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CAPÍTULO1
Ohomemqueperguntava
SÓCRATESEPLATÃO
Hácercade2.400anos,emAtenas,umhomemfoicondenadoàmorteporperguntardemais.
Houvefilósofosantesdele,masfoicomSócratesqueoassuntorealmentedespontou.Sea
filosofiatemumsantopadroeiro,Sócrateséoseunome.
Denarizachatado,rechonchudo,malvestidoeumpoucoestranho,Sócrateseraumsujeito
deslocado.Emborafossefeioenãotomassebanhocomfrequência,eletinhaumgrandecarismae
umamentebrilhante.TodosemAtenasconcordavamquenuncaexistiualguémcomoelee
provavelmentejamaisexistiria.Eleeraúnico.Mastambémeraextremamenteinoportuno.Elese
consideravaumdaquelesinsetosdepicadadolorosa,ummoscardo.Sãoirritantes,masnão
causamdanostãosérios.Noentanto,nemtodosemAtenasconcordavamcomisso.Algunso
amavam;outrosoconsideravamumainfluênciaperigosa.
Quandojovem,SócratesfoiumbravosoldadoquelutounaGuerradoPeloponesocontra
osespartanoseseusaliados.Quandoatingiuameia-idade,eleperambulavapelaágora,parava
aspessoasdetemposemtemposefaziaperguntasembaraçosas.Issoeramaisoumenostudoo
quefazia.Porém,suasperguntaseramafiadíssimas:pareciamsimples,masnãoeram.
UmexemploseriaaconversadelecomEutidemo.Sócratesperguntou-lheseserenganador
correspondiaaserimoral.“Éclaroquesim”,respondeuEutidemo,oqueparaeleerauma
obviedade.“Maseseumamigoestivessemuitotristeequisessesematar,evocêroubasse-lhea
faca?Nãoseriaesteumatoenganador?”,perguntouSócrates.“Sim,comtodacerteza”.“Mas
fazerissonãoseriamoralemvezdeimoral?Trata-sedeumacoisaboa,nãoruim–emboraseja
umatoenganador”,disseSócrates.“Sim”,respondeuEutidemo,queaessaalturajáhaviametido
ospéspelasmãos.Sócrates,aousarumcontraexemplo,mostrouqueocomentáriogeralde
Eutidemodequeserenganadoréimoralnãoseaplicaatodasassituações.Eutidemonão
perceberaissoantes.
RepetidasvezesSócratesdemonstrouqueaspessoasqueencontravanaágorarealmente
nãosabiamoquepensavamsaber.Umcomandantemilitardariainícioaumaconversaestando
totalmentecertodequesabiaoquesignificavaa“coragem”,mas,depoisdevinteminutosna
companhiadeSócrates,iriaemboratotalmenteconfuso.Aexperiênciadeveriaser
desconcertante.Sócratesadoravarevelaroslimitesdoqueaspessoasentendiamgenuinamente,
bemcomoquestionarassuposiçõesqueserviamdebaseparasuasvidas.Paraele,eraum
sucessoquandoumaconversachegavaaofimeaspessoaspercebiamoquãopoucosabiam.Algo
muitomelhordoquecontinuarmosacreditandoqueentendemosalgoquandonaverdadenão
entendemos.
Naquelaépoca,emAtenas,osfilhosdosnobreseramenviadosparaestudarcomos
sofistas,professoressagazesquetreinavamosestudantesnaartedaretóricaecobravammuito
caroporisso.Sócrates,emcontrapartida,nãocobravaporseusserviços.Defato,elediziaque
nãosabiadenada,entãocomopoderiaensinar?Issonãoimpediaqueosestudanteso
procurassemeouvissemsuasconversas,mastampoucootornavabenquistoentreossofistas.
Umdia,seuamigoQuerefonteconsultouoOráculodeDelfos.Ooráculoeraumavelha
sábia,querespondiaperguntasfeitaspelosvisitantes.Suasrespostasgeralmentetinhamaforma
deumenigma.“ExistealguémmaissábioqueSócrates?”,perguntouQuerefonte.“Não”,foia
resposta.“NinguémémaissábioqueSócrates.”
Aprincípio,SócratesnãoacreditouquandoQuerefontecontou-lheoocorridoeficou
bastanteconfuso.“ComopossoserohomemmaissábiodeAtenasquandoseitãopouco?”,
pensouele.Sócratespassouanosquestionandoaspessoasparaversealguémeramaissábioque
ele.Porfim,entendeuoqueooráculoquisdizerequeavelhaestavacerta.Muitaspessoaseram
boasemváriascoisasquefaziam–carpinteiroserambonsemcarpintaria,soldadoserambons
naartedaluta.Masnenhumadessaspessoaseraverdadeiramentesábia.Elasrealmentenão
sabiamdoqueestavamfalando.
Otermo“filósofo”origina-sedaspalavrasgregasquesignificam“amoràsabedoria”.A
tradiçãofilosóficaocidental,aquelaqueestelivrosegue,espalhou-sepordiversaspartesdo
mundoapartirdaGréciaantiga,àsvezesfertilizadaporideiasdoOriente.Otipodesabedoria
queelavalorizaébaseadonoargumento,noraciocínioeemperguntas,enãoemacreditarnas
coisassimplesmenteporquealguémimportantenosdissequesãoverdade.ParaSócrates,a
sabedorianãoerateroconhecimentodediversosfatosousabercomofazeralgo.Asabedoria
significavaentenderaverdadeiranaturezadanossaexistência,inclusiveoslimitesdoque
podemossaber.OsfilósofosdehojeagemmaisoumenosdamaneiracomoSócratesagia:fazem
perguntasrigorosas,buscamrazõeseevidências,lutampararesponderalgumasdasquestões
maisimportantesquepodemosfazersobreanaturezadarealidadeesobrecomodevemosviver.
AocontráriodeSócrates,noentanto,osfilósofosmodernostêmobenefíciodetercomobase
praticamente2.500anosdepensamentofilosófico.Estelivroexaminaideiasdealgunsdos
principaispensadoresqueescreveramnessatradiçãodopensamentoocidental,umatradiçãoque
teveiníciocomSócrates.
OquefaziadeSócratestãosábioeraofatodecontinuarfazendoperguntasedeestar
sempredispostoadebatersuasideias.Avida,declaravaele,sóvaleapenaservividaquando
pensamosnoqueestamosfazendo.Umaexistênciasemanáliseéadequadaparaogado,masnão
paraossereshumanos.
Sócratesrecusou-seaescreverqualquercoisa,oqueéincomumparaumfilósofo.Para
ele,falareramelhordoqueescrever.Palavrasescritasnãopodemreplicar;nãopodemnos
explicarnadaquandonãoasentendemos.Aconversafrenteafrenteeramuitomelhor,diziaele.
Duranteumaconversa,podemoslevaremcontaotipodepessoacomquemconversamos;
podemosalteraroquedizemosparaqueamensagemsejacompreendida.Comoeleserecusavaa
escrever,ésobretudopormeiodaobradePlatão,seuprincipalpupilo,quetemosumaboaideia
sobreoqueessehomemnotávelfalavaenoqueacreditava.Platãoregistrouumasériede
conversasentreSócrateseaspessoasquequestionava.Essesescritossãoconhecidoscomo
diálogosplatônicoseconstituemgrandesobrastantodeliteraturaquantodefilosofia–decerta
forma,PlatãofoioShakespearedesuaépoca.Lendoessesdiálogos,temosumanoçãodecomo
eraSócratesedoquantoeleerainteligenteeexasperador.
Naverdade,nãosetratadeumatarefatãosimples,poisnemsemprepodemosdistinguirse
PlatãoestavaescrevendooqueSócratesrealmentedisseouseestavacolocandosuaspróprias
ideiasnabocadeumpersonagemqueelechamoude“Sócrates”.
UmadasideiasqueamaioriadaspessoasacreditaserdePlatãoenãodeSócrateséade
queomundonãoéoquerealmentepareceser.Háumadiferençasignificativaentreaparênciae
realidade.Amaioriadenósconfundeaparênciascomrealidade.Pensamosqueentendemos,mas
nãoentendemos.Platãoacreditavaquesomenteosfilósofosentendemcomoomundo
verdadeiramenteé.Emvezdeconfiarnossentidos,elesdescobremanaturezadarealidadepelo
pensamento.
Paradefenderisso,Platãodescreveumacaverna.Nessacavernaimaginária,hápessoas
acorrentadasviradasparaumaparede.Diantedelas,aspessoasveemsombrastrêmulasque
acreditamcorresponderàscoisasreais.Masnãosão.Oqueveemsãosombrasprojetadaspor
objetosconduzidosnafrentedeumafogueiraqueficaláatrás.Essaspessoaspassaramavida
inteirapensandoqueassombrasprojetadasnaparedesãoomundoreal.Atéqueumdossujeitos
selibertadascorrentesesegueemdireçãoaofogo.Seusolhosficamturvosaprincípio,mas
depoiselecomeçaaverondeestá.Caminhaaostropeçosparaforadacavernae,porfim,
consegueolharparaosol.Quandoelevoltaparaacaverna,ninguémacreditanoqueelediz
sobreomundoláfora.Ohomemqueselibertaécomoofilósofo:elevêalémdasaparências.As
pessoascomunsnãotêmmuitanoçãodarealidadeporquesecontentamemolharoqueestá
diantedelasemvezderefletirprofundamentesobreascoisas.Contudo,asaparênciassão
enganadoras.Oqueveemsãosombras,nãoarealidade.
Essahistóriadacavernaestáligadaaoqueficariaconhecidocomoateoriaplatônicadas
formas.Amaneiramaisfácildecompreendê-laécomumexemplo.Penseemtodososcírculos
quejáviunavida.Algumdeleseraumcírculoperfeito?Não.Nenhumdeleseraumcírculo
absolutamenteperfeito.Emumcírculoperfeito,todosospontosdacircunferênciasão
equidistantesdopontocentral.Círculosreaisnuncaalcançamesseêxito.Contudo,vocêentende
oqueeudissequantouseiaspalavras“círculoperfeito”.Entãooqueéessecírculoperfeito?
Platãodiriaqueaideiadeumcírculoperfeitoéaformadeumcírculo.Paraentendermosoqueé
umcírculo,precisamosnosconcentrarnaformadocírculo,enãonoscírculosexistentesque
traçamoseexperimentamospelosentidodavisão,poistodossãoimperfeitosdealgumamaneira.
Igualmente,segundoPlatão,sequisermoscompreenderoqueéabondade,precisamosnos
concentrarnaformadabondade,enãoemexemplosparticularesquetestemunhamos.Os
filósofossãoosmaisapropriadosparapensarsobreasformasnessesentidoabstrato;aspessoas
comunssãoinduzidasaoerropelomundoquandooapreendempelossentidos.
Comoosfilósofossãobonsempensarsobrearealidade,Platãoacreditavaqueeles
deveriamestarnogovernoedetertodoopoderpolítico.EmARepública,suaobramaisfamosa,
eledescreveumasociedadeimagináriaperfeita.Osfilósofosestariamnotopoeteriameducação
especial,massacrificariamseusprópriosprazeresemnomedoscidadãosquegovernavam.
Abaixodelesestariamossoldadostreinadosparadefenderopaíseabaixodelesestariamos
trabalhadores.Platãoacreditavaqueessestrêsgruposdepessoasconfigurariamumequilíbrio
perfeito,comoumamentebem-equilibradacujaparteracionalmantivesseasemoçõeseos
desejoscontrolados.Infelizmente,seumodelodesociedadeeraprofundamenteantidemocráticoe
manteriaaspessoassobcontrolepormeiodacombinaçãodeforçaementiras.Grandepartedas
artesseriabanida,tendocomobasesuaideiadequeeramfalsasrepresentaçõesdarealidade.Os
pintoresretratavamaaparência,masasaparênciassãoenganadorasemrelaçãoàsformas.Cada
aspectodavidanarepúblicaidealdePlatãoseriaestritamentecontroladodecima.Éoquehoje
chamaríamosdeEstadototalitário.Platãopensavaquepermitirovotoaopovoeracomodeixar
queospassageirosguiassemumnavio–melhordeixarocomandoporcontadaquelesquesabem
oqueestãofazendo.
AAtenasdoséculoVa.C.erabemdiferentedasociedadequePlatãoimaginouemA
República.Eraumaespéciededemocracia,emborasomentedezporcentodapopulação
pudessemvotar.Mulhereseescravos,porexemplo,estavamautomaticamenteexcluídos.No
entanto,oscidadãoseramiguaisperantealei,ehaviaumelaboradosistemadesorteiospara
garantirquetodostivessemumachancejustadeinfluenciarasdecisõespolíticas.
AtenascomoumtodonãovalorizouSócratesdemodotãoexaltadoquantoPlatãoo
valorizou.Longedisso.MuitosateniensesacreditavamqueSócrateseraperigosoequeestava
deliberadamentedestruindoogoverno.Em399a.C.,quandoSócratesestavacomsetentaanosde
idade,Meletoolevouajulgamento.EleafirmouqueSócratesnegligenciavaosdeuses
atenienses,introduzindonovosdeusespróprios.EletambémsugeriuqueSócratesensinavaaos
jovensasecomportaremmal,encorajando-osasevoltaremcontraasautoridades.Ambasas
acusaçõeserambastantesérias.Édifícilsaberoquantoelaseramprecisas.TalvezSócrates
realmentedesencorajasseseusestudantesaseguirareligiãoestabelecida,eháalgumaevidência
dequeelegostavadezombardademocraciaateniense,oquecombinariacomseucaráter.O
certoéquemuitosateniensesacreditavamnasacusações.
Houveumavotaçãoparaconsiderá-loculpadoounão.Maisdametadedos501cidadãos
quecompunhamoimensojúrioconsiderouculpadoeosentenciouàmorte.Seelequisesse,
provavelmentepoderiatersedefendidoeevitadoaexecução.Contudo,emvezdisso,fielàsua
reputaçãodemoscardo,irritouaindamaisosateniensesargumentandoquenãofizeranadade
erradoequeelesdeveriam,naverdade,recompensá-locomrefeiçõesgratuitaspelorestoda
vidaemvezdepuni-lo.Masesseargumentonãofoibemaceito.
Elefoicondenadoàmorte,tendodetomarvenenofeitodecicuta,umaplantaqueparalisa
gradualmenteocorpo.Sócratesdespediu-sedaesposaedostrêsfilhos,depoisreuniuseus
estudantesaoredordesi.Setivessetidoaescolhadecontinuarvivendoemsilêncio,semfazer
maisperguntasaninguém,elenãoteriaaceitado.Preferiamorreraviverassim.Sócratestinha
umavozinteriorquelhediziaparacontinuarquestionandotudo,eelenãoatrairia.Então,tomou
umcálicedevenenoemorreulogodepois.
NosdiálogosdePlatão,noentanto,Sócratesaindavive.Essehomemdifícil,quecontinuou
fazendoperguntasepreferiumorreraparardepensarsobrecomoascoisasrealmentesão,tem
sidoumainspiraçãoparaosfilósofosdesdeaquelaépoca.
OimpactoimediatodeSócratesfoiexercidosobreaquelesqueocercavam.Alémde
Platão,outrograndepupilodeSócratesfoiAristóteles,umtipodepensadorbastantediferente.
CAPÍTULO2
Averdadeirafelicidade
ARISTÓTELES
“Umaandorinhasónãofazverão”.ProvavelmentevocêdevepensarqueessafraseédeWilliam
Shakespeareoudealgumoutrograndepoeta.Atépoderiaser.Masnaverdadeelaédeumlivro
deAristóteleschamadoÉticaaNicômaco,querecebeuessetítuloporserdedicadoaoseufilho,
Nicômaco.Aristótelesqueriadizerque,paraprovarqueoverãocomeçou,éprecisomaisde
umaandorinhaoumaisdeumdiaquente.Domesmomodo,pequenosprazeresnãorepresentama
verdadeirafelicidade.Paraele,afelicidadenãopassavadealegriamomentânea.
Surpreendentemente,eleacreditavaqueascriançasnãopodiamserfelizes,oquepareceum
absurdo.Seascriançasnãopodemserfelizes,quempode?Noentanto,issorevelaoquantosua
visãodefelicidadeeradiferentedanossa.Ascriançasestãoapenascomeçandoavivere,por
isso,nãotiveramumavidaplenaemnenhumsentido.Averdadeirafelicidade,argumentava
Aristóteles,exigiaumavidamaislonga.
AristótelesfoidiscípulodePlatão,quehaviasidodiscípulodeSócrates.Dessemodo,
essestrêsgrandespensadoresformamumacorrente:Sócrates-Platão-Aristóteles.Geralmente
funcionaassim:gêniosnãocostumamsurgirdonada.Amaioriadelesteveumprofessorque
serviudeinspiração.Masasideiasdessestrêssãobemdiferentesumasdasoutras.Cadauma
teveumaabordagemoriginal.Parasimplificar,Sócratesfoiumexcelentedialogador,Platãofoi
umescritorfenomenaleAristótelesinteressava-seportodasascoisas.SócratesePlatão
acreditavamqueomundoquevemoseraumpálidoreflexodaverdadeirarealidade,quesó
poderiaseralcançadapormeiodopensamentofilosóficoabstrato;Aristóteles,emcontrapartida,
erafascinadopelosdetalhesdetudoqueocercava.
Infelizmente,quasetodososescritosdeAristótelesquesobreviveramtêmaformade
anotaçõesdeaulas.Porém,essesregistrosdeseupensamentoaindaexercemumimpacto
gigantesconafilosofiaocidental,mesmoquemuitasvezesoestilodeescritasejafrio.
Aristótelesnãofoiapenasumfilósofo:eletambémerafascinadoporzoologia,astronomia,
história,políticaedrama.
AristótelesnasceunaMacedôniaem384a.C.DepoisdeestudarcomPlatão,viajare
trabalharcomotutordeAlexandre,oGrande,elefundouaprópriaescolaemAtenas,chamada
Liceu.Trata-sedeumdosmaisfamososcentrosdeensinodomundoantigo,algoparecidocom
asuniversidadesmodernas.Delá,eleenviavaparaforapesquisadoresquevoltavamcomnovas
informaçõessobretodososassuntos,desociedadepolíticaabiologia.Eletambémfundouuma
importantebiblioteca.EmumafamosapinturadorenascentistaRafael,AescoladeAtenas,
Platãoapontaparacima,paraomundodasformas;Aristóteles,aocontrário,estácomamão
voltadaparaomundodiantedesi.
Platãoteriasecontentadoemfilosofardedentrodeumgabinete;Aristótelesqueria
explorararealidade,estaqueexperimentamospormeiodossentidos.Elerejeitouateoriadas
formasdeseuprofessor,poisacreditavaqueamaneiradeentenderqualquercategoriageralera
examinandoseusexemplosparticulares.Assim,paraentenderoqueéumgato,precisaríamos
observargatosreais,enãopensarabstratamentenaformadogato.
UmadasquestõesqueocupouareflexãodeAristótelesfoi:“Comodevemosviver?”.
SócratesePlatãojáhaviamfeitoessapergunta.Anecessidadederespondê-lafazpartedoque
levaaspessoasàfilosofiapelaprimeiravez.Aristótelestinhaumarespostaprópria,queemsua
versãosimplesera:“Buscandoafelicidade”.
Masoquesignifica“buscarafelicidade”?Hojemuitaspessoasentenderiamaexpressão
comomodosdecurtirasipróprias.Paravocê,talvezafelicidadeenvolvafériasnoexterior,ira
festasefestivaisdemúsicaoudesfrutarotempocomosamigos.Ouaindaagarraroseulivro
predileto,ouiraumagaleriadearte.Essascoisaspodematéseringredientesdeumaboavida,
masAristótelescertamentenãoacreditavaqueamelhormaneiradevivererasairembuscade
prazerescomoesses.Navisãodele,umaboavidanãoseresumiriaaisso.Apalavragregaque
Aristótelesusavaeraeudaimonia,quecostumasertraduzidacomo“prosperidade”ou“sucesso”,
enãocomo“felicidade”.Éalgoquevaialémdassensaçõesdeprazerquetemosaotomar
sorvetedemangaouacompanharavitóriadeumtimeesportivo.Aeudaimonianãodizrespeito
amomentosefêmerosdealegria,ouacomonossentimos.Elaémaisobjetivadoqueisso.Trata-
sedeumtermobastantedifícildecompreender,poisestamosmuitoacostumadosapensarquea
felicidadedizrespeitoapenasaomodocomonossentimos.
Pensenumaplanta.Sevocêregá-la,colocá-laparatomarluzetalvezadubá-laumpouco,
elavaicrescereflorescer.Senegligenciá-la,amantivernoescuro,deixarqueinsetoscomam
suasfolhasouqueelaseque,elavaimurcharemorrer,ounomínimoparecerumaplantanada
viçosa.Ossereshumanostambémpodemflorescercomoasplantas,emboranós,diferentemente
delas,façamosescolhassobrenósmesmos:decidimosoquequeremosserefazer.
Aristótelesestavaconvencidodaexistênciadanaturezahumanaedequeosseres
humanos,comodizia,têmumafunção.Háummododevidaquecombinamaisconosco.Oque
nosdistanciadosanimaisedetodasasoutrascoisaséofatodepodermospensareraciocinar
sobreoquedevemosfazer.Apartirdisso,eleconcluiuqueomelhortipodevidaparaoser
humanoéaquelequeusaospoderesdarazão.
Surpreendentemente,Aristótelesacreditavaqueascoisassobreasquaisnãosabemosnada
–inclusiveosacontecimentosapósamorte–poderiamcontribuirparaanossaeudaimonia.Isso
soaestranho.Supondoquenãoexistavidaapósamorte,dequemaneiraascoisasqueacontecem
quandonãoestamosmaisporpertoafetamnossafelicidade?Bem,imaginequevocêtenhafilhos
equesuafelicidaderesida,emparte,nasesperançasparaofuturodascrianças.Se,deforma
lamentável,seufilhoadoeceseriamentedepoisdevocêtermorrido,asuaeudaimoniaterásido
afetadaporisso.NavisãodeAristóteles,suavidaterápiorado,mesmoquevocêrealmentenão
saibasobreadoençadoseufilhoenãoestejamaisvivo.Issoexplicitabemsuaideiadequea
felicidadenãoésóumaquestãodecomonossentimos.Afelicidade,nessesentido,dizrespeitoà
nossarealizaçãoglobalnavida,algoquepodeserafetadopeloqueacontececomaspessoasque
sãoimportantesparanós.Essarealizaçãotambémpodeserafetadapeloseventosquenão
controlamosenãoconhecemos.Ofatodeestarmosounãofelizesdependeparcialmentedaboa
sorte.
Aquestãocentralé:“Oquepodemosfazerparaaumentarachancedaeudaimonia?”.A
respostadeAristótelesera:“Desenvolverotipocertodecaráter”.Precisamossentirostipos
certosdeemoçãonomomentocerto,eelesfarãocomquenoscomportemosbem.Emparte,isso
dependerádecomofomoscriados,poisamelhormaneiradedesenvolverbonshábitosépraticá-
losdesdecedo.Portanto,asortetambémtemoseupapelnisso.Bonspadrõesdecomportamento
sãovirtudes;padrõesruinssãovícios.
Pensenavirtudedacoragemduranteaguerra.Talvezumsoldadoprecisecolocara
própriavidaemriscoparasalvaralgunscidadãosdoataquedeumexército.Otemerárionãose
preocupacomaprópriasegurança.Eletambémpoderiaentrarnumasituaçãoperigosa,talvezaté
quandonãoprecisasse,masissonãoéaverdadeiracoragem,esimaaçãoimprudentedecorrer
riscos.Nooutroextremo,osoldadocovardenãoconseguesuperarseumedoosuficientepara
agirdemaneiraapropriadaeficaráparalisadodiantedoterrornomomentoexatoemquemaisse
precisadele.Osujeitovalenteoucorajoso,noentanto,tambémsentemedonessasituação,masé
capazdedominá-loeagir.Aristótelespensavaquetodavirtudeestáentredoisextremoscomo
esses.Aqui,acoragemestánametadedocaminhoentreatemeridadeeacovardia.Issocostuma
serchamadonadoutrinadeAristótelesdejustomeio.
AabordagemdeAristótelesàéticanãotemuminteresseapenashistórico.Muitos
filósofosmodernosacreditamqueeleestavacertoquantoàimportânciadedesenvolveras
virtudesequesuavisãodoqueéafelicidadeeraprecisaeinspiradora.Elesacreditamque,em
vezdeprocuraraumentarnossosprazeresnavida,deveríamostentarnostornarpessoasmelhores
efazeracoisacerta.Issoéoquefazavidacaminharbem.
TudoissolevaacrerqueAristótelesestavainteressadoapenasnodesenvolvimento
pessoaldoindivíduo.Maselenãoestava.Ossereshumanossãoanimaispolíticos,argumentava
ele.Precisamosconseguirvivercomosoutroseprecisamosdeumsistemadejustiçapara
lidarmoscomoladomaisobscurodanossanatureza.Aeudaimoniasópodeseralcançadaem
relaçãoàvidaemsociedade.Nósvivemosjuntos,eprecisamosencontrarnossafelicidade
interagindobemcomaquelesquenoscercam,emumestadopolíticobemordenado.
Entretanto,agenialidadedeAristótelesteveumefeitocolaterallastimável.Eleeratão
inteligente,esuapesquisaeratãoabrangente,quemuitaspessoasqueliamsuasobras
acreditavamqueeleestavacertoemrelaçãoatudo.Issofoipéssimoparaoprogresso,epéssimo
paraatradiçãofilosóficainiciadacomSócrates.Durantecentenasdeanosdepoisdasuamorte,a
maioriadosestudiososaceitouasideiasaristotélicassobreomundocomoverdades
inquestionáveis.Paraeles,bastavaprovarqueAristóteleshaviaditoalgo.Issoéoquese
costumachamarde“verdadeporautoridade”–acreditarquealgotemdeserverdadeporque
umaimportantefigurade“autoridade”dissequeera.
Oquevocêpensaqueaconteceriasejogasse,deumlugaralto,doisobjetosdomesmo
tamanho,umdemadeiraeoutromaispesado,deferro?Qualdeleschegariaprimeiroaochão?
Aristótelespensavaqueomaispesadocairiamaisrápido.Naverdade,oqueacontecenãoé
isso.Elescaemnamesmavelocidade.Porém,comoAristótelesdissequeomaispesadocaía
maisrápido,praticamentetodosacreditaram,duranteaIdadeMédia,queissoseriaverdade.Não
eraprecisotermaisprovas.Paratestaressaafirmação,GalileuGalilei,noséculoXVI,
supostamentejogoudotopodatorredePisaumabolademadeiraeumaboladecanhão.Asduas
atingiramosolonomesmomomento.EntãoAristótelesestavaerrado.Masteriasidofácil
demonstrarissomuitotempoantes.
Confiarnaautoridadedeoutrapessoaeraalgocompletamentecontraoespíritoda
pesquisadeAristóteles.Etambéméalgocontraoespíritodafilosofia.Aautoridadeporsisó
nãoprovaabsolutamentenada.OsmétodosprópriosdeAristóteleseramainvestigação,a
pesquisaeolivreraciocínio.Afilosofiaflorescenodebate,napossibilidadedeestarerrada,na
contestaçãodevisõesenaexploraçãodealternativas.Felizmente,emtodasasépocashouve
filósofosprontosparapensardemaneiracríticasobreoqueosoutrosdizemestarcerto.Um
filósofoquetentoupensardemaneiracríticasobreabsolutamentetudofoiocéticoPirro.
CAPÍTULO3
Nãosabemosnada
PIRRO
Ninguémsabenada–eessaafirmação,inclusive,éincerta.Nãodeveríamosconfiarnoque
acreditamosserverdade,poispoderíamosestarnosconfundindo.Épossívelquestionartudoe
duvidardetudo.Amelhoropção,portanto,émanteramenteaberta.Paranãosedecepcionar,
nãosecomprometa.Esseeraoprincipalensinamentodoceticismo,umafilosofiaquefoipopular
durantemuitosanosnaGréciaantigaedepoisemRoma.AocontráriodePlatãoeAristóteles,os
céticosmaisradicaisevitavammanteropiniõessólidasarespeitodoquequerquefosse.Ogrego
antigoPirro(c.365-c.270a.C.)foiomaisfamosodoscéticosetalvezomaisradicaldetodos
ostempos.Semdúvidanenhuma,eleteveumavidaímpar.
Talvezvocêacreditequesaibadetodosostiposdecoisas.Vocêsabequeestálendoneste
momento,porexemplo.Masoscéticoscontestariamisso.Penseemporquevocêacreditaque
estárealmentelendo,emvezdeestarimaginandoquelê.Épossívelteralgumacerteza?Você
aparentaestarlendo–éissoquelheparece.Mastalvezestejaalucinandoousonhando(ideiaque
RenéDescartesdesenvolveriamaisoumenosoitocentosanosdepois;verCapítulo11).A
insistênciadeSócratesemdizerquetudooquesabiaeraquesabiatãopoucotambémerauma
posiçãocética.MasPirroalevoumuitomaislonge,talvezatélongedemais.
SetomarmoscomoverdadeirososrelatossobrePirro(etalvezdevêssemossercéticosem
relaçãoaelestambém),veremosqueelefezcarreiraemnãolevarnadaasério.Assimcomo
Sócrates,Pirronãodeixounadaescrito.Oquesabemossobreelevemdorelatofeitoporoutras
pessoas,muitasvezesséculosdepoisqueelemorreu.DiógenesLaércio,porexemplo,dizque
Pirrotornou-seumacelebridade,foinomeadosacerdoteemÉlida,ondemorava,eque,em
homenagemaele,osfilósofosnãopagavamimpostos.Nãotemoscomosaberaveracidade
dessasinformações,pormaisinteressantesquepareçamser.
Atéondesabemos,noentanto,Pirrocolocouseuceticismoempráticademaneirasbem
extraordinárias.Eleteriavividomuitopoucosenãotivesseamigosqueoprotegessem.Todo
céticoradicalprecisademuitasorteoudoapoiodepessoasmenoscéticassequiserviver
bastantetempo.
Vejamoscomoeleentendiaavida.Nãopodemosconfiartotalmentenossentidos,poisàs
vezeselesnosenganam.Éfácilcometerumerroemrelaçãoaoquevemosnoescuro,por
exemplo.Oquepareceumaraposapodesersóumgato.Oupodemosouviralguémnoschamar
quandonaverdadeéosomdoventonasárvores.Comonossossentidosnosenganamcom
frequência,Pirroresolveununcaconfiarneles.Elenãoexcluíaapossibilidadedeobter
informaçõesprecisaspelossentidos,masficavasempreatentoàquestão.
Dessemodo,enquantoamaioriadaspessoasinterpretariaavisãodabeiradeum
despenhadeirocomoumaforteevidênciadequeseriaumatolicecontinuarandandonaquela
direção,Pirronãoofaria.Elepoderiaestarsendoenganadopelossentidos,entãonãoconfiava
neles.Atémesmoasensaçãodoprópriopédobrando-senabeiradoabismoouasensaçãode
queocorpopendeparafrentenãooteriaconvencidodequeestavaprestesacairsobreasrochas
láembaixo.Elesequertinhaclarezadequecairsobreasrochasseriaruimparaasaúde.Como
poderiatercertezaabsolutadisso?Seusamigos,quepresumivelmentenãoeramtodoscéticos,
evitavamqueelesofresseacidentes;porém,senãoofizessem,Pirrocorreriaperigootempo
inteiro.
Porquetermedodecãesselvagenssenãopodemostercertezadequeelesqueremnos
ferir?Sópelofatodeestaremlatindo,mostrandoosdentesecorrendoemnossadireçãonão
significaqueseremosmordidos.E,mesmoseoscãesnosmordessem,nãoquerdizerque
necessariamenteiriadoer.Porqueseimportarcomotráfegodoscarrosaoatravessaraestrada?
Podeserquenenhumdelesbataemnós.Quemsabeaocerto?Equediferençafaz,afinal,se
estamosvivosoumortos?Dealgumamaneira,Pirroconseguiulevaracaboessafilosofiada
totalindiferençaesuperoutodosospadrõesdecomportamentoetodasasemoçõeshumanas,
comunsenaturais.
Detodomodo,issoéoquenosdizalenda.Algumasdessashistóriasprovavelmenteforam
inventadaspararidicularizarsuafilosofia,maséimprovávelquetodassejamfictícias.Por
exemplo,ésabidoqueelesemantevetotalmentecalmoaonavegarporumadaspiores
tempestadesjátestemunhadas.Oventorasgavaasvelasempedaços,eondasgigantescas
quebravamsobreobarco.Todosaoredordeleestavamterrificados,enquantoelenãose
importounemumpouco.Comoasaparênciasmuitasvezesnosenganam,elenãopodiatercerteza
absolutadequecausariamalgummal.Pirroconseguiumanter-seempazatémesmoenquantoo
maisexperientedosmarinheirosentravaempânico.Eledemonstrouqueépossívelmanter-se
indiferente,inclusivenessascircunstâncias.Enissoháumapontadeverdade.
Quandoerajovem,PirrovisitouaÍndia.Talvezessaviagemtenhasidoafontede
inspiraçãodeseuestilodevidaincomum.AÍndiatemumalongatradiçãodeprofessores
espirituais,ougurus,quepassamporprivaçõesfísicasextremasequaseinacreditáveis:são
enterradosvivo,pendurampesosempartessensíveisdocorpoouvivemsemanassemcomer
paraatingirapazinterior.Certamente,aabordagemdePirroàfilosofiaaproximava-seàdeum
místico.Independentementedastécnicasqueusasseparaesseobjetivo,eledefatopraticavao
quepregava.Suaserenidadementalimpressionavaprofundamenteaspessoasqueocercavam.
Elenãoseperturbavacomnadaporqueacreditavaqueabsolutamentetudoseresumiaauma
questãodeopinião.Senãohácomodescobriraverdade,entãonãohámotivosparaseaborrecer.
Porisso,podemosnosdistanciardetodasascrençasfortes,poiselassempreenvolvemailusão.
SetivéssemosconhecidoPirro,provavelmentepensaríamosqueeleeralouco.Etalvezele
fosse,decertomodo.Masseuscomportamentosevisõeseramconsistentes.Elepensariaque
nossasváriascertezaseramsimplesmenteirracionais,umobstáculoàpazdeespírito.Diriaque
estamosaceitandocoisasdemais.Écomosetivéssemosconstruídoumacasanaareia.Asbases
donossopensamentosãotãosólidasquantogostaríamosquefossemeprovavelmentenãonos
farãofelizes.
Pirroresumiudemodoimpecávelsuafilosofianaformadetrêsperguntasquedeveriam
serfeitasportodosaquelesquequeremserfelizes:
Comoascoisasrealmentesão?
Queatitudedeveríamosadotaremrelaçãoaelas?
Oqueacontecerácomaquelequenãotomaressaatitude?
Asrespostasdeleeramsimpleseiamdiretoaoponto.Emprimeirolugar,jamais
poderemossabercomoomundorealmenteé–issoestáalémdanossacapacidade.Ninguém
jamaisconheceráanaturezaúltimadarealidade,poisconhecê-laéimpossívelparaosseres
humanos.Entãoesqueçaisso.EssavisãovaitotalmentecontraateoriadasformasdePlatãoe
contraapossibilidadedequeosfilósofospoderiamconhecê-laspormeiodopensamento
abstrato(verCapítulo1).Emsegundolugar,ecomoresultadodaprimeiraresposta,não
deveríamosnoscomprometercomnenhumavisão.Comonãopodemosconhecernadacom
exatidão,deveríamossuspendertodososjuízoseviveravidadeumamaneiradescomprometida.
Tododesejoquetemossugereacrençadequeumacoisaémelhordoqueaoutra.Ainfelicidade
surgedofatodenãoconseguirmosoquequeremos.Masnãopodemossaberseumacoisaé
melhordoquetodasasoutras.Pirroacreditavaque,parasermosfelizes,devemosnoslibertar
dosdesejosenãonosimportarcomamaneiracomoascoisasserevelam.Dessaforma,nada
afetaránossoestadodeespírito,queserádetranquilidadeinterior.Emterceirolugar,se
seguirmosesseensinamento,aconteceráconoscooseguinte:começaremosporficaremudecidos,
presumivelmenteporquenãosaberemosoquedizersobreascoisas.Comotempo,estaremos
livresdetodapreocupação.Issoéomelhorquepoderíamosesperardavida.Quaseuma
experiênciareligiosa.
Essaéateoria.PareceterfuncionadoparaPirro,emborasejadifícilverosresultados
delaacontecendocomamaiorpartedahumanidade.Poucosdenóschegarãoaatingirotipode
indiferençaqueelerecomendava.Enemtodosserãosortudosobastanteparateramigosqueos
salvemdospioreserros.Naverdade,setodosseguissemoconselhodePirronãorestariamais
ninguémparaprotegeroscéticospirrônicosdesipróprios,etodaaescoladafilosofiamorreria
muitorápidodepoisdeescorregarnabeiradadosprecipícios,jogar-senafrentedoscarrosou
seratacadaporcãesferozes.
OpontofracobásicodaabordagemdePirroéeleterpartidodo“Nãopodemosconhecer
nada”paraaconclusão“Portanto,devemosignorarnossosinstintosesentimentossobreoqueé
perigoso”.Nossosinstintosnossalvamdemuitosperigospossíveis.Elespodemnãoser
totalmenteconfiáveis,masissonãosignificaquedevemosignorá-los.Supõe-seatéqueopróprio
Pirrotenhaseafastadoquandofoimordidoporumcachorro:nãoconseguiusuperarporcompleto
suasreaçõesautomáticas,pormaisquequisesse.Dessemodo,experimentareexercero
ceticismopirrônicopareceperverso.Enãoestáclaroseviverdessamaneiraproduzapazde
espíritoquePirropensavaqueproduziria.Épossívelsercéticoemrelaçãoaoceticismode
Pirro.Podemosperguntarseatranquilidaderealmentesurgirásenosarriscarmostalcomoelese
arriscou.TalvezpossaterfuncionadocomPirro,masqueevidênciatemosdequefuncionará
conosco?Podemosnãoestar100%certosdequeumcãoferoznosmorderá,masfazsentidonão
arriscarsetivermos99%decerteza.
NemtodososcéticosnahistóriadafilosofiaforamtãoextremadosquandoPirro.O
ceticismomoderadotemumalongatradiçãopautadaemquestionarsuposiçõeseexaminarcom
cuidadoasevidênciasdoqueacreditamos,sematentativadevivermoscomosetudofosse
colocadoemdúvidaotempotodo.Essetipodequestionamentocéticoestánocoraçãoda
filosofia.Todososgrandesfilósofosforamcéticosnessesentido,queéoopostododogmatismo.
Umsujeitodogmáticotemmuitaconfiançadequeconheceaverdade.Osfilósofoscontestamo
dogma,perguntamporqueaspessoasacreditamnoqueacreditam,quetiposdeevidênciadão
suporteasuasconclusões.IssofoioqueSócrateseAristótelesfizeram,eéoqueosfilósofos
atuaistambémfazem.Maselesnãofazemissoporamoraoqueédifícil.Oobjetivodoceticismo
filosóficomoderadoéchegarmaispertodaverdade,ouaomenosrevelarcomoépoucooque
sabemosoupodemossaber.Vocênãoprecisacorreroriscodedespencardeumabismoparaser
essetipodecético,masprecisaestarpreparadoparaperguntarepensarcriticamentenas
respostasdaspessoas.
EmboraPirropregassequenoslibertássemosdetodasaspreocupações,amaioriadenós
nãoconseguiuselivrardelas.Umadessaspreocupaçõesbásicaséofatodequetodosnós
morreremos.Epicuro,outrofilósofogrego,tevesugestõesbrilhantesdecomopodemoslidarcom
essaquestão.
CAPÍTULO4
OJardim
EPICURO
Imagineoseuprópriofuneral.Comoeleserá?Quemestarálá?Oqueaspessoasdirão?Você
deveimaginá-lodesuaperspectiva,comoseaindaestivesseláobservandoosacontecimentos,a
partirdeumlugarespecífico,talvezdecima,oudeumacadeirapertodequemsofresuaperda.
Ora,algumaspessoasacreditamnafortepossibilidadedeque,depoisdamorte,sobrevivemosao
corpofísicocomoumaespéciedeespíritoquetalvezsejacapazdeveroqueaconteceneste
mundo.Porém,paraaquelesdenósqueacreditamqueamorteéofinal,háumverdadeiro
problemanisso.Todavezquetentamosimaginarquenãoestamosmaisnestemundo,nóso
fazemosimaginandoqueestamoslá,observandooqueaconteceenquantolánãoestamos.
Quervocêconsigaounãoimaginarsuaprópriamorte,parecebastantenaturalsentirao
menosumpoucodemedodanãoexistência.Quemnãotemeriaaprópriamorte?Sehádeexistir
algumacoisaquenosdeixeaflitos,certamenteéamorte.Pareceperfeitamenterazoávelnos
preocuparmosemnãoexistir,mesmoqueissovenhaaacontecerdaquiamuitosanos.Éalgo
instintivo.Agrandemaioriadaspessoasjápensouseriamentesobreisso.
Epicuro(341-270a.C.),antigofilósofogrego,afirmavaqueomedodamorteerauma
perdadetempoebaseava-seemumafalsalógica.Tratava-sedeumestadodeespíritoque
deveriasersuperado.Sepensarmosseriamentesobreamorte,nãodeveremostermedonenhum
dela.Umavezquetivermoscompreendidodefatooqueestamospensando,apreciaremosmuito
maisonossotempoaqui–oque,paraEpicuro,eramuitoimportante.Oobjetivodafilosofia,
acreditavaele,eratornaravidamelhor,ajudaraencontrarafelicidade.Algumaspessoas
considerammórbidorefletirsobreaprópriamorte,masparaEpicuroeraumamaneiradetornar
avidamaisintensa.
EpicuronasceunailhagregadeSamos,nomarEgeu.Passouamaiorpartedavidaem
Atenas,ondesetornouumafiguraadmirada,atraindoumgrupodeestudantesqueviviamcomele
emumacomunidade.Nogrupohaviamulhereseescravos–umasituaçãoraranaantigaAtenas.
Issonãofaziadeleumsujeitobenquisto,excetoparaseusseguidores,quepraticamenteo
adoravam.Eledirigiaessaescoladefilosofiaemumacasacomumjardim,queporissoficou
conhecidacomoOJardim.
Assimcomomuitosfilósofosantigos(ealgunsmodernos,comoPeterSinger:verCapítulo
40),Epicuroacreditavaqueafilosofiadeveriaserprática.Eladeveriamudaromodocomo
vivemos.Portanto,eraimportantequeaquelesquesejuntassemaelenoJardimcolocassema
filosofiaemprática,emvezdesimplesmenteaprenderemsobreela.
ParaEpicuro,achavedavidaerareconhecerquetodosnósbuscamosoprazer.E,oqueé
maisimportante,evitamosadorsemprequepodemos.Issoéoquenosmove.Eliminaro
sofrimentoeaumentarafelicidadetornaráavidamelhor.Amelhormaneiraparaviver,então,
seriaesta:terumestilodevidabastantesimples,sergentilcomopróximoecercar-sede
amigos.Dessemodo,seremoscapazesdesatisfazeramaiorpartedosnossosdesejos.Não
seremosdeixadoscomoquererdealgoquenãopodemoster.Nãoénadabomteraânsia
desesperadaporumamansãoquandonãotemosdinheiroparacomprá-la.Nãopodemosperdera
vidainteiratrabalhandoparaconseguiraquiloqueprovavelmenteestáalémdonossoalcance.É
muitomelhorterumavidasimples.Senossosdesejosforemsimples,serãofacilmentesatisfeitos
eteremostempoeenergiaparagozardascoisasqueimportam.EssaeraareceitadeEpicuro
paraafelicidade,eelafazmuitosentido.
Talensinamentoeraumaespéciedeterapia.OobjetivodeEpicuroeracurarseusalunos
dadormentalelevá-losacreroquantoadorfísicapodiatornar-sesuportávelcasoelesse
lembrassemdeprazerespassados.Eleafirmavaqueosprazeresnãosãoagradáveissóno
momentoemqueacontecem,mastambémquandosãolembrados,eporissoseusbenefícios
podemserduradouros.Quandoestavamorrendoeumpoucoindisposto,eleescreveuparaum
amigosobrecomoconseguiusedistrairdadoençalembrando-sedoprazerdasúltimasconversas
dosdois.
Issoébastantediferentedoqueapalavra“epicurista”significahoje.Équaseooposto.
Um“epicurista”éaquelequeadoracomidasrefinadas,aquelequesedeleitanoluxoenaluxúria.
Epicurotinhapredileçõesmuitomaissimplesdoqueessesignificadosugere.Eleensinavaa
necessidadedesermoderado–cederaosapetitesgananciosossócriariacadavezmaisdesejos
e,nofinal,gerariaaangústiamentaldeumdesejonãorealizado.Essetipodevidadequerer
sempremaisdeveriaserevitado.Eleeseusseguidoresalimentavam-sedepãoeáguaemvezde
comidasexóticas.Quandosecomeçaabeberumvinhocaro,muitoembreveacaba-sequerendo
bebervinhosaindamaiscaros,oquegeraumaarmadilhadequerercoisasquenãosepodeter.
Apesardisso,osinimigosdeEpicuroafirmavamque,nacomunidadedoJardim,osepicuristas
passavamamaiorpartedotempocomendo,bebendoefazendosexounscomosoutrosemuma
orgiainterminável.Foidaíquesurgiuosignificadodeturpadode“epicurista”.Seosseguidores
deEpicurorealmentefizessemisso,estariamemcompletodesacordocomosensinamentosdo
mestre.Émaisprovável,portanto,queessefosseapenasumrumormalicioso.
UmaatividadeàqualEpicurocertamentededicouamaiorpartedoseutempofoiaescrita.
Eleeraprolífico.Registrossugeremqueeleescreveutrezentoslivrosemrolosdepapiro,
emboranenhumdelestenhasobrevivido.Oquesabemossobreeleprovémbasicamentede
anotaçõesescritasporseusseguidores.Elessabiamoslivrosdomestredecor,mastambém
transmitiramseusensinamentosporescrito.Algunsdessespergaminhossobreviveramnaforma
defragmentos,preservadosnacinzavulcânicaquecaiuemHerculano,pertodePompeia,quando
omonteVesúvioentrouemerupção.Outrafonteimportantedeinformaçõessobreos
ensinamentosdeEpicuroéolongopoemaSobreanaturezadascoisas,escritopelopoetae
filósoforomanoLucrécio.CompostomaisdeduzentosanosdepoisdamortedeEpicuro,opoema
sintetizaosensinamentosbásicosdesuaescola.
Então,voltandoàperguntaqueEpicurofez,porquetemeramorte?Amortenãoéalgoque
aconteceanós.Quandoacontece,nãoestamoslá.LudwigWittgenstein,filósofodoséculoXX,
repetiuessavisãoquandoescreveuemseuTractatusLogico-Philosophicusque“amortenãoé
umacontecimentodavida”.Aideiaaquiéqueosacontecimentossãocoisasque
experimentamos,masamorteéaremoçãodapossibilidadedaexperiência,enãoalgumacoisa
daqualpoderíamosterciência,oualgoporquepassaríamosdealgumamaneira.
Epicurosugeriuque,quandoimaginamosanossaprópriamorte,amaioriadenóscometeo
errodepensarquealgumacoisadenósrestaráparasentiroqueaconteceaocorpo.Masesseé
umentendimentoequivocadosobreaquiloquesomos.Estamosligadosaumcorpoindividual,
nossacarneenossosossos.ParaEpicuro,nósconsistimosdeátomos(emboraoquequisesse
dizercomotermofosseumpoucodiferentedoquedefinemoscientistasmodernos).Namorte,
quandoessesátomosseseparam,osujeitodeixadeexistircomoindivíduodotadode
consciência.Aindaquealguémpudessecuidadosamentereconstruirmeucorpojuntandotodosos
pedaçosedepoislhedevolvesseavida,nãoterianadaavercomigo.Onovocorpovivonão
seriaeu,apesardeseparecercomigo.Eunãosentiriaasdoresdele,pois,quandoocorpodeixa
defuncionar,nadapodetrazê-lodevoltaàvida.Acadeiadeidentidadeteriasidoquebrada.
Epicuropensavaqueumaoutramaneiradecurarseusseguidoresdomedodamorteera
apontandoadiferençaentreoquesentimossobreofuturoeoquesentimossobreopassado.Nós
nosimportamoscomum,masnãocomooutro.Pensenopassadoantesdoseunascimento.Houve
todoumtempoduranteoqualvocênãoexistiu.Essepassadonãoserefereapenasaotempoem
quevocêestevenoúterodasuamãe,ouaopontoantesdevocêserconcebidoeque,paraosseus
pais,eraapenasumapossibilidade,massimatrilhõesdeanosantesdevocêsurgir.Emgeral,
nãonospreocupamospornãotermosexistidodurantetodosessesmilêniosantesdonosso
nascimento.Porquedeveríamosnosimportarcomtodoessetempoduranteoqualnãoexistimos?
Então,seissoforverdade,porquenosimportartantocomtodaaeternidadedanãoexistência
apósamorte?Nossopensamentoéassimétrico.Todosnóstemosatendênciadenospreocupar
comotempodepoisdamorte,enãocomotempoantesdonascimento,masEpicuroconsiderava
issoumerro.Quandoentendermosesseerro,começaremosapensarnotempoquesucedeamorte
talcomopensamosnotempoqueaprecede.Portanto,nãoseriaumagrandepreocupação.
Algumaspessoasrealmentesepreocupamemviraserpunidasdepoisdamorte.Epicuro
tambémdescartavaessapreocupação.Osdeusesnãoestãoemnadainteressadosnasuacriação,
diziaelecomsegurançaparaseusseguidores.Elesexistemseparadosdenósenãoseenvolvem
comomundo.Entãodevemosnossentirbemcomisso.Estaéacura–acombinaçãodesses
argumentos.Sedercerto,nósnossentiremosmuitomaisrelaxadosemrelaçãoànossafuturanão
existência.Epicuroresumiutodaasuafilosofianoseguinteepitáfio:
“Eunãoera;fui;nãosoumais;nãomeimporto.”
Sevocêacreditaquenãopassamosdeseresfísicos,compostosdematéria,equenãohá
sériosriscosdesermospunidosdepoisdamorte,entãoébempossívelqueoraciocíniode
Epicuroconvença-odequenãohámotivosparatemeramorte.Talvezvocêaindasepreocupe
comoprocessodamorte,poiselecostumaserdolorosoeédefinitivamentevivido.Issoé
verdade,mesmoquesejairracionaldesgastar-serefletindosobreamortepropriamentedita.No
entanto,lembre-sedequeEpicuroacreditavaqueboasmemóriaspodemaliviarador,oque
significaqueeletinhaumarespostaatéparaisso.Porém,sevocêacreditaserumaalmaemum
corpo,equeessaalmapodesobreviveràmortecorpórea,éimprovávelquelhesirvaacurade
Epicuro:vocêconseguiráimaginaracontinuidadedasuaexistênciamesmodepoisqueseu
coraçãoparardebater.
Osepicuristasnãoestavamsozinhosaopensarnafilosofiacomoumtipodeterapia:a
maioriadosfilósofosgregoseromanospensavaassim.Osestoicos,emparticular,eram
conhecidosporensinarcomoserpsicologicamenteinflexíveldiantedeacontecimentosinfelizes.
CAPÍTULO5
Aprendendoanãoseimportar
EPITETO,CÍCERO,SÊNECA
Secomeçaachoverquandoestamosprestesasairdecasa,éuminfortúnio.Mas,setemosde
sair,alémdecolocarmosumcasaco,pegarmosumguarda-chuvaoucancelarmosocompromisso,
nãohámuitooquepossamosfazer.Nãopodemosfazerachuvaparar,nãoimportaoquanto
quisermos.Deveríamosnosaborrecercomisso?Oudeveríamossimplesmenteserfilosóficos?
“Serfilosófico”nãosignificanadaalémdeaceitaroquenãosepodemudar.Eoquedizerdo
inevitávelprocessodeenvelheceroudabrevidadedavida?Comonossentiríamosarespeito
dessascaracterísticasdacondiçãohumana?Damesmamaneira?
Quandoaspessoasdizemquesão“filosóficas”emrelaçãoaoquelhesacontece,estão
usandoapalavracomoosestoicosateriamusado.Onome“estoico”vemde“stoa”,umpórtico
pintadoemAtenasondeessesfilósofoscostumavamencontrar-se.Umdosprimeirosdelesfoi
ZenãodeCítio(334-262a.C.).Osprimeirosestoicosgregostinhamumagrandevariedadede
concepçõesdeproblemasfilosóficossobrerealidade,lógicaeética,masficarammais
conhecidosporsuasvisõesarespeitodocontrolemental.Suaideiabásicaeraadequesó
deveríamosnospreocuparcomascoisasquepodemosmudarenãodeveríamosnosperturbar
commaisnada.Assimcomooscéticos,osestoicostinhamatranquilidadedeespíritocomoalvo.
Mesmoquandosedeparassecomeventostrágicos,comoamortedeumentequerido,oestoico
deveriapermanecerimpassível.Nossaatitudeemrelaçãoaoqueaconteceestádentrodolimite
donossocontrole,aindaqueoqueaconteçanãoesteja.
Aideiadequesomosresponsáveispeloquesentimosepensamoseracentralparao
estoicismo.Podemosescolhercomoseránossareaçãoàboaeàmásorte.Algumaspessoas
pensamqueasemoçõessãocomooclima.Osestoicos,aocontrário,pensavamqueaquiloque
sentimosarespeitodeumasituaçãooudeumeventoéumaquestãodeescolha.Asemoções
simplesmentenãoacontecemconosco.Nãotemosdenossentirtristesquandoalgoquequeremos
dáerrado;nãotemosdesentirraivaquandoalguémnosengana.Elesacreditavamqueas
emoçõesobscureciamoraciocínioecausavamdanosaojuízo.Nãodeveríamossócontrolá-las,
mas,semprequepossível,eliminá-lasporcompleto.
Epiteto(55-135d.C.),umdosúltimosestoicosmaisfamosos,haviasidoescravo.
Suportoumuitasadversidadeseconheciaadoreafome–mancavaporcontadeumapancada
muitofortequelevou.Elesevaleudaprópriaexperiênciaparadeclararqueamentepode
permanecerlivremesmoquandoocorpoéescravizado.Eissonãoeraapenasumateoria
abstrata.Seusensinamentosincluíamaconselhamentopráticosobrecomolidarcomadoreo
sofrimento.Emsuma:“Nossospensamentosdependemdenós”.Essafilosofiaserviude
inspiraçãoparaonorte-americanoJamesB.Stockdale,pilotodecombate,quefoiderrubadono
nortedoVietnãduranteaGuerradoVietnã.Stockdalefoitorturadomuitasvezesemantidonuma
solitáriadurantequatroanos.Eleconseguiusobreviveraplicandooqueselembravadeter
aprendidodoensinamentodeEpitetoemumcursoquefeznafaculdade.Enquantodesciade
paraquedassobreoterritórioinimigo,decidiumanter-seimpassíveldiantedetudoqueo
fizessem,nãoimportandooquãoinóspitofosseotratamento.Comonãopoderiamudara
situação,nãodeixariaqueelaoafetasse.Oestoicismodeuaeleaforçaparasuperaradorea
solidãoqueteriamdestruídoamaioriadaspessoas.
EssafilosofiadatenacidadecomeçounaGréciaantiga,masfloresceunoImpérioRomano.
DoisescritoresimportantesqueajudaramaespalharoensinamentoestoicoforamMarcoTúlio
Cícero(106-43a.C.)eLúcioAneuSêneca(1a.C.-65d.C.).Abrevidadedavidaea
inevitabilidadedoenvelhecimentoeramassuntosqueparticularmentedespertavamointeresse
dosdois.Elesreconheceramqueoenvelhecimentoéumprocessonaturalenãotentarammudaro
quenãopoderiasermudado.Noentanto,elestambémdefendiamquedevíamosfazerdonosso
tempoaquiomelhordostempos.
Cíceropareciadesdobrar-semaisdoqueamaioriadaspessoas:eraadvogadoepolítico,
alémdefilósofo.EmseulivroSobreavelhice,eleidentificouquatroproblemasprincipaisno
envelhecimento:émaisdifíciltrabalhar,ocorpotorna-semaisfraco,acaba-seaalegriados
prazeresfísicoseamorteestápróxima.Envelheceréinevitável,mas,comoargumentavaCícero,
podemosescolhercomoreagiraesseprocesso.Deveríamosreconhecerqueodeclínionaidade
avançadanãoprecisatornaravidaintolerável.Primeiro,osvelhospodemganharmaisfazendo
menosporcontadaexperiência,entãoqualquertrabalhoquefaçampodesermaiseficaz.Se
corpoementeforemexercitados,nãonecessariamenteseenfraquecerãodemodoradical.E,
mesmoquandoosprazeresfísicostornam-semenosagradáveis,osidososconseguempassar
maistemponacompanhiadeamigoseconversando,oqueébastantecompensador.Porfim,ele
acreditavaqueaalmaviviaparasempre,entãoosidososnãodeveriamsepreocuparcoma
morte.AatitudedeCíceroeraadequedeveríamostantoaceitaroprocessonaturaldo
envelhecimentoquantoreconhecerqueaatitudequetomamosdiantedelenãoprecisaser
pessimista.
Sêneca,outrograndedifusordasideiasestoicas,adotouumalinhasemelhantequando
escreveusobreabrevidadedavida.Nãosecostumaouviraspessoasreclamandoqueavidaé
longademais.Amaioriadizqueelaécurtademais.Hámuitacoisaparasefazerempouco
tempo.NaspalavrasdogregoantigoHipócrates,“Avidaécurta,aarteélonga”.Osidososque
conseguemperceberamorteaproximando-segeralmentedesejamapenastermaisalgunsanos
paraqueconsigamrealizaroquequeriamnavida.Porém,muitasvezesjáétardeeelesacabam
entristecendo-secomoquepoderiateracontecido.Anaturezaécruelaesserespeito.Justamente
quandoestamosatingindooaugedascoisas,morremos.
Sênecanãoconcordavacomessavisão.Eletinhaváriostalentos,comoCícero,e
encontravatempoparaserdramaturgo,políticoeumbem-sucedidohomemdenegócios,alémde
filósofo.Paraele,oproblemanãoeraofatodenossavidasercurta,massimoquantousamoso
tempoquetemosdemaneiratãoruim.Maisumavez,oquemaisimportavaparaeleeraanossa
atitudeemrelaçãoaosaspectosinevitáveisdacondiçãohumana.Nãodeveríamosnosaborrecer
poravidasercurta,massimfazeromelhordela.Elechamouatençãoparaofatodequealgumas
pessoasviveriamcemanosdaformamaistranquilapossívele,mesmoassim,talvez
reclamassemqueavidaécurtademais.Naverdade,avidaélongaosuficientepararealizar
muitascoisas,desdequesefaçamasescolhascertas:senãoadesperdiçarmosemtarefasinúteis.
Algumaspessoasperseguemariquezacomtantaenergiaquesequertêmtempoparafazeroutra
coisa;outrascaemnaarmadilhadededicartodootempolivreàbebidaeaosexo.
Seformosdescobririssosomentenavelhice,serátardedemais,pensavaSêneca.Ter
rugasecabelosbrancosnãogarantequeumidosopassouamaiorpartedotempofazendoas
coisasvaleremapena,aindaquealgumaspessoasajamequivocadamentecomoseofizessem.
Alguémqueiçaasvelasdeumbarcoeassimsedeixalevarpelastempestadesnãoestevenuma
viagem;apenasfoijogadodeumladoparaooutro.Omesmoacontececomavida.Estarforade
controle,sercarregadopelosacontecimentossemtertempoparaasexperiênciasmaisvaliosase
significativas,ébemdiferentedeviververdadeiramente.
Umdosbenefíciosdeterumavidaboaéquenãoprecisaremostermedodenossas
memóriasquandoenvelhecermos.Seperdermosnossotempo,nãovamosquererpensar,aoolhar
paratrás,emcomopassamosnossavida,poisprovavelmenteserádolorosodemaiscontemplar
todasasoportunidadesqueperdemos.Époressarazãoquetantaspessoaspreocupam-secom
trabalhostriviais,acreditavaSêneca–éumaformadeevitaraverdadeemrelaçãoàquiloque
nãoconseguiramfazer.Eleincitavaosleitoresaseretiraremdamultidãoeevitaremseesconder
desimesmosporestaremocupados.
SegundoSêneca,como,então,deveríamosviver?Oidealestoicoeravivercomoum
recluso,longedasoutraspessoas.Sênecadizia,combastantediscernimento,queamaneiramais
fecundadeexistireraestudandofilosofia.Eraumaformadeserverdadeiramentevivo.
AvidadeSênecadeuaeleinúmeraschancesdepraticaroquepregava.Em41d.C.,por
exemplo,foiacusadodeterumarelaçãoamorosacomairmãdoimperadorCaioCésar
(Calígula).Nãosesabeaocertoseorelacionamentoaconteceuounão,masoresultadoéqueele
foienviadoparaoexílioemCórsega,ondepassouoitoanos.Depoisasortevirouparaoseu
ladomaisumavezeelefoichamadodevoltaaRomaparasetornarotutordeummeninode
dozeanos,ofuturoimperadorNero,dequemposteriormentefoiredatordediscursose
conselheiropolítico.Noentanto,essarelaçãoacaboudeformaterrível:outraviradadodestino.
NeroacusouSênecadefazerpartedeumaconspiraçãoparamatá-lo.Dessavez,nãohouve
escapatória.NeropediuqueSênecasesuicidasse.Recusarestavaforadequestão,eolevariaà
execuçãodetodomodo.Resistirseriainútil.Eletirouaprópriavidae,fielaoseuestoicismo,
chegouaofimtranquiloeempaz.
Umadasmaneirasdeencararmosoprincipalensinamentodosestoicosépensá-locomo
umtipodepsicoterapia,umasériedetécnicaspsicológicasquetornarãonossavidamais
tranquila.Livre-sedasemoçõesdesagradáveisquemaculamopensamentoetudoserámuito
maisfácil.Infelizmente,noentanto,mesmoquevocêconsigaacalmarasemoções,podeacabar
descobrindoqueperdeualgodeimportante.Oestadodeindiferençadefendidopelosestoicos
podediminuirainfelicidadediantedoseventosquenãoconseguimoscontrolar.Contudo,talvez
tenhamosdepagaropreçodenostornarmosfrios,insensíveisetalvezatémenoshumanos.Se
esseforopreçodatranquilidade,talvezsejaaltodemais.
Emboratenhasidoinfluenciadopelafilosofiaantiga,Agostinho,umdosprimeiroscristãos
cujasideiasveremosaseguir,estavalongedeserumestoico.Eraumhomemdegrandespaixões,
comumaprofundapreocupaçãosobreomalquevianomundoeumdesejodesesperadode
entenderDeuseseusplanosparaahumanidade.
CAPÍTULO6
Somosmarionetesdequem?
SANTOAGOSTINHO
Agostinho(354-430)queriadesesperadamenteconheceraverdade.Comocristão,acreditavaem
Deus.Massuacrençadeixoumuitasperguntassemresposta.OqueDeusqueriaqueelefizesse?
Comodeveriaviver?Noquedeveriaacreditar?Elepassouamaiorpartedasuavidapensandoe
escrevendosobreessasquestões.Osriscoserammuitoaltos.Paraaquelesqueacreditamna
possibilidadedepassaraeternidadenoinferno,cometerumerrofilosóficopareceter
consequênciasterríveis.ComopensavaopróprioAgostinho,elepoderiaacabarqueimandono
enxofreparasempreseestivesseerrado.Umdosproblemassobreosquaiselesedebruçavaera
porqueDeuspermitiuomalnomundo.Arespostadeleaindaépopularentremuitoscrentes.
Noperíodomedieval,aproximadamentedoséculoVaoséculoXV,afilosofiaeareligião
estiveramintimamenteligadas.Osfilósofosmedievaisestudaramosfilósofosgregosantigos,
comoPlatãoeAristóteles,masadaptaramsuasideias,aplicando-asasuasprópriasreligiões.A
maioriadessesfilósofoseracristã,porémhouveimportantesfilósofosjudeuseárabes,como
MaimônideseAvicena.Agostinho,quemuitotempodepoisfoicanonizado,destaca-secomoum
dosmaiores.
AgostinhonasceuemTagaste,nortedaÁfrica,ondehojeéaArgélia,masnaépocaainda
faziapartedoImpérioRomano.SeunomeverdadeiroeraAurélioAgostinho(emlatim,Aurelius
Augustinus),emborahojesejapraticamenteconhecidoapenascomoSantoAgostinhoou
AgostinhodeHipona(porcausadaúltimacidadeemqueviveu).
AmãedeAgostinhoeracristã,enquantoopaiseguiaumareligiãolocal.Aostrintaanos,
depoisdasloucurasquefeznaadolescênciaenoiníciodaidadeadulta,quandoteveumfilho
comumaamante,Agostinhoconverteu-seaocristianismoeacaboutornando-sebispodeHipona.
ÉsabidoqueelepediuaDeusparadeixardeterdesejossexuais,“masnãoagora”,poisainda
apreciavamuitoosprazeresmundanos.Emumestágiomaisavançadodavida,Agostinho
escreveumuitoslivros,incluindoConfissões,AcidadedeDeusequasemaiscemoutros,
baseando-sefortementenasabedoriadePlatão,masconferindo-lhetraçoscristãos.
AmaioriadoscristãospensaqueDeustempoderesespeciais:queeleouelaéosupremo
bem,sabetudoepodefazertudo.Tudoissofazpartedadefiniçãode“Deus”,quenãoseriaDeus
semessasqualidades.Deusédescritodeformassemelhantesemmuitasoutrasreligiões,mas
Agostinhosótinhainteressenaperspectivacristã.
QuemacreditanesseDeusteráaindadeadmitirqueexistemuitosofrimentonomundo.
Seriamuitodifícilnegarisso.Partedessesofrimentoéoresultadodomalnatural,como
terremotosedoenças.Partedeve-seaomalmoral:omalcausadopelossereshumanos.
Assassinatoetorturasãodoisexemplosclarosdomalmoral.MuitoantesdeAgostinhocomeçar
aescrever,ofilósofogregoEpicuro(verCapítulo4)reconheceuqueissoapresentaum
problema.ComopoderiaumDeusbometodo-poderosotoleraromal?SeDeusnãopode
impedirqueissoaconteça,entãonãopodeserverdadeiramentetodo-poderoso.Hálimitesnoque
elepodefazer.Mas,seDeusétodo-poderosoeparecenãoquererdeteromal,comopodeser
eleosupremobem?Issonãopareciafazersentido,eéalgoqueconfundemuitaspessoasaté
hoje.Agostinhoconcentrou-senomalmoral.PercebeuqueaideiadeumDeusquesabedo
acontecimentodessetipodemalenãofaznadaparaevitá-loédifícildeentender.Elenãose
satisfaziacomaideiadequeDeusagedemaneiramisteriosa,queestáalémdacompreensão
humana.Elequeriarespostas.
Imagineumassassinoprestesamatarsuavítima;eleestádiantedelacomumafacaafiada.
Umatoverdadeiramentemauestáprestesaacontecer.Contudo,sabemosqueDeusépoderosoo
suficienteparadeteressaação.Paraisso,bastariamalgumasalteraçõesmínimasnosneurônios
dopretensoassassino.OuDeuspoderiadeixartodasasfacasmoleseborrachudastodavezque
alguémtentasseusá-lascomoarmamortal.Dessemodo,asfacasresvalariamnavítima,e
ninguémficariaferido.Deustemdesaberoqueestáacontecendo,poiselesabeabsolutamente
tudo.Nadalheescapa.Etemdenãodesejarqueomalaconteça,poisissofazpartedoque
significaserobemsupremo.Mesmoassim,assassinosmatamsuasvítimas.Facasdeaçonão
viramborracha.Nãohánenhumlampejodeluz,nenhumtrovão,aarmanãocaimilagrosamente
damãodoassassino,nemoassassinomudadeideianoúltimominuto.Oqueacontece,então?
Esteéoclássicoproblemadomal,oproblemadeexplicarporqueDeuspermitetais
acontecimentos.Presume-seque,setudovemdeDeus,entãoomaldevevirdeDeustambém.Em
certosentido,Deusdeveterdesejadoqueissoacontecesse.
Quandoeramaisjovem,AgostinhotinhaumamaneiradeevitaracrençadequeDeus
queriaqueomalacontecesse.Eleeramaniqueísta.Omaniqueísmofoiumareligiãoquesurgiuna
Pérsia(hoje,Irã).OsmaniqueístasacreditavamqueDeusnãoeraonipotente.Aocontrário,havia
umalutaeternaentreforçasidênticas,obemeomal.Portanto,nessavisão,DeuseSatãestavam
presosnumabatalhacontínuapelocontrole.Osdoiseramextremamentefortes,masnenhumdeles
erapoderosoosuficienteparadestruirooutro.Emdeterminadoslugaresedeterminados
momentos,omalsesobressaía,masnuncadurantemuitotempo.Abondadeacabariaretornando,
triunfante,maisumavez.Issoexplicavaporqueessascoisasterríveisaconteciam:omalé
provenientedasforçasobscuras,eabondade,dasforçasdaluz.
Osmaniqueístasacreditavamqueabondadesurgiadentrodenós,queelavinhadaalma.
Jáomalvinhadocorpo,comtodososseuspontosfracos,desejoseatendênciadenoslevar
paraomaucaminho.Issoexplicavaporqueaspessoas,àsvezes,voltavam-separaasmásações.
Oproblemadomalnãoeratãograndeparaosmaniqueístasporqueelesnãoaceitavamaideiade
queDeusfossetãopoderosoapontodecontrolartodososaspectosdarealidade.SeDeusnão
tinhapodersobretudo,então,alémdenãoserresponsávelpelaexistênciadomal,ninguém
poderiaculpá-lopornãoconseguirevitaromal.Osmaniqueístasteriamexplicadoasaçõesdo
assassinocomoforçasdastrevasagindodentrodele,levando-onadireçãodomal.Essasforças
seriamtãopoderosasnoindivíduoqueasforçasdaluznãopoderiamderrotá-las.
Emumaidademaisavançada,Agostinhorejeitouaabordagemmaniqueísta.Elenão
conseguiaentenderporquealutaentreobemeomalseriainterminável.PorqueDeusnão
venciaabatalha?Nãoeracertoqueasforçasdobemerammaisfortesqueasdomal?Pormais
queoscristãosaceitassemapossívelexistênciadeforçasdomal,elasnuncasãotãograndes
quantoaforçadeDeus.MasseDeuseraverdadeiramentetodo-poderoso,comoAgostinho
passouaacreditar,osproblemasdomalpermaneceriam.PorqueDeuspermitiaomal?Porque
haviatantomal?Asoluçãonãoénadafácil.Agostinhopensouexaustivamentesobreesses
problemas,esuaprincipalsoluçãobaseou-senaexistênciadolivre-arbítrio:acapacidade
humanadedecidiroquefazer.Esseargumentocostumaserchamadodedefesadolivre-arbítrioe
trata-sedeumateodiceia–atentativadeexplicaredefenderaideiadecomoumDeusbom
permitiaosofrimento.
Deusconcede-nosolivre-arbítrio.Vocêpodeescolher,porexemplo,sevaiounãolera
próximafrase.Estaéasuaescolha.Senãoháninguémforçandovocêacontinuarlendo,então
vocêélivreparaparar.Agostinhoconsideravaqueterlivre-arbítrioébom,jáquenospermite
agirmoralmente.Nóspodemosdecidirserbons;paraele,issosignificavaseguiros
mandamentosdeDeus,principalmenteosdezmandamentos,alémdo“amoraopróximo”pregado
porJesusCristo.Porém,aconsequênciadetermoslivre-arbítrioéquepodemosdecidirfazero
mal.Podemosserdesencaminhadosepraticarmásações,comomentir,roubar,ferirouatématar
aspessoas.Issocostumaacontecerquandonossasemoçõessubjugamarazão.Desenvolvemos
fortesdesejosporobjetosepordinheiro.CedemosàluxúriaesomosdistanciadosdeDeuse
seusmandamentos.Agostinhoacreditavaqueonossoladoracionaldeveriamanteraspaixões
sobcontrole,visãoqueelecompartilhavacomPlatão.Ossereshumanos,aocontráriodos
animais,têmopoderdarazãoedeveriamusá-lo.SeDeustivessenosprogramadodemodoa
sempreescolhermosobemsobreomal,nãocausaríamosnenhumdano,mastambémnão
seríamoslivresenãopoderíamosusararazãoparadecidiroquefazer.Deuspoderiater-nos
feitodessemodo.Agostinhoargumentavaquefoimuitomelhortermosescolha.Docontrário,
seríamoscomomarionetesnasmãosdeDeus,quecontrolarianossosfiosparaquesemprenos
comportássemosbem.Nãohaveriasentidonenhumempensarsobrecomosecomportar,pois
sempreescolheríamosautomaticamenteaopçãodobem.
Então,Deusépoderosoosuficienteparaevitartodoomal,masaexistênciadomalnão
estádiretamenteligadaaDeus.Omalmoraléresultadodasnossasescolhas.Agostinho
acreditavaqueeletambémeraparcialmenteoresultadodeescolhasdeAdãoeEva.Assimcomo
muitoscristãosdaquelaépoca,eleestavaconvencidodequeascoisasderamterrivelmente
erradonoJardimdoÉden,talcomodescritonoprimeirolivrodaBíblia,oGênesis.Quando
AdãoeEvacomeramofrutodaárvoredoconhecimentoetraíramaDeus,trouxeramopecado
paraomundo.Essepecado,chamadodepecadooriginal,nãofoialgoqueafetouapenassuas
própriasvidas.Agostinhoafirmavaqueopecadooriginaleratransmitidodegeraçãoageração
peloatodareproduçãosexual.Atémesmoumacriança,emseusprimeirosmomentosdevida,
carregatraçosdessepecado.Opecadooriginalnostornamaispropensosaopecado.
Paramuitosleitoresdehoje,essaideiadequedevemosnosculpareserpunidosporações
cometidasporoutrosémuitodifícildeaceitar.Issopareceinjusto.Noentanto,aideiadequeo
maléresultadodonossolivre-arbítrio,enãodiretamentedeDeus,aindaconvencemuitosfiéis–
elapermitequeestesacreditememumDeusonipotente,onipresente,quesófazobem.
Boécio,umdosescritoresmaisconhecidosdaIdadeMédia,acreditavanesseDeus,mas
travoucombatecomumaoutraquestãosobreolivre-arbítrio:aquestãodecomopodemos
escolherfazertudoseDeusjásabeoquevamosescolher.
CAPÍTULO7
AconsolaçãodaFilosofia
BOÉCIO
Sevocêestivessepreso,esperandopelaprópriaexecução,passariaseusúltimosdiasescrevendo
umlivrodefilosofia?Boéciopassou.Eescreveuoqueveioaseroseulivrodefilosofiamais
conhecido.
OnomecompletodeBoécio(475-525),umdosúltimosfilósofosromanos,eraAnício
MânlioTorquatoSeverinoBoécio.ElemorreuexatamentevinteanosantesdaquedadoImpério
Romanoparaosbárbaros.Mas,enquantoestavavivo,Romajáestavadecaindo.Assimcomo
CíceroeSêneca,seuscompanheirosromanos,Boéciopensavaqueafilosofiaeraumaespéciede
autoajuda,umamaneirapráticadetornarnossavidamelhor,bemcomoumadisciplinado
pensamentoabstrato.EletambémfoiresponsávelpelarecuperaçãodePlatãoeAristóteles,cuja
obratraduziuparaolatim,mantendosuasideiasvivasnumaépocaemquesecorriaoriscode
seremperdidasparasempre.Comocristão,seuslivrosatraíamosfilósofosquesedevotavamà
religiãonaIdadeMédia.Suafilosofia,então,formouumaponteentreospensadoresgregose
romanoscomafilosofiacristã,queviriaaserdominantenoOcidentedurantedécadasdepoisde
suamorte.
AvidadeBoéciofoiumamisturadeboaemásorte.OreiTeodorico,umgodoque
governavaRomanaépoca,deuaeleoaltocargodecônsul.Comohonraespecial,osfilhosde
Boéciotambémforamnomeadoscônsules,emborafossemmuitojovensparachegaraopostopor
méritopróprio.Tudopareciaestarindobemnavidadele:erarico,tinhaumaboafamíliae
recebiatorrentesdeelogios.Dealgumamaneiraeleconseguiuarrumartempoparaosestudos
filosóficosparalelosaotrabalhonogoverno,eeraumescritoretradutorprolífico.Passavapor
umexcelentemomento.Contudo,suasortevirou.AcusadodeconspiraçãocontraTeodorico,ele
foiexpulsodeRomaeenviadoparaRavena,ondefoipreso,torturadoeexecutadoporuma
combinaçãodeestrangulamentoeespancamentoatéamorte.Elesempreafirmouserinocente,
masosacusadoresnãoacreditavamnele.
Enquantoestevenaprisãosabendoquemorreriaembreve,Boécioescreveuumlivroque,
depoisdesuamorte,foiamplamentedifundidonaIdadeMédia:AconsolaçãodaFilosofia.O
livrocomeçacomBoéciodentrodacela,sentindopenadesimesmo.Derepente,percebequehá
umamulherolhandoparaele.Elapareciaserdaalturanormaldossereshumanos,masàsvezes
pareciaelevar-seatéoscéus.Usavaumvestidorasgado,floreadocomumaescadaque
começavanaletragregapieterminavanaletragregateta.Emumadasmãos,elaseguravaum
cetro;naoutra,livros.EssamulhereraaFilosofia.Quandocomeçouafalar,disseaBoéciono
queeledeveriaacreditar.Elaestavazangadaporeleterseesquecidodelaevieralembrar-lhe
decomodeveriaestarreagindoaoquelheacontecia.Orestodolivro,escritoumaparteem
prosaeumaparteemverso,éaconversadosdois,quetratasobreasorteeDeus.Amulher,
Filosofia,aconselhaBoécio.
EladizaBoécioqueasortesempremudaequeissonãodeveriasurpreendê-lo.Estaéa
naturezadasorte:serinstável.Arodadafortunagira.Àsvezesestamosporcima,outrasvezes
porbaixo.Podeserqueumdiaumreimuitoricosevejanapobreza.Boéciotinhadeaceitarque
ascoisassimplesmenteeramassim.Asorteéaleatória.Ofatodetermossortehojenãogarantea
sortedeamanhã.
Osmortais,explicaFilosofia,sãotolospordeixarqueafelicidadedependadealgotão
instável.Averdadeirafelicidadesópodevirdedentro,dascoisasqueossereshumanos
conseguemcontrolar,enãodealgoqueamásortepodedestruir.Estaéaposiçãoestoicaque
vimosnoCapítulo5.Éissooqueaspessoashojequeremdizerquandosedescrevemcomo
“filosóficas”arespeitodosacontecimentos:elastentamnãoserafetadasporaquiloqueestáfora
doseucontrole,comooclimaouquemsãoseuspais.Nada,dizFilosofiaparaBoécio,éterrível
emsi–aterribilidadedependedecomopensamosnela.Afelicidadeéumestadodeespírito,
nãodomundo–umaideiaqueEpitetojáhaviareconhecidoantes.
FilosofiaquerqueBoéciovolte-separaelanovamente.Eladizqueelepodeser
plenamentefelizapesardeestarpresoesperandoamorte.Elavaicurá-lodetodoosofrimento.
Amensageméqueriquezas,poderehonranãotêmvalor,poispodemirevir.Ninguémdeveria
basearaprópriafelicidadenessesfundamentosfrágeis.Afelicidadedevevirdealgomais
sólido,algoquenãopodeserlevadoembora.ComoBoécioacreditavaqueviveriadepoisda
morte,buscarafelicidadenascoisasmundanasetriviaiseraumerro.Afinal,eleperderiatodas
elasquandomorresse.
MasondeBoéciopodeencontraraverdadeirafelicidade?ArespostadaFilosofiaéque
eleaencontraráemDeusounabondade(asduascoisasacabamrevelando-seseramesma).
Boéciofoicristãodesdecedo,masnãomencionaissoemAconsolaçãodaFilosofia.ODeus
queFilosofiadescrevepoderiaseroDeusdePlatão,apuraformadabondade,masleitores
posterioresreconhecemoensinamentocristãosobreafaltadevalordashonraseriquezasea
importânciadeseconcentraremagradaraDeus.
Durantetodoolivro,FilosofialembraBoéciodoqueelejásabe.Issotambéméalgoque
vemdePlatão,poiseleacreditavaqueascoisasqueaprendemossão,naverdade,umaespécie
dereminiscênciadeideiasquejátemos.Defato,nuncaaprendemosnadanovo,apenastemos
nossamemóriarefrescada.Avidaéumalutaparalembrarmosoquejásabíamosantes.Oque
Boéciojásabia,atécertoponto,équeestavaerradoemsepreocuparcomaperdadaliberdadee
dorespeitopúblico.Essasquestõesestãoamplamenteforadoseucontrole.Oqueimportaésua
atitudediantedasituação,eissoéalgoqueelepodeescolher.
Todavia,Boécioestavaconfusocomumproblemagenuínoquepreocupavamuitaspessoas
queacreditavamemDeus.Sendoperfeito,Deustinhadesabertudooqueacontecia,mastambém
tudooqueviriaaacontecer.IssoéoquequeremosdizerquandodesignamosDeuscomo
“onisciente”.Então,seDeusexiste,eletemdesaberquemganharáapróximaCopadoMundoe
oquevouescrevernapróximafrase.Eledeveteroconhecimentopréviodetudooquevai
acontecer.Oqueeleprevêdevenecessariamenteacontecer.Portanto,nestemomento,Deussabe
qualseráodesdobramentodetodasascoisas.
Dissosegue-sequeDeusdevesaberqualseráminhapróximaação,mesmoqueeuainda
nãotenhacertezadoquefarei.Nomomentoemquetomoumadecisãosobreoquefazer,parece
quediferentesfuturospossíveissurgemdiantedemim.Semevejodiantedeumabifurcaçãona
estrada,possoirparaadireitaouparaaesquerdaousimplesmenteparar.Nestemomento,eu
poderiaparardeescrevereprepararumcafé.Oupossoescolhercontinuardigitandono
computador.Issopareceserminhadecisão,algoqueescolhoounãofazer.Nãoháninguémme
forçandoatomarumaououtradireção.Demaneirasemelhante,vocêpoderiaescolherfecharos
olhosagorasequisesse.ComopodeDeussaberoqueacabaremosfazendo?
SeDeussabequaisserãonossaspróximasações,comopodemosterumaescolhagenuína
sobreoqueiremosfazer?Seriaaescolhaapenasumailusão?Parecequenãopossoterlivre-
arbítrioseDeussabetudo.Hádezminutos,Deuspoderiaterescritonumpedaçodepapel:
“Nigelcontinuaráescrevendo”.Porserverdade,eunecessariamentecontinuariaescrevendo,
quereusoubesseounãodissonaquelemomento.Masseelefizesseisso,eucertamentenãoteria
escolhidooquefiz,aindaquesentissecomosetivesseescolhido.Minhavidajáestaria
delineadaparamimemcadamínimodetalhe.E,senãotemosnenhumaescolhaarespeitode
nossasações,atéquepontoéjustonospunirourecompensarpeloquefazemos?Senãopodemos
escolheroquefazer,entãocomoDeuspodedecidirseiremosounãoparaocéu?
Issoémuitoperturbador.Éoqueosfilósofoschamamdeparadoxo.Nãoparecepossível
quealguémsoubesseoquefareiequeaindaassimeutivesseumalivreescolhasobreoquefaço.
Essasduasideiasparecemcontradizer-semutuamente.Contudo,ambassãoplausíveisse
acreditarmosqueDeuséonisciente.
MasFilosofia,amulhernaceladeBoécio,temalgumasrespostas.Eladizquenóstemos
simlivre-arbítrio.Elenãoéumailusão.PormaisqueDeussaibaoquefaremos,nossasvidas
nãosãopredestinadas.Ou,ditodeoutraforma,oconhecimentodeDeusarespeitodasnossas
açõesfuturasédiferentedapredestinação(aideiadequenãotemosescolhasobreoque
faremos).Nósaindatemosumaescolhasobreoquefazer.OerroépensaremDeuscomoseele
fosseumserhumanoqueobservaodesdobramentodascoisasnotempo.FilosofiadizaBoécio
queDeuséatemporal,foradetodootempo.
IssosignificaqueDeusapreendetudoemuminstante.Deusvêpassado,presenteefuturo
comoumacoisasó.Nós,mortais,estamospresosaumacontecimentoapósooutro,masnãoé
assimqueDeusosvê.ArazãodeDeusconhecerofuturosemdestruirnossolivre-arbítrioesem
nostransformaremumaespéciedemáquinaspré-programadassemabsolutamentenenhuma
escolhaéofatodeDeusnãonosobservaremnenhummomentoespecífico.Elevêtudodeuma
únicavezdemaneiraatemporal.EFilosofiadizaBoécioqueelenãodeveriaesquecerqueDeus
julgaossereshumanosemrelaçãoacomosecomportam,àsescolhasquefazem,mesmoque
saibadeantemãooquefarão.
SeFilosofiativerrazãosobreisso,eseDeusexiste,elesabeexatamentequando
terminareideescreverestafrase,mascontinuasendominhalivreescolhaterminá-lacomum
pontofinalnesteexatomomento.
Você,enquantoisso,aindaélivreparadecidirsevaiounãoleropróximocapítulo,que
examinadoisargumentosarespeitodacrençanaexistênciadeDeus.
CAPÍTULO8
Ailhaperfeita
ANSELMOEAQUINO
TodosnóstemosumaideiadeDeus.Entendemosoque“Deus”significa,queracreditemosou
nãoqueeledefatoexista.Comcerteza,vocêestápensandonasuaideiadeDeusnesteexato
momento.EissoparecebemdiferentededizerqueDeusrealmenteexiste.Anselmo(c.1033-
1109),padreitalianoquesetornouarcebispodaCantuária,tinhaumavisãobastantediferente:
comseuargumentoontológico,eleafirmatermostradoque,porumaquestãodelógica,ofatode
termosumaideiadeDeusprovaqueDeusrealmenteexiste.
OargumentodeAnselmo,incluídonolivroProslogion,começacomaafirmação
incontestáveldeque“nãosepodeconcebernadaquesejasuperioraDeus”.Estaéapenasoutra
formadedizerqueDeuséomaisgrandiosodosseresimagináveis:grandiosoempoder,em
bondadeeemconhecimento.Nãosepodeimaginarnadamaisgrandiosoqueele–poisessealgo
seriaDeus.Eleéosersupremo.EssadefiniçãodeDeusnãoparececontroversa:Boécio(ver
Capítulo7)odefiniademaneirasemelhante,porexemplo.Emnossamente,podemoster
claramenteumaideiadeDeus.Issotambéméindiscutível.MasentãoAnselmoapontaqueum
Deusexistenteapenasemnossamente,masnãonarealidade,nãoseriaomaisgrandiosodos
seresconcebíveis.UmDeusqueexistissenarealidadecertamenteseriaomaisgrandioso.Esse
Deuspoderiaconcebivelmenteexistir–atémesmoosateuscostumamreconhecê-lo.Contudo,um
DeusimaginadonãopodesermaisgrandiosoqueumDeusexistente.Portanto,concluiuAnselmo,
Deusdeveexistir.Talconclusãosegue-selogicamentedadefiniçãodeDeus.SeAnselmoestiver
certo,podemostercertezadequeDeusexistesimplesmentepelofatodetermosumaideiadele.
Trata-sedeumargumentoapriori,umargumentoquenãosebaseianaobservaçãosobreo
mundoparachegaraumaconclusão.Éumargumentológicoque,partindodeumponto
incontestável,pareceprovarqueDeusexiste.
Anselmousouoexemplodeumpintorqueimaginaacenaantesdepintá-la.Em
determinadomomento,opintorpintaoqueimaginou.Então,apinturaexistetantonaimaginação
quantonarealidade.Deusédiferentedessetipodecaso.Anselmoacreditavaqueera
logicamenteimpossívelterumaideiadeDeussemqueDeusdefatoexistisse,aopassoque
podemos,commuitafacilidade,imaginaropintorquejamaistenhapintadooquadroque
imaginou,demodoqueapinturasóexistanamentedele,masnãonomundo.Deuséoúnicoser
dessetipo:podemosimaginaranãoexistênciadetodasasoutrascoisassemnoscontradizermos.
SeentendermosverdadeiramenteoqueéDeus,reconheceremosqueseriaimpossívelsuanão
existência.
Muitaspessoasquecompreenderama“prova”deAnselmoacercadaexistênciadeDeus
suspeitamdequeháalgoduvidosonamaneiracomoelechegaaessaconclusão.Parece
simplesmentehaveralgoerradonoargumento.Pouquíssimaspessoaspassaramaacreditarem
Deustendoapenasesseraciocíniocomobase.Anselmo,emcompensação,citouumapassagem
dosSalmossegundoaqualsomenteumtolonegariaaexistênciadeDeus.QuandoAnselmoainda
estavavivo,umoutromonge,GaunilodeMarmoutier,criticouseuraciocínioapresentandoum
experimentomentalqueserviadesuporteparaaposiçãodostolos.
Imaginequeemalgumlugardooceanoháumailhaaondeninguémpodechegar.Essailha
temmuitasriquezaseérepletadetodososfrutos,árvores,plantasexóticaseanimais
imagináveis.Eelanãoéhabitada,oqueatornaumlugaraindamaisperfeito.Naverdade,trata-
sedailhamaisperfeitaquesepodeimaginar.Sealguémdizqueessailhanãoexiste,nãohá
muitadificuldadeementendermosoquesequerdizercomisso.Fazsentido.Massuponhaque
alguémlhedigaqueessailhadevedefatoexistirporqueémaisperfeitadoquequalqueroutra
ilha.Vocêtemumaideiadela.Porém,elanãoseriaailhamaisperfeitasesóexistisseemsua
mente.Então,eladeveexistirnarealidade.
Gauniloafirmouque,sealguémusasseesseargumentoparatentarnospersuadirdequea
maisperfeitadasilhasrealmenteexiste,provavelmenteacharíamosqueéumapiada.É
impossíveltrazeràexistênciarealumailhaperfeitaapenasimaginandocomoelapoderiaser.
Seriaumabsurdo.AideiadeGauniloéqueoargumentodeAnselmoparaaexistênciadeDeus
temamesmaformaqueoargumentoparaaexistênciadailhamaisperfeita.Senãoacreditamos
queamaisperfeitadasilhasimagináveispossaexistir,porqueacreditarnaexistênciadomais
perfeitodosseresimagináveis?Omesmotipodeargumentopoderiaserusadoparaimaginara
existênciadetodosostiposdeseres:nãosóailhamaisperfeita,masamontanhamaisperfeita,a
construçãomaisperfeita,aflorestamaisperfeita.GauniloacreditavaemDeus,maspensavaque
oraciocíniodeAnselmosobreDeus,nessecaso,nãosesustentava.Anselmorespondeu
concluindoqueseuargumentosófuncionavanocasodeDeusenãodeilhas,poisasoutras
coisassãosimplesmenteasmaisperfeitasdentrodesuaespécie,enquantoDeuséomaisperfeito
detudo.ÉporessarazãoqueDeuséoúnicoserquenecessariamenteexiste:oúnicoquenão
poderianãoexistir.
Duzentosanosdepois,emumapequenapartedeumaobramuitograndechamadaSuma
teológica,outrosantoitaliano,TomásdeAquino(1225-1274),esboçoucincoargumentos,as
cincovias,parademonstraraexistênciadeDeus.Hoje,ascincoviassãomaisconhecidasque
qualqueroutrapartedaobra.Asegundaviaeraoargumentodacausaprimeira,umargumento
que,comograndepartedafilosofiadeAquino,erabaseadoemoutroargumentousadomuito
antesporAristóteles.AssimcomoAnselmo,Aquinoqueriausararazãoparaprovaraexistência
deDeus.Oargumentodacausaprimeiratomacomopontodepartidaaexistênciadocosmos–
tudooquehá.Olheaoredor.Deondevemtudo?Arespostaimediataéquecadacoisaexisteeé
oqueéporqueteveumtipodecausa.Penseemumaboladefutebol.Elaéprodutodemuitas
causas–dacriaçãoefabricaçãodaspessoas,dascausasqueproduziramamatéria-primaetc.
Masoquecausouaexistênciadamatéria-prima?Eoquecausouessascausas?Podemos
retrocederetraçaressecaminho.Eretrocedermaisumpouco.Masessacadeiadecausase
efeitosnãoacabariasendoeterna?
Aquinoestavaconvencidodequenãopoderiahaverumasérieintermináveldeefeitose
causasprecedentesqueretrocedessemeternamentenotempo–umregressoinfinito.Sehouvesse
umregressoinfinito,significariaquejamaisexistiriaumacausaprimeira:algumacoisateria
causadoqualquercoisaquepensássemosseraprimeiracausa,quetambémteriaumacausa,e
assiminfinitamente.MasAquinopensavaque,logicamente,emalgummomentohaviaumacoisa
quetinhadesencadeadoascausaseosefeitos.Seissoforverdade,devehaveralgoquenãofoi
causadoequedeuinícioàsériedecausaseefeitosquenostrouxeatéondeestamosagora.A
causaprimeira,declarouele,devetersidoDeus.Deuséacausanãocausadadetudooque
existe.
Filósofosposterioresderammuitasrespostasaesseargumento.Algunsapontaramque,
mesmoqueconcordemoscomAquinodequedeveterhavidoalgumacausanãocausadaquedeu
inícioatudo,nãohánenhummotivoparticularparaacreditarqueessacausanãocausadafosse
Deus.Umacausaprimeiranãocausadateriadeserextremamentepoderosa,masnãohánada
nesseargumentoparasugerirqueelapreciseterqualquerdaspropriedadesqueasreligiões
costumamafirmarqueDeustem.Porexemplo,talcausanãocausadanãoprecisariaser
supremamenteboa;tampoucoteriadeseronisciente.Elapoderiatersidoumaespéciedeondade
energia,enãoumDeuspessoal.
OutraobjeçãopossívelaoraciocíniodeAquinoéadequenãotemosdeaceitarsua
suposiçãodequenãopoderiahaverumregressoinfinitodeefeitosecausas.Comosabemos?
Paratodacausaprimeiraquesepossasugerircomorigemdocosmos,épossívelperguntar:“Eo
queacausou?”.Aquinosimplesmenteassumiuque,secontinuássemosfazendoamesmapergunta,
chegaríamosaumpontoemquearespostaseria“Nada.Éumacausanãocausada”.Masnãoestá
claroseessarespostaémelhordoqueapossibilidadedehaverumregressoinfinitodeefeitose
causas.
SantoAnselmoeSãoTomásdeAquino,concentradosnacrençaemDeusecomprometidos
comumestiloreligiosodevida,formamumnítidocontrastecomNicolauMaquiavel,pensador
profanocomparadoporalgunsaodemônio.
CAPÍTULO9
Araposaeoleão
NICOLAUMAQUIAVEL
Imaginequevocêsejaumpríncipe,dotadodepoderabsoluto,governandoumacidade-estado,
comoFlorençaouNápoles,naItáliadoséculoXVI.Vocêdaráumaordemeelaseráatendida.Se
quisermandaralguémparaacadeiaporterfaladoalgocontravocê,ouporsuspeitardeque
houveumaconspiraçãoparamatá-lo,vocêpodefazê-lo.Hátropasaoseudispor,preparadas
parafazeroquevocêquiser.Masvocêestácercadoporoutrascidades-estados,governadaspor
ambiciososqueadorariamtomaroseuterritório.Comovocêsecomportaria?Deveriaser
honesto,cumprirsuaspromessas,agirsempredemaneirabenevolente,acreditarnomelhordas
pessoas?
NicolauMaquiavel(1469-1527)pensavaqueessaprovavelmenteseriaumamáideia,
emboratalvezvocêquisesseparecerhonestoeparecerbomnessesentido.Segundoele,àsvezes
émelhormentir,quebrarpromessaseatématarosinimigos.Umpríncipenãoprecisariase
preocuparemmantersuapalavra.Comodiziaele,umpríncipeeficaztemde“aprenderanãoser
bom”.Omaisimportanteeramanter-senopoder,equasetodasasformasdefazerissoeram
aceitáveis.Opríncipe,livronoqualelefalasobreessascoisas,tevefama(einfâmia)mesmo
antesdeserpublicadoem1532.Algumaspessoasodescreveramcomomalignoou,namelhor
dashipóteses,comoomanualdosfacínoras;outrasoconsideraramorelatomaisprecisojá
escritosobreoqueacontecenapolítica.Muitospolíticosatuaisleramolivro,embora
pouquíssimosadmitam,revelando,talvez,queestãocolocandoempráticaosprincípiosdaobra.
Opríncipenãofoiescritoparatodos,esimparaquemchegourecentementeaopoder.
Maquiaveloescreveuenquantomoravaemumafazendaacercadeonzequilômetrosaosulde
Florença.NoséculoXVI,aItáliaeraumlugarperigoso.Maquiavelnasceuecresceuem
Florença.Foinomeadodiplomataquandojovemeconheceudiversosreis,umimperadoreo
papaemsuasviagenspelaEuropa.Elenãodavamuitaimportânciaaessaspessoas.Oúnico
líderquerealmenteoimpressionavaeraCésarBórgia,umhomemimplacável,filhoilegítimodo
papaAlexandreVI,quenãoseimportavanadaemenganarosinimigosematá-losenquanto
assumiaocontroledeumagrandepartedaItália.NoqueserefereaMaquiavel,Bórgiafeztudo
corretamente,masfoiderrotadopelamásorte:adoeceujustamentequandofoiatacado.Amá
sortetambémteveumpapeldedestaquenavidadeMaquiavelefoioassuntosobreoqualele
maissedebruçou.
QuandoosMédici–umafamíliaextremamenterica–retomaramopoder,jogaram
Maquiavelnaprisão,afirmandoqueelefizerapartedeumaconspiraçãoparaderrubá-los.
AlgunscolegasdeMaquiavelforamexecutados,maselesobreviveuàtorturaefoilibertado.Sua
puniçãopornãoterconfessadonadafoiserbanido.Maquiavelfoidesligadodapolíticae
condenadoanãovoltarparaacidadequeamava.Foiquandoseretirounocampo,ondepassaria
astardesimaginandodiálogoscomosgrandespensadoresdopassado.Emsuaimaginação,eles
discutiamqualseriaamelhormaneiradeseconservarnopoderenquantolíder.Éprovávelque
eletenhaescritoOpríncipetantoparaimpressionarosgovernantesquantoparatentarconseguir
trabalhocomoconselheiropolítico.AssimelepoderiaretornarparaFlorençaeparaosencantos
eperigosdapolíticareal.Masoplanonãodeucerto:Maquiavelacaboutornando-seescritor.
AlémdeOpríncipe,eleescreveuváriosoutroslivrosdepolíticaefoiumdramaturgodesucesso
–suapeçaMandrágoraéencenadaatéhoje.
EntãooqueexatamenteMaquiavelaconselhavaeporqueissochocoutantoamaioriade
seusleitores?Aideiafundamentaleraadequeumpríncipeprecisavateroqueelechamoude
virtù.Emitaliano,essapalavrasignifica“firmeza”ouvalor.Oqueissosignifica?Maquiavel
acreditavaqueosucessodependemuitodaboasorte.Elepensavaquemetadedoqueacontece
conoscodeve-seaoacasoemetadeéresultadodenossasescolhas,mastambémacreditavaque
podemosmelhoraraschancesdesucessoagindobravaerapidamente.Sóporqueasorte
desempenhaumgrandepapelemnossavidanãoquerdizerquetenhamosdenoscomportarcomo
vítimas.Umriotemdefluir,issoéalgoquenãopodemosdeter;porém,seconstruirmosbarreiras
erepresas,aumentaremosachancedesobreviver.Emoutraspalavras,umlíderqueseprepara
bemeagarraaoportunidadequandoelasurgetemumaprobabilidademaiordesucessodoque
outroquenãoofaz.
Maquiavelestavadecididoquesuafilosofiadeveriaserenraizadanaquiloquerealmente
acontece.Elemostravaaosleitoresoquequeriadizerpormeiodeumasériedeexemplosda
históriarecente,envolvendoprincipalmentepessoasqueeleconhecia.Porexemplo,quando
CésarBórgiadescobriuqueosmembrosdafamíliaOrsiniplanejavamderrubá-lo,oslevoua
crerquenãosabiadenada.Induziuoslíderesaseencontrarcomeleemumlugarchamado
Sinigaglia.Quandochegaram,elematoutodos.Maquiavelaprovouaarmadilha.Paraele,parecia
umbomexemplodevirtù.
Emoutraocasião,quandoBórgiaassumiuocontroledeumaregiãochamadaRomanha,
colocounopoderumcomandanteparticularmentecruel,RemirrodeDeOrco,queapavoravao
povoobrigando-oalheobedecer.Quandoaregiãoseacalmou,Bórgiaquisafastar-seda
crueldadedeDeOrco.Entãoomatou,esquartejouocorpoedeixouospedaçosnapraçada
cidadeparaquetodosvissem.Maquiavelaprovouessaabordagemrepulsiva,quelevouBórgiaa
conseguiroquequeria:manterdoseuladoopovodeRomanha.OpovoestavafelizporDeOrco
termorrido,masaomesmotempopercebeuqueBórgiadeviaterencomendadooassassinato,e
issoosamedrontava.SeBórgiaeracapazdessetipodeviolênciacontraseuprópriocomandante,
ninguémestariaseguro.Portanto,aosolhosdeMaquiavel,aatitudedeBórgiafoivalorosa:ela
demonstravavirtùeeraexatamenteotipodecoisaqueumpríncipesensíveldeveriafazer.
IssodáaentenderqueMaquiavelaprovavaoassassinato.Elecertamenteoaprovavaem
algumasocasiões,seosresultadosojustificassem.Masessenãoeraoobjetivodosexemplos.O
queeleestavatentandomostrareraqueocomportamentodeBórgiaaomatarosinimigosetornar
umexemploseucomandanteDeOrcodeucerto.Issogerouosefeitosdesejadoseevitouuma
catástrofeprevista.Comseumododeagirrápidoecruel,Bórgiacontinuounopodereevitouque
opovodeRomanhasejuntassecontraele.ParaMaquiavel,oresultadofinaleramaisimportante
doqueomodocomoeraatingido:Bórgiaeraumbompríncipeporquenãohesitavaquandodevia
fazeroqueeranecessárioparasemanternopoder.Maquiavelnãoaprovariaoassassinato
despropositado,ouseja,matarpormatar;porém,osassassinatosdescritosnãoeramassim.
Maquiavelacreditavaqueagircomcompaixãonaquelascircunstânciasteriasidodesastroso:
ruimtantoparaBórgiaquantoparaoEstado.
Maquiavelressaltaqueémelhor,comolíder,sertemidodoqueseramado.Teoricamente,
omelhoréseramadoesertemido,masissoédifícildeconseguir.Sevocêconfiarnumpovoque
oama,correráoriscodeserabandonadoemmomentosdeadversidade.Sefortemido,opovo
terámedodetraí-lo.Issofazpartedocinismohumano,davisãoestreitadanaturezahumana.
Maquiavelpensavaqueossereshumanoseramsuspeitos,gananciososedesonestos.Setiverde
serumgovernantedesucesso,énecessárioquesaibadisso.Éperigosoacreditarqueaspessoas
cumprirãosuaspromessas,anãoserquetenhampavordasconsequênciasdenãocumpri-las.
Sevocêconseguirchegaraondequerdemonstrandobondade,cumprindosuaspromessase
sendoamado,façadessaforma(oupelomenosaparentequefaz).Docontrário,precisará
combinaressasqualidadeshumanascomqualidadesanimais.Outrosfilósofosenfatizaramqueos
líderesdeveriamconfiaremsuasqualidadeshumanas,masMaquiavelpensavaque,àsvezes,o
lídereficazteriadeagircomoumabesta,aprendendocomaraposaeoleão.Araposaé
perspicazeconseguereconhecerarmadilhas,aopassoqueoleãoéextremamentefortee
ameaçador.Nãoébomsercomoumleãootempotodo,agindoapenascomaforçabruta,pois
issoolevaráaoriscodecairnumaarmadilha.Tambémnãosepodeagirsomentecomouma
raposaesperta:vocêprecisarádaforçadoleãoparasemanteremsegurança.Contudo,seconfiar
naprópriabondadeesensodejustiça,nãodurarámuitotempo.Felizmente,aspessoassão
ingênuas:deixam-selevarpelasaparências.Portanto,comolíder,éprecisoterêxito,
demonstrandoserhonestoegentilenquantoquebrapromessaseagecruelmente.
Lendoisso,éprovávelquepensequeMaquiavelnãopassavadeumhomemmal.Muitas
pessoasacreditamnisso,eoadjetivo“maquiavélico”éamplamenteempregadocomoinsulto
parasereferiràquelequeestáprontoparafazertramoiaseusaraspessoascomoquerem,mas
outrosfilósofosacreditamqueMaquiaveldemonstroualgoimportante.Talvezobom
comportamentonãosirvaparaoslíderes.Umacoisaésergentilnavidacotidianaeconfiarnas
promessasquenosfazem;todavia,setivermosdegovernarumEstadoouumpaís,podeseruma
políticabastanteperigosaconfiarqueosoutrospaísessecomportarãobemcomrelaçãoanós.
Em1938,oprimeiro-ministrobritânicoNevilleChamberlainacreditouemHitlerquandoeste
deusuapalavradequenãotentariaexpandiraindamaisoterritórioalemão.Hojeissoparece
ingênuoetolo.MaquiavelteriaditoparaChamberlainqueHitlertinhatodasasrazõespara
mentirequenãoseriabomconfiarnele.
Poroutrolado,nãodevemosesquecerqueMaquiavelapoiouatosdeextremabrutalidade
contrainimigosempotencial.AtémesmonomundosanguináriodaItáliadoséculoXVI,sua
confessaaprovaçãodocomportamentodeCésarBórgiapareciachocante.Muitosdenóspensam
quedeveriahaverlimitesrígidosparaasaçõesdeumlíderemrelaçãoaseuspioresinimigose
queesseslimitesdeveriamserestabelecidosporlei.Senãohouverlimites,acabaremoscomo
tiranosselvagens.AdolfHitler,PolPot,IdiAmin,SaddamHusseineRobertMugabeusaramos
mesmostiposdetécnicasqueCésarBórgiaparasemanternopoder.Issonãoéexatamenteuma
boapropagandaparaafilosofiadeMaquiavel.
OpróprioMaquiavelvia-secomoumrealista,umsujeitoquereconheciaqueaspessoas
eramfundamentalmenteegoístas.ThomasHobbescompartilhavadessavisão,queservede
sustentáculoparaexplicarcomoelepensavaqueasociedadedeveriaserestruturada.
CAPÍTULO10
Sórdida,embrutecidaecurta
THOMASHOBBES
ThomasHobbes(1588-1679)foiumdosmaiorespensadorespolíticosdaInglaterra.Porém,
poucossabemqueelefoiumfanáticoporexercíciosfísicosdesdemuitojovem.Hobbes
costumavasairtodamanhãparaumalongacaminhadaesubiacolinasaltasatéperderofôlego.
Carregavaumabengalaespecialfeitacomumtinteironaponta,casotivessealgumaboaideia
enquantoestivessefora.Essesujeitoalto,derostocorado,alegre,queusavabigodeetinhaa
barbaumpoucorala,foiumacriançadoente.Noentanto,quandoadulto,foiextremamente
saudávelejogoutênisatéficarvelho.Comiamuitopeixe,bebiamuitovinhoecostumavacantar
–entrequatroparedes,longedosouvidosalheios–paraexercitarospulmões.E,obviamente,
comoamaioriadosfilósofos,tinhaumamenteextremamentedinâmica.Oresultadofoiqueele
viveuatéos91anos,umaidadeexcepcionalparaoséculoXVII,quandoaexpectativadevida
médiaerade35anos.
Apesardeseucarátergenial,Hobbes,assimcomoMaquiavel,tinhaumavisãonegativa
dossereshumanos.Eleacreditavaquebasicamentesomostodosegoístas,movidospelomedoda
morteepelaesperançadeganhospessoais.Todosnósbuscamosterpodersobreosoutros,
independentementedepercebermosounão.Sevocênãoconcordacomessadescriçãoda
humanidade,entãoporquetrancaaportaquandosaidecasa?Certamentenãoseriaporquesabe
daexistênciademuitagentequeadorariaroubartodasassuascoisas?Massomentealgumas
pessoassãoegoístas,vocêdiria.Hobbesdiscordava.Eleconsideravaque,nofundotodosnóso
somos,equesóoEstadodedireitoeaameaçadepuniçãopoderiammanter-nossobcontrole.
Aconsequênciadisso,argumentavaele,eraqueseasociedadesedissolvessee
tivéssemosdevivernoqueelechamavade“estadodenatureza”,semleisouninguémpara
aplicá-las,todosnósroubaríamosemataríamosquandonecessário.Aomenosteríamosdefazer
issosequiséssemoscontinuarvivendo.Emummundoderecursosescassos,principalmentese
estivéssemoslutandoparaencontrarcomidaeáguaparasobreviver,poderiaatéserracional
mataroutraspessoasantesqueelasnosmatassem.NamemoráveldescriçãodeHobbes,avida
foradasociedadeseria“solitária,pobre,sórdida,embrutecidaecurta”.
RetireopoderdoEstadodeimpedirqueaspessoasusemasterrasdosoutrosematem
quemquerqueseja,eoresultadoseráumaguerraintermináveldetodoscontratodos.Édifícil
imaginarumasituaçãopior.Nessemundosemleis,nemmesmoomaisforteestariaseguropor
muitotempo.Todosnósprecisamosdormire,enquantoestamosadormecidos,somosvulneráveis
aoataque.Atéomaisfraco,seespertoosuficiente,seriacapazdedestruiromaisforte.
Talvezvocêpensequeumadasmaneirasdeevitarsermortoseriasejuntaraosamigos.O
problemaéquenãosepodetercertezadequeaspessoassãoconfiáveis.Seoutrosprometemnos
ajudar,podeserqueemalgummomentosejadointeressedelesquebrarsuaspromessas.
Qualqueratividadehumanaquerequeracooperação,comoplantaralimentosemlargaescalaou
construirprédios,seriaimpossívelsemumnívelbásicodeconfiança.Sósaberíamosque
estamossendoenganadosquandofossetardedemaisetalvez,nestemomento,alguémesteja
literalmentenosapunhalandopelascostas.Nãohaverianinguémparapuniroapunhalador.
Nossosinimigospoderiamestaremqualquerlugar.Viveríamosavidainteiracommedodo
ataque:umaperspectivanadaatraente.
Hobbesargumentavaqueasoluçãoseriacolocarumindivíduoouparlamentopoderosono
comando.Osindivíduosnoestadodenaturezateriamdeentraremum“contratosocial”,um
acordoparaabrirmãodesuasperigosasliberdadesemnomedasegurança.Semoqueele
chamoude“soberano”,avidaseriacomouminferno.Osoberanoreceberiaodireitodeimpor
severaspuniçõesaqualquerumquepisasseforadalinha.Hobbesacreditavaque
reconheceríamoscomoimportantesalgumasleisnaturais,comadequedeveríamostrataros
outroscomogostaríamosdesertratados.Asleisnãoservemparanadasenãoháalguémoualgo
forteosuficienteparafazercomquetodosassigam.Semleisesemumsoberanopoderoso,as
pessoasnoestadodenaturezapodiamesperarumamorteviolenta.Oúnicoconsoloéqueuma
vidadessetiposeriamuitobreve.
Leviatã(1651),olivromaisimportantedeHobbes,explicaemdetalhesospassos
necessáriosparasairdopesadelodoestadodenaturezaparaumasociedadesegura,naquala
vidaésuportável.“Leviatã”éummonstromarinhogigantescodescritonaBíblia.ParaHobbes,
eleeraumareferênciaaograndepoderdoEstado.OLeviatãabrecomailustraçãodeumgigante
emdestaquesobreumacolina,segurandoumaespadaeumcetro.Odesenhoécompostode
muitaspessoasbemmenores,reconhecivelmenteaindaindivíduos.OgiganterepresentaoEstado
poderoso,tendocomochefeumsoberano.Semumsoberano,acreditavaHobbes,tudose
desintegrariaeasociedadesedividiriaemindivíduosseparados,prontosparadestruirosoutros
indivíduosnabuscapelasobrevivência.
Osindivíduosnoestadodenatureza,então,teriamrazõesmuitoboasparaquerertrabalhar
juntasebuscarapaz.Eraaúnicaformadeseprotegerem.Semisso,suasvidasseriamterríveis.
Asegurançaeramuitomaisimportantedoquealiberdade.Omedodamortelevariaaspessoasa
formaremumasociedade.Hobbespensavaqueelasconcordariamemabrirmãodesualiberdade
paraestabelecerumcontratosocialcomooutro,umapromessaquepermiteaosoberanoimpor
asleis.Seriamelhorqueaspessoastivessemumaautoridadepoderosanocomandodoque
lutassemumascontraasoutras.
Hobbesatravessoutemposdifíceis,inclusivenoútero.Elenasceuprematurodepoisque
suamãeentrouemtrabalhodepartoaoouvirqueaInvencívelArmadaEspanholaestava
dirigindo-separaaInglaterraeinvadiriaopaís.Felizmente,issonãoaconteceu.Depois,ele
escapoudosperigosdaGuerraCivilInglesamudando-separaParis,masomedorealdequea
Inglaterrapudessefacilmentecondescenderàmonarquiaperseguiuseusúltimosescritos.Foiem
ParisqueeleescreveuLeviatã,retornandoàInglaterralogodepoisdesuapublicaçãoem1651.
Assimcomomuitospensadoresdesuaépoca,Hobbesnãofoiapenasfilósofo–eleerao
quechamaríamoshojede“homemrenascentista”.Tinhaumprofundointeresseporgeometriae
ciência,bemcomoporhistóriaantiga.Adoravaliteraturaquandojovemechegouaescrevê-lae
traduzi-la.Nafilosofia,àqualcomeçouasededicarnameia-idade,eramaterialistaeacreditava
queossereshumanoseramnadamaisdoqueseresfísicos.Aalmanãoexiste:somosapenas
corpo,oqual,emúltimainstância,éumamáquinacomplexa.
OsmecanismosderelógioseramatecnologiamaisavançadanoséculoXVII.Hobbes
acreditavaqueosmúsculoseosórgãosdocorpoequivaliamaessesmecanismos:eleescreveu
algumasvezessobreas“molas”daaçãoeas“rodas”quenosmovem.Estavaconvencidodeque
todososaspectosdaexistênciahumana,inclusiveopensamento,eramatividadesfísicas.Emsua
filosofia,nãohaviaespaçoparaaalma.Estaéumaideiamodernaquemuitoscientistas
sustentamatualmente,maseraradicalnaépocadeHobbes.Elechegouinclusiveaafirmarque
Deusdeviaserumobjetofísicogigantesco,emboraalgumaspessoasinterpretassemissocomo
umatentativadisfarçadadedeclararqueeraateu.
OscríticosdeHobbespensamqueelefoilongedemaisaoconsentirqueosoberano,quer
fosseumrei,umarainhaouoparlamento,tivessetamanhopodersobreoindivíduonasociedade.
OEstadoqueeledescreveseriaoquehojechamamosdeautoritário:umEstadoemqueo
soberanotempraticamentepoderesilimitadossobreoscidadãos.Apazpodeserdesejável,eo
medodamorteviolentaumforteincentivoparasesubmeteraospoderesquemantêmapaz.
Contudo,colocartantonasmãosdeumindivíduoougrupodeindivíduospodeserperigoso.Ele
nãoacreditavanademocracia;nãoacreditavanacapacidadedaspessoasdetomardecisõespor
sipróprias.MassesoubessedoshorrorescometidospelostiranosnoséculoXX,teriamudado
deideia.
Hobbesfoifamosoporrecusar-seaacreditarnaexistênciadaalma.RenéDescartes,seu
contemporâneo,emcontraste,acreditavaqueaalmaeocorpoeramcompletamentedistintosum
dooutro.ProvavelmenteporissoHobbespensavaqueDescarteseramuitomelhoremgeometria
doqueemfilosofiaedeveriaater-sesomenteàprimeira.
CAPÍTULO11
Estaríamossonhando?
RENÉDESCARTES
Vocêescutaodespertador,desliga-o,levantadacama,veste-se,tomacafédamanhã,apronta-se
paramaisumdia.Derepente,algoinesperadoacontece:vocêacordaepercebequeestava
sonhando.Emseusonho,vocêestavadespertoedandoseguimentoàvida,masnaverdadeainda
estavaroncandoembaixodocobertor.Sevocêjáteveumadessasexperiências,entenderáoque
digo.Elasgeralmentesãochamadasde“falsodespertar”epodemserbastanteconvincentes.O
filósofofrancêsRenéDescartes(1596-1650)teveumaqueodeixoupensando.Comoelepoderia
tercertezadequenãoestavasonhando?
ParaDescartes,afilosofiaeraumentremuitosinteressesintelectuais.Elefoium
matemáticobrilhante,talvezmaisconhecidoporterinventadoas“coordenadascartesianas”–
supostamentedepoisdeverumamoscacruzandootetoepensandoemcomopoderiadescrever
suaposiçãoemváriospontos.Aciênciatambémofascinava,eeleeratantoastrônomoquanto
biólogo.Suareputaçãocomofilósofodeve-seprincipalmenteaMeditaçõeseaDiscursodo
método,livrosnosquaiseleexplorouoslimitesdoquepossivelmentepodiaconhecer.
Comoamaioriadosfilósofos,Descartesnãogostavadeacreditaremnadasemantes
examinarporqueacreditavanaquilo;eletambémgostavadefazerperguntascomplicadas,que
outraspessoasevitavamfazer.Obviamente,elepercebeuquenãopodiaviverquestionandotudo
otempointeiro.Seriaextremamentedifícilviversenãotomássemoscertascoisascomo
verdadeirasnamaiorpartedotempo,oquePirrosemdúvidadescobriu(verCapítulo3).Mas
Descartespensouquevaleriaapenatentarumaveznavidadescobriroqueelepodiasabercom
certeza.Paraisso,eledesenvolveuummétodo,hojeconhecidocomométododadúvida
cartesiana.
Ométodoébastantesimples:nãoaceitenadacomoverdadeirosehouveramínima
possibilidadedequenãooseja.Penseemumgrandesacodemaçãs.Vocêsabequedentrodo
sacoexistemalgumasmaçãsestragadas,masnãotemcertezadequaissãoelas.Vocêquerchegar
aopontodeterumsacosócommaçãsboas.Comochegariaaesseresultado?Umamaneiraseria
despejartodasasmaçãsnochãoeexaminarumaauma,guardandodevoltasomenteaquelasque
vocêtivesseabsolutacertezadeseremboas.Talvezvocêdescartasseduranteoprocesso
algumasmaçãsboas,porqueelasparecemestarumpoucoestragadaspordentro,masa
consequênciaseriaterumsacosócommaçãsboas.Ométododadúvidacartesianaeramaisou
menosassim.Vocêtomaumacrença,como“estouacordado,lendoestelivro”,examinando-a,e
sóaaceitasetivercertezadequeelanãoéerradaouenganadora.Sehouveromínimoespaço
paraadúvida,rejeite-a.Descartesanalisoudiversascoisasnasquaisacreditavaequestionouse
eletinhaounãocertezadequeelaseramoquepareciamser.Seriaomundorealmentetalcomo
pareceser?Tinhaelecertezadequenãoestavasonhando?
Descartesqueriaencontrarumacoisadaqualpudessetercerteza.Issoseriaosuficiente
paraquetivesseumapoiofixonarealidade.Porém,haviaoriscodeadentraremumredemoinho
dedúvidaseacabarpercebendoqueabsolutamentenadaeracerto.Aquieleteveumacerta
atitudecética,masdiferentedoceticismodePirroeseusseguidores.Estesqueriammostrarque
nadapodiaserconhecidocomcerteza;Descartes,porsuavez,queriamostrarquealgumas
crençassãoimunesatémesmoàsformasmaisradicaisdeceticismo.
Descartescomeçousuabuscaporcertezaspensandoprimeironasevidênciasquevêm
pelossentidos:visão,tato,olfato,paladareaudição.Podemosconfiarnossentidos?Não
totalmente,concluiuele.Ossentidosàsvezesnosenganam.Cometemoserros.Pensenoquevocê
vê.Suavisãoéconfiávelemrelaçãoatudo?Devemosconfiarsempreemnossosolhos?
Umbastãoretodentrodaáguapodeparecertortoseoolhamosdelado.Umatorre
retangularpodeparecerarredondadaàdistância.Todosnósàsvezescometemoserrossobreo
quevemos.Descartesafirmavaquenãoseriasábioconfiaremalgoquejánosenganouno
passado.Dessemodo,elerejeitaossentidoscomopossívelfontedecerteza,poisnuncaestará
certodequeossentidosnãooestãoenganando.Provavelmenteossentidosnãonosenganamna
maiorpartedotempo,masavagapossibilidadedequepodemviranosenganarsignificaque
nãopodemosconfiarneles.Masaondeissoolevou?
Acrença“estouacordadolendoestelivro”provavelmentelhepareceumacerteza.Você
estáacordado,acredito,elendo.Comopoderiaduvidardisso?Noentanto,jámencionamosque
podemospensarqueestamosacordadosnosonho.Comovocêsabequenãoestásonhandoagora?
Talvezimaginequeasexperiênciasquevivesãoreaisdemais,detalhadasdemaisparaserem
sonhos,masinúmeraspessoastêmsonhosbastantevívidos.Vocêtemcertezadequenãoestá
sonhandoagora?Comosabedisso?Talveztenhaacabadodesebeliscarparaverseestá
acordado.Senãoofez,tente.Oqueissoprova?Nada.Vocêpodetersonhadoquesebeliscou.
Entãopodiaestarsonhando.Seiquenãopareceeémuitoimprovávelqueissoesteja
acontecendo,masnãopodehaverespaçoparaamenorsombradedúvidasobresevocêestá
sonhandoounão.Portanto,paraaplicarométododadúvidacartesiana,éprecisoaceitarquea
crença“estouacordadolendoestelivro”nãoéumacertezatotal.
Issomostraquenãopodemosconfiartotalmentenossentidos.Nãopodemostercerteza
absolutadequenãoestamossonhando.Mascertamente,dizDescartes,atémesmonossonhos,2
+3=5.ÉnessepontoqueDescartesusaumexperimentomental,umahistóriaimagináriapara
afirmarsuaideia.Eleforçaadúvidaatéoseulimitemáximoeelaboraumtesteaindamaisárduo
paraqualquercrençadoqueotestedapergunta“poderiaeuestarsonhando?”.Elediz:imagine
queháumdemônioincrivelmentepoderosoeinteligente,mastambémamigável.Essedemônio,
seexistir,poderiafazerparecerque2+3=5todavezquevocêfizesseasoma,mesmoqueo
resultadofosse6.Nãoteriacomosaberqueodemôniofaziaisso.Vocêsimplesmenteestaria
somandonúmerosdemodoinocente.Tudoparecerianormal.
Nãoénadafácilprovarqueissonãoestejaacontecendoagora.Talvezessedemônio
inteligenteeamigávelestejaentãomeiludindodequeestousentadoemcasaescrevendono
computador,quandonaverdadeestoudeitadonumapraianosuldaFrança.Outalvezeuseja
apenasumcérebronumacubacheiadelíquidonumaprateleiradolaboratóriododemônio.Ele
podetercolocadoeletrodosnomeucérebroeestámeenviandomensagenseletrônicasquedãoa
impressãodequeestoufazendoumacoisa,quandonaverdadeestoufazendooutra
completamentediferente.Talvezodemônioestejamefazendopensarqueestoudigitando
palavrasquefazemsentido,quandonaverdadeestouapenasdigitandoamesmaletraumavez
atrásdaoutra.Nãohácomosaber.Nãohácomoprovarqueissonãoestejaacontecendo,por
maisloucoqueissopossaparecer.
EsseexperimentomentaldodemôniomalignoéaformadeDescarteslevaradúvidaao
limite.Sehouvessealgodoqualpudéssemostercertezanãoserumenganoprovocadopelo
demônio,seriamaravilhoso.Issonosdariaummeioderesponderàspessoasqueafirmamnão
serpossívelconhecerabsolutamentenadaaocerto.
OpróximopassodeDescarteslevouaumadaslinhasmaisconhecidasnafilosofia,
emboraonúmerodepessoasqueconheceacitaçãosejamuitomaiordoqueaspessoasquea
compreendem.Descartespercebeuque,mesmoseodemônioexistisseeoestivesseenganando,
deveriaexistiralgoquenãopodiaserinduzidopelodemônio.Comoeleestavadefatotendoum
pensamento,ele,Descartes,temdeexistir.Odemônionãopoderiafazê-loacreditarqueele
existiasenãoexistisse,porqueumacoisaquenãoexistenãopensa.“Penso,logoexisto”(cogito
ergosum,emlatim)foiaconclusãodeDescartes.Estoupensando,entãotenhodeexistir.Tente
fazerisso.Comoestátendoumpensamentoouumasensação,éimpossívelduvidardasua
existência.Oquevocêéconstituioutraquestão–vocêpodeduvidardequetenhaumcorpo,ou
duvidardequetenhaumcorpoqueconsegueveretocar.Masnãopodeduvidardequeexiste
comoalgumtipodecoisapensante.Talpensamentoseriaautocontestador.Quandocomeçamosa
duvidardanossaprópriaexistência,oatodadúvidaprovaqueexistimoscomoserpensante.
Issonãopodeparecergrandecoisa,masacertezadesuaprópriaexistênciafoimuito
importanteparaDescartes.Elaomostrouqueaquelesqueduvidavamdetudo–oscéticos
pirrônicos–estavamerrados.Elatambémfoioiníciodoquechamamosdedualismocartesiano.
Trata-sedaideiadequeanossamenteéseparadadocorpoeinteragecomele.Éumdualismo
porquehádoistiposdecoisa:amenteeocorpo.GilbertRyle,filósofodoséculoXX,
ridicularizouessavisãocomoummitodofantasmanamáquina:ocorpoeraamáquina,eaalma
ofantasmaquenelahabitava.Descartesacreditavaqueamenteeracapazdeproduzirefeitosno
corpoevice-versa,porqueosdoisinteragiamemdeterminadopontonocérebro–aglândula
pineal.Contudo,seudualismoodeixoucomsériosproblemassobrecomoexplicarqueuma
coisanãofísica,aalmaouamente,produzamudançasemumacoisafísica,ocorpo.
Descartesestavamaiscertosobreaexistênciadamentequedocorpo.Eleeracapazdese
imaginarnãotendoumcorpo,masnãoconseguiaimaginar-sesemumamente.Seimaginassenão
terumamente,aindaestariapensando,oqueprovariaqueeletinhaumamenteporquenão
poderiaterabsolutamentepensamentonenhumsenãotivesseumamente.Essaideiadequecorpo
ementepodemserseparadosedequeamenteouoespíritonãoéfísico,nemfeitodesangue,
carneeossos,émuitocomumentreosreligiosos.Muitoscrentesesperamqueamenteouo
espíritoaindavivadepoisdamortedocorpo.
Noentanto,provaraprópriaexistência,postoqueelepensava,nãoteriasidosuficiente
pararefutaroceticismo.Descartesprecisavadeoutrascertezasparaescapardoredemoinhoda
dúvidaquehaviaevocadocomsuasmeditaçõesfilosóficas.EleargumentouqueumbomDeus
deveexistir.UsandoumaversãodoargumentoontológicodeSantoAnselmo(verCapítulo8),ele
seconvenceudequeaideiadeDeusprovaaexistênciadeDeus–Deusnãoseriaperfeito,anão
serquefossebomeexistisse,talcomoumtriângulonãoseriaumtriângulosemosângulos
interioresquesomam180graus.Outrodeseusargumentos,oargumentodamarca,sugeriaque
sabemosqueDeusexisteporqueeledeixouumaideiaimplantadaemnossamente–nãoteríamos
umaideiadeDeusseElenãoexistisse.DepoisdetermoscertezadequeDeusexiste,afase
construtivadopensamentodeDescartestorna-semuitomaisfácil.UmbomDeusnãoenganariaa
humanidadeemrelaçãoàscoisasmaisbásicas.Portanto,concluiuDescartes,omundodeveser
maisoumenoscomonósovivenciamos.Quandotemospercepçõesclarasedistintas,elassão
confiáveis.Aconclusãodele:omundoexisteeémaisoumenoscomopareceser,aindaque
algumasvezespossamoscometererrossobreoquepercebemos.Algunsfilósofos,porém,
acreditamqueissonãopassadeumpensamentofantasiosoequeodemôniomalignopoderia,
comamesmafacilidade,tê-loenganadosobreaexistênciadeDeuscomooenganouque2+3=
5.SemacertezadaexistênciadeumbomDeus,Descartesnãoteriasidocapazdeiralémdo
conhecimentodequeeraumserpensante.Eleacreditavaquehaviamostradoumasaídado
completoceticismo,masseuscríticosaindasãocéticosemrelaçãoaisso.
Descartes,comovimos,usouoargumentoontológicoeoargumentodamarcaparaprovar
asipróprioqueDeusexistia.SeuconterrâneoBlaisePascaltinhaumaabordagembastante
diferentequantoàquestãodaquiloemquedevemosacreditar.
CAPÍTULO12
Façamsuasapostas
BLAISEPASCAL
Sejogamosumamoedaparaoalto,elapodedarcaraoucoroa.Aprobabilidadedesairumou
outroladoéde50/50,anãoserqueamoedatenhaumainclinação.Portanto,realmentenão
importadequeladovocêaposte,poisaprobabilidadedesaircaraoucoroaacadavezquea
moedaéjogadaéexatamenteamesma.OquevocêfariasenãotivessecertezaseDeusexisteou
não?Seriacomojogarumamoedaparacima?ApostariananãoexistênciadeDeuseviveria
comobementendesse?OuseriamaisracionalagircomoseDeusexistisse,mesmoquea
probabilidadedeissoserverdadesejamínima?BlaisePascal(1623-1662),queacreditavaem
Deus,pensoubastantenessaquestão.
Pascaleracatólicodevoto.Contudo,aocontráriodemuitoscristãosdehoje,eletinhauma
visãoextremamentesombriadahumanidade.Eleerapessimista.Emtodaparte,elevia
evidênciasdopecadooriginal,dasnossasimperfeiçõesque,segundoele,deviam-seaofatode
AdãoeEvateremtraídoaconfiançadeDeusaocomeramaçãdaárvoredoconhecimento.
AssimcomoAgostinho(verCapítulo6),eleacreditavaqueossereshumanossãomovidospelo
desejosexual,nãosãoconfiáveiseentediam-semuitofacilmente.Todossãounsmiseráveis.
Todosvivemnatensãoentreangústiaedesespero.Deveríamosperceberoquantosomos
insignificantes.OcurtotempoquepassamosnaTerra,emrelaçãoàeternidadeanteriore
posteriorànossavida,quasenãotemsentidonenhum.Cadaumdenósocupaumespaçoínfimo
noespaçoinfinitodouniverso.Poroutrolado,Pascalacreditavaqueahumanidadetinhaalgum
potencial,desdequenãoperdêssemosDeusdevista.Estamosemalgumlugarentrebestase
anjos,masprovavelmentebemmaispertodasbestasnamaioriadoscasosenamaiorpartedo
tempo.
OlivromaisconhecidodePascal,Pensées[Pensamentos],foicompostodefragmentos
dosseusescritosepublicadoem1670,depoisdesuamorteprecoceaos39anos.Eleéescrito
emumasériedeparágrafoscurtoselaboradosmagnificamente.Ninguémsabeaocertocomoele
planejoujuntaraspartesnumtodo,masoprincipalobjetivodolivroéclaro:defendersuaversão
docristianismo.Pascalnãohaviaterminadoolivroquandomorreu:aordemdaspartesé
baseadanaformacomoeleorganizouospedaçosdepapelempilhasamarradascomum
barbante.Cadapilhacorrespondeaumaseçãodolivropublicado.
Pascalfoiumacriançadoentee,durantetodaasuavida,continuoudebilitadofisicamente.
Elenuncaparecebememretratospintados.Elenosfitacomolhoslacrimejantes.Quandojovem,
encorajadopelopai,Pascaltornou-secientista,trabalhouemideiassobrevácuosedesenhou
barômetros.Em1642,inventouumacalculadoramecânicaquepodiasomaresubtrairusandoum
instrumentopontudoparagirarosnúmerospresosaengrenagensintrincadas.Eleacrioupara
ajudaropainosnegócios.Dotamanhodeumacaixadesapatos,acalculadoraeraconhecida
comoPascalinae,emborafosseumpoucodeselegante,elafuncionava.Oúnicoproblemaerao
altocustodesuaprodução.
Alémdesercientistaeinventor,Pascaleraummatemáticoinvejável.Suasideias
matemáticasmaisoriginaiseramsobreprobabilidade.Masfoicomofilósofodareligiãoe
escritorqueeleviriaaserlembrado.Nãosepodedizerqueelegostariadeserchamadode
filósofo:seusescritosincluíammuitoscomentáriossobrecomoosfilósofossabiampoucoe
sobreoquantoassuasideiaseramirrelevantes.Eleseconsideravaumteólogo.
Pascaldeixouamatemáticaeaciênciaparaescreversobrereligiãoquandojovem,depois
detersidoconvertidoaumacontroversaseitareligiosaconhecidacomojansenismo.Os
jansenistasacreditavamnapredestinação,ideiadequenãotemoslivre-arbítrioedequeapenas
pouquíssimaspessoasjáhaviamsidopré-selecionadasporDeusparairemparaocéu.Eles
tambémacreditavamemummododevidabastanterígido.Pascalumavezrepreendeuairmã
quandoaviuacariciandoofilho,poiselenãoaprovavamanifestaçõesdeemoção.Elepassou
seusúltimosanosvivendocomomongee,emborasofressemuitoporcausadadoençaqueo
acaboumatando,conseguiuescrever.
RenéDescartes(temadoCapítulo11)–assimcomoPascal,devotocristão,cientistae
matemático–acreditavaserpossívelprovaraexistênciadeDeuspelalógica.Pascalpensavao
contrário.Paraele,acrençaemDeusrelacionava-secomocoraçãoecomafé.Elenãofoi
persuadidopelostiposderaciocíniocomumenteusadospelosfilósofosarespeitodaexistência
deDeus.Elenãoestavaconvencido,porexemplo,dequeerapossívelverevidênciasdasmãos
deDeusnanatureza.Paraele,eraocoração,enãoocérebro,oórgãoquenoslevaaDeus.
Apesardisso,emseusPensées,eleapresentouumargumentobastanteplausívelpara
convenceraquelesquenãoestãocertosseDeusrealmenteexisteaacreditaremDeus,um
argumentoqueficouconhecidocomoapostadePascal.Esseargumentoerabaseadoemseu
interessepelaprobabilidade.Sevocêforumapostadorracional,enãoapenasumviciado,
desejaráteramelhorchancedeganharumgrandeprêmio,mastambémminimizarasperdas
semprequepossível.Apostadorescalculamprobabilidadese,emprincípio,apostamdemaneira
correspondente.EntãooqueissosignificaquandosetratadeapostarnaexistênciadeDeus?
SupondoquevocênãosaibaseDeusexisteounão,hádiversasopções.Vocêpodeviver
comoseDeusdefinitivamentenãoexistisse.Seestivercerto,terávividosemseiludircomuma
possívelvidaapósamortee,porisso,teráevitadoaangústiadiantedapossibilidadedenão
chegaraocéuportersidoumpecadordemasiado.Tambémnãoteráperdidotemponaigreja
orandoparaumserinexistente.Masessaabordagem,emboratenhaalgunsbenefíciosclaros,traz
consigoumgranderisco.SevocênãoacreditaemDeuseelerealmenteexiste,vocênãosóterá
perdidoachancedaglórianoscéus,comotambémacabaránoinferno,ondeserátorturadopor
todaaeternidade.Paraqualquerpessoa,esteéopiordosfinaisimagináveis.
Poroutrolado,PascalsugerequevocêpodeescolhervivercomoseDeusexistisse.Pode
orar,iràigreja,leraBíblia.SeficarprovadoqueDeusrealmenteexiste,vocêganharáomelhor
prêmiopossível:apossibilidadedaglóriaeterna.SeescolheracreditaremDeusquandona
verdadeelenãoexiste,osacrifíciofeitonãoterásidotãogrande(e,presumivelmente,vocênão
existirámaisdepoisdamorteparasaberqueestavaerradoeficartristeporcontadotempoedo
esforçoperdidos).NaspalavrasdePascal,“emcasodevitória,ganha-setudo;emcasode
derrota,perde-senada”.Elereconheceuquetalveznãoaproveitemosos“prazeresque
envenenam”:oluxoeoprestígio.Masseremosfiéis,honestos,modestos,gratos,generosos,bons
amigosesemprediremosaverdade.Nemtodosveriamaquestãonessestermos.Pascal
provavelmenteestavatãoimersoemumestilodevidareligiosoquenãopercebeuquealgumas
pessoasnãoreligiosasconsiderariamumsacrifíciodevotaravidaàreligiãoeviverdailusão.
Noentanto,comoafirmaPascal,deumladoexisteachancedaglóriaeternaseacreditarmosem
Deuseestivermoscorretos,ealgumasilusõeseinconvenientesrelativamentepequenosse
estivermoserrados.Deoutrolado,corremosoriscodeirparaoinfernosenãoacreditarmosem
Deuseeleexistir,masospossíveisganhossecomparamàeternidadenocéu.
TambémnãopodemosficarindecisosemrelaçãoàexistênciaounãodeDeus.Doponto
devistadePascal,setentarmosfazerisso,poderemosterosmesmosresultadosqueteríamosse
nãoacreditássemosnaexistênciadeDeus:acabaríamosnoinferno,oupelomenosnãoteríamos
acessoaocéu.SevocêrealmentenãosabeseDeusexiste,oquedeveriafazer?
Pascalconsideravaarespostaóbvia.Sevocêforumapostadorracionaleobservaras
probabilidadescomumbomolhar,veráquedeveriaapostarnaexistênciadeDeus,mesmoque,
comonocasodamoeda,hajaumapequenachancedeestarcorreto.Opossívelprêmioéinfinito
eapossívelperdanãoégrande.Nenhumserracionalfariaoutracoisaquenãofosseapostarna
existênciadeDeuscomessasprobabilidades,pensavaele.Obviamente,háumriscodese
apostaremDeuseperder,nocasodeelenãoexistir,porémesseéoriscoquesecorre.
Masesevocêconsegueveralógicadissotudoe,mesmoassim,nãosentirdecoraçãoque
Deusexiste?Érealmentedifícil(talvezatéimpossível)convencer-nosaacreditaremalgoque
suspeitemosnãoserverdade.Tenteacreditarqueexistemfadasemseuguarda-roupa.Vocêpode
atéimaginá-las,oqueémuitodiferentederealmenteacreditarqueelasestejamlá.Nós
acreditamosnaquiloquejulgamosserverdade.Eisanaturezadacrença.Então,comoumapessoa
queduvidadaexistênciadeDeuspassaaterféemDeus?
Pascaltinhaumarespostaparaisso.Depoisdeperceberqueseriamelhoracreditarem
Deus,vocêprecisaráencontrarumamaneiradeseconvencerdaexistênciadeleeterfé.Oque
devefazeréimitaraspessoasquejáacreditamemDeus.Passeumtemponaigrejafazendoo
mesmoqueaspessoasfazemlá.Tomeáguabenta,participedasmissaseassimpordiante.
Pascalpensavaquelogovocêestaránãosóimitandoasaçõesdessaspessoas,comotambém
tendoascrençaseossentimentosqueelastêm.Éasuamelhorchancedeganharavidaeternae
evitaroriscodatorturaeterna.
NemtodosconsideramoargumentodePascalabsolutamenteconvincente.Umdos
problemasmaisclaroséqueDeus,seexistir,nãoserámuitofavorávelàspessoasquesó
acreditamneleporserestaaapostamaissegura.Essapareceserumarazãoerradaparaacreditar
emDeus.Elaéegoístademaisporserbaseadainteiramentenodesejopessoaldesalvara
própriaalmaaqualquercusto.UmdosriscosseriaqueDeuspoderiaimpediraentradanocéu
daquelesqueusassemoargumentodaaposta.
OutroproblemasériocomaapostadePascalénãolevaremcontaapossibilidadedeque,
aoadotá-la,vocêpodeestaroptandopelareligiãoerradaepeloDeuserrado.Pascaldavaa
opçãodetermosféemumDeuscristãoouemnenhumDeus,mashámuitasoutrasreligiõesque
prometemaglóriaeternaaosfiéis.Seumapessoadessasreligiõesmostra-secorreta,oindivíduo
queadotouaapostadePascal,aooptarporseguirocristianismo,podeestarseexcluindoda
felicidadeeternanocéutãocertamentequantoaquelequerejeitaacreditaremDeus.SePascal
tivessepensadonessapossibilidade,talveztivessesidoaindamaispessimistaemrelaçãoà
condiçãohumana.
PascalacreditavanoDeusdescritonaBíblia;BaruchEspinosatinhaumavisãobem
diferentedadeidade,visãoestaquelevoualgunsasuspeitaremdequeeleeraumateudisfarçado
CAPÍTULO13
Opolidordelentes
BARUCHESPINOSA
AmaiorpartedasreligiõesensinaqueDeusexisteemalgumlugarforadomundo,talveznocéu.
BaruchEspinosa(1632-1677)eraumaexceção,poispensavaqueDeuséomundo.Paradefender
seuargumento,eleescreviasobre“DeusouNatureza”–querendodizerqueasduaspalavras
referem-seàmesmacoisa.DeuseNaturezasãoduasmaneirasdedescreverumaúnicacoisa.
Deuséanatureza,eanaturezaéDeus.Estaéumaformadepanteísmo–crençadequeDeusé
tudo.Foiumaideiaradicalqueoenvolveuemumagrandequantidadedeconfusões.
EspinosanasceuemAmsterdãeerafilhodejudeusportugueses.Naépoca,Amsterdãfazia
sucessoentreaspessoasquefugiamdaperseguição,masatémesmoláhavialimitesàsvisões
quepodiamserexpressas.Apesardetersidocriadonareligiãojudaica,Espinosafoi
excomungadoeamaldiçoadopelorabinonasinagogaem1656,quandotinha24anosdeidade,
provavelmenteporquesuasvisõessobreDeuseramheterodoxasdemais.EledeixouAmsterdãe
mudou-separaHaia.Apartirdaí,passouaserconhecidocomoBeneditodeEspinosa,enão
Baruch,seunomejudeu.
Muitosfilósofosficavamimpressionadoscomageometria.Asfamosasprovasdevárias
hipótesesgeométricasdadasporEuclides,filósofogregoantigo,iamdealgunsaxiomassimples
ousuposiçõesiniciaisaconclusõescomoadequeasomadosângulosinterioresdeumtriângulo
éigualadoisângulosretos.Oqueosfilósofoscostumamadmirarnageometriaéaformacomo
elacaminha,apassoslógicoscuidadosos,depontosiniciaispré-estabelecidosatéconclusões
surpreendentes.Seosaxiomassãoverdadeiros,entãoasconclusõestêmdeserverdadeiras.Esse
tipoderaciocíniogeométricoinspiroutantoRenéDescartesquantoThomasHobbes.
Espinosanãosóadmiravaageometria;eleescreviafilosofiacomosefossegeometria.As
“provas”emseulivroÉticaparecemprovasgeométricaseincluemaxiomasedefinições.Supõe-
sequeelastêmamesmalógicaimplacáveldageometria.Contudo,emvezdeostópicostratarem
dosângulosdostriângulosedacircunferênciadoscírculos,elesversamsobreDeus,natureza,
liberdadeeemoção.Espinosasentiaqueerapossívelpensarnessesassuntoseanalisá-lostal
comoraciocinamossobretriângulos,círculosequadrados.Elechegaaterminarasseçõescom
“QED”,abreviaçãodequoderatdemonstrandum,expressãolatinaquesignifica“como
queríamosdemonstrar”eapareceemlivrosdegeometria.Espinosaacreditavaquetantoomundo
quantoonossolugarneletinhamumalógicaestruturalsubjacentequepoderiaserreveladapela
razão.Nadaéoqueéporacaso;háumpropósitoeumprincípioparatudoisso.Tudoseencaixa
emumsistemagigantesco,eamelhormaneiradeentenderissoépelaforçadopensamento.Essa
abordagemàfilosofia,enfatizandoarazãoenãooexperimentoeaobservação,costumaser
chamadaderacionalismo.
Espinosagostavadeficarsozinho.Foinasolidãoqueencontrouotempoeapazde
espíritoparaseguircontinuarosestudos.Provavelmentetambémeramaisseguronãofazerparte
deumainstituiçãomaispública,dadassuasvisõessobreDeus.Tambémporessarazão,seulivro
maisfamoso,Ética,sótenhasidopublicadodepoisqueelemorreu.Emboratenhaadquiridoa
famadeserumpensadorextremamenteoriginalenquantoaindaestavavivo,rejeitouaofertapara
ocuparumacadeiranaUniversidadedeHeidelberg.Noentanto,ficavafelizpordiscutirsuas
ideiascomalgunspensadoresqueovisitavam.OfilósofoematemáticoGottfriedLeibnizeraum
deles.
Espinosalevavaavidademaneirabastantesimples,morandoemhospedariasemvezde
compraraprópriacasa.Elenãoprecisavademuitodinheiroeconseguiasobrevivercomoque
ganhavacomopolidordelentesemaisalgunspequenospagamentosfeitosporquemadmirava
seutrabalhofilosófico.Aslentesquefaziaeramusadaseminstrumentoscientíficos,como
telescópiosemicroscópios.Issopermitiaqueelecontinuasseindependenteetrabalhassenas
hospedarias,masinfelizmentetambémcontribuiuparaquemorressecedo,aos44anos,deuma
infecçãopulmonar.Elerespiravaofinopódevidroquesesoltavadaslentes,eébemprovável
queissotenhaprejudicadoseuspulmões.
SeDeuséinfinito,diziaEspinosa,segue-sequenãopodeexistirnadaquenãosejaDeus.
SedescobrirmosalgonouniversoquenãosejaDeus,éporqueDeusnãoéinfinito,poisDeus
poderia,emprincípio,tersidoessealgo,bemcomotodasasoutrascoisas.Todossomospartes
deDeus,mastambémosãoaspedras,formigas,folhasdegramaejanelas.Tudo.Todasas
coisasestãointegradasemumtodoincrivelmentecomplexo,mas,emúltimainstância,tudooque
existeépartedeumaúnicacoisa:Deus.
OsreligiosostradicionaispregavamqueDeusamavaahumanidadeerespondiaapreces
pessoais.Estaéumaformadeantropomorfismo–atribuirqualidadeshumanas,comocompaixão,
aumsernãohumano,Deus.AmaisextremaformadeantropomorfismoéimaginarDeuscomoum
homembondoso,debarbalongaesorrisogentil.ODeusdeEspinosanãosepareciaemnada
comisso.Ele–outalvezdemaneiramaisprecisa,“isso”–eraimpessoalenãoseimportava
comnadanemcomninguém.SegundoEspinosa,podemosedevemosamaraDeus,masnão
espereseramadodevolta.Issoseriacomoseumamantedanaturezaesperassequeelaoamasse
devolta.Naverdade,oDeusqueeledescreveétãocompletamenteindiferenteemrelaçãoaos
sereshumanoseaoqueelesfazemquemuitospensavamqueEspinosanãoacreditavaemDeuse
queseupanteísmoeraumdisfarce.Elefoitomadocomoateístaecontrárioàreligiãoaomesmo
tempo.Afinal,comopoderiaserconsideradaumapessoaqueacreditaqueDeusnãoseimporta
comahumanidade?Noentanto,daperspectivadeEspinosa,eletinhaumamorintelectualpor
Deus,umamorbaseadonoentendimentoprofundo,obtidopelarazão,oqueestavalongedeser
umareligiãoconvencional.Asinagogaprovavelmenteestavacertaemexcomungá-lo.
AsideiasdeEspinosasobreolivre-arbítriotambémeramcontroversas.Eleera
determinista.Issosignificaqueacreditavaquetodaaçãohumanaeraoresultadodecausas
anteriores.Umapedrajogadaparacima,sepudesseteraconsciênciadeumserhumano,pensaria
quesemoveporvontadeprópria,mesmoquenãosemovesse.Oquenaverdadeapropele
adianteéaforçadoarremessoeosefeitosdagravidade.Apedrapensariaqueela,enãoa
gravidade,controlasuatrajetória.Comossereshumanosaconteceomesmo:imaginamosestar
escolhendolivrementeoquefazemosetermoscontrolesobrenossasvidas.Masissoporqueem
geralnãoentendemosamaneiracomonossasescolhaseaçõesforamprovocadas.Naverdade,o
livre-arbítrioéumailusão.Nãoexiste,emabsoluto,aaçãolivreespontânea.
Emborafossedeterminista,Espinosaacreditavaquealgumtipodeliberdadehumanabem
limitadaerapossíveledesejável.Apiormaneiradeexistireraestarnoqueelechamoude
servidão:àcompletamercêdasemoções.Quandoalgoderuimacontece,alguémérude,por
exemplo,eperdemosacalmaenosenchemosdeódio,essaéumamaneirabastantepassivade
existir.Simplesmentereagimosaosacontecimentos.Eventosexternoscausam-nosraiva.Não
estamosnocontroledejeitonenhum.Amaneiradeescapardissoéterumamelhorcompreensão
dascausasquemoldamocomportamento–ascoisasquenoslevamaterraiva.Segundo
Espinosa,omelhorquetemosafazerélevarasemoçõesasurgiremdasnossasescolhas,enão
doseventosexternos.Mesmoqueessasescolhasjamaispossamserplenamentelivres,émelhor
sermosativosdoquepassivos.
Espinosaéumsujeitotípicodafilosofia.Elefoipreparadoparasercontroverso,
apresentarideiasquenemtodosestavamprontosparaouviredefendersuasvisõescom
argumentação.Pormeiodaescrita,elecontinuainfluenciandoquemlêsuaobra,mesmoquando
discordamenfaticamentedoqueeledisse.AcrençadequeDeuséanaturezanãofoiaceitana
época,masdepoisqueEspinosamorreuconquistouadmiradoresbastantenotáveis,incluindoo
romancistavitorianoGeorgeEliot,quefezumatraduçãodeÉtica,eofísicoAlbertEinstein,do
séculoXX,que,emboranãotenhatidocoragemparaacreditaremumDeuspessoal,revelouem
umacartaqueacreditavanoDeusdeEspinosa.
ODeusdeEspinosa,comovimos,eraimpessoalenãotinhacaracterísticashumanas;
portanto,nãopunirianinguémporseuspecados.JohnLocke,nascidonomesmoanoque
Espinosa,tomouumalinhabemdiferente.Suadiscussãodanaturezadoquechamadesi-mesmo
[self]foiparcialmenteinspiradaemsuapreocupaçãosobreoqueacontecerianodiadojuízo
final.
CAPÍTULO14
Opríncipeeosapateiro
JOHNLOCKEETHOMASREID
Comoquevocêsepareciaquandobebê?Setiverumafotografiadaépoca,dêumaolhadanela.
Oquevê?Eramesmovocênafotografia?Vocêéprovavelmentemuitodiferentehoje.Consegue
selembrardecomoeraserumbebê?Amaioriadenósnãoconsegue.Todosnósmudamoscomo
tempo.Crescemos,nosdesenvolvemos,amadurecemos,decaímos,esquecemosdascoisas.A
maioriadenósenche-sederugas,ocabeloacabaficandobrancooucai,mudamosnossas
opiniões,nossosamigos,nossaformadevestir,nossasprioridades.Dessemodo,emquesentido
vocêseria,quandovelho,amesmapessoaqueobebêqueforaoutrora?Essaperguntasobreo
quefazdeumapessoaamesmacomopassardotempofoiumadasqueatormentouofilósofo
inglêsJohnLocke(1632-1704).
Locke,assimcomomuitosfilósofos,tinhainteressesamplos.Entusiasmava-secomas
descobertascientíficasdosamigosRobertBoyleeIsaacNewton,envolveu-senapolíticada
épocaetambémescreveusobreeducação.LogodepoisdaGuerraCivilInglesa,fugiuparaa
HolandaacusadodeterseenvolvidoemumaconspiraçãoparamataroreiCarlosII,recém-
restituídonaépoca.Depoisdisso,Lockedefendeuatolerânciareligiosa,argumentandoserum
absurdotentarforçaraspessoaspormeiodatorturaamudarsuascrençasreligiosas.Suaideia
dequetemosaliberdade,afelicidade,apropriedadeeodireitoàvidadadosporDeus
influenciouosmembrosdacomissãoqueescreveramaConstituiçãodosEstadosUnidos.
NãotemosnenhumafotografiaoudesenhodeLockequandocriança,maséprovávelque
tenhamudadobastanteàmedidaqueenvelheceu.Quandochegouàmeia-idade,eleeraumafigura
magra,deolharpenetranteecabelocompridoeirregular.Quandobebê,noentanto,teriasido
bemdiferente.UmadascrençasdeLockeeraadequeamentedeumrecém-nascidoécomoum
quadrobranco.Nãosabemosnadaquandonascemos,etodooconhecimentoquetemosvemda
experiênciadevida.QuandoobebêLockecresceuetornou-seumjovemfilósofo,adquiriutodos
ostiposdecrençasetornou-seapessoaquehojeconhecemoscomoJohnLocke.Masemque
sentidoelefoiamesmapessoaqueobebê,eemquesentidooLockedemeia-idadeeraamesma
pessoaqueelefoiquandojovem?
Essetipodeproblemanãopodeserlevantadosomenteparasereshumanosquese
perguntamsobresuarelaçãocomopassado.ComopercebeuLocke,issopodeserumaquestão
quandopensamossobremeias.Setemosumameiacomumburacoeoremendamos,edepois
remendamosoutroburacoemaisoutro,acabaremostendoumameiaqueconsisteapenasde
remendos,semnadamaisdomaterialoriginal.Elaaindaseráamesmameia?Emcertosentido,
sim,poisháumacontinuidadedepartesdameiaoriginalàmeiatotalmenteremendada.Contudo,
emoutrosentido,elanãoéamesmameia,poisnelanãorestanadadomaterialoriginal.Ou,
então,penseemumaárvore.Elanascedeumasemente,perdeasfolhastodososanos,cresce,os
galhoscaem,maselacontinuasendoamesmaárvore.Seriaasementeamesmaplantaqueo
brotoeseriaobrotoamesmaplantaqueaárvore?
Umadasmaneirasdetrataraquestãosobreoquetornaumserhumanoamesmapessoa
comopassardotemposeriaapontarquesomoscoisasvivas.Somososmesmosanimaisque
éramosquandobebês.Lockeusavaapalavra“homem”(quesignificatanto“homem”quanto
“mulher”)parasereferirao“animalhumano”.Elepensavaqueeraverdadeirodizerque,no
decorrerdavida,cadaumdenóspermaneciaomesmo“homem”nessesentido.Háuma
continuidadedoserhumanoquesedesenvolvenodecorrerdavida.Todavia,paraLocke,sero
mesmo“homem”erabemdiferentedeseramesmapessoa.
SegundoLocke,eupoderiaseromesmo“homem”,masnãoamesmapessoaquefui
anteriormente.Comoassim?Oquefazdenósamesmapessoacomopassardotempo,diziaele,
éanossaconsciência,apercepçãoquetemosdonossosi-mesmo[self].Aquilodequenão
podemosnoslembrarnãofazpartedenóscomopessoas.Parailustrarisso,eleimaginouum
príncipeacordandocomaslembrançasdeumsapateiroeumsapateiroacordandocomas
memóriasdeumpríncipe.Opríncipeacordanopalácio,comoédecostume,eparatodosos
efeitoseleéamesmapessoaqueeraquandofoisedeitar.Porém,comosuasmemóriassãodeum
sapateiroemvezdassuaspróprias,elesentequeéumsapateiro.OobjetivodeLockeera
mostrarqueopríncipeestácertoporsentirqueéumsapateiro.Acontinuidadecorporalnão
importanessecaso.Oquevalenasquestõessobreaidentidadepessoaléacontinuidade
psicológica.Sevocêtemmemóriasdeumpríncipe,éporqueéumpríncipe.Setiverasmemórias
deumsapateiro,éporqueéumsapateiro,mesmoquetenhaocorpodeumpríncipe.Seo
sapateirotivessecometidoumcrime,quemseriaresponsabilizadoporissoseriaaquelecom
corpodepríncipe.
Éclaroqueasmemóriasnãosãotrocadasassim.Lockeusavaesseexperimentomental
paradefenderumargumento.Entretanto,algumaspessoasafirmamqueépossívelmaisdeuma
pessoahabitaromesmocorpo.Trata-sedeumacondiçãoconhecidacomodistúrbiodemúltipla
personalidade,quandoparecequediferentespersonalidadesapresentam-secomoumúnico
indivíduo.Lockepreviuessapossibilidadeeimaginouduaspersonalidadescompletamente
diferentesvivendonomesmocorpo–umaseapresentandoduranteodiaeaoutraduranteanoite.
Paraele,seessasduasmentesnãotêmacessoumaàoutra,entãosetratadeduaspessoas.
ParaLocke,questõesrelacionadasàidentidadepessoalestavamintimamenteconectadasà
responsabilidademoral.EleacreditavaqueDeussópuniriaaspessoaspeloscrimesqueelasse
lembrassemdetercometido.Apessoaquenãoselembrassemaisdeterfeitoomalnãoseriaa
mesmapessoaquecometeuocrime.Navidacotidiana,éclaro,aspessoasmentemsobreaquilo
dequeselembram.Portanto,sealguémafirmaterseesquecidodoquefez,osjuízesrelutamem
deixá-lairembora.MascomoDeussabetudo,serácapazdedizerquemmereceapuniçãoe
quemnãomerece.UmaconsequênciadavisãodeLockeseriaque,seumcaçadordenazistas
encontrasseumidosoque,quandojovem,foraguardadeumcampodeconcentração,oidososó
seriaresponsávelpeloqueconseguisseselembrar,enãoporoutroscrimes.Deusnãoopuniria
poraçõesdasquaiseleseesqueceu,aindaqueosjúriscomunsnãolhedessemobenefícioda
dúvida.
AabordagemdeLockeàidentidadepessoaltambémrespondeuaumaquestãoqueocupou
algunsdosseuscontemporâneos.Elesseperguntavamseprecisávamosdomesmocorpoparaser
trazidosdevoltaàvidaparachegaraoparaíso.Sesim,oqueaconteceriaseoseucorpofosse
comidoporumcanibalouanimalselvagem?Comovocêreuniriatodasaspartesdocorpopara
serressuscitadodosmortos?Seocanibalcomeuseucorpo,partesdevocêsetornaramparte
dele.Então,comoseriapossívelrestabelecerocorpotantodocanibalquantoodacarnedo
canibal(istoé,você)?Lockedeixouclaroqueoqueimportavaeraseramesmapessoanavida
apósamorte,enãoomesmocorpo.Nessavisão,poderíamosserasmesmaspessoasse
tivéssemosasmesmasmemórias,aindaqueelasestivessemligadasaumcorpodiferente.
UmaconsequênciadavisãodeLockeéquevocêprovavelmentenãoéamesmapessoaque
obebêdafotografia.Vocêéomesmoindivíduo,masnãopodeseramesmapessoa,excetose
conseguirselembrardeserumbebê.Suaidentidadepessoalsóseestendeatéondevaisua
memóriaemrelaçãoaopassado.Omesmoacontecequandoasmemóriasseenfraquecemna
velhice:aextensãodoquevocêécomopessoatambémdiminuirá.
AlgunsfilósofosacreditamqueLockefoiumpoucolongedemaisaoenfatizaramemória
autoconscientecomoabasedaidentidadepessoal.NoséculoXVIII,ofilósofoescocêsThomas
ReidapresentouumexemplomostrandoumpontofraconaformadeLockepensarsobreoqueé
serumapessoa.Umvelhosoldadopodelembrar-sedacoragemqueteveemumabatalhaquando
aindaerajovem;e,quandoerajovem,poderialembrar-sedequelevaraumasurraquandogaroto
porroubarmaçãsdeumpomar.Contudo,navelhice,osoldadonãopodemaisselembrardesse
acontecimentodainfância.Poderiadefatoessepadrãodememóriasquesesobrepõemsignificar
queovelhosoldadoaindaéamesmapessoaqueogaroto?ThomasReidpensavaqueeraóbvio
ovelhosoldadoaindaseramesmapessoaqueogaroto.
DeacordocomateoriadeLocke,ovelhosoldadoeraamesmapessoaqueojovem
soldado,masnãoeraamesmapessoaqueogarotoquelevaraasurra(porqueovelhosoldado
haviaseesquecidodisso).Contudo,tambémdeacordocomateoriadeLocke,ojoveme
corajososoldadoeraamesmapessoaqueacriança(porqueeleconseguiaselembrardo
episódiodopomar).Issonosdáoresultadoabsurdodequeovelhosoldadoéamesmapessoa
queojovemsoldadocorajosoedequeojovemsoldadocorajosoéamesmapessoaquea
criança;mas,aomesmotempo,ovelhosoldadoeacriançanãosãoamesmapessoa.Poruma
questãológica,issonãofazomenorsentido.ÉcomodizerqueA=BeB=C,masAnãoéigual
aC.Aidentidadepessoal,parece,baseia-seemmemóriassobrepostas,enãoemumarecordação
total,comoqueriaLocke.
OimpactodeLockecomofilósofocorrespondeamuitomaisdoquesuadiscussãosobrea
identidadepessoal.EmseulivroEnsaiosobreoentendimentohumano(1690),eleapresentaa
visãodequenossasideiasrepresentamomundoparanós,massomentealgunsaspectosdesse
mundosãocomoparecemser.IssolevouGeorgeBerkeleyacriarsuaprópriaexplicaçãoda
realidade.
CAPÍTULO15
Oelefantecinza
GEORGEBERKELEY(EJOHNLOCKE)
Vocêjáparouparapensarsealuzdageladeirarealmenteseapagaquandofechaaportae
ninguémmaispodevê-la?Comopoderiaver?Talvezimprovisandoumacâmera.Masentãoo
queacontecequandovocêdesligaacâmera?Eumaárvorecaindonumaflorestaondeninguém
podeescutar?Elafazrealmentealgumbarulho?Comovocêsabequeoseuquartocontinua
existindo,semserobservado,quandovocênãoestádentrodele?Talvezeledesapareçatodavez
quevocêsai.Seriapossívelpedirquealguémverificasseparavocê.Aquestãocomplicadaé:
elecontinuaexistindomesmoquandonãoéobservadoporninguém?Nãoestáclarocomo
poderíamosresponderaessasquestões.Amaioriadenóspensaqueosobjetoscontinuam
existindoquandonãosãoobservadosporqueessaéaexplicaçãomaissimples.Amaioriadenós
tambémacreditaqueomundoqueobservamosestádefatoláfora,enãoapenasemnossamente.
Noentanto,deacordocomGeorgeBerkeley(1685-1753),filósofoirlandêsquesetornou
bispodeCloyne,tudooquedeixadeserobservadodeixadeexistir.Senãohánenhumamente
conscientedolivroquevocêestálendo,elenãoexistirámais.Quandovocêestáolhandoparao
livro,conseguevê-loetocaraspáginas,mas,paraBerkeley,issonãosignificanadaalémdeque
vocêtemexperiências.Nãoimportaseháalgumacoisaláfora,nomundo,causandoessas
experiências.Olivroéapenasumareuniãodeideiasemsuamenteenamentedeoutraspessoas
(etalveznamentedeDeus),nãoalgoalémdamente.ParaBerkeley,todaanoçãodeummundo
exteriornãofazsentidonenhum.Tudoissopareceircontraosensocomum.Certamenteestamos
rodeadosdeobjetosquecontinuamexistindoquerestejamosounãocientesdele,nãoé?Berkeley
achavaquenão.
ÉcompreensívelquemuitaspessoastenhampensadoqueBerkeleyestavaloucoquando
começouaexplicitaressateoria.Naverdade,foisomentedepoisdesuamortequeosfilósofos
começaramalevá-loasérioereconheceroqueeleestavatentandodizer.QuandoSamuel
Johnson,umcontemporâneodeBerkeley,soubedateoria,chutouumapedranaruaedisse:“É
destemodoquearefuto”.Johnsonacreditavatercertezadequeascoisasmateriaisexistemenão
sãoapenascompostasdeideias–elesentiubemforteodedobaternapedraquandoachutou,
entãoBerkeleydeviaestarerrado.Todavia,BerkeleyeramaisinteligentedoqueJohnson
pensava.Sentiradurezadeumapedracontraopénãoprovavaaexistênciadeobjetosmateriais,
apenasaexistênciadaideiadeumapedradura.Tantoque,paraBerkeley,oqueelechamavade
pedranadamaiséqueassensaçõesqueelasuscita.Nãohánenhumapedrafísica“real”portrás
doquecausouadornopé.Naverdade,nãohárealidadenenhumaportrásdasideiasquetemos.
Berkeleyàsvezesédescritocomoidealista,eàsvezescomoimaterialista.Eraidealista
porqueacreditavaquetudooqueexistiaeramasideias;eeraimaterialistaporquenegavaqueas
coisasmateriais–osobjetosfísicos–existiam.Assimcomomuitosoutrosfilósofosdiscutidos
nestelivro,eleerafascinadopelarelaçãoentreaparênciaerealidade.Amaiorpartedos
filósofos,acreditavaele,estavamerradossobreoqueeraessarelação.Emparticular,ele
argumentavaqueJohnLockeestavaerradosobrecomonossospensamentosrelacionam-secomo
mundo.ÉmaisfácilentenderaabordagemdeBerkeleycomparando-acomadeLocke.
Lockepensavaque,seolhamosparaumelefante,nãovemosoelefanteemsi.Oque
tomamoscomoelefantenaverdadeéumarepresentação:oqueelechamoudeumaideiana
mente,algocomooretratodeumelefante.Lockeusavaapalavra“ideia”parasereferira
qualquercoisaquepudéssemosperceberoupensar.Quandovemosumelefantecinza,a
qualidadedocinzanãopodesimplesmenteseralgonoelefante,poiselepareceriaserdeoutra
corsobumaluzdiferente.AqualidadedocinzaéoqueLockechamoude“qualidade
secundária”.Elaéproduzidapelacombinaçãodecaracterísticasdoelefanteecaracterísticasdo
nossoaparatosensorial–nessecaso,oolho.Acordapele,atexturaeocheirodococôdo
elefantesãoqualidadessecundárias.
Asqualidadesprimárias,comotamanhoeforma,segundoLocke,sãocaracterísticasreais
dascoisasnomundo.Asideiasdasqualidadesprimáriaslembramessascoisas.Quandovemos
umobjetoquadrado,oobjetorealquedáorigemànossaideiadoobjetotambéméquadrado.
Masquandovemosumquadradovermelho,oobjetorealnomundoqueprovocanossapercepção
nãoévermelho.Objetosreaisnãotêmcor.Assensaçõesdecor,acreditavaLocke,vinhamda
interaçãoentreastexturasmicroscópicasdosobjetosenossosistemavisual.
Contudo,háaquiumproblemasério.Lockeacreditavaqueháummundoláfora,omundo
queoscientistastentamdescrever,massóchegamosatéeledemaneiraindireta.Eleerarealista,
poisacreditavanaexistênciadeummundoreal.Essemundorealcontinuaexistindo,mesmo
quandoninguémestácientedele.AdificuldadeparaLockeésabercomoomundoé.Elepensa
quenossasideiasdasqualidadesprimárias,comoformaetamanho,sãoboasrepresentaçõesda
realidade.Mascomoexplicar?Comoempirista,alguémqueacreditaqueaexperiênciaéafonte
detodonossoconhecimento,eledeveriaterboasevidênciasparaafirmarqueasideiasdas
qualidadesprimáriaslembramomundoreal.Massuateorianãoexplicadequemaneiraelesabia
comoeraomundoreal,vistoquenãopodemosiratéeleparaverificar.Comopodiatertanta
certezadequeasideiasdasqualidadesprimárias,comoformaetamanho,lembramasqualidades
domundorealforadenós?
Berkeleyalegavasermaisconsistente.AdespeitodeLocke,elepensavaquenós
percebemosomundodiretamente,issoporqueomundonãoconsistedenadaalémdeideias.
Tudooqueexisteéaexperiênciacomoumtodo.Emoutraspalavras,omundoetudooqueestá
nelesóexistemnamentedaspessoas.
ParaBerkeley,tudooqueexperimentamoseemquepensamos–umacadeiraouumamesa,
onúmero3etc.–sóexistenamente.Umobjetoéapenasareuniãodeideiasquenóseoutras
pessoastemosdele.Elenãotemnenhumaexistênciaalémdisso.Semalguémparavê-losou
ouvi-los,osobjetossimplesmentedeixamdeexistir,poisosobjetosnãosãonadaalémdas
ideiasqueaspessoas(eDeus)têmdeles.Berkeleyresumiuessaestranhavisãoemlatimcomo
“Esseestpercipi”–ser(ouexistir)éserpercebido.
Porisso,aluzdageladeiranãopodeestarligada,eaárvorenãopodefazerbarulho
quandonenhumamenteasexperimenta.Essapareceriaseraconclusãoóbviaretiradado
imaterialismodeBerkeley.MasBerkeleynãopensaqueosobjetospassamaexistiredeixamde
existircontinuamente.Elepróprioreconheceuqueissoseriaestranho.EleacreditavaqueDeus
garantiaaexistênciacontínuadasnossasideias.Deusestavaconstantementepercebendoas
coisasnomundo,eporissoelascontinuavamexistindo.
IssofoirepresentadoemdoispoemashumorísticosescritosnoiníciodoséculoXX.
Vejamosoprimeiro,quesalientaaestranhezadaideiadequeumaárvoredeixariadeexistirse
ninguémaestivesseobservando:
Eraumavezumhomemquedisse:
Deusiarir
sesoubessequeaárvore
continuaaexistir
quandoninguémestáaqui.
Issoestátotalmentecorreto.OaspectomaisdifícildeaceitarnateoriadeBerkeleyéque
umaárvorenãoestariaemseulugarsenãohouvesseninguémaexperienciando.Osegundoéa
solução,umamensagemdeDeus:
Meucaroamigo,estousempreaqui,
eéporissoqueaárvore
continuaráaexistir.
Deusaobserva
semnuncadesistir.
UmadificuldadeóbviaparaBerkeley,noentanto,éexplicarcomopodemosestarsempre
erradosemrelaçãoàscoisas.Setudooquetemossãoideias,enãoháoutromundoportrás
delas,comosabemosadiferençaentreosobjetosreaiseasilusõesópticas?Arespostadeleera
queadiferençaentreaexperiênciadoquechamamosrealidadeeaexperiênciadeumailusãoé
que,quandoexperimentamosa“realidade”,nossasideiasnãosecontradizemumasàsoutras.Por
exemplo,quandoolhamosumremodentrod’água,elepodeparecertortovistodasuperfícieda
água.ParaumrealistacomoLocke,averdadeéqueoremoérealmentereto–elesóparece
torto.ParaBerkeley,temosumaideiadeumremotorto,maselacontradizasideiasquetemosse
colocarmosamãodentrodaáguaetocá-lo.Sentiremos,assim,queeleéreto.
Berkeleynãopassavaotempointeirodefendendoseuimaterialismo.Haviamuitomais
coisasparaelefazernavida.Eleeraumhomemsociáveleadorável,eseusamigosincluíam
JonathanSwift,autordeAsviagensdeGulliver.Nofinaldavida,Berkeleyelaborouumplano
ambiciosoparaconstruirumauniversidadenailhadeBermudaseconseguiuumgrandeapoio
financeiroparamontá-la.Infelizmenteoplanodeuerrado,emparteporqueelenãohavia
percebidooquantoBermudaseralongedocontinenteeoquantoeradifícillevarsuprimentosaté
lá.Noentanto,depoisdesuamorte,eleteveumauniversidadenacostaoestedosEstadosUnidos
nomeadaemsuahomenagem–Berkeley,naCalifórnia.Ahomenagemocorreuporcontadeum
poemaqueeleescreveusobreaAmérica,quecontinhaestalinha:“Oeste,ahistóriadoimpério
segueseucaminho”,versoqueagradavaaumdosfundadoresdauniversidade.
TalvezaindamaisestranhoqueoimaterialismodeBerkeleysejasuapaixão,naidade
avançada,porfomentaraáguadealcatrão,umremédiofeitocomalcatrãodepinhoeágua.
Esperava-sequeessaáguacurassetodasasdoenças.Elechegouaopontodeescreverumlongo
poemasobrecomoomedicamentoerafantástico.Emboraaáguadealcatrãotenhasidopopular
durantealgumtempo,etalvezatétenhafuncionadoparacurarenfermidadesmaissimples,pois
elatemumalevepropriedadeantisséptica,certamentenãoéumremédioconhecidohoje.O
idealismodeBerkeleynãosedifundiudamesmamaneira.
Berkeleyéoexemplodeumfilósofoqueestavapreparadoparaseguirumargumento
aondequerqueelefosse,atémesmoquandoparecialevaraconclusõesquedesafiavamosenso
comum.Voltaire,emcontrapartida,tevepoucotempoparaessetipodepensadorou,naverdade,
paraamaioriadosfilósofos.
CAPÍTULO16
Omelhordetodososmundospossíveis?
VOLTAIREEGOTTFRIEDLEIBNIZ
Vocêfariaomundodojeitoqueéseoestivesseprojetando?Provavelmentenão.Porém,no
séculoXVIII,algumaspessoasargumentaramqueaquelemundoeraomelhordetodososmundos
possíveis.“Tudooqueé,écorreto”,declarouopoetainglêsAlexanderPope(1688-1744).Tudo
oqueexistenomundoédojeitoqueéporumarazão:tudoéobradeDeus,eDeusébometodo-
poderoso.Doenças,inundações,terremotos,incêndiosflorestais,secas–tudofazpartedoplano
deDeus.Nossoerroénosconcentrarmosdemaisemdetalhesindividuaisenãoverocontexto
comoumtodo.SepudéssemosnosdistanciareverouniversodeondeDeusestá,
reconheceríamosaperfeiçãoqueeleé,comotodasascoisasseencaixametudooqueparece
malé,naverdade,partedeumplanomuitomaisamplo.
Popenãoestavasozinhoemseuotimismo.OfilósofoalemãoGottfriedWilhelmLeibniz
(1646-1716)usouoseuprincípiodarazãosuficienteparachegaràmesmaconclusão.Elesupôs
quedevehaverumaexplicaçãológicaparatudo.ComoDeuséperfeitoemtodososaspectos–
issofazpartedadefinição-padrãodeDeus–,segue-sequeDeusdevetertidoexcelentesrazões
paracriarouniversoexatamentedaformacomocriou.Nadapoderiaserdeixadoaoacaso.Deus
nãocriouummundoabsolutamenteperfeitoemtodososaspectos–issotornariaomundoo
próprioDeus,poisDeuséacoisamaisperfeitaqueháoupodehaver.Maseledeveterfeitoo
melhordosmundospossíveis,oúnicocomamínimaquantidadedemalnecessárioparaobter
esseresultado.Nãopoderiahaverumamaneiramelhordejuntarospedaçosdoqueesta:nenhum
projetoteriaproduzidomaisbondadeusandomenosmal.
François-MarieArouet(1694-1778),maisconhecidocomoVoltaire,nãoviadessa
maneira.Elenãoseconformavadejeitonenhumcomessa“prova”dequetudoestáindobem.
Elesuspeitavaprofundamentedossistemasfilosóficosedotipodepensadorqueacreditater
todasasrespostas.Essedramaturgo,satírico,escritordeficçãoepensadorficoumaisconhecido
emtodaaEuropaporsuasideiasfrancas.AesculturamaisfamosadaimagemdeVoltaire,feita
porJean-AntoineHoudon,conseguiucapturarosorrisocerradoeospésdegalinhadessehomem
espirituosoecorajoso.Defensordaliberdadedeexpressãoedatolerânciareligiosa,Voltairefoi
umafiguracontroversa.Acredita-se,porexemplo,queeletenhadito:“Nãoconcordocomoque
vocêdiz,masdefendereiatéamorteoseudireitodedizê-lo”,umafortedefesadoprincípiode
queatémesmoasideiasquedetestamosmerecemserouvidas.NaEuropadoséculoXVIII,
porém,aIgrejaCatólicacontrolavacomrigidezoquepodiaserpublicado.Muitosdoslivrose
peçasdeVoltaireforamcensuradosequeimadosempúblico,eelechegouaserpresona
Bastilha,emParis,porterinsultadoumpoderosoaristocrata.Masnadadissooimpediude
desafiarospreconceitoseaspretensõesdaquelesqueocercavam.Noentanto,hojeeleémais
conhecidocomooautordeCândido(1759).
Nessecurtoromancefilosófico,Voltairedestruiucompletamenteotipodeotimismosobre
ahumanidadeeouniversoquePopeeLeibnizhaviamexpressado,eofezdemodotãodivertido
queolivrologosetornouumcampeãodevendas.Sabiamente,Voltairenãocolocouseunomena
capa;docontrário,suapublicaçãooterialevadoàprisãomaisumavezporridicularizaras
crençasreligiosas.
Cândidoéopersonagemcentral.Seunomesugereinocênciaepureza.Noiníciodolivro,
eleéumjovemserviçalqueseapaixonadesesperadamentepelafilhadopatrão,Cunegundes,
maséexpulsodocastelodopaidelaquandoosdoissãoflagradosnumasituaçãoconstrangedora.
Daíemdiante,emumanarrativarápidaemuitasvezesfantástica,eleviajaporpaísesreaise
imaginárioscomseututordefilosofia,dr.Pangloss,atéquefinalmentesereencontracomseu
amorperdido,Cunegundes,emboraagoraelaestejavelhaefeia.Emumasériedeepisódios
cômicos,CândidoePanglosstestemunhameventosterríveiseencontrampelocaminhodiversos
personagensquesofreramdesgraçashorrendas.
Voltaireusaotutordefilosofia,Pangloss,paraexporumaversãocaricaturadadafilosofia
deLeibniz,daqualzombaoescritor.Tudooqueacontece,sejadesastrenatural,tortura,guerra,
estupro,perseguiçãoreligiosaouescravidão,Panglosstratacomomaisumaconfirmaçãodeque
elesvivemnomelhordosmundospossíveis.Emvezdelevá-loarepensarsuascrenças,cada
desastresóaumentasuaconfiançadequetudoaconteceparaomelhoredequeascoisastinham
deserassimparaproduziramaisperfeitasituação.Voltairedeleita-seaorevelararecusade
Panglossemveroqueestádiantedele,eissoseriaumaimitaçãodootimismodeLeibniz.Mas,
parafazerjusaLeibniz,suaideianãoeraadequeomalnãoacontece,massimadequeomal
existenteeranecessárioparapromoveromelhormundopossível.Noentanto,Voltaireestá
sugerindoquehátantomalnomundoquedificilmenteseriaprovávelqueLeibnizestivessecerto
–essemalnãopodeseromínimonecessárioparaatingirumbomresultado.Simplesmentehá
muitadoresofrimentonomundoparaqueateoriadeLeibnizfosseverdadeira.
Em1755,houveumdospioresdesastresnaturaisdoséculoXVIII:oterremotodeLisboa,
quematoumaisde20milpessoas.Acidadeportuguesafoidevastadanãosópeloterremoto,mas
tambémpelotsunamiqueveioemseguidaedepoisporincêndiosquesealastrarampordias.O
sofrimentoeaperdadevidaschocouacrençadeVoltaireemDeus.Elenãoconseguiaentender
comoumacontecimentocomoessepoderiafazerpartedeumplanomaior.Aescalade
sofrimentonãofazianenhumsentidoparaele.PorqueumbomDeuspermitequeissoaconteça?
EletampoucoconseguiaentenderporqueLisboaeraoalvo.Porqueláenãoemoutrolugar?
Emumepisódio-chavedeCândido,Voltaireusouessatragédiarealparaajudara
construirseuargumentocontraosotimistas.ObarcodosviajantesnaufragapertodeLisboaem
umatempestadequemataquasetodosabordo.Oúnicosobreviventedatripulaçãofoium
marinheiroqueaparentementehaviaafogadodepropósitoumdosamigos.Noentanto,apesarda
óbviafaltadejustiçanesseacontecimento,Panglossaindavêtudooqueacontecepelofiltrode
seuotimismofilosófico.AochegaraLisboalogodepoisqueoterremotodevastaraacidadee
deixaradezenasdemilharesdepessoasmortasoumorrendoemvoltadele,Panglosscontinua,de
maneiraabsurda,sustentandoqueestátudobem.Norestantedolivro,ascoisasficamainda
pioresparaPangloss–eleéenforcado,dissecadovivo,espancadoepostopararemarumagalé.
Mesmoassim,eleaindaseagarraàcrençadequeLeibnizestavacertoporacreditaremuma
harmoniapreestabelecidadetudooqueé.Nãoháexperiênciaqueafastedesuascrençaso
obstinadoprofessordefilosofia.
AocontráriodePangloss,Cândidovaisemodificandopoucoapoucocomoquevê.
Emboranoiníciodajornadaelecompartilhedasvisõesdoprofessor,nofinaldolivrosuas
experiênciasotornamcéticosobretodaafilosofiaeeleoptapordarumasoluçãomaisprática
aosproblemasdavida.
CândidoeCunegundesreconciliam-seevivemjuntoscomPanglosseváriosoutros
personagensemumapequenafazenda.Umdospersonagens,Martinho,sugerequeaúnica
maneiradetornaravidasuportáveléparardefilosofaretrabalhar.Pelaprimeiravezeles
começamacooperar,ecadaumdáseguimentoàatividadequemelhorsabeexecutar.Quando
Panglosscomeçaaargumentarquetudoderuimquehaviaacontecidonavidadeleseraummal
necessárioquehavialevadoaessaconclusãofeliz,Cândidodizquetudobem,masque
“devemoscultivarnossojardim”.Essassãoasúltimaspalavrasdahistóriaetêmaintençãode
transmitirumafortemensagemaoleitor.Afraseéamoraldolivro,aconclusãodessagrande
piada.Emumníveldahistória,Cândidoestásimplesmentedizendoqueelesprecisamcontinuar
comotrabalhonafazenda,queprecisammanter-seocupados.Emumnívelmaisprofundo,
porém,cultivarnossojardim,paraVoltaire,éumametáforaparafazeralgoútilparaa
humanidadeemvezdesimplesmentefalarsobrequestõesfilosóficasabstratas.Issoéqueos
personagensdolivroprecisamfazerparaflorescereserfelizes.Voltaire,noentanto,refere-se
incisivamentenãosóaoqueCândidoeseusamigosdeveriamfazer,massimaoquetodosnós
devemosfazer.
Voltaireerabemdiferentedosoutrosfilósofosporserrico.Quandojovem,elefezparte
deumgrupoquedescobriuumproblemanosistemadeloteriadogovernoecomproumilharesde
bilhetespremiados.Investiudemaneiraamplaeenriqueceuaindamais.Issodeuaelea
liberdadefinanceiraparadefenderascausasemqueacreditava.Acabardevezcomainjustiça
erasuapaixão.UmdeseusatosmaisimpressionantesfoidefenderareputaçãodeJeanCalas,
queforatorturadoeexecutadoporsupostamentetermatadooprópriofilho.Calaseraclaramente
inocente:ofilhosuicidara-se,masacorteignorouasevidências.Voltairenãoconseguiureverter
ojulgamento.NãohavianenhumachancedealívioparaopobreJeanCalas,quedefendeusua
inocênciaatéoúltimosuspiro;contudo,aomenosseus“cúmplices”foramlibertados.Éissoque,
naprática,significa“cultivarnossojardim”paraVoltaire.
PelomodocomoVoltairezombada“prova”dePanglossdequeDeusproduziraomelhor
dosmundospossíveis,poderíamosconcluirqueoautordeCândidoeraateu.Naverdade,
emboranãotenhatidotempoparaumareligiãoorganizada,eleeradeísta,alguémqueacredita
haverevidênciasvisíveisdaexistênciaedodesígniodeDeusaseremencontradasnanatureza.
Paraele,observarocéuduranteanoiteeratudooqueprecisavaparaprovaraexistênciadeum
Criador.DavidHumefoiextremamentecéticoemrelaçãoaessaideia.Suascríticasaesseestilo
deraciocíniosãodevastadoras.
CAPÍTULO17
Orelojoeiroimaginário
DAVIDHUME
Dêumaolhadaemumdosseusolhosnoespelho.Eletemumalentequefocalizaaimagem,uma
írisqueseadaptaàmudançadeluzepálpebrasecíliosqueoprotegem.Sevocêolharparaum
dosdoislados,oglobooculargiranaprópriaórbita.Étambémmuitobonito.Comopôde
acontecerumacoisaassim?Oolhoéumabelapeçadeengenharia.Comopôdeumolhosetornar
algodessetiposimplesmentepeloacaso?
Imagine-secaminhandoaostropeçõesnaselvadeumailhadesertaquando,derepente,
chegaaumagrandeclareira.Vocêsobesobreasruínasamontoadasdeumpaláciocommuros,
escadas,trilhasejardinsepercebequeaquilonãoestariaaliporacaso.Alguémdevetê-lo
projetado,talvezumaespéciedearquiteto.Seencontramosumrelógioquandosaímosparaum
passeio,érazoávelsuporqueelefoifeitoporumrelojoeiroequefoicriadocomumpropósito:
informarashoras.Aquelasengrenagensminúsculasnãoaparecemsozinhasemseuslugares.
Alguémdeveterconcebidooprocessointeiro.Essesexemplosparecemdizeramesmacoisa:é
praticamentecertoqueobjetosqueparecemtersidocriadostenhammesmosidocriados.
Penseentãonanatureza:árvores,flores,mamíferos,pássaros,répteis,insetoseaté
amebas.Essesserestambémdãoasensaçãodequeforamcriados.Organismosvivossãomuito
maiscomplexosdoquequalquerrelógio.Mamíferostêmsistemasnervososcomplexos,sangue
circulandopelocorpoegeralmenteseadaptammuitobemaoslugaresquehabitam.Dessemodo,
comcertezaumCriadorincrivelmentepoderosoeinteligentedevetê-losfeito.EsseCriador–
umrelojoeirodivinoouumarquitetodivino–temdetersidoDeus.Oupelomenoseraissoque
muitaspessoaspensavamnoséculoXVIIIquandoDavidHumeescrevia–ealgumasaindahoje.
EsseargumentoparaaexistênciadeDeuséconhecido,demodogeral,comoargumentodo
desígnio.NovasdescobertascientíficasfeitasnosséculosXVIIeXVIIIpareciamdarsuportea
ele.Microscópiosrevelaramacomplexidadedeanimaisaquáticosminúsculos;telescópios
mostraramabelezaearegularidadedosistemasolaredaViaLáctea.Esseselementostambém
pareciamtersidoformadoscomgrandeprecisão.
OfilósofoescocêsDavidHume(1711-1776)nãoestavaconvencidodisso.Influenciado
porLocke,propôs-seaexplicaranaturezadahumanidadeenossolugarnouniverso
considerandocomoadquirimosconhecimentoeoslimitesdoquepodemosaprenderusandoa
razão.AssimcomoLocke,eleacreditavaquenossoconhecimentovemdaobservaçãoeda
experiência;portanto,estavaparticularmenteinteressadoemumargumentoparaaexistênciade
Deusquecomeçassecomaobservaçãodealgunsaspectosdomundo.
Eleacreditavaqueoargumentododesígnioerabaseadonalógica.SeuInvestigaçãosobre
oentendimentohumano(1748)incluiuumcapítuloqueatacavaaideiadequepodemosprovara
existênciadeDeusdessamaneira.Essecapítuloemaisoutroargumentandoquenuncaera
razoávelacreditarnosrelatosdetestemunhasarespeitodemilagresforamextremamente
controversos.Naépoca,eradifícilserabertamentecontrárioacrençasreligiosasnaGrã-
Bretanha.IssoquerdizerqueHumenuncaconseguiuempregoemumauniversidade,embora
fosseumdosgrandespensadoresdaépoca.Seusamigosoaconselharamanãopermitira
publicaçãodeseumaispoderosoataqueaosargumentoscomunsparaaexistênciadeDeus,o
Diálogossobreareligiãonatural(1779),enquantoestivessevivo.
OargumentododesígnioprovaaexistênciadeDeus?Humepensavaquenão.Oargumento
nãoforneceevidênciasuficienteparaconcluirqueumseronipotente,oniscienteeonipresente
devaexistir.GrandepartedafilosofiadeHumefoiconcentradanotipodeevidênciaque
podemosdarparaapoiarnossascrenças.Oargumentododesígniobaseia-senofatodequeo
mundoparecetersidoprojetado.Contudo,argumentavaHume,sóporquepareceprojetadonão
querdizernecessariamentequefoiprojetado;tampoucoseseguequeDeustenhasidoo
projetista.Comoelechegouaessaconclusão?
Imagineumabalançaantigacobertaparcialmenteporumadivisória,demodoquesó
podemosverumdospratos.Sevirmosopratosubir,concluiremosqueoqueestánooutroprato
émaispesadodoqueopratoquevemos.Nãopodemosdizerseoobjetoqueestánooutroprato
temaformadeumcuboouesfera,qualsuacor,sehápalavrasescritasnele,seécobertode
pelosouqualqueroutrodetalhe.
Nesseexemplo,estamospensandoemcausaseefeitos.Emrespostaàquestão“Oque
causouomovimentodesubidadoprato?”,tudooquepodemosresponderé“Acausafoialgo
maispesadonooutroprato”.Nósvemosoefeito–opratosubindo–etentamosdescobrira
causaapartirdele.Mas,semmaisevidências,nãohámuitomaisoquedizer.Tudooque
dissermosserámerasuposição,enãohácomosabermosseéverdadeounãosenãoolharmos
portrásdadivisória.Humepensavaqueestamosemumasituaçãosemelhanteemrelaçãoao
mundoquenoscerca.Nósvemososefeitosdeváriascausasetentamosdescobriraexplicação
maisprováveldessesefeitos.Vemosumolhohumano,umaárvore,umamontanha,etudoparece
tersidoprojetado.Masoquedizersobreoprovávelprojetista?Oolhoparecetersidocriado
poralguémquepensounamelhormaneiradefazê-lodarcerto.Dissonãosesegue,noentanto,
quequemcriouoolhotenhasidoDeus.Porquenão?
GeralmentesepensaqueDeustemtrêspoderesespeciaisjámencionados:eleé
onipotente,oniscienteeonipresente.Aindaquecheguemosàconclusãodequealgomuito
poderosotenhacriadooolhohumano,nãotemosevidênciaparadizerquesejaonisciente.Oolho
temalgumasimperfeições.Ascoisasdãoerrado:muitaspessoasprecisamdeóculosparaver
corretamente,porexemplo.UmDeusonipotente,oniscienteeonipresentecriariaoolhodessa
maneira?Possivelmente.Masasevidênciasquetemosaoobservarmosoolhonãomostramisso.
Namelhordashipóteses,elasmostramquealgoaltamenteinteligente,muitopoderosoe
habilidosoocriou.
Masasevidênciasmostramissosempre?Háoutrasexplicaçõespossíveis.Comosabemos
queoolhonãofoicriadoporumaequipededeusesinferioresquetrabalhamjuntos?Os
mecanismosmaiscomplexossãofeitosporumaequipedepessoas;porqueomesmonãovale
paraoolhoeoutrosobjetosnaturais,supondoquetodostenhamsidocriados?Amaioriados
prédioséerguidaporumaequipedeconstrutores;porqueumolhoseriadiferente?Outalvezo
olhotenhasidofeitoporumdeusbemvelhoquejátenhamorrido.Ouporumdeusmuitojovem
queaindaestavaaprendendoacriarolhosperfeitos.Comonãotemosevidênciasparadecidir
entreessasdiferenteshistórias,nãopodemostercertezaapenasobservandooolho–umobjeto
aparentementeprojetado–dequeeletenhadefinitivamentesidocriadoporumúnicoDeusvivo
comospoderestradicionais.Humeacreditavaque,secomeçarmosapensarseriamentenesse
tema,chegaremosaconclusõesbastantelimitadas.
OutroargumentoqueHumeatacoufoiodosmilagres.Amaioriadasreligiõesafirmaque
milagresacontecem.Pessoassãoressuscitadasdosmortos,andamsobreaáguaoucuram
doençasdeformarepentina;imagenscomeçamachorar,ealistacontinua.Masdeveríamos
acreditarquemilagresacontecemsóporquenosdisseramqueacontecem?Humepensavaque
não.Eleeraprofundamentecéticoquantoaessaideia.Sealguémnosdizqueumhomemse
recuperoupormilagredeumadoença,oqueissosignifica?Paraquealgofosseummilagre,
pensavaHume,eraprecisodesafiarumaleidanatureza.Umaleidanaturezaeraalgodotipo
“Ninguémmorreedepoisretomaàvida”,“Estátuasjamaisconversam”ou“Ninguémpodeandar
sobreaágua”.Háumaquantidadeenormedeevidênciasdequeessasleisdanaturezasão
válidas.Contudo,sealguémtestemunhaummilagre,porquemotivodeveríamosacreditarnele?
Pensenoquevocêdiriaseumamigoentrassecorrendoagorapelasalaedissessequeviualguém
caminhandosobreaágua.
Humeacreditavaquesemprehaviaexplicaçõesmaisplausíveissobreoqueacontecia.Se
seuamigodissequeviualguémcaminhandosobreaágua,ésempremaisprovávelqueeleesteja
sendoenganadoouquetenhaseequivocadodoquetertestemunhadoummilagregenuíno.
Sabemosquealgumaspessoasadoramserocentrodasatençõesementemparaisso.Estaéuma
possívelexplicação.Mastambémsabemosquetodosnóspodemosentendermalascoisas.
Cometemoserrosotempotodoemrelaçãoaoquevemoseouvimos.Écomumquerermos
acreditarquevimosalgodiferentedousualeassimevitamosaexplicaçãomaisóbvia.Atéhoje
hámuitaspessoasquepulamdiretoparaaconclusãodequetodosomsemexplicaçãodurantea
madrugadaéoresultadodeatividadessobrenaturais–fantasmasperambulandoporaí–,enão
devidoacausasmaisordináriascomoumratoouovento.
Emboratenhacriticadosistematicamenteosargumentosusadospeloscrentesreligiosos,
Humenuncadeclarouabertamentequeeraateu.Talveznãotenhasido.Suasobraspublicadas
podemserlidascomoseafirmassemaexistênciadeumainteligênciadivinaportrásdecada
coisanouniverso,sóquejamaispodemosdizermuitosobreasqualidadesdessainteligência
divina.Ospoderesdarazão,quandousadoslogicamente,defatonãodizemmuitosobreas
qualidadesqueesse“Deus”deveter.Baseadosnisso,algunsfilósofospensamqueeleera
agnóstico.Maséprovávelquetenhasidoateunofinaldavida,emborativessedesistidodesê-lo
bemantesdisso.Quandoestavamorrendoeumamigofoivisitá-loemEdimburgonoverãode
1776,Humedeixouclaroquenãoteriamumaconversadeleitodemorte.Longedisso.James
Boswell,cristão,perguntouaHumeseeleestavapreocupadocomoqueaconteceriadepoisque
morresse.Humedissequenãotinhanenhumaesperançadesobreviveràmorte.Elerespondeuo
queEpicurodeveriaterrespondido(verCapítulo4):dissequesepreocupavacomoque
ocorreriadepoisdamortetantoquantosepreocupavacomoqueaconteceraantesdeternascido.
Humetevecontemporâneosbrilhantes,muitosdosquaiseleconheceupessoalmente.Um
deles,Jean-JacquesRousseau,teveumimpactosignificativonafilosofiapolítica.
CAPÍTULO18
Nascemoslivres
JEAN-JACQUESROUSSEAU
Em1766,umhomembaixo,deolhosescuros,vestindoumlongocasacodepele,foiassistira
umapeçanoteatroDruryLaneemLondres.Amaioriadospresentes,inclusiveorei,GeorgeIII,
estavamaisinteressadanovisitanteestrangeirodoquenoespetáculoapresentadonopalco.Ele
pareciadesconfortávelepreocupadocomseupastor-alemão,poisprecisoudeixá-lotrancadono
quarto.Essehomemnãogostavadotipodeatençãoquereceberanoteatroeestariamuitomais
felizemalgumlugarnocampo,sossegado,procurandofloresselvagens.Masquemeraele?E
porquetodosoachavamtãofascinante?Tratava-sedograndepensadoreescritorsuíçoJean-
JacquesRousseau(1712-1778).Sensaçãoliteráriaefilosófica,achegadadeRousseaua
Londres,aconvitedeDavidHume,provocouotipodecomoçãoemovimentaçãoquehoje
provocariaumafamosapopstar.
Nessaépoca,aIgrejaCatólicahaviabanidováriosdeseuslivrosporconteremideias
religiosasnadaconvencionais.Rousseauacreditavaqueaverdadeirareligiãovinhadocoraçãoe
nãoprecisavadecerimônias,masforamsuasideiaspolíticasquecriaramosmaioresproblemas.
“Ohomemnascelivreeportodaparteencontra-seacorrentado”,declarouelenoiníciode
seulivroOcontratosocial.Nãoésurpreendentequeosrevolucionáriossoubessemessas
palavrasdecor.MaximilienRobespierre,assimcomomuitosdoslíderesfranceses,as
consideravainspiradoras.Osrevolucionáriosqueriamquebrarascorrentesqueosricoshaviam
colocadoemtantospobres.Algunsmorriamdefome,enquantoseusmestresricosgozavamdeum
altopadrãodevida.ComoRousseau,osrevolucionáriostinhamódiodecomoosricosse
comportavam,enquantoospobresmalconseguiamencontraroquecomer.Elesqueriama
verdadeiraliberdadejuntocomaigualdadeeafraternidade.Noentanto,éimprovávelque
Rousseau,quemorreuumadécadaantes,tivesseapoiadoaatitudedeRobespierredeenviarseus
inimigosparaaguilhotinaemum“reinadodeterror”.Cortaracabeçadosoponentesseriamais
adequadoàlinhadepensamentodeMaquiavel,enãoàsua.
SegundoRousseau,ossereshumanossãonaturalmentebons.Nãocausaríamosmuitos
problemassemorássemosnumafloresta,deixadoscomnossosprópriosrecursos.Masbasta
sermosretiradosdesseestadodenaturezaecolocadosemcidadesparaascoisascomeçarema
darerrado.Tornamo-nosobcecadosportentardominarosoutroseobteraatençãodosoutros.
Essaposturacompetitivadiantedavidatemefeitospsicológicosterríveis,eainvençãodo
dinheirosóospioraaindamais.Ainvejaeaganânciaresultamdofatodevivermosjuntosem
cidades.Nomundosilvestre,os“nobresselvagens”seriamsaudáveis,forteseprincipalmente
livres,masacivilizaçãoparecetercorrompidoossereshumanos.Apesardisso,Rousseauera
otimistaquantoaencontrarumaformamelhordeorganizarasociedade,umaformaque
permitiriaaosindivíduosprosperarem,teremêxitoeaindaassimseremharmoniososunscomos
outros,trabalhandoemproldeumbemcomum.
OproblemaqueelecolocouparasimesmoemOcontratosocial(1762)foiencontraruma
maneiradeaspessoasviveremjuntaseseremtãolivresquantoseriamsevivessemforada
sociedade,masaomesmotempoobedecendoàsleisdoEstado.Issopareceserimpossívele
talvezrealmenteoseja.Seocustodesetornarpartedeumasociedadefoiumaespéciede
escravidão,seriaumpreçomuitoaltoasepagar.Aliberdadenãoandademãosdadascomas
regrasestritasimpostaspelasociedade,poisessasregraspodemsercomocorrentesque
impedemdeterminadostiposdeação.Todavia,Rousseauacreditavaquehaviaumasaída.Sua
soluçãofoibaseadanaideiadevontadegeral.
Avontadegeraléoquequerquesejamelhorparatodaacomunidade,todooEstado.
Quandoaspessoasescolhemreunir-seporproteção,parecequetêmdeabrirmãodemuitas
liberdades.IssoéoqueHobbeseLockepensavam.Édifícilentendercomopodemoscontinuar
genuinamentelivreseaindaviveremumgrandegrupodepessoas–temdehaverleisque
mantenhamaspessoassobcontrole,bemcomoalgumasrestriçõesdecomportamento.Mas
Rousseauacreditavaque,comoindivíduosvivendoemumEstado,nóspodemostantoserlivres
quantoobedeceràsleisdoEstado;paraele,emvezdeopostas,asideiasdeliberdadee
obediênciapoderiamserunificadas.
ÉfácilinterpretarequivocadamenteoqueRousseauquisdizercomvontadegeral.
Vejamosumexemplomoderno.Seperguntarmosàmaioriadaspessoassobrealtosimpostos,
elasdirãoquepreferemnãopagá-los.Naverdade,essaéumamaneiracomumdeosgovernosse
elegerem:elesprometembaixarovalordosimpostos.Sehouvessecomoescolherpagar20%ou
5%dosganhoscomoimpostos,amaioriaprefeririapagarovalormaisbaixo.Masessanãoéa
vontadegeral.OquetodosqueremfazerquandoquestionadoséoqueRousseauchamariade
vontadedetodos.Emcontraste,avontadegeraléoquetodosdevemquerer,oqueseriabom
paratodaacomunidade,enãosóparacadaumdosindivíduospensandodemodoegoísta.Para
determinaroqueéavontadegeral,precisamosignorarosinteressespróprioseassimnos
concentrarnobemdetodaasociedade,nobemcomum.Seaceitarmosquemuitosserviços,como
amanutençãodasestradas,precisamserpagoscomimpostos,entãoserábomparatodaa
comunidadequeastaxassejamaltasosuficienteparapossibilitaramanutenção.Seforembaixas
demais,todaasociedadesofrerá.Esta,então,éavontadegeral:queosimpostossejamaltoso
suficienteparapossibilitarumbomníveldosserviços.
Quandoaspessoasjuntam-seeformamumasociedade,elassetornamumtipodepessoa.
Cadaindivíduo,portanto,fazpartedeumtodomaior.Rousseauacreditavaqueamaneirade
todossemanteremverdadeiramentelivresnasociedadeeraobedeceràsleisqueestivessemem
sintoniacomavontadegeral.Taisleisseriamcriadasporumlegisladorinteligente.Atarefa
dessapessoaseriacriarumsistemalegalqueajudasseosindivíduosasemanteremem
consonânciacomavontadegeral,emvezdebuscaremarealizaçãodeinteressesegoístasàcusta
dosoutros.Averdadeiraliberdade,paraRousseau,éfazerpartedeumgrupodepessoasque
busquemoqueédeinteressedacomunidade.Nossosdesejosdevemcoincidircomoqueé
melhorparatodos,easleisdevemnosajudaraevitarmosagirdemodoegoísta.
MasesevocêpensasseoopostodoqueseriamelhorparaoEstado?Comoindivíduo,
vocêpodenãoquererseateràvontadegeral.ArespostadeRousseaunãoéaquetodos
gostariamdeouvir.Elememoravelmente(e,antes,preocupantemente)declarouquesealguém
nãoreconhecessequeobedeceràsleisestavanointeressedacomunidade,essealguémdeveria
ser“forçadoaserlivre”.Quemseopusesseaoquefossedointeressedasociedade,embora
pensasseescolhercomliberdade,sóseriagenuinamentelivreaoagirdeacordocomavontade
geral.Mascomoforçaralguémaserlivre?Vocênãoestariafazendoumaescolhalivresefosse
forçadoalerorestantedolivro,nãoémesmo?Comcerteza,forçaralguémafazeralgoéo
opostodedeixá-lofazerumalivreescolha.
ParaRousseau,noentanto,issonãoeraumacontradição.Aquelequenãoconseguisse
identificaracoisacertaafazersetornarialivreaoserforçadoaobedecer.Comotodosemuma
sociedadefazempartedessegrupomaior,precisamosreconhecerquedeveríamosseguira
vontadegeral,enãonossasescolhasindividuaiseegoístas.Nessavisão,sósomoslivresde
verdadequandoseguimosavontadegeral,mesmoquandosomosforçadosafazê-lo.Essaeraa
crençadeRousseau,masmuitospensadoresposteriores,incluindoJohnStuartMill(verCapítulo
24),argumentaramquealiberdadepolíticadeveseraliberdadeparaqueoindivíduofaçaas
própriasescolhassemprequepossível.Naverdade,háalgolevementesinistronaideiade
Rousseau,quereclamoudofatodeahumanidadeestaracorrentada,emsugerirqueforçaralguém
afazeralgoéoutraespéciedeliberdade.
Rousseaupassougrandepartedavidaviajandodeumpaísparaoutro,fugindoda
perseguição.ImmanuelKant,emcontraposição,malsaíadesuaprópriacidade,emborao
impactodeseupensamentotenhasidosentidoemtodaaEuropa.
CAPÍTULO19
Realidadecor-de-rosa
IMMANUELKANT(1)
Seusarmosóculoscomlentescor-de-rosa,elasvãocolorirtodososaspectosdanossa
experiênciavisual.Podemosesquecerqueestamosusandoosóculos,masmesmoassimeles
continuarãoafetandooquevemos.ImmanuelKant(1724-1804)acreditavaquetodosnós
compreendemosomundoporumfiltrocomoesse.Ofiltroéamentehumana.Eladeterminacomo
experimentamostudoeimpõedeterminadaformanaexperiência.Tudooquepercebemos
acontecenotempoenoespaço,etodamudançatemumacausa.Noentanto,segundoKant,isso
nãosedeveàmaneiracomoarealidadeéemúltimainstância,massimaumacontribuiçãoda
nossamente.Nãotemosacessodiretoaomodocomoéomundo.Etambémjamaispodemostirar
osóculoseverascoisascomorealmentesão.Essefiltroestápresoemnós,esemeleseríamos
totalmenteincapazesdeexperimentarqualquercoisa.Tudooquepodemosfazeréreconhecer
queaexistênciadeleeentendercomoeleafetaecoloreoqueexperimentamos.
TantoamentequantoavidadopróprioKanterambastanteordenadaselógicas.Elenunca
secasoueimpunhaasimesmoumpadrãorestritoparaviverocotidiano.Paraquenãoperdesse
tempo,seuempregadooacordavaàscincodamanhã.Eletomavaumchá,fumavaumcachimboe
começavaatrabalhar.Eraextremamenteprodutivoeescreveumuitoslivroseensaios.Depoisde
escreverumpouco,iadaraulasnauniversidade.Àsquatroemeiadatarde–semprenomesmo
horário,todososdias–,Kantsaíaparacaminhar:subiaedesciaaruaexatamenteoitovezes.Na
verdade,aspessoasquemoravamnacidadedeKönigsberg(hoje,Kaliningrado)costumavam
acertarosrelógiosquandoelepassava.
Comoamaioriadosfilósofos,Kantpassouavidatentandoentendernossarelaçãocoma
realidade.Basicamenteédissoquetrataametafísica,eelefoiumdosmaioresmetafísicosda
história.Kantinteressava-separticularmentepeloslimitesdopensamento,oslimitesdaquiloque
podemosconhecereentender.Issofoiparaeleumaobsessão.Emseulivromaisfamoso,Crítica
darazãopura(1781),eleexplorouesseslimites,levando-osaoextremodoquefazsentido.
Nemdelongeolivroédefácilleitura:opróprioKantodescreviacomoumaleituraseverae
obscura–eeleestavacerto.Pouquíssimaspessoasafirmaramentenderrealmenteolivro,e
grandepartedoraciocínioécomplexaetemjargãopesado.Aleiturapodedarasensaçãode
estarmoslutandocontraumdensomatagaldepalavrassemmuitosensodeparaondeestamos
indoepoucoslampejosdaluzdodia.Masoargumentocentralébastanteclaro.
Comoéarealidade?Kantpensavaquejamaisteremosumquadrocompletodecomoas
coisassão.Jamaisaprenderemosalgodiretamentearespeitodoquechamamosdemundo
numênico,istoé,sobreoquequerqueestejaportrásdasaparências.Algumasvezes,Kantusaa
palavranoumenon(singular),eoutrasvezesapalavranoumena(plural),algoquenãodeveria
terfeito(Hegeltambémapontaisso,verCapítulo22):nãosabemossearealidadeéumaou
muitas.Arigor,nãopodemossaberabsolutamentenadasobreomundonumênico,ouaomenos
nãoconseguimosterinformaçõessobreeledemododireto.Noentanto,podemosconhecero
mundofenomênico,omundoquenoscerca,omundoqueexperienciamoscomossentidos.Olhe
pelajanela.Oquevocêvêéomundodosfenômenos–grama,carros,céu,prédiosouqualquer
outracoisa.Nãopodemosveromundonumênico,somenteofenomênico,masomundonumênico
seocultaportrásdetodasasnossasexperiências.Eleéoqueexisteemumnívelmaisprofundo.
Dessemodo,algunsaspectosdoqueexistesempreestarãoportrásdanossaapreensão.
Contudo,pelopensamentorigoroso,podemosterumamaiorcompreensãodoqueteríamoscom
umaabordagempuramentecientífica.AprincipalquestãodeKantnaCríticadarazãopuraera
esta:“Comoépossíveloconhecimentosintéticoapriori?”.Essaperguntaprovavelmentenãofaz
omenorsentidopravocê.Vamosexplicá-laumpouco;aideiaprincipalnãoétãodifícilquanto
pareceàprimeiravista.Primeirodevemosexplicarapalavra“sintético”.Nalinguagem
filosóficadeKant,“sintético”éoopostodeanalítico.“Analítico”significaverdadeiropor
definição.Então,porexemplo,“todososhomenssãodosexomasculino”éverdadeiropor
definição.Issosignificaquepodemossaberqueessafraseéverdadeirasemfazerquaisquer
observaçõesdehomensreais.Nãoprecisamosverificarquetodossãodosexomasculino,pois
nãoseriamhomenssenãofossemdosexomasculino.Nãoéprecisonenhumtrabalhodecampo
parachegaraessaconclusão:vocêdescobririaissodasuaprópriacadeira.Apalavra“homens”
tememsiaideiadesexomasculino.Écomoafrase“Todososmamíferosalimentamsuaprole”.
Maisumavez,nãoéprecisoexaminartodososmamíferosparasaberqueelesamamentamsua
prole,poisissofazpartedadefiniçãodemamífero.Seencontrarmosalgoquepareçaserum
mamífero,masnãoalimentesuaprole,saberemosquenãopodeserummamífero.Juízos
analíticostratamsimplesmentededefinições,portantonãonosoferecemnenhumconhecimento
novo.Elesexplicitamoqueassumimoscomoverdadeiroaodefinirumapalavra.
Oconhecimentosintético,aocontrário,requeraexperiênciaouaobservaçãoenosfornece
umainformaçãonova,algoquesimplesmentenãoestácontidonosignificadodaspalavrasou
símbolosqueusamos.Sabemos,porexemplo,quelimõessãoamargos,massódepoisdetê-los
provado(ouporquealguémnoscontaqueexperimentoulimões).Nãoéumaverdadepor
definiçãoquelimõessãoamargos–trata-sedealgoqueaprendemospelaexperiência.Outro
juízosintéticopoderiaser“Todososgatostêmrabo”.Issoéalgoqueteríamosdeinvestigarpara
saberseéounãoverdadeiro.Sósabemosquandoolhamos.Naverdade,osgatosdaraçamanx
nãotêmrabo.Ealgunsperderamorabo,mascontinuamsendogatos.Aperguntasobresetodos
osgatostêmrabo,então,éumaquestãodefatosobreomundo,enãosobreadefiniçãode“gato”.
Ébemdiferentedojuízo“Todososgatossãomamíferos”,quenãopassadeumaquestãode
definiçãoe,portanto,éumjuízoanalítico.
Então,ondeficaoconhecimentosintéticoapriori?Oconhecimentoapriori,comovimos,
éoconhecimentoqueindependedaexperiência.Trata-sedeumconhecimentoprévio,ouseja,
queantecedeaexperiênciaquetemosdele.NosséculosXVIIeXVIII,houveumdebatesobrese
temosounãoalgumconhecimentoapriori.Demodogeral,osempiristas(comoLocke)
pensavamquenão,enquantoosracionalistas(comoDescartes)pensavamquesim.QuandoLocke
declarouquenãohaviaideiasinatasequeamentedascriançaseracomoumquadrobranco,ele
estavadizendoquenãohaviaconhecimentoapriori.Issofazparecerque“apriori”significa
simplesmenteomesmoque“analítico”(e,paraalgunsfilósofos,ostermossãointercambiáveis).
MasnãoparaKant.Elepensavaqueoconhecimentoquerevelaverdadessobreomundo,ainda
quesurjaindependentementedaexperiência,épossível.Paradescreveressetipode
conhecimento,Kantapresentouacategoriaespecialdoconhecimentosintéticoapriori.Um
exemplodeconhecimentosintéticoapriori,queopróprioKantusava,éaequaçãomatemática7
+5=12.Emboramuitosfilósofospensassemqueessasverdadessãoanalíticas,umaquestãoda
definiçãodesímbolosmatemáticos,Kantacreditavaquesomoscapazesdesaberapriorique7+
5éiguala12(nãoprecisamosverificarainformaçãocomobjetosouobservaçõesnomundo).
Contudo,temosaomesmotempoumnovoconhecimento:éumjuízosintético.
SeKantestivercorreto,trata-sedeumgrandeavanço.Antesdele,filósofosque
investigaramanaturezadarealidadetrataram-nasimplesmentecomoalgoqueestáalémdenóse
quecausanossaexperiência.Adificuldade,portanto,eracomopoderíamosteracessoaessa
realidadeafimdedizermosalgodesignificativosobreelasemqueoditonãopassassedemeros
palpites.OgrandeinsightdeKantfoiodeque,pelopoderdarazão,nóspoderíamosdescobrir
característicasdenossamentequecoloremtodaanossaexperiência.Aorefletirdemaneira
árduasobreascoisas,poderíamosfazerdescobertassobrearealidadequetinhamdeser
verdadeiras,enãoapenaspordefinição:elaspoderiamserinformativas.Kantacreditavaque,
peloargumentológico,eleconseguiuoequivalenteaprovarqueomundonecessariamentedevia
nosaparecercomocor-de-rosa.Elenãosóprovouquetodosestamosusandoóculoscomlentes
cor-de-rosa,comotambémfezdescobertassobreasváriastonalidadesderosaqueessesóculos
conferematodaaexperiência.
Depoisderespondersatisfatoriamenteàsquestõesfundamentaissobrenossarelaçãocoma
realidade,Kantvoltousuaatençãoparaafilosofiamoral.
CAPÍTULO20
Esetodosfizessemisso?
IMMANUELKANT(2)
Vocêescutaumabatidanaporta.Quandoabre,depara-secomumrapazquenitidamenteprecisa
deajuda:estáferidoesangrando.Vocêocolocaparadentroeoajudaasesentirseguroe
confortável,depoischamaumaambulância.Comcerteza,essaéacoisacertaasefazer.De
acordocomKant,sevocêoajudasimplesmenteporquesentepenadele,estanãoseriadejeito
nenhumumaaçãomoral.Suasolidariedadeéirrelevanteparaamoralidadedaação.A
solidariedadefazpartedoseucaráter,masnadatemavercomoqueécertoouerrado.Para
Kant,amoralidadenãodizrespeitoapenasaoquefazer,mastambémaporquefazer.Aqueles
quefazemacoisacertanãoofazemsóporcausadomodocomosesentem:adecisãoprecisaser
baseadanarazão,poiséelaquedizqualéonossodever,independentementedecomo
porventuranossentimos.
Kantpensavaqueasemoçõesnãodeviamsemisturarcomamoral.Ofatodetermosou
nãoemoçõesnãopassadeumaquestãodesorte.Algumaspessoassentemcompaixãoeempatia,
outrasnão.Algumassãomedíocreseachamdifícilsergenerosas;outrassesentemextremamente
alegrespordoardinheiroepossesparaajudarosoutros.Masserboméalgoquetodapessoa
razoáveldeveriasercapazdeatingirpormeiodasprópriasescolhas.ParaKant,sevocêajudao
rapazporquesabequeéseudever,estáagindomoralmente.Estaéacoisacertaafazerporqueé
oquetodosfariamseestivessemnamesmasituação.
Issopodesoarestranhoaosseusouvidos,poiséprovávelquepensequeosujeitoque
sentepenadorapazeoajudaporcausadissoteriaagidomoralmenteetalvezfosseumapessoa
melhorporsentiressaemoção.IssoétambémoqueAristótelesteriapensado(verCapítulo2).
MasKantestavacerto.Nãoestamosagindomoralmentequandofazemosalgosimplesmentepor
causadamaneiracomonossentimos.Imaginealguémquesentisseaversãoaoverorapaz,mas
aindaassimcontinuasseeoajudassepordever.Talpessoaseriaobviamentemaismoralaos
olhosdeKantdoquealguémqueagiuporcompaixão.Apessoaquesentiuaversãoclaramente
estariaagindopelosensodedever,poisnaverdadeseriaimpulsionadapelasemoçõesna
direçãooposta,sendoencorajadaanãoajudar.
Pensenaparáboladobomsamaritano.Eleajudaumhomemnecessitadoquevêdeitadona
beiradaestrada.Todososoutrosapenaspassamevãoembora.Oquefazdobomsamaritanoum
homembom?Seosamaritanoajudasseohomempensandoquecomissoiriaparaocéu,estanão
seria,navisãodeKant,umaaçãomoral.Eleestariacuidandodohomemcomoumaformade
chegaraalgumlugar–ummeioparaumfim.Seoajudassesomenteporcompaixão,nãoseria
nadabomaosolhosdeKant.Contudo,seoajudasseporquereconhecequefazpartedoseudever
equeseriaacoisacertaafazernaquelacircunstância,Kantdiriaqueobomsamaritanofoi
moralmentebom.
AvisãodeKantsobreasintençõesémaisfácildeseraceitadoquesuavisãodas
emoções.Amaioriadenósjulgaosoutrospeloquesetentafazer,enãopelosucessodaação.
Penseemcomovocêsesentiriasefosseacidentalmenteatingidoporumpaiqueestivesse
correndoparaimpedirqueofilhofosseparaomeiodarua.Comparecomamaneiracomovocê
sesentiriasefosseatingidodepropósitoporalguémquequerapenassedivertir.Opainão
queriamachucarvocê,masobrutamontessim.Noentanto,comomostraopróximoexemplo,ter
boasintençõesnãoéosuficienteparaumaaçãomoral.
Ouve-seoutrabatidanaporta.Vocêabreevêsuamelhoramiga,queparecepálida,
preocupadaesemfôlego.Eladizqueestásendoperseguidaporumsujeitoquequermatá-la.Ele
temumafaca.Vocêadeixaentrareelacorreparaseescondernoandardecima.Algumtempo
depois,ouve-seoutrabatidanaporta.Dessavezéosupostoassassino,comumolhar
transtornado.Elequersaberondeestásuaamiga.Elaestádentrodecasa?Escondidaemalgum
armário?Ondeelaestá?Naverdade,elaestánoandardecima,masvocêmenteedizqueelafoi
paraoparque.Comcerteza,vocêfezacoisacertaaoinduzirosupostoassassinoaprocurá-lano
lugarerradoeprovavelmentesalvouavidadasuaamiga.Estaseriaumaaçãomoral,nãoé
mesmo?
NãodeacordocomKant.Eleacreditavaquenãodeveríamosmentir–emnenhuma
circunstância.Nemmesmoparaprotegerumaamigadeumsupostoassassino.Mentirésempre
moralmenteerrado.Semexceção,semdesculpas–porquenãopodemoselaborarumprincípio
moraldequetodosdevemmentirquandolhesforapropriado.Nessecaso,sevocêtivesse
mentidoesuaamigativesseidoparaoparquesemvocêtervisto,vocêseriaoculpadodo
assassinatodela.Atécertoponto,amortedelateriasidosuaculpa.
EsseexemploéumdosqueKantusavaemostracomosuavisãoeraradical.Nãohavia
exceçõesquantoadizeraverdade,nemmesmoquantoaosdeveresmorais.Todosnóstemoso
deverabsolutodedizeraverdadeou,comodiziaele,umimperativocategóricodedizê-la.Um
imperativoéumaordem.Imperativoscategóricosdiferenciam-sedosimperativoshipotéticos.Os
imperativoshipotéticostêmaformade“Sequiserx,façay”.“Senãoquerirparaaprisão,não
roube”éumexemplodeimperativohipotético.Osimperativoscategóricossãodiferentes.Eles
servemcomoinstruções.Nessecaso,oimperativocategóricoseriasimplesmente“Nãoroube!”.
Trata-sedeumaordemquenosdizqualéonossodever.Kantacreditavaqueamoraleraum
sistemadeimperativoscategóricos.Oseudevermoraléoseudevermoral,quaisquerquesejam
asconsequências,quaisquerquesejamascircunstâncias.
Kantacreditavaqueoquefazdenóssereshumanos,aocontráriodosoutrosanimais,éo
fatodepensarmosreflexivamentesobrenossasescolhas.Seríamoscomomáquinassenão
pudéssemosagircomumaintenção.Quasesemprefazsentidoperguntarparaumserhumano“Por
quevocêfezisso?”.Nósnãoagimossomenteporinstinto,mastambémbaseadosnarazão.A
formadeKantdizerissoéemtermosde“máximas”apartirdasquaisagimos.Amáximaé
apenasoprincípiosubjacente,arespostaàpergunta“Porquevocêfezisso?”.Kantacreditava
queamáximasubjacenteànossaaçãoeraoquerealmenteimportava.Elediziaquedeveríamos
agirsomentesobasmáximasuniversalizáveis.Paraquealgosejauniversal,éprecisoser
aplicadoatodasasoutraspessoas.Issoquerdizerquedeveríamosfazersomenteaquiloque
fizessesentidoparatodososoutrosnamesmasituação.Semprepergunteasimesmo:“Esetodos
fizessemisso?”.Nãofaçaumadefesaprópria.Kantacreditavaque,naprática,issosignificava
quenãodeveríamosusarosoutros,massimtratá-loscomrespeito,reconhecendoaautonomia
daspessoasesuacapacidadecomoindivíduosdetomar,porcontaprópria,decisõespensadas.
Essareverênciapeladignidadeepelovalordossereshumanosindividuaiséocernedateoria
modernadosdireitoshumanos.ÉagrandecontribuiçãodeKantparaafilosofiamoral.
Émaisfácilentendermosaquestãocomumexemplo.Imaginequevocêtenhaumcomércio
quevendafrutas.Quandoaspessoascompramsuasfrutas,vocêsempreastrataeducadamentee
devolveotrococorreto.Talvezvocêfaçaissoporjulgarqueébomparaosnegóciosequeas
pessoasvoltarãoparagastarmaisdinheironoseucomércio.Seessaéaúnicarazãoqueolevaa
devolverotrococorreto,vocêestátratandoaspessoascomoummeioparaobteroquequer.
Kantacreditavaquecomonãopodemossugerirquetodasaspessoastratemosoutrosdessa
maneira,poisessanãoeraumaformamoraldecomportamento.Entretanto,sevocêdevolveo
trococorretoporquereconhecequeéseudevernãoenganarosoutros,trata-sedeumaação
moral,poisébaseadanamáxima“Nãoenganeosoutros”,umamáximaqueeleacreditava
aplicar-seatodososcasos.Enganaraspessoaséumaformadeusá-lasparaobtermosoque
queremos.Nãopodeserumprincípiomoral.Setodomundoenganasseatodos,nãoexistiria
confiança:ninguémacreditarianoquecadaumdiz.
VejamosoutroexemplousadoporKant:imaginequevocêestejacompletamentefalido.Os
bancosnãolheemprestarãodinheiro,vocênãotemnadaparavendere,senãopagaroaluguel,
serádespejado.Entãoencontraumasolução:pedirdinheiroemprestadoaumamigo.Sua
promessaépagá-loaindaquesaibaquenãoconseguirápagá-lo.Esseéseuúltimorecurso,e
vocênãoconseguepensaremoutramaneiradepagaroaluguel.Issoseriaaceitável?Kantafirma
quepedirdinheiroemprestadosemaintençãodedevolverseriaimoral.Arazãopodenos
mostrarisso.Seriaumabsurdoparaqualquerumpegardinheiroemprestadoeprometerdevolvê-
lomesmosabendoquenãoseriapossível.Esta,maisumavez,nãoéumamáxima
universalizável.Façaapergunta:“Esetodosfizessemisso?”.Setodosfizessemfalsas
promessascomoessa,aspromessassetornariamtotalmenteinúteis.Portanto,seriaerradoagir
assim.
Essamaneiradepensarsobreocertoeoerradobaseadanobomraciocínio,enãona
emoção,ébemdiferentedoquepensavaAristóteles(verCapítulo2).ParaAristóteles,uma
pessoaverdadeiramentevirtuosasempretemossentimentosapropriadosefazacoisacertacomo
resultadodessessentimentos.ParaKant,ossentimentosapenasobscurecemoproblema;torna-se
maisdifícilperceberseosujeitoestágenuinamentefazendoacoisacerta,ouseapenasparece
quefaz.Kanttornouamoralalgopraticávelporqualquerpessoaracional,tivesseounãosorteo
suficienteparatersentimentosqueamotivassemaagirbem.
AfilosofiamoraldeKantcontrastatotalmentecomafilosofiamoraldeJeremyBentham,
assuntodopróximocapítulo.EnquantoKantargumentavaquealgumasaçõeseramerradas
independentementedasconsequências,Benthamafirmavaqueoimportanteeramtãosomenteas
consequências.
CAPÍTULO21
Contentamentoprático
JEREMYBENTHAM
SevocêalgumdiavisitaraUniversityCollegeLondon,talvezfiquesurpresoaoencontrarJeremy
Bentham(1748-1832),oupelomenosoquesobroudocorpodele,emumavitrine.Sentado,ele
olhadiretamenteparanósemantémapoiadaentreosjoelhossuabengalapredileta,queele
apelidoude“malhada”.Acabeçaéfeitadecera,masorestantefoimumificadoeémantidoem
umacaixademadeira,emboracostumasseestarexposto.Benthamachavaqueseucorporeal–
eleochamavadeautoícone–ficariamelhorcomomemorialdoquecomoumaestátua.Então,
quandomorreu,em1832,deixouinstruçõessobrecomolidarcomseusrestosmortais.Aideiana
verdadenuncasepopularizou,emboraocorpodeLênintenhasidoembalsamadoeexpostoem
ummausoléuespecial.
AlgumasdasideiasdeBenthamerammaispráticas.Tomemoscomoexemploseuprojeto
deumaprisãocircular,opanóptico.Eleodescreveucomo“ummoinhoparatransformar
vagabundosemhonestos”.Umatorredeobservaçãocolocadanocentropermitequepoucos
guardasvigiemumgrandenúmerodeprisioneirossemqueelessaibamseestãoounãosendo
observados.Esseprincípioéusadoemalgumasprisõesmodernaseatémesmoemdiversas
bibliotecas.Foiumdeseusgrandesprojetosparaareformasocial.
MasmuitomaisimportanteeinfluentedoqueissofoiateoriadeBenthamsobrecomo
deveríamosviver.EssaideiadeBentham,conhecidacomoutilitarismoouprincípiodamaior
felicidade,afirmavaqueacoisacertaafazeréaqueproduziriaamaiorfelicidade.Emboranão
fosseaprimeirapessoaasugeriressaabordagemàmoral(FrancisHutcheson,porexemplo,já
haviafeitoessaproposta),Benthamfoioprimeiroaexplicaremdetalhescomoelapoderiaser
colocadaemprática.ElequeriareformarasleisdaInglaterraparaqueamaiorfelicidade
pudessesermaisprovável.
Masoqueéfelicidade?Diferentespessoasparecemusarapalavradediferentesmaneiras.
ArespostadeBenthamerabastantedireta.Tudodizrespeitoacomonossentimos.Felicidadeé
prazereausênciadador.Quantomaiorforoprazerouquantomaioraquantidadedeprazer
sobreador,maiorseráafelicidade.Paraele,ossereshumanoserammuitosimples.Adoreo
prazersãoasgrandesdiretrizesdevidaqueanaturezanosdeu.Nósbuscamosexperiências
prazerosaseevitamosasdolorosas.Oprazeréaúnicacoisaboaemsi.Queremostodasas
outrascoisasporqueacreditamosqueelasnosdarãoprazerouajudarãoaevitarador.Desse
modo,quererumsorvetedecremenãoéumacoisaboadeserbuscadaporsimesma.Éprovável
queosorvetenosdêprazerquandoosaboreemos.Demaneirasemelhante,vocêtentaevitarse
queimarporqueseriamuitodoloroso.
Mascomofazemosparamedirafelicidade?Pensenumaépocaemquefoirealmentefeliz.
Comofoiessaépoca?Vocêconsegueclassificarsuafelicidadecomumnúmero?Porexemplo,o
níveldefelicidadeeradeseteouoitoemdez?Euconsigomelembrardeumaviagemdebalsa
saindodeVenezaquepareciaserumnoveemeio,outalvezatédez,quandoopilotofoideixando
acidadecomosolsepondosobreaquelalindapaisagem,aáguaespirrandonomeurostoe
minhaesposaemeusfilhosdivertindo-seàsrisadas.Nãopareceumaideiaabsurdaconseguirdar
notaparaexperiênciasdessetipo.Benthamcertamenteacreditavaqueoprazerpodiaser
quantificadoediferentesprazerescomparadosnamesmaescala,nasmesmasunidades.
Cálculofelicíficofoionomequeeledeuaométodoparacalcularafelicidade.Primeiro,
descubraoquantodeprazercausaráumaaçãoespecífica.Leveemconsideraçãoquantotempoo
prazervaidurar,suaintensidadeeaprobabilidadedeoriginaroutrosprazeres.Depoissubtraia
quaisquerunidadesdedorquepossamsercausadaspelaação.Oquerestaréovalorde
felicidadedaação.Benthamchamavaissode“utilidade”,pois,quantomaisprazerumaação
ocasionar,maisútilelaseráparaasociedade.Éporissoqueateoriaéconhecidacomo
utilitarismo.Compareautilidadedaaçãocomapontuaçãodeoutrasaçõespossíveiseescolhaa
queprovocarmaisfelicidade.Simples.
Equantoaoutrasfontesdeprazer?Comcerteza,émelhorterprazerporalgoedificante,
comoaleituradepoesia,doquebrincandodealgumjogoingênuooutomandosorvete,certo?
NãodeacordocomBentham.Nãoimportademodonenhumcomooprazeréproduzido.Paraele,
sonharacordadoseriatãobomquantoverumapeçadeShakespeare,seasduasações
provocassemigualfelicidade.Eleusavaoexemplodeumjoguinhoinfantilboboqueusava
varetas,muitopopularnaépoca,eapoesia.Tudooquecontaéaquantidadedeprazergerado.
Seoprazerforomesmo,ovalordaatividadeseráomesmo:segundoavisãoutilitarista,brincar
comvaretaspodesertãomoralmentebomquantolerpoesia.
ImmanuelKant,comovimosnoCapítulo20,argumentavaquetemosdeveres,como“nunca
minta”,queseaplicamatodasassituações.Bentham,noentanto,acreditavaqueconsideraruma
açãocorretaouincorretadependedosresultadosprováveis.Essesresultadospodemser
diferentesconformeascircunstâncias.Mentirnemsempreénecessariamenteerrado.Podehaver
momentosemquementiréacoisacertaafazer.Se,nocômputogeral,mentirgeraumafelicidade
maiordoquedizeraverdade,mentirseráaaçãomoralmentecorretanessascircunstâncias.Se
umamigoperguntaseumacalçajeansnovacaiubemounão,alguémquesegueasideiasdeKant
teriadedizeraverdade,mesmoquenãofosseoqueoamigoquisesseouvir;umutilitarista
calculariaseamaiorfelicidaderesultariadedizerumamentiraleve.Sesim,amentiraseráa
respostacerta.
OutilitarismofoiumateoriaradicalparaserapresentadanofinaldoséculoXVIII.Umdos
motivoseraque,aocalcularafelicidade,afelicidadedetodoseraigual;naspalavrasde
Bentham,“todosvalemcomoum,eninguémvalemaisqueum”.Ninguémtemtratamento
especial.Oprazerdeumaristocratanãovaliamaisqueoprazerdeumpobretrabalhador.Mas
nãoeraassimqueseordenavaasociedade.Osaristocratasinfluenciavamamplamenteomodo
comoaterraerausada,emuitostinhaminclusiveodireitohereditáriodesesentarnaCâmara
dosLordesedecidirsobreasleisdaInglaterra.Nãoédesurpreenderquealgunssesentissem
desconfortáveiscomaênfasedadaporBenthamàigualdade.Talvezaindamaisradicalparaa
épocafossesuacrençadequeafelicidadedosanimaiserarelevante.Comoelessãocapazesde
sentirprazeredor,osanimaisfaziampartedesuaequaçãodafelicidade.Nãoimportavaqueos
animaisnãopudessemraciocinaroufalar(emboraparaKantissoimportasse),poisessasnão
eramascaracterísticasrelevantesparaainclusãomoralnavisãodeBentham.Oqueimportava
erasuacapacidadeparaadoreoprazer.Essaéabasedemuitascampanhasatuaisemproldo
bem-estardosanimais,comoadePeterSinger(verCapítulo40).
ParaainfelicidadedeBentham,houveumacríticadevastadoraàsuaabordagemgeralpor
enfatizarquetodasascausaspossíveisdoprazersejamtratadasigualmente.RobertNozick
(1938-2002)criouoseguinteexperimentomental.Imagineumaparelhoderealidadevirtualque
nosdáailusãodeviveranossaprópriavida,massemoriscodesofrerousentirdor.Depoisde
estarmosconectadosdurantealgumtempoaesseaparelho,esqueceremosquenãoestamosmais
experimentandoarealidadedemododiretoeseremostotalmentetomadospelailusão.Esse
aparelhogeraumagrandevariedadedeexperiênciasquenossãoprazerosas.Écomoumgerador
desonhos–elapodenosfazerimaginar,porexemplo,queestamosmarcandoogoldecisivoda
CopadoMundooutendoasfériasdosnossossonhos.Tudooquepudernosproporcionaro
maiorprazerpoderásersimulado.Ora,comooaparelhonitidamentemaximizarianossosestados
mentaisdecontentamento,nósdeveríamos,naanálisedeBentham,nosconectaraelepara
aproveitaraomáximoavida.Essaseriaamelhormaneirademaximizaroprazerediminuira
dor.Muitaspessoas,noentanto,pormaisquegostemdeusartalaparelhodetemposemtempos,
jamaisaceitariamserconectadasparaorestodavidaporquevalorizammuitomaisoutrascoisas
doqueumasériedeestadosmentaisdecontentamento.IssoparecemostrarqueBenthamestava
erradoaoargumentarquetodasasformasdeprovocaramesmaquantidadedeprazersão
igualmentevaliosasequenemtodossãoguiadosapenaspelodesejodemaximizaroprazere
diminuirador.Issoéumtemaquefoiretomadoporseuexcepcionalpupilo,edepoiscrítico,
JohnStuartMill.
Benthamestavaimersoemsuaprópriaépoca,ansiosoparadescobrirsoluçõesparaos
problemassociaisqueocercavam.GeorgWilhelmFriedrichHegelalegavasercapazderecuar
eterumavisãogeraldetodoocursodahistóriahumana,umahistóriaquesedesdobrousegundo
umpadrãoquesomenteosintelectosmaisimpressionantespoderiamapreender.
CAPÍTULO22
AcorujadeMinerva
GEORGW.F.HEGEL
“AcorujadeMinervasóvoaaoanoitecer”.EstaeraavisãodeGeorgWilhelmFriedrichHegel
(1770-1831).Masoqueissosignifica?Naverdade,apergunta“Oqueissosignifica?”éuma
perguntaqueosleitoresdasobrasdeHegelsefazemcomfrequência.Suaescritaéterrivelmente
difícil,emparteporque,assimcomoKant,Hegelexpressava-seemumalinguagemmuitoabstrata
ecostumavainventaralgunstermos.Talvezninguém,nemmesmoopróprioHegel,tenha
entendidotodaasuaobra.Adeclaraçãosobreacorujaéumadaspartesmaisfáceisdedecifrar.
ÉaformadeHegelnosdizerqueasabedoriaeacompreensãonocursodahistóriahumanasó
acontecerãoemumestágiomaisavançado,quandoolharmosparaoquejáaconteceu,como
alguémquerevêosacontecimentosdodiaquandoanoitecai.
Minervaeraadeusaromanadasabedoriaecostumavaestarassociadaaumacorujasábia.
OfatodeHegeltersidosábiooutoloémotivodedebate,mascomcertezaeleerainfluente.Sua
visãodequeahistóriasedesdobrariadeumamaneiraparticularinspirouKarlMarx(ver
Capítulo27)ecertamentemudouoqueacontecia,postoqueasideiasdeMarxincitaram
revoluçõesnaEuropanoiníciodoséculoXX.Contudo,Hegeltambémirritoumuitosfilósofos.
Algunstrataramsuaobracomoumexemplodoriscodeseusartermosdeformaimprecisa.
BertrandRussell(verCapítulo31)chegouamenosprezá-la,enquantoA.J.Ayer(verCapítulo
32)declarouqueamaiorpartedasafirmaçõesdeHegelnãoexpressavaabsolutamentenada.
ParaAyer,aescritadeHegeleramaissemsentidodoqueinformativaebemmenosatraente.
Outros,inclusivePeterSinger(verCapítulo40),consideravamopensamentodeHegel
extremamenteprofundoeargumentavamquesuaescritaédifícilporqueasideiascomqueHegel
lutavaeramoriginaisdemaisedifíceisdeapreender.
HegelnasceuemStuttgart,noquehojeéaAlemanha,em1770ecresceunaerada
RevoluçãoFrancesa,quandoamonarquiaforasuperada,eumanovarepública,estabelecida.Ele
achamavade“gloriosoamanhecer”e,comseuscolegasestudantes,plantouumaárvorepara
comemorarosacontecimentos.Omomentodeinstabilidadepolíticaetransformaçãoradicalo
influenciaramparaorestodavida.Haviaumasensaçãorealdequeassuposiçõesfundamentais
podiamserderrubadas,dequeoquepareciaserimutávelparatodoosemprenaverdadenão
precisavaser.Issolevouaoentendimentodequeasideiasquetemosestãodiretamente
relacionadasàépocaemquevivemosenãopodemsertotalmentecompreendidasforadeseu
contextohistórico.Hegelacreditavaque,naépocaemqueviveu,umestágioimportantíssimona
históriahaviasidoatingido.Emnívelpessoal,eleprogrediudaobscuridadeparaosholofotes.
Começouatrabalharcomotutorparticulardeumafamíliaricaantesdesemudareassumiro
cargodediretordeumaescola.Comotempo,acabousetornandoprofessornaUniversidadede
Berlim.Algunsdeseuslivrosconsistiamoriginalmentedeanotaçõesdeaulasfeitasparaajudar
osestudantesaentendersuafilosofia.Quandomorreu,Hegeleraofilósofomaisconhecidoe
admiradodesuaépoca.Issoéfascinante,dadooquantosuaobrapodeserdifícil.Contudo,um
grupodeestudantesentusiasmadosdedicou-seaentenderediscutiroqueHegelensinoue
apresentarasimplicaçõespolíticasemetafísicasdesuaobra.
ProfundamenteinfluenciadopelametafísicadeImmanuelKant(verCapítulo19),Hegel
chegouarejeitaravisãodeKantdequearealidadenumênicasubjazaomundodosfenômenos.
Emvezdeaceitarqueanoumenaestejaalémdapercepçãoquecausanossaexperiência,Hegel
concluiuqueamentequemoldaarealidadesimplesmenteérealidade.Nãohánadaalémdela.
Masissonãoquerdizerquearealidadepermaneciaemumestadofixo.ParaHegel,tudoestáem
processodemudança,eessamudançatomaaformadeumaumentogradualnaautoconsciência,
nossoestadodeautoconsciênciaestabelecidopeloperíodoemquevivemos.
Pensenotododahistóriacomoumlongopedaçodepapeldobradosobresi.Sópodemos
entenderoquehánopapelaodesdobrá-lo.Domesmomodo,sópodemossaberoqueestá
escritonofinaldopapeldepoisdeabri-lo.Háumaestruturasubjacenteàformacomoelese
desdobra.ParaHegel,arealidadeestáconstantementemovendo-senadireçãodoseuobjetivode
entenderasimesma.Ahistórianãoéabsolutamentealeatória.Elaestáindoparaalgumlugar.
Quandoaolhamosemretrocesso,vemosqueelatinhadesedesdobrardessamaneira.Essaideia
éestranhaquandoaouvimospelaprimeiravez,esuspeitoqueamaioriadaspessoasnão
concordarácomHegeldepoisdelerisso.Paraamaioriadenós,ahistóriaestámaispróximade
comoHenryFordadescreveu:“Apenasumadesgraçaapósaoutra”.Ahistóriaéumasériede
eventosqueacontecemsemnenhumplanejamentogeral.Podemosestudarahistóriaedescobrir
ascausasprováveisdesseseventosepredizerumpoucodoquepoderiaacontecernofuturo,mas
issonãosignificaqueelatenhaumpadrãoinevitáveltalcomoHegelpensava.Issonãoquerdizer
queelaestejaindoparaalgumlugar.E,comcerteza,nãosignificaqueestejagradualmentese
tornandoconscientedesi.
OestudodahistóriafeitoporHegelnãoeraumaatividadeseparadadesuafilosofia,mas
simaprincipalpartedesuafilosofia.Paraele,históriaefilosofiaestavamentrelaçadas.Etudo
estavadirecionando-separaalgomelhor.Essaideianãoeraoriginal.Areligiãogeralmente
explicaahistóriacomoselevasseaumpontofinal,comoasegundavindadeCristo.Hegelera
cristão,porémsuaexplicaçãoestavalongedeserortodoxa.Paraele,oresultadofinalnãoeraa
segundavinda.Hegelacreditavaqueahistóriatinhaumalvofinalqueninguémhaviadefato
consideradoantes:avindagradualeinevitáveldoEspíritopelamarchadarazão.
MasoqueéoEspírito?EoquesignificaoEspíritotornar-seconsciente-de-si?Apalavra
emalemãoparaEspíritoéGeist.Osacadêmicosdiscordamsobreseusignificadopreciso;
algumaspessoaspreferemtraduzi-lapor“Mente”.ParecequeHegelquerrepresentarcomo
termonadamaisqueamenteúnicadetodaahumanidade.Hegeleraidealista–pensavaqueo
EspíritoouaMenteerafundamentaledescobresuaexpressãonomundofísico(em
contraposição,osmaterialistasacreditamqueamatériafísicaéofundamento).Hegelrecontoua
históriadomundoemtermosdeaumentosgraduaisdaliberdadeindividual.Graçasaoquepara
unséliberdade,masparaoutrosnãooé,estamosnosmovendodaliberdadeindividualparaum
mundonoqualtodossãolivres,umEstadopolíticoquepermiteacolaboraçãodetodosparaa
sociedade.
Hegelacreditavaqueumadasmaneirasdeprogredirmosnopensamentoépeloembatede
umaideiaeseuoposto,equepodemoschegarmaispertodaverdadeseguindoseumétodo
dialético.Primeiro,alguémapresentaumaideia–umatese.Essateseéconfrontadacomsua
contradição,comumavisãoqueadesafie–suaantítese.Desseconfrontoentreduasposições
surgeumaterceiraposiçãomaiscomplexa,quelevaemconsideraçãoasduasanteriores–uma
síntese.Edepois,namaioriadoscasos,essasíntesecomeçatodooprocessonovamente.Anova
síntesetorna-seumatese,queéconfrontadacomumaantítese.Tudoissocontinuaacontecendo
atéqueocorraoplenoentendimento-de-siporpartedoEspírito.
OprincipalpropósitodahistóriaéoentendimentoporpartedoEspíritodesuaprópria
liberdade.Hegelnarrouesseprogressodesdeaquelesqueviviamsobodomíniodegovernos
tiranosnaantigaChinaeÍndia,quenãosabiamqueeramlivres,atéaépocadele.Paraesses
“orientais”,somenteogovernantetodo-poderosoexperimentavaaliberdade.NavisãodeHegel,
aspessoascomunsnãotinhamabsolutamentenenhumaconsciênciadeliberdade.Ospersas
antigoseramumpoucomaissofisticadosnoreconhecimentodaliberdade.Elesforamderrotados
pelosgregos,eissotrouxeprogresso.Osgregos,edepoisosromanos,tinhammaisconsciência
daliberdadedoqueaquelesqueosantecederam.Noentanto,aindamantinhamescravos.Isso
mostravaqueelesaindanãocompreendiamtotalmentequeahumanidadecomoumtododeviaser
livre,enãosóosricosouospoderosos.EmumafamosapassagemdeseulivroAfenomenologia
doespírito(1807),Hegeldiscutiualutaentreummestreeumescravo.Omestrequerser
reconhecidocomoumindivíduoconsciente-de-sieprecisadoescravoparaatingiresseobjetivo,
masnãoadmitequeoescravotambémmereçareconhecimento.Essarelaçãodesiguallevaauma
luta,comamortedeumdosdois,masalutaéautodestrutiva.Porfim,mestreeescravoacabam
reconhecendoquenecessitamumdooutroequeprecisamrespeitaraliberdadeumdooutro.
Noentanto,segundoHegel,foisócomocristianismo,quedesencadeouumaconsciência
dovalorespiritual,quealiberdadegenuínatornou-sepossível.Emsuaprópriaépoca,ahistória
realizouseuobjetivo.OEspíritotornou-seconscientedesuapróprialiberdade,easociedade
eraumresultadoordenadopelosprincípiosdarazão.Issoeramuitoimportanteparaele:a
verdadeiraliberdadesósurgiudeumasociedadepropriamenteorganizada.Oquepreocupa
muitosleitoresdeHegeléque,notipodesociedadeidealimaginadaporele,aquelesquenãose
encaixamnavisãodesociedadedospoderososorganizadoresserãoforçados,emnomeda
liberdade,aaceitaressemodo“racional”devida.Serãoeles,nafraseparadoxaldeRousseau,
“forçadosaserlivres”(verCapítulo18).
OresultadofinaldetodaahistóriaacabousendoqueopróprioHegelchegouà
consciênciadaestruturadarealidade.Elepareciapensarquehaviachegadoaesseestágionas
páginasfinaisdeumdeseuslivros.EssefoiopontoemqueoEspíritocompreendeuasimesmo
pelaprimeiravez.Então,assimcomoPlatão(verCapítulo1),Hegelconferiuumaposição
especialaosfilósofos.Lembre-sedequePlatãoacreditavaqueosreis-filósofosdeveriam
governarsuarepúblicaideal.Hegel,aocontrário,acreditavaqueosfilósofospoderiamatingir
umtipoparticulardeautoentendimentoquetambémeraoentendimentodarealidadeedetodaa
história,umaoutraformaderepresentaraspalavrasgravadasnoTemplodeApoloemDelfos:
“Conhece-teatimesmo”.Sãoosfilósofos,acreditavaele,queacabampercebendooderradeiro
padrãodedesdobramentodoseventoshumanos.Elesadmiramomodocomoadialéticaproduziu
umdespertargradual.Derepente,tudosetornaclaroparaeles,eoobjetivodotododahistória
humanatorna-seóbvio.OEspíritoentraemumanovafasedoentendimentodesi.Essaéateoria,
sejacomofor.
Hegeltinhamuitosadmiradores,masArthurSchopenhauernãoeraumdeles.Elepensava
queHegelnãoeradefatoumfilósofo,porquelhefaltavaseriedadeehonestidadenamaneira
comotratavaafilosofia.NoqueserefereaSchopenhauer,afilosofiadeHegeleradesprovida
desentido.Hegel,porsuavez,descreveuSchopenhauercomoumsujeito“repulsivoeignorante”.
CAPÍTULO23
Vislumbresderealidade
ARTHURSCHOPENHAUER
Avidaédolorosa,eseriamelhornãoternascido.Poucaspessoastêmessaperspectiva
pessimistacomoArthurSchopenhauer(1788-1860).Segundoele,todosnósestamospresosem
umciclodequererascoisas,obterascoisasedepoisquerermaiscoisas.Issosóacabaquando
morremos.Semprequeparecetermosconseguidooquequeremos,começamosaquereroutra
coisa.Talvezvocêpensequepoderiaserfelizsefossemilionário,masocontentamentonão
durariamuitotempo.Vocêdesejariaalgoquenãoteria.Nós,sereshumanos,somosassim:nunca
estamossatisfeitos,nuncadeixamosdeterambiçãopormaisquetenhamos.Etudoissoémuito
deprimente.
Porém,afilosofiadeSchopenhauernãoétãosombriaquantoparece.Elepensavaque,se
pudéssemospelomenosreconheceraverdadeiranaturezadarealidade,nósnoscomportaríamos
demaneirabemdiferenteepoderíamosevitaralgumasdascaracterísticasmaistristesda
condiçãohumana.SuamensagemerabastanteparecidacomadeBuda.Budaensinavaquetoda
vidaenvolvesofrimento,masqueemumnívelprofundonãohácoisascomo“simesmo”:se
reconhecermosisso,poderemosatingirailuminação.Essasemelhançanãoeracoincidência.Ao
contráriodamaioriadosfilósofosocidentais,Schopenhauerbaseara-seamplamentenafilosofia
oriental.EletinhaatémesmoumaestátuadeBudaemsuamesa,queficavapertodaestátuade
ImmanuelKant,outragrandeinfluênciaparaele.
AocontráriodeBudaeKant,Schopenhauereraumhomemsoturno,presunçosoedifícil.
QuandoconseguiuumempregocomoprofessoremBerlim,eleseconvenceutantodesuaprópria
genialidadequeteimouparaquesuasaulasfossemdadasexatamentenomesmohorárioqueasde
Hegel.Essanãofoiumadesuasmelhoresideias,poisHegelerabastantepopularentreos
estudantes.QuaseninguémaparecianasaulasdeSchopenhauer;asdeHegel,emcompensação,
ficavamlotadas.Schopenhaueracaboudeixandoauniversidadeepassouorestodavidavivendo
deherança.
Seulivromaisimportante,OmundocomoVontadeeRepresentação,foipublicadoem
1818,maselecontinuoutrabalhandonaobraduranteanos,oquegerouumaversãomaislongaem
1844.Aprincipalideianocernedaobraerabastantesimples.Arealidadetemdoisaspectos.
ElaexistetantocomoVontadequantocomoRepresentação.AVontadeéaforçapropulsoracega,
encontradaemabsolutamentetodasascoisasqueexistem.Éaenergiaquefazasplantaseos
animaiscrescerem,mastambéméaforçaquefazasbússolasapontaremparaonorteeoscristais
seformaremnoscompostosquímicos.Elaestápresenteemcadapartedanatureza.Ooutro
aspecto,omundocomoRepresentação,éomundocomooexperimentamos.
OmundocomoRepresentaçãoéanossaconstruçãodarealidadeemnossamente.Éoque
Kantchamoudemundofenomênico.Olheaoredor.Talvezvejaárvores,pessoasoucarrospela
janela,ouestelivronasuafrente;talvezouçapássaros,otráfegoouruídosnooutroquarto.O
quevocêexperimentapelossentidoséomundocomoRepresentação.Éasuamaneiradedar
sentidoatudo,eelarequeraconsciência.Suamenteorganizaaexperiênciaparadarsentidoa
todaela.OmundocomoRepresentaçãoéomundonoqualvivemos.Contudo,assimcomoKant,
Schopenhaueracreditavaquehaviaumarealidademaisprofundaqueexistealémdanossa
experiência,alémdomundodasaparências.Kantchamouessemundodenumênicoepensavaque
nãotemosacessodiretoaele.ParaSchopenhauer,omundocomoVontadeeraumpouco
parecidocomomundonumênicodeKant,emboracomdiferençasimportantes.
Kantescreveusobreonoumena,pluraldenoumenon.Eleacreditavaquearealidadetinha
maisdoqueumaparte.NãoestáclarocomoKantsabiadisso,vistoqueeledeclarouqueo
mundonumênicoerainacessívelparanós.Schopenhauer,emcontraste,sustentavaquenão
podemosafirmardemaneiranenhumaquearealidadenumênicaeradividida,poisessetipode
divisãorequerespaçoetempo,eKantnãoacreditavaqueespaçoetempoexistiamnarealidade
emsi,massimqueeramcausadospelamenteindividual.JáSchopenhauerdescreviaomundo
comoVontadecomoumaforçaúnica,unificadaesemdireçãoportrásdetudooqueexiste.
PodemosterumvislumbredessemundocomoVontadepormeiodenossasprópriasaçõese
tambémpelaexperiênciadaarte.
Paredelerecoloqueamãonacabeça.Oqueaconteceu?Alguémqueestivesse
observandoveriaapenassuamãosubindoeencostandoemsuacabeça.Vocêtambémpodever
issoseolharnoespelho.Essaéumadescriçãodomundofenomênico,omundocomo
Representação.SegundoSchopenhauer,noentanto,háumaspectointernoànossaexperiênciade
movimentarocorpo,algoquepodemossentirdeumamaneiradiferentedaexperiênciadomundo
dosfenômenosemgeral.NósnãoexperimentamosomundocomoVontadediretamente,mas
chegamosbempertodissoquandofazemosaçõesdeliberadas,quandotemosvontadedeações
corporais,quandoasfazemosacontecer.Poressarazão,eleescolheuapalavra“Vontade”para
descreverarealidade,aindaquesejaapenasnasituaçãohumanaqueessaenergiatenhaqualquer
conexãocomaaçãodeliberada–plantasnãocrescemdeliberadamente,nemreaçõesquímicas
acontecemdeliberadamente.Portanto,éimportanteperceberqueapalavra“Vontade”édiferente
dosusoscomunsdotermo.
Quandoalguémtem“vontade”dealgumacoisa,tememmenteumobjetivo:estátentando
fazeralgumacoisa.MasissonãoédemodonenhumoqueSchopenhauerquerdizerquando
descrevearealidadenoníveldomundocomoVontade.AVontade(cominicialmaiúscula)é
despropositadaou,comoelecostumadizer,“cega”.Elanãotentaprovocarnenhumresultadoem
particular.Elanãotemobjetivooumeta.Elaéapenasessegrandesurtodeenergiaqueestáem
todososfenômenosnaturais,bemcomoemnossosatosconscientesdetervontadedascoisas.
ParaSchopenhauer,nãoháumDeusqueadirecione.TampoucoaVontadeemsiéDeus.A
situaçãohumanaéquenós,comotodaarealidade,somospartedessaforçadesprovidade
sentido.
Contudo,háalgumasexperiênciasquepodemtornaravidasuportável.Essasexperiências
basicamentevêmdaarte.Aarteforneceumpontodetranquilidadedemodoque,duranteum
curtoperíodo,conseguimosescapardocicloinfinitodalutaedodesejo.Amúsicaéamelhor
formadearteparaisso.DeacordocomSchopenhauer,issoocorreporqueamúsicaéumacópia
daVontadeemsi.Paraele,issoexplicavaopoderdamúsicadenostocartãoprofundamente.Se
ouvirmosumasinfoniadeBeethovenquandoestivermosnadisposiçãocorretaparaisso,alémde
sermosestimuladosemocionalmente,vislumbraremosarealidadecomoelaverdadeiramenteé.
Nenhumoutrofilósofoatribuiumpapeltãocentralàsartes;portanto,nãoésurpresaque
Schopenhauersejabenquistoporpessoascriativasdeváriostipos.Compositoresemúsicoso
adoramporqueeleacreditavaqueamúsicaeraamaisimportantedasartes.Osromancistas
tambémsesentiamatraídospelasideiasdele,taiscomoLeonTolstói,MarcelProust,Thomas
ManneThomasHardy.DylanThomasinclusiveescreveuumpoema,“Theforcethatthroughthe
greenfusedrivestheflower”[Aforçaqueimpeleaflorpeloverderastilho],inspiradona
descriçãodeSchopenhauerdomundocomoVontade.
Schopenhauernãodescreveuapenasarealidadeenossarelaçãocomela.Eletambémtinha
ideiassobrecomodeveríamosviver.Umavezquepercebemosquetodosfazemospartedeuma
forçaenergéticaequeaspessoasenquantoindivíduosexistemsomentenoníveldomundocomo
Representação,issodeviamudaroquefazemos.ParaSchopenhauer,causarmalaosoutrosé
tambémcausarmalasipróprio.Esteéofundamentodetodaamoral.Seeumatovocê,destruo
umapartedaforçavitalqueunetodosnós.Quandoalguémcausaomalaoutrapessoa,écomo
umacobraquemordeaprópriacaudasemsaberqueestáfincandoaspresasnaprópriacarne.
Dessemodo,amoralbásicaqueSchopenhauerensinavaeraadacompaixão.Ditodeformamais
clara,asoutraspessoasnãosãoexternasamim.Eumeimportocomoqueacontececomvocê
porque,decertamaneira,vocêfazpartedaquilodequetodosnósfazemosparte:omundocomo
Vontade.
EsseéoverdadeiroposicionamentomoraldeSchopenhauer.Noentanto,équestionávelse
conseguimoschegaraalgoparecidocomesseníveldepreocupaçãocomasoutraspessoas.Certa
ocasião,umamulherquetagarelavanaportadacasadeSchopenhaueroirritoutantoqueelea
empurroupelasescadas.Elaseferiu,eacorteordenouqueSchopenhauerpagasseaelauma
pensãopelorestodavida.Quandoelamorreualgunsanosdepois,Schopenhauernãodemonstrou
compaixão;emvezdisso,elerabiscouotrocadilho“obitanus,abitonus”(latimpara“morreua
velha,acabou-seofardo”)nacertidãodeóbitodela.
Háoutrométodomaisextremodelidarcomociclododesejo.Paraevitarficarpreso
dessemodo,simplesmentedistancie-sedomundointeiroetorne-seumasceta:vivaumavidade
castidadeepobreza.Schopenhaueracreditavaqueessaseriaaformaidealdeenfrentara
existência,asoluçãopelaqualoptarammuitosreligiososorientais.Contudo,opróprio
Schopenhauernuncasetornouumasceta,apesardeseretrairdavidasocialquandoenvelheceu.
Durantequasetodaavida,elegostoudecompanhia,tevecasosamorosos,alimentou-sebem.É
tentadordizerqueelefoiumhipócrita.Naverdade,aveiadepessimismoqueperpassasuaobra
étãoprofundaemdeterminadoslugaresquealgunsleitorespensavamque,seeletivessesido
sincero,teriasematado.
OgrandefilósofovitorianoJohnStuartMill,poroutrolado,eraumotimista.Eledefendia
queopensamentorigorosoeadiscussãopodiamincitaramudançasocialeproduzirummundo
melhor,ummundoemquemaispessoaspoderiamtervidasfelizesesatisfatórias.
CAPÍTULO24
Espaçoparacrescer
JOHNSTUARTMILL
Imaginequevocêtenhavividodistantedeoutrascriançasduranteamaiorpartedesuainfância.
Emvezdepassarotempobrincando,vocêaprenderiagregoeálgebracomumprofessor
particular,ouseenvolveriaemconversascomadultosextremamenteinteligentes.Oquevocê
teriasetornado?
IssofoimaisoumenosoqueaconteceucomJohnStuartMill(1806-1873).Elefoium
experimentoeducacional.Seupai,JamesMill,amigodeJeremyBentham,tinhaamesmavisão
deLockedequeamentedascriançaseravazia,comoumquadrobranco.JamesMillestava
convencidodeque,secriasseumacriançadamaneiracorreta,haveriaumaboachancedeelase
tornarumgênio.Porisso,JamesensinouseufilhoJohnemcasa,garantindoqueomeninonão
perdessetempobrincandoouaprendendomaushábitos.Contudo,nãosetratavaapenasde
transmitirconteúdosparaaprovaçãoemprovas,muitomenosdeumamemorizaçãoforçadaou
algodessetipo.JamesensinouJohnausarométododequestionamentosocrático,encorajandoo
filhoaexplorarasideiasqueaprendia,emvezdesimplesmenterepeti-las.
Oimpressionanteresultadofoique,aostrêsanosdeidade,Johnjáestudavagregoantigo.
Aosseis,escreveraumahistóriadeRomaeaossetejáentendiaosdiálogosdePlatãonalíngua
original.Aosoito,começouaaprenderlatim.Aosdoze,tinhaumconhecimentoabrangentede
história,economiaepolítica,conseguiaresolverequaçõesmatemáticasedemonstravaum
interesseapaixonadoesofisticadoporciência.Eleeraumprodígio.Aosvinteanos,jáeraum
dospensadoresmaisbrilhantesdesuaera,emborajamaistenhadefatosuperadosuaestranha
infânciaepermanecidosolitárioeumpoucodistantedurantetodaavida.
Noentanto,elesetornouumtipodegênio.Issoquerdizerqueoexperimentodopai
funcionara.Milltornou-seumativistacontraainjustiça,umdosprimeirosfeministas(elefoi
presoporfomentarocontroledenatalidade),político,jornalistaeumgrandefilósofo,talvezo
maiorfilósofodoséculoXIX.
Millfoicriadocomoutilitarista,eainfluênciadeBenthameraimensa.AfamíliaMill
passavatodoverãonacasadecampodeBentham,emSurrey.Mas,emboraMillconcordasse
comBenthamqueaaçãocorretaésempreaquelaqueproduzamaiorfelicidade,elepassoua
acreditarqueaexplicaçãodefelicidadecomoprazerdadaporseuprofessoreramuitogrosseira.
Então,ojovemdesenvolveusuaprópriaversãodateoria,umaversãoquedistinguiaosprazeres
maiselevadosdosmenoselevados.
Sehouvesseumaescolha,seriamelhorserumporcofelizchafurdandonalamaeenfiando
acaranocoxoouumserhumanoinfeliz?Millpensavaqueeraóbvioqueescolheríamosserum
humanoinfelizemvezdeumporcofeliz.MasissovaicontraopensamentodeBentham.Lembre-
sedequeBenthamdiziaquetudooqueimportasãoasexperiênciasprazerosas,
independentementedecomosãoproduzidas.Mill,poroutrolado,achavaquepodemoster
diferentestiposdeprazerequealgunssãomuitomelhoresqueoutros,tãomelhoresquenenhuma
quantidadedeprazerinferiorjamaisseráequiparávelàmenorquantidadedoprazersuperior.Os
prazeresinferiores,comoaquelesqueosanimaispodemexperimentar,jamaisseriamumdesfio
aosprazeressuperioreseintelectuais,comolerumlivroououvirumconcerto.Millfoimais
alémedissequeseriamelhorserumSócratesinsatisfeitodoqueumtolosatisfeito,issoporque
ofilósofoSócratesfoicapazdeobterprazeresmuitomaissutispelopensamentodoqueumtolo
jamaisconseguiriaobter.
PorqueacreditaremMill?Suarespostaeraadequequemexperimentassetantoprazeres
superioresquantoinferioresprefeririaossuperiores.Umporconãopodelerouescutarmúsica
clássica,entãosuaopiniãosobreissonãovaleria.Seumporcopudesseler,elepreferirialera
rolarnalama.
IssoéoqueMillpensava.Noentanto,algumaspessoasapontaramqueelesupunhaque
todosfossemiguaisaele,ouseja,preferiamlerarolarnalama.Piorainda:logoqueMill
apresentouasdiferentesqualidadesdefelicidade(superioreinferior),assimcomoasdiferentes
quantidades,ficoumuitomaisdifícilpercebercomopoderíamoscalcularoquefazer.Umadas
grandesvirtudesdaabordagemdeBenthamfoisuasimplicidade,comtodosostiposdeprazere
doravaliadosnamesmamoeda.Millnãoapresentanenhumamaneiradecalcularumataxade
câmbioentreasdiferentesocorrênciasdeprazeressuperioreseinferiores.
Millaplicavaseupensamentoutilitaristaatodososaspectosdavida.Elepensavaqueos
sereshumanossepareciamumpoucocomasárvores.Senãodamosàárvoreoespaço
necessárioparaelasedesenvolver,elaseráfracaeretorcida.Todavia,naposiçãocorreta,ela
poderealizartodooseupotencial,atingindoumaalturaeumaextensãoconsideráveis.De
maneirasemelhante,nascircunstânciascorretas,ossereshumanosprosperam,eissogeraboas
consequênciasnãosóparaoindivíduoemquestão,mastambémparatodaasociedade–a
felicidadeémaximizada.Em1859,Millpublicouumlivrocurto,poréminspirador,defendendo
suavisãodequedaràspessoasoespaçoquejulgamserconvenienteparasedesenvolveremera
amelhormaneiradeorganizarasociedade.Esselivrochama-seSobrealiberdadeeaindahoje
éamplamentelido.
Paternalismo,termooriginadodapalavrapater,quesignificapai,significaforçaralguém
afazeralgoparaoseuprópriobem(emborapudesseigualmentesechamarmaternalismopara
mater,palavralatinaparamãe).Sequandocriançavocêfoiforçadoacomervegetais,entenderá
muitobemesseconceito.Comervegetaisnãotransformaninguémemumapessoaboa,masseus
paisinsistemqueéprecisocomê-losparaoseuprópriobem.Millacreditavaquenãohavia
nenhumproblemacomopaternalismoquandodirecionadoàscrianças:elasprecisamser
protegidasdesiprópriaseterseucomportamentocontroladodeváriasmaneiras.Contudo,o
paternalismodirecionadoaosadultosemumasociedadecivilizadaerainaceitável.Aúnica
justificativaparaissoeraseumadultocorresseoriscodeprejudicaralguémcomsuaspróprias
ações,ousetivessesériosproblemaspsiquiátricos.
AmensagemdeMillerasimpleseficouconhecidacomoprincípiododano.Todoadulto
deveriaserlivreparavivercomoquiser,desdequeninguémsejaprejudicadonoprocesso.
Trata-sedeumaideiadesafiadoraparaaInglaterravitoriana,quandomuitaspessoassupunham
quepartedopapeldogovernoeraimporbonsvaloresmoraisàspessoas.Milldiscordava.Ele
acreditavaqueamaiorfelicidadeviriadosindivíduosquetivessemumamaiorliberdadena
formadesecomportar.Enãoerasóofatodeogovernodizeràspessoasoquefazerque
preocupavaMill.Eleodiavaoquechamoude“tiraniadamaioria”,aformadeaspressões
sociaisevitaremqueamaioriafaçaoquequerfazer,ousetorneoquequersetornar.
Osoutrosatépensamquesabemoquenostornafelizes,edemodogeralestãoerrados.
Nóssabemosmelhordoqueninguémoquequeremosfazerdenossavida.Emesmoquenão
saibamos,pensavaMill,émelhorquecometamosospróprioserrosdoquesermosforçadosa
nosadaptaraummododevida.Issoestáemconsonânciacomoutilitarismo,poisMill
acreditavaqueaumentaraliberdadeindividualgeraumafelicidademaiorparatodosdoquese
essaliberdadeforlimitada.
Osgênios,deacordocomMill(queeraoprópriogênio),precisamtermaisliberdadedo
quetodosnósparasedesenvolverem.Elesraramentecorrespondemàsexpectativasda
sociedadeemrelaçãoaoseumododecomportamentoecostumamparecerexcêntricos.Todos
nósperdemosquandoodesenvolvimentodelesétolhido,poisnessecasonãocontribuemparaa
sociedadetalcomoofariamsefossemmaislivres.Portanto,sequisermosatingiromaiornível
possíveldefelicidade,precisamosnãointerferirnavidadosgênios,anãoserque,obviamente,
elescorramoriscodeprejudicarosoutroscomasprópriasações.Consideraroqueelesfazem
comoalgoofensivonãoémotivoparaevitarquesecomportemdedeterminadomodo.Mill
deixouissobemclaro:ofendernãodeveserconfundidocomfazeromal.
AabordagemdeMilltevealgumasconsequênciasperturbadoras.Imagineumhomemsem
famíliaquedecidabeberduasgarrafasdevodcatodasasnoites.Éfácilperceberqueeleestáse
matandoaospoucospelabebida.Aleideveriainterferirnessecaso?Não,diziaMill,nãoatéque
elecorraoriscodeprejudicaropróximo.Podemosconversarcomele,tentarconvencê-lode
queeleestásedestruindo,porémjamaisdevemosforçá-loamudarseusmodos;tampoucodeveo
governoevitarqueeleconsumaaprópriavida.Éalivreescolhadele.Nãoserialivreescolhase
eleprecisassecuidardeumacriança,mas,comoninguémdependedele,elepodefazeroque
quiser.
Alémdaliberdadenomododevida,Millacreditavaqueeravitalquetodostivessem
liberdadeparapensarefalaroquequisessem.Elesentiaqueadiscussãoabertaeraumgrande
benefícioparaasociedade,porqueforçavaaspessoasapensararduamentesobreaquiloemque
acreditavam.Senãotivermosnossasvisõescontestadasporvisõesopostas,provavelmente
acabaremossustentando-ascomo“dogmasmortos”,prejuízosquenaverdadenãopodemos
defender.Milldefendiaaliberdadedeexpressãotendocomolimiteopontoemqueincitaa
violência.Acreditavaqueumjornalistadeveriaserlivreparaescreverumeditorialnoqual
declarasseque“osprodutoresdemilhofazemcomqueospobrespassemfome”;todavia,seele
levantasseumaplacacomasmesmaspalavrasnaentradadacasadeumfabricantedemilho
diantedeumamultidãoenfurecida,seriaoincitamentoàviolência,algoproibidopeloprincípio
dodanodeMill.
Muitaspessoasdiscordavamdele.Algumaspensavamquesuaabordagemàliberdadeera
centradademaisnaideiadequeoimportanteéoqueosindivíduossentememrelaçãoasuas
própriasvidas(algomuitomaisindividualista,porexemplo,queoconceitodeliberdadede
Rousseau,verCapítulo18).Outrosacreditavamqueeleabriaasportasparaumasociedade
pessimistaquearruinariaparasempreamoral.JamesFitzjamesStephen,contemporâneodeMill,
defendiaquemuitaspessoasdeviamserforçadasaumcaminhoestreitoenãodeviamtermuitas
escolhassobreomodocomoviviam,poismuitasdelas,dadaaliberdadedeação,acabariam
tomandodecisõesruinseautodestrutivas.
UmaáreanaqualMilleraparticularmenteradicalemsuaépocaeraofeminismo.Na
InglaterradoséculoXIX,asmulherescasadasnãopodiamterpropriedadesetinham
pouquíssimaproteçãocontraaviolênciaeoestupropelosmaridos.MilldefendeuemAsujeição
dasmulheres(1869)queossexosdeveriamsertratadosigualmente,tantonoDireitoquantona
sociedadedemodogeral.Algumaspessoasqueocercavamdiziamqueasmulhereseram
naturalmenteinferioresaoshomens.Elequestionavacomoerapossívelafirmarissoquandoas
mulheresquasesempreforamproibidasdeatingirtodooseupotencial:elaserammantidas
afastadasdaeducaçãosuperioredemuitasprofissões.Acimadetudo,Millqueriaumamaior
igualdadeentreossexos.Ocasamentodeveriaserumarelaçãodeamizadeentreiguais,diziaele.
SeuprópriocasamentocomaviúvaHarrietTaylor,queaconteceutardiamentenavidadosdois,
eraumarelaçãodessetipoegeroumuitafelicidade.Eleseramamigosíntimos(etalvezaté
amantes)quandooprimeiromaridodelaaindaestavavivo,masMilltevedeesperaraté1851
paraserosegundo.ElaoajudouaescrevertantoSobrealiberdadequantoAsujeiçãodas
mulheres,emborainfelizmentetenhamorridoantesdeosdoisserempublicados.
Sobrealiberdadefoipublicadopelaprimeiravezem1859.Nomesmoanosurgiuoutro
livroaindamaisimportante:Aorigemdasespécies,deCharlesDarwin.
CAPÍTULO25
Designnãointeligente
CHARLESDARWIN
“Vocêéparentedosmacacosporpartedosavóspaternosoumaternos?”Essapergunta
debochadafoifeitapelobispoSamuelWilberforceemumfamosodebatecomThomasHenry
HuxleynoMuseudeHistóriaNacionaldeOxfordem1860.Huxleyestavadefendendoasideias
deCharlesDarwin(1809-1882).OintuitodaperguntadeWilberforceerasertantouminsulto
quantoumapiada,porémotirosaiupelaculatra.Huxleymurmurouentreosdentes,“Obrigado,
Deus,portê-locolocadoemminhasmãos”,erespondeuquepreferiaserparentedeumprimata
doquedeumserhumanoqueretardavaumdebateridicularizandoideiascientíficas.Elepoderia
muitobemterexplicadoquedescendiadeancestraisparecidoscommacacosdosdoislados–e
nãorecentemente,masemalgummomentoopassado.IssoéoqueDarwindiria.Todostinham
primatasemsuaárvoregenealógica.
OfurorcausadoporessaideiacomeçoupraticamentenomomentoemqueolivroA
origemdasespéciesfoipublicadoem1859.Depoisdisso,nãofoimaispossívelpensarnos
sereshumanoscomoserestotalmentediferentesdoreinoanimal.Ossereshumanosnãoeram
maisespeciais:elessimplesmentefaziampartedanaturezacomoqualqueroutroanimal.Isso
podenãoserumasurpresaparavocê,masfoiparaamaioriadosvitorianos.
Talvezvocêpensequesóseriaprecisoalgunsminutosnacompanhiadeumchimpanzéou
gorila,outalvezumaboaolhadanoespelho,parapercebernossaproximidadeemrelaçãoaos
primatas.Contudo,naépocadeDarwin,quasetodasaspessoassupunhamqueossereshumanos
erambemdiferentesdequalqueroutroanimal,eaideiadequetínhamosparentesdistantesem
comumcomosanimaiseraridícula.Umaquantidadeenormedepessoaspensouqueasideiasde
Darwineramtresloucadas,obradodemônio.Algunscristãosagarraram-seàcrençadequeo
livrodeGênesisapresentavaaverdadeirahistóriadecomoDeuscriaraosanimaiseasplantas
emseisdiasdemuitotrabalho.Deushaviaprojetadoomundoetudooqueneleexistia,cada
coisacomseulugarapropriadoparatodoosempre.Essescristãosacreditavamquetodasas
espéciesdeanimaiseplantascontinuavamsendoasmesmasdesdeaCriação.Atéhoje,algumas
pessoasrelutamemacreditarqueaevoluçãosejaoprocessoquedeuorigemaoquesomos.
Darwinerabiólogoegeólogo,nãofilósofo.Talvezentãovocêsepergunteporqueháum
capítulosobreelenestelivro.Arazãoéquesuateoriadaevoluçãopelaseleçãonaturalesuas
versõesmodernastiveramumprofundoimpactonamaneiracomoosfilósofos–eoscientistas–
pensamsobreahumanidade.Trata-sedateoriacientíficamaisinfluentedetodosostempos.O
filósofocontemporâneoDanielDennettachamoude“amelhorideiaquealguémjáteve”.A
teoriaexplicacomoossereshumanoseasplantaseosanimaisqueoscercamvieramaseroque
sãoecomoaindacontinuammudando.
Umdosresultadosdessateoriacientíficaéqueficoumaisfácildoqueantesdeacreditar
nanãoexistênciadeDeus.OzoólogoRichardDawkinsescreveu:“Nãoconsigoimaginarcomo
eraserumateuantesde1859,quandoAorigemdasespéciesdeDarwinfoipublicado”.Éclaro
quehaviaateusantesde1859–DavidHume,dequemfalamosnoCapítulo17,provavelmente
eraumdeles–,masdepoisdapublicaçãosurgirammuitomais.Nãoéprecisoserateupara
acreditarqueaevoluçãosejaverdadeira:muitosreligiosossãodarwinistas.Masnãoépossível
serdarwinistaeacreditarqueDeustenhacriadotodasasespéciesexatamentecomoelassão
hoje.
Quandojovem,DarwinestevenumaviagemcincoestrelasabordodoHMSBeagle,
visitandoaAméricadoSul,aÁfricaeaAustrália.Foiaaventuradavidadele–comoseriapara
qualquerpessoa.Antesdisso,elenãofoiumestudanteparticularmentedestacado,eninguém
esperavaqueelefizesseumacontribuiçãotãoimpressionanteparaopensamentohumano.
Darwinnãofoiumgênionaescola.Seupaiestavaconvencidodequeeleseriaumesbanjadore
umavergonhaparaafamília,poispassavaamaiorpartedotempocaçandoeatirandoemratos.
Quandoaindajovem,começouaestudarmedicinaemEdimburgo,mas,aoperceberquenão
dariacerto,passouaestudarteologianauniversidadedeCambridgecomointuitodesetornar
vigário.Eraumnaturalistamuitointeressado,passavaotempolivrecoletandoplantaseinsetos,
masnãohaviasinaisdequeeleseriaomaiorbiólogodahistória.Darwinpareciaumpouco
perdidoemmuitosaspectos,poissequersabiaoquequeriaser.MasaviagemabordodoBeagle
otransformou.
Aviagemfoiumaexpediçãocientíficaaoredordomundo,emparteparamapearaslinhas
costeirasdoslugaresporondeobarcopassava.Apesardasuafaltadequalificações,Darwin
assumiuopapeldobotânicooficial,mastambémfaziaobservaçõesdetalhadasderochas,fósseis
eanimaissemprequeancoravam.Opequenonaviologoficouabarrotadocomasamostrasque
elecoletava.Porsorte,conseguiumandaramaiorpartedacoleçãodevoltaparaaInglaterra,
ondefoiarmazenadaparainvestigação.
Delonge,apartemaisvaliosadaviagemacaboutornando-seavisitaàsilhasGalápagos,
umgrupodeilhasvulcânicasnooceanoPacíficoaproximadamenteaoitocentosquilômetrosda
AméricadoSul.OBeaglechegouàsilhasGalápagosem1835.Láhaviaumavariedadeimensa
deanimaisparaexaminar,inclusivetartarugasgiganteseiguanas-marinhas.Emboranãolhe
parecesseóbvionaépoca,omaisimportanteparaateoriadaevoluçãodeDarwinfoiumasérie
detentilhõesdecoropaca.Eleatirouemdiversosdessespassarinhoseosenviouparacasapara
futurosestudos.Umexameminuciosofeitoposteriormenterevelouquehaviatrezeespécies
distintas.Aspequenasdiferençasentreelesestavamprincipalmentenosbicos.
Depoisderetornar,Darwinabandonouosplanosdesetornarvigário.Enquantoviajava,
osfósseis,asplantaseosanimaismortosqueenvioudevoltaparacasaotornarambastante
famosonomundocientífico.Darwintornou-senaturalistaemtempointegralepassoumuitosanos
trabalhandonateoriadaevolução,alémdesetransformaremespecialistamundialemcracas,
aquelespequenosanimaizinhosparecidoscomlapasquesegrudamnasrochasenocascodos
navios.Quantomaiselepensavanisso,maisseconvenciadequeasespéciesevoluíampelo
processonaturaleestavamemconstantemudança,emvezdeestagnadasparasempre.Porfim,
eleapresentouaideiadequeasplantaseosanimaismaisbem-adaptadosaoambientetinham
umaprobabilidademaiordesobreviverduranteumtemposuficienteparapassaradianteparaos
descendentesalgumasdesuascaracterísticas.Durantelongosperíodos,essepadrãoproduziu
plantaseanimaisqueparecemtersidocriadosparavivernosambientesemqueforam
encontrados.AsilhasGalápagosforneceramalgumasdasmelhoresevidênciasdaevoluçãoem
atividade.Porexemplo,emalgummomentodahistória,pensavaDarwin,ostentilhõeschegaram
atéládocontinente,talvezlevadosporfortesventos.Pormilharesemilharesdegerações,os
pássarosemcadailhaadaptaram-segradualmenteaolugarondeviviam.
Nemtodosospássarosdamesmaespéciesãoidênticos.Emgeral,háumavariedade
bastantegrande.Umpássaropodeterumbicolevementemaispontudodoqueoutro,por
exemplo.Seessetipodebicoajudavaopássaroasobreviverpormaistempo,eleteriauma
probabilidademaiordeprocriar.Porexemplo,umpássarocujobicofossebomparacomer
sementesviveriabememumailhaondehouvessemuitassementes,masprovavelmentenãose
adaptariamuitobemaumailhaondeaprincipalfontedecomidafossemnozesqueprecisamser
quebradas.Umpássaroquetevemomentosmaiscomplicadosparaencontrarcomidaacharia
difícilsobreviverosuficienteparaacasalarereproduzir.Então,émenosprovávelqueessetipo
debicofossepassadoadiante.Pássaroscombicosadaptadosaossuprimentosdecomida
disponíveisteriamumaprobabilidademaiordepassaracaracterísticaadianteparaseus
descendentes.Dessemodo,emumailharepletadesementes,ospássaroscombonsbicospara
comersementesacabavamdominando.Durantemilharesdeanos,issolevouàevoluçãodeuma
novaespéciemuitodiferentedaoriginalquechegouàilhapelaprimeiravez.Ospássaroscomo
tipoerradodebicoteriammorridoaospoucos.Emumailhacomdiferentescondições,umtipo
levementediferentedetentilhãoevoluiria.Durantelongosperíodosdetempo,obicodos
pássarosfoiseadaptandocadavezmaisaoambiente.Osdiversosambientesnasdiferentesilhas
significavamqueospássarosqueprosperaramforamosquemelhorseadaptaramaolugar.
OutraspessoasantesdeDarwin,inclusiveseuavô,ErasmusDarwin,haviamsugeridoque
animaiseplantasevoluíam.OqueCharlesDarwinacrescentouaissofoiateoriadaadaptação
pelaseleçãonatural,oprocessoquelevaosmaisbem-adaptadosasobreviverepassaradiante
suascaracterísticas.
Essalutaporsobrevivênciaexplicatudo.Nãosetratasomentedeumalutaentreos
membrosdediferentesespécies;osmembrosdamesmaespécietambémlutamunscontraos
outros.Todoscompetemparapassarsuascaracterísticasparaapróximageração.Foidessa
maneiraquesederamascaracterísticasdeanimaiseplantasqueparecemtersidoinventadaspor
umamenteinteligente.
Aevoluçãoéumprocessoirracional.Nãohánenhumaconsciência,nenhumDeusportrás
dela–oupelomenoselanãoprecisateralgoassimportrásdela.Éimpessoal,comouma
máquinaquesemantémfuncionandoautomaticamente.Éceganosentidodenãosaberparaonde
vaienãopensarnosanimaiseplantasqueproduz.Elatampoucoseimportacomeles.Quando
vemosseusprodutos–plantaseanimais–,édifícilnãopensarqueforamprojetadosporuma
menteinteligente.Masissoseriaumerro.AteoriadeDarwinforneceumaexplicaçãobemmais
simpleseelegante.Elatambémexplicaporqueexistemtantostiposdevida,comdiferentes
espéciesseadaptandoaregiõesdoambienteemquevivem.
Em1858,Darwinaindanãohaviadecididopublicarsuasdescobertas.Eleestava
trabalhandonolivro,poisqueriaquetudosaíssecorretamente.Outronaturalista,AlfredRussel
Wallace(1823-1913),escreveuparaeleapresentandosuaprópriateoria,bastanteparecidacom
ateoriadaevolução.EssacoincidênciafoiumempurrãoparaqueDarwintornassepúblicassuas
ideias,primeirocomumaapresentaçãoparaaLinneanSocietyofLondonedepois,noano
seguinte,comolivroAorigemdasespécies.Depoisdepassargrandepartedavidaelaborando
suateoria,DarwinnãoqueriaqueWallaceapublicasseantesdele.Olivrotornou-ofamosona
mesmahora.
Algumaspessoasqueoleramnãoseconvenceram.OcapitãodoBeagle,RobertFitzRoy,
porexemplo,cientistaqueinventouumsistemadeprevisãodotempo,eraumdevotodahistória
bíblicadacriação.Eleficoucommedodequetivesseparticipadodadestruiçãodacrença
religiosaeachouquejamaisdeveriatercolocadoDarwinabordodonavio.Atéhoje,há
criacionistasqueacreditamqueahistóriacontadanoGênesiséverdadeira,umadescriçãoliteral
daorigemdavida.Contudo,entreoscientistas,háumasegurançapraticamenteabsolutadequea
teoriadeDarwinexplicaoprocessobásicodaevolução.Issosedeveemparteaofatodeque,na
épocadeDarwin,houveumaquantidadegigantescadeobservaçõesqueapoiavamateoriae
versõesposterioresdela.Agenética,porexemplo,ofereceuumaexplicaçãodetalhadadecomoa
herançafunciona.Hojesabemossobregenesecromossomosesobreosprocessosquímicos
envolvidosnapassagemdequalidadesparticulares.Asevidênciasfósseistambémsãohoje
muitomaisconvincentesdoquenaépocadeDarwin.Portodasessasrazões,ateoriada
evoluçãopelaseleçãonaturalémuitomaisdoque“apenasumahipótese”:elaéumahipótese
quetemumpesosubstancialdeevidênciasquelhedeemsuporte.
Odarwinismopodetermaisoumenosdestruídootradicionalargumentododesígnioe
abaladoaféreligiosademuitaspessoas.Noentanto,opróprioDarwinpareciaterumamente
abertaemrelaçãoàexistênciaounãodeDeus.Emumacartaescritaparaumamigocientista,ele
declarouqueaindanãoestamospreparadosparaterumaconclusãosobreoassunto:“Aquestão
todaéprofundademaisparaonossointelecto”,explicouele,acrescentando:“Seriacomoum
cachorroespeculandosobreamentedeNewton”.
Umpensadorqueestavapreparadoparaespecularsobreaféreligiosae,aocontráriode
Darwin,tornou-acentralparasuaobra,foiSørenKierkegaard.
CAPÍTULO26
Ossacrifíciosdavida
SØRENKIERKEGAARD
AbraãorecebeumamensagemdeDeus,umamensagemterrivelmenteestranha:eledeve
sacrificarseuúnicofilho,Isaac.Abraãopassaporumtormentoemocional.Eleamaofilho,mas
tambéméumhomemdevotoesabequetemdeobedeceraDeus.NessahistóriadoGênesisno
AntigoTestamento,Abraãolevaofilhoparaotopodeumamontanha,omonteMoriá,amarra-oa
umaltardepedraeestáprestesamatá-locomumafaca,segundoasinstruçõesdeDeus.No
últimosegundo,noentanto,Deusmandaumanjoparaimpedi-lodecometeroassassinato.Em
vezdisso,Abraãosacrificaumcarneiroapanhadonocampoaliperto.Deusrecompensaa
lealdadedeAbraãopermitindoqueofilhoviva.
Essahistóriatemumamensagem.Comumentesepensaqueamoralé“Tenhafé,façaoque
Deuspedeetudovaimelhorar”.OpropósitoénãoéduvidardapalavradeDeus.Porém,parao
filósofodinamarquêsSørenKierkegaard(1813-1855),nãoeratãosimplesassim.Emseulivro
Temoretremor(1842),eletentouimaginaroqueteriasepassadonamentedeAbraão,as
questões,omedoeaangústia,enquantofezajornadadetrêsdiasdecasaatéamontanha,onde
pensouqueteriadematarIsaac.
KierkegaarderabastanteexcêntricoenãoseencaixavafacilmenteemCopenhagen,onde
vivia.Duranteodia,essehomemmagroebaixinhocostumavaservistosempreandandopela
cidadeconversandocomoutraspessoasegostavadesedefinircomooSócratesdinamarquês.
Eleescreviaànoite–diantedaescrivaninha,rodeadodevelas.Umadesuaspeculiaridadesera
aparecernointervalodeumapeçaparaquetodospensassemqueeleestavasedivertindo,
quandonaverdadeelenãohaviaassistidoanada,massimestavaemcasa,ocupadocomalgum
escrito.Eletrabalhavabastantecomoescritor,mastevedetomarumadecisãoextremamente
angustiante.
Kierkegaardapaixonou-seporumajovemchamadaRegineOlsen,eapediuemcasamento.
Elaaceitou.Maseleestavapreocupadocomofatodesermelancólicodemaisereligiosodemais
parasecasar.Talvezeleatéfizessejusaosobrenomedafamília,“Kierkegaard”,quesignifica
cemitérioemdinamarquês.EleescreveuparaReginedizendoquenãopoderiasecasarcomelae
devolveuaaliançadenoivado.Elesesentiupéssimocomadecisãoepassouváriasnoitesna
camachorandodepoisdisso.Ela,oqueécompreensível,ficoudevastadaeimplorouaelepara
voltar.Kierkegaardrecusou.Nãoécoincidênciaque,depoisdisso,amaiorpartedesuaobra
sejasobreescolhercomoviveresobreadificuldadedesaberseadecisãotomadafoiadecisão
correta.
Atomadadedecisõesestáincorporadanotítulodeumadesuasprincipaisobras:Ou/ou.
Esselivrodáaoleitorumaescolhaentreumavidadeprazereseperseguiçãodabelezaouuma
vidabaseadaemregrasmoraisconvencionais,umaescolhaentreoestéticoeoético.Não
obstante,umassuntomuitorecorrenteemsuaobraeraaféemDeus.AhistóriadeAbraãotem
tudoavercomisso.ParaKierkegaard,nãoéumadecisãosimplesacreditaremDeus,massim
umadecisãoquerequerumaespéciedesaltonoescuro,umadecisãotomadanaféequepodeaté
ircontraasideiasconvencionaisdoquedeveríamosfazer.
SeAbraãoseguisseadianteematasseoprópriofilho,teriafeitoalgomoralmenteerrado.
Umpaitemodeverbásicodecuidardofilhoecertamentenãodeveriaamarrá-loaumaltare
cortarsuagargantaemumritualreligioso.DeuspediuqueAbraãoignorasseamoraledesseum
saltodefé.NaBíblia,Abraãoéapresentadocomoumsujeitoadmirávelporterignoradoo
sentidonormaldoqueécertoeerradoetersepreparadoparasacrificarIsaac.Masnãoteriaele
cometidoumerroterrível?Eseamensagem,naverdade,nãofossedeDeus?Talvezfosseuma
alucinação;talvezAbraãoestivesseloucoeouvissevozes.Comoteriacertezadisso?Seele
soubessedeantemãoqueDeusnãomanteriasuaordematéofim,teriasidofácilparaAbraão.
Porém,quandoergueuafacadispostoaderramarosanguedofilho,elerealmenteacreditavaque
iriamatá-lo.DeacordocomadescriçãodacenapelaBíblia,essaéaquestão.AfédeAbraãoé
tãoimpressionanteporqueeleconfiaemDeus,enãonasconsideraçõeséticasconvencionais.Do
contrário,nãoteriasidofé.Aféenvolveriscos,mastambéméirracional,istoé,nãosebaseiana
razão.
Kierkegaardacreditavaque,àsvezes,deveressociaiscomuns,comoodequeumpaideve
sempreprotegerofilho,nãosãoosvaloresmaiselevadosqueexistem.Odeverdeobedecera
Deussuperaodeverdeserumbompai,superanaverdadequalquerdever.Deumaperspectiva
humana,Abraãopoderiaparecerdesumanoeimoralsequerporterconsideradosacrificaro
filho.MasécomoseocomandodeDeusfosseumtrunfoquedecideojogo,independentemente
dequalsejaocomandodeDeus.Nãohánenhumacartamaisaltanobaralhoe,portanto,aética
humanadeixadeserrelevante.Contudo,apessoaqueabandonaaéticaemnomedafétomauma
decisãoangustiante,arriscandotudosemsaberquaisseriamosbenefíciospossíveisdessaação
ouoqueaconteceria,semsaberaocertoseamensagemerarealmentedeDeus.Quemescolhe
essecaminhoestátotalmentesozinho.
Kierkegaarderacristão,emboraodiasseaIgrejadinamarquesaenãopudesseaceitara
formacomosecomportavamoscristãoscomplacentescomquemconvivia.Paraele,areligião
eraumaopçãodolorosa,enãoumadesculpacômodaparacantarnaigreja.Naopiniãodele,a
Igrejadinamarquesadistorceraocristianismoenãoeraverdadeiramentecristã.Nãoéde
surpreenderqueelenãotenhasidobem-vistoporcontadisso.AssimcomoSócrates,ele
conseguiuirritarosânimosdequemnãogostavadassuascríticasefaziaobservações.
Atéagora,faleiseguramentenestecapítulosobreoqueKierkegaardacreditava,mas
interpretaroqueelerealmentequeriadizernãoétarefafácil.Eessadificuldadenãoéàtoa.Ele
éumescritorquenosincitaapensarporcontaprópria.Eleraramenteescreviausandoopróprio
nome,massimpseudônimos.Porexemplo,eleescreveuTemoretremorusandoonomeJohannes
deSilentio–JoãodoSilêncio.Nãoeraapenasumdisfarceparaevitarqueaspessoas
descobrissemqueKierkegaardhaviaescritooslivros–muitaspessoasadivinhavamquemerao
autorimediatamente,oqueprovavelmenteeraoqueelequeria.Osautoresinventadosdeseus
livros,naverdade,sãopersonagenscomsuaprópriamaneiradeveromundo.Tratava-sedeuma
dastécnicasdeKierkegaardparanosfazerentenderasposiçõesqueelediscutiaenosprenderà
leitura.Nósvemosomundopelosolhosdopersonagemeacabamoscriandonossaprópria
opiniãosobreovalordosdiferentesmodosdeabordaravida.
LerKierkegaardéquasecomolerumromance,eelecostumautilizar-sedanarrativa
ficcionalparadesenvolveralgumasideias.EmOu/ou(1843),oeditorimagináriodolivro,
VictorEremita,descreveadescobertadeummanuscritonagavetasecretadeumaescrivaninha
desegundamão.Omanuscritoéotextoprincipaldolivro,esupostamentefoiescritoporduas
pessoasdiferentes–asquaiseledescrevecomoAeB.Aprimeirapessoaéumhedonistacujo
principalobjetivodevidaéevitarotédiopelabuscadenovasemoções.Elecontaahistóriada
seduçãodeumajovemmulhernaformadeumdiárioquepareceumcontoe,decertomodo,
refletearelaçãodeKierkegaardcomRegine.Ohedonista,aocontráriodeKierkegaard,sóestá
interessadonosprópriossentimentos.AsegundapartedeOu/ouéescritacomosefosseumjuiz
defendendoomododevidasegundoamoral.Oestilodaprimeiraparterefleteosinteressesde
A:consisteempequenostrechossobrearte,óperaesedução.Écomoseoautornãoconseguisse
seconcentrarpormuitotempoemumúnicoassunto.Asegundaparteéescritaemumestilomais
comedidoeprolixo,refletindoaperspectivadevidadojuiz.
Porsinal,sevocêestivercompenadapobreerejeitadaRejineOlsen,depoisdadifícil
relaçãodetérminosevoltascomKierkegaard,saibaqueelasecasoucomumfuncionário
públicoeparecetertidoumavidabastantefelizpelorestodavida.Kierkegaard,noentanto,
nuncasecasou,nemsequerteveumanamoradadepoisdotérminodefinitivo.Elarealmentefoio
verdadeiroamordele,earelaçãofracassadafoiafontedequasetudooqueeleescreveuemsua
vidacurtaeatormentada.
Comováriosfilósofos,Kierkegaardnãofoimuitobenquistodurantesuabrevevida–ele
morreucomapenas42anos.Entretanto,noséculoXX,seuslivrosficaramfamososentre
existencialistascomoJean-PaulSartre(verCapítulo33),quegostavadesuasideiassobrea
angústiadeescolheroquefazernafaltadediretrizespreexistentes.
ParaKierkegaard,opontodevistasubjetivo,aexperiênciadoindivíduoemfazer
escolhas,eraimportantíssimo.KarlMarxtinhaumavisãomaisampla.AssimcomoHegel,ele
tinhaumagrandevisãodecomoahistóriasedesdobravaedasforçasqueadirecionavam.
Porém,diferentementedeKierkegaard,nãotinhanenhumaesperançadesalvaçãopelareligião.
CAPÍTULO27
Trabalhadoresdomundo,uni-vos!
KARLMARX
NoséculoXIX,haviamilharesdefiaçõesnonortedaInglaterra.Asaltaschaminéssoltavam
fumaçanegra,poluindoasruasecobrindotudodefuligem.Nasfiações,homens,mulherese
criançastrabalhavamdurantelongashoras–geralmentecatorzepordia–paramanteras
máquinasemfuncionamento.Nãohaviamuitosescravos,masossalárioserammuitobaixos,eas
condiçõeseramprecáriasemuitasvezesperigosas.Seostrabalhadoressedesconcentrassem,
podiamficarpresosnasmáquinas,perdermembrosouatésermortos.Otratamentomédico
nessascircunstânciaserabásico.Contudo,elesquasenãotinhamescolha:senãotrabalhassem,
passariamfome.Sefossemembora,talveznãoencontrassemoutrotrabalho.Aspessoasque
trabalhavamnessascondiçõesnãoviviammuitotempo,equasenuncatinhammomentosque
pudessemchamardeseus.
Enquantoisso,osproprietáriosdasfiaçõesenriqueciam.Suaprincipalpreocupaçãoera
obterlucro.Elesdetinhamocapital(dinheiroquepodiaserusadoparafazermaisdinheiro);
eramdonosdoprédioedasmáquinase,decertaforma,eramdonosdostrabalhadores,quepor
suaveznãotinhamquasenada.Tudooquepodiamfazereravendersuacapacidadedetrabalhoe
ajudarosdonosdafiaçãoaenriquecer.Pormeiodotrabalho,elestornavammaisvaliosaa
matéria-primacompradapelospatrões.Quandooalgodãochegavaàfábrica,valiamuitomenos
doquequandosaíadelá,masquasetodoovaloragregadoiaparaosproprietáriosquando
vendiamoproduto.Quantoaostrabalhadores,recebiamdospatrõesumsalárioomaisbaixo
possível–apenasosuficienteparasobreviverem–enãotinhamsegurançanotrabalho.Sea
demandapeloquefaziamcaísse,elesseriamdemitidosemorreriamdefomesenão
conseguissemoutrotrabalho.QuandoofilósofoalemãoKarlMarx(1818-1883)começoua
escrever,nadécadade1830,essaseramascondiçõesqueaRevoluçãoIndustrialhavia
produzidonãosónaInglaterra,masemtodaaEuropa.Eissoodeixavafurioso.
Marxeraigualitário:pensavaqueosdireitoshumanosdeviamsertratadosigualmente.
Todavia,nomundocapitalista,quemtinhadinheiro–geralmenteoriundodeumariquezaherdada
–ficavacadavezmaisrico.Enquantoisso,aquelesquenãotinhamnada–excetoopróprio
trabalhoparavender–viviamdemaneiramiseráveleeramexplorados.ParaMarx,todaa
históriahumanapodiaserexplicadacomoumalutadeclasses:alutaentreaclassecapitalista
rica(aburguesia)eaclassetrabalhadora(ouproletariado).Essarelaçãoimpediaqueosseres
humanosatingissemseupotencialetransformavaotrabalhoemalgodoloroso,emvezdeumtipo
deatividadecompensadora.
Marx,homemcheiodeenergiaecomareputaçãodeumsujeitoencrenqueiro,passou
grandepartedavidanapobrezaemudou-sedaAlemanhaparaParis,depoisparaBruxelas,
fugindodaperseguição.AcaboufixandoresidênciaemLondres,ondemoroucomossetefilhos,a
esposaJennyeumagovernantachamadaHeleneDemuth,comquemteveumfilhobastardo.Seu
amigoFriedrichEngelsajudou-oaencontrartrabalhoescrevendoparajornaiseatéadotouo
filhoilegítimodeMarxparalivrarsuapele.Masafamíliaquasenuncatinhadinheiro,alémde
adoecerepassarfomeefriocomfrequência.Tragicamente,trêsdascriançasmorreramantesda
idadeadulta.
Quandomaisvelho,MarxiaquasetodososdiasàsaladeleituradoMuseuBritânicoem
Londresparaestudareescrever,ouentãoficavaemseupequenoapartamentonoSohoditando
paraaesposa,poissuacaligrafiaeratãoruimqueàsvezesnemeleconseguialer.Nessas
condiçõesdifíceis,eleproduziuumgrandenúmerodelivroseartigos–todossomammaisde
cinquentagrossosvolumes.Suasideiasmudaramavidademilhõesdepessoas:algumaspara
melhoremuitas,semdúvida,parapior.Naépoca,noentanto,eledeviaparecerumafigura
excêntrica,talvezatémeiolouco.Poucaspessoasconseguiriampreveroquantoeleseria
influente.
Marxidentificava-secomostrabalhadores.Todaaestruturadasociedadeosoprimia;não
podiamviverplenamentecomosereshumanos.Osdonosdasfábricaslogoperceberamque
podiamproduzirmaisbenssedividissemoprocessodeproduçãoempequenastarefas.Cada
trabalhador,portanto,seespecializariaemumtrabalhoespecíficonalinhadeprodução.
Contudo,issotornouavidadostrabalhadoresaindamaisentediante,poiseramforçadosa
realizaraçõesrepetitivasotempotodo.Nãoviamtodooprocessodeproduçãoemalganhavam
osuficienteparasealimentar.Emvezdeseremcriativos,elesficavamexauridose
transformavam-seemengrenagensdeumapeçagigantescadomaquinárioquesóexistiapara
fazerosproprietáriosenriqueceremaindamais.Écomoseelesdefatonãofossemhumanos,mas
apenasestômagosqueprecisavamseralimentadosparamanteralinhadeproduçãoem
andamentoeoscapitalistasganhandomaislucro–oqueMarxchamoudemais-valiacriadapelo
trabalhodosoperários.
OefeitodissotudosobreostrabalhadoresfoioqueMarxchamoudealienação.Ele
queriadizerváriascoisascomessapalavra.Ostrabalhadoreseramalienadosoudistanciadosdo
queverdadeiramenteeramcomosereshumanos.Ascoisasqueelesfabricavamtambémos
alienavam.Quantomaisduroelestrabalhavamequantomaisproduziam,maislucrogeravam
paraoscapitalistas.Osobjetosemsipareciamvingar-sedostrabalhadores.
Mashaviaesperançaparaessaspessoas,aindaquesuasvidasfossemmiseráveise
completamentedelimitadaspelascircunstânciaseconômicas.Marxacreditavaqueodestinodo
capitalismoeradestruirasimesmo.Oproletariadoestavadestinadoaassumirocontroledeuma
revoluçãoviolenta.Porfim,detodoessesanguederramadosurgiriaummundomelhor,um
mundoemqueaspessoasnãomaisseriamexploradas,maspoderiamsercriativasecooperar
umascomasoutras.Cadapessoacontribuiriacomoquepudesseparaasociedade,ea
sociedade,porsuavez,cuidariadaspessoas:“Detodos,segundosuacapacidade;paratodos,
segundosuanecessidade”,eraavisãodeMarx.Aoassumirocontroledasfábricas,os
trabalhadoresgarantiriamquehouvesseosuficienteparaquetodostivessemoqueprecisavam.
Ninguémprecisavapassarfomeounãoteroquevestirouondeseabrigar.Essefuturoerao
comunismo,ummundobaseadonapartilhadosbenefíciosdacooperação.
Marxacreditavaqueseuestudodomodocomosedesenvolveasociedaderevelavaque
essefuturoéinevitável:estavainseridonaestruturadahistória.Maselepodiateralgumaajuda
paraprogredir,enoManifestocomunistade1848,oqualeleescreveucomEngels,Marx
conclamouostrabalhadoresdomundoaseuniremesuperaremocapitalismo.Refletindoas
primeiraslinhasdeJean-JacquesRousseauemOcontratosocial(verCapítulo18),eles
declararamqueostrabalhadoresnãotinhamnadaaperder,excetosuascorrentes.
AsideiasdeMarxsobreahistóriaforaminfluenciadasporHegel(assuntodoCapítulo
22).Hegel,comovimos,declarouqueháumaestruturasubjacenteatodasascoisaseque
estamosgradualmenteprogredindoparaummundoque,dealgumamaneira,seráconscientedesi
mesmo.MarxherdoudeHegelosentidodequeoprogressoéinevitáveledequeahistória,em
vezdeserapenasumeventoatrásdooutro,temumpadrão.Entretanto,navisãodeMarx,o
progressoaconteceporcausadasforçaseconômicassubjacentes.
Emsubstituiçãoàlutadeclasses,MarxeEngelsprenunciaramondenãohaveria
propriedadedeterras,nãohaveriaherança,aeducaçãoseriagratuitaeasfábricaspúblicas
produziriamparatodos.Tambémnãohaveriaanecessidadedereligiãooumoral.Areligião,
conformedeclarouemumapassagemconhecida,era“oópiodopovo”:eracomoumadrogaque
mantinhaaspessoasadormecidasparaquenãopercebessemsuaverdadeiracondiçãooprimida.
Nonovomundodepoisdarevolução,ossereshumanosatingiriamsuahumanidade.Otrabalho
seriasignificativo,etodoscooperariamdemodoabeneficiaratodos.Arevoluçãoeraaforma
deatingirisso–eissosignificavaviolência,poisseriaimprovávelqueosricosabrissemmãode
suasriquezassemlutar.
Marxsentiaqueosfilósofosdopassadosótinhamdescritoomundo,enquantoelequeria
mudá-lo.Issofoiumpoucoinjustocomosfilósofosanterioresaele,muitosdosquais
provocaramreformaspolíticasereligiosas,porémsuasideiastiverammaisefeitoqueasideias
damaioria.ElasforamcontagianteseinspiraramrevoluçõesreaisnaRússiaem1917eem
outroslugares.Infelizmente,aUniãoSoviética–ogigantescoEstadoquesurgiu,abarcandoa
Rússiaealgunspaísesvizinhos–juntocomamaioriadosoutrospaísescomunistascriadosno
séculoXXnaslinhasmarxistasprovaram-seopressores,ineficientesecorruptos.Organizaros
processosdeproduçãoemescalanacionaleramuitomaisdifícildoquesepoderiaimaginar.Os
marxistasafirmamqueissonãodestróiasideiasmarxistasemsi–algunsaindaacreditamque
Marxestavabasicamentecertoemrelaçãoàsociedade;naverdade,aquelesquegovernaramos
Estadoscomunistasnãoofizeramtendocomobaselinhasverdadeiramentecomunistas.Outros
apontamqueanaturezahumananostornamaiscompetitivosegananciososdoqueonormal:na
visãodeles,nãohápossibilidadedeossereshumanoscooperaremtotalmenteemumEstado
comunista–simplesmentenãosomosassim.
QuandoMarxmorreudetuberculoseem1883,poucaspessoasconseguiriamprevero
impactoqueeleterianahistória.Pareciaquesuasideiashaviamsidoenterradascomeleno
cemitérioHighgate,emLondres.AdeclaraçãodeEngelsnotúmulodoamigo,deque“Seunome
perdurarápelosséculos,bemcomosuaobra!”,pareciaserpurodevaneio.
OprincipalinteressedeMarxestavanasrelaçõeseconômicas,postoque,emsuavisão,
elasdãoformaatudoaquiloquesomosepodemosviraser.WilliamJames,filósofopragmático,
queriadizeralgobemdiferentequandoescreveusobreo“valorprático”deumaideia–paraele,
essevalordiziarespeitoapenasaqueaçãoaideialevava,aqualdiferençaelafazianomundo.
CAPÍTULO28
Edaí?
C.S.PEIRCEEWILLIAMJAMES
Umesquiloagarra-sefirmementeaotroncodeumagrandeárvore.Dooutroladodaárvore,bem
pertodotronco,estáumcaçador.Todavezqueocaçadorsemoveparaaesquerda,oesquilo
tambémsemove,apressando-separarodearotronco,presocomasgarras.Ocaçadorcontinua
tentandoencontraroesquilo,masesteconseguesemanterforadocampodevisão.Issocontinua
durantehoras,eocaçadorsequervêoesquiloderelance.Seriaverdadeirodizerqueocaçador
estácircundandooesquilo?Pensenisso.Ocaçadorrealmentecircundasuapresa?
Suarespostaprovavelmenteseráoutrapergunta:“Oquevocêquersaber?”.Ofilósofoe
psicólogonorte-americanoWilliamJames(1842-1910)seaproximoudeumgrupodeamigos
perguntandosobreesseexemplo.Osamigosdelenãoconcordaramcomumaúnicaresposta,mas
discutiramaquestãocomosehouvesseumaverdadeabsolutaqueelesprecisavamdescobrir.
Algunsdisseramquesim,ocaçadorestavacircundandooesquilo;outrosdisseramquenão,com
certezanão.ElespensaramqueJamesseriacapazdeajudá-losaresponderaperguntadeum
jeitooudeoutro.Suarespostafoibaseadanafilosofiapragmática.
Eledisseoseguinte:seoquequeremosdizercomcircundaréqueohomemestáprimeiro
anorte,depoisaleste,depoisasuledepoisaoestedoesquilo,queéumdossentidosde
“circundar”,éverdadequeocaçadorestácircundandooesquilo.Elerodeiaoesquilonesse
sentido.Masseoquequeremosdizeréqueohomemprimeiroestánafrentedoesquilo,depoisà
direitadele,depoisatrásedepoisnascostas,queéoutrosignificadode“circundar”,entãoa
respostaénão.Comooesquilosempreestarádefrenteparaocaçador,ocaçadornãoocircunda
nessesentido.Elesestãootempotodoumdefrenteparaooutro,comumaárvorenomeio,
enquantodançamemcírculo,umforadavisãodooutro.
Oobjetivodesseexemploémostrarqueopragmatismopreocupa-secomasconsequências
práticas–o“valorprático”dopensamento.Senãohánadaquedependadaresposta,nãoimporta
oquedecidirmos.Tudodependedeporquequeremossaberarespostaequaladiferençaqueela
defatovaifazer.Aqui,nãoháverdadealémdonossointeresseparticularemrelaçãoàquestãoe
aossentidosprecisosemqueusamosoverbo“circundar”emdiferentescontextos.Senãohá
diferençaprática,entãonãohánenhumaverdadedaquestão.Nãoécomoseaverdadeestivesse
“láfora”emalgumlugar,esperandoserdescoberta.Verdade,paraJames,erasimplesmenteo
quefunciona,oquetemumimpactobenéficoemnossavida.
OpragmatismoéumaabordagemfilosóficaquesetornoupopularnosEstadosUnidosno
finaldoséculoXIX.ElacomeçoucomofilósofoecientistaC.S.Peirce(pronunciadocomono
inglêsde“purse”),quequeriatornarafilosofiamaiscientíficadoqueera.Peirce(1839-1914)
acreditavaque,paraumasentençaserverdadeira,temdehaveralgumexperimentoou
observaçãopossívelqueaapoie.Quandodizemos“ovidroéfrágil”,issoquerdizerque,se
batermosnovidrocomummartelo,elesequebraráempequenosfragmentos.Issoéoquetorna
verdadeiraadeclaração“ovidroéfrágil”.Ovidronãotemnenhumapropriedadeinvisívelde
“fragilidade”,excetooqueacontecequandooatingimos.“Ovidroéfrágil”éumadeclaração
verdadeiraporcausadessasconsequênciaspráticas.“Ovidroétransparente”éverdadeiro
porquepodemosveratravésdele,nãoporcausadealgumapropriedademisteriosanovidro.
Peircedetestavateoriasabstratasquenãofaziamamenordiferençanaprática.Eleconsiderava
quetodaseramcontrassensos.Verdade,paraele,éoquerestadepoisquefizermostodosos
experimentoseinvestigaçõesquegostaríamosdefazer.Issoseparecebastantecomo
positivismológicodeA.J.Ayer,assuntodoCapítulo32.
AobradePeircenãofoiamplamentelida,masadeWilliamJamesfoi.Eleeraum
excelenteescritor–tãobomquantooutalvezmelhorqueseuirmão,ofamosoromancistae
contistaHenryJames.WilliampassavalongashorasdiscutindopragmáticacomPeircequandoos
doislecionavamnaUniversidadedeHarvard.Jamesdesenvolveusuaprópriaversãodateoria,
quepopularizouemensaioseconferências.Paraele,opragmatismoresume-seaisto:averdade
éoquefunciona.Noentanto,eleeraumpoucovagosobreoquesignificava“oquefunciona”.
Emborafossepsicólogodesdecedo,elenãoseinteressavaapenasporciência,mastambémpor
questõessobreoqueécertoeerradoesobrereligião.Naverdade,suaobramaiscontroversafoi
sobrereligião.
AabordagemdeJamesémuitodiferentedavisãotradicionaldeverdade.Nesta,averdade
significacorrespondênciaaosfatos.Oquetornaumafraseverdadeiranateoriada
correspondênciadaverdadeéofatodeeladescrevercomprecisãocomoomundoé.“Ogato
estánotapete”éverdadeiraquandoogatodefatoestásentadonotapeteefalsaquandoelenão
estálá;porexemplo,éfalsaquandoogatoestáláforanojardimprocurandoratos.Segundoa
teoriapragmáticadeJames,oquetornaafrase“ogatoestánotapete”verdadeiraéacreditarque
elaproduzresultadospráticosúteisparanós.Elafuncionaparanós.Então,porexemplo,
acreditarque“ogatoestánotapete”nosdáoresultadodequesabemosquenãopodemosbrincar
comnossohamsterdeestimaçãonotapeteatéqueogatosaiadelá.
Ora,quandousamosumexemplocomo“Ogatoestánotapete”,osresultadosdateoria
pragmáticadaverdadenãoparecemparticularmenteperturbadoresouimportantes.Mastente
fazerissocomafrase“Deusexiste”.OquepensaqueJamesdiriasobreisso?
ÉverdadequeDeusexiste?Oquevocêacha?Asprincipaisrespostassão“Sim,éverdade
queDeusexiste”,“Não,nãoéverdadequeDeusexiste”e“Eunãosei”.Presumivelmente,você
deuumadessastrêsrespostascasotenhatidoachancederesponderantesdecontinuaraleitura.
Essasposiçõestêmnomes:teísmo,ateísmoeagnosticismo.Osquedizem“Sim,éverdadeque
Deusexiste”geralmentequeremdizerqueháumsersupremoemalgumlugarequeadeclaração
“Deusexiste”seriaverdadeiramesmoquenãohouvessenenhumserhumanovivoemesmoque
nenhumserhumanotivesseexistido.“Deusexiste”e“Deusnãoexiste”sãodeclarações
verdadeirasefalsas.Masnãoéoquepensamosdelasqueastornamverdadeirasoufalsas,pois
issoindependedoquepensamossobreelas.Nósapenasesperamosestaracertandoquando
pensamossobreelas.
Jamesfezumaanálisebemdiferentedafrase“Deusexiste”.Elepensavaqueadeclaração
eraverdadeiraporque,segundoele,eraumacrençaútil.Aochegaraessaconclusão,elese
concentrounosbenefíciosdacrençadequeDeusexiste.Essaquestãoeraimportanteparaele,e
eleescreveuumlivro,Asvariedadesdaexperiênciareligiosa(1902),queexaminavauma
grandevariedadedeefeitosqueacrençareligiosapodeter.ParaJames,dizerque“Deusexiste”
éumadeclaraçãoverdadeiraéomesmoquedizerque,dealgummodo,ébomacreditarnela.
Trata-sedeumaposiçãobastantesurpreendente.Elasepareceempartecomoargumentode
PascalqueexaminamosnoCapítulo12:queosagnósticossebeneficiariamdacrençadeque
Deusexiste.Pascal,noentanto,pensavaque“Deusexiste”eraverdadeiraporcausada
existênciarealdeDeus,enãoporqueosseressesentemmelhorquandoacreditamemDeus.Sua
apostaeraapenasumaformadefazercomqueosagnósticosacreditassemnoquepensavaser
verdade.ParaJames,éosupostofatodequeacrençaemDeus“funcionasatisfatoriamente”que
tornaadeclaração“Deusexiste”verdadeira.
Paraesclareceressaquestão,tomemosafrase“PapaiNoelexiste”.Elaéverdadeira?Um
homemgordo,bem-humoradoederostocoradodescepelachaminétodavésperadeNatalcom
umsacodepresentes?Nãoleiaorestantedoparágrafosevocêacreditaqueissorealmente
acontece.Suponho,contudo,quevocênãoacreditequePapaiNoelexista,aindaquepenseque
seriainteressanteseexistisse.OfilósofoinglêsBertrandRussell(verCapítulo31)ridicularizou
ateoriapragmáticadaverdadedeWilliamJamesdizendoque,segundoateoria,Jamestinhade
acreditarque“PapaiNoelexiste”eraumafraseverdadeira.Suarazãoparadizerissoeraque
Jamesacreditavaquetudooquetornaumafraseverdadeiraéoefeitoqueacrençanaverdade
dessafraseexercesobrequemnelaacredita.E,aomenosparaamaioriadascrianças,acreditar
emPapaiNoeléfantástico.EssacrençatornaoNatalumdiamuitoespecialparaelas:fazcom
quesecomportembemetenhamfoconosdiasqueantecedemoNatal.Funcionaparaelas.
Portanto,comoacreditarnoPapaiNoelfuncionadealgumamaneira,parecequeacrençatorna
verdadeiraafrase“PapaiNoelexiste”,segundoateoriadeJames.Oproblemaéqueexisteuma
diferençaentreoqueserialegalsefosseverdadeiroeoquedefatoéverdadeiro.Jamespoderia
terdestacadoque,emboraacreditaremPapaiNoelfuncioneparaascrianças,nãofuncionapara
todomundo.SeospaisacreditassemqueoPapaiNoelentregariapresentesnavésperadeNatal,
elesnãocomprariampresentesparaosfilhos.BastariaesperaratéamanhãdeNatalpara
perceberquealgonãoestavafuncionandocomacrença“PapaiNoelexiste”.Issosignificaque,
paraascrianças,éverdadequePapaiNoelexiste,masémentiraparaosadultos?Eissonão
tornaaverdadesubjetiva,umaquestãodecomonossentimosemrelaçãoàscoisas,emvezde
comoomundoé?
Pensemosemoutroexemplo.Comoseiqueasoutraspessoasrealmentetêmmentes?Sei
pelaminhaexperiênciaquenãosousimplesmenteumaespéciedezumbisemvidainterior.Tenho
meuspensamentos,minhasintençõesetc.Mascomopossosaberseaspessoasaomeuredor
realmentetêmpensamentos?Talvezelasnãosejamconscientes.Seriamelasapenaszumbis
agindodemodoautomático,zumbissemmenteprópria?Esteéoproblemadasoutrasmentes
sobreoqualosfilósofossedebruçaramdurantemuitotempo.Trata-sedeumenigmadifícilde
resolver.ArespostadeJameséquetemdeserverdadequeasoutraspessoastêmmentes;do
contrário,nãoseríamoscapazesdesatisfazernossodesejodesermosreconhecidoseadmirados
pelasoutraspessoas.Trata-sedeumargumentoestranho,quefazoseupragmatismoparecercom
umpurodevaneio–acreditarnoquegostaríamosquefosseverdadeiro,independentementede
serounãoverdadeiro.Massóporqueébomacreditarque,quandoumapessoanoselogia,
estamosdiantedeumserconsciente,enãodeumrobô,nãotornaapessoaumserconsciente.Ela
aindapodenãotervidainterior.
NoséculoXX,ofilósofonorte-americanoRichardRorty(1931-2007)levouadianteesse
estilodepensamentopragmático.AssimcomoJames,eleacreditavaqueaspalavraseram
ferramentascomasquaisfazemosascoisas,enãosímbolosquedealgumaformarefletemo
modocomoomundoé.Aspalavrasnospermitemlidarcomomundo,enãocopiá-lo.Eledisse
que“Averdadeéoqueseuscontemporâneosengolem”,ouquenenhumperíododahistória
entendearealidademelhordoquequalqueroutro.Quandoaspessoasdescrevemomundo,
acreditavaele,elassãocomocríticosliteráriosinterpretandoumapeçadeShakespeare:nãohá
umaúnicamaneira“correta”delê-laecomaqualtodosdevemosconcordar.Diferentespessoas
dediferentesépocasinterpretamotextodemaneiradiferente.Rortysimplesmenterejeitavaa
ideiadequeumavisãofossecorretaparatodasasépocas.Ou,pelomenos,queminha
interpretaçãofuncione.Elepresumivelmenteacreditavaquenãohaviainterpretaçãocorreta
disso,nomesmosentidoquenãoháresposta“certa”paraaquestãodocaçadorquecircundaou
nãooesquiloquesemoveagarradonaárvore.
SeháounãoháumainterpretaçãocorretadosescritosdeFriedrichNietzschetambémé
umaquestãointeressante.
CAPÍTULO29
AmortedeDeus
FRIEDRICHNIETZSCHE
“Deusestámorto.”EssaéacitaçãomaisfamosadofilósofoalemãoFriedrichNietzsche(1844-
1900).MascomoDeuspoderiamorrer?Supostamente,Deuséimortal.Eseresimortaisnão
morrem,masvivemparasempre.Decertaforma,porém,aquestãoéessa.Éporissoqueamorte
deDeussoatãoestranha:nãohácomoserdiferente.Nietzscheestavadeliberadamentebrincando
comaideiadequeDeusnãopoderiamorrer.ElenãoestavadizendoliteralmentequeDeus
estiveravivoemalgummomentoequeagoranãoestavamais,esimqueacrençaemDeushavia
deixadodeserrazoável.EmseulivroAgaiaciência(1882),Nietzschecolocouafrase“Deus
estámorto”nabocadeumpersonagemqueseguraumlampiãoeprocuraporDeusemtodosos
lugares,masnãoconsegueencontrá-lo.Oshabitantesdovilarejopensamqueeleélouco.
Nietzschefoiumhomemmemorável.NomeadoprofessordaUniversidadedeBaselaos24
anos,elepareciadecididoaseguirumadistintacarreiraacadêmica.Contudo,essepensador
excêntricoeautênticonãoseadaptouepareciagostardedificultaraprópriavida.Eleacabou
deixandoauniversidadeem1879,empartedevidoàsuasaúdedebilitada,eviajouparaaItália,
aFrançaeaSuíça,escrevendolivrosquequaseninguémlianaépoca,masquehojesãofamosos
comoobrastantoliteráriasquantofilosóficas.Suasaúdementalpiorou,eelepassougrandeparte
dofimdavidaemummanicômio.
EmoposiçãocompletaàapresentaçãoordenadadasideiasdeKant,Nietzschearrebata-
nosportodososcantos.Grandepartedeseusescritosénaformadeparágrafoscurtose
fragmentários,comcomentáriosincisivosdeumaúnicafrase,algunsirônicos,outrossinceros,
muitosdelesarroganteseprovocadores.Àsvezes,parecequeNietzscheestágritandoconosco;
outrasvezes,quesussurraalgoprofundoemnossosouvidos.Muitasvezes,elequerquesejamos
coniventescomele,comosedissessequenós,queolemos,sabemoscomoascoisassão,mas
aquelaspessoasládooutroladoestãotodassofrendodeilusões.Umdostemasrecorrentesna
obradeleéofuturodamoral.
SeDeusestámorto,oqueacontecedepois?EstaéaquestãoqueNietzschefazasimesmo.
Suarespostaéadequeficamossemumabaseparaamoral.Nossasideiasdecerto,errado,bem
emalfazemsentidoemummundoondeháumDeus,enãoemummundosemDeus.Quando
tiramosDeusdajogada,tiramoscomeleapossibilidadedediretrizesclarassobrecomo
devemosviveresobreoquedevemosvalorizar.Éumamensagemdura,algoqueamaioriados
contemporâneosdeNietzschenãoqueriaouvir.Eledescreviaasimesmocomo“imoralista”,não
alguémquefazomaldeliberadamente,masalguémqueacreditaqueprecisamosiralémdetodaa
moral:naspalavrasdotítulodeumdeseuslivros,“paraalémdobemedomal”.
ParaNietzsche,amortedeDeusabriunovaspossibilidadesparaahumanidade,tanto
terrificantesquantoestimulantes.Adesvantageméquenãohaviaumarededesegurança,
tampoucoregrassobrecomoaspessoasdeveriamserouviver.Ondeoutroraareligiãodeuum
significadoàaçãomoraleimpôslimitesaela,aausênciadeDeustornoutudopossívelerompeu
todososlimites.Avantagem,aomenosnaperspectivadeNietzsche,eraqueosindivíduosagora
podiamcriarseusprópriosvalores.Podiamtransformarsuasvidasnoequivalenteaobrasde
arteaodesenvolverseupróprioestilodevida.
Nietzscheconcluiuque,quandoaceitamosquenãoháDeus,nãopodemossimplesmente
nosagarraraumavisãocristãdecertoeerrado.Issoseriaautoenganação.Osvaloresquesua
culturaherdou,comocompaixão,bondadeeconsideraçãoaosinteressesdosoutros,podiamser
todosrecusados.Suamaneiraderecusá-loseraespecularsobreaorigemdessesvalores.
SegundoNietzsche,asvirtudescristãsdecuidardosmaisfracoseindefesostinham
origenssurpreendentes.Podemospensarqueacompaixãoeabondadesãoobviamenteboas.
Provavelmentevocêfoieducadoparalouvarabondadeedesprezaroegoísmo.OqueNietzsche
sustentavaéqueosnossospadrõesdepensamentoesentimentotêmumahistória.Depoisque
conhecemosahistóriaou“genealogia”decomopassamosaterosconceitosquetemos,fica
difícilpensarnelescomoconceitosfixosotempointeiro,comofatosdealgumaformaobjetivos
sobrecomodeveríamosagir.
NolivroGenealogiadamoral,eledescreveasituaçãonaGréciaantiga,quando
poderososheróisaristocratasconstruíamsuasvidastendocomobaseasideiasdehonra,
vergonhaeheroísmonabatalha,enãoasideiasdebondade,generosidadeeculpaporagir
errado.EsseéomundodescritopelopoetagregoHomeronaOdisseiaenaIlíada.Nessemundo
deheróis,quemtinhamenospoder,ouseja,osescravoseosfracos,invejavaospoderosos.Os
escravoscanalizavamainvejaeoressentimentoparaospoderosos.Elesusavamosvaloresdos
aristocratasdeumamaneirabastanteequivocada.Emvezdecelebraraforçaeopodercomoos
aristocratas,osescravostransformavamagenerosidadeeocuidadocomosmaisfracosem
virtudes.Essamoralescrava,comoNietzscheachama,tratavaosatosdospoderososcomomaus
eossentimentosdoscompanheiroscomobons.
Aideiadequeumamoraldabondadeteveinícionosentimentodeinvejafoidesafiadora.
Nietzschedemonstrouumafortepreferênciapelosvaloresdosaristocratas,acelebraçãodos
heróisforteseguerreiros,emrelaçãoàmoralcristãdacompaixãopelosfracos.Ocristianismoe
amoralderivadadelesupõemquetodososindivíduostêmomesmovalor;Nietzsche
consideravaqueissoeraumgrandeerro.Seusheróisdaarte,comoBeethoveneShakespeare,
erammuitomaissuperioresdoqueorebanho.Amensagempareceseradequeosvalores
cristãos,quesurgiramdainvejaemprimeirolugar,estavamrefreandoahumanidade.Talvezo
custodissofossequeosfracosseriampisoteados,masvaliaapenapagaressepreçopelaglória
epelarealizaçãoqueissodariaaosmaispoderosos.
EmAssimfalouZaratustra(1883-1892),NietzscheescreveusobreoÜbermenschou
“Sobre-homem”.Otermodescreveumapessoaimaginadanofuturoquenãoestápresaaos
códigosmoraisconvencionais,masvaialémdeles,criandonovosvalores.Talvezinfluenciado
pelopróprioentendimentodateoriadaevoluçãodeCharlesDarwin,Nietzschetenhavistoo
Übermenschcomoopróximopassonodesenvolvimentodahumanidade.Issoéumpouco
preocupante,porqueparecedarsuporteàspessoasqueseveemcomoheroicasequeremseguiro
própriocaminhosempensarnosinteressesdosoutros.E,piorainda,foiumaideiaqueos
nazistastiraramdaobradeNietzscheeusaramparasustentarsuasvisõesdeformadassobreuma
raçadominante,emboraamaioriadosacadêmicosdigaqueosnazistasdistorceramoque
Nietzscherealmenteescreveu.
NietzschefoiinfeliznoqueserefereaofatodesuairmãElisabethtercontroladoodestino
desuaobradepoisdeperderasanidadeeaindapormais35anosdepoisdesuamorte.Elaera
umanacionalistaalemãdopiortipo,alémdeantissemita.Elapassouemrevistaoscadernosdo
irmão,selecionandoasideiascomasquaiselaconcordavaedeixandodeforatudooque
criticavaaAlemanhaounãoservissedebaseparaoseupontodevistaracista.Suaversãodas
ideiasdeNietzsche,publicadacomoAvontadedepotência,transformousuaobraemuma
propagandaparaonazismo,eNietzschetornou-seumautorpermitidonoTerceiroReich.É
altamenteimprovávelque,setivessevividomaistempo,eletivessealgumarelaçãocomo
nazismo.Contudo,éinegávelquehádiversaslinhasemsuaobraquedefendemodireitodos
maisfortesdedestruíremosmaisfracos.Segundoele,nãoéàtoaqueoscarneirosodeiamaves
derapina.Masissonãosignificaquedevemosdesprezarasavesderapinaporcapturareme
devoraremoscarneiros.
AocontráriodeImmanuelKant,quecelebravaarazão,Nietzschesempreenfatizoucomo
asemoçõeseasforçasirracionaisexercemumpapelimportantenaconstruçãodosvalores
humanos.ÉquasecertoquesuasvisõestenhaminfluenciadoSigmundFreud,cujaobraexplorou
anaturezaeopoderdosdesejosinconscientes.
CAPÍTULO30
Pensamentosdisfarçados
SIGMUNDFREUD
Podemosrealmenteconheceranósmesmos?Osantigosfilósofosacreditavamquesim.Masese
estivessemerrados?Esehouverpartesdamentequenãopodemosalcançardiretamente,como
quartospermanentementefechadosdemodoquenuncaconseguimosentrarneles?
Asaparênciaspodemserenganadoras.Quandovemososoldemanhã,eleparecesurgir
alémdohorizonte.Duranteodia,elesemovepelocéuedepoisfinalmentesepõe.Étentador
pensarqueeleviajaaoredordaTerra.Durantemuitosséculos,aspessoasestavamconvencidas
disso.Masestavamerradas.NoséculoXVI,oastrônomoNicolauCopérnicopercebeuisso,
emboraoutrosastrônomostivessemtidosuassuspeitasantesdele.Arevoluçãocopernicana,
ideiadequenossoplanetanãoéocentrodosistemasolar,foirecebidacomoumchoque.
EisqueemmeadosdoséculoXIXsurgeoutrasurpresa,comovimosnoCapítulo25.Até
então,pareciaprovávelqueossereshumanoseramcompletamentediferentesdosanimaiseque
haviamsidocriadosporDeus.Contudo,ateoriadaevoluçãopelaseleçãonatural,elaboradapor
CharlesDarwin,mostrouqueossereshumanostêmancestraiscomunscomosprimatasequenão
havianecessidadedesuporqueDeushavianoscriado.Umprocessoimpessoalerao
responsávelpornossaexistência.AteoriadeDarwinexplicoucomodescendemosdecriaturas
parecidascommacacoseoquantoestamospróximosdeles.Osefeitosdarevoluçãodarwiniana
sãosentidosatéhoje.
DeacordocomSigmundFreud(1856-1939),aterceiragranderevoluçãonopensamento
humanohaviasidocausadaporsuaprópriadescoberta:oinconsciente.Elepercebeuquegrande
partedasnossasaçõesémovidapordesejosescondidosdenós.Nãopodemosacessá-los
diretamente,masissonãoimpedequeelesafetemoquefazemos.Hácoisasquequeremosfazere
nãopercebemosquequeremosfazê-las.Essesdesejosinconscientesexercemumainfluência
profundaemnossavidaenamaneiracomoorganizamosasociedade.Elessãoafontedos
melhoresepioresaspectosdacivilizaçãohumana.Freudfoiresponsávelporessadescoberta,
emboraumaideiasemelhantepossaserencontradaemalgunsescritosdeFriedrichNietzsche.
Freud,psiquiatraquecomeçouacarreiracomoneurologista,moravaemVienaquandoa
ÁustriaaindafaziapartedoImpérioAustro-Húngaro.Filhodeumpaijudeudaclassemédia,
Freuderatípicodemuitosjovensbem-educadoseestabelecidosnessacidadecosmopolitano
finaldoséculoXIX.Seutrabalhocomdiversospacientesjovens,noentanto,direcionousua
atençãocadavezmaisparapartesdapsiquequeeleacreditavaestaremregendoo
comportamentodospacientes,criandoproblemaspormeiodemecanismosdosquaiselesnão
tinhamconsciência.Freuderafascinadopelahisteriaeporoutrostiposdeneurose.Essas
pacienteshistéricas,mulheresemsuamaioria,geralmenteeramsonâmbulas,alucinavameaté
desenvolviamparalisias.Porém,nãosesabiaoquecausavatudoisso:osmédicosnão
conseguiamencontrarumacausafísicaparaossintomas.Pormeiodeumaatençãocuidadosa
voltadaparaasdescriçõesqueospacientesdavamdeseusproblemasemunidodashistórias
pessoaisdessespacientes,Freudpropôsaideiadequeaverdadeirafontedosproblemasdessas
pessoaseraumtipodememóriaoudesejoperturbador.Essamemóriaoudesejoera
inconsciente,easpessoasnãofaziamideiadequeostinham.
Freudpediaqueseuspacientessedeitassememumdivãefalassemtudooquelhesviesse
àmente,eissocostumavafazê-lossesentirmuitomelhoràmedidaqueliberavamsuasideias.
Essa“livreassociação”,quepermiteumfluxodeideias,gerouresultadossurpreendentes,
tornandoconscienteoqueanteserainconsciente.Eletambémpediaqueospacientesrelatassem
seussonhos.Dealgumamaneira,essa“curapelafala”destravavaospensamentosproblemáticos
eeliminavaalgunsdossintomas.Eracomoseoatodafalaliberasseapressãocausadapelas
ideiascomasquaisospacientesnãoqueriamseconfrontar.Foionascimentodapsicanálise.
Masnãosãoapenasospacientesneuróticosehistéricosquetêmdesejosememórias
inconscientes.SegundoFreud,todosnóstemos.Éporcontadissoqueavidaemsociedadeé
possível.Escondemosdenósmesmosoquerealmentesentimosequeremosfazer.Algunsdesses
pensamentossãoviolentos,emuitosdeles,sexuais.Sãoperigososdemaisparaseremliberados.
Muitosseformamquandoaindasomoscrianças.Acontecimentosmuitoantigosnavidada
criançapodemreaparecernaidadeadulta.Porexemplo,Freudpensavaquetodososhomenstêm
odesejoinconscientedemataropaiefazersexocomamãe.Trata-sedofamosocomplexode
Édipo,querecebeessenomeporcausadeÉdipo,quenamitologiagregacumpriuaprofeciade
quematariaopaiesecasariacomamãe(semsaberqueestavafazendoasduascoisas).Para
algumaspessoas,esseestranhodesejoprecocemodelacompletamentesuavidasemqueelas
percebam.Algonamentedelasimpedequeessespensamentosmaisobscurossurjamdeuma
formareconhecível.Contudo,oquequerqueimpeçaqueesseseoutrosdesejosinconscientesse
tornemconscientesnãoédetodobem-sucedido.Ospensamentosconseguemescapar,mas
disfarçados.Elessurgemnossonhos,porexemplo.
ParaFreud,ossonhoseram“aestradarealparaoinconsciente”,umadasmelhores
maneirasdedescobrirpensamentosescondidos.Ascoisasquevemosevivenciamosnossonhos
nãosãooqueparecem.Háoconteúdodesuperfície,oquepareceestaracontecendo,maso
conteúdolatenteéoverdadeirosignificadodosonho.Éissoqueopsicanalistatentaentender.
Aquiloqueencontramosnossonhossãosímbolosquerepresentamosdesejosescondidosem
nossamenteinconsciente.Sendoassim,porexemplo,umsonhoqueenvolveumacobra,um
guarda-chuvaouumaespadageralmenteéumsonhosexualdisfarçado.Acobra,oguarda-chuva
eaespadasãoclássicos“símbolosfreudianos”–representamopênis.Demodosemelhante,a
imagemdeumabolsaoudeumacavernaemumsonhorepresentaavagina.Sevocêachaessa
ideiachocanteouabsurda,Freudprovavelmentelhediriaqueissoocorreporquesuamenteestá
protegendo-odereconhecerospensamentossexuaisquehabitamsuamente.
Podemostambémvislumbrardesejosinconscientespormeiodosatosfalhos,oudeslizes
freudianos,quandoacidentalmenterevelamosdesejosquenãopercebemosquetemos.Muitos
apresentadoresdejornaistelevisivostropeçamemumnomeoufraseeacidentalmentefalamuma
obscenidade.Umfreudianodiriaqueissoacontececomfrequênciademaisparaquesejaapenas
obradoacaso.
Nemtodososdesejosinconscientessãosexuaisouviolentos.Algunsrevelamumconflito
fundamental.Podemosquereralgoemnívelconsciente,enãoqueremnívelinconsciente.
Imaginequevocêprecisepassarnumaprovaimportantíssimaparaingressarnauniversidade.
Conscientemente,vocêseesforçacomopodeparaseprepararparaaprova.Estudaosassuntos
relevantesquecaíramemprovaspassadas,rascunharespostasparapossíveisperguntase
verificasecolocouorelógioparadespertarcedo,demodoquenãoseatrase.Tudoparececorrer
bem.Vocêacordanohorário,tomaocafédamanhã,pegaoônibusepercebequevaichegarum
poucoadiantado.Nessemomento,vocêdormesemquererdentrodoônibus.Porém,quando
acorda,percebeque,paraseuhorror,vocêpassoudopontoondedeveriadescereagoraestáem
umapartedacidadecompletamentediferenteequenãoháchancedechegaraolugarcertoa
tempodefazeraprova.Oseumedodasconsequênciasdepassarnoexamepareceter
sobrepujadoseusesforçosconscientes.Emumnívelprofundo,vocênãoquertersucesso.Seria
assustadordemaisadmitiressedesejoparasimesmo,maséelequeseuinconscienteestálhe
mostrando.
Freudaplicavaessateorianãosóaospacientesneuróticos,mastambémacrenças
culturaiscomuns.Emparticular,eledeuumaexplicaçãopsicanalíticadomotivodeaspessoas
seremtãoatraídaspelareligião.TalvezvocêacrediteemDeuseatésintaapresençadeleemsua
vida.MasFreudtinhaumaexplicaçãoparaolugardeondevinhasuacrençaemDeus.Talvez
vocêpensequeacreditaemDeusporqueeleexiste,masFreudachavaquevocêacreditaem
Deusporqueaindasenteanecessidadedeproteçãoquesentiaquandoeracriança.Navisãode
Freud,todasascivilizaçõesbasearam-senessailusão–ailusãodequeexisteumafortefigura
paternaemalgumlugarláforaqueirásatisfazersuasnecessidadesnãosatisfeitasdeproteção.
Contudo,essepensamentoéilusório–acreditarqueexisteumDeusporquetemosnocoraçãoum
grandedesejodequeeleexista.Tudoissoprocededodesejoinconscientedeserprotegidoe
cuidadoquesurgenoiníciodainfância.AideiadeDeuséreconfortanteparaosadultosque
aindatêmessessentimentostrazidosdainfância,muitoemboranãopercebamdeondevieram
essessentimentoseefetivamentereprimamaideiadequesuareligiãoorigina-seinteiramentede
umanecessidadepsicológicanãosatisfeitaeprofunda,enãodaexistênciadeDeus.
Deumpontodevistapsicológico,aobradeFreudcolocouemquestãomuitassuposições
quepensadorescomoRenéDescartesfizeramsobreamente.Descartesacreditavaqueamente
eratransparenteparasimesma.Eleacreditavaque,quandotemosumpensamento,somosdefato
capazesdeterconsciênciadele.DepoisdeFreud,apossibilidadedaatividademental
inconscientetevedeserreconhecida.
AbasedasideiasdeFreudnãoéaceitaportodososfilósofos,emboramuitosaceitemque
eleestavacertosobreapossibilidadedopensamentoinconsciente.Algunsargumentaramqueas
teoriasdeFreudnãoeramcientíficas.Maisnotavelmente,KarlPopper(cujasideiassão
discutidasemmaisdetalhesnoCapítulo36)descreveumuitasdasideiasdapsicanálisecomo
“nãorefutáveis”,oquenãoeraumelogio,massimumacrítica.ParaPopper,aessênciada
pesquisacientíficaeraofatodeelapodersertestada,ouseja,depoderhaveralguma
observaçãopossívelquemostrariaqueelaerafalsa.NoexemplodePopper,asaçõesdeum
homemqueempurravaumacriançaemumrioedeumhomemqueentravanaáguaparasalvar
umacriançadoafogamentoeram,comotodocomportamentohumano,igualmenteabertasà
explicaçãofreudiana.Independentementedealguémtentarafogarousalvarumacriança,ateoria
deFreudpoderiaexplicartalatitude.Eleprovavelmentediriaqueoprimeirohomemestava
reprimindoalgumaspectodeseuconflitoedípico,oqueolevariaaumcomportamentoviolento,
enquantoosegundohomemhavia“sublimado”seusdesejosinconscientes,ouseja,conseguiu
direcioná-losparaaçõessocialmenteúteis.Popperacreditavaque,setodaobservaçãopossível
étomadacomoevidênciadequeateoriaéverdadeira–qualquerquesejaaobservação–ese
nenhumaevidênciaimaginávelpudessedemonstrá-lacomofalsa,ateorianãopoderiaser
científicademaneiranenhuma.Freud,poroutrolado,teriaargumentadoquePoppertinhaalgum
tipodedesejoreprimidoqueotornouagressivoemrelaçãoàpsicanálise.
BertrandRussell,quetinhaumestilodepensamentomuitodiferentedodeFreud,
compartilhavaodesgostopelareligiãoeacreditavaqueelaeraaprincipalfontedainfelicidade
humana.
CAPÍTULO31
OatualreidaFrançaécareca?
BERTRANDRUSSELL
AsprincipaispreocupaçõesdeBertrandRussellquandojovemeramosexo,areligiãoea
matemática–tudonaesferateórica.Emsualongavida(elemorreuem1970aos97anos),ele
acabousendocontroversoemrelaçãoaoprimeiroitem,atacouosegundoefezcontribuições
importantesparaoterceiro.
AsvisõesdeRussellsobreosexocausaram-lheproblemas.Em1929,elepublicou
Casamentoemoral,livronoqualquestionouasvisõescristãssobreaimportânciadeserfielao
parceiro.Elenãoconcordavacomafidelidade.Muitaspessoastorceramonariznaépoca.Não
queissoincomodasseRussell.ElejáhaviapassadoseismesesnaprisãodeBrixtonporfalar
abertamentecontraaPrimeiraGuerraMundialem1916.Nofinaldavida,ajudouafundara
CampanhapeloDesarmamentoNuclear(CDN),ummovimentointernacionalemoposiçãoàs
armasdedestruiçãoemmassa.Essevelhinhoalegreejovialliderariacomíciosnadécadade
1960aindaemoposiçãoàguerracomohaviasidoquandojovem,cercadecinquentaanosantes.
Naspalavrasdele:“Ouoshomensabolirãoaguerra,ouaguerraaboliráoshomens”.Atéagora,
nenhumadasduascoisasaconteceu.
Elefoiigualmentefrancoeprovocadoremrelaçãoàreligião.ParaRussell,nãohavia
nenhumachancedeDeusintervirparasalvarahumanidade:nossaúnicachanceconsisteem
usarmosopoderdarazão.Segundoele,aspessoaseramatraídaspelareligiãoporquetinham
medodemorrer.Areligiãoasconfortava.Eramuitoreconfortanteacreditarnaexistênciadeum
Deusquepuniriaaspessoasmás,mesmoqueselivrassemdeumassassinatoedecoisaspiores
naTerra.Masissonãoéverdade.Deusnãoexiste.Eareligiãoquasesempreproduziumais
misériadoquefelicidade.Russellreconheciaqueobudismoeradiferentedetodasasoutras
religiões,masocristianismo,oislamismo,ojudaísmoeohinduísmotinhamdese
responsabilizarpormuitacoisa.Nodecorrerdahistória,taisreligiõesforamacausadeguerras,
ódioesofrimento.Milhõesdepessoasmorreramporcausadelas.
Dissodeveficarclaroque,apesardeserumpacifista,Russellestavapreparadopara
enfrentarelutar(aomenoscomideias)poraquiloqueacreditavasercorretoejusto.Mesmo
comopacifista,eleaindapensavaqueemcasosraros,comoaSegundaGuerraMundial,lutar
seriaaopçãomaisválida.
Russellnasceucomoaristocratainglêsemumafamíliadistinta:seutítulooficialeraode
TerceiroCondeRussell.Tinhaumtipodeaparêncianotavelmenteesnobe,sorrisoextrovertidoe
olhoscintilantes.Suavozodenunciavacomomembrodasclassesmaisaltas.Emgravações,ele
soacomoalguémdeoutroséculo–oquenãodeixavadeser:nasceuem1872,entãoera
verdadeiramenteumvitoriano.Seuavôporpartedepai,lordeJohnRussell,foiprimeiro-
ministro.
O“padrinho”nãoreligiosodeBertrandfoiofilósofoJohnStuartMill(assuntodo
Capítulo24).Infelizmenteelesnãoseconheceram,poisMillmorreuquandoRussellaindaera
bebê,maseleexerceugrandeinfluêncianodesenvolvimentodeRussell.LeraAutobiografia
(1873)deMillfoioquelevouRussellarejeitarDeus.Antes,eleacreditavanoargumentoda
primeiracausa.Esseargumento,usadoporTomásdeAquinoeoutros,afirmaquetudodeveter
umacausaequeacausadetudo,aprimeiradetodasascausasnacadeiadecausaeefeito,deve
serDeus.MasquandoMillfezapergunta“OquecausouDeus?”,Russellpercebeuoproblema
lógicodoargumentodaprimeiracausa.Seexistealgoquenãotemumacausa,entãonãopodeser
verdadeque“tudotemumacausa”.ParaRussell,faziamaissentidopensarqueatémesmoDeus
teveumacausa,emvezdeacreditarquealgosimplesmentepudesseexistirsemsercausadopor
outracoisa.
AssimcomoMill,Russellteveumainfânciaincomumenãoparticularmentefeliz.Seus
paismorreramquandoeleeramuitojovem,esuaavó,quecuidavadele,erarigorosaeumpouco
distante.Educadoemcasaporprofessoresparticulares,afundou-senosestudosetornou-seum
matemáticobrilhante,vindoalecionarnaUniversidadedeCambridge.Masoquerealmenteo
fascinavaeraoquetornavaamatemáticaverdadeira.Porque2+2=4?Sabemosqueissoé
verdade.Masporquê?Essequestionamentolevou-oquaseimediatamenteparaafilosofia.
Comofilósofo,seuverdadeiroamoreraalógica,assuntoqueficavanolimiarentrea
filosofiaeamatemática.Oslógicosestudamaestruturadoraciocínio,geralmenteusando
símbolosparaexpressarsuasideias.Eleficoufascinadopeloramodamatemáticaedalógica
chamadoteoriadosconjuntos.Ateoriadosconjuntospareciaserapromessaparaexplicara
estruturadetodoonossoraciocínio,masRusseldescobriuumgrandeproblemanessaideia:ela
levavaàcontradição.Eledemonstrouesseproblemaemumfamosoparadoxonomeadoemsua
homenagem.
VejamosumexemplodoparadoxodeRussell.Imagineumvilarejoondeháumbarbeiro
cujotrabalhosejabarbeartodas(esomente)aspessoasquenãosebarbeiam.Seeumorasselá,
euprovavelmentemebarbearia–nãoachoqueseriaorganizadoosuficienteparairaobarbeiro
todososdiaseeupossomebarbearperfeitamentebem.Alémdisso,iraobarbeiro
provavelmenteficariamuitocaropramim.Masseeudecidissequenãoqueromebarbear,o
barbeiroseriaaquelequeofariaparamim.Comoficaobarbeironessahistória?Eletem
permissãoparabarbearsomentequemnãosebarbeia.Poressaregra,elesequerpoderiabarbear
asimesmo,poissópodebarbearquemnãosebarbeia.Asituaçãoficariadifícilparaele.De
modogeral,sealguémnãopudessesebarbearnovilarejo,procurariaobarbeiro.Todavia,a
regranãopermitiriaqueobarbeirofizesseisso,porqueissoocolocarianasituaçãodealguém
quebarbeiaasipróprio–masobarbeirosópodebarbearaquelesquenãobarbeiamasi
próprios.
Essasituaçãoparecelevaraumacontradiçãodireta–dizerquealgoétantoverdadeiro
quantofalso.Umparadoxoéisso.Algobastantecomplicado.Russelldescobriuque,quandoum
conjuntorefere-seasipróprio,surgeessetipodeparadoxo.Vejamosoutrofamosoexemplo:
“Estafraseéfalsa”.Issotambéméumparadoxo.Seaspalavras“Estafraseéfalsa”significamo
queparecemsignificar(esãoverdadeiras),entãoafraseéfalsa–oquesignificaqueoqueela
declaraéverdadeiro!Issoparecesugerirqueafraseéverdadeiraefalsaaomesmotempo.Esta
éumapartebásicadalógica.Portanto,eisoparadoxo.
Essesenigmassãointeressantesemsimesmos.Nãoháumasoluçãofácilparaeles,oque
pareceestranho.Contudo,eleserammuitomaisimportantesaindaparaRussell,poisrevelavam
quealgumasdassuposiçõesbásicasfeitaspeloslógicosnomundotodoarespeitodateoriados
conjuntosestavamequivocadas.Seriaprecisocomeçardenovo.
OutrointeresseimportanteparaRusselleracomooquedizemosserelacionacomo
mundo.Elesentiaque,seconseguissedescobriroquetornavaumadeclaraçãoverdadeiraou
falsa,estariafazendoumacontribuiçãosignificativaparaoconhecimentohumano.Maisumavez,
eleestavainteressadonasquestõesabstratasportrásdetodoonossoconhecimento.Grande
partedesuaobradedicava-seaexplicaraestruturalógicaquesubjazàsdeclaraçõesque
fazemos.Elesentiaquenossalinguagemeramuitomenosprecisadoquealógica.Alinguagem
comumprecisavaseranalisada–desmembrada–paraquerevelassesuaformalógica
subjacente.Eleestavaconvencidodequeosegredoparaavançaremtodasasáreasdafilosofia
eraessetipodeanáliselógicadalinguagem,queenvolviatraduzi-laemtermosmaisprecisos.
Porexemplo,tomemosafrase“Amontanhadeouronãoexiste”.Éprovávelquetodos
concordemqueasentençaéverdadeiraporquenãohámontanhafeitadeouroemnenhumlugar
domundo,ouseja,afrasepareceestardizendoalgosobreumacoisaquenãoexiste.Osintagma
“amontanhadeouro”parecereferir-seaalgoreal,massabemosquenão.Trata-sedeumquebra-
cabeçaparaoslógicos.Comopodemosfalardemaneirasignificativasobrecoisasquenão
existem?Porqueafrasenãoédetodosemsentido?Umaresposta,dadapelológicoaustríaco
AlexiusMeinong,eraadequetodasascoisasnasquaispodemospensaredasquaispodemos
falardemodosignificativoexistem.Nessavisão,amontanhadeourodeveexistir,masdeum
modoespecialqueelechamoude“subsistência”.Eletambémpensavaqueunicórnioseonúmero
27“subsistem”dessamaneira.
OmododepensardeMeinongarespeitodalógicanãopareciacorretoparaRussell,pois
eramuitoestranho.Significavaqueomundoeracheiodecoisasqueexistememumsentido,mas
nãoemoutro.Russellconcebeuumamaneiramaissimplesdeexplicarcomoaquiloquedizemos
serelacionacomoqueexiste.Aissodamosonomedeteoriadasdescrições.Tomemoscomo
exemploaestranhafrase(umadasprediletasdeRussell)“OatualreidaFrançaécareca”.
MesmonoiníciodoséculoXX,quandoRussellescrevia,nãohaviareinaFrança,queselivrara
detodososreiserainhasduranteaRevoluçãoFrancesa.Então,comoelepodiadarsentidoa
essafrase?ArespostadeRussellfoique,comoamaioriadasfrasesnalinguagemcomum,ela
nãoeranaverdadeoqueparecia.
Eisoproblema.Sequisermosdizerqueafrase“OatualreidaFrançaécareca”éfalsa,
parecequeestaremoscomprometidosadizerqueexisteumatualreinaFrançaquenãoécareca.
Masissocertamentenãoéoquequeremosdizer.Nãoacreditamosquehajaumatualreida
França.AanálisedeRussellfoiaseguinte.Umadeclaraçãodotipo“OatualreidaFrançaé
careca”naverdadeéumaespéciededescriçãooculta.Quandofalamossobre“Oatualreida
Françaécareca”,aformalógicasubjacenteànossaideiaéesta:
ExistealgoqueéoatualreidaFrança.
SóexisteumacoisaqueéoatualreidaFrança.
QualquercoisaqueforoatualreidaFrançaécareca.
EssacomplicadaformadeesclarecerascoisaspermitiuqueRussellmostrasseque“O
atualreidaFrançaécareca”podefazeralgumsentidomesmoquenãoexistaumreiatualda
França.Fazsentido,maséfalso.DiferentementedeMeinong,elenãoprecisavaimaginarqueo
atualreidaFrançaexistissedefato(ousubsistisse)parafalarneleepensarsobreele.Para
Russell,afrase“OatualreidaFrançaécareca”éfalsaporqueoatualreidaFrançanãoexiste.
Afrasesugerequeeleexista;portanto,asentençaéfalsa,enãoverdadeira.Afrase:“Oatualrei
daFrançanãoécareca”tambéméfalsapelamesmarazão.
Russellcomeçouoqueàsvezeséchamadode“viradalinguística”nafilosofia,um
movimentonoqualosfilósofoscomeçaramapensarprofundamentesobrealinguagemesua
formalógicasubjacente.A.J.Ayerfezpartedessemovimento.
CAPÍTULO32
Boo!Hooray!
ALFREDJULESAYER
Nãoseriamaravilhososetivéssemosumamaneiradesaberquandoalguémestivessefalando
besteiras?Jamaisseríamosenganadosdenovo.Poderíamosdividirtudooqueouvíamosou
líamosemdeclaraçõesquefazemsentidoedeclaraçõesquenãopassamdecontrassensosenão
valemotempoperdidocomelas.A.J.Ayer(1910-1989)acreditavaterdescobertoumamaneira
defazerisso.Eleachamavadeprincípiodeverificação.
DepoisdepassaralgunsmesesnaÁustrianoiníciodadécadade1930frequentando
reuniõesdeumgrupodecientistasefilósofosbrilhantesconhecidocomoCírculodeViena,Ayer
voltouparaOxford,ondetrabalhavacomoprofessorassistente.Aos24anos,eleescreveuum
livronoqualdeclarouqueamaiorpartedahistóriadafilosofiaeraumatagarelicesemnexo–
umcompletocontrassensomaisoumenosinútil.Olivro,publicadoem1936,chamava-se
Linguagem,verdadeelógica.Faziapartedeummovimentoconhecidocomopositivismológico,
ummovimentoquecelebravaaciênciacomoomaiordosfeitoshumanos.
“Metafísica”éumapalavrausadaparadescreveroestudodequalquerrealidade
subjacenteaosnossossentidos,otipodecoisanaqualKant,SchopenhauereHegelacreditavam.
ParaAyer,noentanto,“metafísica”eraumapalavrasuja;eleeracontraela.Ayersóestava
interessadonoquepodiaserconhecidopormeiodalógicaoudossentidos.Contudo,a
metafísicamuitasvezesiaalémdissoedescreviarealidadesquenãopodiamserinvestigadas
científicaouconceitualmente.NoqueserefereaAyer,issosignificavaqueelanãotinha
absolutamenteusonenhumedeveriaserdescartada.
NãoédesurpreenderqueLinguagem,verdadeelógicatenhairritadotantagente.A
maioriadosfilósofosmaisvelhosemOxfordodiouolivro,eficoumaisdifícilparaAyer
arranjaremprego.Todavia,irritarosoutroséalgoqueosfilósofosvêmfazendohácentenasde
anos,numatradiçãoquecomeçoucomSócrates.Mesmoassim,escreverumlivroqueatacavatão
abertamenteaobradealgunsdosmaioresfilósofosdahistóriaeraumaatitudemuitocorajosa.
AmaneiraqueAyerencontroudedistinguirfrasescomsentidodefrasessemsentidofoia
seguinte.Peguequalquerfraseefaçaessasduasperguntas:
Elaéverdadeirapordefinição?
Éempiricamenteverificável?
Senãofossenenhumadasduascoisas,nãofaziasentido.Esteeraseuduplotesteda
significação.Somentedeclaraçõesverdadeiraspordefiniçãoouempiricamentevariáveisteriam
utilidadeparaosfilósofos.Precisamosexplicarissomelhor.Exemplosdedeclarações
verdadeiraspordefiniçãosão“Todasasavestruzessãoaves”ou“Todososirmãossãodosexo
masculino”.SãojuízosanalíticosnaterminologiadeKant(verCapítulo19).Nãoéprecisoirlá
foraanalisaravestruzesparasaberquesãopássaros–issofazpartedadefiniçãodeavestruz.Eé
óbvioquenãoseriapossívelterumirmãodosexofeminino–ninguémjamaisdescobriráum
irmãoassim,podemostercerteza;nãosemumamudançadesexoemalgummomentodavida.
Declaraçõesverdadeiraspordefiniçãotrazemàtonaoqueestáimplícitonostermosqueusamos.
Declaraçõesempiricamenteverificáveis(juízos“sintéticos”nostermosdeKant),em
contrapartida,podemnosdarumconhecimentogenuíno.Paraqueumadeclaraçãoseja
empiricamenteverificável,temdehaveralgumtesteouobservaçãoquemostreseelaé
verdadeiraoufalsa.Porexemplo,sealguémdiz“todososgolfinhoscomempeixe”,poderíamos
pegaralgunsgolfinhos,oferecer-lhespeixeseverseelescomem.Sedescobrirmosqueum
golfinhonuncacomepeixe,saberemosqueadeclaraçãoerafalsa.ParaAyer,aindaassimela
seriaumadeclaraçãoverificável,poiseleusavaapalavra“verificável”parasereferirtantoa
“verificável”quantoa“refutável”(ou“falsificável”).Declaraçõesempiricamenteverificáveis
eramtodasdeclaraçõesfactuais:referem-seaomodocomoomundoé.Devehaveralguma
observaçãoquedêsuporteaelasouasdestrua.Aciênciaénossamelhormaneiradeexaminá-
las.
SegundoAyer,seafrasenãofossenemverdadeirapordefinição,nemempiricamente
verificável(ourefutável),elanãofariasentido.Simplesassim.EsseaspectodafilosofiadeAyer
foitomadodiretamentedaobradeDavidHume.Humedisse,nãodemaneiratãoséria,que
deveríamosqueimaroslivrosdefilosofiaquenãopassaramnotesteporquecontinhamnadaalém
de“sofísticaeilusão”.AyerretrabalhouasideiasdeHumeparaocontextodoséculoXX.
Dessemodo,setomamosafrase“Algunsfilósofostêmbarba”,ficaplenamenteclaroque
nãosetratadeumafraseverdadeirapordefinição,poisnãofazpartedadefiniçãodefilósofo
quealgunsdelesprecisamterpelosnorosto.Maséempiricamenteverificável,poiséalgode
quepodemosobterevidências.Tudooqueprecisamosfazeréolharparaumasériedefilósofos.
Seencontrarmosalgunscombarba,oqueébemprováveldeacontecer,entãopodemosconcluir
queasentençaéverdadeira.Ouse,depoisdeolharparamuitascentenasdefilósofos,não
encontrarmosnenhumquetenhabarba,poderemosconcluirqueafrase“Algunsfilósofostêm
barba”éprovavelmentefalsa,portantonãopodemostercertezasemexaminartodososfilósofos
queexistem.Detodomodo,sendoverdadeiraoufalsa,afraseésignificativa.
Comparecomafrase“Meuquartoestácheiodeanjosinvisíveisquenãodeixamrastros”.
Issotambémnãoéverdadeiropordefinição.Maséempiricamenteverificável?Parecequenão.
Nãohámaneiraimagináveldedetectaressesanjosinvisíveisseelesnãodeixaremrastros.Não
podemostocá-losoucheirá-los.Elesnãodeixampegadas,nãofazembarulho.Porisso,afraseé
umcontrassenso,mesmoquepareçafazersentido.Éumafrasegramaticalmentecorreta;porém,
comodeclaraçãosobreomundo,nãoénemverdadeira,nemfalsa.Ésemsentido.
Issopodeserbastantedifícildeentender.Afrase“Meuquartoestácheiodeanjosquenão
deixamrastros”parecedizeralgo.Todavia,paraAyer,elanãocontribuicomabsolutamentenada
paraoconhecimentohumano,emboratalvezsoepoéticaoupossivelmentepossacontribuirpara
umaobradeficção.
Ayernãoatacavasomenteametafísica:aéticaeareligiãotambémeramalvos.Por
exemplo,umadesuasconclusõesmaiscontestadorasfoiofatodequeosjuízosmoraissão
literalmenteumcontrassenso.Pareciaumultrajedizerisso,masessaseráaconclusãoresultante
seusarmosoduplo-testedeAyernosjuízosmorais.Segundoele,quandodizemos“torturaré
errado”estamosapenasdizendo“tortura,boo!”.Estamosrevelandonossasemoçõespessoais
sobreaquestão,emvezdefazerumadeclaraçãoquepoderiaserverdadeiraoufalsa,porque
“torturaréerrado”nãoéverdadeirapordefinição,tampoucoéalgoquepoderíamosprovarou
refutarcomoumfato.Nãoháumtestequepossamosfazerparadecidiraquestão,acreditava
Ayer–algoqueutilitaristascomoJeremyBenthameJohnStuartMillteriamcontestado,pois
teriammedidoafelicidaderesultante.
NaanálisedeAyer,portanto,nãofazomenorsentidodizer“torturaréerrado”,poisesseé
otipodefrasequenuncaseráverdadeiranemfalsa.Quandodizemos“Acompaixãoéumbem”,
estamosapenasmostrandocomonossentimos:éomesmoquedizer“compaixão,hooray!”.Nãoé
desurpreenderqueateoriadeAyersobreaética,chamadaemotivismo,costumeserdescrita
comoteoriado“boo/hooray!”.AlgumaspessoasinterpretamAyercomoseeleestivessedizendo
queamoralnãoimporta,quepodemosescolherfazeroquequisermos.Masaquestãonãoéessa.
Elequeriadizerquenãopodeternenhumaconversasignificativasobreessasquestõesemtermos
devalores,masacreditavaque,namaioriadosdebatessobreoquedeveríamosfazer,fatoseram
discutidos,esãoempiricamenteverificáveis.
EmoutrocapítulodeLinguagem,verdadeelógica,Ayeratacouaideiadequepodíamos
falarsignificativamentesobreDeus.Eleargumentavaqueadeclaração“Deusexiste”nãoera
nemverdadeira,nemfalsa;outravez,elepensavaquenãofaziasentido.Poressarazão,nãoseria
verdadeirapordefinição(pormaisquealgumaspessoas,naesteiradeSantoAnselmo,usemo
argumentoontológicoparadizerqueDeusnecessariamenteexiste).Enãohaviaumtesteque
pudéssemosfazerparaprovaraexistênciaouanãoexistênciadeDeus–postoqueelerejeitava
oargumentododesígnio.Dessemodo,Ayernãoeranemteísta(quemacreditaemDeus),
tampoucoateísta(quemacreditaqueDeusnãoexiste).Aocontrário,elepensavaque“Deus
existe”nãopassavademaisumadeclaraçãosemsentido–algumaspessoasdãoaessaposturao
nomede“ignosticismo”.Ayer,então,eraum“ignótico”,tipoespecialdepessoaquepensaque
todososdiscursossobreaexistênciaounãoexistênciadeDeussãoumcompletocontrassenso.
Apesardisso,Ayerteveumchoquemuitograndejánofimdavida,quandoteveuma
experiênciadequasemortedepoisdeengasgarcomumaespinhadesalmãoeperdera
consciência.Ocoraçãodeleparouporquatrominutos.Duranteessetempo,eleteveaclaravisão
deumaluzvermelhaededois“mestresdouniverso”conversandoumcomooutro.Essavisão
nãoofezacreditaremDeus,longedisso,masofezquestionarsuacertezasobreseamente
poderiacontinuaraexistirdepoisdamorte.
OpositivismológicodeAyer,parasuainfelicidade,deuasferramentasparasuaprópria
destruição.Ateoriaemsinãopareciapassaremseupróprioteste.Primeiro,nãoestáclaroquea
teoriasejaverdadeirapordefinição.Segundo,nãohánenhumaobservaçãoquepossaprová-laou
contestá-la.Então,porseuspróprioscritérios,elaéinsignificante.
Paraaquelesquerecorreramàfilosofiabuscandoumaajudapararesponderàsperguntas
decomoviver,afilosofiadeAyerfoidemuitopoucouso.Maispromissoremváriosaspectos
foioexistencialismo,movimentoquesurgiunaEuropaduranteeimediatamenteapósaSegunda
GuerraMundial.
CAPÍTULO33
Aangústiadaliberdade
JEAN-PAULSARTRE,SIMONEDEBEAUVOIREALBERTCAMUS
Sepudéssemosvoltarnotempoaté1945eentrarnumcaféemParischamadoLesDeuxMagots
[Osdoissábios],perceberíamosumhomemestrábicosentadopertodenós,fumandocachimboe
escrevendoemumcaderno.EssehomeméJean-PaulSartre(1905-1980),omaisfamosodos
filósofosexistencialistas.Eletambémfoiromancista,dramaturgoebiógrafo.Passouamaior
partedavidamorandoemhotéiseescreveugrandepartedasuaobraemcafés.Elenãoparecia
umafiguracultuada,masfoioquesetornouempouquíssimosanos.
Muitasvezes,Sartrejuntava-seaumamulherbonitaeextremamenteinteligente,Simonede
Beauvoir(1908-1986).Elesseconheciamdesdeauniversidade,eelafoiacompanheirade
Sartreportodaavida,emboraelesnãotenhamsecasado,nemmoradojuntos.Elestinhamoutras
relações,masadelesfoiamaisduradouradelas–elesadescreviamcomo“essencial”etodas
asoutrascomo“contingentes”(ou“nãonecessárias”).AssimcomoSartre,elaerafilósofae
romancista.SimoneescreveuumimportantelivrochamadoOsegundosexo(1949),umadas
primeirasobrasfeministasdahistória.
DuranteamaiorpartedaSegundaGuerraMundial,quehaviaacabadodeterminar,Paris
foiocupadapelasforçasnazistas.Avidafoimuitodifícilparaosfranceses.Algumaspessoas
conseguiramsejuntaraossoldadosdaResistênciafrancesaelutaramcontraosalemães.Outras
colaboravamcomosnazistasetraíamosamigosparasalvarasipróprias.Acomidaeraescassa,
haviatiroteiosnasruas.Aspessoasdesapareciamenuncamaiseramvistas.OsjudeusdeParis
forammandadosparacamposdeconcentração,ondeamaioriafoiassassinada.
QuandoosaliadosderrotaramaAlemanha,chegouahoradecomeçardenovo.Houve
tantoumalíviopelotérminodaguerraquantoasensaçãodequeopassadohaviasidodeixado
paratrás.Eraomomentoderefletirsobrequetipodesociedadedeveriaexistir.Depoisdas
coisasterríveisqueaconteceramnaguerra,todasaspessoasfaziam-seasmesmasperguntasque
osfilósofosfaziam,como“Qualopropósitodavida?”,“Deusexiste?”ou“Devosemprefazero
queesperamqueeufaça?”.
Sartrejáhaviaescritoumlongolivro,dedifícilleitura,chamadoOsereonada(1943),
publicadoduranteaguerra.Otemacentraldolivroeraaliberdade.Ossereshumanossãolivres,
umamensagemestranhaparaaFrançaocupada,ondeamaioriadosfrancesessentia-se–ou
realmenteera–prisioneiranoprópriopaís.Noentanto,Sartrequeriadizerque,diferentemente
deumcanivete,porexemplo,oserhumanonãohaviasidocriadoparafazernadaemparticular.
SartrenãoacreditavahaverumDeusquepudessenostercriado,entãorejeitouaideiadeque
Deustinhaumpropósitoparanós.Ocaniveteerafeitoparacortar.Essaerasuaessência,oqueo
faziaseroqueera.Masoserhumanoeracriadoparaquê?Sereshumanosnãotêmessência.
Sartreacreditavaquenãoestamosaquiporalgumarazão.Nãoháummodoparticulardeserpara
quesejamoshumanos.Oserhumanopodeescolheroquefazer,oquesetornar.Todosnóssomos
livres.Ninguém,alémdenósmesmos,decideoquefazemosdenossasprópriasvidas.Até
mesmoquandodeixamososoutrosdecidiremcomodevemosviver,estamosescolhendo.Seria
umaescolhaserotipodepessoaqueosoutrosesperamquesejamos.
Éclaroquenemsempreépossíveltersucessoquandovocêescolhefazeralgumacoisa,e
omotivodofracassopodeseralgototalmenteforadoseucontrole.Masvocêéresponsávelpor
quererfazê-la,portentarfazê-laeporcomoreageaofracassopornãotersidocapazdefazê-la.
Édifícillidarcomaliberdade,eamaioriadenósfogedela.Umadasformasdese
esconderéfingirquenãosomoslivres.SeSartreestácorreto,nãopodemosterdesculpas:somos
completamenteresponsáveispeloquefazemostodososdiasepelamaneiracomonossentimos
peloquefazemos.Emúltimaanálise,pelasemoçõesquetemos.SegundoSartre,ésuaescolha
estartristenestemomento,casoesteja.Vocênãoprecisaestartriste.Seestiver,éresponsável
pelatristeza.Masissoéassustador,ealgumaspessoasprefeririamnãoencarartalfatoporser
dolorosodemais.Elefalasobreestarmos“condenadosaserlivres”.Estamospresosàliberdade,
quergostemosounão.
Sartredáoexemplodeumgarçomemumcafé.Ogarçommovimenta-sedeformabem
estilizada,comosefosseumtipodemarionete.Todososseustraçossugeremqueelesevêcomo
alguémtotalmentedefinidopelopapeldegarçom,comosenãotivesseescolhasobrenada.O
modocomoseguraabandeja,omodocomoandaentreasmesas,tudofazpartedeumaespécie
dedançaqueécoreografadapelotrabalhocomogarçom,enãopeloserhumanoqueoexecuta.
Sartredizqueessesujeitoagede“má-fé”.Má-fééfugirdaliberdade,umtipodementiraque
contamosparanósmesmosenaqualquaseacreditamos:amentiradequenãosomosrealmente
livresparaescolheroquefazemoscomnossasvidas,quandonaverdade,segundoSartre,quer
gostemosounão,nóssomos.
Emumaconferênciadadalogodepoisdaguerra,“Oexistencialismoéumhumanismo”,
Sartredescreveuavidahumanacomorepletadeangústia.Aangústiasurgedacompreensãode
quenãopodemosdardesculpas,jáquesomosresponsáveisportudooquefazemos.Masa
angústiaépiorporque,segundoSartre,tudooquefaçocomaminhavidadeveservirdemodelo
paraqueooutrofaçacomaprópriavida.Sedecidomecasar,estousugerindoquetodosdevem
secasar;sedecidoserumpreguiçoso,éissooquetodosdeveriamfazernaminhavisãoda
existênciahumana.Pelasescolhasquefaçonavida,pintoumquadrodecomopensoqueoser
humanodeviaser.Fazerissocomsinceridadeéumagranderesponsabilidade.
Sartreexplicouoquequeriadizercomaangústiadaescolhapormeiodahistóriadeum
estudantequelhepediuumconselhoduranteaguerra.Esserapaztinhadetomarumadecisão
muitodifícil.Poderiaficaremcasaecuidardamãe,oupoderiasairdecasa,tentarjuntar-seà
Resistênciafrancesaelutarparasalvaropaísdosalemães.Essaeraadecisãomaisdifícilda
vidadele,eelenãosabiaoquefazer.Amãeficariavulnerávelsemele,casoaabandonasse.Ele
poderianãoconseguirsejuntaraossoldadosdaResistênciaantesdeserpegopelosalemães,
entãotodaatentativadefazeralgonobreseriaperdadeenergiaedeumavida.Porém,seficasse
emcasacomamãe,deixariaqueoutroslutassemparaele.Oquedeveriafazer?Oquevocê
faria?Queconselhodariaaorapaz?
OconselhodeSartrefoiumpoucofrustrante.Eledisseaoestudantequeeleeralivree
deveriaescolherporsimesmo.SeSartredesseumconselhopráticosobreoqueorapazdeveria
fazer,oestudanteaindateriadedecidirseseguiaounãooconselho.Nãohaviacomoescapardo
pesodaresponsabilidadeatreladoàexistênciahumana.
“Existencialismo”foionomequeoutraspessoasderamàfilosofiadeSartre.Onomeveio
daideiadequetodosnósnosencontramosprimeirocomoexistentesnomundoedepoistemosde
decidiroquefaremosdenossavida.Poderiaserocontrário:podíamossercomoumcanivete,
feitocomumpropósitoespecífico,masSartreacreditavaquenãosomosassim.Nostermos
usadosporele,nossaexistênciaprecedenossaessência,enquantoaessênciadosobjetoscriados
vemantesdaexistênciadeles.
EmOsegundosexo,SimonedeBeauvoirdeuumnovosignificadoaoexistencialismoao
afirmarqueasmulheresnãonascemmulheres:elassetornammulheres.Oquequeriadizerera
queasmulherestendemaaceitaravisãodoshomensdoqueéumamulher.Seroqueoshomens
esperamqueumamulhersejaéumaescolha.Masasmulheres,porseremlivres,podemdecidiro
quequeremser.Elasnãotêmnenhumaessência,nenhumamaneiradeserdadapelanatureza.
Outrotemaimportantedoexistencialismoeraoabsurdodanossaexistência.Avidasótem
significadoquandoatribuímosaelaumsentidopormeiodasnossasescolhas,eempoucotempo
amortevemeacabacomtodoessesentido.AversãodadaporSartreaessaideiafoidescrever
oserhumanocomo“umapaixãoinútil”:nãoháabsolutamentenenhumpropósitoemnossa
existência,sóháosentidocriadoporcadaumdenóspormeiodasescolhas.AlbertCamus
(1913-1960),romancistaefilósofoquetambémeraligadoaoexistencialismo,usavaomito
gregodeSísifoparaexplicaraabsurdidadehumana.ApuniçãodeSísifoporterenganadoos
deusesfoiarrastarumapedragigantescaatéotopodeumamontanha.Quandoelechegavaao
topo,apedrarolavaparabaixoeeletinhadecomeçartudodesdeoinício.Naverdade,Sísifo
tevedefazerissoeternamente.AvidahumanaécomoatarefadeSísifo,poisétotalmente
desprovidadesignificado.Nãohásentidonela:nãohárespostasqueexpliquemtudo.Éabsurda.
MasCamusnãoachavaquedeveríamosperderasesperanças,nemcometersuicídio.Emvez
disso,temosdeadmitirqueSísifoéfeliz.Porquê?Porqueháalgoemrelaçãoaessaluta
estúpidadesubiramontanhacomumapedraquefaziaasuavidavalerapena.Aindaépreferível
viveramorrer.
Oexistencialismotornou-secult.Milharesdejovenssesentiramatraídosporelee
discutiamoabsurdodaexistênciahumanaatédemadrugada.Eleinspirouromances,peçase
filmes.Eraumafilosofiaqueaspessoaspodiamadotareaplicaremsuasdecisões.Opróprio
Sartretornou-semaispoliticamenteengajadoeparticipativodomovimentoesquerdistaquando
ficoumaisvelhoetentoucombinarideiasdomarxismocomsuasprimeirasposições–umatarefa
complicada.Seuexistencialismodadécadade1940eracentradonosindivíduosquefaziam
escolhasparasipróprios;mas,numafaseposteriordesuaobra,eletentouentendercomonos
tornamospartedeumgrupomaiordepessoasecomoosfatoressociaiseeconômicos
desempenhamumpapelemnossavida.Infelizmente,suaescritaficoucadavezmaisdifícilde
entender,talvezporquegrandepartedelatenhasidoproduzidaenquantousavaaltasdosesde
anfetamina.
SartreprovavelmentefoiofilósofomaisconhecidodoséculoXX.Contudo,se
perguntarmosaosfilósofosquemfoiopensadormaisimportantedoséculopassado,muitosdirão
quefoiLudwigWittgenstein.
CAPÍTULO34
Enfeitiçadopelalinguagem
LUDWIGWITTGENSTEIN
SevocêtivesseassistidoaumdossemináriosdeLudwigWittgenstein(1889-1951)ministrados
emCambridgeem1940,perceberiarapidamentequeestavanapresençadeumsujeitobastante
incomum.Muitagentequeoconheciaachavaqueeraumgênio.BertrandRusselldescreveu-o
como“apaixonado,profundo,intensoedominador”.Essepequenovienensedeolhosazuise
brilhantes,extremamentesério,andavadecimaparabaixoquestionandoosestudanteseparava
detemposemtemposcomoseestivesseperdidoempensamentos.Ninguémousavainterrompê-
lo.Elenãousavanadapreparadopreviamenteduranteasaulas,massimpensavanasquestões
diantedosalunos,usandoumasériedeexemplosparaelucidaroqueestivesseemjogo.Eledizia
paraosalunosnãoperderemtempolendolivrosdefilosofia:selevassemoslivrosasério,
deveriamatirá-losdooutroladodasalaeprosseguirpensandoarduamentenasquestõesque
suscitavam.
Seuprimeirolivro,TractatusLogico-Philsophicus(1922),foiescritoemsessõescurtase
numeradas,sendoquemuitasdelasparecemmaisserpoesiadoquefilosofia.Suaideiaprincipal
eraadequeasquestõesmaisimportantessobreéticaereligiãoestãoalémdoslimitesdonosso
entendimento;senãopodemosfalarnadadesignificativosobreelas,quefiquemosemsilêncio.
Umtemacentraldasuaobraposteriorfoio“enfeitiçamentopelalinguagem”.Ele
acreditavaquealinguagemcolocaosfilósofosemtodosostiposdeconfusão.Elessão
enfeitiçadosporela.Wittgensteinviaasimesmocomoumterapeutaquelevariaemboragrande
partedessaconfusão.Aideiaeraqueseguíssemosalógicadeseusváriosexemplos
cuidadosamenteescolhidose,enquantofizéssemosisso,nossosproblemasfilosóficos
desapareceriam.Oquepareciaterrivelmenteimportantenãoseriamaisumproblema.
Umadascausasdaconfusãofilosófica,defendiaele,eraasuposiçãodequetoda
linguagemfuncionadamesmamaneira–aideiadequeaspalavrassimplesmentenomeiamas
coisas.Elequeriademonstrarparaosleitoresquehaviamuitos“jogosdelinguagem”,diferentes
atividadesqueexecutamosusandopalavras.Nãoháuma“essência”dalinguagem,nenhuma
característicacomumqueexpliquetodaagamadeseususos.
Sevemosumgrupodepessoasrelacionadasumasàsoutras,comoemumcasamento,
seremoscapazesdereconhecerosmembrosdafamíliaapartirdassemelhançasfísicasentre
eles.IssoéoqueWittgensteinqueriadizercom“semelhançadefamília”.Dessemodo,você
deveparecerumpoucocomsuamãe–talveztenhamomesmocabeloeamesmacordosolhos–
eumpoucocomseupai–sãomagrosealtos.Talvezsuairmãtambémtenhaamesmacorde
cabeloeomesmoformatodosolhosquevocê,masacordosolhospodeserdiferentedados
seusolhosedasuamãe.Nãoháumaúnicacaracterísticacompartilhadaportodososmembrosda
famíliaquetorneimediataaidentificaçãodetodoselescomopartedeumamesmafamília
aparentadageneticamente.Emvezdisso,háumpadrãodesemelhançassobrepostas,ouseja,
algunsmembrosdafamíliacompartilhamalgumascaracterísticas,enquantooutroscompartilham
outras.EssepadrãodesemelhançasquesesobrepunhaméoqueinteressavaaWittgenstein.Ele
usavaessametáforadesemelhançadefamíliaparaexplicaralgoimportantesobrecomoa
linguagemfunciona.
Pensenapalavra“jogo”.Háváriascoisasdiferentesquechamamosdejogos:jogosde
tabuleirocomoxadrez,jogosdecartacomobridgeepaciência,esportescomofuteboletc.
Tambémháoutrascoisasquechamamosdejogos,comojogodeesconde-escondeoujogosdefaz
deconta.Muitaspessoasachamque,pelofatodeusarmosamesmapalavra–“jogo”–parase
referiratodosesses,devehaverumaúnicacaracterísticaquetodostenhamemcomum,a
“essência”doconceitode“jogo”.Mas,emvezdesimplesmenteassumirquehajatal
denominadorcomum,Wittgensteinnospedepara“olharever”.Podemosacharquetodosos
jogostêmumganhadoreumperdedor,maseojogodepaciência,ouaatividadedejogaruma
bolanomuroepegá-laemseguida?Ambossãojogos,masobviamentenãoháumperdedor.E
quetalaideiadequetodostenhamregras?Porém,algunsjogosdefazdecontanãoparecemter
regras.Paratodasascaracterísticasquepossivelmentesejamcomunsatodososjogos,
Wittgensteindáumcontraexemplo,umaatividadequeéumjogo,masnãoparececompartilharda
“essência”sugeridaatodososjogos.Emvezdepressuporquetodososjogostêmumaúnica
característicaemcomum,eleacreditaquedeveríamosverpalavrascomo“jogo”em“termosde
semelhançadefamília”.
QuandoWittgensteindescreveualinguagemcomoumasériede“jogosdelinguagem”,ele
chamouaatençãoparaofatodequeusamosalinguagemparamuitasfinalidades,edequeos
filósofosseconfundiramporquepensavambasicamentequetodalinguagemtemomesmotipode
função.Emumadesuasfamosasdescriçõessobreoseuobjetivocomofilósofo,eledisseque
queriamostraràmoscaasaídadagarrafa.Umfilósofotípicoficariazunindodentrodagarrafa
comoumamoscapresabatendonovidro.Amaneirade“solucionar”umproblemafilosófico
seriatirararolhaedeixaramoscasair.Issosignificaqueelequeriamostraraofilósofoque
estavasefazendoasperguntaserradas,ouquehaviasidoenganadopelalinguagem.
TomemoscomoexemploadescriçãodeSantoAgostinhodecomoeleteriaaprendidoa
falar.EmConfissões,Agostinhosugeriuqueaspessoasmaisvelhascomquemeleconvivia
apontavamparaosobjetoseosnomeavam.Elevêumamaçã,alguémapontaediz“maçã”.Pouco
apouco,Agostinhoentendeuoqueaspalavrasqueriamdizereconseguiuusá-lasparadizera
outraspessoasoquequeria.Wittgensteintomaesseexemplocomoumcasodealguémquesupõe
quetodalinguagemtemumaessência,umaúnicafunção.Afunçãoúnicaserianomearobjetos.
ParaAgostinho,todapalavratemumsignificadocorrespondente.Nolugardessafigurade
linguagem,Wittgensteinnosincentivaaverousodalinguagemcomoumasériedeatividades
associadasàvidapráticadosfalantes.Devemospensarnalinguagemmaiscomoumacaixade
ferramentascomosmaisvariadostiposdeferramentas,enãocomo,porexemplo,servindoà
funçãoàqualserveumachavedefenda.
Talvezlhepareçaóbvioque,quandovocêsentedorefalasobreisso,estáusandopalavras
quedesignamasensaçãoparticularqueestátendo.Wittgensteintentarompercomessavisãoda
linguagemdasensação.Issonãoquerdizerquevocênãotenhaumasensação,massimque,
logicamente,suaspalavrasnãopodemsernomesdassensações.Setodosnóstivéssemosuma
caixacomumbesouroquenuncamostramosparaninguém,nãofariaamenordiferençaoque
estivessedentrodacaixaquandofalássemosunsparaosoutrossobreo“besouro”.Alinguagem
épúblicaerequermeiospublicamenteacessíveisdeseverificarqueestamosfazendosentido.
Quandoumacriançaaprendea“descrever”suador,dizWittgenstein,oqueaconteceéqueos
paisencorajamacriançaafazerváriascoisas,comodizer“estádoendo”–oequivalenteem
muitosaspectosàexpressãobastantenatural“Aaargh!”.Partedamensagem,nessecaso,éque
nãodeveríamospensarnaspalavras“estousentindodor”comoumaformadenomearuma
sensaçãoprivada.Sedoreseoutrassensaçõesfossemrealmenteprivadas,precisaríamosdeuma
linguagemprivadaespecialparadescrevê-las.MasWittgensteinpensavaqueessaideianãofazia
sentido.Vejamosoutroexemploquepodeajudaraexplicarporqueelepensavaisso.
Umhomemdecidequemanteráumregistrodetodasasvezesemquetiverumtipo
particulardesensaçãoparaaqualnãohajanome–talvezumtipoespecíficodeformigamento.
Eleescreve“S”nodiáriotodavezquetemessasensaçãoespecialdeformigar.“S”éuma
palavraemsualinguagemparticular–ninguémmaissabeoqueelequerdizercomisso.Parece
serpossível.Nãoédifícilimaginarumhomemfazendoisso.Porém,reflitaumpoucomais.
Quandosenteumformigamento,comoelesabequesetratarealmentedemaisumexemplodo
tipo“S”queeledecidiuregistrarenãooutrotipodeformigamento?Elenãopoderetrocedere
verificar,excetopelamemóriadeterexperimentadoumformigamento“S”anterior.Masissonão
émuitobom,porqueelepoderiaseconfundircompletamente.Essanãoéumaformaconfiávelde
dizerqueseestáusandoapalavradamesmamaneira.
OqueWittgensteinqueriamostrarcomesseexemplododiárioeraqueomodocomo
usamosaspalavrasparadescrevernossasexperiênciasnãopodeserbaseadoemumaligação
privadadaexperiênciacomomundo.Devehaveralgopúblicoemrelaçãoaele.Nãopodemos
ternossapróprialinguagemprivada.Seissoforverdade,aideiadequeamenteécomoum
teatrofechadonoqualninguémpodeentraréumequívoco.ParaWittgenstein,portanto,aideiade
umalinguagemparticulardassensaçõesnãofazabsolutamentenenhumsentido.Issoéimportante
–etambémdifícildeentender–porquemuitosfilósofosantesdelepensavamqueamentede
cadaindivíduoeracompletamenteprivada.
Emborafossedereligiãocristã,afamíliadeWittgensteinfoiconsideradajudiasobasleis
nazistas.LudwigpassoupartedaSegundaGuerraMundialtrabalhandocomoassistenteemum
hospitaldeLondres,massuafamíliaestendidatevemuitasortedeescapardeViena.Senão
tivessemconseguido,AdolfEichmannteriasupervisionadosuadeportaçãoparaoscamposde
extermínio.OenvolvimentodeEichmannnoholocaustoeseuposteriorjulgamentopeloscrimes
contraahumanidadeforamocentrodasreflexõesdeHannahArendtsobreanaturezadomal.
CAPÍTULO35
Ohomemquenãofaziaperguntas
HANNAHARENDT
OnazistaAdolfEichmannfoiumadministradoresforçado.Apartirde1942,estevenocomando
dotransportedosjudeusdaEuropaparaoscamposdeconcentraçãonaPolônia,incluindo
Auschwitz.Issofaziaparteda“soluçãofinal”deAdolfHitler:oplanodematartodososjudeus
queviviamemterrasocupadaspelasforçasalemãs.Eichmannnãoeraresponsávelpelapolítica
damatançasistemática–nãofoiideiadele.Porém,eleestavaprofundamenteenvolvidona
organizaçãodosistemaferroviárioquetornouessapolíticapossível.
Apartirdadécadade1930,osnazistasintroduziramleisqueacabavamcomosdireitosdo
povojudeu.HitlerculparaosjudeusporquasetudooqueestavaerradonaAlemanhaetinhaum
desejocrueldesevingardeles.Essasleisimpediamqueosjudeusfrequentassemescolas
estaduais,forçava-osacederdinheiroepropriedadeseosfaziausarumaestrelaamarela.Os
judeusforamcercadoseforçadosamoraremguetos–partessuperpopulosasdascidadesquese
tornaramprisõesparaeles.Acomidaeraescassa,eavidaeradifícil.Masasoluçãofinal
chegoucomumnovoníveldemaldade.AdecisãodeHitlerdematarmilhõesdepessoas
simplesmenteporcausadasuaraçasignificavaqueosnazistasprecisavamdeumamaneirade
transferirosjudeusdascidadesparalugaresondepodiamsermortosemgrandequantidade.Os
camposdeconcentraçãoexistentesforamtransformadosemfábricasparaintoxicarcomgáse
queimarcentenasdepessoaspordia.ComomuitosdessescamposficavamnaPolônia,alguém
precisavaorganizarostrensquetransportavamosjudeusparaamorte.
EnquantoEichmannficavasentadoemumescritórioorganizandopapéisedando
telefonemasimportantes,milhõesdejudeusmorriamcomoresultadodoqueelefazia.Alguns
pereciamdefebretifoideoudefome,enquantooutroseramobrigadosatrabalharatémorrer,mas
amaioriaeramortacomgás.NaAlemanhanazista,ostrensandavamnohorário–Eichmanne
pessoascomoelegarantiamisso.Suaeficiênciamantinhaosvagõescheios.Dentrodeles,
homens,mulheresecrianças,todosemumalongaedolorosajornadaparaamorte,geralmente
semcomidaouágua,muitasvezessentindointensofriooucalor.Muitosmorriamnocaminho,
principalmenteosvelhosedoentes.
Ossobreviventeschegavamfracoseaterrorizadosapenasparaseremforçadosaentrarem
câmarasdegásdisfarçadasdechuveiros,ondetodosdeviamentrardespidos.Asportaseram
trancadas.EraaliqueosnazistasosmatavamcomgásZyklon.Oscorposeramqueimados,eseus
pertences,saqueados.Osmaisfortes,quandonãoeramescolhidosparamorrerassimque
chegavam,eramforçadosatrabalharemcondiçõesatrozesecompoucacomida.Osguardas
nazistasbatiamouatiravamnelespordiversão.
Eichmannteveumpapelsignificativonessescrimes.Contudo,depoisdaSegundaGuerra
Mundial,conseguiuescapardasforçasaliadaseacabouchegandoàArgentina,ondemorou
algunsanosemsegredo.Em1960,noentanto,elefoiencontradoecapturadoemBuenosAires
pormembrosdoMossad,apolíciasecretaisraelense.ElefoidrogadoeenviadoparaIsraelpara
julgamento.
SeriaEichmannumsujeitomaligno,umsádicoquesedeleitavacomosofrimentodos
outros?Issoeraoquetodosacreditavamantesdeojulgamentocomeçar.Teriaoutromotivopara
participardesseholocausto?Durantemuitosanosseutrabalhoforaencontrarformaseficazesde
enviaraspessoasparaamorte.Certamentesóummonstroseriacapazdedormirànoitedepois
dessetipodetrabalho.
AfilósofaHannahArendt(1906-1975),judiaalemãqueemigrouparaosEstadosUnidos,
relatouojulgamentodeEichmannparaarevistaNewYorker.Elaqueriaficarcaraacaracomum
produtodoEstadototalitárionazista,umasociedadeemquenãohaviaespaçoparaoindivíduo
pensarporsipróprio.Elaqueriaentenderessehomem,terumaideiadecomoeleeraeentender
comoelepodiaterfeitocoisastãoterríveis.
EichmannestavamuitodistantedoprimeironazistaqueArendtconheceu.Elamesmafugiu
dosnazistas,deixouaAlemanhapelaFrança,masporfimsetornouumacidadãdosEstados
Unidos.Aindajovem,quandoestudavanaUniversidadedeMarburg,tiveraaulacomofilósofo
MartinHeidegger.Elesforamamantesduranteumcurtoperíodo,apesardeelesercasadoeela
terapenasdezoitoanos.HeideggerestavaocupadoescrevendoSeretempo(1962),livro
inacreditavelmentecomplexoquemuitaspessoastomamcomoumagrandecontribuiçãoà
filosofia,eoutrascomoumaobrapropositalmenteobscura.Depoiseleviriaaseenvolvercomo
PartidoNazista,apoiandopolíticasantissemitas.Elechegouaretiraronomedeumantigoamigo,
ofilósofoEdmundHusserl,dadedicatóriadeSeretempo.
Agora,emJerusalém,Arendtestavaprestesaconhecerumtipobemdiferentedenazista.
Aliestavaumhomemcomumqueescolheunãopensarmuitonoquefazia.Suanegaçãodo
pensamentoteveconsequênciasdesastrosas,maselenãoeraosádicoperversoqueelaesperava
encontrar.Eraumsujeitocomum,porémigualmenteperigoso:umhomemquenãopensa.Emuma
Alemanhaondeaspioresformasderacismotornaram-seleis,eramuitofácilparaelese
convencerdequeestavafazendoacoisacerta.Ascircunstânciasderam-lheaoportunidadedeter
umacarreiradesucesso,eeleaaceitou.AsoluçãofinaldeHitlerfoiumaoportunidadede
Eichmannsair-sebem,demostrarquepodiafazerumbomtrabalho.Issoédifícildeconceber,e
muitoscríticosdeArendtnãoconsideramqueelaestavacerta,maselasentiaqueelehaviasido
sinceroquandoafirmouqueestavacumprindoseudever.
Diferentementedealgunsnazistas,Eichmannnãopareciamovidoporumforteódioaos
judeus.ElenãotinhanadadamalignidadedeHitler.Haviamuitosnazistasqueficariamfelizes
embateremumjudeunasruasatéamorteporserecusarafazerocumprimento“HeilHitler!”,
maselenãoeraumdeles.Noentanto,aceitouocargooficialnazistae,oqueémuitopiorque
isso,ajudouaenviarmilhõesparaamorte.Mesmoenquantoouviaorelatodasevidênciascontra
ele,Eichmannparecianãoconsiderartãoerradooquetinhafeito.Naopiniãodele,comonão
haviaagidocontranenhumaleienãomataradiretamenteninguém,nempediuqueninguémo
fizesseemseulugar,elehaviasecomportadodemaneirarazoável.Elefoicriadoparaobedecer
àleietreinadoparaseguirordens,etodasaspessoasàsuavoltaestavamfazendoamesma
coisa.Aoexecutarordensdeoutraspessoas,eleevitavasesentirresponsávelpelosresultados
doseutrabalhodiário.
NãohavianecessidadenenhumadeEichmannveraspessoasamontoadasdentrodos
vagõesouvisitaroscamposdeconcentração,entãoelenãofaziaisso.Essehomemdisseàcorte
quejamaispoderiasetornarummédicoporquetinhamedodeversangue.Noentanto,osangue
continuavanasmãosdele.Eleeraoprodutodeumsistemaquedecertaformaoimpediude
pensarcriticamentenasprópriasaçõesenosresultadosqueelasteriamparapessoasreais.Era
comoseelerealmentenãopudesseimaginarosentimentodasoutraspessoas.Prosseguiucoma
crençailusóriaemsuainocênciadurantetodoojulgamento.Oueraisso,oueletinhaconcluído
queamelhormaneiradesedefendereradizerqueestavaapenasobedecendoaordens;seocaso
foiesse,eleconvenceuArendt.
Arendtusouaspalavras“abanalidadedomal”paradescreveroqueviuemEichmann.Se
algoé“banal”,écomum,entedianteesemoriginalidade.Segundoela,omaldeEichmannera
banalnosentidodeseromaldeumburocrata,deumgerente,enãodeumapessoamá.Eleerao
exemplodeumtipodehomemcomumquepermitiuqueasvisõesnazistasafetassemtudooque
fazia.
AfilosofiadeArendtfoiinspiradapeloseventosqueaconteciamàsuavolta.Elanãofoio
tipodefilósofaquepassouavidapensandosobreideiaspuramenteabstratas,oudebatendo
incessantementesobreosignificadoprecisodeumapalavra.Suafilosofiaestavaligadaà
históriarecenteeàprópriaexperiência.OqueescreveuemseulivroEichmannemJerusalém
foibaseadoemsuasobservaçõesdeumhomemedostiposdelinguagemejustificativasqueele
dava.Apartirdoqueviu,eladesenvolveuexplicaçõesmaisgeraissobreomalemumEstado
totalitárioeseusefeitossobreaquelesquenãoresistiramaseuspadrõesdepensamento.
Eichmann,assimcomomuitosnazistasdaqueleperíodo,nãoconseguiaenxergarosfatos
pelaperspectivadosoutros.Nãoeracorajosoosuficienteparaquestionarasregrasquelheeram
dadas:apenasbuscavaamelhormaneiradesegui-las.Careciadeimaginação.Arendtdescreveu-
ocomorasoedesmiolado–emboraissotambémpudesseserumaatuação.Fosseeleum
monstro,teriasidohorripilante.Maspelomenososmonstrossãorarosegeralmentemuitofáceis
deidentificar.Oquetalvezfosseaindamaishorripilanteeraofatodeeleparecertãonormal.
Eleeraumhomemcomumque,pornãoquestionaroquefazia,fezpartedeumdosatosmais
malignosconhecidopelahumanidade.Époucoprovávelquesetornasseumhomemmaucasonão
tivessevividonaAlemanhanazista.Ascircunstânciasestavamcontraele.Eleobedeciaaordens
imorais.Eobedeceraordensnazistas,naopiniãodeArendt,eraomesmoqueapoiarasolução
final.Aonãoquestionaroquelhediziamparafazereaoaceitaraquelasordens,Eichmann
participoudoassassinatoemmassa,mesmoque,dopontodevistadele,estivesseapenascriando
tabelasdehorárioparaaspartidasdetrem.Emdeterminadomomentodojulgamento,elechegou
adizerqueagiadeacordocomateoriadodevermoraldeImmanuelKant–comosetivessefeito
acoisacertaporseguirordens.ElenãoconseguiuentenderdejeitonenhumqueKantacreditava
quetratarossereshumanoscomrespeitoedignidadeerafundamentalparaamoral.
KarlPopperfoiumintelectualvienensequetevesortesuficienteparaescapardo
holocaustoedostrensbemorganizadosdeEichmann.
CAPÍTULO36
Aprendendocomoserros
KARLPOPPERETHOMASKUHN
Em1666,umjovemcientistaestavasentadoemumjardimquandoumamaçãcaiunochão.Issoo
levouapensarporqueasmaçãscaíamdiretamenteparabaixoemvezdeiremparaoladoou
paracima.OcientistaeraIsaacNewton,eoincidenteinspirou-oaelaborarateoriada
gravidade,umateoriaqueexplicavaomovimentotantodosplanetasquantodasmaçãs.Maso
queaconteceudepois?VocêachaqueNewtonreuniuevidênciasque-semsombradedúvidas
quesuateoriaeraverdadeira?Não,segundoKarlPopper(1902-1994).
Oscientistas,assimcomotodosnós,aprendemcomseuserros.Aciênciaavançaquando
percebemosquedeterminadomododepensarsobrearealidadeéfalso.Isso,emduasfrases,era
avisãodeKarlPopperdecomofuncionaamelhoresperançadahumanidadeemrelaçãoao
conhecimentosobreomundo.AntesdePopperdesenvolversuasideias,amaioriadaspessoas
acreditavaqueoscientistaspartemdeumpressentimentosobrecomoomundofuncionaedepois
reúnemevidênciasquemostramqueopressentimentoestavacorreto.
Oqueoscientistasfazem,segundoPopper,étentarprovarquesuasteoriassãofalsas.
Paratestarumateoria,éprecisoverseelapodeserrefutada(apresentadacomofalsa).Um
cientistatípicocomeçacomumcorajosopalpiteouconjunturaqueeletentadestruircomuma
sériedeexperimentosouobservações.Aciênciaéumempreendimentocriativoeestimulante,
masnãoprovaquealgoéverdadeiro–tudooqueelafazéselivrardefalsasvisõese,espera-
se,aproximar-segradativamentedaverdadenesseprocesso.
PoppernasceuemVienaem1902.Emborasuafamíliatenhaseconvertidoaocristianismo,
eleeradescendentedejudeus.QuandoHitlersubiuaopodernadécadade1930,Popper
sabiamentesaiudopaís,mudando-separaaNovaZelândiaedepoisparaaInglaterra,ondese
estabeleceueassumiuumcargonaEscoladeEconomiadeLondres.Quandojovem,interessava-
seamplamenteporciência,psicologia,políticaemúsica,masafilosofiaerasuaverdadeira
paixão.Aofimdavida,Popperhaviafeitoimportantescontribuiçõestantoparaafilosofiada
ciênciaquantoparaafilosofiapolítica.
AtéPoppercomeçaraescreversobreométodocientífico,muitoscientistasefilósofos
acreditavamqueamaneiradefazerciênciaeraprocurarevidênciasquedessemsuporteasuas
hipóteses.Sequiséssemosprovarquetodososcisnessãobrancos,teríamosdefazerumasérie
deobservaçõesdecisnesbrancos.Setodososcisnesqueobservássemosfossembrancos,seria
razoávelpresumirqueahipótese“Todososcisnessãobrancos”fosseverdadeira.Essetipode
raciocíniovaide“Todososcisnesquevisãobrancos”paraaconclusão“Todososcisnessão
brancos”.Mascertamenteumcisnequenãofoiobservadopoderiasernegro.Hácisnesnegrosna
Austrália,porexemplo,eemmuitoszoológicosdomundointeiro.Então,adeclaração“Todosos
cisnessãobrancos”nãoseguelogicamentedaevidência.Mesmoquevocêtenhavistomilhares
decisnesetodosfossembrancos,ahipóteseaindapoderiaserfalsa.Aúnicamaneiradeprovar
conclusivamentequetodossãobrancosévendotodososcisnes.Sepelomenosumcisnenegro
existe,aconclusão“Todososcisnessãobrancos”terásidorefutada.
Essaéumaversãodoproblemadaindução,sobreoqualDavidHumeescreveunoséculo
XVIII.Éafontedoproblema.Adeduçãoéumtipodeargumentológiconoqual,seaspremissas
(suposiçõesiniciais)sãoverdadeiras,aconclusãodeveserverdadeira.Então,paratomarum
exemplofamoso,“Todososhomenssãomortais”e“Sócrateséumhomem”sãoduaspremissas
verdadeirasapartirdasquaissededuzaconclusão“Sócratesémortal”.Seriaumacontradição
sedisséssemosque“Todososhomenssãomortais”eque“Sócrateséumhomem”,mas
negássemosaverdadedadeclaração“Sócratesémortal”.Seriacomodizer“Sócrateséenãoé
mortal”.Umadasmaneirasdepensarnaquestãoéque,comadedução,adeduçãodaverdadeda
conclusãoestádealgumaformacontidanaspremissas,ealógicasimplesmentearevela.
Vejamosoutroexemplodededução:
Primeirapremissa:Todosospeixestêmguelras.
Segundapremissa:Johnéumpeixe.
Conclusão:Logo,Johntemguelras.
Seriaabsurdodizerqueaprimeiraeasegundapremissassãoverdadeiras,masa
conclusãoéfalsa.Seriacompletamenteilógico.
Ainduçãoémuitodiferentedisso.Ainduçãonormalmentepartedeumaseleçãode
observaçõesparaumaconclusãogeral.Sepercebemosquenasúltimasquatrosemanaschoveu
todaterça-feira,podemosgeneralizarapartirdissoquesemprechoveàsterças-feiras.Esseseria
umcasodeindução.Sóseriaprecisoumaterça-feirasemchuvaparadestruiraafirmaçãodeque
semprechoveàsterças-feiras.Quatroterças-feiraschuvosasconsecutivassãoumaamostra
pequenadetodasasterças-feiraspossíveis.Masmesmoquefizéssemosmuitasemuitas
observações,comofaríamoscomoscisnesbrancos,poderíamosnosfrustrarpelaexistênciade
umúnicocasoquenãoseencaixassenageneralização:umaterça-feirasecaouumcisnequenão
fossebranco,porexemplo.Esseéoproblemadaindução,oproblemadajustificativabaseadano
métododainduçãoquandoparecetãoduvidosa.Comosabemosqueopróximocopod’águaque
bebermosnãovainosenvenenar?Resposta:todososcoposd’águaquebebemosnopassado
eramnormais.Dessemodo,presumimosqueodeagoratambémserá.Usamosessetipode
raciocíniootempotodo,emborapareçaquenãoestamoscompletamenteembasadospara
acreditarnele.Pressupomospadrõesnanaturezaquetantopodemquantonãopodemserreais.
Sevocêachaqueaciênciaavançapelaindução,comomuitosfilósofospensavam,então
precisaencararoproblemadaindução.Comoaciênciapodesebasearemumestilode
raciocíniotãoduvidoso?AvisãodePopperdecomoaciênciasedesenvolveprimorosamentese
esquivadesseproblema.Segundoele,aciêncianãoconfianaindução.Oscientistaspartemde
umahipótese,umpalpiteinteligentesobreanaturezadarealidade.Umexemplopoderiaser
“Todososgasesseexpandemquandoaquecidos”.Essaéumahipótesesimples,masaciênciada
vidarealenvolvemuitacriatividadeeimaginaçãonesseestágio.Oscientistasencontramsuas
ideiasemmuitoslugares:oquímicoAugustKekulé,porexemplo,teveumsonhofamosonoqual
umacobramordiaoprópriorabo,oquedeuaeleaideiaparaahipótesedequeaestruturada
moléculadebenzenoéumanelhexagonal–hipóteseque,desdeentão,sobreviveàstentativasda
ciênciadeprová-lacomofalsa.
Oscientistas,então,encontramummododetestartaishipóteses–nessecaso,pegando
umaquantidadeenormedediferentesgaseseaquecendo-os.Entretanto,“testar”nãosignifica
encontrarevidênciasparasustentarahipótese;testarsignificatentarprovarqueahipótesepode
sobreviveratentativasderefutá-la.Teoricamente,oscientistasprocurarãoumgásquenãose
encaixenahipótese.Lembre-sedeque,nocasodoscisnes,sóseriaprecisoumcisnenegropara
arruinarageneralizaçãodequetodososcisnessãobrancos.Demaneirasemelhante,sóseria
precisoumúnicogásquenãoexpandissequandoaquecidoparadestruirahipótesedeque
“Todososgasesseexpandemquandoaquecidos”.
Seumcientistarefutaumahipótese–ouseja,mostraqueelaéfalsa–,issoresultaemum
conhecimentonovo:oconhecimentodequeahipóteseéfalsa.Ahumanidadeavançaporque
aprendemosalgumacoisa.Observarváriosgasesqueseexpandemquandoaquecidosnãonos
daráconhecimento–exceto,talvez,umpoucomaisdeconfiançaemnossahipótese.Masum
contraexemplorealmentenosensinaalgo.ParaPopper,acaracterísticaprincipaldequalquer
hipóteseéterdeserrefutável.Eleusavaessaideiaparaexplicaradiferençaentreciênciaeo
quechamavade“pseudociência”.Umahipótesecientíficaéaquelaquepodeserprovadacomo
errada:elafazprediçõesquepodemsermostradascomofalsas.Seeudigo“Háfadasinvisíveis
eindetectáveismefazendodigitarestafrase”,nãohánenhumaobservaçãoquepossamosfazer
paraprovarqueaminhadeclaraçãoéfalsa.Seasfadassãoinvisíveisenãodeixamrastro
nenhum,nãohácomomostrarqueaafirmaçãodequeelasexistemsejafalsa.Elanãoérefutável
e,porissonão,podeserumadeclaraçãocientífica.
Popperpensavaquemuitasdeclaraçõesfeitassobreapsicanálise(verCapítulo30)não
podiamserrefutadasdessaforma.Paraele,nãoerapossíveltestá-las.Porexemplo,sealguém
dizquetodossãomotivadospordesejosinconscientes,nãoháumtestequeproveisso.Todae
qualquerevidência,inclusiveanegaçãodaspessoasdequesãomotivadaspordesejos
inconscientes,são,segundoPopper,meramenteaceitascomoprovasdequeapsicanáliseé
válida.Opsicanalistadirá:“Ofatodenegarmosoinconscientedemonstraquetemosumforte
desejoinconscientedecontestaropai”.Contudo,essadeclaraçãonãopodesertestada,poisnão
háevidênciaimaginávelquemostrequeelaéfalsa.Consequentemente,argumentavaPopper,a
psicanálisenãoeraumaciência.Elanãopodenosdarconhecimentotalcomopodeaciência.
Popperatacouasexplicaçõesmarxistasdahistóriadamesmamaneira,argumentandoquetodo
resultadopossívelcontariacomomaisumelementoafavordavisãodequeahistóriada
humanidadeéumahistóriadelutadeclasses.Outravez,ahistóriaerabaseadaemhipótesesnão
refutáveis.
Emcontraste,ateoriadeAlbertEinsteindequealuzeraatraídapelosolerarefutável.
Issofezdelaumateoriacientífica.Em1919,observaçõesdaaparenteposiçãodasestrelas
duranteumeclipsesolarnãoconseguiramrefutá-la.Maspoderiamterrefutado.Aluzdasestrelas
nãoeranormalmentevisível;porém,sobascondiçõesrarasdeumeclipse,oscientistas
conseguiramverqueasaparentesposiçõesdosplanetaseramasposiçõesprevistaspelateoria
deEinstein.Seosplanetasparecessemestaremoutrolugar,issodestruiriaateoriadeEinstein
decomoaluzéatraídaporcorposmuitopesados.Poppernãopensavaqueessasobservações
provavamqueateoriadeEinsteineraverdadeira.Masofatodeateoriapodersertestadaeo
fatodequeoscientistasforamincapazesdemostrarqueelaerafalsacontamaseufavor.
Einsteinfezprevisõesquepoderiamestarerradas,masnãoestavam.
MuitoscientistasefilósofosficaramprofundamenteabaladoscomadescriçãodePopper
dométodocientífico.PeterMedawar,ganhadordoPrêmioNobeldeMedicina,porexemplo,
disse:“PensoqueKarlPopperéincomparavelmenteomaiorfilósofodaciênciadetodosos
tempos”.Oscientistasgostavamparticularmentedadescriçãodesuaatividadecomocriativae
imaginativa;elestambémsentiamquePopperhaviaentendidocomoelesdefatorealizavamseu
trabalho.OsfilósofostambémficaramencantadospelomodocomoPoppercontornouodifícil
problemadaindução.Em1962,noentanto,ohistoriadordaciênciaefísiconorte-americano
ThomasKuhnpublicouumlivrochamadoAestruturadasrevoluçõescientíficas,quecontava
umahistóriadiferentearespeitodosavançoscientíficos,sugerindoquePoppertinhaentendido
tudoerrado.KuhnacreditavaquePoppernãohaviaexaminadoobastanteahistóriadaciência.
Seotivesse,teriavistosurgirumpadrão.
Namaiorpartedotempo,ocorreoquechamamosde“ciêncianormal”.Oscientistas
trabalhamdeacordocomumquadrodereferênciaou“paradigma”compartilhadopelos
cientistasdamesmaépoca.Então,porexemplo,antesdeaspessoasentenderemqueaTerragira
aoredordosol,oparadigmaeradequeosolgiravaaoredordaTerra.Osastrônomos
pesquisavamdeacordocomessequadrodereferênciaetinhamexplicaçõesparatodasas
evidênciasquenãoseencaixavamnessequadro.Trabalhandoconformeesseparadigma,um
cientistacomoCopérnico,quepropôsaideiadequeaTerragiravaaoredordosol,teriasido
vistocomoalguémqueerrounoscálculos.SegundoKuhn,láforanãoháfatosesperandoserem
descobertos;aocontrário,oquadrodereferênciaouparadigma,atécertoponto,determinaoque
podemospensar.
AscoisasficaminteressantesquandoaconteceoqueKuhnchamavade“mudançade
paradigma”.Umamudançadeparadigmaacontecequandotodoummododepensamentoé
derrubado.Issopodeacontecerquandooscientistasencontramfatosquenãoseencaixamno
paradigmaexistente–comoobservaçõesquenãofazemsentidonoparadigmadequeosolgira
aoredordaTerra.Mesmoassim,podelevarumbomtempoparaqueaspessoasabandonemseu
antigomododepensar.Oscientistasquepassaramavidatrabalhandosegundoumparadigma
geralmentenãorecebemcomtantafacilidadeummododiferentedeolharomundo.Quandopor
fimelesmudamparaumnovoparadigma,umnovoperíododeciêncianormalpodecomeçar,
dessaveztrabalhando-sedeacordocomoquadrodereferência.Eassimtudoprossegue.Foi
issooqueaconteceuquandoavisãodequeaTerraeraocentrodouniversofoisuperada.
Quandoaspessoascomeçaramapensarsobreosistemasolardessamaneira,foiprecisofazer
muitaciêncianormalparaentenderocaminhodosplanetasaoredordosol.
NãoédesurpreenderquePoppernãotenhaconcordadocomessaexplicaçãodahistória
daciência,emboraconcordassequeoconceitode“ciêncianormal”fosseútil.Umaquestão
intriganteéseelefoiumcientistacomumparadigmaultrapassadoousechegoumaispertoda
verdadesobrearealidadedoqueKuhn.
Oscientistasusamexperimentosreais;osfilósofos,poroutrolado,tendemacriar
experimentosmentaisparatornarseusargumentosplausíveis.AsfilósofasPhilippaFooteJudith
JarvisThomsondesenvolveramváriosexperimentosmentaiscuidadosamenteconstruídosque
revelamimportantescaracterísticasdonossopensamentomoral.
CAPÍTULO37
Otremdesenfreadoeoviolinistaindesejado
PHILIPPAFOOTEJUDITHJARVISTHOMSON
Umdia,vocêsaiparapassearevêumtremdesenfreadoindonadireçãodecincotrabalhadores.
Omaquinistaestáinconsciente,provavelmenteportersofridouminfarto.Senadaforfeito,todos
morrerão.Otrempassaráporcimadeles,poisestáindorápidodemaisenãohaverátempode
saíremdocaminho.Noentanto,háumaesperança.Háumabifurcaçãonostrilhospoucoantesde
ondeestãooscincohomens,enaoutralinhaháapenasumtrabalhador.Vocêestábempertoda
chavequemudaosentidodostrilhos,demodoqueotremmudededireçãoemateapenasum
trabalhadoremvezdecinco.Mataressehomeminocenteéacoisacertaafazer?Emtermosde
quantidade,claramenteé:vocêsalvacincopessoasemataapenasuma.Issomaximizariaa
felicidade.Paraamaioriadaspessoas,essaéacoisacertaafazer.Navidareal,seriamuito
difícilvirarachaveeverumapessoamorrercomoresultado,masseriaaindapiornãofazer
nadaevernadamenosquecincopessoasseremmortas.
Estaéumaversãodeumexperimentomentaloriginalmentecriadopelafilósofabritânica
PhilippaFoot(1920-2010).Elaestavainteressadaemsaberporquesalvarcincopessoasnos
trilhoseraaceitáveleporque,emoutroscasos,sacrificarumapessoaparasalvarmuitasnãoera
aceitável.Imagineumapessoasaudávelentrandonaaladeumhospital.Ládentrohácinco
pessoasqueprecisamdesesperadamentedeváriosórgãos.Seumadelasnãoreceberum
transplantedecoração,certamentemorrerá.Aoutraprecisadeumfígado,outradeumrime
assimpordiante.Seriaaceitávelmataropacientesaudávelefatiarocorpodeleparaforneceros
órgãosparaospacientesnãosaudáveis?Dificilmente.Ninguémacreditaqueseriaaceitável
matarapessoasaudável,tirarocoração,ospulmões,ofígado,osrinseimplantá-losnasoutras
cinco.Noentanto,esseéumcasodesacrificarumparasalvarcinco.Qualadiferençadessecaso
paraoexemplodotrem?
Umexperimentomentaléumasituaçãoimagináriacriadaparadespertarsentimentos,ouo
queosfilósofoschamamde“intuições”,sobredeterminadaquestão.Osfilósofosfazemamplo
usodeles.Osexperimentosmentaispermitemquenosconcentremosbemmaisnoqueestáem
jogo.Aqui,aquestãofilosóficaé:“Quandoéaceitávelsacrificarumavidaparasalvarmais
vidas?”.Ahistóriasobreotrempermite-nospensarsobreisso.Elaisolaosprincipaisfatorese
tambémnosmostrasesentimosounãoquetalaçãosejaerrada.
Algumaspessoasdiriamquevocêjamaisdeveriavirarachavenesseexemploporque
seriaomesmoque“brincardeDeus”:decidirquemmorreequemdeveviver.Amaioriadas
pessoas,noentanto,achaquevocêdeveriasimvirarachave.
Agoraimagineumcasorelacionado.Afilósofanorte-americanaJudithJarvisThomson
criououtraversãodoproblemaoriginal.Otremagoracorrenumaúnicalinhaquevaidiretoaté
oscincoinfelizestrabalhadoresquecertamenteserãomortos,anãoserquevocêfaçaalguma
coisa.Vocêestáemcimadeumaponte,epertodevocêháumhomembemgordo.Eleépesadoo
suficienteparaqueotremdesacelereepareantesdeatingiroscincohomens,masparaissovocê
precisaempurrá-lodaponte.Supondoquevocêconsigaempurrá-lonafrentedotrem,vocêo
faria?
Amaioriadaspessoasachaqueesseéumcasomaisdifíciletendeadizer“não”,apesar
dofatodeque,tantonessecasoquantonodabifurcaçãoedachavequepodealteraradireção
dostrilhos,aconsequênciadassuasaçõeséamortedeumapessoa,enãodecinco.Naverdade,
empurrarohomemdaponteassemelha-seaumassassinato.Seasconsequênciassãoasmesmas
nosdoiscasos,entãonãodeveriaserumproblema.Senoprimeiroexemploforcorretomudara
chave,certamentedeveriasercorretoempurrarohomemnafrentedotremnosegundoexemplo.
Issoparececonfuso.
Seasituaçãoimagináriadeempurraralguémsobreumapontesugeredificuldadesfísicas,
ousevocêéimpedidopelabrutalidadedeterempurrarohomemparaamorte,ocasopodeser
revistodemodoquehajaumalçapãonaponte.Usandoomesmotipodealavancaqueno
primeirocasocomachavedetrocadostrilhos,vocêpodejogarohomemnocaminhodotrem
comomínimoesforço.Bastaencostaramãonaalavanca.Muitaspessoasveemesseexemplo
comomoralmentedistantedabifurcaçãonostrilhos.Porquê?
Achamadaleidoduploefeitoéumaexplicaçãodeporquepensamosqueocasoda
bifurcaçãonostrilhosédiferentedocasodohomemgordo.Trata-sedacrençadequenãohá
problemas,porexemplo,embateremalguématéamortedesdequesejaparasedefenderquando
nadapodeprotegervocê.Osefeitoscolateraisprevisíveisdeumaaçãocomboaintenção(nesse
caso,salvarasimesmo)podemseraceitáveis,masomalpropositalnão.Nãoécertoenvenenar
alguémqueestáplanejandomatarvocê.Noprimeirocaso,háumaintençãoaceitável,sóque
executaraaçãocausaráamortedeumapessoa.Nosegundocaso,vocêpretendemataralguém,o
quenãoéaceitável.Paraalgumaspessoas,issoresolveoproblema.Outraspessoasjápensam
queoprincípiododuploefeitoéumerro.
Talvezessescasospareçammuitoforçadosenãotenhamnenhumarelaçãocomavida
cotidiana.Emcertosentido,éverdade.Essescasosnãopretendemserreais.Sãoapenas
experimentosmentaisfeitosparaesclarecernossascrenças.Porém,detemposemtempos,
surgemsituaçõesnavidarealquelevamadecisõessemelhantes.Porexemplo,duranteaSegunda
GuerraMundial,osnazistasatirarambombasemdeterminadaspartesdeLondres.Umespião
alemãotornou-seagenteduplo.Osbritânicostinhamachancedeenviarinformaçõesequivocadas
paraosalemães,dizendoqueosfoguetesestavamcaindobemanortedosalvospretendidos.O
efeitodissoseriaqueosalemãesmudariamoalvoe,emvezdeosfoguetescaírememáreas
muitopopulosasdeLondres,elescairiammaisaosul,sobreopovodeKenteSurrey.Emoutras
palavras,issocausariaamortedemenospessoas.Nessecaso,osbritânicosdecidiramnão
brincardeDeus.
Emumtipodiferentedesituaçãoreal,osparticipantesdecidiramagir.Nodesastrede
Zeebruggeem1987,quandoumaembarcaçãoafundouedezenasdepassageiroslutavamparasair
domargélido,umrapazquesubianumaescadadecordasbuscandosegurançaficouparalisado
detantomedoenãoconseguiacontinuar.Eleficouparadonamesmaposiçãoporpelomenosdez
minutos,impedindoquetodososoutrossaíssemdomar.Seaspessoasnãosaíssemdomar
rapidamente,ouseafogariamoumorreriamdefrio.Porfim,quemestavanaáguaopuxouda
escadaeconseguiuescaparemsegurança.Orapazcaiunaáguaemorreuafogado.Devetersido
angustiantetomaradecisãodepuxarorapazdaescada,masnessascondiçõesextremas,comono
exemplodotrem,sacrificarumapessoaparasalvarmuitasprovavelmentefoiacoisacertaa
fazer.
Osfilósofosaindaestãodiscutindooexemplodotremesobrecomoeledeveriaser
resolvido.ElestambémdiscutemumoutroexperimentomentalquefoielaboradoporJudith
JarvisThomson(nascidaem1929).Elaqueriamostrarqueumamulherqueengravidoumesmo
usandocontraceptivosnãotinhaodevermoraldedarseguimentoàgravidezeterobebê.
Abortar,nessecaso,nãoseriaagirdeformamoralmenteerrada.Terobebênessascircunstâncias
seriaumatodecaridade,masnãoumdever.Tradicionalmente,osdebatessobreamoralidadedo
abortoconcentraram-senopontodevistadofeto.Oargumentodelafoirelevanteporterdado
grandeimportânciaàperspectivadamulher.Vejamosoexemplo.
Imagineumfamosoviolinistaquetemumproblemanorim.Suaúnicachancede
sobreviveréserconectadoaumapessoaquetemomesmotiporarodesangue.Vocêtemo
mesmotipodesangue.Umamanhã,vocêacordaedescobreque,enquantodormia,osmédicos
conectarameleaosseusrins.Thomsondizque,nessasituação,vocênãotemodeverdemantê-lo
ligadoavocê,muitoemborasaibaqueelemorrerásevocêpuxarostubos.Damesmamaneira,
sugereela,seumamulherengravidamesmousandocontraceptivos,ofetoemdesenvolvimento
nãotemodireitoautomáticodeusarocorpodela.Ofetoécomooviolinista.
AntesdeThomsonapresentaresseexemplo,muitaspessoasachavamqueaquestãocentral
era“Ofetoéumapessoa?”.Acreditava-seque,sepudessesermostradoqueumfetoerauma
pessoa,entãooabortoobviamenteseriaimoralemqualquercaso.Oexperimentomentalde
Thomsonsugereque,mesmosendoofetoumapessoa,issonãoresolveaquestão.
Obviamente,nemtodosconcordamcomessaresposta.Algumaspessoasaindaacreditam
quenãodevemosbrincardeDeusseacordarmoscomumviolinistaconectadoaosnossosrins.
Seriaumavidadifícil,anãoserquerealmenteamássemososomdoviolino.Masaindaseria
erradomataroviolinistamesmoquenãotenhamosescolhidoajudá-lo.Domesmomodo,muitas
pessoasacreditamquejamaisumagravidezsaudáveldeveriaserinterrompidaseamulhernão
tivesseaintençãodeengravidareusassecontraceptivos.Esseinteligenteexperimentomental,
entretanto,trazàtonaosprincípiosquesubjazemaessesdesacordos.
OfilósofopolíticoJohnRawlstambémusouumexperimentomental,emseucasopara
investigaranaturezadajustiçaeosmelhoresprincípiosparaorganizarasociedade.
CAPÍTULO38
Justiçapormeiodaignorância
JOHNRAWLS
Talvezvocêsejarico.Talvezsejasuper-rico.Masamaioriadenósnãoérica,ealgumas
pessoassãotãopobresquepassamamaiorpartedesuacurtavidafamintasedoentes.Issonão
parecejustooucorreto–ecertamentenãooé.Sehouvesseaverdadeirajustiçanomundo,
nenhumacriançaestariafamintaenquantooutrastêmtantodinheiroquesequersabemoquefazer
comele.Todososdoentesteriamacessoabonstratamentosmédicos.OspobresdaÁfricanão
seriampioresdoqueospobresdosEstadosUnidosoudaGrã-Bretanha.OsricosdoOcidente
nãoseriammilharesdevezesmaisricosdoqueaquelesnascidosemdesvantagemsemterculpa
porisso.Justiçadizrespeitoatrataraspessoasdemaneirarazoável.Hápessoasaonossoredor
cujavidaérepletadecoisasboas,eoutrasque,semterculpa,têmpoucasescolhassobreomodo
comosobrevivem:nãopodemescolheroprópriotrabalho,nemmesmoacidadeondequerem
viver.Algumaspessoasquepensamnessasdesigualdadessimplesmentedizem“Ah,sim,avida
nãoéjusta”ebalançamosombros.Emgeral,essaspessoasforamparticularmentesortudas;
outraspassarãootempopensandoemcomoasociedadepoderiasermaisbemorganizadae
talvezatétentemmelhorá-la.
JohnRawls(1921-2002),acadêmicotranquiloemodestodeHarvard,escreveuumlivro
quemudouomododeaspessoaspensaremnessascoisas.Olivrochama-seUmateoriada
justiça(1971)efoioresultadodequasevinteanosdedurasreflexões.Trata-sedeumtextofeito
porumprofessorparaoutrosprofessoreseescritoemumestiloacadêmicobastanteseco.
Diferentementedamaioriadasobrasdessetipo,noentanto,elenãoficoujuntandopoeiranuma
biblioteca–longedisso.Tornou-seumcampeãodevendas.Decertaforma,éimpressionanteque
tantaspessoasotenhamlido.Contudo,suasideiasprincipaiseramtãointeressantesqueolivro
foirapidamentedeclaradoumdosmaisinfluentesdoséculoXX,tendosidolidoporfilósofos,
advogados,políticosemuitosoutros–algoqueopróprioRawlsjamaisteriasonhadoser
possível.
RawlslutounaSegundaGuerraMundialeestavanoPacíficonodia6deagostode1945
quandoabombaatômicafoilançadasobreacidadejaponesadeHiroshima.Rawlsfoi
profundamenteafetadopeloquevivenciounaguerraeacreditavatersidoerradoousodearmas
nucleares.Comomuitosqueviveramnaqueleperíodo,elequeriacriarummundomelhor,uma
sociedademelhor.Masessamaneiradeprovocaramudançaestavanopensamentoenaescrita,e
nãoemseengajaracausasougrupospolíticos.EnquantoescreviaUmateoriadajustiça,a
guerradoVietnãestavaemfúria,eimensosprotestosantiguerra–nemsemprepacíficos–
aconteciamnosEstadosUnidos.Rawlsescolheuescreveracercadequestõesabstratasgerais
sobrejustiçaemvezdeseenredarpelasquestõesdomomento.Nocoraçãodesuaobraestavaa
ideiadequeprecisamossaberclaramentecomoviverjuntoseasmaneiraspelasquaisoEstado
influencianossasvidas.Paraquenossaexistênciasejasuportável,precisamoscooperar.Mas
como?
Imaginequevocêtenhadecriarumasociedadenovaemelhor.Umadasperguntasafazer
poderiaser“Quemficacomoquê?”.Sevocêmoranumabelamansãocompiscinaeempregados
etemumjatinhoparticularprontoparalevá-loaumailhatropical,provavelmenteimaginaum
mundoemquealgumaspessoassãomuitoricas–talvezasquetrabalharammais–eoutrasão
muitomaispobres.Sevocêestávivendonapobrezaagora,provavelmentepensaránuma
sociedadeemqueninguémpodesermilionário,umasociedadeemquetodosganhamuma
parcelaigualdoqueestádisponível:jatinhosparticularesnãosãopermitidos,mashámelhores
chancesparaaspessoasdesafortunadas.Anaturezahumanaéassim:aspessoastendemapensar
emsuaposiçãoquandodescrevemummundomelhor,querpercebamissoounão.Essespré-
juízosepreconceitosdistorcemopensamentopolítico.
AideiabrilhantedeRawlsfoicriarumexperimentomental–queelechamoude“a
posiçãooriginal”–quesubestimaalgunsdospreconceitosegoístasquetemos.Aideiacentralé
bastantesimples:criarumasociedademelhor,massemsaberqualposiçãonessasociedadevocê
ocupará.Vocênãosabeseserárico,pobre,deficiente,deboaaparência,homem,mulher,feio,
burroouinteligente,talentosoousemhabilidades,homossexual,bissexualouheterossexual.Ele
acreditaque,dessemodo,vocêescolheráprincípiosmaisjustosportrásdesseimaginário“véu
daignorância”,poisnãosabeemqualposiçãoestariaouquetipodepessoaseria.Apartirdesse
simplesrecursodeescolhersemsaberoseuprópriolugar,Rawlsdesenvolveusuateoriada
justiça.Talteoriaerabaseadaemdoisprincípios:liberdadeeigualdade.Eleacreditavaque
ambosseriamaceitosporqualquerpessoarazoável.
Oprimeiroprincípioeraodaliberdade.Segundoele,todasaspessoasdeveriamtero
direitoaumamargemdeliberdadesbásicasquenãopudessemsertiradasdelas,comoa
liberdadedecrença,dovotonoslídereseaamplaliberdadedeexpressão.Mesmoquerestringir
algumasdessasliberdadesmelhorasseavidadamaioriadaspessoas,Rawlsacreditavaqueelas
eramtãoimportantesquedeveriamserprotegidasacimadetudo.Comotodososliberais,Rawls
atribuíaumaltovaloraessasliberdadesbásicas,quedeveriamserumdireitodetodos,um
direitoqueninguémpoderiatirardeninguém.
OsegundoprincípiodeRawls,oprincípiodadiferença,tratadaigualdade.Asociedade
deveriaserorganizadaparadaroportunidadeseriquezasmaisiguaisparaosmaisdesprovidos.
Seaspessoasrecebessemdiferentesquantidadesdedinheiro,essadesigualdadesóseria
permitidaseajudassediretamenteosquemaisprecisavam.Umbanqueirosópodeganhar10mil
vezesmaisdoqueotrabalhadorqueganhamenosseestesebeneficiardiretamenteereceberuma
quantidademaiordedinheiroquenãoteriaseobanqueirorecebessemenos.SeRawlsestivesse
nogoverno,ninguémganhariabônusaltos,excetoseosmaispobresganhassemmaisdinheiro
comoresultado.Rawlsacreditaqueesseéotipodemundoqueaspessoasrazoáveis
escolheriamsenãosoubessemseseriampobresouricas.
AntesdeRawls,filósofosepolíticosquepensaramsobrequemdeveriateroquemuitas
vezesdefenderamumasituaçãoqueproduziriaamédiamaisaltaderiqueza.Querdizer,algumas
pessoaspoderiamsersuper-ricas,outrasmoderadamentericasepoucasmuitopobres.Mas,para
Rawls,essasituaçãoseriapiorqueaquelaemquenãohouvessesuper-ricos,massimemque
todostivessemumaparcelamaisigual,mesmoqueaquantidademédiaderiquezafossemenor.
Essaéumaideiadesafiadora–principalmenteparaquemécapazdeganharaltossalários
nomundocomoéhoje.RobertNozick(1938-2002),outroimportantefilósofopolíticonorte-
americano,maisvoltadoparaopoliticamentecorretodoqueRawls,questionouessaideia.
Certamente,osfãsquevãoassistiraumbrilhantejogadordebasquetedeveriamserlivrespara
darumapequenapartedodinheirodoingressoparaaquelejogador.Édireitodelasgastarseu
dinheirodessamaneira.E,semilhõesdepessoasforemvê-lo,ojogadoracabaráganhando
milhões–honestamente,pensavaNizick.Rawlsdiscordavatotalmentedessavisão.Anãoser
queomaispobrefiquemaisricocomoresultadodesseacordo,argumentavaRawls,nãoseria
permitidoqueosganhospessoaisdojogadordebasquetechegassemataisníveis.Demaneira
controversa,Rawlsacreditavaqueserumatletatalentosoouumsujeitoextremamenteinteligente
nãodáautomaticamentedireitodeobterganhosaltíssimosporque,emparte,eleacreditavaque
atributoscomohabilidadesesportivaseinteligênciafossemumaquestãodeboasorte.Vocênão
merecemaissimplesmenteporquetevesortesuficienteparaserocorredormaisrápidoouum
grandejogadordefuteboloumuitoesperto.Terotalentodeumatletaouserinteligenteéo
resultadodeterganhadona“loterianatural”.MuitaspessoasdiscordamenfaticamentedeRawls
eacreditamqueaexcelênciadeveriaserrecompensada.Noentanto,Rawlspensavaquenão
havialigaçãodiretaentreserbomemalgumacoisaemerecerganharmais.
Maseseportrásdovéudaignorânciaalgumaspessoaspreferissemsearriscar?Ese
pensassemqueavidaeraumaloteriaequisessemtercertezadequeháalgumasposições
atraentesaseremocupadasnasociedade?Supostamente,osapostadorescorreriamoriscode
acabarnapobrezasetivessemachancedeserextremamentericos.Portanto,elesprefeririamum
mundocomumavariedademaisampladepossibilidadeseconômicasàqueledescritoporRawls.
Rawlsacreditavaqueaspessoasrazoáveisnãoapostariamaprópriavidadessamaneira.Talvez
estivesseerradoquantoaisso.
DurantegrandepartedoséculoXX,aspessoasperderamocontatocomosgrandes
filósofosdopassado.Umateoriadajustiça,deRawls,foiumadaspouquíssimasobrasde
filosofiapolíticaescritanoséculoquevaleapenasermencionadacomomesmofôlegoqueas
obrasdeAristóteles,Hobbes,Locke,Rousseau,HumeeKant.OpróprioRawlsteriasidomuito
modestoparaconcordarcomisso.Seuexemplo,noentanto,inspirouumageraçãodefilósofos
queescrevemhoje,inclusiveMichaelSandel,ThomasPogge,MarthaNussbaumeWill
Kymlicka:todosacreditamqueafilosofiadeveriaenvolver-secomquestõesprofundasedifíceis
sobrecomopodemosedevemosviverjuntos.Aocontráriodealgunsfilósofosdageração
anterior,elesnãotêmmedodetentarrespondê-lasedeestimularamudançasocial.Eles
acreditamqueafilosofia,naverdade,deveriamudarnossamaneiradeviver,enãoapenasmudar
nossomododediscutircomovivemos.
OutrofilósofoquesustentaessetipodevisãoéPeterSinger.Eleéoassuntodoúltimo
capítulodestelivro.Porém,antesdeexaminarmossuasideias,exploraremosumaquestãoque
vemsetornandomuitopertinentenosdiasdehoje:“Oscomputadorespodempensar?”.
CAPÍTULO39
Oscomputadorespodempensar?
ALANTURINGEJOHNSEARLE
Vocêestásentadonumasala.Nelaháumaportacomumacaixadecorreio.Devezemquando,
umatiradepapelcomumrabiscodesenhadopassapelaportaecainotapete.Suatarefaé
procurarodesenhoemumlivroqueestásobreamesadasala.Cadarabiscotemumsímbolo
correspondentenolivro.Vocêprecisaencontrarorabisconolivro,olharosímboloquelhe
correspondeedepoisencontrarumatiradepapelcomomesmosímboloemumacaixa.
Cuidadosamentevocêcolocaessatiradepapelparaforadasalapelacaixadecorreio.Éisso.
Vocêfazissoduranteumtempoeentãoseperguntaoqueestáacontecendo.
Esteéoexperimentodoquartochinês,criaçãodofilósofonorte-americanoJohnSearle
(nascidoem1932).Trata-sedeumasituaçãoimagináriaparamostrarqueumcomputadornão
poderealmentepensar,mesmoquepareçaestarpensando.Paraentenderoqueestáacontecendo,
éprecisoentenderotestedeTuring.
AlanTuring(1912-1954)foiumdestacadomatemáticodeCambridgequeajudoua
inventarocomputadormoderno.Suasmáquinasdeprocessamentonuméricoconstruídasdurante
aSegundaGuerraMundialemBletchleyPark,Inglaterra,decifraramocódigo“Enigma”usado
peloscomandantesdesubmarinosalemães.Dessemodo,osaliadosconseguiaminterceptaras
mensagensesaberoqueosnazistasestavamplanejando.
Intrigadopelaideiadequeumdiaoscomputadorespoderiamfazermaisdoque
simplesmentedecifrarcódigosedequepoderiamsergenuinamenteinteligentes,em1950ele
sugeriuumtestepeloqualqualquercomputadorteriadepassar.Essetesteficouconhecidocomo
testedeTuringparainteligênciaartificial,maseleochamouoriginalmentedejogodaimitação.
Otestevemdesuacrençadequeointeressantedocérebronãoéofatodeteraconsistênciade
ummingaufrio.Suafunçãoimportamuitomaisdoquesuaflacidezquandoremovidodacabeça
ouofatodesercinza.Oscomputadorespodemserdurosefeitosdecomponenteseletrônicos,
masmesmoassimpodemfazermuitascoisasqueoscérebrosfazem.
Quandojulgamosseumapessoaéounãointeligente,julgamoscombasenasrespostasque
elasdãoadeterminadasperguntas,enãoabrindoseucérebroparavercomoosneurôniosestão
reunidos.Portanto,éjustoque,quandojulguemososcomputadores,prestemosatençãonas
evidênciasexternas,enãonomodocomosãoconstruídos.Devemosprocurarinputseoutputs,e
nãosangueenervosouosfiosetransistoresdentrodeles.EisoqueTuringsugeriu.Um
examinadorficaemumasala,digitandoumaconversanatela.Oexaminadornãosabeseestá
conversandopelatelaounãocomalguémqueestejaemoutrasala,ouseéocomputadorque
geraasrespostas.Seduranteaconversaoexaminadornãoconseguirperceberseháumser
humanorespondendo,ocomputadorpassanotestedeTuring.Seeumcomputadorpassanoteste,
entãoérazoáveldizerqueéinteligente–nãosódemaneirametafórica,comotambémdamaneira
queumserhumanopodeserinteligente.
OexemplodoquartochinêsdeSearle–ocenáriocomosrabiscosescritosnastirasde
papel–quermostrarque,mesmoseumcomputadorpassassenotestedeTuringparaa
inteligênciaartificial,ficariaprovadoqueelenãoentendegenuinamentenada.Lembre-sedeque
vocêestánessequartocomsímbolosestranhosquepassampelacaixadecorreioequedepois
vocêpassaoutrossímbolosdevoltapelamesmacaixaeéguiadoporumlivroderegras.Para
você,atarefanãotemsentido,evocênãofazideiadeporqueaestáexecutando.Contudo,sem
perceber,vocêestárespondendoperguntasemchinês.Vocêsófalaportuguêsenãosabe
absolutamentenadadechinês,masossinaisquechegamàsalasãoperguntasemchinês,eos
sinaisquevocêdevolvesãorespostasplausíveisparaasperguntas.Oquartochinêsnoqualvocê
estáganhaojogodaimitação.Vocêdárespostasquelevariamquemestáláforaapensarque
vocêrealmenteentendeoqueestáfalando.Assim,issolevaacrerqueumcomputadorquepassa
notestedeTuringnãoénecessariamenteinteligente,postoquenasalavocênãotemamenor
ideiadoqueestásendodiscutido.
Searleachaqueoscomputadoressãocomoalguémdentrodoquartochinês.Elesnãosão
inteligentesenãoconseguempensar.Tudooquefazeméreorganizarsímbolosseguindoregras
programadasnelesporseuscriadores.Osprocessosqueusamestãoincorporadosnosoftware.
Masissoémuitodiferentedeentenderverdadeiramentealgumacoisaoudeterumainteligência
genuína.Emoutraspalavras,aspessoasqueprogramamocomputadordãoaeleumasintaxe:ou
seja,fornecemregrassobreaordemcorretaemquedevemprocessarossímbolos.Porém,os
programadoresnãodãoaocomputadorumasemântica:nãoatribuemsignificadosaossímbolos.
Ossereshumanosqueremdizercoisasquandofalam–seuspensamentosrelacionam-secomo
mundodediversasmaneiras.Oscomputadoresqueparecemquererdizercoisasestãoapenas
imitandoopensamentohumano,comosefossemumpapagaio.Pormaisqueumpapagaiopossa
imitarafala,elejamaiscompreenderáoqueestádizendo.Demaneirasemelhante,deacordo
comSearle,oscomputadoresnãopodemdefatoentenderoupensarsobrenada:nãosepode
obterasemânticasomenteapartirdasintaxe.
Ofatodelevaremcontaaquestãodeapessoanasalaentenderounãooqueestá
acontecendoéumdosmotivosdecríticaaoexperimentomentaldeSearle,poisapessoaé
apenasumapartedetodoosistema.Mesmoqueelanãoentendaoqueestáacontecendo,talvez
todoosistema(inclusiveasala,olivrodecódigos,ossímbolosetc.)entenda.Arespostade
Searleaessaobjeçãofoimudaroexperimentomental.Emvezdeimaginarumapessoaemuma
salareorganizandosímbolos,imaginequeapessoatenhamemorizadoolivrointeiroderegrase
estejaláforanomeiodeumcampoentregandoospapéiscomossímbolosapropriados.A
pessoacontinuariasementenderasperguntasindividuais,aindaquedesseasrespostascorretas
paraasperguntasfeitasemchinês.Entenderrequermuitomaisdoquedarasrespostascertas.
Algunsfilósofos,noentanto,continuamconvencidosdequeamentehumanaéexatamente
comoumprogramadecomputador:elesacreditamqueoscomputadoresrealmentepodempensar
epensam.E,seestiveremcertos,entãotalvezumdiasejapossíveltransferiramentedos
cérebrosdaspessoasparaoscomputadores.Sesuamenteéumprograma,sópelofatodeneste
momentoestarfuncionandonamassapastosadotecidocerebraldentrodacabeçanãosignifica
quenãopudessefuncionaremumgrandeebrilhantecomputadoremalgummomentofuturo.Se
comaajudadecomputadoressuperinteligentesalguémconseguirmapearosbilhõesdeconexões
funcionaisquecompõemnossamente,entãotalvezumdiasejapossívelsobreviveràmorte.
Nossamentepoderiasertransferidaparaumcomputadorparaquecontinuassefuncionando
durantemuitotempodepoisqueocorpofosseenterradooucremado.Seessaseriaumaboa
maneiradeexistiréumaoutraquestão.SeSearleestivercerto,porém,nãohaveriagarantiade
queamentetransferidafosseconscientetalcomosomosagora,mesmoquedesserespostasque
parecessemmostrarquefosseconsciente.
Escrevendohámaisdesessentaanos,Turingjáestavaconvencidodequeoscomputadores
podiampensar.Seestivercerto,talveznãodemoretantoparaquevejamososcomputadores
pensandosobrefilosofia.Issoémaisprováveldeacontecerdoqueseremcapazesdefazernossa
mentesobreviveràmorte.Talvezumdiaoscomputadoresrealmentetenhamalgodeinteressante
adizersobreasquestõesfundamentaisdecomodeveríamosviveresobreanaturezada
realidade–tiposdequestõescomasquaisosfilósofoslidamhámilharesdeanos.Enquantoisso,
precisamosconfiarnosfilósofosdecarneeossoparaesclarecernossopensamentonessasáreas.
UmdosmaisinfluentesecontroversosdessesfilósofoséPeterSinger.
CAPÍTULO40
Omoscardomoderno
PETERSINGER
Imagine-seemumparqueondevocêsabequeháumlago.Vocêouveumbarulhonaáguae
depoisalguémgritando.Entãopercebequeumacriançacaiuetalvezestejaseafogando.Oque
vocêfaz?Fazdecontaquenãopercebeu?Aindaquetivesseprometidoencontrarumamigoeque
pararnocaminhofosseumatraso,vocêcertamenteconsiderariaavidadacriançamais
importantedoqueestarnohorário.Olagoébemraso,masmuitoturvo.Seajudaracriança,vai
destruiroseumelhorsapato.Masnãoesperequeosoutrosentendamsevocênãopular.Trata-se
deagircomoumserhumanoedevalorizaravida.Avidadeumacriançavalemuitomaisdoque
qualquerpardesapatos,mesmoquesejamuitocaro.Qualquerpessoaquepensediferenteéum
monstro.Vocêpularianaágua,nãopularia?Éclaroquesim.Mas,poroutrolado,você
provavelmenteéricoobastanteparaevitarqueumacriançamorradefomeoudeumadoença
tropicalincurávelnaÁfrica.Éprovávelqueissonãocustemuitomaisqueopreçodosapatoque
vocêestáprestesaestragarporsalvaracriançanolago.
Porquevocênãoajudouasoutrascrianças–supondoquenãotenhaajudado?Doarum
poucodedinheiroparacaridadesalvariapelomenosumavida.Hádiversasdoençasinfantisque
podemfacilmenteserevitadascomumaquantiarelativamentepequenadedinheiroparapagar
vacinaseoutrosmedicamentos.MasporquevocênãosenteporalguémquemorrenaÁfricaa
mesmacoisaquesenteporumacriançaqueseafogadiantedevocê?Sevocêsenteamesma
coisa,éalguémincomum.Amaioriadenósnãosente,mesmoquefiquemoslevemente
envergonhadosporisso.
OfilósofoaustralianoPeterSinger(nascidoem1946)defendeuqueacriançaqueseafoga
diantedevocêeacriançaquepassafomenaÁfricanãosãotãodiferentes.Devemosnos
importarmaisdoquenosimportamoscomaquelesquepodemossalvarnomundointeiro.Senão
fizermosalgo,ascriançasquepoderiamvivercertamentevãomorrer.Issonãoéumpalpite.
Sabemosqueéverdade.Sabemosquemilharesdecriançasmorremtodososanosdecausas
relacionadasàpobreza.Algumasmorremdefomeenquantonós,empaísesdesenvolvidos,
jogamosforaalimentosqueapodrecemnorefrigeradorantesdeseremconsumidos.Alguns
sequertêmáguapotávelparabeber.Portanto,deveríamosabrirmãodealgunsluxosdeque
realmentenãoprecisamosparaajudaraspessoasquenãotiveramsortedenascernoslugaresem
quenasceram.Éumafilosofiadifícildeseguir.MasissonãosignificaqueSingerestavaerrado
sobreoquedevemosfazer.
Talvezvocêdigaque,senãoderdinheiroparacaridade,provavelmentealguémdará.O
risconessecasoédetodosnósvirarmosespectadores,cadaumpartindodopressupostodeque
ooutrofaráoqueénecessário.Hátantaspessoasnomundointeirovivendonaextremapobrezae
indoparaacamatodososdiasfamintasque,sedeixarmosacaridadeparapoucos,dificilmente
essaspessoasterãosuasnecessidadessatisfeitas.Éclaroqueémuitomaisfácilperceberuma
pessoaaoajudarmosumacriançaqueseafogadiantedenós.Comoosofrimentodasoutras
criançasaconteceempaísesdistantes,podesermaisdifícilperceberosefeitosdoquefazemose
osefeitosdasaçõesdeoutraspessoas.Masissonãosignificaquenãofazernadasejaamelhor
solução.
Relacionadoaessepontoestáomedodedardinheiroparaauxiliarpaísesestrangeiros,o
quetornaospobresdependentesdosricoseimpedequeencontremseucaminhoparaproduziros
própriosalimentoseconstruirasprópriasmoradias.Comopassardotempo,issopodedeixaras
coisasaindapioresdoquesenãodermosnada.Háexemplosdepaísesinteirosquesetornaram
dependentesdaajudaestrangeira.Noentanto,issonãoquerdizerquenãodevemoscolaborar
comacaridade,massimquedevemospensarseriamentenostiposdeajudaqueessas
instituiçõesoferecem.Algunstiposdeajudamédicabásicapodemdaraospobresumaboa
chancedesetornaremindependentesdoauxílioestrangeiro.Háprogramasquesãomuitobons
emensinaraspessoasnativasaajudaremumasàsoutras,construindopoçosquefornecemágua
potáveloufornecendoeducaçãoemsaúde.OargumentodeSingernãoquerdizerque
simplesmentedevemosdardinheiroparaajudarosoutros,massimquedeveríamoscontribuir
comasinstituiçõesdecaridadequemaisprovavelmentebeneficiarãoosmaisfrágeis
economicamentedemodoqueganhemforçasparaviverdemaneiraindependente.Amensagem
deleéclara:équasecertoquevocêpossaterumainfluênciagenuínanavidadeoutraspessoas.
Edeveria.
Singeréumdosfilósofosvivosmaisconhecidos,emparteporterdesafiadodiversas
ideiasamplamenteaceitas.Algumasdesuascrençassãoextremamentecontroversas.Muitas
pessoasacreditamnoabsolutocarátersagradodavidahumana–queésempreerradomataroutro
serhumano.Singernão.Sealguémestáemumestadovegetativopersistenteeirreversível,por
exemplo–ouseja,seapessoasóestávivacomocorpo,nãotemestadosconscientes
significativosnemchancederecuperaçãoouesperançaparaofuturo–,Singeracreditaquea
eutanásiaouoassassinatomisericordiosopossamserapropriados.Nãohátantopropósitoem
manterapessoavivanesseestado,acreditaele,poiselanãotemcapacidadedeterprazernem
escolhercomoquerviver.Nãotemumfortedesejoparacontinuarvivendo,jáqueéincapazde
terqualquerdesejo.
Essasvisõesfizeramdeleumsujeitomalquistoemvárioslugares,chegandoaserchamado
denazistapordefenderaeutanásianessascircunstânciasespecíficas–apesardofatodeseus
paisseremjudeusvienensesquefugiramdosnazistas.Esseinsultorefere-seaofatodequeos
nazistasmatarammilharesdedoentesedepessoasfísicaementalmenteincapazes,alegandoque
suasvidasnãovaliamapenaservividas.Noentanto,seriaerradochamaroprogramanazistade
“assassinatomisericordioso”ou“eutanásia”,poiselenãotinhaointuitodeevitarosofrimento
desnecessário,massimdeselivrardaquelesqueosnazistasdescartavamcomo“bocasinúteis”
porqueeramincapazesdetrabalhareporquesupostamenteestavamcontaminandoaraçaariana.
Nãohavianenhumsensode“misericórdia”nisso.Singer,aocontrário,estáinteressadona
qualidadedevidadessaspessoasecertamentejamaisteriaapoiadoaspolíticasnazistasem
qualquernível–pormaisquealgunsdeseusoponentescaricaturemsuasvisõesparaque
pareçamsemelhantesàsideiasnazistas.
Singerficoufamosoporcausadeseusinfluenteslivrossobreotratamentodosanimais,
principalmenteLibertaçãoanimal,publicadoem1975.NoiníciodoséculoXIX,Jeremy
Benthamdefendiaanecessidadedelevarmosasérioosofrimentoanimal,masnadécadade
1970,quandoSingercomeçouaescreversobreoassunto,poucosfilósofosviamaquestãodessa
maneira.Singer,assimcomoBenthameMill(verCapítulos21e24),éumconsequencialista.
Issoquerdizerqueeleacreditaqueamelhoraçãoéaquelaqueproduzomelhorresultado.E,
paracalcularomelhorresultado,precisamoslevaremcontaquaissãoosmelhoresinteressesde
todasaspessoasenvolvidas,inclusiveosinteressesdosanimais.AssimcomoBentham,Singer
acreditaqueacaracterísticamaisrelevanteparaamaioriadosanimaiséasuacapacidadede
sentirdor.Comosereshumanos,muitasvezesvivenciamosumsofrimentomaiordoqueum
animalsofreriaemsituaçãosemelhanteporquetemosacapacidadederaciocinareentendero
quenosacontece.Issotambémprecisaserlevadoemconta.
Singerchamouaspessoasquenãodãomuitaimportânciaparaosinteressesdosanimaisde
“especistas”.Écomoserracistaousexista.Oracistatrataosmembrosdesuaprópriaraçade
maneiraespecial.Elenãodáaosmembrosdeoutrasraçasoquemerecem.Umracistabranco,
porexemplo,oferecetrabalhoparaoutrapessoabranca,mesmoquehajaumapessoanegramais
bemqualificadaconcorrendoaocargo.Issoénitidamenteerradoeinjusto.Oespecismoécomo
oracismo.Surgedofatodesóvermosaperspectivadaprópriaespécie,oudesermos
extremamentepreconceituososafavordela.Comosereshumanos,muitosdenóssópensamnos
outrossereshumanosquandodecidimosoquefazer.Masissoéerrado.Osanimaispodem
sofrer,eseusofrimentodeveriaserlevadoemconta.
Darigualrespeitonãosignificatratartodaespécieanimalexatamentedamesmaforma.
Issonãofarianenhumsentido.Sebatermosnolombodeumcavalocomamãoaberta,
provavelmenteelenãosentirámuitador,poisoscavalostêmapelegrossa.Contudo,sefizermos
omesmocomumserhumano,provocaremosumadorintensa.Massebatêssemosnocavalocom
forçasuficienteparacausarneleamesmadorquecausaríamosaobateremumbebêdormindo,
asduasatitudesseriammoralmenteerradas.Obviamente,nãodeveríamospraticarnenhuma
delas.
Singeracreditaquetodosnósdeveríamosservegetarianos,eseuargumentobaseia-seno
fatodequefacilmentepoderíamosvivermuitobemsemcomeranimais.Amaiorparteda
produçãodealimentosqueusaanimaisprovocasofrimento,ealgumasatividadesagropecuárias
sãotãocruéisquecausamumadorintensaaosanimais.Galinhascriadasemfábricas,por
exemplo,sãomantidasemgaiolasminúsculas,algunsporcoscrescememestábulostãopequenos
quenãoconseguemsevirareoprocessodematarogadocostumaserextremamenteperturbador
edolorosoparaeles.Singerafirmaquenãopodesermoralmentecorretodeixarqueessetipode
atividadecontinue.Alémdisso,outrasformashumanasdecriaranimaissãodesnecessárias,pois
podemosfacilmenteviversemcomercarne.Fielaseusprincípios,Singerchegouapublicarem
umdosseuslivrosumareceitadedahlparaencorajarosleitoresabuscaralternativasàcarne.
Animaisdegranjanãosãoosúnicosquesofremnasmãosdossereshumanos.Oscientistas
usamanimaisemsuaspesquisas.Enãosãosóratoseporquinhos-da-índia–gatos,cães,
macacoseatéchimpanzéspodemserencontradosemlaboratórios,muitosdelespassandopor
sofrimentosterríveisenquantosãodrogadosourecebemeletrochoques.Singertemumtestepara
versequalquerpesquisaémoralmenteaceitável:estaríamosprontosparaexecutaromesmo
experimentoemumserhumanocomlesãocerebral?Senão,acreditaele,nãoécorretofazero
experimentocomumanimalemnívelsemelhantedeconsciênciamental.Trata-sedeumteste
rígido,epouquíssimosexperimentospassariamporele.Naprática,então,Singeréduramente
contraousodeanimaisempesquisas.
TodaaabordagemdeSingeràsquestõesmoraisébaseadanaideiadeconsistência,ou
seja,tratarcasossemelhantesdamesmamaneira.Éumaquestãodelógica:seéerradomaltratar
sereshumanosporqueissoprovocador,entãoadordosoutrosanimaistambémdeveriaafetar
nossomododeagir.Semaltratarumanimalprovocamaisdordoquemaltratarumserhumano,
entãoémelhormaltrataroserhumanosetivermosdeescolher.
Singercorreriscosquandotornapúblicasdeclaraçõessegundoasquaisdeveríamosviver
talcomoSócrateshámuitosanos.Houveprotestoscontraalgumasdesuasconferências,eelejá
foiameaçadodemorte.Noentanto,Singerrepresentaamelhortradiçãoemfilosofiaeestá
constantementedesafiandosuposiçõesamplamenteaceitas.Suafilosofiaafetaamaneiracomo
vive,eeleestásemprepreparadotantoparacontestarasopiniõesdaspessoasdequemdiscorda
quantoparaseenvolveremdiscussõespúblicas.
MaisimportantedoqueissoéofatodeSingerdefendersuasconclusõescomargumentos
fundamentadoseapoiadosporfatosbempesquisados.Vocênãoprecisaconcordarcomas
conclusõesdeleparapercebersuasinceridadecomofilósofo.Afilosofia,afinaldecontas,
prosperacomodebate.Elaavançaquandoaspessoasassumemposiçõescontráriase
argumentamusandoalógicaeaevidência.SevocêdiscordadasvisõesdeSingersobreostatus
moraldosanimais,porexemplo,ousobreascircunstânciasemqueaeutanásiaémoralmente
aceita,aindaháumagrandechancedealeituradoslivrosdelelevarvocêapensar
profundamentesobresuasprópriascrençaseemcomoelassãoapoiadasporfatos,razõese
princípios.
Afilosofiacomeçacomquestõesdelicadasedesafioscomplicados;commoscardoscomo
PeterSingernafilosofia,háumagrandechancedequeoespíritodeSócratescontinuemoldando
seufuturo.
Textodeacordocomanovaortografia.
Títulooriginal:ALittleHistoryofPhilosophy
Tradução:RogérioBettoni
Ilustraçõesdacapaemiolo:JeffreyThompson
Preparação:ElisângelaRosadosSantos
Revisão:PatríciaYurgel
Cip-Brasil.CatalogaçãonaFonte
SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ
W228b
Warburton,Nigel,1962-
Umabrevehistóriadafilosofia/NigelWarburton;[traduçãodeRogérioBettoni].–Porto
Alegre,RS:L&PM,2012.
Traduçãode:ALittleHistoryofPhilosophy
ISBN978.85.254.2736-6
1.Filosofia-História.2.Filósofos.I.Título.
12-2042.CDD:190
CDU:1
©2011,NigelWarburton
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Capítulo1-Ohomemqueperguntava(SócratesePlatão)Capítulo2-Averdadeirafelicidade(Aristóteles)Capítulo3-Nãosabemosnada(Pirro)Capítulo4-OJardim(Epicuro)Capítulo5-Aprendendoanãoseimportar(Epiteto,Cícero,Sêneca)Capítulo6-Somosmarionetesdequem?(SantoAgostinho)Capítulo7-AconsolaçãodaFilosofia(Boécio)Capítulo8-Ailhaperfeita(AnselmoeAquino)Capítulo9-Araposaeoleão(NicolauMaquiavel)Capítulo10-Sórdida,embrutecidaecurta(ThomasHobbes)Capítulo11-Estaríamossonhando?(RenéDescartes)Capítulo12-Façamsuasapostas(BlaisePascal)Capítulo13-Opolidordelentes(BaruchEspinosa)Capítulo14-Opríncipeeosapateiro(JohnLockeeThomasReid)Capítulo15-Oelefantecinza(GeorgeBerkeleyeJohnLocke)Capítulo16-Omelhordetodososmundospossíveis?(VoltaireeGottfriedLeibniz)Capítulo17-Orelojoeiroimaginário(DavidHume)Capítulo18-Nascemoslivres(Jean-JacquesRousseau)Capítulo19-Realidadecor-de-rosa(ImmanuelKant[1])Capítulo20-Esetodosfizessemisso?(ImmanuelKant[2])Capítulo21-Contentamentoprático(JeremyBentham)Capítulo22-AcorujadeMinerva(GeorgW.F.Hegel)Capítulo23-Vislumbresderealidade(ArthurSchopenhauer)Capítulo24-Espaçoparacrescer(JohnStuartMill)Capítulo25-Designnãointeligente(CharlesDarwin)Capítulo26-Ossacrifíciosdavida(SørenKierkegaard)Capítulo27-Trabalhadoresdomundo,uni-vos!(KarlMarx)Capítulo28-Edaí?(C.S.PeirceeWilliamJames)Capítulo29-AmortedeDeus(FriedrichNietzsche)Capítulo30-Pensamentosdisfarçados(SigmundFreud)Capítulo31-OatualreidaFrançaécareca?(BertrandRussell)Capítulo32-Boo!Hooray!(AlfredJulesAyer)Capítulo33-Aangústiadaliberdade(Jean-PaulSartre,SimonedeBeauvoireAlbertCamus)Capítulo34-Enfeitiçadopelalinguagem(LudwigWittgenstein)Capítulo35-Ohomemquenãofaziaperguntas(HannahArendt)Capítulo36-Aprendendocomoserros(KarlPoppereThomasKuhn)Capítulo37-Otremdesenfreadoeoviolinistaindesejado(PhilippaFooteJudithJarvisThomson)Capítulo38-Justiçapormeiodaignorância(JohnRawls)Capítulo39-Oscomputadorespodempensar?(AlanTuringeJohnSearle)Capítulo40-Omoscardomoderno(PeterSinger)
TableofContentsCapítulo1-Ohomemqueperguntava(SócratesePlatão)Capítulo2-Averdadeirafelicidade(Aristóteles)Capítulo3-Nãosabemosnada(Pirro)Capítulo4-OJardim(Epicuro)Capítulo5-Aprendendoanãoseimportar(Epiteto,Cícero,Sêneca)Capítulo6-Somosmarionetesdequem?(SantoAgostinho)Capítulo7-AconsolaçãodaFilosofia(Boécio)Capítulo8-Ailhaperfeita(AnselmoeAquino)Capítulo9-Araposaeoleão(NicolauMaquiavel)Capítulo10-Sórdida,embrutecidaecurta(ThomasHobbes)Capítulo11-Estaríamossonhando?(RenéDescartes)Capítulo12-Façamsuasapostas(BlaisePascal)Capítulo13-Opolidordelentes(BaruchEspinosa)Capítulo14-Opríncipeeosapateiro(JohnLockeeThomasReid)Capítulo15-Oelefantecinza(GeorgeBerkeleyeJohnLocke)Capítulo16-Omelhordetodososmundospossíveis?(VoltaireeGottfriedLeibniz)Capítulo17-Orelojoeiroimaginário(DavidHume)Capítulo18-Nascemoslivres(Jean-JacquesRousseau)Capítulo19-Realidadecor-de-rosa(ImmanuelKant[1])Capítulo20-Esetodosfizessemisso?(ImmanuelKant[2])Capítulo21-Contentamentoprático(JeremyBentham)Capítulo22-AcorujadeMinerva(GeorgW.F.Hegel)Capítulo23-Vislumbresderealidade(ArthurSchopenhauer)Capítulo24-Espaçoparacrescer(JohnStuartMill)Capítulo25-Designnãointeligente(CharlesDarwin)Capítulo26-Ossacrifíciosdavida(SørenKierkegaard)Capítulo27-Trabalhadoresdomundo,uni-vos!(KarlMarx)Capítulo28-Edaí?(C.S.PeirceeWilliamJames)Capítulo29-AmortedeDeus(FriedrichNietzsche)Capítulo30-Pensamentosdisfarçados(SigmundFreud)Capítulo31-OatualreidaFrançaécareca?(BertrandRussell)Capítulo32-Boo!Hooray!(AlfredJulesAyer)Capítulo33-Aangústiadaliberdade(Jean-PaulSartre,SimonedeBeauvoireAlbertCamus)Capítulo34-Enfeitiçadopelalinguagem(LudwigWittgenstein)Capítulo35-Ohomemquenãofaziaperguntas(HannahArendt)Capítulo36-Aprendendocomoserros(KarlPoppereThomasKuhn)Capítulo37-Otremdesenfreadoeoviolinistaindesejado(PhilippaFooteJudithJarvisThomson)Capítulo38-Justiçapormeiodaignorância(JohnRawls)Capítulo39-Oscomputadorespodempensar?(AlanTuringeJohnSearle)Capítulo40-Omoscardomoderno(PeterSinger)