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1 Uma construção da Amazônia na marca Égua de Camiseta: identidade, representação e moda 1 Isaac de Souza Lôbo Universidade da Amazônia Unama/PA RESUMO A construção e difusão de uma identidade paraense, como objeto de referência, para a marca de roupas Égua de Camiseta foi o ponto de inquietação deste trabalho. Foram analisadas 26 imagens de camisetas, a fim de identificar quais são as principais representações veiculadas e estabilizadas no imaginário coletivo. Para esta pesquisa, lancei mão das noções de identidade, consumo e representações sociais. Palavras-chave: moda identidade consumo representações sociais. 1. INTRODUÇÃO A maneira de falar, a decoração da casa, o carro escolhido e as roupas usadas configuram algumas das escolhas que os sujeitos fazem de forma recorrente. Algumas delas, diariamente; outras, mais esporádicas. Através das práticas de consumo, é possível compreender questões dos indivíduos que não precisam ser ditas, assim como o modo escolhido para se apresentar ao mundo. Algumas dessas escolhas transcendem o gosto e o livre arbítrio: são pensadas para comunicar, representar e criar sentidos. A combinação de cores, texturas e materiais, os acessórios de luxo e as grifes de marcas famosas, por exemplo, carregam conceitos que vão além dos próprios objetos. E a aquisição deles está impregnada de sentidos que extrapolam o simples sentimento de posse. Essas seleções só são compreensíveis coletivamente porque a representação é social: a cor preta é luto, os cristais Swarovski são precisos, brilhosos e glamorosos, o tom nude segue a linha “menos é mais”. Em outros países e culturas, os sentidos provavelmente serão outras. Portanto, a identidade só se constrói por meio da diferença com o outro; e a representação, ancorada nas crenças de uma coletividade. 1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

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Uma construção da Amazônia na marca Égua de Camiseta: identidade,

representação e moda1

Isaac de Souza Lôbo

Universidade da Amazônia – Unama/PA

RESUMO

A construção e difusão de uma identidade paraense, como objeto de referência, para a marca

de roupas Égua de Camiseta foi o ponto de inquietação deste trabalho. Foram analisadas 26

imagens de camisetas, a fim de identificar quais são as principais representações veiculadas

e estabilizadas no imaginário coletivo. Para esta pesquisa, lancei mão das noções de

identidade, consumo e representações sociais.

Palavras-chave: moda – identidade – consumo – representações sociais.

1. INTRODUÇÃO

A maneira de falar, a decoração da casa, o carro escolhido e as roupas usadas

configuram algumas das escolhas que os sujeitos fazem de forma recorrente. Algumas delas,

diariamente; outras, mais esporádicas.

Através das práticas de consumo, é possível compreender questões dos indivíduos que

não precisam ser ditas, assim como o modo escolhido para se apresentar ao mundo. Algumas

dessas escolhas transcendem o gosto e o livre arbítrio: são pensadas para comunicar,

representar e criar sentidos.

A combinação de cores, texturas e materiais, os acessórios de luxo e as grifes de

marcas famosas, por exemplo, carregam conceitos que vão além dos próprios objetos. E a

aquisição deles está impregnada de sentidos que extrapolam o simples sentimento de posse.

Essas seleções só são compreensíveis coletivamente porque a representação é social: a

cor preta é luto, os cristais Swarovski são precisos, brilhosos e glamorosos, o tom nude segue

a linha “menos é mais”. Em outros países e culturas, os sentidos provavelmente serão outras.

Portanto, a identidade só se constrói por meio da diferença com o outro; e a representação,

ancorada nas crenças de uma coletividade.

1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04

e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

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A imagem da identidade paraense é o fio condutor desta pesquisa. E, para visualizar as

representações feitas, escolhi, como objeto de estudo, a grife Égua de Camiseta, por oferecer

aos clientes roupas regionais e criativas, no melhor estilo “vestir o Pará”.

2. DESENVOLVIMENTO

A construção da identidade paraense sempre me inquietou, desde a época da

graduação. Uma pergunta que faço aqui, para começar o debate, é: por que, para ser

considerado o estereótipo de habitante nato do Estado, é preciso usar calças de linho e tons

terrosos? Por que usar penas de aves e fitas de cetim nos chapéus? Com exceção dos tons

terrosos, os outros elementos não estão massivamente solidificados na indumentária paraense.

Essas e outras imagens são construções de sentidos, os quais são representados e

reconhecidos socialmente, e que só atingem o objetivo de comunicar se os códigos forem

compreendidos e compartilhados no meio em que se insere. É o que pesquisador Serge

Moscovici chama de fenômeno das Representações Sociais:

As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, se

entrecruzam e se cristalizam continuamente, através duma palavra, dum gesto, ou

duma reunião, em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas

relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as

comunicações que estabelecemos. (2003: 10).

As roupas podem ser vistas como linguagem, comunicação, expressão de identidade e

face visível do consumo. Entretanto, só adquirem esses status por serem representações

sociais. Na apresentação do livro O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo, de

MaryDouglas e Baron Isherwood, Everardo Rocha afirma que “os bens são investidos de

valores socialmente, utilizados para expressar categorias e princípios, cultivar ideias, fixar e

sustentar estilos de vida, enfrentar mudanças ou criar permanências” (2006: 8).

De acordo com a descrição no blog da marca analisada neste trabalho, a Égua de

Camiseta trabalha a temática paraense em 90% das estampas. Já no perfil no Twitter, o texto

faz questão de frisar que se trata de uma grife paraense, em que os produtos são pensados a

partir do regionalismo e da exclusividade. No fim do parágrafo, ainda existe a ênfase sobre

“vestir o Pará”.

Historicamente, a imagem veiculada do paraense é bastante delimitada. O apego às

raízes, ao que é natural e considerado da terra, está sempre presente, assim como a

religiosidade, a culinária exótica e a paixão pelo futebol. Aquilo que é definido como próprio

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ou local, segundo Barbero (1993, p. 21), está cada vez mais relacionado ao que a lógica das

comunicações de massa elege para representar como tal, como, mais recentemente, tem

acontecido com o tecnobrega e as aparelhagens – elementos atuais somados a este estereótipo.

O sujeito cosmopolita, presente em várias cidades brasileiras – cada qual com suas

associações identitárias locais e globais mescladas, misturadas e hibridizadas –, pouco é

retratado quando o assunto é a representação regional. Para Castro (2007a: 2), essas

identificações, com caráter simplista e reducionista, são reduções da realidade.

A discussão acerca das identidades não é recente, tampouco é possível vislumbrar um

ponto final. Assim com a temática é vista atualmente – múltipla –, o próprio estudo das

identidades também o é. Para Diana Crane, um elemento desempenha um papel de grande

relevância na construção social da identidade: o vestuário.

A escolha do vestuário propicia um excelente campo para estudar como as pessoas

interpretam determinada forma de cultura para seu próprio uso, forma essa que

inclui normas rigorosas sobre a aparência que se considera apropriada num

determinado período (o que é conhecido como moda), bem como uma variedade de

alternativas extraordinariamente rica. Sendo uma das mais evidentes marcas de

status social e de gênero – útil, portanto, para manter ou subverter fronteiras

simbólicas –, o vestuário constitui uma indicação de como as pessoas, em diferentes

épocas, veem sua posição nas estruturas sociais e negociam as fronteiras de status

(2006: 21).

Por meio das roupas, é possível interpretar a intenção de expor sentidos de quem as

veste. Para alguns autores que estudam moda, a ocupação, a identidade regional, a religião, os

costumes e a classe social, por exemplo, podem ser refletidos nas roupas. Concordo com este

argumento, em parte. Entretanto, friso que, caso os códigos sejam compreendidos, qualquer

pessoa é capaz de criar uma imagem, nem sempre condizente com a realidade. Então eu

pergunto: será que os usuários da marca Égua de Camiseta são mais paraenses que aqueles

que não usam? Ou, ainda, se valorizam mais a cultura local que os outros ao ponto de

estampá-la no peito? É uma expressão do que se sente, uma exteriorização do eu, ou a

construção planejada da identidade do sujeito?

O modo como os sujeitos se apropriam e reelaboram códigos oferecidos socialmente

também assume uma conotação de representação identitária. Quando compramos um DVD,

escolhemos um restaurante ou decidimos sair de casa vestindo um estilo de roupa,

dependendo daquilo que fazemos questão de tornar público, seremos julgados pela imagem

que estas práticas de consumo proporcionam. Segundo Canclini (1997:21), quando

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selecionamos os bens, também nos apropriamos deles e definimos o que consideramos

publicamente valioso – a maneira como nos integramos e nos distinguimos na sociedade.

Trata-se da capacidade que os bens têm de falar pelos indivíduos e destacar aspectos

gerais e subjetivos dos sujeitos. Por mais que não conheça uma pessoa que esteja vestindo

uma camiseta da marca que trato neste trabalho, só o fato de estar usando-a, essa escolha me

permite fazer alguns pré-julgamentos a respeito de suas preferências e posicionamentos sobre

o que seria a identidade regional.

A escolha dos bens cria continuamente certos padrões de discriminação, superando

ou reforçando outros. Os bens são, portanto, a parte visível da cultura. São

arranjados em perspectivas e hierarquias que podem dar espaço para a variedade

total de discriminações de que a mente humana é capaz. As perspectivas não são

fixas, nem são aleatoriamente arranjadas como um caleidoscópio. Em última análise,

suas estruturas são ancoradas nos propósitos sociais humanos (DOUGLAS,

ISHERWOOD, 2006: 114).

O consumo tem a capacidade de construir imagens dos indivíduos pela maneira como

eles selecionam bens, o que pode gerar aspectos de identificação, mas também distinção com

categorias e grupos.

E qual é a imagem que a marca Égua de Camiseta tem do paraense? E quais são as

representações utilizadas para criar identificações com o público? Por questões

metodológicas, analisei as imagens publicadas no perfil do Facebook da marca, nos álbuns

“Clássicos” e “Sucessos”. A escolha pelas camisetas que compõe esses grupos se deu em

função do entendimento que clássicos são duradouros e tradicionais, e sucessos são campões

de crítica e público. Vale frisar que quem os intitulou dessa forma foi a própria empresa.

Como não tenho como precisar o período de produção ou publicação das imagens no

Facebook, acrescentei neste objeto as postagens de outra rede social, o Instagram, que me

proporciona temporalidade, já que data o período em que as fotos são veiculadas, e frescor,

por entender que as fotografias não são de arquivo e, sim, da produção atual da marca.

Acessei o perfil da marca no Instagramno dia 7 de outubro de 2014 e retirei as publicações

desde o início de agosto (dia 5 aproximadamente) até o dia 5 de outubro de 2014. As imagens

repetidas (nos álbuns do Facebook e Instagram) foram incluídas somente uma vez.

O álbum Clássico do Facebook tem duas camisetas: uma com o açaí como temática

principal e a outra com a bandeira do Pará, representada por meio de um jogo de vídeo grame.

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A Égua de Camiseta, na descrição, pontua

algumas ações que considera um clássico. O açaí

somente, apesar de ter uma aceitação local expressiva,

não ganha esse título. A ingestão do suco da fruta é um

ritual: tomá-lo após o almoço, como sobremesa. Eu

acrescento ainda que a sesta faz parte do pacote.

Quando a marca elege o açaí como um elemento

característico da identidade paraense e o associa à

felicidade, qualquer pessoa que tenha contato com essa

camiseta entenderá a paixão local pelo fruto.

A outra imagem que compõe o grupo de clássicos da marca é uma camiseta com a

bandeira do Pará. Descrevendo assim parece que se trata de uma estampa qualquer, disponível

em lojas de artigos para turismo. Entretanto, o viés divertido, contemporâneo e pop da grife

aproxima este elemento de outro global: vídeo game.

Das estampas que colocarei neste trabalho, essa é

uma das que melhor mescla o regional com o global. O

Mário Bros é um personagem clássico de vídeo game,

sendo reconhecido até mesmo por quem não é aficionado

por jogos eletrônicos. A proposta é simples: apenas

estampar a bandeira do Estado; entretanto, a partir do

momento em que se utiliza a linguagem de vídeo game, as

relações e conexões estabelecidas são ampliadas. Não se

trata de um paraense que tem orgulho do Estado. É um paraense divertido, criativo, moderno,

jovial e que se orgulha do Pará. A identidade local ganha um componente universal,

aproximando a simbologia dos outros, e afastando-se um pouco do regionalismo tradicional

enraizado. Não é necessário ser paraense para esta estampa fazer sentido e comunicar códigos.

O álbum de Sucessos é formado por 18 imagens. A cidade de Belém, as gírias locais, a

chuva, o açaí e as localidades de Algodoal e Ajuruteua estão entre as temáticas abordadas.

As duas primeiras camisetas do álbum trazem elementos que caracterizam a cidade de

Belém. A primeira delas apresenta um recorte de um lugar tradicional da cidade: o Bar do

Parque, localizado na Praça da República, ao lado do Teatro da Paz. A segunda enfatiza as

chuvas vespertinas de Belém, em uma visão romântica.

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A camiseta do Bar do Parque é simples e direta. É uma valorização de um local,

bastante tradicional na cidade. O lado criativo, jovial e um pouco mais global aparece na

apresentação da roupa, com a frase “Vamos passear no Parque!” – um trocadilho com a

canção infantil “Vamos passear no bosque”.

O mesmo ocorre com a camiseta sobre as chuvas da tarde. Por mais que essa seja uma

representação local bastante difundida e cultuada pelos defensores de uma identidade

regional, ela também está muito localizada na cidade de Belém. Os paraenses de outras

cidades podem até reconhecem este elemento como identitário regional, entretanto nem

sempre as chuvas são constantes em lugares como Placas e Novo Progresso, por exemplo

A linguagem e as gírias locais são a temática das outras duas camisetas que seguem no

álbum. A palavra “Égua” é o carro-chefe, o que é mais do compreensível, considerando o

nome da empresa.

A primeira traz a frase “Égua muleque tédoidé”. Considero esta uma das camisetas

mais limpas e menos apelativas. É só uma frase. É como aquelas camisetas com frases em

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outras línguas, as quais não fazem sentido para quem não compartilha dos mesmos códigos e,

sim, para quem decide andar com o letreiro pelas ruas.

A segunda já delimita um campo: o modo como fala o paraense, na concepção da

marca. De pronto, discordo de duas palavras: tacacá e chibé, já que ambos são produtos,

receitas. As demais palavras abarcam todos os paraenses? Eu, por exemplo, nunca falei “Pai

d‟égua”, “rabiola” e “ulha”. Trata-se, mais uma vez, de tentar somar e solidificar uma

concepção essencialista de identidade paraense. E mais: por que a brincadeira em tatuar no

braço do ator Dwayne Douglas Johnson a frase “Eu amo Belém”? A proposta não é do Pará?

Das duas camisetas seguintes, incluídas no álbum, comentarei apenas a segunda, pois

a primeira já foi abordada.

“Pense positivo. Ainda bem que é manga. E se fosse jaca?” é a estampa da sexta

imagem incluída rol dos sucessos da marca. Essa estampa foi inspirada na imagem de Belém

como Cidade das Mangueiras. Preciso ressaltar que essa representação social de Belém foi

apenas a inspiração para a estampa. Entretanto, Belém é mesmo a Cidade das Mangueiras?

Onde estão as mangueiras da rodovia Augusto Montenegro? E da avenida Duque de Caxias?

Não listarei aqui os pontos onde há ou não essa árvore na cidade inteira, mas é

interessante pensar como um elemento é difundido como característico local, mas não está

presente em grande parte da região metropolitana. Isso é um exemplo de como somos

repetidores de discursos criados, sem nem conhecermos a origem, e que nem sempre fazem

total sentido. Além de repetirmos, nós o afirmamos, o reproduzimos e o mantemos. E, mais

uma vez, a estampa é sobre Belém. Será que a identidade paraense se resume a Belém? Não

há nada de marcante nos outros municípios?

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As estampas seguintes trazem, novamente, elementos já comentados aqui, apenas com

outro formato: o açaí e Belém. E ambas são apresentadas com letras de músicas consideradas

genuinamente paraenses.

A camiseta sobre o açaí expõe o transporte

da fruta em paneiros sobre um veículo Kombi, da

marca Volkswagen, com um açaizeiro ao fundo,

feito com traço de desenho. Um trecho da música

Sabor Açaí, de Nilson Chaves, foi utilizado para

criar uma identificação maior com os usuários

que conhecem e sentem a canção, a qual exalta a

fruta como marca simbólica de consumo paraense.

A música utilizada para divulgar a outra estampa foi “Belém, Pará, Brasil”, de Edmar

Rocha. Inclusive, o nome da canção é o texto da estampa. Sobre a camiseta em si, não tenho

muito o que ponderar, em função de existir criações que seguem a mesma proposta em várias

cidades brasileiras. Mas não posso deixar de expor a contradição da utilização do trecho desta

música ao lado para reafirmar a identidade local.

Frases como “Vão destruir o Ver-o-

Peso e construir um shopping center” e “Vão

derrubar o Palacete Pinho pra fazer um

condomínio” iniciam a canção, que provoca

uma sensação de perda de elementos

identitários locais como reflexo da

modernização. Em seguida, afirma que a

região não é “levada a sério”, que os “nossos índios não comem ninguém” e que “a gente

toma guaraná, quando não tem coca-cola”. Ou seja, ao mesmo tempo em que lamenta a perda

de raízes, exalta o fato de fazer parte da contemporaneidade. A letra ainda aponta o culpado

disso: “a culpa é da mentalidade criada sobre a região”.

Por mais que a estampa não traga o discurso completo da música, certamente é feita

uma associação direta a todos esses elementos, em função da utilização do trecho ao lado.

Contudo, é preciso destacar que a grife está fazendo justamente o que é criticado na canção:

mantendo a mentalidade sobre a região.

As próximas estampas apostam na simbologia de outras localidades paraenses:

Algodoal e Ajuruteua – praias que se destacam pela beleza e tranquilidade –, saindo do foco

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da capital, mas que são destinos frequentes de quem mora em Belém. Além dessas duas

localidades, o município de Salinópolis e o distrito de Mosqueiro também estão na lista dos

recantos populares de veraneio do belenense, já que são de fácil acesso para quem está na

capital do Estado.

Detentora de uma aura de liberdade, a praia

de Algodoal localiza-se na ilha de Maiandeua,

pertencente a Marudá, distrito do município de

Marapanim. Em função da travessia de Marudá até

a ilha, Algodoal mantém uma estrutura rústica, sem

veículos e sem iluminação pública. Esse

distanciamento permite um desprendimento maior

dos que se deslocam ao local, provocando atitudes e ações que não devem ser repercutidas

fora daquele ambiente. A máxima “o que acontece em Algodoal, morre em Algodoal” já foi

título de comunidade no Orkut e é uma espécie de Lei. E sugere que o que acontece lá é

sigiloso e não seria bem aceito no cotidiano das cidades grandes.

Outro lugar bastante frequentado

pelos belenenses é a praia de Ajuruteua, no

município de Bragança. O acesso ao local,

de Belém, é somente por terra. Entretanto,

a estrada que leva à praia é cercada de

manguezais, sendo, portanto, comum que

caranguejos cruzem a pista para se

deslocar. Em função desta cena, comum a

quem frequenta a praia, é que a marca criou a estampa abaixo, fazendo alusão à fotografia dos

Beatles, em que os integrantes da banda cruzam uma rua sobre a faixa de pedestres.

Vale ressaltar que as últimas duas estampas só fazem sentido a quem conhece as

localidades, as quais não fazem parte do roteiro tradicional dos moradores dos municípios do

sul e oeste do Pará.

As estampas seguintes são bem diretas. A primeira faz referência às brincadeiras de

criança, em que a contagem, seja para começar a brincadeira, seja para pontuar um momento

do jogo, é finalizada com a frase “um, dois, três, largatiii, já!”. O sentido é o mesmo de “um,

dois, três e já!”. Já a segunda estampa apresenta os peixes da região.

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A estampa seguinte, assim que a vi, me remeteu a um monitor de freqüência cardíaca.

Os corações desenhados nas linhas ajudaram também nesta associação. As palavras

selecionadas não são surpreendentes. Fazem parte de um grupo estereotipado de

representações. Se separarmos por

classificações, fazem referência ao lugar

as palavras “Belém”, “Ver-o-Peso” (que

fica em Belém), “Pará” e “Amazônia”;

aos elementos naturais, não exclusivos do

Estado, “calor”, “sol” e “chuva”; à

linguagem a expressão “égua”; e à

culinária as frutas “açaí”, “cupuaçu”,

“pupunha” e “bacuri”, as comidas típicas “tacacá” e “maniçoba”, e os ingredientes “tucupi”,

“filhote” e “pirarucu” – sendo os dois últimos espécies de peixe.

Ressalto, considerando esta seleção de palavras, a imagem construída do Estado: um

lugar quente e úmido, e rico gastronomicamente. E afirmo categoricamente que o Pará não é o

único lugar do Brasil que possui essas características.

As outras três imagens trazem como tema a paixão do paraense pelo futebol,

materializada através dos times sediados em Belém Remo e Paysandu, rivais e essenciais para

a manutenção um do outro – apesar de já haver times expressivos no interior do Estado.

As criações da grife utilizam elementos universais para aproximar a mensagem de um

público não familiarizado com o regional. É o que ocorre com a estampa abaixo com a

palavra “égua”, utilizada dentro do padrão da marca Lego, apoderando-se do mesmo artifício

já discutido acima sobre a apropriação do ícone de vídeo game Mário Bros.

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A última estampa do álbum foi inspirada

nas obras do grafiteiro e pintor britânico Banksy,

conhecido por espalhar obras de arte nas ruas,

grafitando prédios antigos, muros, entre outros. Na

estampa, é como se o artista tivesse se inspirado

no Pará, representado pelas bandeiras, para fazer uma

obra em uma parede.

As imagens seguintes foram extraídas no perfil da marca no Instagram, acessado no

dia 7 de outubro de 2014. Selecionei apenas as fotografias que apresentavam estampas.

Seguem as 12 postagens, das mais antigas às mais atuais.

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Nesse momento, já é possível perceber que as temáticas abordadas pela marca são as

mesmas. O que muda é a forma de apresentação. O paraense e sua identidade são

representados por gírias e associações com elementos naturais, como a culinária e as frutas. O

interessante da segunda camiseta acima é a afirmação sobre a digital de quem mora/nasce no

Pará.

As estampas seguintes trazem, novamente, a valorização das frutas, como elemento

característico local e identitário, e a referência sobre Algodoal, já abordada neste trabalho,

mais acima.

A próxima estampa já foi apresentada, em um dos álbuns do Facebook. Já a outra,

apesar de não ter sido abordada, segue a mesma proposta visual. Entretanto, a camiseta que

carrega as cores da bandeira do Pará – azul e vermelho – é bem mais direta e explícita.

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O tema “Belém – Cidades das Mangueiras” é explorado, novamente, na camiseta

abaixo – a primeira. A segunda já foi debatida aqui.

A próxima estampa também já foi incluída neste trabalho, abordando o mesmo assunto

da anterior: as mangueiras da capital paraense. A segunda, por sua vez, é inédita neste

trabalho. Trata-se de uma reprodução do rótulo de uma cachaça feita de jambu, erva típica da

região, comercializada no bar Meu Garoto. Pela legenda, é possível concluir que a loja

também vende a bebida.

As duas camisetas abaixo são as últimas selecionadas para a análise deste trabalho. A

primeira delas faz uma releitura de uma imagem clássica: “I NY”. Misturando o global,

com o local, a marca faz uma interferência na frase acrescentando um traço na letra N,

formando um M – o que forma a palavra “my”, que significa “meu” – e inclui o nome do

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Estado ao final, juntamente com a expressão “pai d‟égua”, gerando o conceito “Eu amo meu

Pará pai d‟égua”.

A outra estampa segue a mesma linha de brincar com o universal. Como nas cidades

em que se vende açaí, a identificação do ponto de venda é feita através de uma placa

vermelha, estilo bandeira, com a palavra “açaí” escrita, a marca substitui, na imagem do

homem na lua, a bandeira dos Estados Unidos pela placa que sinaliza a comercialização do

produto.

Diante dessas imagens, e das mensagens estampadas, é possível imaginar qual é a

informação que os usuários querem transmitir ao usar as roupas e ainda como a marca

concretiza a identidade paraense. Esse apelo material é o que Canclini chama de rituais

valiosos, pois estabelecem relação entre sentido e prática. “Os rituais servem para „conter o

curso dos significados‟ e tornar explícitas as definições públicas do que o consenso geral julga

valioso”. (1997:58).

Nesse sentido, não posso afirmar que a marca Égua de Camiseta é a responsável pela

criação de uma imagem reduzida da identidade local. Ela apenas se apropria de um

estereótipo aceito socialmente e é justamente por esta razão que o discurso faz sentido, porque

consegue se comunicar até mesmo com aqueles que discordam da construção difundida.

Entretanto, posso garantir que a grife ajuda a propagar e a manter essas representações.

O consumo usa os bens para tornar firme e visível um conjunto particular de

julgamentos nos processos fluidos de classificar pessoas e eventos. [...] Dentro do

tempo e do espaço disponíveis, o indivíduo usa o consumo para dizer alguma coisa

sobre si mesmo, sua família, sua localidade, seja na cidade ou no campo, nas férias

ou em casa. A espécie de afirmações que ele faz depende da espécie de universo que

habita, afirmativo ou desafiador, talvez competitivo, mas não necessariamente. Ele

pode conseguir, através das atividades de consumo, a concordância de outros

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consumidores para redefinir certos eventos tradicionalmente considerados menos

importantes como mais importantes e vice-versa. (Douglas e Isherwood, 2006: 115-

116).

As representações sociais são os pilares de funcionamento das coletividades do mundo

contemporâneo. Elas tornam ideologias, teorias, significados em realidade compartilhada,

agem nas interações entre pessoas e coletividades. Para Moscovici, as representações sociais

“[...] „corporificam idéias‟ em experiências coletivas e interações em comportamento [...]”.

(2003, p.48).

As camisetas da marca analisada estão impregnadas de representações sociais, as quais

traduzem o enraizamento cultural paraense e que são notadamente aceitas como integrantes da

identidade local, recorrendo ao uso de mensagens consolidadas no imaginário popular como

sendo da terra.

Esses processos são criados e recriados, nem sempre são contínuos. Dependendo de

sua formação, alguns duram mais tempo; outros, já nascem fadados ao desaparecimento. As

novas representações agem nos pontos de tensão das culturas. É justamente onde há falta de

sentido, um ponto não-familiar, que as representações são criadas. A emergência dessas

representações torna familiar o desconhecido, proporcionando um sentimento de estabilidade

e reconhecimento.

Há uma relação sutil entre representações e influências comunicativas, identificadas

pelo autor, quando ele define uma representação social como:

Um sistema de valores, idéias e práticas, com uma dupla função: primeiro,

estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientar-se em seu mundo

material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação

seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um código

para nomear e classificar, sem ambigüidade, os vários aspectos de seu mundo e da

sua história individual e social. (MOSCOVICI, 2003, p.21).

Elas possuem três funções básicas: a de constituição de um saber comum; a orientação

das condutas e dos comportamentos; e a constituição e fortalecimento da identidade. Elas

assumem o papel de compreender e comunicar o que já é sabido e transitam abstraindo

sentido do mundo, introduzindo “[...] ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma

forma significativa [...]. A representação iguala toda imagem a uma idéia e toda idéia a uma

imagem”. (MOSCOVICI, 2003, p.46).

Essas representações criam o que Moscovici (2003, p.54) chama de universos

consensuais. Nascidos no Pará ou não, o contato com as camisetas faz com que os clientes

experimentam o que é ser paraense. “[...] Universos consensuais são locais onde todos

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querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer risco, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou

feito ali, apenas confirma as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mais do que

contradiz, a tradição”. A reprodução dos discursos sobre a identidade paraense afirma e

reafirma constantemente o mesmo sentimento regional. Por mais que a maneira utilizada pela

marca seja universal, jovial e bem humorada, a mensagem tem o mesmo sentido: de manter a

tradição imagética local.

Todas as representações são sociocêntricas e tendem para o conservadorismo. As

memórias e experiências comuns de uma coletividade são fonte para a extração de imagens,

linguagem e gestos; tudo que faz significar. Mas essas experiências e memórias não estão

estagnadas, nem mortas. Para o uso delas, dois mecanismos funcionam como condição:

ancoragem e objetivação. Ancorar é o ato de classificar e nomear algo que não nos é familiar,

com intuito de familiarizá-lo, torná-lo reconhecível. Já a objetivação torna esse algo

familiarizado em realidade, em inteligível, tornando-o em “verdadeira essência da realidade”,

segundo Moscovici (2003). A objetivação sai do plano das idéias e concretiza-se no plano

material da realidade, de forma acessível.

O que antes estava no plano das idéias e, por meio de representações, ganhou o

significado de “verdade auto-evidente”. Certamente foi cristalizado de significâncias e

tacitamente aceito. Tal afirmação garante uma importante função representativa: “[...]

expressar primeiro a imagem e depois o conceito, como realidade”. (MOSCOVICI, 2003,

p.77). Músicas, propagandas, fotografias e as camisetas são exemplos da concretização dessas

“verdades”.

As representações são construídas diante dos sujeitos nos processos culturais, na

mídia, nos lugares públicos, por meio dos processos de comunicação. De acordo com o

idealizador da teoria (2003), a primeira finalidade delas é tornar a comunicação dentro de um

grupo não problemática, ou seja, facilitá-la, reduzindo o sentimento de vagacidade através de

certo grau de consenso entre seus membros.

Ninguém inventa uma representação social. Ela acontece nas interações cotidianas, por

meio das “[...] negociações implícitas no curso das conversações, onde as pessoas se orientam

para modelos simbólicos, imagens e valores compartilhados específicos” (MOSCOVICI,

2003, p.208). Dessa forma, os sujeitos passam a comungar de verdades que dão sentindo à

convivência na coletividade.

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Apesar de ter selecionado 32 imagens da marca Égua de Camiseta, publicadas pela

própria empresa em redes sociais, considero, para a análise das representações sociais mais

difundidas pela grife, 26 imagens, já que seis delas aparecem duas vezes.

Para compreender quais são as ideias mais recorrentes, elenquei quatro categorias e

pontuei elementos nas camisetas, a fim de quantificar as mensagens mais abordadas. As

categorias que criei, a partir das próprias camisetas, foram “natural”, “local”, “pop/universal”

e “linguagem”, e identifiquei 110 elementos. Não poderia criar categorias que não foram

identificadas nas estampas, como, por exemplo, “tecnologia”, a qual não teria nenhuma

representatividade.

O grupo “linguagem”, que engloba as expressões locais, como o “égua”, e o

significado delas, é o que possui maior representatividade, com 49 elementos, representando

44,54% do total. A partir disso, posso afirmar que a grife Égua de Camiseta considera o modo

de falar o diferencial e a marca dos paraenses. Não é a toa que o nome escolhido da empresa

leva a palavra “égua”.

A categoria “local” é a segunda com maior força. Entretanto, não está muito distante

da seguinte. Os elementos locais fazem referência aos territórios e aos lugares, integrando este

grupo as noções sobre Belém, Pará, Amazônia, Algodoal, Ajuruteua e pontos da capital

paraense, como o Bar do Parque e o Ver-o-Peso. São 26 elementos, o equivalente a 23,64%

do total, sendo que 12,73%, mais da metade (14 elementos), são sobre Belém. Dessa forma, é

possível constatar que a mensagem difundida sobre a identidade paraense está concentrada na

capital do Estado, negligenciando as manifestações e características das demais regiões e

cidades paraenses.

A categoria seguinte é a “natural”, com 25 elementos – bem próxima da anterior,

perfazendo 22,73% do total. Esse grupo inclui os aspectos da natureza não exclusivos do Pará

– como o sol, o calor e a chuva –, as frutas, os peixes e culinária, cuja base são os ingredientes

da natureza. As frutas são as mais recorrentes nessa série, aparecendo 14 vezes (12,73%),

sendo o açaí o líder, com 5 aparições.

Os elementos “pop/universais” foram os com menor destaque, aparecendo apenas 10

vezes, o correspondente a 9,09%. Esses elementos são usados pela marca para tornar a

estampa mais divertida, jovial e contemporânea.

As representações são formadas ao longo do tempo e assumidas publicamente pelos

sujeitos. Elas unem as ideias e o comportamento de uma coletividade. É válido lembrar que,

mesmo sendo construídas no âmbito do pensamento, as representações estão diretamente

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relacionadas às emoções coletivas. Estamos expostos às representações sociais por meio do

senso comum e do dito conhecimento popular. Elas nos chegam como algo natural, sem

estranhamento; assim, somos compelidos a perceber e dar sentido às nossas vivências sempre

por meio de um espectro representacional.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As representações sociais encontradas nas camisetas demarcam a ideia de identidade

paraense tanta da marca, quanto do público que consome. Mas de onde vem essa necessidade

de dizer o que é nosso? As discussões sobre identidade giram em torno das conseqüências da

globalização sobre as identidades regionais. Enquanto alguns crêem no esfacelamento delas -

por conta do contato com outras “identidades”, provocando uma miscigenação que

desembocaria numa cultura homogênea global -, há os que percebem justamente o oposto.

Com a expansão da hibridização das culturas, o que se tem observado é justamente a

valorização das culturas locais e até mesmo o ressurgimento de tradições já esquecidas.

Com uma cultura cada vez mais globalizada, as comunidades sentem a necessidade de

se afirmar pela diferença. Isso acontece porque nenhuma sociedade aceita transformações de

forma impositiva; elas sempre reagem - até o assentimento é uma reação. Independentemente

do posicionamento que assumam, o fato é que, na contemporaneidade, vivemos um processo

de hibridização cultural. “Se considerarmos as maneiras diversas pelas quais a globalização

incorpora diferentes nações, e diferentes setores dentro de cada nação, sua relação com as

culturas locais e regionais não pode ser pensada como se apenas procurasse homogeneizá-

las”. (CANCLINI, 1997:19).

A cultura paraense é contada de uma forma fixa, como se ela tivesse surgido pronta e

se mantido do mesmo modo até hoje. O que não é verdade, pois a cultura forma-se justamente

pelo movimento e o processo de hibridização cultural.

Diante da análise feita, a representação da identidade paraense é bastante ligada a uma

cultura de raiz, natural, fincada no território e que valoriza aquilo que a diferencia dos demais,

deixando a característica híbrida para pouco mais de 9% do todo analisado. As representações

mais enfatizadas são as da linguagem, do modo de falar do paraense.

O que me instiga na produção dessas estampas é a postura de seus protagonistas e toda

estrutura ideológica que dá suporte a ela. São agentes como músicos, publicitários, estilistas,

formadores de opinião em geral, que ajudam a manter e a exportar uma imagem do Pará

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carregada de tradicionalismo e purismo. Dentro dessa perspectiva, me recuso a ver o

paraense, nascido ou não no Estado, reduzido as representações aqui expostas. Essa relação

entre e o regional e o global gera uma concepção local que só conseguiremos ver na diferença

com o outro. A noção de identidade, por mais controversa que seja, não pode se limitar a

estereótipos solidificados culturalmente.

Não há regras e nem um manual que classifique ou não um paraense. Não há um

estatuto. As noções de identidade estão enrijecidas em representações tradicionais e que não

abarcam a dimensão cultural do Estado.

Torço para ver a cultura paraense representada com todas as nuances que merece,

incluindo as abordadas pela marca Égua de Camiseta, mas também com a diversidade e

complexidade que o Estado carrega, sem ignorar os hibridismos inerentes a este tempo. Quem

sabe dessa forma as identificações com o Pará sejam mais verdadeiras e representativas e

menos caricatas.

REFERÊNCIAS

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2005.

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KUNSCH, Margarida M. Krohling (Org.). Indústrias culturais e os desafios da integração

latino-americana. Coleção Intercom, 2. São Paulo: Intercom, 1993. p. 21-35.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. –

3.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.