

verdadeiraliberdadesósurgiudeumasociedadepropriamenteorganizada.Oquepreocupa

muitosleitoresdeHegeléque,notipodesociedadeidealimaginadaporele,aquelesquenãose

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encaixamnavisãodesociedadedospoderososorganizadoresserãoforçados,emnomeda

liberdade,aaceitaressemodo“racional”devida.Serãoeles,nafraseparadoxaldeRousseau,

“forçadosaserlivres”(verCapítulo18).

OresultadofinaldetodaahistóriaacabousendoqueopróprioHegelchegouà

consciênciadaestruturadarealidade.Elepareciapensarquehaviachegadoaesseestágionas

páginasfinaisdeumdeseuslivros.EssefoiopontoemqueoEspíritocompreendeuasimesmo

pelaprimeiravez.Então,assimcomoPlatão(verCapítulo1),Hegelconferiuumaposição

especialaosfilósofos.Lembre-sedequePlatãoacreditavaqueosreis-filósofosdeveriam

governarsuarepúblicaideal.Hegel,aocontrário,acreditavaqueosfilósofospoderiamatingir

umtipoparticulardeautoentendimentoquetambémeraoentendimentodarealidadeedetodaa

história,umaoutraformaderepresentaraspalavrasgravadasnoTemplodeApoloemDelfos:

“Conhece-teatimesmo”.Sãoosfilósofos,acreditavaele,queacabampercebendooderradeiro

padrãodedesdobramentodoseventoshumanos.Elesadmiramomodocomoadialéticaproduziu

umdespertargradual.Derepente,tudosetornaclaroparaeles,eoobjetivodotododahistória

humanatorna-seóbvio.OEspíritoentraemumanovafasedoentendimentodesi.Essaéateoria,

sejacomofor.

Hegeltinhamuitosadmiradores,masArthurSchopenhauernãoeraumdeles.Elepensava

queHegelnãoeradefatoumfilósofo,porquelhefaltavaseriedadeehonestidadenamaneira

comotratavaafilosofia.NoqueserefereaSchopenhauer,afilosofiadeHegeleradesprovida

desentido.Hegel,porsuavez,descreveuSchopenhauercomoumsujeito“repulsivoeignorante”.

CAPÍTULO23

Vislumbresderealidade

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ARTHURSCHOPENHAUER

Avidaédolorosa,eseriamelhornãoternascido.Poucaspessoastêmessaperspectiva

pessimistacomoArthurSchopenhauer(1788-1860).Segundoele,todosnósestamospresosem

umciclodequererascoisas,obterascoisasedepoisquerermaiscoisas.Issosóacabaquando

morremos.Semprequeparecetermosconseguidooquequeremos,começamosaquereroutra

coisa.Talvezvocêpensequepoderiaserfelizsefossemilionário,masocontentamentonão

durariamuitotempo.Vocêdesejariaalgoquenãoteria.Nós,sereshumanos,somosassim:nunca

estamossatisfeitos,nuncadeixamosdeterambiçãopormaisquetenhamos.Etudoissoémuito

deprimente.

Porém,afilosofiadeSchopenhauernãoétãosombriaquantoparece.Elepensavaque,se

pudéssemospelomenosreconheceraverdadeiranaturezadarealidade,nósnoscomportaríamos

demaneirabemdiferenteepoderíamosevitaralgumasdascaracterísticasmaistristesda

condiçãohumana.SuamensagemerabastanteparecidacomadeBuda.Budaensinavaquetoda

vidaenvolvesofrimento,masqueemumnívelprofundonãohácoisascomo“simesmo”:se

reconhecermosisso,poderemosatingirailuminação.Essasemelhançanãoeracoincidência.Ao

contráriodamaioriadosfilósofosocidentais,Schopenhauerbaseara-seamplamentenafilosofia

oriental.EletinhaatémesmoumaestátuadeBudaemsuamesa,queficavapertodaestátuade

ImmanuelKant,outragrandeinfluênciaparaele.

AocontráriodeBudaeKant,Schopenhauereraumhomemsoturno,presunçosoedifícil.

QuandoconseguiuumempregocomoprofessoremBerlim,eleseconvenceutantodesuaprópria

genialidadequeteimouparaquesuasaulasfossemdadasexatamentenomesmohorárioqueasde

Hegel.Essanãofoiumadesuasmelhoresideias,poisHegelerabastantepopularentreos

estudantes.QuaseninguémaparecianasaulasdeSchopenhauer;asdeHegel,emcompensação,

ficavamlotadas.Schopenhaueracaboudeixandoauniversidadeepassouorestodavidavivendo

deherança.

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Seulivromaisimportante,OmundocomoVontadeeRepresentação,foipublicadoem

1818,maselecontinuoutrabalhandonaobraduranteanos,oquegerouumaversãomaislongaem

1844.Aprincipalideianocernedaobraerabastantesimples.Arealidadetemdoisaspectos.

ElaexistetantocomoVontadequantocomoRepresentação.AVontadeéaforçapropulsoracega,

encontradaemabsolutamentetodasascoisasqueexistem.Éaenergiaquefazasplantaseos

animaiscrescerem,mastambéméaforçaquefazasbússolasapontaremparaonorteeoscristais

seformaremnoscompostosquímicos.Elaestápresenteemcadapartedanatureza.Ooutro

aspecto,omundocomoRepresentação,éomundocomooexperimentamos.

OmundocomoRepresentaçãoéanossaconstruçãodarealidadeemnossamente.Éoque

Kantchamoudemundofenomênico.Olheaoredor.Talvezvejaárvores,pessoasoucarrospela

janela,ouestelivronasuafrente;talvezouçapássaros,otráfegoouruídosnooutroquarto.O

quevocêexperimentapelossentidoséomundocomoRepresentação.Éasuamaneiradedar

sentidoatudo,eelarequeraconsciência.Suamenteorganizaaexperiênciaparadarsentidoa

todaela.OmundocomoRepresentaçãoéomundonoqualvivemos.Contudo,assimcomoKant,

Schopenhaueracreditavaquehaviaumarealidademaisprofundaqueexistealémdanossa

experiência,alémdomundodasaparências.Kantchamouessemundodenumênicoepensavaque

nãotemosacessodiretoaele.ParaSchopenhauer,omundocomoVontadeeraumpouco

parecidocomomundonumênicodeKant,emboracomdiferençasimportantes.

Kantescreveusobreonoumena,pluraldenoumenon.Eleacreditavaquearealidadetinha

maisdoqueumaparte.NãoestáclarocomoKantsabiadisso,vistoqueeledeclarouqueo

mundonumênicoerainacessívelparanós.Schopenhauer,emcontraste,sustentavaquenão

podemosafirmardemaneiranenhumaquearealidadenumênicaeradividida,poisessetipode

divisãorequerespaçoetempo,eKantnãoacreditavaqueespaçoetempoexistiamnarealidade

emsi,massimqueeramcausadospelamenteindividual.JáSchopenhauerdescreviaomundo

comoVontadecomoumaforçaúnica,unificadaesemdireçãoportrásdetudooqueexiste.

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PodemosterumvislumbredessemundocomoVontadepormeiodenossasprópriasaçõese

tambémpelaexperiênciadaarte.

Paredelerecoloqueamãonacabeça.Oqueaconteceu?Alguémqueestivesse

observandoveriaapenassuamãosubindoeencostandoemsuacabeça.Vocêtambémpodever

issoseolharnoespelho.Essaéumadescriçãodomundofenomênico,omundocomo

Representação.SegundoSchopenhauer,noentanto,háumaspectointernoànossaexperiênciade

movimentarocorpo,algoquepodemossentirdeumamaneiradiferentedaexperiênciadomundo

dosfenômenosemgeral.NósnãoexperimentamosomundocomoVontadediretamente,mas

chegamosbempertodissoquandofazemosaçõesdeliberadas,quandotemosvontadedeações

corporais,quandoasfazemosacontecer.Poressarazão,eleescolheuapalavra“Vontade”para

descreverarealidade,aindaquesejaapenasnasituaçãohumanaqueessaenergiatenhaqualquer

conexãocomaaçãodeliberada–plantasnãocrescemdeliberadamente,nemreaçõesquímicas

acontecemdeliberadamente.Portanto,éimportanteperceberqueapalavra“Vontade”édiferente

dosusoscomunsdotermo.

Quandoalguémtem“vontade”dealgumacoisa,tememmenteumobjetivo:estátentando

fazeralgumacoisa.MasissonãoédemodonenhumoqueSchopenhauerquerdizerquando

descrevearealidadenoníveldomundocomoVontade.AVontade(cominicialmaiúscula)é

despropositadaou,comoelecostumadizer,“cega”.Elanãotentaprovocarnenhumresultadoem

particular.Elanãotemobjetivooumeta.Elaéapenasessegrandesurtodeenergiaqueestáem

todososfenômenosnaturais,bemcomoemnossosatosconscientesdetervontadedascoisas.

ParaSchopenhauer,nãoháumDeusqueadirecione.TampoucoaVontadeemsiéDeus.A

situaçãohumanaéquenós,comotodaarealidade,somospartedessaforçadesprovidade

sentido.

Contudo,háalgumasexperiênciasquepodemtornaravidasuportável.Essasexperiências

basicamentevêmdaarte.Aarteforneceumpontodetranquilidadedemodoque,duranteum

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curtoperíodo,conseguimosescapardocicloinfinitodalutaedodesejo.Amúsicaéamelhor

formadearteparaisso.DeacordocomSchopenhauer,issoocorreporqueamúsicaéumacópia

daVontadeemsi.Paraele,issoexplicavaopoderdamúsicadenostocartãoprofundamente.Se

ouvirmosumasinfoniadeBeethovenquandoestivermosnadisposiçãocorretaparaisso,alémde

sermosestimuladosemocionalmente,vislumbraremosarealidadecomoelaverdadeiramenteé.

Nenhumoutrofilósofoatribuiumpapeltãocentralàsartes;portanto,nãoésurpresaque

Schopenhauersejabenquistoporpessoascriativasdeváriostipos.Compositoresemúsicoso

adoramporqueeleacreditavaqueamúsicaeraamaisimportantedasartes.Osromancistas

tambémsesentiamatraídospelasideiasdele,taiscomoLeonTolstói,MarcelProust,Thomas

ManneThomasHardy.DylanThomasinclusiveescreveuumpoema,“Theforcethatthroughthe

greenfusedrivestheflower”[Aforçaqueimpeleaflorpeloverderastilho],inspiradona

descriçãodeSchopenhauerdomundocomoVontade.

Schopenhauernãodescreveuapenasarealidadeenossarelaçãocomela.Eletambémtinha

ideiassobrecomodeveríamosviver.Umavezquepercebemosquetodosfazemospartedeuma

forçaenergéticaequeaspessoasenquantoindivíduosexistemsomentenoníveldomundocomo

Representação,issodeviamudaroquefazemos.ParaSchopenhauer,causarmalaosoutrosé

tambémcausarmalasipróprio.Esteéofundamentodetodaamoral.Seeumatovocê,destruo

umapartedaforçavitalqueunetodosnós.Quandoalguémcausaomalaoutrapessoa,écomo

umacobraquemordeaprópriacaudasemsaberqueestáfincandoaspresasnaprópriacarne.

Dessemodo,amoralbásicaqueSchopenhauerensinavaeraadacompaixão.Ditodeformamais

clara,asoutraspessoasnãosãoexternasamim.Eumeimportocomoqueacontececomvocê

porque,decertamaneira,vocêfazpartedaquilodequetodosnósfazemosparte:omundocomo

Vontade.

EsseéoverdadeiroposicionamentomoraldeSchopenhauer.Noentanto,équestionávelse

conseguimoschegaraalgoparecidocomesseníveldepreocupaçãocomasoutraspessoas.Certa

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ocasião,umamulherquetagarelavanaportadacasadeSchopenhaueroirritoutantoqueelea

empurroupelasescadas.Elaseferiu,eacorteordenouqueSchopenhauerpagasseaelauma

pensãopelorestodavida.Quandoelamorreualgunsanosdepois,Schopenhauernãodemonstrou

compaixão;emvezdisso,elerabiscouotrocadilho“obitanus,abitonus”(latimpara“morreua

velha,acabou-seofardo”)nacertidãodeóbitodela.

Háoutrométodomaisextremodelidarcomociclododesejo.Paraevitarficarpreso

dessemodo,simplesmentedistancie-sedomundointeiroetorne-seumasceta:vivaumavidade

castidadeepobreza.Schopenhaueracreditavaqueessaseriaaformaidealdeenfrentara

existência,asoluçãopelaqualoptarammuitosreligiososorientais.Contudo,opróprio

Schopenhauernuncasetornouumasceta,apesardeseretrairdavidasocialquandoenvelheceu.

Durantequasetodaavida,elegostoudecompanhia,tevecasosamorosos,alimentou-sebem.É

tentadordizerqueelefoiumhipócrita.Naverdade,aveiadepessimismoqueperpassasuaobra

étãoprofundaemdeterminadoslugaresquealgunsleitorespensavamque,seeletivessesido

sincero,teriasematado.

OgrandefilósofovitorianoJohnStuartMill,poroutrolado,eraumotimista.Eledefendia

queopensamentorigorosoeadiscussãopodiamincitaramudançasocialeproduzirummundo

melhor,ummundoemquemaispessoaspoderiamtervidasfelizesesatisfatórias.

CAPÍTULO24

Espaçoparacrescer

JOHNSTUARTMILL

Imaginequevocêtenhavividodistantedeoutrascriançasduranteamaiorpartedesuainfância.

Emvezdepassarotempobrincando,vocêaprenderiagregoeálgebracomumprofessor

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particular,ouseenvolveriaemconversascomadultosextremamenteinteligentes.Oquevocê

teriasetornado?

IssofoimaisoumenosoqueaconteceucomJohnStuartMill(1806-1873).Elefoium

experimentoeducacional.Seupai,JamesMill,amigodeJeremyBentham,tinhaamesmavisão

deLockedequeamentedascriançaseravazia,comoumquadrobranco.JamesMillestava

convencidodeque,secriasseumacriançadamaneiracorreta,haveriaumaboachancedeelase

tornarumgênio.Porisso,JamesensinouseufilhoJohnemcasa,garantindoqueomeninonão

perdessetempobrincandoouaprendendomaushábitos.Contudo,nãosetratavaapenasde

transmitirconteúdosparaaprovaçãoemprovas,muitomenosdeumamemorizaçãoforçadaou

algodessetipo.JamesensinouJohnausarométododequestionamentosocrático,encorajandoo

filhoaexplorarasideiasqueaprendia,emvezdesimplesmenterepeti-las.

Oimpressionanteresultadofoique,aostrêsanosdeidade,Johnjáestudavagregoantigo.

Aosseis,escreveraumahistóriadeRomaeaossetejáentendiaosdiálogosdePlatãonalíngua

original.Aosoito,começouaaprenderlatim.Aosdoze,tinhaumconhecimentoabrangentede

história,economiaepolítica,conseguiaresolverequaçõesmatemáticasedemonstravaum

interesseapaixonadoesofisticadoporciência.Eleeraumprodígio.Aosvinteanos,jáeraum

dospensadoresmaisbrilhantesdesuaera,emborajamaistenhadefatosuperadosuaestranha

infânciaepermanecidosolitárioeumpoucodistantedurantetodaavida.

Noentanto,elesetornouumtipodegênio.Issoquerdizerqueoexperimentodopai

funcionara.Milltornou-seumativistacontraainjustiça,umdosprimeirosfeministas(elefoi

presoporfomentarocontroledenatalidade),político,jornalistaeumgrandefilósofo,talvezo

maiorfilósofodoséculoXIX.

Millfoicriadocomoutilitarista,eainfluênciadeBenthameraimensa.AfamíliaMill

passavatodoverãonacasadecampodeBentham,emSurrey.Mas,emboraMillconcordasse

comBenthamqueaaçãocorretaésempreaquelaqueproduzamaiorfelicidade,elepassoua

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acreditarqueaexplicaçãodefelicidadecomoprazerdadaporseuprofessoreramuitogrosseira.

Então,ojovemdesenvolveusuaprópriaversãodateoria,umaversãoquedistinguiaosprazeres

maiselevadosdosmenoselevados.

Sehouvesseumaescolha,seriamelhorserumporcofelizchafurdandonalamaeenfiando

acaranocoxoouumserhumanoinfeliz?Millpensavaqueeraóbvioqueescolheríamosserum

humanoinfelizemvezdeumporcofeliz.MasissovaicontraopensamentodeBentham.Lembre-

sedequeBenthamdiziaquetudooqueimportasãoasexperiênciasprazerosas,

independentementedecomosãoproduzidas.Mill,poroutrolado,achavaquepodemoster

diferentestiposdeprazerequealgunssãomuitomelhoresqueoutros,tãomelhoresquenenhuma

quantidadedeprazerinferiorjamaisseráequiparávelàmenorquantidadedoprazersuperior.Os

prazeresinferiores,comoaquelesqueosanimaispodemexperimentar,jamaisseriamumdesfio

aosprazeressuperioreseintelectuais,comolerumlivroououvirumconcerto.Millfoimais

alémedissequeseriamelhorserumSócratesinsatisfeitodoqueumtolosatisfeito,issoporque

ofilósofoSócratesfoicapazdeobterprazeresmuitomaissutispelopensamentodoqueumtolo

jamaisconseguiriaobter.

PorqueacreditaremMill?Suarespostaeraadequequemexperimentassetantoprazeres

superioresquantoinferioresprefeririaossuperiores.Umporconãopodelerouescutarmúsica

clássica,entãosuaopiniãosobreissonãovaleria.Seumporcopudesseler,elepreferirialera

rolarnalama.

IssoéoqueMillpensava.Noentanto,algumaspessoasapontaramqueelesupunhaque

todosfossemiguaisaele,ouseja,preferiamlerarolarnalama.Piorainda:logoqueMill

apresentouasdiferentesqualidadesdefelicidade(superioreinferior),assimcomoasdiferentes

quantidades,ficoumuitomaisdifícilpercebercomopoderíamoscalcularoquefazer.Umadas

grandesvirtudesdaabordagemdeBenthamfoisuasimplicidade,comtodosostiposdeprazere

doravaliadosnamesmamoeda.Millnãoapresentanenhumamaneiradecalcularumataxade

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câmbioentreasdiferentesocorrênciasdeprazeressuperioreseinferiores.

Millaplicavaseupensamentoutilitaristaatodososaspectosdavida.Elepensavaqueos

sereshumanossepareciamumpoucocomasárvores.Senãodamosàárvoreoespaço

necessárioparaelasedesenvolver,elaseráfracaeretorcida.Todavia,naposiçãocorreta,ela

poderealizartodooseupotencial,atingindoumaalturaeumaextensãoconsideráveis.De

maneirasemelhante,nascircunstânciascorretas,ossereshumanosprosperam,eissogeraboas

consequênciasnãosóparaoindivíduoemquestão,mastambémparatodaasociedade–a

felicidadeémaximizada.Em1859,Millpublicouumlivrocurto,poréminspirador,defendendo

suavisãodequedaràspessoasoespaçoquejulgamserconvenienteparasedesenvolveremera

amelhormaneiradeorganizarasociedade.Esselivrochama-seSobrealiberdadeeaindahoje

éamplamentelido.

Paternalismo,termooriginadodapalavrapater,quesignificapai,significaforçaralguém

afazeralgoparaoseuprópriobem(emborapudesseigualmentesechamarmaternalismopara

mater,palavralatinaparamãe).Sequandocriançavocêfoiforçadoacomervegetais,entenderá

muitobemesseconceito.Comervegetaisnãotransformaninguémemumapessoaboa,masseus

paisinsistemqueéprecisocomê-losparaoseuprópriobem.Millacreditavaquenãohavia

nenhumproblemacomopaternalismoquandodirecionadoàscrianças:elasprecisamser

protegidasdesiprópriaseterseucomportamentocontroladodeváriasmaneiras.Contudo,o

paternalismodirecionadoaosadultosemumasociedadecivilizadaerainaceitável.Aúnica

justificativaparaissoeraseumadultocorresseoriscodeprejudicaralguémcomsuaspróprias

ações,ousetivessesériosproblemaspsiquiátricos.

AmensagemdeMillerasimpleseficouconhecidacomoprincípiododano.Todoadulto

deveriaserlivreparavivercomoquiser,desdequeninguémsejaprejudicadonoprocesso.

Trata-sedeumaideiadesafiadoraparaaInglaterravitoriana,quandomuitaspessoassupunham

quepartedopapeldogovernoeraimporbonsvaloresmoraisàspessoas.Milldiscordava.Ele

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acreditavaqueamaiorfelicidadeviriadosindivíduosquetivessemumamaiorliberdadena

formadesecomportar.Enãoerasóofatodeogovernodizeràspessoasoquefazerque

preocupavaMill.Eleodiavaoquechamoude“tiraniadamaioria”,aformadeaspressões

sociaisevitaremqueamaioriafaçaoquequerfazer,ousetorneoquequersetornar.

Osoutrosatépensamquesabemoquenostornafelizes,edemodogeralestãoerrados.

Nóssabemosmelhordoqueninguémoquequeremosfazerdenossavida.Emesmoquenão

saibamos,pensavaMill,émelhorquecometamosospróprioserrosdoquesermosforçadosa

nosadaptaraummododevida.Issoestáemconsonânciacomoutilitarismo,poisMill

acreditavaqueaumentaraliberdadeindividualgeraumafelicidademaiorparatodosdoquese

essaliberdadeforlimitada.

Osgênios,deacordocomMill(queeraoprópriogênio),precisamtermaisliberdadedo

quetodosnósparasedesenvolverem.Elesraramentecorrespondemàsexpectativasda

sociedadeemrelaçãoaoseumododecomportamentoecostumamparecerexcêntricos.Todos

nósperdemosquandoodesenvolvimentodelesétolhido,poisnessecasonãocontribuemparaa

sociedadetalcomoofariamsefossemmaislivres.Portanto,sequisermosatingiromaiornível

possíveldefelicidade,precisamosnãointerferirnavidadosgênios,anãoserque,obviamente,

elescorramoriscodeprejudicarosoutroscomasprópriasações.Consideraroqueelesfazem

comoalgoofensivonãoémotivoparaevitarquesecomportemdedeterminadomodo.Mill

deixouissobemclaro:ofendernãodeveserconfundidocomfazeromal.

AabordagemdeMilltevealgumasconsequênciasperturbadoras.Imagineumhomemsem

famíliaquedecidabeberduasgarrafasdevodcatodasasnoites.Éfácilperceberqueeleestáse

matandoaospoucospelabebida.Aleideveriainterferirnessecaso?Não,diziaMill,nãoatéque

elecorraoriscodeprejudicaropróximo.Podemosconversarcomele,tentarconvencê-lode

queeleestásedestruindo,porémjamaisdevemosforçá-loamudarseusmodos;tampoucodeveo

governoevitarqueeleconsumaaprópriavida.Éalivreescolhadele.Nãoserialivreescolhase

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eleprecisassecuidardeumacriança,mas,comoninguémdependedele,elepodefazeroque

quiser.

Alémdaliberdadenomododevida,Millacreditavaqueeravitalquetodostivessem

liberdadeparapensarefalaroquequisessem.Elesentiaqueadiscussãoabertaeraumgrande

benefícioparaasociedade,porqueforçavaaspessoasapensararduamentesobreaquiloemque

acreditavam.Senãotivermosnossasvisõescontestadasporvisõesopostas,provavelmente

acabaremossustentando-ascomo“dogmasmortos”,prejuízosquenaverdadenãopodemos

defender.Milldefendiaaliberdadedeexpressãotendocomolimiteopontoemqueincitaa

violência.Acreditavaqueumjornalistadeveriaserlivreparaescreverumeditorialnoqual

declarasseque“osprodutoresdemilhofazemcomqueospobrespassemfome”;todavia,seele

levantasseumaplacacomasmesmaspalavrasnaentradadacasadeumfabricantedemilho

diantedeumamultidãoenfurecida,seriaoincitamentoàviolência,algoproibidopeloprincípio

dodanodeMill.

Muitaspessoasdiscordavamdele.Algumaspensavamquesuaabordagemàliberdadeera

centradademaisnaideiadequeoimportanteéoqueosindivíduossentememrelaçãoasuas

própriasvidas(algomuitomaisindividualista,porexemplo,queoconceitodeliberdadede

Rousseau,verCapítulo18).Outrosacreditavamqueeleabriaasportasparaumasociedade

pessimistaquearruinariaparasempreamoral.JamesFitzjamesStephen,contemporâneodeMill,

defendiaquemuitaspessoasdeviamserforçadasaumcaminhoestreitoenãodeviamtermuitas

escolhassobreomodocomoviviam,poismuitasdelas,dadaaliberdadedeação,acabariam

tomandodecisõesruinseautodestrutivas.

UmaáreanaqualMilleraparticularmenteradicalemsuaépocaeraofeminismo.Na

InglaterradoséculoXIX,asmulherescasadasnãopodiamterpropriedadesetinham

pouquíssimaproteçãocontraaviolênciaeoestupropelosmaridos.MilldefendeuemAsujeição

dasmulheres(1869)queossexosdeveriamsertratadosigualmente,tantonoDireitoquantona

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sociedadedemodogeral.Algumaspessoasqueocercavamdiziamqueasmulhereseram

naturalmenteinferioresaoshomens.Elequestionavacomoerapossívelafirmarissoquandoas

mulheresquasesempreforamproibidasdeatingirtodooseupotencial:elaserammantidas

afastadasdaeducaçãosuperioredemuitasprofissões.Acimadetudo,Millqueriaumamaior

igualdadeentreossexos.Ocasamentodeveriaserumarelaçãodeamizadeentreiguais,diziaele.

SeuprópriocasamentocomaviúvaHarrietTaylor,queaconteceutardiamentenavidadosdois,

eraumarelaçãodessetipoegeroumuitafelicidade.Eleseramamigosíntimos(etalvezaté

amantes)quandooprimeiromaridodelaaindaestavavivo,masMilltevedeesperaraté1851

paraserosegundo.ElaoajudouaescrevertantoSobrealiberdadequantoAsujeiçãodas

mulheres,emborainfelizmentetenhamorridoantesdeosdoisserempublicados.

Sobrealiberdadefoipublicadopelaprimeiravezem1859.Nomesmoanosurgiuoutro

livroaindamaisimportante:Aorigemdasespécies,deCharlesDarwin.

CAPÍTULO25

Designnãointeligente

CHARLESDARWIN

“Vocêéparentedosmacacosporpartedosavóspaternosoumaternos?”Essapergunta

debochadafoifeitapelobispoSamuelWilberforceemumfamosodebatecomThomasHenry

HuxleynoMuseudeHistóriaNacionaldeOxfordem1860.Huxleyestavadefendendoasideias

deCharlesDarwin(1809-1882).OintuitodaperguntadeWilberforceerasertantouminsulto

quantoumapiada,porémotirosaiupelaculatra.Huxleymurmurouentreosdentes,“Obrigado,

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Deus,portê-locolocadoemminhasmãos”,erespondeuquepreferiaserparentedeumprimata

doquedeumserhumanoqueretardavaumdebateridicularizandoideiascientíficas.Elepoderia

muitobemterexplicadoquedescendiadeancestraisparecidoscommacacosdosdoislados–e

nãorecentemente,masemalgummomentoopassado.IssoéoqueDarwindiria.Todostinham

primatasemsuaárvoregenealógica.

OfurorcausadoporessaideiacomeçoupraticamentenomomentoemqueolivroA

origemdasespéciesfoipublicadoem1859.Depoisdisso,nãofoimaispossívelpensarnos

sereshumanoscomoserestotalmentediferentesdoreinoanimal.Ossereshumanosnãoeram

maisespeciais:elessimplesmentefaziampartedanaturezacomoqualqueroutroanimal.Isso

podenãoserumasurpresaparavocê,masfoiparaamaioriadosvitorianos.

Talvezvocêpensequesóseriaprecisoalgunsminutosnacompanhiadeumchimpanzéou

gorila,outalvezumaboaolhadanoespelho,parapercebernossaproximidadeemrelaçãoaos

primatas.Contudo,naépocadeDarwin,quasetodasaspessoassupunhamqueossereshumanos

erambemdiferentesdequalqueroutroanimal,eaideiadequetínhamosparentesdistantesem

comumcomosanimaiseraridícula.Umaquantidadeenormedepessoaspensouqueasideiasde

Darwineramtresloucadas,obradodemônio.Algunscristãosagarraram-seàcrençadequeo

livrodeGênesisapresentavaaverdadeirahistóriadecomoDeuscriaraosanimaiseasplantas

emseisdiasdemuitotrabalho.Deushaviaprojetadoomundoetudooqueneleexistia,cada

coisacomseulugarapropriadoparatodoosempre.Essescristãosacreditavamquetodasas

espéciesdeanimaiseplantascontinuavamsendoasmesmasdesdeaCriação.Atéhoje,algumas

pessoasrelutamemacreditarqueaevoluçãosejaoprocessoquedeuorigemaoquesomos.

Darwinerabiólogoegeólogo,nãofilósofo.Talvezentãovocêsepergunteporqueháum

capítulosobreelenestelivro.Arazãoéquesuateoriadaevoluçãopelaseleçãonaturalesuas

versõesmodernastiveramumprofundoimpactonamaneiracomoosfilósofos–eoscientistas–

pensamsobreahumanidade.Trata-sedateoriacientíficamaisinfluentedetodosostempos.O

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filósofocontemporâneoDanielDennettachamoude“amelhorideiaquealguémjáteve”.A

teoriaexplicacomoossereshumanoseasplantaseosanimaisqueoscercamvieramaseroque

sãoecomoaindacontinuammudando.

Umdosresultadosdessateoriacientíficaéqueficoumaisfácildoqueantesdeacreditar

nanãoexistênciadeDeus.OzoólogoRichardDawkinsescreveu:“Nãoconsigoimaginarcomo

eraserumateuantesde1859,quandoAorigemdasespéciesdeDarwinfoipublicado”.Éclaro

quehaviaateusantesde1859–DavidHume,dequemfalamosnoCapítulo17,provavelmente

eraumdeles–,masdepoisdapublicaçãosurgirammuitomais.Nãoéprecisoserateupara

acreditarqueaevoluçãosejaverdadeira:muitosreligiosossãodarwinistas.Masnãoépossível

serdarwinistaeacreditarqueDeustenhacriadotodasasespéciesexatamentecomoelassão

hoje.

Quandojovem,DarwinestevenumaviagemcincoestrelasabordodoHMSBeagle,

visitandoaAméricadoSul,aÁfricaeaAustrália.Foiaaventuradavidadele–comoseriapara

qualquerpessoa.Antesdisso,elenãofoiumestudanteparticularmentedestacado,eninguém

esperavaqueelefizesseumacontribuiçãotãoimpressionanteparaopensamentohumano.

Darwinnãofoiumgênionaescola.Seupaiestavaconvencidodequeeleseriaumesbanjadore

umavergonhaparaafamília,poispassavaamaiorpartedotempocaçandoeatirandoemratos.

Quandoaindajovem,começouaestudarmedicinaemEdimburgo,mas,aoperceberquenão

dariacerto,passouaestudarteologianauniversidadedeCambridgecomointuitodesetornar

vigário.Eraumnaturalistamuitointeressado,passavaotempolivrecoletandoplantaseinsetos,

masnãohaviasinaisdequeeleseriaomaiorbiólogodahistória.Darwinpareciaumpouco

perdidoemmuitosaspectos,poissequersabiaoquequeriaser.MasaviagemabordodoBeagle

otransformou.

Aviagemfoiumaexpediçãocientíficaaoredordomundo,emparteparamapearaslinhas

costeirasdoslugaresporondeobarcopassava.Apesardasuafaltadequalificações,Darwin

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assumiuopapeldobotânicooficial,mastambémfaziaobservaçõesdetalhadasderochas,fósseis

eanimaissemprequeancoravam.Opequenonaviologoficouabarrotadocomasamostrasque

elecoletava.Porsorte,conseguiumandaramaiorpartedacoleçãodevoltaparaaInglaterra,

ondefoiarmazenadaparainvestigação.

Delonge,apartemaisvaliosadaviagemacaboutornando-seavisitaàsilhasGalápagos,

umgrupodeilhasvulcânicasnooceanoPacíficoaproximadamenteaoitocentosquilômetrosda

AméricadoSul.OBeaglechegouàsilhasGalápagosem1835.Láhaviaumavariedadeimensa

deanimaisparaexaminar,inclusivetartarugasgiganteseiguanas-marinhas.Emboranãolhe

parecesseóbvionaépoca,omaisimportanteparaateoriadaevoluçãodeDarwinfoiumasérie

detentilhõesdecoropaca.Eleatirouemdiversosdessespassarinhoseosenviouparacasapara

futurosestudos.Umexameminuciosofeitoposteriormenterevelouquehaviatrezeespécies

distintas.Aspequenasdiferençasentreelesestavamprincipalmentenosbicos.

Depoisderetornar,Darwinabandonouosplanosdesetornarvigário.Enquantoviajava,

osfósseis,asplantaseosanimaismortosqueenvioudevoltaparacasaotornarambastante

famosonomundocientífico.Darwintornou-senaturalistaemtempointegralepassoumuitosanos

trabalhandonateoriadaevolução,alémdesetransformaremespecialistamundialemcracas,

aquelespequenosanimaizinhosparecidoscomlapasquesegrudamnasrochasenocascodos

navios.Quantomaiselepensavanisso,maisseconvenciadequeasespéciesevoluíampelo

processonaturaleestavamemconstantemudança,emvezdeestagnadasparasempre.Porfim,

eleapresentouaideiadequeasplantaseosanimaismaisbem-adaptadosaoambientetinham

umaprobabilidademaiordesobreviverduranteumtemposuficienteparapassaradianteparaos

descendentesalgumasdesuascaracterísticas.Durantelongosperíodos,essepadrãoproduziu

plantaseanimaisqueparecemtersidocriadosparavivernosambientesemqueforam

encontrados.AsilhasGalápagosforneceramalgumasdasmelhoresevidênciasdaevoluçãoem

atividade.Porexemplo,emalgummomentodahistória,pensavaDarwin,ostentilhõeschegaram

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atéládocontinente,talvezlevadosporfortesventos.Pormilharesemilharesdegerações,os

pássarosemcadailhaadaptaram-segradualmenteaolugarondeviviam.

Nemtodosospássarosdamesmaespéciesãoidênticos.Emgeral,háumavariedade

bastantegrande.Umpássaropodeterumbicolevementemaispontudodoqueoutro,por

exemplo.Seessetipodebicoajudavaopássaroasobreviverpormaistempo,eleteriauma

probabilidademaiordeprocriar.Porexemplo,umpássarocujobicofossebomparacomer

sementesviveriabememumailhaondehouvessemuitassementes,masprovavelmentenãose

adaptariamuitobemaumailhaondeaprincipalfontedecomidafossemnozesqueprecisamser

quebradas.Umpássaroquetevemomentosmaiscomplicadosparaencontrarcomidaacharia

difícilsobreviverosuficienteparaacasalarereproduzir.Então,émenosprovávelqueessetipo

debicofossepassadoadiante.Pássaroscombicosadaptadosaossuprimentosdecomida

disponíveisteriamumaprobabilidademaiordepassaracaracterísticaadianteparaseus

descendentes.Dessemodo,emumailharepletadesementes,ospássaroscombonsbicospara

comersementesacabavamdominando.Durantemilharesdeanos,issolevouàevoluçãodeuma

novaespéciemuitodiferentedaoriginalquechegouàilhapelaprimeiravez.Ospássaroscomo

tipoerradodebicoteriammorridoaospoucos.Emumailhacomdiferentescondições,umtipo

levementediferentedetentilhãoevoluiria.Durantelongosperíodosdetempo,obicodos

pássarosfoiseadaptandocadavezmaisaoambiente.Osdiversosambientesnasdiferentesilhas

significavamqueospássarosqueprosperaramforamosquemelhorseadaptaramaolugar.

OutraspessoasantesdeDarwin,inclusiveseuavô,ErasmusDarwin,haviamsugeridoque

animaiseplantasevoluíam.OqueCharlesDarwinacrescentouaissofoiateoriadaadaptação

pelaseleçãonatural,oprocessoquelevaosmaisbem-adaptadosasobreviverepassaradiante

suascaracterísticas.

Essalutaporsobrevivênciaexplicatudo.Nãosetratasomentedeumalutaentreos

membrosdediferentesespécies;osmembrosdamesmaespécietambémlutamunscontraos

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outros.Todoscompetemparapassarsuascaracterísticasparaapróximageração.Foidessa

maneiraquesederamascaracterísticasdeanimaiseplantasqueparecemtersidoinventadaspor

umamenteinteligente.

Aevoluçãoéumprocessoirracional.Nãohánenhumaconsciência,nenhumDeusportrás

dela–oupelomenoselanãoprecisateralgoassimportrásdela.Éimpessoal,comouma

máquinaquesemantémfuncionandoautomaticamente.Éceganosentidodenãosaberparaonde

vaienãopensarnosanimaiseplantasqueproduz.Elatampoucoseimportacomeles.Quando

vemosseusprodutos–plantaseanimais–,édifícilnãopensarqueforamprojetadosporuma

menteinteligente.Masissoseriaumerro.AteoriadeDarwinforneceumaexplicaçãobemmais

simpleseelegante.Elatambémexplicaporqueexistemtantostiposdevida,comdiferentes

espéciesseadaptandoaregiõesdoambienteemquevivem.

Em1858,Darwinaindanãohaviadecididopublicarsuasdescobertas.Eleestava

trabalhandonolivro,poisqueriaquetudosaíssecorretamente.Outronaturalista,AlfredRussel

Wallace(1823-1913),escreveuparaeleapresentandosuaprópriateoria,bastanteparecidacom

ateoriadaevolução.EssacoincidênciafoiumempurrãoparaqueDarwintornassepúblicassuas

ideias,primeirocomumaapresentaçãoparaaLinneanSocietyofLondonedepois,noano

seguinte,comolivroAorigemdasespécies.Depoisdepassargrandepartedavidaelaborando

suateoria,DarwinnãoqueriaqueWallaceapublicasseantesdele.Olivrotornou-ofamosona

mesmahora.

Algumaspessoasqueoleramnãoseconvenceram.OcapitãodoBeagle,RobertFitzRoy,

porexemplo,cientistaqueinventouumsistemadeprevisãodotempo,eraumdevotodahistória

bíblicadacriação.Eleficoucommedodequetivesseparticipadodadestruiçãodacrença

religiosaeachouquejamaisdeveriatercolocadoDarwinabordodonavio.Atéhoje,há

criacionistasqueacreditamqueahistóriacontadanoGênesiséverdadeira,umadescriçãoliteral

daorigemdavida.Contudo,entreoscientistas,háumasegurançapraticamenteabsolutadequea

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teoriadeDarwinexplicaoprocessobásicodaevolução.Issosedeveemparteaofatodeque,na

épocadeDarwin,houveumaquantidadegigantescadeobservaçõesqueapoiavamateoriae

versõesposterioresdela.Agenética,porexemplo,ofereceuumaexplicaçãodetalhadadecomoa

herançafunciona.Hojesabemossobregenesecromossomosesobreosprocessosquímicos

envolvidosnapassagemdequalidadesparticulares.Asevidênciasfósseistambémsãohoje

muitomaisconvincentesdoquenaépocadeDarwin.Portodasessasrazões,ateoriada

evoluçãopelaseleçãonaturalémuitomaisdoque“apenasumahipótese”:elaéumahipótese

quetemumpesosubstancialdeevidênciasquelhedeemsuporte.

Odarwinismopodetermaisoumenosdestruídootradicionalargumentododesígnioe

abaladoaféreligiosademuitaspessoas.Noentanto,opróprioDarwinpareciaterumamente

abertaemrelaçãoàexistênciaounãodeDeus.Emumacartaescritaparaumamigocientista,ele

declarouqueaindanãoestamospreparadosparaterumaconclusãosobreoassunto:“Aquestão

todaéprofundademaisparaonossointelecto”,explicouele,acrescentando:“Seriacomoum

cachorroespeculandosobreamentedeNewton”.

Umpensadorqueestavapreparadoparaespecularsobreaféreligiosae,aocontráriode

Darwin,tornou-acentralparasuaobra,foiSørenKierkegaard.

CAPÍTULO26

Ossacrifíciosdavida

SØRENKIERKEGAARD

AbraãorecebeumamensagemdeDeus,umamensagemterrivelmenteestranha:eledeve

sacrificarseuúnicofilho,Isaac.Abraãopassaporumtormentoemocional.Eleamaofilho,mas

tambéméumhomemdevotoesabequetemdeobedeceraDeus.NessahistóriadoGênesisno

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AntigoTestamento,Abraãolevaofilhoparaotopodeumamontanha,omonteMoriá,amarra-oa

umaltardepedraeestáprestesamatá-locomumafaca,segundoasinstruçõesdeDeus.No

últimosegundo,noentanto,Deusmandaumanjoparaimpedi-lodecometeroassassinato.Em

vezdisso,Abraãosacrificaumcarneiroapanhadonocampoaliperto.Deusrecompensaa

lealdadedeAbraãopermitindoqueofilhoviva.

Essahistóriatemumamensagem.Comumentesepensaqueamoralé“Tenhafé,façaoque

Deuspedeetudovaimelhorar”.OpropósitoénãoéduvidardapalavradeDeus.Porém,parao

filósofodinamarquêsSørenKierkegaard(1813-1855),nãoeratãosimplesassim.Emseulivro

Temoretremor(1842),eletentouimaginaroqueteriasepassadonamentedeAbraão,as

questões,omedoeaangústia,enquantofezajornadadetrêsdiasdecasaatéamontanha,onde

pensouqueteriadematarIsaac.

KierkegaarderabastanteexcêntricoenãoseencaixavafacilmenteemCopenhagen,onde

vivia.Duranteodia,essehomemmagroebaixinhocostumavaservistosempreandandopela

cidadeconversandocomoutraspessoasegostavadesedefinircomooSócratesdinamarquês.

Eleescreviaànoite–diantedaescrivaninha,rodeadodevelas.Umadesuaspeculiaridadesera

aparecernointervalodeumapeçaparaquetodospensassemqueeleestavasedivertindo,

quandonaverdadeelenãohaviaassistidoanada,massimestavaemcasa,ocupadocomalgum

escrito.Eletrabalhavabastantecomoescritor,mastevedetomarumadecisãoextremamente

angustiante.

Kierkegaardapaixonou-seporumajovemchamadaRegineOlsen,eapediuemcasamento.

Elaaceitou.Maseleestavapreocupadocomofatodesermelancólicodemaisereligiosodemais

parasecasar.Talvezeleatéfizessejusaosobrenomedafamília,“Kierkegaard”,quesignifica

cemitérioemdinamarquês.EleescreveuparaReginedizendoquenãopoderiasecasarcomelae

devolveuaaliançadenoivado.Elesesentiupéssimocomadecisãoepassouváriasnoitesna

camachorandodepoisdisso.Ela,oqueécompreensível,ficoudevastadaeimplorouaelepara

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voltar.Kierkegaardrecusou.Nãoécoincidênciaque,depoisdisso,amaiorpartedesuaobra

sejasobreescolhercomoviveresobreadificuldadedesaberseadecisãotomadafoiadecisão

correta.

Atomadadedecisõesestáincorporadanotítulodeumadesuasprincipaisobras:Ou/ou.

Esselivrodáaoleitorumaescolhaentreumavidadeprazereseperseguiçãodabelezaouuma

vidabaseadaemregrasmoraisconvencionais,umaescolhaentreoestéticoeoético.Não

obstante,umassuntomuitorecorrenteemsuaobraeraaféemDeus.AhistóriadeAbraãotem

tudoavercomisso.ParaKierkegaard,nãoéumadecisãosimplesacreditaremDeus,massim

umadecisãoquerequerumaespéciedesaltonoescuro,umadecisãotomadanaféequepodeaté

ircontraasideiasconvencionaisdoquedeveríamosfazer.

SeAbraãoseguisseadianteematasseoprópriofilho,teriafeitoalgomoralmenteerrado.

Umpaitemodeverbásicodecuidardofilhoecertamentenãodeveriaamarrá-loaumaltare

cortarsuagargantaemumritualreligioso.DeuspediuqueAbraãoignorasseamoraledesseum

saltodefé.NaBíblia,Abraãoéapresentadocomoumsujeitoadmirávelporterignoradoo

sentidonormaldoqueécertoeerradoetersepreparadoparasacrificarIsaac.Masnãoteriaele

cometidoumerroterrível?Eseamensagem,naverdade,nãofossedeDeus?Talvezfosseuma

alucinação;talvezAbraãoestivesseloucoeouvissevozes.Comoteriacertezadisso?Seele

soubessedeantemãoqueDeusnãomanteriasuaordematéofim,teriasidofácilparaAbraão.

Porém,quandoergueuafacadispostoaderramarosanguedofilho,elerealmenteacreditavaque

iriamatá-lo.DeacordocomadescriçãodacenapelaBíblia,essaéaquestão.AfédeAbraãoé

tãoimpressionanteporqueeleconfiaemDeus,enãonasconsideraçõeséticasconvencionais.Do

contrário,nãoteriasidofé.Aféenvolveriscos,mastambéméirracional,istoé,nãosebaseiana

razão.

Kierkegaardacreditavaque,àsvezes,deveressociaiscomuns,comoodequeumpaideve

sempreprotegerofilho,nãosãoosvaloresmaiselevadosqueexistem.Odeverdeobedecera

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Deussuperaodeverdeserumbompai,superanaverdadequalquerdever.Deumaperspectiva

humana,Abraãopoderiaparecerdesumanoeimoralsequerporterconsideradosacrificaro

filho.MasécomoseocomandodeDeusfosseumtrunfoquedecideojogo,independentemente

dequalsejaocomandodeDeus.Nãohánenhumacartamaisaltanobaralhoe,portanto,aética

humanadeixadeserrelevante.Contudo,apessoaqueabandonaaéticaemnomedafétomauma

decisãoangustiante,arriscandotudosemsaberquaisseriamosbenefíciospossíveisdessaação

ouoqueaconteceria,semsaberaocertoseamensagemerarealmentedeDeus.Quemescolhe

essecaminhoestátotalmentesozinho.

Kierkegaarderacristão,emboraodiasseaIgrejadinamarquesaenãopudesseaceitara

formacomosecomportavamoscristãoscomplacentescomquemconvivia.Paraele,areligião

eraumaopçãodolorosa,enãoumadesculpacômodaparacantarnaigreja.Naopiniãodele,a

Igrejadinamarquesadistorceraocristianismoenãoeraverdadeiramentecristã.Nãoéde

surpreenderqueelenãotenhasidobem-vistoporcontadisso.AssimcomoSócrates,ele

conseguiuirritarosânimosdequemnãogostavadassuascríticasefaziaobservações.

Atéagora,faleiseguramentenestecapítulosobreoqueKierkegaardacreditava,mas

interpretaroqueelerealmentequeriadizernãoétarefafácil.Eessadificuldadenãoéàtoa.Ele

éumescritorquenosincitaapensarporcontaprópria.Eleraramenteescreviausandoopróprio

nome,massimpseudônimos.Porexemplo,eleescreveuTemoretremorusandoonomeJohannes

deSilentio–JoãodoSilêncio.Nãoeraapenasumdisfarceparaevitarqueaspessoas

descobrissemqueKierkegaardhaviaescritooslivros–muitaspessoasadivinhavamquemerao

autorimediatamente,oqueprovavelmenteeraoqueelequeria.Osautoresinventadosdeseus

livros,naverdade,sãopersonagenscomsuaprópriamaneiradeveromundo.Tratava-sedeuma

dastécnicasdeKierkegaardparanosfazerentenderasposiçõesqueelediscutiaenosprenderà

leitura.Nósvemosomundopelosolhosdopersonagemeacabamoscriandonossaprópria

opiniãosobreovalordosdiferentesmodosdeabordaravida.

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LerKierkegaardéquasecomolerumromance,eelecostumautilizar-sedanarrativa

ficcionalparadesenvolveralgumasideias.EmOu/ou(1843),oeditorimagináriodolivro,

VictorEremita,descreveadescobertadeummanuscritonagavetasecretadeumaescrivaninha

desegundamão.Omanuscritoéotextoprincipaldolivro,esupostamentefoiescritoporduas

pessoasdiferentes–asquaiseledescrevecomoAeB.Aprimeirapessoaéumhedonistacujo

principalobjetivodevidaéevitarotédiopelabuscadenovasemoções.Elecontaahistóriada

seduçãodeumajovemmulhernaformadeumdiárioquepareceumcontoe,decertomodo,

refletearelaçãodeKierkegaardcomRegine.Ohedonista,aocontráriodeKierkegaard,sóestá

interessadonosprópriossentimentos.AsegundapartedeOu/ouéescritacomosefosseumjuiz

defendendoomododevidasegundoamoral.Oestilodaprimeiraparterefleteosinteressesde

A:consisteempequenostrechossobrearte,óperaesedução.Écomoseoautornãoconseguisse

seconcentrarpormuitotempoemumúnicoassunto.Asegundaparteéescritaemumestilomais

comedidoeprolixo,refletindoaperspectivadevidadojuiz.

Porsinal,sevocêestivercompenadapobreerejeitadaRejineOlsen,depoisdadifícil

relaçãodetérminosevoltascomKierkegaard,saibaqueelasecasoucomumfuncionário

públicoeparecetertidoumavidabastantefelizpelorestodavida.Kierkegaard,noentanto,

nuncasecasou,nemsequerteveumanamoradadepoisdotérminodefinitivo.Elarealmentefoio

verdadeiroamordele,earelaçãofracassadafoiafontedequasetudooqueeleescreveuemsua

vidacurtaeatormentada.

Comováriosfilósofos,Kierkegaardnãofoimuitobenquistodurantesuabrevevida–ele

morreucomapenas42anos.Entretanto,noséculoXX,seuslivrosficaramfamososentre

existencialistascomoJean-PaulSartre(verCapítulo33),quegostavadesuasideiassobrea

angústiadeescolheroquefazernafaltadediretrizespreexistentes.

ParaKierkegaard,opontodevistasubjetivo,aexperiênciadoindivíduoemfazer

escolhas,eraimportantíssimo.KarlMarxtinhaumavisãomaisampla.AssimcomoHegel,ele

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tinhaumagrandevisãodecomoahistóriasedesdobravaedasforçasqueadirecionavam.

Porém,diferentementedeKierkegaard,nãotinhanenhumaesperançadesalvaçãopelareligião.

CAPÍTULO27

Trabalhadoresdomundo,uni-vos!

KARLMARX

NoséculoXIX,haviamilharesdefiaçõesnonortedaInglaterra.Asaltaschaminéssoltavam

fumaçanegra,poluindoasruasecobrindotudodefuligem.Nasfiações,homens,mulherese

criançastrabalhavamdurantelongashoras–geralmentecatorzepordia–paramanteras

máquinasemfuncionamento.Nãohaviamuitosescravos,masossalárioserammuitobaixos,eas

condiçõeseramprecáriasemuitasvezesperigosas.Seostrabalhadoressedesconcentrassem,

podiamficarpresosnasmáquinas,perdermembrosouatésermortos.Otratamentomédico

nessascircunstânciaserabásico.Contudo,elesquasenãotinhamescolha:senãotrabalhassem,

passariamfome.Sefossemembora,talveznãoencontrassemoutrotrabalho.Aspessoasque

trabalhavamnessascondiçõesnãoviviammuitotempo,equasenuncatinhammomentosque

pudessemchamardeseus.

Enquantoisso,osproprietáriosdasfiaçõesenriqueciam.Suaprincipalpreocupaçãoera

obterlucro.Elesdetinhamocapital(dinheiroquepodiaserusadoparafazermaisdinheiro);

eramdonosdoprédioedasmáquinase,decertaforma,eramdonosdostrabalhadores,quepor

suaveznãotinhamquasenada.Tudooquepodiamfazereravendersuacapacidadedetrabalhoe

ajudarosdonosdafiaçãoaenriquecer.Pormeiodotrabalho,elestornavammaisvaliosaa

matéria-primacompradapelospatrões.Quandooalgodãochegavaàfábrica,valiamuitomenos

doquequandosaíadelá,masquasetodoovaloragregadoiaparaosproprietáriosquando

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vendiamoproduto.Quantoaostrabalhadores,recebiamdospatrõesumsalárioomaisbaixo

possível–apenasosuficienteparasobreviverem–enãotinhamsegurançanotrabalho.Sea

demandapeloquefaziamcaísse,elesseriamdemitidosemorreriamdefomesenão

conseguissemoutrotrabalho.QuandoofilósofoalemãoKarlMarx(1818-1883)começoua

escrever,nadécadade1830,essaseramascondiçõesqueaRevoluçãoIndustrialhavia

produzidonãosónaInglaterra,masemtodaaEuropa.Eissoodeixavafurioso.

Marxeraigualitário:pensavaqueosdireitoshumanosdeviamsertratadosigualmente.

Todavia,nomundocapitalista,quemtinhadinheiro–geralmenteoriundodeumariquezaherdada

–ficavacadavezmaisrico.Enquantoisso,aquelesquenãotinhamnada–excetoopróprio

trabalhoparavender–viviamdemaneiramiseráveleeramexplorados.ParaMarx,todaa

históriahumanapodiaserexplicadacomoumalutadeclasses:alutaentreaclassecapitalista

rica(aburguesia)eaclassetrabalhadora(ouproletariado).Essarelaçãoimpediaqueosseres

humanosatingissemseupotencialetransformavaotrabalhoemalgodoloroso,emvezdeumtipo

deatividadecompensadora.

Marx,homemcheiodeenergiaecomareputaçãodeumsujeitoencrenqueiro,passou

grandepartedavidanapobrezaemudou-sedaAlemanhaparaParis,depoisparaBruxelas,

fugindodaperseguição.AcaboufixandoresidênciaemLondres,ondemoroucomossetefilhos,a

esposaJennyeumagovernantachamadaHeleneDemuth,comquemteveumfilhobastardo.Seu

amigoFriedrichEngelsajudou-oaencontrartrabalhoescrevendoparajornaiseatéadotouo

filhoilegítimodeMarxparalivrarsuapele.Masafamíliaquasenuncatinhadinheiro,alémde

adoecerepassarfomeefriocomfrequência.Tragicamente,trêsdascriançasmorreramantesda

idadeadulta.

Quandomaisvelho,MarxiaquasetodososdiasàsaladeleituradoMuseuBritânicoem

Londresparaestudareescrever,ouentãoficavaemseupequenoapartamentonoSohoditando

paraaesposa,poissuacaligrafiaeratãoruimqueàsvezesnemeleconseguialer.Nessas

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condiçõesdifíceis,eleproduziuumgrandenúmerodelivroseartigos–todossomammaisde

cinquentagrossosvolumes.Suasideiasmudaramavidademilhõesdepessoas:algumaspara

melhoremuitas,semdúvida,parapior.Naépoca,noentanto,eledeviaparecerumafigura

excêntrica,talvezatémeiolouco.Poucaspessoasconseguiriampreveroquantoeleseria

influente.

Marxidentificava-secomostrabalhadores.Todaaestruturadasociedadeosoprimia;não

podiamviverplenamentecomosereshumanos.Osdonosdasfábricaslogoperceberamque

podiamproduzirmaisbenssedividissemoprocessodeproduçãoempequenastarefas.Cada

trabalhador,portanto,seespecializariaemumtrabalhoespecíficonalinhadeprodução.

Contudo,issotornouavidadostrabalhadoresaindamaisentediante,poiseramforçadosa

realizaraçõesrepetitivasotempotodo.Nãoviamtodooprocessodeproduçãoemalganhavam

osuficienteparasealimentar.Emvezdeseremcriativos,elesficavamexauridose

transformavam-seemengrenagensdeumapeçagigantescadomaquinárioquesóexistiapara

fazerosproprietáriosenriqueceremaindamais.Écomoseelesdefatonãofossemhumanos,mas

apenasestômagosqueprecisavamseralimentadosparamanteralinhadeproduçãoem

andamentoeoscapitalistasganhandomaislucro–oqueMarxchamoudemais-valiacriadapelo

trabalhodosoperários.

OefeitodissotudosobreostrabalhadoresfoioqueMarxchamoudealienação.Ele

queriadizerváriascoisascomessapalavra.Ostrabalhadoreseramalienadosoudistanciadosdo

queverdadeiramenteeramcomosereshumanos.Ascoisasqueelesfabricavamtambémos

alienavam.Quantomaisduroelestrabalhavamequantomaisproduziam,maislucrogeravam

paraoscapitalistas.Osobjetosemsipareciamvingar-sedostrabalhadores.

Mashaviaesperançaparaessaspessoas,aindaquesuasvidasfossemmiseráveise

completamentedelimitadaspelascircunstânciaseconômicas.Marxacreditavaqueodestinodo

capitalismoeradestruirasimesmo.Oproletariadoestavadestinadoaassumirocontroledeuma

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revoluçãoviolenta.Porfim,detodoessesanguederramadosurgiriaummundomelhor,um

mundoemqueaspessoasnãomaisseriamexploradas,maspoderiamsercriativasecooperar

umascomasoutras.Cadapessoacontribuiriacomoquepudesseparaasociedade,ea

sociedade,porsuavez,cuidariadaspessoas:“Detodos,segundosuacapacidade;paratodos,

segundosuanecessidade”,eraavisãodeMarx.Aoassumirocontroledasfábricas,os

trabalhadoresgarantiriamquehouvesseosuficienteparaquetodostivessemoqueprecisavam.

Ninguémprecisavapassarfomeounãoteroquevestirouondeseabrigar.Essefuturoerao

comunismo,ummundobaseadonapartilhadosbenefíciosdacooperação.

Marxacreditavaqueseuestudodomodocomosedesenvolveasociedaderevelavaque

essefuturoéinevitável:estavainseridonaestruturadahistória.Maselepodiateralgumaajuda

paraprogredir,enoManifestocomunistade1848,oqualeleescreveucomEngels,Marx

conclamouostrabalhadoresdomundoaseuniremesuperaremocapitalismo.Refletindoas

primeiraslinhasdeJean-JacquesRousseauemOcontratosocial(verCapítulo18),eles

declararamqueostrabalhadoresnãotinhamnadaaperder,excetosuascorrentes.

AsideiasdeMarxsobreahistóriaforaminfluenciadasporHegel(assuntodoCapítulo

22).Hegel,comovimos,declarouqueháumaestruturasubjacenteatodasascoisaseque

estamosgradualmenteprogredindoparaummundoque,dealgumamaneira,seráconscientedesi

mesmo.MarxherdoudeHegelosentidodequeoprogressoéinevitáveledequeahistória,em

vezdeserapenasumeventoatrásdooutro,temumpadrão.Entretanto,navisãodeMarx,o

progressoaconteceporcausadasforçaseconômicassubjacentes.

Emsubstituiçãoàlutadeclasses,MarxeEngelsprenunciaramondenãohaveria

propriedadedeterras,nãohaveriaherança,aeducaçãoseriagratuitaeasfábricaspúblicas

produziriamparatodos.Tambémnãohaveriaanecessidadedereligiãooumoral.Areligião,

conformedeclarouemumapassagemconhecida,era“oópiodopovo”:eracomoumadrogaque

mantinhaaspessoasadormecidasparaquenãopercebessemsuaverdadeiracondiçãooprimida.

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Nonovomundodepoisdarevolução,ossereshumanosatingiriamsuahumanidade.Otrabalho

seriasignificativo,etodoscooperariamdemodoabeneficiaratodos.Arevoluçãoeraaforma

deatingirisso–eissosignificavaviolência,poisseriaimprovávelqueosricosabrissemmãode

suasriquezassemlutar.

Marxsentiaqueosfilósofosdopassadosótinhamdescritoomundo,enquantoelequeria

mudá-lo.Issofoiumpoucoinjustocomosfilósofosanterioresaele,muitosdosquais

provocaramreformaspolíticasereligiosas,porémsuasideiastiverammaisefeitoqueasideias

damaioria.ElasforamcontagianteseinspiraramrevoluçõesreaisnaRússiaem1917eem

outroslugares.Infelizmente,aUniãoSoviética–ogigantescoEstadoquesurgiu,abarcandoa

Rússiaealgunspaísesvizinhos–juntocomamaioriadosoutrospaísescomunistascriadosno

séculoXXnaslinhasmarxistasprovaram-seopressores,ineficientesecorruptos.Organizaros

processosdeproduçãoemescalanacionaleramuitomaisdifícildoquesepoderiaimaginar.Os

marxistasafirmamqueissonãodestróiasideiasmarxistasemsi–algunsaindaacreditamque

Marxestavabasicamentecertoemrelaçãoàsociedade;naverdade,aquelesquegovernaramos

Estadoscomunistasnãoofizeramtendocomobaselinhasverdadeiramentecomunistas.Outros

apontamqueanaturezahumananostornamaiscompetitivosegananciososdoqueonormal:na

visãodeles,nãohápossibilidadedeossereshumanoscooperaremtotalmenteemumEstado

comunista–simplesmentenãosomosassim.

QuandoMarxmorreudetuberculoseem1883,poucaspessoasconseguiriamprevero

impactoqueeleterianahistória.Pareciaquesuasideiashaviamsidoenterradascomeleno

cemitérioHighgate,emLondres.AdeclaraçãodeEngelsnotúmulodoamigo,deque“Seunome

perdurarápelosséculos,bemcomosuaobra!”,pareciaserpurodevaneio.

OprincipalinteressedeMarxestavanasrelaçõeseconômicas,postoque,emsuavisão,

elasdãoformaatudoaquiloquesomosepodemosviraser.WilliamJames,filósofopragmático,

queriadizeralgobemdiferentequandoescreveusobreo“valorprático”deumaideia–paraele,

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essevalordiziarespeitoapenasaqueaçãoaideialevava,aqualdiferençaelafazianomundo.

CAPÍTULO28

Edaí?

C.S.PEIRCEEWILLIAMJAMES

Umesquiloagarra-sefirmementeaotroncodeumagrandeárvore.Dooutroladodaárvore,bem

pertodotronco,estáumcaçador.Todavezqueocaçadorsemoveparaaesquerda,oesquilo

tambémsemove,apressando-separarodearotronco,presocomasgarras.Ocaçadorcontinua

tentandoencontraroesquilo,masesteconseguesemanterforadocampodevisão.Issocontinua

durantehoras,eocaçadorsequervêoesquiloderelance.Seriaverdadeirodizerqueocaçador

estácircundandooesquilo?Pensenisso.Ocaçadorrealmentecircundasuapresa?

Suarespostaprovavelmenteseráoutrapergunta:“Oquevocêquersaber?”.Ofilósofoe

psicólogonorte-americanoWilliamJames(1842-1910)seaproximoudeumgrupodeamigos

perguntandosobreesseexemplo.Osamigosdelenãoconcordaramcomumaúnicaresposta,mas

discutiramaquestãocomosehouvesseumaverdadeabsolutaqueelesprecisavamdescobrir.

Algunsdisseramquesim,ocaçadorestavacircundandooesquilo;outrosdisseramquenão,com

certezanão.ElespensaramqueJamesseriacapazdeajudá-losaresponderaperguntadeum

jeitooudeoutro.Suarespostafoibaseadanafilosofiapragmática.

Eledisseoseguinte:seoquequeremosdizercomcircundaréqueohomemestáprimeiro

anorte,depoisaleste,depoisasuledepoisaoestedoesquilo,queéumdossentidosde

“circundar”,éverdadequeocaçadorestácircundandooesquilo.Elerodeiaoesquilonesse

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sentido.Masseoquequeremosdizeréqueohomemprimeiroestánafrentedoesquilo,depoisà

direitadele,depoisatrásedepoisnascostas,queéoutrosignificadode“circundar”,entãoa

respostaénão.Comooesquilosempreestarádefrenteparaocaçador,ocaçadornãoocircunda

nessesentido.Elesestãootempotodoumdefrenteparaooutro,comumaárvorenomeio,

enquantodançamemcírculo,umforadavisãodooutro.

Oobjetivodesseexemploémostrarqueopragmatismopreocupa-secomasconsequências

práticas–o“valorprático”dopensamento.Senãohánadaquedependadaresposta,nãoimporta

oquedecidirmos.Tudodependedeporquequeremossaberarespostaequaladiferençaqueela

defatovaifazer.Aqui,nãoháverdadealémdonossointeresseparticularemrelaçãoàquestãoe

aossentidosprecisosemqueusamosoverbo“circundar”emdiferentescontextos.Senãohá

diferençaprática,entãonãohánenhumaverdadedaquestão.Nãoécomoseaverdadeestivesse

“láfora”emalgumlugar,esperandoserdescoberta.Verdade,paraJames,erasimplesmenteo

quefunciona,oquetemumimpactobenéficoemnossavida.

OpragmatismoéumaabordagemfilosóficaquesetornoupopularnosEstadosUnidosno

finaldoséculoXIX.ElacomeçoucomofilósofoecientistaC.S.Peirce(pronunciadocomono

inglêsde“purse”),quequeriatornarafilosofiamaiscientíficadoqueera.Peirce(1839-1914)

acreditavaque,paraumasentençaserverdadeira,temdehaveralgumexperimentoou

observaçãopossívelqueaapoie.Quandodizemos“ovidroéfrágil”,issoquerdizerque,se

batermosnovidrocomummartelo,elesequebraráempequenosfragmentos.Issoéoquetorna

verdadeiraadeclaração“ovidroéfrágil”.Ovidronãotemnenhumapropriedadeinvisívelde

“fragilidade”,excetooqueacontecequandooatingimos.“Ovidroéfrágil”éumadeclaração

verdadeiraporcausadessasconsequênciaspráticas.“Ovidroétransparente”éverdadeiro

porquepodemosveratravésdele,nãoporcausadealgumapropriedademisteriosanovidro.

Peircedetestavateoriasabstratasquenãofaziamamenordiferençanaprática.Eleconsiderava

quetodaseramcontrassensos.Verdade,paraele,éoquerestadepoisquefizermostodosos

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experimentoseinvestigaçõesquegostaríamosdefazer.Issoseparecebastantecomo

positivismológicodeA.J.Ayer,assuntodoCapítulo32.

AobradePeircenãofoiamplamentelida,masadeWilliamJamesfoi.Eleeraum

excelenteescritor–tãobomquantooutalvezmelhorqueseuirmão,ofamosoromancistae

contistaHenryJames.WilliampassavalongashorasdiscutindopragmáticacomPeircequandoos

doislecionavamnaUniversidadedeHarvard.Jamesdesenvolveusuaprópriaversãodateoria,

quepopularizouemensaioseconferências.Paraele,opragmatismoresume-seaisto:averdade

éoquefunciona.Noentanto,eleeraumpoucovagosobreoquesignificava“oquefunciona”.

Emborafossepsicólogodesdecedo,elenãoseinteressavaapenasporciência,mastambémpor

questõessobreoqueécertoeerradoesobrereligião.Naverdade,suaobramaiscontroversafoi

sobrereligião.

AabordagemdeJamesémuitodiferentedavisãotradicionaldeverdade.Nesta,averdade

significacorrespondênciaaosfatos.Oquetornaumafraseverdadeiranateoriada

correspondênciadaverdadeéofatodeeladescrevercomprecisãocomoomundoé.“Ogato

estánotapete”éverdadeiraquandoogatodefatoestásentadonotapeteefalsaquandoelenão

estálá;porexemplo,éfalsaquandoogatoestáláforanojardimprocurandoratos.Segundoa

teoriapragmáticadeJames,oquetornaafrase“ogatoestánotapete”verdadeiraéacreditarque

elaproduzresultadospráticosúteisparanós.Elafuncionaparanós.Então,porexemplo,

acreditarque“ogatoestánotapete”nosdáoresultadodequesabemosquenãopodemosbrincar

comnossohamsterdeestimaçãonotapeteatéqueogatosaiadelá.

Ora,quandousamosumexemplocomo“Ogatoestánotapete”,osresultadosdateoria

pragmáticadaverdadenãoparecemparticularmenteperturbadoresouimportantes.Mastente

fazerissocomafrase“Deusexiste”.OquepensaqueJamesdiriasobreisso?

ÉverdadequeDeusexiste?Oquevocêacha?Asprincipaisrespostassão“Sim,éverdade

queDeusexiste”,“Não,nãoéverdadequeDeusexiste”e“Eunãosei”.Presumivelmente,você

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deuumadessastrêsrespostascasotenhatidoachancederesponderantesdecontinuaraleitura.

Essasposiçõestêmnomes:teísmo,ateísmoeagnosticismo.Osquedizem“Sim,éverdadeque

Deusexiste”geralmentequeremdizerqueháumsersupremoemalgumlugarequeadeclaração

“Deusexiste”seriaverdadeiramesmoquenãohouvessenenhumserhumanovivoemesmoque

nenhumserhumanotivesseexistido.“Deusexiste”e“Deusnãoexiste”sãodeclarações

verdadeirasefalsas.Masnãoéoquepensamosdelasqueastornamverdadeirasoufalsas,pois

issoindependedoquepensamossobreelas.Nósapenasesperamosestaracertandoquando

pensamossobreelas.

Jamesfezumaanálisebemdiferentedafrase“Deusexiste”.Elepensavaqueadeclaração

eraverdadeiraporque,segundoele,eraumacrençaútil.Aochegaraessaconclusão,elese

concentrounosbenefíciosdacrençadequeDeusexiste.Essaquestãoeraimportanteparaele,e

eleescreveuumlivro,Asvariedadesdaexperiênciareligiosa(1902),queexaminavauma

grandevariedadedeefeitosqueacrençareligiosapodeter.ParaJames,dizerque“Deusexiste”

éumadeclaraçãoverdadeiraéomesmoquedizerque,dealgummodo,ébomacreditarnela.

Trata-sedeumaposiçãobastantesurpreendente.Elasepareceempartecomoargumentode

PascalqueexaminamosnoCapítulo12:queosagnósticossebeneficiariamdacrençadeque

Deusexiste.Pascal,noentanto,pensavaque“Deusexiste”eraverdadeiraporcausada

existênciarealdeDeus,enãoporqueosseressesentemmelhorquandoacreditamemDeus.Sua

apostaeraapenasumaformadefazercomqueosagnósticosacreditassemnoquepensavaser

verdade.ParaJames,éosupostofatodequeacrençaemDeus“funcionasatisfatoriamente”que

tornaadeclaração“Deusexiste”verdadeira.

Paraesclareceressaquestão,tomemosafrase“PapaiNoelexiste”.Elaéverdadeira?Um

homemgordo,bem-humoradoederostocoradodescepelachaminétodavésperadeNatalcom

umsacodepresentes?Nãoleiaorestantedoparágrafosevocêacreditaqueissorealmente

acontece.Suponho,contudo,quevocênãoacreditequePapaiNoelexista,aindaquepenseque

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seriainteressanteseexistisse.OfilósofoinglêsBertrandRussell(verCapítulo31)ridicularizou

ateoriapragmáticadaverdadedeWilliamJamesdizendoque,segundoateoria,Jamestinhade

acreditarque“PapaiNoelexiste”eraumafraseverdadeira.Suarazãoparadizerissoeraque

Jamesacreditavaquetudooquetornaumafraseverdadeiraéoefeitoqueacrençanaverdade

dessafraseexercesobrequemnelaacredita.E,aomenosparaamaioriadascrianças,acreditar

emPapaiNoeléfantástico.EssacrençatornaoNatalumdiamuitoespecialparaelas:fazcom

quesecomportembemetenhamfoconosdiasqueantecedemoNatal.Funcionaparaelas.

Portanto,comoacreditarnoPapaiNoelfuncionadealgumamaneira,parecequeacrençatorna

verdadeiraafrase“PapaiNoelexiste”,segundoateoriadeJames.Oproblemaéqueexisteuma

diferençaentreoqueserialegalsefosseverdadeiroeoquedefatoéverdadeiro.Jamespoderia

terdestacadoque,emboraacreditaremPapaiNoelfuncioneparaascrianças,nãofuncionapara

todomundo.SeospaisacreditassemqueoPapaiNoelentregariapresentesnavésperadeNatal,

elesnãocomprariampresentesparaosfilhos.BastariaesperaratéamanhãdeNatalpara

perceberquealgonãoestavafuncionandocomacrença“PapaiNoelexiste”.Issosignificaque,

paraascrianças,éverdadequePapaiNoelexiste,masémentiraparaosadultos?Eissonão

tornaaverdadesubjetiva,umaquestãodecomonossentimosemrelaçãoàscoisas,emvezde

comoomundoé?

Pensemosemoutroexemplo.Comoseiqueasoutraspessoasrealmentetêmmentes?Sei

pelaminhaexperiênciaquenãosousimplesmenteumaespéciedezumbisemvidainterior.Tenho

meuspensamentos,minhasintençõesetc.Mascomopossosaberseaspessoasaomeuredor

realmentetêmpensamentos?Talvezelasnãosejamconscientes.Seriamelasapenaszumbis

agindodemodoautomático,zumbissemmenteprópria?Esteéoproblemadasoutrasmentes

sobreoqualosfilósofossedebruçaramdurantemuitotempo.Trata-sedeumenigmadifícilde

resolver.ArespostadeJameséquetemdeserverdadequeasoutraspessoastêmmentes;do

contrário,nãoseríamoscapazesdesatisfazernossodesejodesermosreconhecidoseadmirados

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pelasoutraspessoas.Trata-sedeumargumentoestranho,quefazoseupragmatismoparecercom

umpurodevaneio–acreditarnoquegostaríamosquefosseverdadeiro,independentementede

serounãoverdadeiro.Massóporqueébomacreditarque,quandoumapessoanoselogia,

estamosdiantedeumserconsciente,enãodeumrobô,nãotornaapessoaumserconsciente.Ela

aindapodenãotervidainterior.

NoséculoXX,ofilósofonorte-americanoRichardRorty(1931-2007)levouadianteesse

estilodepensamentopragmático.AssimcomoJames,eleacreditavaqueaspalavraseram

ferramentascomasquaisfazemosascoisas,enãosímbolosquedealgumaformarefletemo

modocomoomundoé.Aspalavrasnospermitemlidarcomomundo,enãocopiá-lo.Eledisse

que“Averdadeéoqueseuscontemporâneosengolem”,ouquenenhumperíododahistória

entendearealidademelhordoquequalqueroutro.Quandoaspessoasdescrevemomundo,

acreditavaele,elassãocomocríticosliteráriosinterpretandoumapeçadeShakespeare:nãohá

umaúnicamaneira“correta”delê-laecomaqualtodosdevemosconcordar.Diferentespessoas

dediferentesépocasinterpretamotextodemaneiradiferente.Rortysimplesmenterejeitavaa

ideiadequeumavisãofossecorretaparatodasasépocas.Ou,pelomenos,queminha

interpretaçãofuncione.Elepresumivelmenteacreditavaquenãohaviainterpretaçãocorreta

disso,nomesmosentidoquenãoháresposta“certa”paraaquestãodocaçadorquecircundaou

nãooesquiloquesemoveagarradonaárvore.

SeháounãoháumainterpretaçãocorretadosescritosdeFriedrichNietzschetambémé

umaquestãointeressante.

CAPÍTULO29

AmortedeDeus

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FRIEDRICHNIETZSCHE

“Deusestámorto.”EssaéacitaçãomaisfamosadofilósofoalemãoFriedrichNietzsche(1844-

1900).MascomoDeuspoderiamorrer?Supostamente,Deuséimortal.Eseresimortaisnão

morrem,masvivemparasempre.Decertaforma,porém,aquestãoéessa.Éporissoqueamorte

deDeussoatãoestranha:nãohácomoserdiferente.Nietzscheestavadeliberadamentebrincando

comaideiadequeDeusnãopoderiamorrer.ElenãoestavadizendoliteralmentequeDeus

estiveravivoemalgummomentoequeagoranãoestavamais,esimqueacrençaemDeushavia

deixadodeserrazoável.EmseulivroAgaiaciência(1882),Nietzschecolocouafrase“Deus

estámorto”nabocadeumpersonagemqueseguraumlampiãoeprocuraporDeusemtodosos

lugares,masnãoconsegueencontrá-lo.Oshabitantesdovilarejopensamqueeleélouco.

Nietzschefoiumhomemmemorável.NomeadoprofessordaUniversidadedeBaselaos24

anos,elepareciadecididoaseguirumadistintacarreiraacadêmica.Contudo,essepensador

excêntricoeautênticonãoseadaptouepareciagostardedificultaraprópriavida.Eleacabou

deixandoauniversidadeem1879,empartedevidoàsuasaúdedebilitada,eviajouparaaItália,

aFrançaeaSuíça,escrevendolivrosquequaseninguémlianaépoca,masquehojesãofamosos

comoobrastantoliteráriasquantofilosóficas.Suasaúdementalpiorou,eelepassougrandeparte

dofimdavidaemummanicômio.

EmoposiçãocompletaàapresentaçãoordenadadasideiasdeKant,Nietzschearrebata-

nosportodososcantos.Grandepartedeseusescritosénaformadeparágrafoscurtose

fragmentários,comcomentáriosincisivosdeumaúnicafrase,algunsirônicos,outrossinceros,

muitosdelesarroganteseprovocadores.Àsvezes,parecequeNietzscheestágritandoconosco;

outrasvezes,quesussurraalgoprofundoemnossosouvidos.Muitasvezes,elequerquesejamos

coniventescomele,comosedissessequenós,queolemos,sabemoscomoascoisassão,mas

aquelaspessoasládooutroladoestãotodassofrendodeilusões.Umdostemasrecorrentesna

obradeleéofuturodamoral.

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SeDeusestámorto,oqueacontecedepois?EstaéaquestãoqueNietzschefazasimesmo.

Suarespostaéadequeficamossemumabaseparaamoral.Nossasideiasdecerto,errado,bem

emalfazemsentidoemummundoondeháumDeus,enãoemummundosemDeus.Quando

tiramosDeusdajogada,tiramoscomeleapossibilidadedediretrizesclarassobrecomo

devemosviveresobreoquedevemosvalorizar.Éumamensagemdura,algoqueamaioriados

contemporâneosdeNietzschenãoqueriaouvir.Eledescreviaasimesmocomo“imoralista”,não

alguémquefazomaldeliberadamente,masalguémqueacreditaqueprecisamosiralémdetodaa

moral:naspalavrasdotítulodeumdeseuslivros,“paraalémdobemedomal”.

ParaNietzsche,amortedeDeusabriunovaspossibilidadesparaahumanidade,tanto

terrificantesquantoestimulantes.Adesvantageméquenãohaviaumarededesegurança,

tampoucoregrassobrecomoaspessoasdeveriamserouviver.Ondeoutroraareligiãodeuum

significadoàaçãomoraleimpôslimitesaela,aausênciadeDeustornoutudopossívelerompeu

todososlimites.Avantagem,aomenosnaperspectivadeNietzsche,eraqueosindivíduosagora

podiamcriarseusprópriosvalores.Podiamtransformarsuasvidasnoequivalenteaobrasde

arteaodesenvolverseupróprioestilodevida.

Nietzscheconcluiuque,quandoaceitamosquenãoháDeus,nãopodemossimplesmente

nosagarraraumavisãocristãdecertoeerrado.Issoseriaautoenganação.Osvaloresquesua

culturaherdou,comocompaixão,bondadeeconsideraçãoaosinteressesdosoutros,podiamser

todosrecusados.Suamaneiraderecusá-loseraespecularsobreaorigemdessesvalores.

SegundoNietzsche,asvirtudescristãsdecuidardosmaisfracoseindefesostinham

origenssurpreendentes.Podemospensarqueacompaixãoeabondadesãoobviamenteboas.

Provavelmentevocêfoieducadoparalouvarabondadeedesprezaroegoísmo.OqueNietzsche

sustentavaéqueosnossospadrõesdepensamentoesentimentotêmumahistória.Depoisque

conhecemosahistóriaou“genealogia”decomopassamosaterosconceitosquetemos,fica

difícilpensarnelescomoconceitosfixosotempointeiro,comofatosdealgumaformaobjetivos

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sobrecomodeveríamosagir.

NolivroGenealogiadamoral,eledescreveasituaçãonaGréciaantiga,quando

poderososheróisaristocratasconstruíamsuasvidastendocomobaseasideiasdehonra,

vergonhaeheroísmonabatalha,enãoasideiasdebondade,generosidadeeculpaporagir

errado.EsseéomundodescritopelopoetagregoHomeronaOdisseiaenaIlíada.Nessemundo

deheróis,quemtinhamenospoder,ouseja,osescravoseosfracos,invejavaospoderosos.Os

escravoscanalizavamainvejaeoressentimentoparaospoderosos.Elesusavamosvaloresdos

aristocratasdeumamaneirabastanteequivocada.Emvezdecelebraraforçaeopodercomoos

aristocratas,osescravostransformavamagenerosidadeeocuidadocomosmaisfracosem

virtudes.Essamoralescrava,comoNietzscheachama,tratavaosatosdospoderososcomomaus

eossentimentosdoscompanheiroscomobons.

Aideiadequeumamoraldabondadeteveinícionosentimentodeinvejafoidesafiadora.

Nietzschedemonstrouumafortepreferênciapelosvaloresdosaristocratas,acelebraçãodos

heróisforteseguerreiros,emrelaçãoàmoralcristãdacompaixãopelosfracos.Ocristianismoe

amoralderivadadelesupõemquetodososindivíduostêmomesmovalor;Nietzsche

consideravaqueissoeraumgrandeerro.Seusheróisdaarte,comoBeethoveneShakespeare,

erammuitomaissuperioresdoqueorebanho.Amensagempareceseradequeosvalores

cristãos,quesurgiramdainvejaemprimeirolugar,estavamrefreandoahumanidade.Talvezo

custodissofossequeosfracosseriampisoteados,masvaliaapenapagaressepreçopelaglória

epelarealizaçãoqueissodariaaosmaispoderosos.

EmAssimfalouZaratustra(1883-1892),NietzscheescreveusobreoÜbermenschou

“Sobre-homem”.Otermodescreveumapessoaimaginadanofuturoquenãoestápresaaos

códigosmoraisconvencionais,masvaialémdeles,criandonovosvalores.Talvezinfluenciado

pelopróprioentendimentodateoriadaevoluçãodeCharlesDarwin,Nietzschetenhavistoo

Übermenschcomoopróximopassonodesenvolvimentodahumanidade.Issoéumpouco

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preocupante,porqueparecedarsuporteàspessoasqueseveemcomoheroicasequeremseguiro

própriocaminhosempensarnosinteressesdosoutros.E,piorainda,foiumaideiaqueos

nazistastiraramdaobradeNietzscheeusaramparasustentarsuasvisõesdeformadassobreuma

raçadominante,emboraamaioriadosacadêmicosdigaqueosnazistasdistorceramoque

Nietzscherealmenteescreveu.

NietzschefoiinfeliznoqueserefereaofatodesuairmãElisabethtercontroladoodestino

desuaobradepoisdeperderasanidadeeaindapormais35anosdepoisdesuamorte.Elaera

umanacionalistaalemãdopiortipo,alémdeantissemita.Elapassouemrevistaoscadernosdo

irmão,selecionandoasideiascomasquaiselaconcordavaedeixandodeforatudooque

criticavaaAlemanhaounãoservissedebaseparaoseupontodevistaracista.Suaversãodas

ideiasdeNietzsche,publicadacomoAvontadedepotência,transformousuaobraemuma

propagandaparaonazismo,eNietzschetornou-seumautorpermitidonoTerceiroReich.É

altamenteimprovávelque,setivessevividomaistempo,eletivessealgumarelaçãocomo

nazismo.Contudo,éinegávelquehádiversaslinhasemsuaobraquedefendemodireitodos

maisfortesdedestruíremosmaisfracos.Segundoele,nãoéàtoaqueoscarneirosodeiamaves

derapina.Masissonãosignificaquedevemosdesprezarasavesderapinaporcapturareme

devoraremoscarneiros.

AocontráriodeImmanuelKant,quecelebravaarazão,Nietzschesempreenfatizoucomo

asemoçõeseasforçasirracionaisexercemumpapelimportantenaconstruçãodosvalores

humanos.ÉquasecertoquesuasvisõestenhaminfluenciadoSigmundFreud,cujaobraexplorou

anaturezaeopoderdosdesejosinconscientes.

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CAPÍTULO30

Pensamentosdisfarçados

SIGMUNDFREUD

Podemosrealmenteconheceranósmesmos?Osantigosfilósofosacreditavamquesim.Masese

estivessemerrados?Esehouverpartesdamentequenãopodemosalcançardiretamente,como

quartospermanentementefechadosdemodoquenuncaconseguimosentrarneles?

Asaparênciaspodemserenganadoras.Quandovemososoldemanhã,eleparecesurgir

alémdohorizonte.Duranteodia,elesemovepelocéuedepoisfinalmentesepõe.Étentador

pensarqueeleviajaaoredordaTerra.Durantemuitosséculos,aspessoasestavamconvencidas

disso.Masestavamerradas.NoséculoXVI,oastrônomoNicolauCopérnicopercebeuisso,

emboraoutrosastrônomostivessemtidosuassuspeitasantesdele.Arevoluçãocopernicana,

ideiadequenossoplanetanãoéocentrodosistemasolar,foirecebidacomoumchoque.

EisqueemmeadosdoséculoXIXsurgeoutrasurpresa,comovimosnoCapítulo25.Até

então,pareciaprovávelqueossereshumanoseramcompletamentediferentesdosanimaiseque

haviamsidocriadosporDeus.Contudo,ateoriadaevoluçãopelaseleçãonatural,elaboradapor

CharlesDarwin,mostrouqueossereshumanostêmancestraiscomunscomosprimatasequenão

havianecessidadedesuporqueDeushavianoscriado.Umprocessoimpessoalerao

responsávelpornossaexistência.AteoriadeDarwinexplicoucomodescendemosdecriaturas

parecidascommacacoseoquantoestamospróximosdeles.Osefeitosdarevoluçãodarwiniana

sãosentidosatéhoje.

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DeacordocomSigmundFreud(1856-1939),aterceiragranderevoluçãonopensamento

humanohaviasidocausadaporsuaprópriadescoberta:oinconsciente.Elepercebeuquegrande

partedasnossasaçõesémovidapordesejosescondidosdenós.Nãopodemosacessá-los

diretamente,masissonãoimpedequeelesafetemoquefazemos.Hácoisasquequeremosfazere

nãopercebemosquequeremosfazê-las.Essesdesejosinconscientesexercemumainfluência

profundaemnossavidaenamaneiracomoorganizamosasociedade.Elessãoafontedos

melhoresepioresaspectosdacivilizaçãohumana.Freudfoiresponsávelporessadescoberta,

emboraumaideiasemelhantepossaserencontradaemalgunsescritosdeFriedrichNietzsche.

Freud,psiquiatraquecomeçouacarreiracomoneurologista,moravaemVienaquandoa

ÁustriaaindafaziapartedoImpérioAustro-Húngaro.Filhodeumpaijudeudaclassemédia,

Freuderatípicodemuitosjovensbem-educadoseestabelecidosnessacidadecosmopolitano

finaldoséculoXIX.Seutrabalhocomdiversospacientesjovens,noentanto,direcionousua

atençãocadavezmaisparapartesdapsiquequeeleacreditavaestaremregendoo

comportamentodospacientes,criandoproblemaspormeiodemecanismosdosquaiselesnão

tinhamconsciência.Freuderafascinadopelahisteriaeporoutrostiposdeneurose.Essas

pacienteshistéricas,mulheresemsuamaioria,geralmenteeramsonâmbulas,alucinavameaté

desenvolviamparalisias.Porém,nãosesabiaoquecausavatudoisso:osmédicosnão

conseguiamencontrarumacausafísicaparaossintomas.Pormeiodeumaatençãocuidadosa

voltadaparaasdescriçõesqueospacientesdavamdeseusproblemasemunidodashistórias

pessoaisdessespacientes,Freudpropôsaideiadequeaverdadeirafontedosproblemasdessas

pessoaseraumtipodememóriaoudesejoperturbador.Essamemóriaoudesejoera

inconsciente,easpessoasnãofaziamideiadequeostinham.

Freudpediaqueseuspacientessedeitassememumdivãefalassemtudooquelhesviesse

àmente,eissocostumavafazê-lossesentirmuitomelhoràmedidaqueliberavamsuasideias.

Essa“livreassociação”,quepermiteumfluxodeideias,gerouresultadossurpreendentes,

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tornandoconscienteoqueanteserainconsciente.Eletambémpediaqueospacientesrelatassem

seussonhos.Dealgumamaneira,essa“curapelafala”destravavaospensamentosproblemáticos

eeliminavaalgunsdossintomas.Eracomoseoatodafalaliberasseapressãocausadapelas

ideiascomasquaisospacientesnãoqueriamseconfrontar.Foionascimentodapsicanálise.

Masnãosãoapenasospacientesneuróticosehistéricosquetêmdesejosememórias

inconscientes.SegundoFreud,todosnóstemos.Éporcontadissoqueavidaemsociedadeé

possível.Escondemosdenósmesmosoquerealmentesentimosequeremosfazer.Algunsdesses

pensamentossãoviolentos,emuitosdeles,sexuais.Sãoperigososdemaisparaseremliberados.

Muitosseformamquandoaindasomoscrianças.Acontecimentosmuitoantigosnavidada

criançapodemreaparecernaidadeadulta.Porexemplo,Freudpensavaquetodososhomenstêm

odesejoinconscientedemataropaiefazersexocomamãe.Trata-sedofamosocomplexode

Édipo,querecebeessenomeporcausadeÉdipo,quenamitologiagregacumpriuaprofeciade

quematariaopaiesecasariacomamãe(semsaberqueestavafazendoasduascoisas).Para

algumaspessoas,esseestranhodesejoprecocemodelacompletamentesuavidasemqueelas

percebam.Algonamentedelasimpedequeessespensamentosmaisobscurossurjamdeuma

formareconhecível.Contudo,oquequerqueimpeçaqueesseseoutrosdesejosinconscientesse

tornemconscientesnãoédetodobem-sucedido.Ospensamentosconseguemescapar,mas

disfarçados.Elessurgemnossonhos,porexemplo.

ParaFreud,ossonhoseram“aestradarealparaoinconsciente”,umadasmelhores

maneirasdedescobrirpensamentosescondidos.Ascoisasquevemosevivenciamosnossonhos

nãosãooqueparecem.Háoconteúdodesuperfície,oquepareceestaracontecendo,maso

conteúdolatenteéoverdadeirosignificadodosonho.Éissoqueopsicanalistatentaentender.

Aquiloqueencontramosnossonhossãosímbolosquerepresentamosdesejosescondidosem

nossamenteinconsciente.Sendoassim,porexemplo,umsonhoqueenvolveumacobra,um

guarda-chuvaouumaespadageralmenteéumsonhosexualdisfarçado.Acobra,oguarda-chuva

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eaespadasãoclássicos“símbolosfreudianos”–representamopênis.Demodosemelhante,a

imagemdeumabolsaoudeumacavernaemumsonhorepresentaavagina.Sevocêachaessa

ideiachocanteouabsurda,Freudprovavelmentelhediriaqueissoocorreporquesuamenteestá

protegendo-odereconhecerospensamentossexuaisquehabitamsuamente.

Podemostambémvislumbrardesejosinconscientespormeiodosatosfalhos,oudeslizes

freudianos,quandoacidentalmenterevelamosdesejosquenãopercebemosquetemos.Muitos

apresentadoresdejornaistelevisivostropeçamemumnomeoufraseeacidentalmentefalamuma

obscenidade.Umfreudianodiriaqueissoacontececomfrequênciademaisparaquesejaapenas

obradoacaso.

Nemtodososdesejosinconscientessãosexuaisouviolentos.Algunsrevelamumconflito

fundamental.Podemosquereralgoemnívelconsciente,enãoqueremnívelinconsciente.

Imaginequevocêprecisepassarnumaprovaimportantíssimaparaingressarnauniversidade.

Conscientemente,vocêseesforçacomopodeparaseprepararparaaprova.Estudaosassuntos

relevantesquecaíramemprovaspassadas,rascunharespostasparapossíveisperguntase

verificasecolocouorelógioparadespertarcedo,demodoquenãoseatrase.Tudoparececorrer

bem.Vocêacordanohorário,tomaocafédamanhã,pegaoônibusepercebequevaichegarum

poucoadiantado.Nessemomento,vocêdormesemquererdentrodoônibus.Porém,quando

acorda,percebeque,paraseuhorror,vocêpassoudopontoondedeveriadescereagoraestáem

umapartedacidadecompletamentediferenteequenãoháchancedechegaraolugarcertoa

tempodefazeraprova.Oseumedodasconsequênciasdepassarnoexamepareceter

sobrepujadoseusesforçosconscientes.Emumnívelprofundo,vocênãoquertersucesso.Seria

assustadordemaisadmitiressedesejoparasimesmo,maséelequeseuinconscienteestálhe

mostrando.

Freudaplicavaessateorianãosóaospacientesneuróticos,mastambémacrenças

culturaiscomuns.Emparticular,eledeuumaexplicaçãopsicanalíticadomotivodeaspessoas

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seremtãoatraídaspelareligião.TalvezvocêacrediteemDeuseatésintaapresençadeleemsua

vida.MasFreudtinhaumaexplicaçãoparaolugardeondevinhasuacrençaemDeus.Talvez

vocêpensequeacreditaemDeusporqueeleexiste,masFreudachavaquevocêacreditaem

Deusporqueaindasenteanecessidadedeproteçãoquesentiaquandoeracriança.Navisãode

Freud,todasascivilizaçõesbasearam-senessailusão–ailusãodequeexisteumafortefigura

paternaemalgumlugarláforaqueirásatisfazersuasnecessidadesnãosatisfeitasdeproteção.

Contudo,essepensamentoéilusório–acreditarqueexisteumDeusporquetemosnocoraçãoum

grandedesejodequeeleexista.Tudoissoprocededodesejoinconscientedeserprotegidoe

cuidadoquesurgenoiníciodainfância.AideiadeDeuséreconfortanteparaosadultosque

aindatêmessessentimentostrazidosdainfância,muitoemboranãopercebamdeondevieram

essessentimentoseefetivamentereprimamaideiadequesuareligiãoorigina-seinteiramentede

umanecessidadepsicológicanãosatisfeitaeprofunda,enãodaexistênciadeDeus.

Deumpontodevistapsicológico,aobradeFreudcolocouemquestãomuitassuposições

quepensadorescomoRenéDescartesfizeramsobreamente.Descartesacreditavaqueamente

eratransparenteparasimesma.Eleacreditavaque,quandotemosumpensamento,somosdefato

capazesdeterconsciênciadele.DepoisdeFreud,apossibilidadedaatividademental

inconscientetevedeserreconhecida.

AbasedasideiasdeFreudnãoéaceitaportodososfilósofos,emboramuitosaceitemque

eleestavacertosobreapossibilidadedopensamentoinconsciente.Algunsargumentaramqueas

teoriasdeFreudnãoeramcientíficas.Maisnotavelmente,KarlPopper(cujasideiassão

discutidasemmaisdetalhesnoCapítulo36)descreveumuitasdasideiasdapsicanálisecomo

“nãorefutáveis”,oquenãoeraumelogio,massimumacrítica.ParaPopper,aessênciada

pesquisacientíficaeraofatodeelapodersertestada,ouseja,depoderhaveralguma

observaçãopossívelquemostrariaqueelaerafalsa.NoexemplodePopper,asaçõesdeum

homemqueempurravaumacriançaemumrioedeumhomemqueentravanaáguaparasalvar

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umacriançadoafogamentoeram,comotodocomportamentohumano,igualmenteabertasà

explicaçãofreudiana.Independentementedealguémtentarafogarousalvarumacriança,ateoria

deFreudpoderiaexplicartalatitude.Eleprovavelmentediriaqueoprimeirohomemestava

reprimindoalgumaspectodeseuconflitoedípico,oqueolevariaaumcomportamentoviolento,

enquantoosegundohomemhavia“sublimado”seusdesejosinconscientes,ouseja,conseguiu

direcioná-losparaaçõessocialmenteúteis.Popperacreditavaque,setodaobservaçãopossível

étomadacomoevidênciadequeateoriaéverdadeira–qualquerquesejaaobservação–ese

nenhumaevidênciaimaginávelpudessedemonstrá-lacomofalsa,ateorianãopoderiaser

científicademaneiranenhuma.Freud,poroutrolado,teriaargumentadoquePoppertinhaalgum

tipodedesejoreprimidoqueotornouagressivoemrelaçãoàpsicanálise.

BertrandRussell,quetinhaumestilodepensamentomuitodiferentedodeFreud,

compartilhavaodesgostopelareligiãoeacreditavaqueelaeraaprincipalfontedainfelicidade

humana.

CAPÍTULO31

OatualreidaFrançaécareca?

BERTRANDRUSSELL

AsprincipaispreocupaçõesdeBertrandRussellquandojovemeramosexo,areligiãoea

matemática–tudonaesferateórica.Emsualongavida(elemorreuem1970aos97anos),ele

acabousendocontroversoemrelaçãoaoprimeiroitem,atacouosegundoefezcontribuições

importantesparaoterceiro.

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AsvisõesdeRussellsobreosexocausaram-lheproblemas.Em1929,elepublicou

Casamentoemoral,livronoqualquestionouasvisõescristãssobreaimportânciadeserfielao

parceiro.Elenãoconcordavacomafidelidade.Muitaspessoastorceramonariznaépoca.Não

queissoincomodasseRussell.ElejáhaviapassadoseismesesnaprisãodeBrixtonporfalar

abertamentecontraaPrimeiraGuerraMundialem1916.Nofinaldavida,ajudouafundara

CampanhapeloDesarmamentoNuclear(CDN),ummovimentointernacionalemoposiçãoàs

armasdedestruiçãoemmassa.Essevelhinhoalegreejovialliderariacomíciosnadécadade

1960aindaemoposiçãoàguerracomohaviasidoquandojovem,cercadecinquentaanosantes.

Naspalavrasdele:“Ouoshomensabolirãoaguerra,ouaguerraaboliráoshomens”.Atéagora,

nenhumadasduascoisasaconteceu.

Elefoiigualmentefrancoeprovocadoremrelaçãoàreligião.ParaRussell,nãohavia

nenhumachancedeDeusintervirparasalvarahumanidade:nossaúnicachanceconsisteem

usarmosopoderdarazão.Segundoele,aspessoaseramatraídaspelareligiãoporquetinham

medodemorrer.Areligiãoasconfortava.Eramuitoreconfortanteacreditarnaexistênciadeum

Deusquepuniriaaspessoasmás,mesmoqueselivrassemdeumassassinatoedecoisaspiores

naTerra.Masissonãoéverdade.Deusnãoexiste.Eareligiãoquasesempreproduziumais

misériadoquefelicidade.Russellreconheciaqueobudismoeradiferentedetodasasoutras

religiões,masocristianismo,oislamismo,ojudaísmoeohinduísmotinhamdese

responsabilizarpormuitacoisa.Nodecorrerdahistória,taisreligiõesforamacausadeguerras,

ódioesofrimento.Milhõesdepessoasmorreramporcausadelas.

Dissodeveficarclaroque,apesardeserumpacifista,Russellestavapreparadopara

enfrentarelutar(aomenoscomideias)poraquiloqueacreditavasercorretoejusto.Mesmo

comopacifista,eleaindapensavaqueemcasosraros,comoaSegundaGuerraMundial,lutar

seriaaopçãomaisválida.

Russellnasceucomoaristocratainglêsemumafamíliadistinta:seutítulooficialeraode

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TerceiroCondeRussell.Tinhaumtipodeaparêncianotavelmenteesnobe,sorrisoextrovertidoe

olhoscintilantes.Suavozodenunciavacomomembrodasclassesmaisaltas.Emgravações,ele

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soacomoalguémdeoutroséculo–oquenãodeixavadeser:nasceuem1872,entãoera

verdadeiramenteumvitoriano.Seuavôporpartedepai,lordeJohnRussell,foiprimeiro-

ministro.

O“padrinho”nãoreligiosodeBertrandfoiofilósofoJohnStuartMill(assuntodo

Capítulo24).Infelizmenteelesnãoseconheceram,poisMillmorreuquandoRussellaindaera

bebê,maseleexerceugrandeinfluêncianodesenvolvimentodeRussell.LeraAutobiografia

(1873)deMillfoioquelevouRussellarejeitarDeus.Antes,eleacreditavanoargumentoda

primeiracausa.Esseargumento,usadoporTomásdeAquinoeoutros,afirmaquetudodeveter

umacausaequeacausadetudo,aprimeiradetodasascausasnacadeiadecausaeefeito,deve

serDeus.MasquandoMillfezapergunta“OquecausouDeus?”,Russellpercebeuoproblema

lógicodoargumentodaprimeiracausa.Seexistealgoquenãotemumacausa,entãonãopodeser

verdadeque“tudotemumacausa”.ParaRussell,faziamaissentidopensarqueatémesmoDeus

teveumacausa,emvezdeacreditarquealgosimplesmentepudesseexistirsemsercausadopor

outracoisa.

AssimcomoMill,Russellteveumainfânciaincomumenãoparticularmentefeliz.Seus

paismorreramquandoeleeramuitojovem,esuaavó,quecuidavadele,erarigorosaeumpouco

distante.Educadoemcasaporprofessoresparticulares,afundou-senosestudosetornou-seum

matemáticobrilhante,vindoalecionarnaUniversidadedeCambridge.Masoquerealmenteo

fascinavaeraoquetornavaamatemáticaverdadeira.Porque2+2=4?Sabemosqueissoé

verdade.Masporquê?Essequestionamentolevou-oquaseimediatamenteparaafilosofia.

Comofilósofo,seuverdadeiroamoreraalógica,assuntoqueficavanolimiarentrea

filosofiaeamatemática.Oslógicosestudamaestruturadoraciocínio,geralmenteusando

símbolosparaexpressarsuasideias.Eleficoufascinadopeloramodamatemáticaedalógica

chamadoteoriadosconjuntos.Ateoriadosconjuntospareciaserapromessaparaexplicara

estruturadetodoonossoraciocínio,masRusseldescobriuumgrandeproblemanessaideia:ela

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levavaàcontradição.Eledemonstrouesseproblemaemumfamosoparadoxonomeadoemsua

homenagem.

VejamosumexemplodoparadoxodeRussell.Imagineumvilarejoondeháumbarbeiro

cujotrabalhosejabarbeartodas(esomente)aspessoasquenãosebarbeiam.Seeumorasselá,

euprovavelmentemebarbearia–nãoachoqueseriaorganizadoosuficienteparairaobarbeiro

todososdiaseeupossomebarbearperfeitamentebem.Alémdisso,iraobarbeiro

provavelmenteficariamuitocaropramim.Masseeudecidissequenãoqueromebarbear,o

barbeiroseriaaquelequeofariaparamim.Comoficaobarbeironessahistória?Eletem

permissãoparabarbearsomentequemnãosebarbeia.Poressaregra,elesequerpoderiabarbear

asimesmo,poissópodebarbearquemnãosebarbeia.Asituaçãoficariadifícilparaele.De

modogeral,sealguémnãopudessesebarbearnovilarejo,procurariaobarbeiro.Todavia,a

regranãopermitiriaqueobarbeirofizesseisso,porqueissoocolocarianasituaçãodealguém

quebarbeiaasipróprio–masobarbeirosópodebarbearaquelesquenãobarbeiamasi

próprios.

Essasituaçãoparecelevaraumacontradiçãodireta–dizerquealgoétantoverdadeiro

quantofalso.Umparadoxoéisso.Algobastantecomplicado.Russelldescobriuque,quandoum

conjuntorefere-seasipróprio,surgeessetipodeparadoxo.Vejamosoutrofamosoexemplo:

“Estafraseéfalsa”.Issotambéméumparadoxo.Seaspalavras“Estafraseéfalsa”significamo

queparecemsignificar(esãoverdadeiras),entãoafraseéfalsa–oquesignificaqueoqueela

declaraéverdadeiro!Issoparecesugerirqueafraseéverdadeiraefalsaaomesmotempo.Esta

éumapartebásicadalógica.Portanto,eisoparadoxo.

Essesenigmassãointeressantesemsimesmos.Nãoháumasoluçãofácilparaeles,oque

pareceestranho.Contudo,eleserammuitomaisimportantesaindaparaRussell,poisrevelavam

quealgumasdassuposiçõesbásicasfeitaspeloslógicosnomundotodoarespeitodateoriados

conjuntosestavamequivocadas.Seriaprecisocomeçardenovo.

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OutrointeresseimportanteparaRusselleracomooquedizemosserelacionacomo

mundo.Elesentiaque,seconseguissedescobriroquetornavaumadeclaraçãoverdadeiraou

falsa,estariafazendoumacontribuiçãosignificativaparaoconhecimentohumano.Maisumavez,

eleestavainteressadonasquestõesabstratasportrásdetodoonossoconhecimento.Grande

partedesuaobradedicava-seaexplicaraestruturalógicaquesubjazàsdeclaraçõesque

fazemos.Elesentiaquenossalinguagemeramuitomenosprecisadoquealógica.Alinguagem

comumprecisavaseranalisada–desmembrada–paraquerevelassesuaformalógica

subjacente.Eleestavaconvencidodequeosegredoparaavançaremtodasasáreasdafilosofia

eraessetipodeanáliselógicadalinguagem,queenvolviatraduzi-laemtermosmaisprecisos.

Porexemplo,tomemosafrase“Amontanhadeouronãoexiste”.Éprovávelquetodos

concordemqueasentençaéverdadeiraporquenãohámontanhafeitadeouroemnenhumlugar

domundo,ouseja,afrasepareceestardizendoalgosobreumacoisaquenãoexiste.Osintagma

“amontanhadeouro”parecereferir-seaalgoreal,massabemosquenão.Trata-sedeumquebra-

cabeçaparaoslógicos.Comopodemosfalardemaneirasignificativasobrecoisasquenão

existem?Porqueafrasenãoédetodosemsentido?Umaresposta,dadapelológicoaustríaco

AlexiusMeinong,eraadequetodasascoisasnasquaispodemospensaredasquaispodemos

falardemodosignificativoexistem.Nessavisão,amontanhadeourodeveexistir,masdeum

modoespecialqueelechamoude“subsistência”.Eletambémpensavaqueunicórnioseonúmero

27“subsistem”dessamaneira.

OmododepensardeMeinongarespeitodalógicanãopareciacorretoparaRussell,pois

eramuitoestranho.Significavaqueomundoeracheiodecoisasqueexistememumsentido,mas

nãoemoutro.Russellconcebeuumamaneiramaissimplesdeexplicarcomoaquiloquedizemos

serelacionacomoqueexiste.Aissodamosonomedeteoriadasdescrições.Tomemoscomo

exemploaestranhafrase(umadasprediletasdeRussell)“OatualreidaFrançaécareca”.

MesmonoiníciodoséculoXX,quandoRussellescrevia,nãohaviareinaFrança,queselivrara

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detodososreiserainhasduranteaRevoluçãoFrancesa.Então,comoelepodiadarsentidoa

essafrase?ArespostadeRussellfoique,comoamaioriadasfrasesnalinguagemcomum,ela

nãoeranaverdadeoqueparecia.

Eisoproblema.Sequisermosdizerqueafrase“OatualreidaFrançaécareca”éfalsa,

parecequeestaremoscomprometidosadizerqueexisteumatualreinaFrançaquenãoécareca.

Masissocertamentenãoéoquequeremosdizer.Nãoacreditamosquehajaumatualreida

França.AanálisedeRussellfoiaseguinte.Umadeclaraçãodotipo“OatualreidaFrançaé

careca”naverdadeéumaespéciededescriçãooculta.Quandofalamossobre“Oatualreida

Françaécareca”,aformalógicasubjacenteànossaideiaéesta:

ExistealgoqueéoatualreidaFrança.

SóexisteumacoisaqueéoatualreidaFrança.

QualquercoisaqueforoatualreidaFrançaécareca.

EssacomplicadaformadeesclarecerascoisaspermitiuqueRussellmostrasseque“O

atualreidaFrançaécareca”podefazeralgumsentidomesmoquenãoexistaumreiatualda

França.Fazsentido,maséfalso.DiferentementedeMeinong,elenãoprecisavaimaginarqueo

atualreidaFrançaexistissedefato(ousubsistisse)parafalarneleepensarsobreele.Para

Russell,afrase“OatualreidaFrançaécareca”éfalsaporqueoatualreidaFrançanãoexiste.

Afrasesugerequeeleexista;portanto,asentençaéfalsa,enãoverdadeira.Afrase:“Oatualrei

daFrançanãoécareca”tambéméfalsapelamesmarazão.

Russellcomeçouoqueàsvezeséchamadode“viradalinguística”nafilosofia,um

movimentonoqualosfilósofoscomeçaramapensarprofundamentesobrealinguagemesua

formalógicasubjacente.A.J.Ayerfezpartedessemovimento.

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CAPÍTULO32

Boo!Hooray!

ALFREDJULESAYER

Nãoseriamaravilhososetivéssemosumamaneiradesaberquandoalguémestivessefalando

besteiras?Jamaisseríamosenganadosdenovo.Poderíamosdividirtudooqueouvíamosou

líamosemdeclaraçõesquefazemsentidoedeclaraçõesquenãopassamdecontrassensosenão

valemotempoperdidocomelas.A.J.Ayer(1910-1989)acreditavaterdescobertoumamaneira

defazerisso.Eleachamavadeprincípiodeverificação.

DepoisdepassaralgunsmesesnaÁustrianoiníciodadécadade1930frequentando

reuniõesdeumgrupodecientistasefilósofosbrilhantesconhecidocomoCírculodeViena,Ayer

voltouparaOxford,ondetrabalhavacomoprofessorassistente.Aos24anos,eleescreveuum

livronoqualdeclarouqueamaiorpartedahistóriadafilosofiaeraumatagarelicesemnexo–

umcompletocontrassensomaisoumenosinútil.Olivro,publicadoem1936,chamava-se

Linguagem,verdadeelógica.Faziapartedeummovimentoconhecidocomopositivismológico,

ummovimentoquecelebravaaciênciacomoomaiordosfeitoshumanos.

“Metafísica”éumapalavrausadaparadescreveroestudodequalquerrealidade

subjacenteaosnossossentidos,otipodecoisanaqualKant,SchopenhauereHegelacreditavam.

ParaAyer,noentanto,“metafísica”eraumapalavrasuja;eleeracontraela.Ayersóestava

interessadonoquepodiaserconhecidopormeiodalógicaoudossentidos.Contudo,a

metafísicamuitasvezesiaalémdissoedescreviarealidadesquenãopodiamserinvestigadas

científicaouconceitualmente.NoqueserefereaAyer,issosignificavaqueelanãotinha

absolutamenteusonenhumedeveriaserdescartada.

NãoédesurpreenderqueLinguagem,verdadeelógicatenhairritadotantagente.A

maioriadosfilósofosmaisvelhosemOxfordodiouolivro,eficoumaisdifícilparaAyer

arranjaremprego.Todavia,irritarosoutroséalgoqueosfilósofosvêmfazendohácentenasde

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anos,numatradiçãoquecomeçoucomSócrates.Mesmoassim,escreverumlivroqueatacavatão

abertamenteaobradealgunsdosmaioresfilósofosdahistóriaeraumaatitudemuitocorajosa.

AmaneiraqueAyerencontroudedistinguirfrasescomsentidodefrasessemsentidofoia

seguinte.Peguequalquerfraseefaçaessasduasperguntas:

Elaéverdadeirapordefinição?

Éempiricamenteverificável?

Senãofossenenhumadasduascoisas,nãofaziasentido.Esteeraseuduplotesteda

significação.Somentedeclaraçõesverdadeiraspordefiniçãoouempiricamentevariáveisteriam

utilidadeparaosfilósofos.Precisamosexplicarissomelhor.Exemplosdedeclarações

verdadeiraspordefiniçãosão“Todasasavestruzessãoaves”ou“Todososirmãossãodosexo

masculino”.SãojuízosanalíticosnaterminologiadeKant(verCapítulo19).Nãoéprecisoirlá

foraanalisaravestruzesparasaberquesãopássaros–issofazpartedadefiniçãodeavestruz.Eé

óbvioquenãoseriapossívelterumirmãodosexofeminino–ninguémjamaisdescobriráum

irmãoassim,podemostercerteza;nãosemumamudançadesexoemalgummomentodavida.

Declaraçõesverdadeiraspordefiniçãotrazemàtonaoqueestáimplícitonostermosqueusamos.

Declaraçõesempiricamenteverificáveis(juízos“sintéticos”nostermosdeKant),em

contrapartida,podemnosdarumconhecimentogenuíno.Paraqueumadeclaraçãoseja

empiricamenteverificável,temdehaveralgumtesteouobservaçãoquemostreseelaé

verdadeiraoufalsa.Porexemplo,sealguémdiz“todososgolfinhoscomempeixe”,poderíamos

pegaralgunsgolfinhos,oferecer-lhespeixeseverseelescomem.Sedescobrirmosqueum

golfinhonuncacomepeixe,saberemosqueadeclaraçãoerafalsa.ParaAyer,aindaassimela

seriaumadeclaraçãoverificável,poiseleusavaapalavra“verificável”parasereferirtantoa

“verificável”quantoa“refutável”(ou“falsificável”).Declaraçõesempiricamenteverificáveis

eramtodasdeclaraçõesfactuais:referem-seaomodocomoomundoé.Devehaveralguma

observaçãoquedêsuporteaelasouasdestrua.Aciênciaénossamelhormaneiradeexaminá-

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las.

SegundoAyer,seafrasenãofossenemverdadeirapordefinição,nemempiricamente

verificável(ourefutável),elanãofariasentido.Simplesassim.EsseaspectodafilosofiadeAyer

foitomadodiretamentedaobradeDavidHume.Humedisse,nãodemaneiratãoséria,que

deveríamosqueimaroslivrosdefilosofiaquenãopassaramnotesteporquecontinhamnadaalém

de“sofísticaeilusão”.AyerretrabalhouasideiasdeHumeparaocontextodoséculoXX.

Dessemodo,setomamosafrase“Algunsfilósofostêmbarba”,ficaplenamenteclaroque

nãosetratadeumafraseverdadeirapordefinição,poisnãofazpartedadefiniçãodefilósofo

quealgunsdelesprecisamterpelosnorosto.Maséempiricamenteverificável,poiséalgode

quepodemosobterevidências.Tudooqueprecisamosfazeréolharparaumasériedefilósofos.

Seencontrarmosalgunscombarba,oqueébemprováveldeacontecer,entãopodemosconcluir

queasentençaéverdadeira.Ouse,depoisdeolharparamuitascentenasdefilósofos,não

encontrarmosnenhumquetenhabarba,poderemosconcluirqueafrase“Algunsfilósofostêm

barba”éprovavelmentefalsa,portantonãopodemostercertezasemexaminartodososfilósofos

queexistem.Detodomodo,sendoverdadeiraoufalsa,afraseésignificativa.

Comparecomafrase“Meuquartoestácheiodeanjosinvisíveisquenãodeixamrastros”.

Issotambémnãoéverdadeiropordefinição.Maséempiricamenteverificável?Parecequenão.

Nãohámaneiraimagináveldedetectaressesanjosinvisíveisseelesnãodeixaremrastros.Não

podemostocá-losoucheirá-los.Elesnãodeixampegadas,nãofazembarulho.Porisso,afraseé

umcontrassenso,mesmoquepareçafazersentido.Éumafrasegramaticalmentecorreta;porém,

comodeclaraçãosobreomundo,nãoénemverdadeira,nemfalsa.Ésemsentido.

Issopodeserbastantedifícildeentender.Afrase“Meuquartoestácheiodeanjosquenão

deixamrastros”parecedizeralgo.Todavia,paraAyer,elanãocontribuicomabsolutamentenada

paraoconhecimentohumano,emboratalvezsoepoéticaoupossivelmentepossacontribuirpara

umaobradeficção.

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Ayernãoatacavasomenteametafísica:aéticaeareligiãotambémeramalvos.Por

exemplo,umadesuasconclusõesmaiscontestadorasfoiofatodequeosjuízosmoraissão

literalmenteumcontrassenso.Pareciaumultrajedizerisso,masessaseráaconclusãoresultante

seusarmosoduplo-testedeAyernosjuízosmorais.Segundoele,quandodizemos“torturaré

errado”estamosapenasdizendo“tortura,boo!”.Estamosrevelandonossasemoçõespessoais

sobreaquestão,emvezdefazerumadeclaraçãoquepoderiaserverdadeiraoufalsa,porque

“torturaréerrado”nãoéverdadeirapordefinição,tampoucoéalgoquepoderíamosprovarou

refutarcomoumfato.Nãoháumtestequepossamosfazerparadecidiraquestão,acreditava

Ayer–algoqueutilitaristascomoJeremyBenthameJohnStuartMillteriamcontestado,pois

teriammedidoafelicidaderesultante.

NaanálisedeAyer,portanto,nãofazomenorsentidodizer“torturaréerrado”,poisesseé

otipodefrasequenuncaseráverdadeiranemfalsa.Quandodizemos“Acompaixãoéumbem”,

estamosapenasmostrandocomonossentimos:éomesmoquedizer“compaixão,hooray!”.Nãoé

desurpreenderqueateoriadeAyersobreaética,chamadaemotivismo,costumeserdescrita

comoteoriado“boo/hooray!”.AlgumaspessoasinterpretamAyercomoseeleestivessedizendo

queamoralnãoimporta,quepodemosescolherfazeroquequisermos.Masaquestãonãoéessa.

Elequeriadizerquenãopodeternenhumaconversasignificativasobreessasquestõesemtermos

devalores,masacreditavaque,namaioriadosdebatessobreoquedeveríamosfazer,fatoseram

discutidos,esãoempiricamenteverificáveis.

EmoutrocapítulodeLinguagem,verdadeelógica,Ayeratacouaideiadequepodíamos

falarsignificativamentesobreDeus.Eleargumentavaqueadeclaração“Deusexiste”nãoera

nemverdadeira,nemfalsa;outravez,elepensavaquenãofaziasentido.Poressarazão,nãoseria

verdadeirapordefinição(pormaisquealgumaspessoas,naesteiradeSantoAnselmo,usemo

argumentoontológicoparadizerqueDeusnecessariamenteexiste).Enãohaviaumtesteque

pudéssemosfazerparaprovaraexistênciaouanãoexistênciadeDeus–postoqueelerejeitava

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oargumentododesígnio.Dessemodo,Ayernãoeranemteísta(quemacreditaemDeus),

tampoucoateísta(quemacreditaqueDeusnãoexiste).Aocontrário,elepensavaque“Deus

existe”nãopassavademaisumadeclaraçãosemsentido–algumaspessoasdãoaessaposturao

nomede“ignosticismo”.Ayer,então,eraum“ignótico”,tipoespecialdepessoaquepensaque

todososdiscursossobreaexistênciaounãoexistênciadeDeussãoumcompletocontrassenso.

Apesardisso,Ayerteveumchoquemuitograndejánofimdavida,quandoteveuma

experiênciadequasemortedepoisdeengasgarcomumaespinhadesalmãoeperdera

consciência.Ocoraçãodeleparouporquatrominutos.Duranteessetempo,eleteveaclaravisão

deumaluzvermelhaededois“mestresdouniverso”conversandoumcomooutro.Essavisão

nãoofezacreditaremDeus,longedisso,masofezquestionarsuacertezasobreseamente

poderiacontinuaraexistirdepoisdamorte.

OpositivismológicodeAyer,parasuainfelicidade,deuasferramentasparasuaprópria

destruição.Ateoriaemsinãopareciapassaremseupróprioteste.Primeiro,nãoestáclaroquea

teoriasejaverdadeirapordefinição.Segundo,nãohánenhumaobservaçãoquepossaprová-laou

contestá-la.Então,porseuspróprioscritérios,elaéinsignificante.

Paraaquelesquerecorreramàfilosofiabuscandoumaajudapararesponderàsperguntas

decomoviver,afilosofiadeAyerfoidemuitopoucouso.Maispromissoremváriosaspectos

foioexistencialismo,movimentoquesurgiunaEuropaduranteeimediatamenteapósaSegunda

GuerraMundial.

CAPÍTULO33

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Aangústiadaliberdade

JEAN-PAULSARTRE,SIMONEDEBEAUVOIREALBERTCAMUS

Sepudéssemosvoltarnotempoaté1945eentrarnumcaféemParischamadoLesDeuxMagots

[Osdoissábios],perceberíamosumhomemestrábicosentadopertodenós,fumandocachimboe

escrevendoemumcaderno.EssehomeméJean-PaulSartre(1905-1980),omaisfamosodos

filósofosexistencialistas.Eletambémfoiromancista,dramaturgoebiógrafo.Passouamaior

partedavidamorandoemhotéiseescreveugrandepartedasuaobraemcafés.Elenãoparecia

umafiguracultuada,masfoioquesetornouempouquíssimosanos.

Muitasvezes,Sartrejuntava-seaumamulherbonitaeextremamenteinteligente,Simonede

Beauvoir(1908-1986).Elesseconheciamdesdeauniversidade,eelafoiacompanheirade

Sartreportodaavida,emboraelesnãotenhamsecasado,nemmoradojuntos.Elestinhamoutras

relações,masadelesfoiamaisduradouradelas–elesadescreviamcomo“essencial”etodas

asoutrascomo“contingentes”(ou“nãonecessárias”).AssimcomoSartre,elaerafilósofae

romancista.SimoneescreveuumimportantelivrochamadoOsegundosexo(1949),umadas

primeirasobrasfeministasdahistória.

DuranteamaiorpartedaSegundaGuerraMundial,quehaviaacabadodeterminar,Paris

foiocupadapelasforçasnazistas.Avidafoimuitodifícilparaosfranceses.Algumaspessoas

conseguiramsejuntaraossoldadosdaResistênciafrancesaelutaramcontraosalemães.Outras

colaboravamcomosnazistasetraíamosamigosparasalvarasipróprias.Acomidaeraescassa,

haviatiroteiosnasruas.Aspessoasdesapareciamenuncamaiseramvistas.OsjudeusdeParis

forammandadosparacamposdeconcentração,ondeamaioriafoiassassinada.

QuandoosaliadosderrotaramaAlemanha,chegouahoradecomeçardenovo.Houve

tantoumalíviopelotérminodaguerraquantoasensaçãodequeopassadohaviasidodeixado

paratrás.Eraomomentoderefletirsobrequetipodesociedadedeveriaexistir.Depoisdas

coisasterríveisqueaconteceramnaguerra,todasaspessoasfaziam-seasmesmasperguntasque

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osfilósofosfaziam,como“Qualopropósitodavida?”,“Deusexiste?”ou“Devosemprefazero

queesperamqueeufaça?”.

Sartrejáhaviaescritoumlongolivro,dedifícilleitura,chamadoOsereonada(1943),

publicadoduranteaguerra.Otemacentraldolivroeraaliberdade.Ossereshumanossãolivres,

umamensagemestranhaparaaFrançaocupada,ondeamaioriadosfrancesessentia-se–ou

realmenteera–prisioneiranoprópriopaís.Noentanto,Sartrequeriadizerque,diferentemente

deumcanivete,porexemplo,oserhumanonãohaviasidocriadoparafazernadaemparticular.

SartrenãoacreditavahaverumDeusquepudessenostercriado,entãorejeitouaideiadeque

Deustinhaumpropósitoparanós.Ocaniveteerafeitoparacortar.Essaerasuaessência,oqueo

faziaseroqueera.Masoserhumanoeracriadoparaquê?Sereshumanosnãotêmessência.

Sartreacreditavaquenãoestamosaquiporalgumarazão.Nãoháummodoparticulardeserpara

quesejamoshumanos.Oserhumanopodeescolheroquefazer,oquesetornar.Todosnóssomos

livres.Ninguém,alémdenósmesmos,decideoquefazemosdenossasprópriasvidas.Até

mesmoquandodeixamososoutrosdecidiremcomodevemosviver,estamosescolhendo.Seria

umaescolhaserotipodepessoaqueosoutrosesperamquesejamos.

Éclaroquenemsempreépossíveltersucessoquandovocêescolhefazeralgumacoisa,e

omotivodofracassopodeseralgototalmenteforadoseucontrole.Masvocêéresponsávelpor

quererfazê-la,portentarfazê-laeporcomoreageaofracassopornãotersidocapazdefazê-la.

Édifícillidarcomaliberdade,eamaioriadenósfogedela.Umadasformasdese

esconderéfingirquenãosomoslivres.SeSartreestácorreto,nãopodemosterdesculpas:somos

completamenteresponsáveispeloquefazemostodososdiasepelamaneiracomonossentimos

peloquefazemos.Emúltimaanálise,pelasemoçõesquetemos.SegundoSartre,ésuaescolha

estartristenestemomento,casoesteja.Vocênãoprecisaestartriste.Seestiver,éresponsável

pelatristeza.Masissoéassustador,ealgumaspessoasprefeririamnãoencarartalfatoporser

dolorosodemais.Elefalasobreestarmos“condenadosaserlivres”.Estamospresosàliberdade,

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quergostemosounão.

Sartredáoexemplodeumgarçomemumcafé.Ogarçommovimenta-sedeformabem

estilizada,comosefosseumtipodemarionete.Todososseustraçossugeremqueelesevêcomo

alguémtotalmentedefinidopelopapeldegarçom,comosenãotivesseescolhasobrenada.O

modocomoseguraabandeja,omodocomoandaentreasmesas,tudofazpartedeumaespécie

dedançaqueécoreografadapelotrabalhocomogarçom,enãopeloserhumanoqueoexecuta.

Sartredizqueessesujeitoagede“má-fé”.Má-fééfugirdaliberdade,umtipodementiraque

contamosparanósmesmosenaqualquaseacreditamos:amentiradequenãosomosrealmente

livresparaescolheroquefazemoscomnossasvidas,quandonaverdade,segundoSartre,quer

gostemosounão,nóssomos.

Emumaconferênciadadalogodepoisdaguerra,“Oexistencialismoéumhumanismo”,

Sartredescreveuavidahumanacomorepletadeangústia.Aangústiasurgedacompreensãode

quenãopodemosdardesculpas,jáquesomosresponsáveisportudooquefazemos.Masa

angústiaépiorporque,segundoSartre,tudooquefaçocomaminhavidadeveservirdemodelo

paraqueooutrofaçacomaprópriavida.Sedecidomecasar,estousugerindoquetodosdevem

secasar;sedecidoserumpreguiçoso,éissooquetodosdeveriamfazernaminhavisãoda

existênciahumana.Pelasescolhasquefaçonavida,pintoumquadrodecomopensoqueoser

humanodeviaser.Fazerissocomsinceridadeéumagranderesponsabilidade.

Sartreexplicouoquequeriadizercomaangústiadaescolhapormeiodahistóriadeum

estudantequelhepediuumconselhoduranteaguerra.Esserapaztinhadetomarumadecisão

muitodifícil.Poderiaficaremcasaecuidardamãe,oupoderiasairdecasa,tentarjuntar-seà

Resistênciafrancesaelutarparasalvaropaísdosalemães.Essaeraadecisãomaisdifícilda

vidadele,eelenãosabiaoquefazer.Amãeficariavulnerávelsemele,casoaabandonasse.Ele

poderianãoconseguirsejuntaraossoldadosdaResistênciaantesdeserpegopelosalemães,

entãotodaatentativadefazeralgonobreseriaperdadeenergiaedeumavida.Porém,seficasse

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emcasacomamãe,deixariaqueoutroslutassemparaele.Oquedeveriafazer?Oquevocê

faria?Queconselhodariaaorapaz?

OconselhodeSartrefoiumpoucofrustrante.Eledisseaoestudantequeeleeralivree

deveriaescolherporsimesmo.SeSartredesseumconselhopráticosobreoqueorapazdeveria

fazer,oestudanteaindateriadedecidirseseguiaounãooconselho.Nãohaviacomoescapardo

pesodaresponsabilidadeatreladoàexistênciahumana.

“Existencialismo”foionomequeoutraspessoasderamàfilosofiadeSartre.Onomeveio

daideiadequetodosnósnosencontramosprimeirocomoexistentesnomundoedepoistemosde

decidiroquefaremosdenossavida.Poderiaserocontrário:podíamossercomoumcanivete,

feitocomumpropósitoespecífico,masSartreacreditavaquenãosomosassim.Nostermos

usadosporele,nossaexistênciaprecedenossaessência,enquantoaessênciadosobjetoscriados

vemantesdaexistênciadeles.

EmOsegundosexo,SimonedeBeauvoirdeuumnovosignificadoaoexistencialismoao

afirmarqueasmulheresnãonascemmulheres:elassetornammulheres.Oquequeriadizerera

queasmulherestendemaaceitaravisãodoshomensdoqueéumamulher.Seroqueoshomens

esperamqueumamulhersejaéumaescolha.Masasmulheres,porseremlivres,podemdecidiro

quequeremser.Elasnãotêmnenhumaessência,nenhumamaneiradeserdadapelanatureza.

Outrotemaimportantedoexistencialismoeraoabsurdodanossaexistência.Avidasótem

significadoquandoatribuímosaelaumsentidopormeiodasnossasescolhas,eempoucotempo

amortevemeacabacomtodoessesentido.AversãodadaporSartreaessaideiafoidescrever

oserhumanocomo“umapaixãoinútil”:nãoháabsolutamentenenhumpropósitoemnossa

existência,sóháosentidocriadoporcadaumdenóspormeiodasescolhas.AlbertCamus

(1913-1960),romancistaefilósofoquetambémeraligadoaoexistencialismo,usavaomito

gregodeSísifoparaexplicaraabsurdidadehumana.ApuniçãodeSísifoporterenganadoos

deusesfoiarrastarumapedragigantescaatéotopodeumamontanha.Quandoelechegavaao

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topo,apedrarolavaparabaixoeeletinhadecomeçartudodesdeoinício.Naverdade,Sísifo

tevedefazerissoeternamente.AvidahumanaécomoatarefadeSísifo,poisétotalmente

desprovidadesignificado.Nãohásentidonela:nãohárespostasqueexpliquemtudo.Éabsurda.

MasCamusnãoachavaquedeveríamosperderasesperanças,nemcometersuicídio.Emvez

disso,temosdeadmitirqueSísifoéfeliz.Porquê?Porqueháalgoemrelaçãoaessaluta

estúpidadesubiramontanhacomumapedraquefaziaasuavidavalerapena.Aindaépreferível

viveramorrer.

Oexistencialismotornou-secult.Milharesdejovenssesentiramatraídosporelee

discutiamoabsurdodaexistênciahumanaatédemadrugada.Eleinspirouromances,peçase

filmes.Eraumafilosofiaqueaspessoaspodiamadotareaplicaremsuasdecisões.Opróprio

Sartretornou-semaispoliticamenteengajadoeparticipativodomovimentoesquerdistaquando

ficoumaisvelhoetentoucombinarideiasdomarxismocomsuasprimeirasposições–umatarefa

complicada.Seuexistencialismodadécadade1940eracentradonosindivíduosquefaziam

escolhasparasipróprios;mas,numafaseposteriordesuaobra,eletentouentendercomonos

tornamospartedeumgrupomaiordepessoasecomoosfatoressociaiseeconômicos

desempenhamumpapelemnossavida.Infelizmente,suaescritaficoucadavezmaisdifícilde

entender,talvezporquegrandepartedelatenhasidoproduzidaenquantousavaaltasdosesde

anfetamina.

SartreprovavelmentefoiofilósofomaisconhecidodoséculoXX.Contudo,se

perguntarmosaosfilósofosquemfoiopensadormaisimportantedoséculopassado,muitosdirão

quefoiLudwigWittgenstein.

CAPÍTULO34

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Enfeitiçadopelalinguagem

LUDWIGWITTGENSTEIN

SevocêtivesseassistidoaumdossemináriosdeLudwigWittgenstein(1889-1951)ministrados

emCambridgeem1940,perceberiarapidamentequeestavanapresençadeumsujeitobastante

incomum.Muitagentequeoconheciaachavaqueeraumgênio.BertrandRusselldescreveu-o

como“apaixonado,profundo,intensoedominador”.Essepequenovienensedeolhosazuise

brilhantes,extremamentesério,andavadecimaparabaixoquestionandoosestudanteseparava

detemposemtemposcomoseestivesseperdidoempensamentos.Ninguémousavainterrompê-

lo.Elenãousavanadapreparadopreviamenteduranteasaulas,massimpensavanasquestões

diantedosalunos,usandoumasériedeexemplosparaelucidaroqueestivesseemjogo.Eledizia

paraosalunosnãoperderemtempolendolivrosdefilosofia:selevassemoslivrosasério,

deveriamatirá-losdooutroladodasalaeprosseguirpensandoarduamentenasquestõesque

suscitavam.

Seuprimeirolivro,TractatusLogico-Philsophicus(1922),foiescritoemsessõescurtase

numeradas,sendoquemuitasdelasparecemmaisserpoesiadoquefilosofia.Suaideiaprincipal

eraadequeasquestõesmaisimportantessobreéticaereligiãoestãoalémdoslimitesdonosso

entendimento;senãopodemosfalarnadadesignificativosobreelas,quefiquemosemsilêncio.

Umtemacentraldasuaobraposteriorfoio“enfeitiçamentopelalinguagem”.Ele

acreditavaquealinguagemcolocaosfilósofosemtodosostiposdeconfusão.Elessão

enfeitiçadosporela.Wittgensteinviaasimesmocomoumterapeutaquelevariaemboragrande

partedessaconfusão.Aideiaeraqueseguíssemosalógicadeseusváriosexemplos

cuidadosamenteescolhidose,enquantofizéssemosisso,nossosproblemasfilosóficos

desapareceriam.Oquepareciaterrivelmenteimportantenãoseriamaisumproblema.

Umadascausasdaconfusãofilosófica,defendiaele,eraasuposiçãodequetoda

linguagemfuncionadamesmamaneira–aideiadequeaspalavrassimplesmentenomeiamas

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coisas.Elequeriademonstrarparaosleitoresquehaviamuitos“jogosdelinguagem”,diferentes

atividadesqueexecutamosusandopalavras.Nãoháuma“essência”dalinguagem,nenhuma

característicacomumqueexpliquetodaagamadeseususos.

Sevemosumgrupodepessoasrelacionadasumasàsoutras,comoemumcasamento,

seremoscapazesdereconhecerosmembrosdafamíliaapartirdassemelhançasfísicasentre

eles.IssoéoqueWittgensteinqueriadizercom“semelhançadefamília”.Dessemodo,você

deveparecerumpoucocomsuamãe–talveztenhamomesmocabeloeamesmacordosolhos–

eumpoucocomseupai–sãomagrosealtos.Talvezsuairmãtambémtenhaamesmacorde

cabeloeomesmoformatodosolhosquevocê,masacordosolhospodeserdiferentedados

seusolhosedasuamãe.Nãoháumaúnicacaracterísticacompartilhadaportodososmembrosda

famíliaquetorneimediataaidentificaçãodetodoselescomopartedeumamesmafamília

aparentadageneticamente.Emvezdisso,háumpadrãodesemelhançassobrepostas,ouseja,

algunsmembrosdafamíliacompartilhamalgumascaracterísticas,enquantooutroscompartilham

outras.EssepadrãodesemelhançasquesesobrepunhaméoqueinteressavaaWittgenstein.Ele

usavaessametáforadesemelhançadefamíliaparaexplicaralgoimportantesobrecomoa

linguagemfunciona.

Pensenapalavra“jogo”.Háváriascoisasdiferentesquechamamosdejogos:jogosde

tabuleirocomoxadrez,jogosdecartacomobridgeepaciência,esportescomofuteboletc.

Tambémháoutrascoisasquechamamosdejogos,comojogodeesconde-escondeoujogosdefaz

deconta.Muitaspessoasachamque,pelofatodeusarmosamesmapalavra–“jogo”–parase

referiratodosesses,devehaverumaúnicacaracterísticaquetodostenhamemcomum,a

“essência”doconceitode“jogo”.Mas,emvezdesimplesmenteassumirquehajatal

denominadorcomum,Wittgensteinnospedepara“olharever”.Podemosacharquetodosos

jogostêmumganhadoreumperdedor,maseojogodepaciência,ouaatividadedejogaruma

bolanomuroepegá-laemseguida?Ambossãojogos,masobviamentenãoháumperdedor.E

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quetalaideiadequetodostenhamregras?Porém,algunsjogosdefazdecontanãoparecemter

regras.Paratodasascaracterísticasquepossivelmentesejamcomunsatodososjogos,

Wittgensteindáumcontraexemplo,umaatividadequeéumjogo,masnãoparececompartilharda

“essência”sugeridaatodososjogos.Emvezdepressuporquetodososjogostêmumaúnica

característicaemcomum,eleacreditaquedeveríamosverpalavrascomo“jogo”em“termosde

semelhançadefamília”.

QuandoWittgensteindescreveualinguagemcomoumasériede“jogosdelinguagem”,ele

chamouaatençãoparaofatodequeusamosalinguagemparamuitasfinalidades,edequeos

filósofosseconfundiramporquepensavambasicamentequetodalinguagemtemomesmotipode

função.Emumadesuasfamosasdescriçõessobreoseuobjetivocomofilósofo,eledisseque

queriamostraràmoscaasaídadagarrafa.Umfilósofotípicoficariazunindodentrodagarrafa

comoumamoscapresabatendonovidro.Amaneirade“solucionar”umproblemafilosófico

seriatirararolhaedeixaramoscasair.Issosignificaqueelequeriamostraraofilósofoque

estavasefazendoasperguntaserradas,ouquehaviasidoenganadopelalinguagem.

TomemoscomoexemploadescriçãodeSantoAgostinhodecomoeleteriaaprendidoa

falar.EmConfissões,Agostinhosugeriuqueaspessoasmaisvelhascomquemeleconvivia

apontavamparaosobjetoseosnomeavam.Elevêumamaçã,alguémapontaediz“maçã”.Pouco

apouco,Agostinhoentendeuoqueaspalavrasqueriamdizereconseguiuusá-lasparadizera

outraspessoasoquequeria.Wittgensteintomaesseexemplocomoumcasodealguémquesupõe

quetodalinguagemtemumaessência,umaúnicafunção.Afunçãoúnicaserianomearobjetos.

ParaAgostinho,todapalavratemumsignificadocorrespondente.Nolugardessafigurade

linguagem,Wittgensteinnosincentivaaverousodalinguagemcomoumasériedeatividades

associadasàvidapráticadosfalantes.Devemospensarnalinguagemmaiscomoumacaixade

ferramentascomosmaisvariadostiposdeferramentas,enãocomo,porexemplo,servindoà

funçãoàqualserveumachavedefenda.

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Talvezlhepareçaóbvioque,quandovocêsentedorefalasobreisso,estáusandopalavras

quedesignamasensaçãoparticularqueestátendo.Wittgensteintentarompercomessavisãoda

linguagemdasensação.Issonãoquerdizerquevocênãotenhaumasensação,massimque,

logicamente,suaspalavrasnãopodemsernomesdassensações.Setodosnóstivéssemosuma

caixacomumbesouroquenuncamostramosparaninguém,nãofariaamenordiferençaoque

estivessedentrodacaixaquandofalássemosunsparaosoutrossobreo“besouro”.Alinguagem

épúblicaerequermeiospublicamenteacessíveisdeseverificarqueestamosfazendosentido.

Quandoumacriançaaprendea“descrever”suador,dizWittgenstein,oqueaconteceéqueos

paisencorajamacriançaafazerváriascoisas,comodizer“estádoendo”–oequivalenteem

muitosaspectosàexpressãobastantenatural“Aaargh!”.Partedamensagem,nessecaso,éque

nãodeveríamospensarnaspalavras“estousentindodor”comoumaformadenomearuma

sensaçãoprivada.Sedoreseoutrassensaçõesfossemrealmenteprivadas,precisaríamosdeuma

linguagemprivadaespecialparadescrevê-las.MasWittgensteinpensavaqueessaideianãofazia

sentido.Vejamosoutroexemploquepodeajudaraexplicarporqueelepensavaisso.

Umhomemdecidequemanteráumregistrodetodasasvezesemquetiverumtipo

particulardesensaçãoparaaqualnãohajanome–talvezumtipoespecíficodeformigamento.

Eleescreve“S”nodiáriotodavezquetemessasensaçãoespecialdeformigar.“S”éuma

palavraemsualinguagemparticular–ninguémmaissabeoqueelequerdizercomisso.Parece

serpossível.Nãoédifícilimaginarumhomemfazendoisso.Porém,reflitaumpoucomais.

Quandosenteumformigamento,comoelesabequesetratarealmentedemaisumexemplodo

tipo“S”queeledecidiuregistrarenãooutrotipodeformigamento?Elenãopoderetrocedere

verificar,excetopelamemóriadeterexperimentadoumformigamento“S”anterior.Masissonão

émuitobom,porqueelepoderiaseconfundircompletamente.Essanãoéumaformaconfiávelde

dizerqueseestáusandoapalavradamesmamaneira.

OqueWittgensteinqueriamostrarcomesseexemplododiárioeraqueomodocomo

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usamosaspalavrasparadescrevernossasexperiênciasnãopodeserbaseadoemumaligação

privadadaexperiênciacomomundo.Devehaveralgopúblicoemrelaçãoaele.Nãopodemos

ternossapróprialinguagemprivada.Seissoforverdade,aideiadequeamenteécomoum

teatrofechadonoqualninguémpodeentraréumequívoco.ParaWittgenstein,portanto,aideiade

umalinguagemparticulardassensaçõesnãofazabsolutamentenenhumsentido.Issoéimportante

–etambémdifícildeentender–porquemuitosfilósofosantesdelepensavamqueamentede

cadaindivíduoeracompletamenteprivada.

Emborafossedereligiãocristã,afamíliadeWittgensteinfoiconsideradajudiasobasleis

nazistas.LudwigpassoupartedaSegundaGuerraMundialtrabalhandocomoassistenteemum

hospitaldeLondres,massuafamíliaestendidatevemuitasortedeescapardeViena.Senão

tivessemconseguido,AdolfEichmannteriasupervisionadosuadeportaçãoparaoscamposde

extermínio.OenvolvimentodeEichmannnoholocaustoeseuposteriorjulgamentopeloscrimes

contraahumanidadeforamocentrodasreflexõesdeHannahArendtsobreanaturezadomal.

CAPÍTULO35

Ohomemquenãofaziaperguntas

HANNAHARENDT

OnazistaAdolfEichmannfoiumadministradoresforçado.Apartirde1942,estevenocomando

dotransportedosjudeusdaEuropaparaoscamposdeconcentraçãonaPolônia,incluindo

Auschwitz.Issofaziaparteda“soluçãofinal”deAdolfHitler:oplanodematartodososjudeus

queviviamemterrasocupadaspelasforçasalemãs.Eichmannnãoeraresponsávelpelapolítica

damatançasistemática–nãofoiideiadele.Porém,eleestavaprofundamenteenvolvidona

organizaçãodosistemaferroviárioquetornouessapolíticapossível.

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Apartirdadécadade1930,osnazistasintroduziramleisqueacabavamcomosdireitosdo

povojudeu.HitlerculparaosjudeusporquasetudooqueestavaerradonaAlemanhaetinhaum

desejocrueldesevingardeles.Essasleisimpediamqueosjudeusfrequentassemescolas

estaduais,forçava-osacederdinheiroepropriedadeseosfaziausarumaestrelaamarela.Os

judeusforamcercadoseforçadosamoraremguetos–partessuperpopulosasdascidadesquese

tornaramprisõesparaeles.Acomidaeraescassa,eavidaeradifícil.Masasoluçãofinal

chegoucomumnovoníveldemaldade.AdecisãodeHitlerdematarmilhõesdepessoas

simplesmenteporcausadasuaraçasignificavaqueosnazistasprecisavamdeumamaneirade

transferirosjudeusdascidadesparalugaresondepodiamsermortosemgrandequantidade.Os

camposdeconcentraçãoexistentesforamtransformadosemfábricasparaintoxicarcomgáse

queimarcentenasdepessoaspordia.ComomuitosdessescamposficavamnaPolônia,alguém

precisavaorganizarostrensquetransportavamosjudeusparaamorte.

EnquantoEichmannficavasentadoemumescritórioorganizandopapéisedando

telefonemasimportantes,milhõesdejudeusmorriamcomoresultadodoqueelefazia.Alguns

pereciamdefebretifoideoudefome,enquantooutroseramobrigadosatrabalharatémorrer,mas

amaioriaeramortacomgás.NaAlemanhanazista,ostrensandavamnohorário–Eichmanne

pessoascomoelegarantiamisso.Suaeficiênciamantinhaosvagõescheios.Dentrodeles,

homens,mulheresecrianças,todosemumalongaedolorosajornadaparaamorte,geralmente

semcomidaouágua,muitasvezessentindointensofriooucalor.Muitosmorriamnocaminho,

principalmenteosvelhosedoentes.

Ossobreviventeschegavamfracoseaterrorizadosapenasparaseremforçadosaentrarem

câmarasdegásdisfarçadasdechuveiros,ondetodosdeviamentrardespidos.Asportaseram

trancadas.EraaliqueosnazistasosmatavamcomgásZyklon.Oscorposeramqueimados,eseus

pertences,saqueados.Osmaisfortes,quandonãoeramescolhidosparamorrerassimque

chegavam,eramforçadosatrabalharemcondiçõesatrozesecompoucacomida.Osguardas

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nazistasbatiamouatiravamnelespordiversão.

Eichmannteveumpapelsignificativonessescrimes.Contudo,depoisdaSegundaGuerra

Mundial,conseguiuescapardasforçasaliadaseacabouchegandoàArgentina,ondemorou

algunsanosemsegredo.Em1960,noentanto,elefoiencontradoecapturadoemBuenosAires

pormembrosdoMossad,apolíciasecretaisraelense.ElefoidrogadoeenviadoparaIsraelpara

julgamento.

SeriaEichmannumsujeitomaligno,umsádicoquesedeleitavacomosofrimentodos

outros?Issoeraoquetodosacreditavamantesdeojulgamentocomeçar.Teriaoutromotivopara

participardesseholocausto?Durantemuitosanosseutrabalhoforaencontrarformaseficazesde

enviaraspessoasparaamorte.Certamentesóummonstroseriacapazdedormirànoitedepois

dessetipodetrabalho.

AfilósofaHannahArendt(1906-1975),judiaalemãqueemigrouparaosEstadosUnidos,

relatouojulgamentodeEichmannparaarevistaNewYorker.Elaqueriaficarcaraacaracomum

produtodoEstadototalitárionazista,umasociedadeemquenãohaviaespaçoparaoindivíduo

pensarporsipróprio.Elaqueriaentenderessehomem,terumaideiadecomoeleeraeentender

comoelepodiaterfeitocoisastãoterríveis.

EichmannestavamuitodistantedoprimeironazistaqueArendtconheceu.Elamesmafugiu

dosnazistas,deixouaAlemanhapelaFrança,masporfimsetornouumacidadãdosEstados

Unidos.Aindajovem,quandoestudavanaUniversidadedeMarburg,tiveraaulacomofilósofo

MartinHeidegger.Elesforamamantesduranteumcurtoperíodo,apesardeelesercasadoeela

terapenasdezoitoanos.HeideggerestavaocupadoescrevendoSeretempo(1962),livro

inacreditavelmentecomplexoquemuitaspessoastomamcomoumagrandecontribuiçãoà

filosofia,eoutrascomoumaobrapropositalmenteobscura.Depoiseleviriaaseenvolvercomo

PartidoNazista,apoiandopolíticasantissemitas.Elechegouaretiraronomedeumantigoamigo,

ofilósofoEdmundHusserl,dadedicatóriadeSeretempo.

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Agora,emJerusalém,Arendtestavaprestesaconhecerumtipobemdiferentedenazista.

Aliestavaumhomemcomumqueescolheunãopensarmuitonoquefazia.Suanegaçãodo

pensamentoteveconsequênciasdesastrosas,maselenãoeraosádicoperversoqueelaesperava

encontrar.Eraumsujeitocomum,porémigualmenteperigoso:umhomemquenãopensa.Emuma

Alemanhaondeaspioresformasderacismotornaram-seleis,eramuitofácilparaelese

convencerdequeestavafazendoacoisacerta.Ascircunstânciasderam-lheaoportunidadedeter

umacarreiradesucesso,eeleaaceitou.AsoluçãofinaldeHitlerfoiumaoportunidadede

Eichmannsair-sebem,demostrarquepodiafazerumbomtrabalho.Issoédifícildeconceber,e

muitoscríticosdeArendtnãoconsideramqueelaestavacerta,maselasentiaqueelehaviasido

sinceroquandoafirmouqueestavacumprindoseudever.

Diferentementedealgunsnazistas,Eichmannnãopareciamovidoporumforteódioaos

judeus.ElenãotinhanadadamalignidadedeHitler.Haviamuitosnazistasqueficariamfelizes

embateremumjudeunasruasatéamorteporserecusarafazerocumprimento“HeilHitler!”,

maselenãoeraumdeles.Noentanto,aceitouocargooficialnazistae,oqueémuitopiorque

isso,ajudouaenviarmilhõesparaamorte.Mesmoenquantoouviaorelatodasevidênciascontra

ele,Eichmannparecianãoconsiderartãoerradooquetinhafeito.Naopiniãodele,comonão

haviaagidocontranenhumaleienãomataradiretamenteninguém,nempediuqueninguémo

fizesseemseulugar,elehaviasecomportadodemaneirarazoável.Elefoicriadoparaobedecer

àleietreinadoparaseguirordens,etodasaspessoasàsuavoltaestavamfazendoamesma

coisa.Aoexecutarordensdeoutraspessoas,eleevitavasesentirresponsávelpelosresultados

doseutrabalhodiário.

NãohavianecessidadenenhumadeEichmannveraspessoasamontoadasdentrodos

vagõesouvisitaroscamposdeconcentração,entãoelenãofaziaisso.Essehomemdisseàcorte

quejamaispoderiasetornarummédicoporquetinhamedodeversangue.Noentanto,osangue

continuavanasmãosdele.Eleeraoprodutodeumsistemaquedecertaformaoimpediude

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pensarcriticamentenasprópriasaçõesenosresultadosqueelasteriamparapessoasreais.Era

comoseelerealmentenãopudesseimaginarosentimentodasoutraspessoas.Prosseguiucoma

crençailusóriaemsuainocênciadurantetodoojulgamento.Oueraisso,oueletinhaconcluído

queamelhormaneiradesedefendereradizerqueestavaapenasobedecendoaordens;seocaso

foiesse,eleconvenceuArendt.

Arendtusouaspalavras“abanalidadedomal”paradescreveroqueviuemEichmann.Se

algoé“banal”,écomum,entedianteesemoriginalidade.Segundoela,omaldeEichmannera

banalnosentidodeseromaldeumburocrata,deumgerente,enãodeumapessoamá.Eleerao

exemplodeumtipodehomemcomumquepermitiuqueasvisõesnazistasafetassemtudooque

fazia.

AfilosofiadeArendtfoiinspiradapeloseventosqueaconteciamàsuavolta.Elanãofoio

tipodefilósofaquepassouavidapensandosobreideiaspuramenteabstratas,oudebatendo

incessantementesobreosignificadoprecisodeumapalavra.Suafilosofiaestavaligadaà

históriarecenteeàprópriaexperiência.OqueescreveuemseulivroEichmannemJerusalém

foibaseadoemsuasobservaçõesdeumhomemedostiposdelinguagemejustificativasqueele

dava.Apartirdoqueviu,eladesenvolveuexplicaçõesmaisgeraissobreomalemumEstado

totalitárioeseusefeitossobreaquelesquenãoresistiramaseuspadrõesdepensamento.

Eichmann,assimcomomuitosnazistasdaqueleperíodo,nãoconseguiaenxergarosfatos

pelaperspectivadosoutros.Nãoeracorajosoosuficienteparaquestionarasregrasquelheeram

dadas:apenasbuscavaamelhormaneiradesegui-las.Careciadeimaginação.Arendtdescreveu-

ocomorasoedesmiolado–emboraissotambémpudesseserumaatuação.Fosseeleum

monstro,teriasidohorripilante.Maspelomenososmonstrossãorarosegeralmentemuitofáceis

deidentificar.Oquetalvezfosseaindamaishorripilanteeraofatodeeleparecertãonormal.

Eleeraumhomemcomumque,pornãoquestionaroquefazia,fezpartedeumdosatosmais

malignosconhecidopelahumanidade.Époucoprovávelquesetornasseumhomemmaucasonão

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tivessevividonaAlemanhanazista.Ascircunstânciasestavamcontraele.Eleobedeciaaordens

imorais.Eobedeceraordensnazistas,naopiniãodeArendt,eraomesmoqueapoiarasolução

final.Aonãoquestionaroquelhediziamparafazereaoaceitaraquelasordens,Eichmann

participoudoassassinatoemmassa,mesmoque,dopontodevistadele,estivesseapenascriando

tabelasdehorárioparaaspartidasdetrem.Emdeterminadomomentodojulgamento,elechegou

adizerqueagiadeacordocomateoriadodevermoraldeImmanuelKant–comosetivessefeito

acoisacertaporseguirordens.ElenãoconseguiuentenderdejeitonenhumqueKantacreditava

quetratarossereshumanoscomrespeitoedignidadeerafundamentalparaamoral.

KarlPopperfoiumintelectualvienensequetevesortesuficienteparaescapardo

holocaustoedostrensbemorganizadosdeEichmann.

CAPÍTULO36

Aprendendocomoserros

KARLPOPPERETHOMASKUHN

Em1666,umjovemcientistaestavasentadoemumjardimquandoumamaçãcaiunochão.Issoo

levouapensarporqueasmaçãscaíamdiretamenteparabaixoemvezdeiremparaoladoou

paracima.OcientistaeraIsaacNewton,eoincidenteinspirou-oaelaborarateoriada

gravidade,umateoriaqueexplicavaomovimentotantodosplanetasquantodasmaçãs.Maso

queaconteceudepois?VocêachaqueNewtonreuniuevidênciasque-semsombradedúvidas

quesuateoriaeraverdadeira?Não,segundoKarlPopper(1902-1994).

Oscientistas,assimcomotodosnós,aprendemcomseuserros.Aciênciaavançaquando

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percebemosquedeterminadomododepensarsobrearealidadeéfalso.Isso,emduasfrases,era

avisãodeKarlPopperdecomofuncionaamelhoresperançadahumanidadeemrelaçãoao

conhecimentosobreomundo.AntesdePopperdesenvolversuasideias,amaioriadaspessoas

acreditavaqueoscientistaspartemdeumpressentimentosobrecomoomundofuncionaedepois

reúnemevidênciasquemostramqueopressentimentoestavacorreto.

Oqueoscientistasfazem,segundoPopper,étentarprovarquesuasteoriassãofalsas.

Paratestarumateoria,éprecisoverseelapodeserrefutada(apresentadacomofalsa).Um

cientistatípicocomeçacomumcorajosopalpiteouconjunturaqueeletentadestruircomuma

sériedeexperimentosouobservações.Aciênciaéumempreendimentocriativoeestimulante,

masnãoprovaquealgoéverdadeiro–tudooqueelafazéselivrardefalsasvisõese,espera-

se,aproximar-segradativamentedaverdadenesseprocesso.

PoppernasceuemVienaem1902.Emborasuafamíliatenhaseconvertidoaocristianismo,

eleeradescendentedejudeus.QuandoHitlersubiuaopodernadécadade1930,Popper

sabiamentesaiudopaís,mudando-separaaNovaZelândiaedepoisparaaInglaterra,ondese

estabeleceueassumiuumcargonaEscoladeEconomiadeLondres.Quandojovem,interessava-

seamplamenteporciência,psicologia,políticaemúsica,masafilosofiaerasuaverdadeira

paixão.Aofimdavida,Popperhaviafeitoimportantescontribuiçõestantoparaafilosofiada

ciênciaquantoparaafilosofiapolítica.

AtéPoppercomeçaraescreversobreométodocientífico,muitoscientistasefilósofos

acreditavamqueamaneiradefazerciênciaeraprocurarevidênciasquedessemsuporteasuas

hipóteses.Sequiséssemosprovarquetodososcisnessãobrancos,teríamosdefazerumasérie

deobservaçõesdecisnesbrancos.Setodososcisnesqueobservássemosfossembrancos,seria

razoávelpresumirqueahipótese“Todososcisnessãobrancos”fosseverdadeira.Essetipode

raciocíniovaide“Todososcisnesquevisãobrancos”paraaconclusão“Todososcisnessão

brancos”.Mascertamenteumcisnequenãofoiobservadopoderiasernegro.Hácisnesnegrosna

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Austrália,porexemplo,eemmuitoszoológicosdomundointeiro.Então,adeclaração“Todosos

cisnessãobrancos”nãoseguelogicamentedaevidência.Mesmoquevocêtenhavistomilhares

decisnesetodosfossembrancos,ahipóteseaindapoderiaserfalsa.Aúnicamaneiradeprovar

conclusivamentequetodossãobrancosévendotodososcisnes.Sepelomenosumcisnenegro

existe,aconclusão“Todososcisnessãobrancos”terásidorefutada.

Essaéumaversãodoproblemadaindução,sobreoqualDavidHumeescreveunoséculo

XVIII.Éafontedoproblema.Adeduçãoéumtipodeargumentológiconoqual,seaspremissas

(suposiçõesiniciais)sãoverdadeiras,aconclusãodeveserverdadeira.Então,paratomarum

exemplofamoso,“Todososhomenssãomortais”e“Sócrateséumhomem”sãoduaspremissas

verdadeirasapartirdasquaissededuzaconclusão“Sócratesémortal”.Seriaumacontradição

sedisséssemosque“Todososhomenssãomortais”eque“Sócrateséumhomem”,mas

negássemosaverdadedadeclaração“Sócratesémortal”.Seriacomodizer“Sócrateséenãoé

mortal”.Umadasmaneirasdepensarnaquestãoéque,comadedução,adeduçãodaverdadeda

conclusãoestádealgumaformacontidanaspremissas,ealógicasimplesmentearevela.

Vejamosoutroexemplodededução:

Primeirapremissa:Todosospeixestêmguelras.

Segundapremissa:Johnéumpeixe.

Conclusão:Logo,Johntemguelras.

Seriaabsurdodizerqueaprimeiraeasegundapremissassãoverdadeiras,masa

conclusãoéfalsa.Seriacompletamenteilógico.

Ainduçãoémuitodiferentedisso.Ainduçãonormalmentepartedeumaseleçãode

observaçõesparaumaconclusãogeral.Sepercebemosquenasúltimasquatrosemanaschoveu

todaterça-feira,podemosgeneralizarapartirdissoquesemprechoveàsterças-feiras.Esseseria

umcasodeindução.Sóseriaprecisoumaterça-feirasemchuvaparadestruiraafirmaçãodeque

semprechoveàsterças-feiras.Quatroterças-feiraschuvosasconsecutivassãoumaamostra

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pequenadetodasasterças-feiraspossíveis.Masmesmoquefizéssemosmuitasemuitas

observações,comofaríamoscomoscisnesbrancos,poderíamosnosfrustrarpelaexistênciade

umúnicocasoquenãoseencaixassenageneralização:umaterça-feirasecaouumcisnequenão

fossebranco,porexemplo.Esseéoproblemadaindução,oproblemadajustificativabaseadano

métododainduçãoquandoparecetãoduvidosa.Comosabemosqueopróximocopod’águaque

bebermosnãovainosenvenenar?Resposta:todososcoposd’águaquebebemosnopassado

eramnormais.Dessemodo,presumimosqueodeagoratambémserá.Usamosessetipode

raciocíniootempotodo,emborapareçaquenãoestamoscompletamenteembasadospara

acreditarnele.Pressupomospadrõesnanaturezaquetantopodemquantonãopodemserreais.

Sevocêachaqueaciênciaavançapelaindução,comomuitosfilósofospensavam,então

precisaencararoproblemadaindução.Comoaciênciapodesebasearemumestilode

raciocíniotãoduvidoso?AvisãodePopperdecomoaciênciasedesenvolveprimorosamentese

esquivadesseproblema.Segundoele,aciêncianãoconfianaindução.Oscientistaspartemde

umahipótese,umpalpiteinteligentesobreanaturezadarealidade.Umexemplopoderiaser

“Todososgasesseexpandemquandoaquecidos”.Essaéumahipótesesimples,masaciênciada

vidarealenvolvemuitacriatividadeeimaginaçãonesseestágio.Oscientistasencontramsuas

ideiasemmuitoslugares:oquímicoAugustKekulé,porexemplo,teveumsonhofamosonoqual

umacobramordiaoprópriorabo,oquedeuaeleaideiaparaahipótesedequeaestruturada

moléculadebenzenoéumanelhexagonal–hipóteseque,desdeentão,sobreviveàstentativasda

ciênciadeprová-lacomofalsa.

Oscientistas,então,encontramummododetestartaishipóteses–nessecaso,pegando

umaquantidadeenormedediferentesgaseseaquecendo-os.Entretanto,“testar”nãosignifica

encontrarevidênciasparasustentarahipótese;testarsignificatentarprovarqueahipótesepode

sobreviveratentativasderefutá-la.Teoricamente,oscientistasprocurarãoumgásquenãose

encaixenahipótese.Lembre-sedeque,nocasodoscisnes,sóseriaprecisoumcisnenegropara

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arruinarageneralizaçãodequetodososcisnessãobrancos.Demaneirasemelhante,sóseria

precisoumúnicogásquenãoexpandissequandoaquecidoparadestruirahipótesedeque

“Todososgasesseexpandemquandoaquecidos”.

Seumcientistarefutaumahipótese–ouseja,mostraqueelaéfalsa–,issoresultaemum

conhecimentonovo:oconhecimentodequeahipóteseéfalsa.Ahumanidadeavançaporque

aprendemosalgumacoisa.Observarváriosgasesqueseexpandemquandoaquecidosnãonos

daráconhecimento–exceto,talvez,umpoucomaisdeconfiançaemnossahipótese.Masum

contraexemplorealmentenosensinaalgo.ParaPopper,acaracterísticaprincipaldequalquer

hipóteseéterdeserrefutável.Eleusavaessaideiaparaexplicaradiferençaentreciênciaeo

quechamavade“pseudociência”.Umahipótesecientíficaéaquelaquepodeserprovadacomo

errada:elafazprediçõesquepodemsermostradascomofalsas.Seeudigo“Háfadasinvisíveis

eindetectáveismefazendodigitarestafrase”,nãohánenhumaobservaçãoquepossamosfazer

paraprovarqueaminhadeclaraçãoéfalsa.Seasfadassãoinvisíveisenãodeixamrastro

nenhum,nãohácomomostrarqueaafirmaçãodequeelasexistemsejafalsa.Elanãoérefutável

e,porissonão,podeserumadeclaraçãocientífica.

Popperpensavaquemuitasdeclaraçõesfeitassobreapsicanálise(verCapítulo30)não

podiamserrefutadasdessaforma.Paraele,nãoerapossíveltestá-las.Porexemplo,sealguém

dizquetodossãomotivadospordesejosinconscientes,nãoháumtestequeproveisso.Todae

qualquerevidência,inclusiveanegaçãodaspessoasdequesãomotivadaspordesejos

inconscientes,são,segundoPopper,meramenteaceitascomoprovasdequeapsicanáliseé

válida.Opsicanalistadirá:“Ofatodenegarmosoinconscientedemonstraquetemosumforte

desejoinconscientedecontestaropai”.Contudo,essadeclaraçãonãopodesertestada,poisnão

háevidênciaimaginávelquemostrequeelaéfalsa.Consequentemente,argumentavaPopper,a

psicanálisenãoeraumaciência.Elanãopodenosdarconhecimentotalcomopodeaciência.

Popperatacouasexplicaçõesmarxistasdahistóriadamesmamaneira,argumentandoquetodo

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resultadopossívelcontariacomomaisumelementoafavordavisãodequeahistóriada

humanidadeéumahistóriadelutadeclasses.Outravez,ahistóriaerabaseadaemhipótesesnão

refutáveis.

Emcontraste,ateoriadeAlbertEinsteindequealuzeraatraídapelosolerarefutável.

Issofezdelaumateoriacientífica.Em1919,observaçõesdaaparenteposiçãodasestrelas

duranteumeclipsesolarnãoconseguiramrefutá-la.Maspoderiamterrefutado.Aluzdasestrelas

nãoeranormalmentevisível;porém,sobascondiçõesrarasdeumeclipse,oscientistas

conseguiramverqueasaparentesposiçõesdosplanetaseramasposiçõesprevistaspelateoria

deEinstein.Seosplanetasparecessemestaremoutrolugar,issodestruiriaateoriadeEinstein

decomoaluzéatraídaporcorposmuitopesados.Poppernãopensavaqueessasobservações

provavamqueateoriadeEinsteineraverdadeira.Masofatodeateoriapodersertestadaeo

fatodequeoscientistasforamincapazesdemostrarqueelaerafalsacontamaseufavor.

Einsteinfezprevisõesquepoderiamestarerradas,masnãoestavam.

MuitoscientistasefilósofosficaramprofundamenteabaladoscomadescriçãodePopper

dométodocientífico.PeterMedawar,ganhadordoPrêmioNobeldeMedicina,porexemplo,

disse:“PensoqueKarlPopperéincomparavelmenteomaiorfilósofodaciênciadetodosos

tempos”.Oscientistasgostavamparticularmentedadescriçãodesuaatividadecomocriativae

imaginativa;elestambémsentiamquePopperhaviaentendidocomoelesdefatorealizavamseu

trabalho.OsfilósofostambémficaramencantadospelomodocomoPoppercontornouodifícil

problemadaindução.Em1962,noentanto,ohistoriadordaciênciaefísiconorte-americano

ThomasKuhnpublicouumlivrochamadoAestruturadasrevoluçõescientíficas,quecontava

umahistóriadiferentearespeitodosavançoscientíficos,sugerindoquePoppertinhaentendido

tudoerrado.KuhnacreditavaquePoppernãohaviaexaminadoobastanteahistóriadaciência.

Seotivesse,teriavistosurgirumpadrão.

Namaiorpartedotempo,ocorreoquechamamosde“ciêncianormal”.Oscientistas

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trabalhamdeacordocomumquadrodereferênciaou“paradigma”compartilhadopelos

cientistasdamesmaépoca.Então,porexemplo,antesdeaspessoasentenderemqueaTerragira

aoredordosol,oparadigmaeradequeosolgiravaaoredordaTerra.Osastrônomos

pesquisavamdeacordocomessequadrodereferênciaetinhamexplicaçõesparatodasas

evidênciasquenãoseencaixavamnessequadro.Trabalhandoconformeesseparadigma,um

cientistacomoCopérnico,quepropôsaideiadequeaTerragiravaaoredordosol,teriasido

vistocomoalguémqueerrounoscálculos.SegundoKuhn,láforanãoháfatosesperandoserem

descobertos;aocontrário,oquadrodereferênciaouparadigma,atécertoponto,determinaoque

podemospensar.

AscoisasficaminteressantesquandoaconteceoqueKuhnchamavade“mudançade

paradigma”.Umamudançadeparadigmaacontecequandotodoummododepensamentoé

derrubado.Issopodeacontecerquandooscientistasencontramfatosquenãoseencaixamno

paradigmaexistente–comoobservaçõesquenãofazemsentidonoparadigmadequeosolgira

aoredordaTerra.Mesmoassim,podelevarumbomtempoparaqueaspessoasabandonemseu

antigomododepensar.Oscientistasquepassaramavidatrabalhandosegundoumparadigma

geralmentenãorecebemcomtantafacilidadeummododiferentedeolharomundo.Quandopor

fimelesmudamparaumnovoparadigma,umnovoperíododeciêncianormalpodecomeçar,

dessaveztrabalhando-sedeacordocomoquadrodereferência.Eassimtudoprossegue.Foi

issooqueaconteceuquandoavisãodequeaTerraeraocentrodouniversofoisuperada.

Quandoaspessoascomeçaramapensarsobreosistemasolardessamaneira,foiprecisofazer

muitaciêncianormalparaentenderocaminhodosplanetasaoredordosol.

NãoédesurpreenderquePoppernãotenhaconcordadocomessaexplicaçãodahistória

daciência,emboraconcordassequeoconceitode“ciêncianormal”fosseútil.Umaquestão

intriganteéseelefoiumcientistacomumparadigmaultrapassadoousechegoumaispertoda

verdadesobrearealidadedoqueKuhn.

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Oscientistasusamexperimentosreais;osfilósofos,poroutrolado,tendemacriar

experimentosmentaisparatornarseusargumentosplausíveis.AsfilósofasPhilippaFooteJudith

JarvisThomsondesenvolveramváriosexperimentosmentaiscuidadosamenteconstruídosque

revelamimportantescaracterísticasdonossopensamentomoral.

CAPÍTULO37

Otremdesenfreadoeoviolinistaindesejado

PHILIPPAFOOTEJUDITHJARVISTHOMSON

Umdia,vocêsaiparapassearevêumtremdesenfreadoindonadireçãodecincotrabalhadores.

Omaquinistaestáinconsciente,provavelmenteportersofridouminfarto.Senadaforfeito,todos

morrerão.Otrempassaráporcimadeles,poisestáindorápidodemaisenãohaverátempode

saíremdocaminho.Noentanto,háumaesperança.Háumabifurcaçãonostrilhospoucoantesde

ondeestãooscincohomens,enaoutralinhaháapenasumtrabalhador.Vocêestábempertoda

chavequemudaosentidodostrilhos,demodoqueotremmudededireçãoemateapenasum

trabalhadoremvezdecinco.Mataressehomeminocenteéacoisacertaafazer?Emtermosde

quantidade,claramenteé:vocêsalvacincopessoasemataapenasuma.Issomaximizariaa

felicidade.Paraamaioriadaspessoas,essaéacoisacertaafazer.Navidareal,seriamuito

difícilvirarachaveeverumapessoamorrercomoresultado,masseriaaindapiornãofazer

nadaevernadamenosquecincopessoasseremmortas.

Estaéumaversãodeumexperimentomentaloriginalmentecriadopelafilósofabritânica

PhilippaFoot(1920-2010).Elaestavainteressadaemsaberporquesalvarcincopessoasnos

trilhoseraaceitáveleporque,emoutroscasos,sacrificarumapessoaparasalvarmuitasnãoera

aceitável.Imagineumapessoasaudávelentrandonaaladeumhospital.Ládentrohácinco

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pessoasqueprecisamdesesperadamentedeváriosórgãos.Seumadelasnãoreceberum

transplantedecoração,certamentemorrerá.Aoutraprecisadeumfígado,outradeumrime

assimpordiante.Seriaaceitávelmataropacientesaudávelefatiarocorpodeleparaforneceros

órgãosparaospacientesnãosaudáveis?Dificilmente.Ninguémacreditaqueseriaaceitável

matarapessoasaudável,tirarocoração,ospulmões,ofígado,osrinseimplantá-losnasoutras

cinco.Noentanto,esseéumcasodesacrificarumparasalvarcinco.Qualadiferençadessecaso

paraoexemplodotrem?

Umexperimentomentaléumasituaçãoimagináriacriadaparadespertarsentimentos,ouo

queosfilósofoschamamde“intuições”,sobredeterminadaquestão.Osfilósofosfazemamplo

usodeles.Osexperimentosmentaispermitemquenosconcentremosbemmaisnoqueestáem

jogo.Aqui,aquestãofilosóficaé:“Quandoéaceitávelsacrificarumavidaparasalvarmais

vidas?”.Ahistóriasobreotrempermite-nospensarsobreisso.Elaisolaosprincipaisfatorese

tambémnosmostrasesentimosounãoquetalaçãosejaerrada.

Algumaspessoasdiriamquevocêjamaisdeveriavirarachavenesseexemploporque

seriaomesmoque“brincardeDeus”:decidirquemmorreequemdeveviver.Amaioriadas

pessoas,noentanto,achaquevocêdeveriasimvirarachave.

Agoraimagineumcasorelacionado.Afilósofanorte-americanaJudithJarvisThomson

criououtraversãodoproblemaoriginal.Otremagoracorrenumaúnicalinhaquevaidiretoaté

oscincoinfelizestrabalhadoresquecertamenteserãomortos,anãoserquevocêfaçaalguma

coisa.Vocêestáemcimadeumaponte,epertodevocêháumhomembemgordo.Eleépesadoo

suficienteparaqueotremdesacelereepareantesdeatingiroscincohomens,masparaissovocê

precisaempurrá-lodaponte.Supondoquevocêconsigaempurrá-lonafrentedotrem,vocêo

faria?

Amaioriadaspessoasachaqueesseéumcasomaisdifíciletendeadizer“não”,apesar

dofatodeque,tantonessecasoquantonodabifurcaçãoedachavequepodealteraradireção

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dostrilhos,aconsequênciadassuasaçõeséamortedeumapessoa,enãodecinco.Naverdade,

empurrarohomemdaponteassemelha-seaumassassinato.Seasconsequênciassãoasmesmas

nosdoiscasos,entãonãodeveriaserumproblema.Senoprimeiroexemploforcorretomudara

chave,certamentedeveriasercorretoempurrarohomemnafrentedotremnosegundoexemplo.

Issoparececonfuso.

Seasituaçãoimagináriadeempurraralguémsobreumapontesugeredificuldadesfísicas,

ousevocêéimpedidopelabrutalidadedeterempurrarohomemparaamorte,ocasopodeser

revistodemodoquehajaumalçapãonaponte.Usandoomesmotipodealavancaqueno

primeirocasocomachavedetrocadostrilhos,vocêpodejogarohomemnocaminhodotrem

comomínimoesforço.Bastaencostaramãonaalavanca.Muitaspessoasveemesseexemplo

comomoralmentedistantedabifurcaçãonostrilhos.Porquê?

Achamadaleidoduploefeitoéumaexplicaçãodeporquepensamosqueocasoda

bifurcaçãonostrilhosédiferentedocasodohomemgordo.Trata-sedacrençadequenãohá

problemas,porexemplo,embateremalguématéamortedesdequesejaparasedefenderquando

nadapodeprotegervocê.Osefeitoscolateraisprevisíveisdeumaaçãocomboaintenção(nesse

caso,salvarasimesmo)podemseraceitáveis,masomalpropositalnão.Nãoécertoenvenenar

alguémqueestáplanejandomatarvocê.Noprimeirocaso,háumaintençãoaceitável,sóque

executaraaçãocausaráamortedeumapessoa.Nosegundocaso,vocêpretendemataralguém,o

quenãoéaceitável.Paraalgumaspessoas,issoresolveoproblema.Outraspessoasjápensam

queoprincípiododuploefeitoéumerro.

Talvezessescasospareçammuitoforçadosenãotenhamnenhumarelaçãocomavida

cotidiana.Emcertosentido,éverdade.Essescasosnãopretendemserreais.Sãoapenas

experimentosmentaisfeitosparaesclarecernossascrenças.Porém,detemposemtempos,

surgemsituaçõesnavidarealquelevamadecisõessemelhantes.Porexemplo,duranteaSegunda

GuerraMundial,osnazistasatirarambombasemdeterminadaspartesdeLondres.Umespião

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alemãotornou-seagenteduplo.Osbritânicostinhamachancedeenviarinformaçõesequivocadas

paraosalemães,dizendoqueosfoguetesestavamcaindobemanortedosalvospretendidos.O

efeitodissoseriaqueosalemãesmudariamoalvoe,emvezdeosfoguetescaírememáreas

muitopopulosasdeLondres,elescairiammaisaosul,sobreopovodeKenteSurrey.Emoutras

palavras,issocausariaamortedemenospessoas.Nessecaso,osbritânicosdecidiramnão

brincardeDeus.

Emumtipodiferentedesituaçãoreal,osparticipantesdecidiramagir.Nodesastrede

Zeebruggeem1987,quandoumaembarcaçãoafundouedezenasdepassageiroslutavamparasair

domargélido,umrapazquesubianumaescadadecordasbuscandosegurançaficouparalisado

detantomedoenãoconseguiacontinuar.Eleficouparadonamesmaposiçãoporpelomenosdez

minutos,impedindoquetodososoutrossaíssemdomar.Seaspessoasnãosaíssemdomar

rapidamente,ouseafogariamoumorreriamdefrio.Porfim,quemestavanaáguaopuxouda

escadaeconseguiuescaparemsegurança.Orapazcaiunaáguaemorreuafogado.Devetersido

angustiantetomaradecisãodepuxarorapazdaescada,masnessascondiçõesextremas,comono

exemplodotrem,sacrificarumapessoaparasalvarmuitasprovavelmentefoiacoisacertaa

fazer.

Osfilósofosaindaestãodiscutindooexemplodotremesobrecomoeledeveriaser

resolvido.ElestambémdiscutemumoutroexperimentomentalquefoielaboradoporJudith

JarvisThomson(nascidaem1929).Elaqueriamostrarqueumamulherqueengravidoumesmo

usandocontraceptivosnãotinhaodevermoraldedarseguimentoàgravidezeterobebê.

Abortar,nessecaso,nãoseriaagirdeformamoralmenteerrada.Terobebênessascircunstâncias

seriaumatodecaridade,masnãoumdever.Tradicionalmente,osdebatessobreamoralidadedo

abortoconcentraram-senopontodevistadofeto.Oargumentodelafoirelevanteporterdado

grandeimportânciaàperspectivadamulher.Vejamosoexemplo.

Imagineumfamosoviolinistaquetemumproblemanorim.Suaúnicachancede

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sobreviveréserconectadoaumapessoaquetemomesmotiporarodesangue.Vocêtemo

mesmotipodesangue.Umamanhã,vocêacordaedescobreque,enquantodormia,osmédicos

conectarameleaosseusrins.Thomsondizque,nessasituação,vocênãotemodeverdemantê-lo

ligadoavocê,muitoemborasaibaqueelemorrerásevocêpuxarostubos.Damesmamaneira,

sugereela,seumamulherengravidamesmousandocontraceptivos,ofetoemdesenvolvimento

nãotemodireitoautomáticodeusarocorpodela.Ofetoécomooviolinista.

AntesdeThomsonapresentaresseexemplo,muitaspessoasachavamqueaquestãocentral

era“Ofetoéumapessoa?”.Acreditava-seque,sepudessesermostradoqueumfetoerauma

pessoa,entãooabortoobviamenteseriaimoralemqualquercaso.Oexperimentomentalde

Thomsonsugereque,mesmosendoofetoumapessoa,issonãoresolveaquestão.

Obviamente,nemtodosconcordamcomessaresposta.Algumaspessoasaindaacreditam

quenãodevemosbrincardeDeusseacordarmoscomumviolinistaconectadoaosnossosrins.

Seriaumavidadifícil,anãoserquerealmenteamássemososomdoviolino.Masaindaseria

erradomataroviolinistamesmoquenãotenhamosescolhidoajudá-lo.Domesmomodo,muitas

pessoasacreditamquejamaisumagravidezsaudáveldeveriaserinterrompidaseamulhernão

tivesseaintençãodeengravidareusassecontraceptivos.Esseinteligenteexperimentomental,

entretanto,trazàtonaosprincípiosquesubjazemaessesdesacordos.

OfilósofopolíticoJohnRawlstambémusouumexperimentomental,emseucasopara

investigaranaturezadajustiçaeosmelhoresprincípiosparaorganizarasociedade.

CAPÍTULO38

Justiçapormeiodaignorância

JOHNRAWLS

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Talvezvocêsejarico.Talvezsejasuper-rico.Masamaioriadenósnãoérica,ealgumas

pessoassãotãopobresquepassamamaiorpartedesuacurtavidafamintasedoentes.Issonão

parecejustooucorreto–ecertamentenãooé.Sehouvesseaverdadeirajustiçanomundo,

nenhumacriançaestariafamintaenquantooutrastêmtantodinheiroquesequersabemoquefazer

comele.Todososdoentesteriamacessoabonstratamentosmédicos.OspobresdaÁfricanão

seriampioresdoqueospobresdosEstadosUnidosoudaGrã-Bretanha.OsricosdoOcidente

nãoseriammilharesdevezesmaisricosdoqueaquelesnascidosemdesvantagemsemterculpa

porisso.Justiçadizrespeitoatrataraspessoasdemaneirarazoável.Hápessoasaonossoredor

cujavidaérepletadecoisasboas,eoutrasque,semterculpa,têmpoucasescolhassobreomodo

comosobrevivem:nãopodemescolheroprópriotrabalho,nemmesmoacidadeondequerem

viver.Algumaspessoasquepensamnessasdesigualdadessimplesmentedizem“Ah,sim,avida

nãoéjusta”ebalançamosombros.Emgeral,essaspessoasforamparticularmentesortudas;

outraspassarãootempopensandoemcomoasociedadepoderiasermaisbemorganizadae

talvezatétentemmelhorá-la.

JohnRawls(1921-2002),acadêmicotranquiloemodestodeHarvard,escreveuumlivro

quemudouomododeaspessoaspensaremnessascoisas.Olivrochama-seUmateoriada

justiça(1971)efoioresultadodequasevinteanosdedurasreflexões.Trata-sedeumtextofeito

porumprofessorparaoutrosprofessoreseescritoemumestiloacadêmicobastanteseco.

Diferentementedamaioriadasobrasdessetipo,noentanto,elenãoficoujuntandopoeiranuma

biblioteca–longedisso.Tornou-seumcampeãodevendas.Decertaforma,éimpressionanteque

tantaspessoasotenhamlido.Contudo,suasideiasprincipaiseramtãointeressantesqueolivro

foirapidamentedeclaradoumdosmaisinfluentesdoséculoXX,tendosidolidoporfilósofos,

advogados,políticosemuitosoutros–algoqueopróprioRawlsjamaisteriasonhadoser

possível.

RawlslutounaSegundaGuerraMundialeestavanoPacíficonodia6deagostode1945

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quandoabombaatômicafoilançadasobreacidadejaponesadeHiroshima.Rawlsfoi

profundamenteafetadopeloquevivenciounaguerraeacreditavatersidoerradoousodearmas

nucleares.Comomuitosqueviveramnaqueleperíodo,elequeriacriarummundomelhor,uma

sociedademelhor.Masessamaneiradeprovocaramudançaestavanopensamentoenaescrita,e

nãoemseengajaracausasougrupospolíticos.EnquantoescreviaUmateoriadajustiça,a

guerradoVietnãestavaemfúria,eimensosprotestosantiguerra–nemsemprepacíficos–

aconteciamnosEstadosUnidos.Rawlsescolheuescreveracercadequestõesabstratasgerais

sobrejustiçaemvezdeseenredarpelasquestõesdomomento.Nocoraçãodesuaobraestavaa

ideiadequeprecisamossaberclaramentecomoviverjuntoseasmaneiraspelasquaisoEstado

influencianossasvidas.Paraquenossaexistênciasejasuportável,precisamoscooperar.Mas

como?

Imaginequevocêtenhadecriarumasociedadenovaemelhor.Umadasperguntasafazer

poderiaser“Quemficacomoquê?”.Sevocêmoranumabelamansãocompiscinaeempregados

etemumjatinhoparticularprontoparalevá-loaumailhatropical,provavelmenteimaginaum

mundoemquealgumaspessoassãomuitoricas–talvezasquetrabalharammais–eoutrasão

muitomaispobres.Sevocêestávivendonapobrezaagora,provavelmentepensaránuma

sociedadeemqueninguémpodesermilionário,umasociedadeemquetodosganhamuma

parcelaigualdoqueestádisponível:jatinhosparticularesnãosãopermitidos,mashámelhores

chancesparaaspessoasdesafortunadas.Anaturezahumanaéassim:aspessoastendemapensar

emsuaposiçãoquandodescrevemummundomelhor,querpercebamissoounão.Essespré-

juízosepreconceitosdistorcemopensamentopolítico.

AideiabrilhantedeRawlsfoicriarumexperimentomental–queelechamoude“a

posiçãooriginal”–quesubestimaalgunsdospreconceitosegoístasquetemos.Aideiacentralé

bastantesimples:criarumasociedademelhor,massemsaberqualposiçãonessasociedadevocê

ocupará.Vocênãosabeseserárico,pobre,deficiente,deboaaparência,homem,mulher,feio,

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burroouinteligente,talentosoousemhabilidades,homossexual,bissexualouheterossexual.Ele

acreditaque,dessemodo,vocêescolheráprincípiosmaisjustosportrásdesseimaginário“véu

daignorância”,poisnãosabeemqualposiçãoestariaouquetipodepessoaseria.Apartirdesse

simplesrecursodeescolhersemsaberoseuprópriolugar,Rawlsdesenvolveusuateoriada

justiça.Talteoriaerabaseadaemdoisprincípios:liberdadeeigualdade.Eleacreditavaque

ambosseriamaceitosporqualquerpessoarazoável.

Oprimeiroprincípioeraodaliberdade.Segundoele,todasaspessoasdeveriamtero

direitoaumamargemdeliberdadesbásicasquenãopudessemsertiradasdelas,comoa

liberdadedecrença,dovotonoslídereseaamplaliberdadedeexpressão.Mesmoquerestringir

algumasdessasliberdadesmelhorasseavidadamaioriadaspessoas,Rawlsacreditavaqueelas

eramtãoimportantesquedeveriamserprotegidasacimadetudo.Comotodososliberais,Rawls

atribuíaumaltovaloraessasliberdadesbásicas,quedeveriamserumdireitodetodos,um

direitoqueninguémpoderiatirardeninguém.

OsegundoprincípiodeRawls,oprincípiodadiferença,tratadaigualdade.Asociedade

deveriaserorganizadaparadaroportunidadeseriquezasmaisiguaisparaosmaisdesprovidos.

Seaspessoasrecebessemdiferentesquantidadesdedinheiro,essadesigualdadesóseria

permitidaseajudassediretamenteosquemaisprecisavam.Umbanqueirosópodeganhar10mil

vezesmaisdoqueotrabalhadorqueganhamenosseestesebeneficiardiretamenteereceberuma

quantidademaiordedinheiroquenãoteriaseobanqueirorecebessemenos.SeRawlsestivesse

nogoverno,ninguémganhariabônusaltos,excetoseosmaispobresganhassemmaisdinheiro

comoresultado.Rawlsacreditaqueesseéotipodemundoqueaspessoasrazoáveis

escolheriamsenãosoubessemseseriampobresouricas.

AntesdeRawls,filósofosepolíticosquepensaramsobrequemdeveriateroquemuitas

vezesdefenderamumasituaçãoqueproduziriaamédiamaisaltaderiqueza.Querdizer,algumas

pessoaspoderiamsersuper-ricas,outrasmoderadamentericasepoucasmuitopobres.Mas,para

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Rawls,essasituaçãoseriapiorqueaquelaemquenãohouvessesuper-ricos,massimemque

todostivessemumaparcelamaisigual,mesmoqueaquantidademédiaderiquezafossemenor.

Essaéumaideiadesafiadora–principalmenteparaquemécapazdeganharaltossalários

nomundocomoéhoje.RobertNozick(1938-2002),outroimportantefilósofopolíticonorte-

americano,maisvoltadoparaopoliticamentecorretodoqueRawls,questionouessaideia.

Certamente,osfãsquevãoassistiraumbrilhantejogadordebasquetedeveriamserlivrespara

darumapequenapartedodinheirodoingressoparaaquelejogador.Édireitodelasgastarseu

dinheirodessamaneira.E,semilhõesdepessoasforemvê-lo,ojogadoracabaráganhando

milhões–honestamente,pensavaNizick.Rawlsdiscordavatotalmentedessavisão.Anãoser

queomaispobrefiquemaisricocomoresultadodesseacordo,argumentavaRawls,nãoseria

permitidoqueosganhospessoaisdojogadordebasquetechegassemataisníveis.Demaneira

controversa,Rawlsacreditavaqueserumatletatalentosoouumsujeitoextremamenteinteligente

nãodáautomaticamentedireitodeobterganhosaltíssimosporque,emparte,eleacreditavaque

atributoscomohabilidadesesportivaseinteligênciafossemumaquestãodeboasorte.Vocênão

merecemaissimplesmenteporquetevesortesuficienteparaserocorredormaisrápidoouum

grandejogadordefuteboloumuitoesperto.Terotalentodeumatletaouserinteligenteéo

resultadodeterganhadona“loterianatural”.MuitaspessoasdiscordamenfaticamentedeRawls

eacreditamqueaexcelênciadeveriaserrecompensada.Noentanto,Rawlspensavaquenão

havialigaçãodiretaentreserbomemalgumacoisaemerecerganharmais.

Maseseportrásdovéudaignorânciaalgumaspessoaspreferissemsearriscar?Ese

pensassemqueavidaeraumaloteriaequisessemtercertezadequeháalgumasposições

atraentesaseremocupadasnasociedade?Supostamente,osapostadorescorreriamoriscode

acabarnapobrezasetivessemachancedeserextremamentericos.Portanto,elesprefeririamum

mundocomumavariedademaisampladepossibilidadeseconômicasàqueledescritoporRawls.

Rawlsacreditavaqueaspessoasrazoáveisnãoapostariamaprópriavidadessamaneira.Talvez

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estivesseerradoquantoaisso.

DurantegrandepartedoséculoXX,aspessoasperderamocontatocomosgrandes

filósofosdopassado.Umateoriadajustiça,deRawls,foiumadaspouquíssimasobrasde

filosofiapolíticaescritanoséculoquevaleapenasermencionadacomomesmofôlegoqueas

obrasdeAristóteles,Hobbes,Locke,Rousseau,HumeeKant.OpróprioRawlsteriasidomuito

modestoparaconcordarcomisso.Seuexemplo,noentanto,inspirouumageraçãodefilósofos

queescrevemhoje,inclusiveMichaelSandel,ThomasPogge,MarthaNussbaumeWill

Kymlicka:todosacreditamqueafilosofiadeveriaenvolver-secomquestõesprofundasedifíceis

sobrecomopodemosedevemosviverjuntos.Aocontráriodealgunsfilósofosdageração

anterior,elesnãotêmmedodetentarrespondê-lasedeestimularamudançasocial.Eles

acreditamqueafilosofia,naverdade,deveriamudarnossamaneiradeviver,enãoapenasmudar

nossomododediscutircomovivemos.

OutrofilósofoquesustentaessetipodevisãoéPeterSinger.Eleéoassuntodoúltimo

capítulodestelivro.Porém,antesdeexaminarmossuasideias,exploraremosumaquestãoque

vemsetornandomuitopertinentenosdiasdehoje:“Oscomputadorespodempensar?”.

CAPÍTULO39

Oscomputadorespodempensar?

ALANTURINGEJOHNSEARLE

Vocêestásentadonumasala.Nelaháumaportacomumacaixadecorreio.Devezemquando,

umatiradepapelcomumrabiscodesenhadopassapelaportaecainotapete.Suatarefaé

procurarodesenhoemumlivroqueestásobreamesadasala.Cadarabiscotemumsímbolo

correspondentenolivro.Vocêprecisaencontrarorabisconolivro,olharosímboloquelhe

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correspondeedepoisencontrarumatiradepapelcomomesmosímboloemumacaixa.

Cuidadosamentevocêcolocaessatiradepapelparaforadasalapelacaixadecorreio.Éisso.

Vocêfazissoduranteumtempoeentãoseperguntaoqueestáacontecendo.

Esteéoexperimentodoquartochinês,criaçãodofilósofonorte-americanoJohnSearle

(nascidoem1932).Trata-sedeumasituaçãoimagináriaparamostrarqueumcomputadornão

poderealmentepensar,mesmoquepareçaestarpensando.Paraentenderoqueestáacontecendo,

éprecisoentenderotestedeTuring.

AlanTuring(1912-1954)foiumdestacadomatemáticodeCambridgequeajudoua

inventarocomputadormoderno.Suasmáquinasdeprocessamentonuméricoconstruídasdurante

aSegundaGuerraMundialemBletchleyPark,Inglaterra,decifraramocódigo“Enigma”usado

peloscomandantesdesubmarinosalemães.Dessemodo,osaliadosconseguiaminterceptaras

mensagensesaberoqueosnazistasestavamplanejando.

Intrigadopelaideiadequeumdiaoscomputadorespoderiamfazermaisdoque

simplesmentedecifrarcódigosedequepoderiamsergenuinamenteinteligentes,em1950ele

sugeriuumtestepeloqualqualquercomputadorteriadepassar.Essetesteficouconhecidocomo

testedeTuringparainteligênciaartificial,maseleochamouoriginalmentedejogodaimitação.

Otestevemdesuacrençadequeointeressantedocérebronãoéofatodeteraconsistênciade

ummingaufrio.Suafunçãoimportamuitomaisdoquesuaflacidezquandoremovidodacabeça

ouofatodesercinza.Oscomputadorespodemserdurosefeitosdecomponenteseletrônicos,

masmesmoassimpodemfazermuitascoisasqueoscérebrosfazem.

Quandojulgamosseumapessoaéounãointeligente,julgamoscombasenasrespostasque

elasdãoadeterminadasperguntas,enãoabrindoseucérebroparavercomoosneurôniosestão

reunidos.Portanto,éjustoque,quandojulguemososcomputadores,prestemosatençãonas

evidênciasexternas,enãonomodocomosãoconstruídos.Devemosprocurarinputseoutputs,e

nãosangueenervosouosfiosetransistoresdentrodeles.EisoqueTuringsugeriu.Um

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examinadorficaemumasala,digitandoumaconversanatela.Oexaminadornãosabeseestá

conversandopelatelaounãocomalguémqueestejaemoutrasala,ouseéocomputadorque

geraasrespostas.Seduranteaconversaoexaminadornãoconseguirperceberseháumser

humanorespondendo,ocomputadorpassanotestedeTuring.Seeumcomputadorpassanoteste,

entãoérazoáveldizerqueéinteligente–nãosódemaneirametafórica,comotambémdamaneira

queumserhumanopodeserinteligente.

OexemplodoquartochinêsdeSearle–ocenáriocomosrabiscosescritosnastirasde

papel–quermostrarque,mesmoseumcomputadorpassassenotestedeTuringparaa

inteligênciaartificial,ficariaprovadoqueelenãoentendegenuinamentenada.Lembre-sedeque

vocêestánessequartocomsímbolosestranhosquepassampelacaixadecorreioequedepois

vocêpassaoutrossímbolosdevoltapelamesmacaixaeéguiadoporumlivroderegras.Para

você,atarefanãotemsentido,evocênãofazideiadeporqueaestáexecutando.Contudo,sem

perceber,vocêestárespondendoperguntasemchinês.Vocêsófalaportuguêsenãosabe

absolutamentenadadechinês,masossinaisquechegamàsalasãoperguntasemchinês,eos

sinaisquevocêdevolvesãorespostasplausíveisparaasperguntas.Oquartochinêsnoqualvocê

estáganhaojogodaimitação.Vocêdárespostasquelevariamquemestáláforaapensarque

vocêrealmenteentendeoqueestáfalando.Assim,issolevaacrerqueumcomputadorquepassa

notestedeTuringnãoénecessariamenteinteligente,postoquenasalavocênãotemamenor

ideiadoqueestásendodiscutido.

Searleachaqueoscomputadoressãocomoalguémdentrodoquartochinês.Elesnãosão

inteligentesenãoconseguempensar.Tudooquefazeméreorganizarsímbolosseguindoregras

programadasnelesporseuscriadores.Osprocessosqueusamestãoincorporadosnosoftware.

Masissoémuitodiferentedeentenderverdadeiramentealgumacoisaoudeterumainteligência

genuína.Emoutraspalavras,aspessoasqueprogramamocomputadordãoaeleumasintaxe:ou

seja,fornecemregrassobreaordemcorretaemquedevemprocessarossímbolos.Porém,os

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programadoresnãodãoaocomputadorumasemântica:nãoatribuemsignificadosaossímbolos.

Ossereshumanosqueremdizercoisasquandofalam–seuspensamentosrelacionam-secomo

mundodediversasmaneiras.Oscomputadoresqueparecemquererdizercoisasestãoapenas

imitandoopensamentohumano,comosefossemumpapagaio.Pormaisqueumpapagaiopossa

imitarafala,elejamaiscompreenderáoqueestádizendo.Demaneirasemelhante,deacordo

comSearle,oscomputadoresnãopodemdefatoentenderoupensarsobrenada:nãosepode

obterasemânticasomenteapartirdasintaxe.

Ofatodelevaremcontaaquestãodeapessoanasalaentenderounãooqueestá

acontecendoéumdosmotivosdecríticaaoexperimentomentaldeSearle,poisapessoaé

apenasumapartedetodoosistema.Mesmoqueelanãoentendaoqueestáacontecendo,talvez

todoosistema(inclusiveasala,olivrodecódigos,ossímbolosetc.)entenda.Arespostade

Searleaessaobjeçãofoimudaroexperimentomental.Emvezdeimaginarumapessoaemuma

salareorganizandosímbolos,imaginequeapessoatenhamemorizadoolivrointeiroderegrase

estejaláforanomeiodeumcampoentregandoospapéiscomossímbolosapropriados.A

pessoacontinuariasementenderasperguntasindividuais,aindaquedesseasrespostascorretas

paraasperguntasfeitasemchinês.Entenderrequermuitomaisdoquedarasrespostascertas.

Algunsfilósofos,noentanto,continuamconvencidosdequeamentehumanaéexatamente

comoumprogramadecomputador:elesacreditamqueoscomputadoresrealmentepodempensar

epensam.E,seestiveremcertos,entãotalvezumdiasejapossíveltransferiramentedos

cérebrosdaspessoasparaoscomputadores.Sesuamenteéumprograma,sópelofatodeneste

momentoestarfuncionandonamassapastosadotecidocerebraldentrodacabeçanãosignifica

quenãopudessefuncionaremumgrandeebrilhantecomputadoremalgummomentofuturo.Se

comaajudadecomputadoressuperinteligentesalguémconseguirmapearosbilhõesdeconexões

funcionaisquecompõemnossamente,entãotalvezumdiasejapossívelsobreviveràmorte.

Nossamentepoderiasertransferidaparaumcomputadorparaquecontinuassefuncionando

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durantemuitotempodepoisqueocorpofosseenterradooucremado.Seessaseriaumaboa

maneiradeexistiréumaoutraquestão.SeSearleestivercerto,porém,nãohaveriagarantiade

queamentetransferidafosseconscientetalcomosomosagora,mesmoquedesserespostasque

parecessemmostrarquefosseconsciente.

Escrevendohámaisdesessentaanos,Turingjáestavaconvencidodequeoscomputadores

podiampensar.Seestivercerto,talveznãodemoretantoparaquevejamososcomputadores

pensandosobrefilosofia.Issoémaisprováveldeacontecerdoqueseremcapazesdefazernossa

mentesobreviveràmorte.Talvezumdiaoscomputadoresrealmentetenhamalgodeinteressante

adizersobreasquestõesfundamentaisdecomodeveríamosviveresobreanaturezada

realidade–tiposdequestõescomasquaisosfilósofoslidamhámilharesdeanos.Enquantoisso,

precisamosconfiarnosfilósofosdecarneeossoparaesclarecernossopensamentonessasáreas.

UmdosmaisinfluentesecontroversosdessesfilósofoséPeterSinger.

CAPÍTULO40

Omoscardomoderno

PETERSINGER

Imagine-seemumparqueondevocêsabequeháumlago.Vocêouveumbarulhonaáguae

depoisalguémgritando.Entãopercebequeumacriançacaiuetalvezestejaseafogando.Oque

vocêfaz?Fazdecontaquenãopercebeu?Aindaquetivesseprometidoencontrarumamigoeque

pararnocaminhofosseumatraso,vocêcertamenteconsiderariaavidadacriançamais

importantedoqueestarnohorário.Olagoébemraso,masmuitoturvo.Seajudaracriança,vai

destruiroseumelhorsapato.Masnãoesperequeosoutrosentendamsevocênãopular.Trata-se

deagircomoumserhumanoedevalorizaravida.Avidadeumacriançavalemuitomaisdoque

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qualquerpardesapatos,mesmoquesejamuitocaro.Qualquerpessoaquepensediferenteéum

monstro.Vocêpularianaágua,nãopularia?Éclaroquesim.Mas,poroutrolado,você

provavelmenteéricoobastanteparaevitarqueumacriançamorradefomeoudeumadoença

tropicalincurávelnaÁfrica.Éprovávelqueissonãocustemuitomaisqueopreçodosapatoque

vocêestáprestesaestragarporsalvaracriançanolago.

Porquevocênãoajudouasoutrascrianças–supondoquenãotenhaajudado?Doarum

poucodedinheiroparacaridadesalvariapelomenosumavida.Hádiversasdoençasinfantisque

podemfacilmenteserevitadascomumaquantiarelativamentepequenadedinheiroparapagar

vacinaseoutrosmedicamentos.MasporquevocênãosenteporalguémquemorrenaÁfricaa

mesmacoisaquesenteporumacriançaqueseafogadiantedevocê?Sevocêsenteamesma

coisa,éalguémincomum.Amaioriadenósnãosente,mesmoquefiquemoslevemente

envergonhadosporisso.

OfilósofoaustralianoPeterSinger(nascidoem1946)defendeuqueacriançaqueseafoga

diantedevocêeacriançaquepassafomenaÁfricanãosãotãodiferentes.Devemosnos

importarmaisdoquenosimportamoscomaquelesquepodemossalvarnomundointeiro.Senão

fizermosalgo,ascriançasquepoderiamvivercertamentevãomorrer.Issonãoéumpalpite.

Sabemosqueéverdade.Sabemosquemilharesdecriançasmorremtodososanosdecausas

relacionadasàpobreza.Algumasmorremdefomeenquantonós,empaísesdesenvolvidos,

jogamosforaalimentosqueapodrecemnorefrigeradorantesdeseremconsumidos.Alguns

sequertêmáguapotávelparabeber.Portanto,deveríamosabrirmãodealgunsluxosdeque

realmentenãoprecisamosparaajudaraspessoasquenãotiveramsortedenascernoslugaresem

quenasceram.Éumafilosofiadifícildeseguir.MasissonãosignificaqueSingerestavaerrado

sobreoquedevemosfazer.

Talvezvocêdigaque,senãoderdinheiroparacaridade,provavelmentealguémdará.O

risconessecasoédetodosnósvirarmosespectadores,cadaumpartindodopressupostodeque

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ooutrofaráoqueénecessário.Hátantaspessoasnomundointeirovivendonaextremapobrezae

indoparaacamatodososdiasfamintasque,sedeixarmosacaridadeparapoucos,dificilmente

essaspessoasterãosuasnecessidadessatisfeitas.Éclaroqueémuitomaisfácilperceberuma

pessoaaoajudarmosumacriançaqueseafogadiantedenós.Comoosofrimentodasoutras

criançasaconteceempaísesdistantes,podesermaisdifícilperceberosefeitosdoquefazemose

osefeitosdasaçõesdeoutraspessoas.Masissonãosignificaquenãofazernadasejaamelhor

solução.

Relacionadoaessepontoestáomedodedardinheiroparaauxiliarpaísesestrangeiros,o

quetornaospobresdependentesdosricoseimpedequeencontremseucaminhoparaproduziros

própriosalimentoseconstruirasprópriasmoradias.Comopassardotempo,issopodedeixaras

coisasaindapioresdoquesenãodermosnada.Háexemplosdepaísesinteirosquesetornaram

dependentesdaajudaestrangeira.Noentanto,issonãoquerdizerquenãodevemoscolaborar

comacaridade,massimquedevemospensarseriamentenostiposdeajudaqueessas

instituiçõesoferecem.Algunstiposdeajudamédicabásicapodemdaraospobresumaboa

chancedesetornaremindependentesdoauxílioestrangeiro.Háprogramasquesãomuitobons

emensinaraspessoasnativasaajudaremumasàsoutras,construindopoçosquefornecemágua

potáveloufornecendoeducaçãoemsaúde.OargumentodeSingernãoquerdizerque

simplesmentedevemosdardinheiroparaajudarosoutros,massimquedeveríamoscontribuir

comasinstituiçõesdecaridadequemaisprovavelmentebeneficiarãoosmaisfrágeis

economicamentedemodoqueganhemforçasparaviverdemaneiraindependente.Amensagem

deleéclara:équasecertoquevocêpossaterumainfluênciagenuínanavidadeoutraspessoas.

Edeveria.

Singeréumdosfilósofosvivosmaisconhecidos,emparteporterdesafiadodiversas

ideiasamplamenteaceitas.Algumasdesuascrençassãoextremamentecontroversas.Muitas

pessoasacreditamnoabsolutocarátersagradodavidahumana–queésempreerradomataroutro

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serhumano.Singernão.Sealguémestáemumestadovegetativopersistenteeirreversível,por

exemplo–ouseja,seapessoasóestávivacomocorpo,nãotemestadosconscientes

significativosnemchancederecuperaçãoouesperançaparaofuturo–,Singeracreditaquea

eutanásiaouoassassinatomisericordiosopossamserapropriados.Nãohátantopropósitoem

manterapessoavivanesseestado,acreditaele,poiselanãotemcapacidadedeterprazernem

escolhercomoquerviver.Nãotemumfortedesejoparacontinuarvivendo,jáqueéincapazde

terqualquerdesejo.

Essasvisõesfizeramdeleumsujeitomalquistoemvárioslugares,chegandoaserchamado

denazistapordefenderaeutanásianessascircunstânciasespecíficas–apesardofatodeseus

paisseremjudeusvienensesquefugiramdosnazistas.Esseinsultorefere-seaofatodequeos

nazistasmatarammilharesdedoentesedepessoasfísicaementalmenteincapazes,alegandoque

suasvidasnãovaliamapenaservividas.Noentanto,seriaerradochamaroprogramanazistade

“assassinatomisericordioso”ou“eutanásia”,poiselenãotinhaointuitodeevitarosofrimento

desnecessário,massimdeselivrardaquelesqueosnazistasdescartavamcomo“bocasinúteis”

porqueeramincapazesdetrabalhareporquesupostamenteestavamcontaminandoaraçaariana.

Nãohavianenhumsensode“misericórdia”nisso.Singer,aocontrário,estáinteressadona

qualidadedevidadessaspessoasecertamentejamaisteriaapoiadoaspolíticasnazistasem

qualquernível–pormaisquealgunsdeseusoponentescaricaturemsuasvisõesparaque

pareçamsemelhantesàsideiasnazistas.

Singerficoufamosoporcausadeseusinfluenteslivrossobreotratamentodosanimais,

principalmenteLibertaçãoanimal,publicadoem1975.NoiníciodoséculoXIX,Jeremy

Benthamdefendiaanecessidadedelevarmosasérioosofrimentoanimal,masnadécadade

1970,quandoSingercomeçouaescreversobreoassunto,poucosfilósofosviamaquestãodessa

maneira.Singer,assimcomoBenthameMill(verCapítulos21e24),éumconsequencialista.

Issoquerdizerqueeleacreditaqueamelhoraçãoéaquelaqueproduzomelhorresultado.E,

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paracalcularomelhorresultado,precisamoslevaremcontaquaissãoosmelhoresinteressesde

todasaspessoasenvolvidas,inclusiveosinteressesdosanimais.AssimcomoBentham,Singer

acreditaqueacaracterísticamaisrelevanteparaamaioriadosanimaiséasuacapacidadede

sentirdor.Comosereshumanos,muitasvezesvivenciamosumsofrimentomaiordoqueum

animalsofreriaemsituaçãosemelhanteporquetemosacapacidadederaciocinareentendero

quenosacontece.Issotambémprecisaserlevadoemconta.

Singerchamouaspessoasquenãodãomuitaimportânciaparaosinteressesdosanimaisde

“especistas”.Écomoserracistaousexista.Oracistatrataosmembrosdesuaprópriaraçade

maneiraespecial.Elenãodáaosmembrosdeoutrasraçasoquemerecem.Umracistabranco,

porexemplo,oferecetrabalhoparaoutrapessoabranca,mesmoquehajaumapessoanegramais

bemqualificadaconcorrendoaocargo.Issoénitidamenteerradoeinjusto.Oespecismoécomo

oracismo.Surgedofatodesóvermosaperspectivadaprópriaespécie,oudesermos

extremamentepreconceituososafavordela.Comosereshumanos,muitosdenóssópensamnos

outrossereshumanosquandodecidimosoquefazer.Masissoéerrado.Osanimaispodem

sofrer,eseusofrimentodeveriaserlevadoemconta.

Darigualrespeitonãosignificatratartodaespécieanimalexatamentedamesmaforma.

Issonãofarianenhumsentido.Sebatermosnolombodeumcavalocomamãoaberta,

provavelmenteelenãosentirámuitador,poisoscavalostêmapelegrossa.Contudo,sefizermos

omesmocomumserhumano,provocaremosumadorintensa.Massebatêssemosnocavalocom

forçasuficienteparacausarneleamesmadorquecausaríamosaobateremumbebêdormindo,

asduasatitudesseriammoralmenteerradas.Obviamente,nãodeveríamospraticarnenhuma

delas.

Singeracreditaquetodosnósdeveríamosservegetarianos,eseuargumentobaseia-seno

fatodequefacilmentepoderíamosvivermuitobemsemcomeranimais.Amaiorparteda

produçãodealimentosqueusaanimaisprovocasofrimento,ealgumasatividadesagropecuárias

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sãotãocruéisquecausamumadorintensaaosanimais.Galinhascriadasemfábricas,por

exemplo,sãomantidasemgaiolasminúsculas,algunsporcoscrescememestábulostãopequenos

quenãoconseguemsevirareoprocessodematarogadocostumaserextremamenteperturbador

edolorosoparaeles.Singerafirmaquenãopodesermoralmentecorretodeixarqueessetipode

atividadecontinue.Alémdisso,outrasformashumanasdecriaranimaissãodesnecessárias,pois

podemosfacilmenteviversemcomercarne.Fielaseusprincípios,Singerchegouapublicarem

umdosseuslivrosumareceitadedahlparaencorajarosleitoresabuscaralternativasàcarne.

Animaisdegranjanãosãoosúnicosquesofremnasmãosdossereshumanos.Oscientistas

usamanimaisemsuaspesquisas.Enãosãosóratoseporquinhos-da-índia–gatos,cães,

macacoseatéchimpanzéspodemserencontradosemlaboratórios,muitosdelespassandopor

sofrimentosterríveisenquantosãodrogadosourecebemeletrochoques.Singertemumtestepara

versequalquerpesquisaémoralmenteaceitável:estaríamosprontosparaexecutaromesmo

experimentoemumserhumanocomlesãocerebral?Senão,acreditaele,nãoécorretofazero

experimentocomumanimalemnívelsemelhantedeconsciênciamental.Trata-sedeumteste

rígido,epouquíssimosexperimentospassariamporele.Naprática,então,Singeréduramente

contraousodeanimaisempesquisas.

TodaaabordagemdeSingeràsquestõesmoraisébaseadanaideiadeconsistência,ou

seja,tratarcasossemelhantesdamesmamaneira.Éumaquestãodelógica:seéerradomaltratar

sereshumanosporqueissoprovocador,entãoadordosoutrosanimaistambémdeveriaafetar

nossomododeagir.Semaltratarumanimalprovocamaisdordoquemaltratarumserhumano,

entãoémelhormaltrataroserhumanosetivermosdeescolher.

Singercorreriscosquandotornapúblicasdeclaraçõessegundoasquaisdeveríamosviver

talcomoSócrateshámuitosanos.Houveprotestoscontraalgumasdesuasconferências,eelejá

foiameaçadodemorte.Noentanto,Singerrepresentaamelhortradiçãoemfilosofiaeestá

constantementedesafiandosuposiçõesamplamenteaceitas.Suafilosofiaafetaamaneiracomo

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vive,eeleestásemprepreparadotantoparacontestarasopiniõesdaspessoasdequemdiscorda

quantoparaseenvolveremdiscussõespúblicas.

MaisimportantedoqueissoéofatodeSingerdefendersuasconclusõescomargumentos

fundamentadoseapoiadosporfatosbempesquisados.Vocênãoprecisaconcordarcomas

conclusõesdeleparapercebersuasinceridadecomofilósofo.Afilosofia,afinaldecontas,

prosperacomodebate.Elaavançaquandoaspessoasassumemposiçõescontráriase

argumentamusandoalógicaeaevidência.SevocêdiscordadasvisõesdeSingersobreostatus

moraldosanimais,porexemplo,ousobreascircunstânciasemqueaeutanásiaémoralmente

aceita,aindaháumagrandechancedealeituradoslivrosdelelevarvocêapensar

profundamentesobresuasprópriascrençaseemcomoelassãoapoiadasporfatos,razõese

princípios.

Afilosofiacomeçacomquestõesdelicadasedesafioscomplicados;commoscardoscomo

PeterSingernafilosofia,háumagrandechancedequeoespíritodeSócratescontinuemoldando

seufuturo.

Textodeacordocomanovaortografia.

Títulooriginal:ALittleHistoryofPhilosophy

Tradução:RogérioBettoni

Ilustraçõesdacapaemiolo:JeffreyThompson

Preparação:ElisângelaRosadosSantos

Revisão:PatríciaYurgel

Cip-Brasil.CatalogaçãonaFonte

SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ

W228b

Warburton,Nigel,1962-

Umabrevehistóriadafilosofia/NigelWarburton;[traduçãodeRogérioBettoni].–Porto

Page 209: Uma breve história da Filosofia · sofistas, professores sagazes que treinavam os estudantes na arte da retórica e cobravam muito caro por isso. Sócrates, em contrapartida, não

Alegre,RS:L&PM,2012.

Traduçãode:ALittleHistoryofPhilosophy

ISBN978.85.254.2736-6

1.Filosofia-História.2.Filósofos.I.Título.

12-2042.CDD:190

CDU:1

©2011,NigelWarburton

TodososdireitosdestaediçãoreservadosaL&PMEditores

RuaComendadorCoruja314,loja9–Floresta–90220-180

PortoAlegre–RS–Brasil/Fone:51.3225.5777–Fax:51.3221.5380

Pedidos&Depto.comercial:[email protected]

Faleconosco:[email protected]

www.lpm.com.br

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DocumentOutline

Capítulo1-Ohomemqueperguntava(SócratesePlatão)Capítulo2-Averdadeirafelicidade(Aristóteles)Capítulo3-Nãosabemosnada(Pirro)Capítulo4-OJardim(Epicuro)Capítulo5-Aprendendoanãoseimportar(Epiteto,Cícero,Sêneca)Capítulo6-Somosmarionetesdequem?(SantoAgostinho)Capítulo7-AconsolaçãodaFilosofia(Boécio)Capítulo8-Ailhaperfeita(AnselmoeAquino)Capítulo9-Araposaeoleão(NicolauMaquiavel)Capítulo10-Sórdida,embrutecidaecurta(ThomasHobbes)Capítulo11-Estaríamossonhando?(RenéDescartes)Capítulo12-Façamsuasapostas(BlaisePascal)Capítulo13-Opolidordelentes(BaruchEspinosa)Capítulo14-Opríncipeeosapateiro(JohnLockeeThomasReid)Capítulo15-Oelefantecinza(GeorgeBerkeleyeJohnLocke)Capítulo16-Omelhordetodososmundospossíveis?(VoltaireeGottfriedLeibniz)Capítulo17-Orelojoeiroimaginário(DavidHume)Capítulo18-Nascemoslivres(Jean-JacquesRousseau)Capítulo19-Realidadecor-de-rosa(ImmanuelKant[1])Capítulo20-Esetodosfizessemisso?(ImmanuelKant[2])Capítulo21-Contentamentoprático(JeremyBentham)Capítulo22-AcorujadeMinerva(GeorgW.F.Hegel)Capítulo23-Vislumbresderealidade(ArthurSchopenhauer)Capítulo24-Espaçoparacrescer(JohnStuartMill)Capítulo25-Designnãointeligente(CharlesDarwin)Capítulo26-Ossacrifíciosdavida(SørenKierkegaard)Capítulo27-Trabalhadoresdomundo,uni-vos!(KarlMarx)Capítulo28-Edaí?(C.S.PeirceeWilliamJames)Capítulo29-AmortedeDeus(FriedrichNietzsche)Capítulo30-Pensamentosdisfarçados(SigmundFreud)Capítulo31-OatualreidaFrançaécareca?(BertrandRussell)Capítulo32-Boo!Hooray!(AlfredJulesAyer)Capítulo33-Aangústiadaliberdade(Jean-PaulSartre,SimonedeBeauvoireAlbertCamus)Capítulo34-Enfeitiçadopelalinguagem(LudwigWittgenstein)Capítulo35-Ohomemquenãofaziaperguntas(HannahArendt)Capítulo36-Aprendendocomoserros(KarlPoppereThomasKuhn)Capítulo37-Otremdesenfreadoeoviolinistaindesejado(PhilippaFooteJudithJarvisThomson)Capítulo38-Justiçapormeiodaignorância(JohnRawls)Capítulo39-Oscomputadorespodempensar?(AlanTuringeJohnSearle)Capítulo40-Omoscardomoderno(PeterSinger)

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TableofContentsCapítulo1-Ohomemqueperguntava(SócratesePlatão)Capítulo2-Averdadeirafelicidade(Aristóteles)Capítulo3-Nãosabemosnada(Pirro)Capítulo4-OJardim(Epicuro)Capítulo5-Aprendendoanãoseimportar(Epiteto,Cícero,Sêneca)Capítulo6-Somosmarionetesdequem?(SantoAgostinho)Capítulo7-AconsolaçãodaFilosofia(Boécio)Capítulo8-Ailhaperfeita(AnselmoeAquino)Capítulo9-Araposaeoleão(NicolauMaquiavel)Capítulo10-Sórdida,embrutecidaecurta(ThomasHobbes)Capítulo11-Estaríamossonhando?(RenéDescartes)Capítulo12-Façamsuasapostas(BlaisePascal)Capítulo13-Opolidordelentes(BaruchEspinosa)Capítulo14-Opríncipeeosapateiro(JohnLockeeThomasReid)Capítulo15-Oelefantecinza(GeorgeBerkeleyeJohnLocke)Capítulo16-Omelhordetodososmundospossíveis?(VoltaireeGottfriedLeibniz)Capítulo17-Orelojoeiroimaginário(DavidHume)Capítulo18-Nascemoslivres(Jean-JacquesRousseau)Capítulo19-Realidadecor-de-rosa(ImmanuelKant[1])Capítulo20-Esetodosfizessemisso?(ImmanuelKant[2])Capítulo21-Contentamentoprático(JeremyBentham)Capítulo22-AcorujadeMinerva(GeorgW.F.Hegel)Capítulo23-Vislumbresderealidade(ArthurSchopenhauer)Capítulo24-Espaçoparacrescer(JohnStuartMill)Capítulo25-Designnãointeligente(CharlesDarwin)Capítulo26-Ossacrifíciosdavida(SørenKierkegaard)Capítulo27-Trabalhadoresdomundo,uni-vos!(KarlMarx)Capítulo28-Edaí?(C.S.PeirceeWilliamJames)Capítulo29-AmortedeDeus(FriedrichNietzsche)Capítulo30-Pensamentosdisfarçados(SigmundFreud)Capítulo31-OatualreidaFrançaécareca?(BertrandRussell)Capítulo32-Boo!Hooray!(AlfredJulesAyer)Capítulo33-Aangústiadaliberdade(Jean-PaulSartre,SimonedeBeauvoireAlbertCamus)Capítulo34-Enfeitiçadopelalinguagem(LudwigWittgenstein)Capítulo35-Ohomemquenãofaziaperguntas(HannahArendt)Capítulo36-Aprendendocomoserros(KarlPoppereThomasKuhn)Capítulo37-Otremdesenfreadoeoviolinistaindesejado(PhilippaFooteJudithJarvisThomson)Capítulo38-Justiçapormeiodaignorância(JohnRawls)Capítulo39-Oscomputadorespodempensar?(AlanTuringeJohnSearle)Capítulo40-Omoscardomoderno(PeterSinger)